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    CONVERSAR COM ORION

    Carlo Ginzburg

    University of California Los ngeles

    O catlogo este

    (Leporello)

    1. Por mero acaso, isto , pela norma que preside a busca do desconheci-

    do : h muito tempo atrs, estas palavras de Carlo Dionisotti pareceram, a Adri-

    ano Prosperi e a quem escreve, prprias para introduzir, ao fim de um trabalho

    conduzido em conjunto sobre um texto religioso do sculo XVI, algumas conside-

    raes sobre o entrelaamento entre o acaso e os pressupostos (ideolgicos ou

    de outro gnero) na pesquisa histrica.'

    Orion (pronunciado inglesa, Oraion) o nome do programa em que se

    baseia o catlogo

    on line

    da Research Library da University of California em Los

    Angeles (UCLA). Por extenso, Orion hoje substitudo por uma verso que pre-

    tende ser mais adiantada, o Orion 2 terminou por designar o prprio catlogo. De

    informtica, na realidade, sou um verdadeiro analfabeto. O uso do Orion do qual

    falarei baseia-se em uns poucos comandos elementares, talvez usados de maneira

    imprpria. Digo talvez , porque tenho a impresso que os catlogos de uma bibli-

    oteca (e os catlogos eletrnicos no so exceo) vm sendo pensados, desde

    sempre, para permitir queles que os usam encontrar aquilo que procuram.' Eu

    tambm os uso assim. Mas os utilizo do mesmo modo, muito freqentemente, com

    um propsito diverso, se no oposto: encontrar aquilo que no estou de fato procu-

    rando, e mesmo aquilo de cuja existncia nem mesmo suspeito.

    Trata-se de uma idia bastante bvia. Se o acaso, como nos recorda com

    autoridade Dionisotti, a norma que preside a busca do desconhecido, parece evi-

    dente que o pesquisador deva esforar-se por multiplicar os acasos, procedendo s

    cegas. Ignoro quantos estudiosos passam uma parte considervel do seu tempo

    vagando ao acaso nos catlogos, eletrnicos ou de papel, das bibliotecas. Mas, uma

    vez

    que fao parte deste grupo, pequeno ou grande que seja, tentarei explicar as

    implicaes e as possveis vantagens deste modo de proceder.

    Este artigo foi publicado anteriormente em italiano, sob o ttulo: Conversare con Orion, Quaderni

    Storici , 108, a. XXXVI (3), dicembre 2001, pp. 905-913. Traduo: Henrique Espada Lima.

    ** Estas pginas devem muito a uma conversao com Krzysztof Pomian e s objees que me fizeram

    Simona Cerutti, Gianna Pomata e Maria Luisa Catoni.

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    Comeo por tornar explcito um pressuposto tcito porque, mais uma vez,

    bvio. Na pesquisa, a casualidade absoluta no existe, porque nenhuma pesquisa parte

    do zero. O acaso tem limites, ligados antes de tudo a um trabalho de seleo feito antes,

    por outros. Quem recorre a um repertrio qualquer vocabulrio, lista telefnica ou

    catlogo de manuscritos de uma biblioteca j sabe com certeza o tipo de coisas que

    no poder encontrar. Mas estes limites preliminares podem ser circunscritos ainda

    mais. Darei dois exemplos, tirados da minha prpria experincia. No incio dos anos

    sessenta, conduzi uma pesquisa no fundo do Santo Ofcio conservado no Arquivo de

    Estado de Veneza. No era claro para mim o que eu estava procurando; sabia apenas

    que me interessavam os processos de feitiaria. O inventrio manuscrito do fundo

    veneziano do Santo Ofcio, redigido no final do sculo XIX, me permitia identificar um

    nmero conspcuo de processos catalogados pelos arquivistas (s vezes de modo ine-

    xato) sob legendas como feitiaria , bruxaria , mag ia , supersties . Exam in-los

    todos teria exigido meses, talvez anos. J que eu podia permanecer em V eneza apenas

    uma sem ana ou pouco mais do qu e isso, decidi consultar, a cada dia, trs envelopes ao

    acaso (era este o nmero mximo de consultas permitidas, ento, aos freqentadores

    da sala de estudos). Como j contei em outro lugar, desta pesquisa s cegas em ergiram

    os benandanti,

    aos quais depois acabei dedicando um livro.' Dez anos depois, no curso

    da pesquisa j lembrada, conduzida por Adriano Prosperi e por quem escreve, nos

    colocamos a compulsar os catlogos de bibliotecas que tnhamos mo, procura de

    ttulos como livro ou tratado , ou ainda por nomes como Francesco, Domenico,

    Benedetto, muitas vezes adotados por escritores pertencentes a ordens religiosas.4

    O que aproxima estes dois exemplos o recurso ao acaso, orientado por con-

    jecturas razoveis, para fazer frente desproporo entre uma imensa massa docu-

    mentria e o limitado tempo humano:

    ars longa vita brevis. Mesmo quem est dis-

    posto a examinar sistematicamente um fundo de arquivo recusar, como absurda, a

    idia de examinar sistematicamente todos os livros de uma grande biblioteca um

    conjunto heterogneo por definio. Mas precisar um tema genrico de pesquisa (a

    feitiaria) atravs de uma srie de sondagens arquivsticas conduzidas ao acaso

    ,

    por si s, bastante banal. Mais interessante seria a tentativa de delimitar, atravs da

    fria dos disparos no escuro, como no jogo de batalha naval que se brinca na infncia,

    um ob jeto com contornos ainda desconhecidos: a srie na qu al inserir um texto religi-

    oso de grande sucesso como o

    Trattato utilissimo dei beneficio di Gesu Christo.

    Os catlogos

    on-line

    permitem outras possibilidades: entre estas, o desco-

    brimento (inventio)

    de um tema atravs do acaso. Darei um exemplo tirado,

    desta vez, de uma pesquisa recente.

    H trs anos, escrevi um ensaio sobre Voltaire que ser publicado em

    breve

    (Blacks, Jews and Animais: Voltaire and the Eighteenth-Century Ori-

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    gins of Multiculturalism)

    .

    No curso da pesquisa, tentei fazer um pequeno ex-

    perimento. Escolhi uma passagem ao acaso, colocada quase no incio do Trait

    de nztaphysique de Voltaire. A voz que fala a de um ser proveniente de uma

    estrela remotssima, que chega Terra:

    Descendu sur ce petit amas de boue, et n'ayant pas plus de

    notion de l'homme que l'homme n'en a des habitante de Mars

    ou de Jupiter, je dbarque vers les ctes de l'Ocan, dans les

    pays de la Cafrerie, et d'abord je me mets chercher un hom-

    me. Je vois des singes, des lphants, des ngres, qui sem-

    blent tous avoir quelque lueur d' une raison imparfaite.6

    Para Voltaire e para os seus leitores, cada palavra desta passagem se inseria

    em uma rede de referncias e de associaes que nos conhecida apenas imperfei-

    tamente. Talvez eu pensava o catlogo

    on-line

    da biblioteca da UCLA poderia

    me ajudar a identificar, ao menos pela via conjecturai, algum elemento m enos conhe-

    cido desta rede. Decidi circunscrever a pesquisa partindo de um nome prprio, mais

    precisamente do nome prprio menos banal entre aqueles recorrentes na passagem:

    Cafrerie. Uma vez que o tema do meu ensaio era a tolerncia, e portanto tambm a

    atitude de Voltaire com relao escravido, qualquer um poderia objetar que apos-

    tando sobre um nome de pas africano eu jogava com dados parcialmente viciados.

    Eu admito isso, mesmo que como se ver o experimento tenha me conduzido a

    uma direo inesperada. Pedi a Orion fnt Cafrerie e fkw Cafrerie , isto : procu-

    re quais livros no catlogo da UCLA apresentem a palavra Cafrerie , seja no ttulo

    seja como nome do autor (as siglas significam find name and title e find keywor-

    ds ).

    Em ambos os casos a resposta foi: nenhum. Tentei novamente com a palavra

    Cafres . Sobre a tela apareceram 13 resultados. O mais antigo do ponto de vista

    cronolgico era Jean-Pierre Purry.

    Mmoire sur le Pais des Cafres, et la Terre des

    Nuyts, par raport l utilit que la Compagnie des Indes Orientales en pourroit

    retirer pour son Commerce,

    Amsterdam 1718. O ttulo me deixou curioso, o autor

    me era completamente desconhecido. Procurei o livro entre as estantes: tratava-se

    de uma fotocpia da edio original, encadernada com outro texto, tambm uma

    fotocpia, do mesmo autor, intitulado

    Second Mmoire sur le Pais des Cafres, et la

    Terre de Nuyts,

    Amsterdam 1718. Folheando as pginas do livro, pensei que o autor,

    sem dvida um partidrio da expanso colonial europia, e quase certamente um

    protestante, teria sido um teste ideal para a tese de Max Weber sobre a tica protes-

    tante e o esprito do capitalismo. Desde o aparecimento do ttulo da primeira

    Mnzoi-

    re

    sobre a tela do Orion teriam se passado no mximo dez minutos. Retomei a Vo ltai-

    re. A possibilidade de que Voltaire tivesse lido Purry havia me passado pela mente.

    No via a hora de colocar-me a trabalhar sobre Purry. A pesquisa sobre ele andou

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    adiante: um primeiro relato sobre ela surgiu a pouco, nos anais de um congresso

    sobre a globalizao acontecido em Istambul.' Estou trabalhando em uma verso

    mais ampla, que espero se torne um breve livro.

    4.0 procedimento ou, melhor, os procedimentos. Havia-me proposto delimitar,

    atravs de sondagens, o contexto intelectual dividido por Voltaire e por seus leitores,

    e me havia subitamente colocado a procurar algo muito diferente. Retrospectiva-

    mente, esta mudana de perspectiva me parece inevitvel. Os escritos e o epistolrio

    de Voltaire ocupam estantes inteiras; da sua biografia, das suas leituras, da maior

    parte dos seus correspondentes sabemos muitssimo. Ao invs de perder tempo

    ainda que poucos minutos vagando s cegas no catlogo, teria feito melhor em

    prosseguir o trabalho sobre aquela imensa massa documental. Se, por outro lado, me

    propusesse demonstrar a eficcia das sondagens ao acaso, deveria ter me voltado

    para personagens menos (e possivelmente pouco) conhecidos. Orion me havia ofe-

    recido de imediato a possibilidade de fazer uma tentativa nesta direo. Ou teria sido

    eu que a havia procurado? Eu m e havia posto a perseguir o ttulo de um livro por mim

    desconhecido de um autor por mim desconhecido: um dado de fato

    Tatsache) do

    qual se poderiam inferir alguns fatos por verificar, a comear do primeiro e mais

    bvio a existncia do livro correspondente. A leitura das

    Mmoires de Purry havia

    feito emergir outros elementos, tambm por verificar. certo, qualquer investigao

    histrica procede mais ou menos deste modo. Mas a idia de provocar deliberada-

    mente a fase, que pode ser mesmo brevssima, entre o emergir do acaso e a formu-

    lao das primeiras hipteses de pesquisa, menos evidente.

    O contexto compartilhado por Voltaire e seus leitores, que me propunha a

    sondar sistematicamente, era (me faz notar S i mona Cerutti, referindo-se terminolo-

    gia do linguista americano Pike) um contexto

    emic:

    isto , formulado na linguagem

    dos atores, no naquela externa de quem conduz a pesquisa. Aquilo que me havia

    levado a concentrar-me sobre um dos ttulos que apareceram sobre a tela (as

    M -

    moires

    de Purry) havia sido, por outro lado, o ensaio sobre a tica protestante de Max

    Weber: um pressuposto ligado pesquisa e, portanto, a um contexto

    etic.

    Neste

    dilogo entre perspectiva emic

    e perspectiva etic

    vejo uma confirmao da fecundi-

    dade da distino traada por Pike. Esta pretende tornar-nos conscientes da distin-

    o entre os dois nveis, muitas vezes confundidos na pesquisa: e no, certamente,

    nos fazer escolher entre um e outro.

    9

    Parafraseando um clebre mote, seria tentado

    a dizer que sem o elemento

    etic a pesquisa cega; sem o elemento

    emic,

    vazia. Em

    outras palavras, as perguntas a serem colocadas aos documentos no surgem espon-

    taneamente dos documentos, e menos ainda dos catlogos. verdade, entretanto,

    que os catlogos

    on-line

    nos oferecem a possibilidade de dar espao ao contexto

    emic

    fazendo emergir constelaes de dados de fato no mediados (no contamina-

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    dos) por categorias de pesquisa pr-existentes. Em um catlogo por assunto eu seria

    levado a procurar temas como escravido , colonialismo , imperialismo : o cat-

    logo

    on-line

    me permitia evocar sobre a tela o conjunto casual dos livros possudos

    pela biblioteca da UCLA que continham no ttulo a palavra Cafres . Se tivesse

    partido de um nome comum por exemplo singes ou lueur , para permanecer

    dentro da passagem de Voltaire o conjunto teria sido ainda mais heterogneo. O

    computador m ultiplica a possibilidades de sermos surpreendidos por um dado efetiva-

    mente imprevisto. Mas esta surpresa intelectualmente fecunda? E por qu?

    Uma resposta primeira pergunta poder vir apenas dos resultados concretos

    inspirados pela estratgia de pesquisa que estou descrevendo. Aqui procurarei res-

    ponder segunda, esclarecendo os pressupostos do recurso ao acaso. Ele considera

    evidente a importncia decisiva das perguntas

    etic

    colocadas documentao por

    quem conduz a pesquisa: mas procura complicar o dilogo introduzindo elementos

    emic de perturbao, constitudos por dados efetivamente inesperados, aqueles que

    no se procura, dos quais nem mesmo se suspeita a existncia. Em suma, entre os

    pressupostos desta estratgia de pesquisa est em primeiro lugar o de subverter,

    ainda que apenas temporariamente, os pressupostos da prpria pesquisa. O catlogo

    on-line,

    oportunamente interrogado, faz a parte do advogado do diabo. Certamente,

    a desorientao pode durar uma frao de segundo: em geral, os pressupostos (so-

    bretudo os ideolgicos) retomam de imediato o controle da situao. Mas pergunta

    imprevista colocada pela documentao casual ser preciso continuar a prestar con-

    tas.' Tambm na pesquisa, como no xadrez, as aberturas so importantes, s vezes

    decisivas; em todo caso, influenciam longamente o curso do jogo. A responsabilidade

    de quem faz pesquisa comea aqui.

    Os filsofos antigos nos ensinaram que o encantamento, a surpresa, geram o

    conhecimento. As reelaboraes modernas deste tema sublinharam a importncia do

    estranhamento, do olhar opaco sobre a realidade que pode ajudar a alcanar um

    conhecimento menos superficial. O recurso deliberado ao acaso como motor da

    pesquisa pode ser comparado s

    frottages

    de Max Ernst: imagens que partem de um

    conjunto mais ou menos casual de objetos naturais. A potica da pesquisa que estou

    descrevendo certamente inspirada indiretamente pela potica novecentesca (so-

    bretudo surrealista) do

    object trouv.

    Mas, como se sabe, esta ltima tem razes

    muito mais antigas: da imagem nascida do acaso, que est ao centro de uma famosa

    anedota referida por Plnio, at a passagem igualmente famosa na qual Leonardo

    aconselhava ao pintor tirar inspirao das manchas deixadas nos muros pela umida-

    de A mancha no muro comparvel ao ttulo que aparece casualmente na tela do

    catlogo on-line.

    Em um mundo como o nosso, que o saber no consegue mais

    dominar (escrevia Erich Auerbach h meio sculo), a pesquisa no deve partir de

    grandes categorias conceituais, mas sim de pontos de partida (Ansatzpunkte)

    con-

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    cretos, agarrados intuitivamente e em seguida aprofundados cada vez mais.'

    Con-

    cretos, e eu acrescentarei de boa vontade: casuais. Mas na verdade no penso, natu-

    ralmente, que esta deva ser uma regra.

    5. No pargrafo precedente eu havia prospectado, em uma via puramente

    terica, sobre continuar o experimento sobre a passagem escolhida ao acaso de

    Voltaire, seguindo um outro rastro: no um nome prprio mas um nome comum,

    por exemplo lueur . No resisti curiosidade e consultei o catlogo

    on-line

    da

    UCLA na Internet. Sob a palavra-chave

    (keyword)

    lueur foram elencados 16

    ttulos. Uma vez mais, deti-me sobre o mais antigo, um opsculo annimo conser-

    vado nas Special Collections da biblioteca:

    Dialogue des

    morts: les trois pour cent, le droit d'ainesse, et la

    loi d'amour: conversation infernale, stnographie le 17 avril

    1827, la lueur des lampions.

    Porque foi exatamente este ttulo a chamar a minha ateno? Acredito ter pensado

    (mas enquanto j havia clicado para ver os dados tipogrficos: Paris, Marchands de nou-

    veauts, 1827, 50 pp., 11 cm.) nas ilustraes de Delacroix para o

    Faust

    de Goethe e para

    Peau de chagrin

    de Balzac, isto , a uma outra variao francesa sobre o tema do Faust

    (1831). No pensei na remisso implcita a Fontenelle e a Luciano contido no ttulo

    Dia-

    logue des mo rts).

    Voltei-me, por outro lado, para fantasiar sobre aquilo que parecia ser

    um pamphlet

    em defesa dos privilgios dos

    rentiers,

    formulado jocosamente na lingua-

    gem dem onaca em moda naqueles anos.

    Infemale, lampions, stnographie:

    uma bela

    mistura romntica sobre a qual ter colocado os olhos, quem sabe, mesmo o prprio

    Balzac.'

    Que fique claro: no penso realmente em uma investigao limitada apenas aos

    ttulos, empresa que se arrisca, como se viu no passado, a reinventar a roda.'

    Ser

    preciso ler o

    pamphlet Dialogue des mons,

    descobrindo talvez que se trata de um texto

    inteiramente irrelevante. Mas o catlogo

    on-line

    indica estradas ulteriores, eventualmen-

    te passveis de serem percorridas. A palavra-chave trois me d 4415 ttulos, que decido

    ignorar. Restringindo a pesquisa palavra-chave trois pour cent emergem 21 ttulos.

    Entre estes, cinco srios e jocosos, annimos ou no, todos aparecidos nos mesmos

    anos constituem outros tantos traos que permitiriam reconstruir o contexto

    emic do

    pamphlet

    do qual parti (ou melhor, do qual ainda no parti).

    Bonnardin,

    Oraison funbre de l infortun trois

    pour cent,

    mort a la fieur de son ag e,

    1825

    Des trois pour cent de l indemnit de la conversion des 5

    pour 100, du remborsement [18251

    Cyprien Desmarais,

    Epitre au trois pour cent,

    1825

    Nicolas-Louis-Marie-Magon L a Gervaisais,

    Des trois pour cent, 1825

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    Armand Sguin De la cration des trois pour cent et de

    l annihilation des rac hais de rentes, dans leurs rapports avec

    les rentiers, les indemniss, les contribuables et l tat,

    1827

    Neste ponto algum pode objetar que o meu esforo foi leve, porm intil.

    Qualquer histria da Restaurao teria podido esclarecer-me imediatamente sobre o

    contexto destes opsculos polmicos: a poltica financeira do reacionrio Villle, e em

    particular a lei que convertia a renda de 5 para 3 por cento, prejudicando os rentiers

    em vantagem dos

    emigrs. Mas partindo do contexto eu dificilmente (ou talvez

    nunca) teria chegado ao

    Dialogue des morts que devo ainda ler. Se algum dia o ler,

    o farei pensando em Balzac e na Peau de chagrin:

    partindo, portanto, de perguntas

    (e pressupostos) que jamais poderiam ter me levado quele texto.

    6. Nas reflexes incompletas sobre a histria, contidas em um livro pstumo

    (History: The Last Things Before the Last, 1969), Siegfried Kracauer dedicou um

    captulo a uma comparao entre o trabalho do historiador e o do fotgrafo. Kracau-

    er no tinha nada de positivista. Para ele, a fotografia no era sinnimo de registro

    passivo, como quer um lugar comum preguiosamente repetido: o fotgrafo, assim

    como o historiador,

    ao mesmo tempo passivo e ativo , porque registra e cria ao

    mesmo tempo'''. Realidade fotogrfica e realidade histrica so, em parte, estrutura-

    das sobre elementos amorfos, na medida em que participam do mundo semi-informe

    da experincia cotidiana (que Kracauer definiu, remetendo a Husserl,

    Lebenswelt).

    Fotgrafos e historiadores lidam com um material intrinsecamente contingente: e os

    eventos casuais (random)

    so a prpria matria dos instantneos.'s

    A tcita identificao do instantneo como gnero fotogrfico por excelncia

    no espanta em algum que, como Kracauer, havia teorizado o cinema como uma

    forma de redeno da realidade fsica. As pginas que precedem, voltadas a sublinhar

    a importncia do acaso no encontro com o material documental, podem ser lidas como

    um desenvolvim ento da analogia entre historiador e fotgrafo proposta por Kracauer.

    A perambulao do historiador atravs dos catlogos (eletrnicos ou em pa-

    pel) no muito diferente daquela de um fotgrafo que caminha por uma cidade

    pronto a captar em um instantneo uma realidade contingente e fugidia. A palavra

    click o clic da mquina fotogrfica foi usada por Leo Spitzer para definir a

    intuio do crtico que de um golpe capta o trao revelador de um texto que leu e

    releu cem

    vezes.

    Mas quem j observou os instantneos de Henri Cartier-Bresson

    ou de Robert Capa (poderiam ser acrescentados outros nomes) sabe que por trs do

    disparo do obturador est memria, escolha, em uma palavra: construo. Aquilo que

    permite reagir fulminantemente ao acaso o lento acmulo da experincia. E, em

    cada caso, ao reconhecimento de um tema de pesquisa promissor (o instantneo)

    deve necessariamente seguir o filme: para alm da metfora, a pesquisa.

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    NOTAS EXPLICATIVAS

    ' C. Dionisotti, Resoconto di una ricerca interrotta, In Annali della Scuola Normale Superiore di Pisa,

    Classe di Lettere e filosofia , s. II, vol. XXXVII (1968), p. 259 (cit. in C. Ginzburg, A. Prosperi, Giochi

    di pazienza. Un seminario sul Beneficio di Cristo , Torino: Einaudi 1975, p. 125.

    Ver G.P. Landow, Lipertesto. Nuove tecnologie e critica letteraria, organizado por P Ferri, Milano:

    Mondadori, 1998, pp. 155 e ss., especialmente p. 161, com uma remisso a um artigo que no pude

    ver: G.P. Landow, P. Kahn, The Pleasures of Possibility: What is Disorientation in Hypertext, In Journal

    of Computing in Higher Education , 4 (1993), pp. 57-78.

    C. Ginzburg, Witches and Shamans, in New Left Review , 200, July-August 1993, pp. 75-85.

    [Ginzburg se refere aqui a Os andarilhos do bem. Feitiaria e cultos agrrios nos sculos XVI e XVII.

    So Paulo: Companhia das Letras, 1990 (nota do tradutor)].

    C. Ginzburg, A. Prosperi, Giochi di pazienza, cit. pp. 124-25.

    5

    O ensaio a que Ginzburg se refere foi publicado com o ttulo Tolleranza e commercio. Auerbach

    Iegge Voltaire em Quaderni Storici, 109, a. XXXVII (I), aprile 2002, pp. 259-283 [nota do tradutor].

    6

    Voltaire, Mlanges, prefcio de E. Berl, organizado por J. van den Heuvel, Paris: Gallimard, 1961, pp.

    159-160. [Na traduo brasileira de Marilena de Souza Chaui (So Paulo: Abril Cultural, 1973): Des-

    cendo sobre este montculo de lama e no tendo maiores noes a respeito do homem, como este

    no tem a respeito dos habitantes de Marte ou de Jpiter, desembarco s margens do oceano, no pas

    da Cafraria, e comeo a procurar um homem. Vejo macacos, elefantes e negros. Todos parecem ter

    algum lampejo de uma razo imperfeita (p. 68) (nota do tradutor)].

    O comando fnt desapareceu da verso mais recente, Orion 2.

    C. Ginzburg, Kreseliesmeye Yerel Bir Yaklasin: Cografya, Kleler ve Incil, in Tarih Yaziminda Yeni

    Yaklasimlar. Krellesesme ve yerellesme, Istambul 2000, pp. 17-39. Agora tambm em ingls: Latitude,

    Slaves, and the Bible: An Experiment in Microhistory, Criticai Inquiryo, 31 (Spring 2005), pp. 665-83.

    9

    Cf. Saccheggi rituali: Premesse a una ricerca in corso, seminrio bolonhs coordenado por C.

    Ginzburg, in Quaderni Storici , 65 (1987), pp. 6 I 5-36, especialmente pp. 629-630. [Publicado em

    portugus na coletnea: A micro-histria e outros ensaios, Lisboa/Rio de Janeiro: Difel/Bertrand Brasil,

    1991 (nota do tradutor)].

    Sobre este ponto, remeto a Ginzburg, Prosperi, Giochi di pazienza, cit., pp. 178-183, mesmo se

    hoje em parte em reao ao maneirismo foucaultista eu seria forado a dar maior relevo s possveis

    conseqncias de um atrito entre pressupostos e dados empricos.

    '' C. Ginzburg, Occhiacci di legno, Milano: Feltrinelli, 1998, pp. 15-39. [Edio brasileira: Olhos de

    Madeira. So Paulo: Companhia das Letras, 2001 (nota do tradutor)].

    E.H. Gombrich, Art and Illusion, London 1960, pp. 154-69 (The Image). [Edio brasileira: Arte e iluso.

    Um estudo da psicologia da representao pictrica. So Paulo: Martins Fontes, 1995 (nota do tradutor)].

    E. Auerbach, Philology and Weltliteratur, in The Centennial Review , 13 (1969), pp. I -17 (Philolo-

    gie der Weltliteratur, in Weltliteratur. Festgabe fr Fritz Strich, org. por W. Henzen, W. Muschg, E.

    Staiger, Bern: Francke, 1952,pp. 39-50 .

    6 C. Ginzburg, No Island is an Island, New York: The Italian Academy, 2000, pp. 73-75.

    1 5

    AA. VV. Livre et socit dans la France du XVIII e sicle, Paris-'s Gravenhage: Mouton, 1965.

    1 6

    Ver, por exemplo, J. Fourcassl, Villele, Paris: A. Fayard, 1954, pp. 311-19.

    1 2

    S. Kracauer, History: The Last Things Before the Last, New York: Oxford University Press, 1969,

    p.47 (trad.it . Prima delle cose ultime, Casale Monferrato: Marietti, 1985, p. 38).

    1 6

    Ibid., p. 58 (trad. it. p. 47).