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  • DOI: 10.5102/rdi.v8i2.1548

    Direito penal (do autor) e imigrao irregular na Unio Europeia:

    do descaso ao excesso punitivo em um ambiente de mixofobia*

    Maiquel ngelo Dezordi Wermuth1

    Resumo

    O artigo analisa a instrumentalizao do Direito Penal pelos pases da Unio Europeia no que se refere ao combate imigrao irregular. A referida anlise parte da investigao dos motivos sociais e econmicos que esto por detrs da construo dos imigrantes ilegais, enquanto sujeitos de risco. A seguir, procura-se demons-trar que dito contexto conduz criao de um ambiente de mixofobia (medo de misturar-se) em relao aos imigrantes, exsurgindo, ento, a preocupao central do trabalho: verificar as influncias da mixofobia na forma como o Direito Penal tem sido utilizado para o controle dos fluxos migratrios pelos pases da Unio Europeia, o que permite afirmar que se assiste a um movimento de retrocesso rumo a um mo-delo de Direito Penal de autor, assentado em medidas punitivas de cunho altamente repressivista que violam as garantias penais e processuais desse pblico-alvo.

    Palavras-chave: Direito Penal. Imigrao ilegal. Unio Europeia.

    1 Introduo

    O estudo do processo de expanso do Direito Penal, no que diz respeito questo da imigrao irregular na Unio Europeia, assume, na contemporaneida-

    * Artigo recebido em: 08/04/2011. Artigo aceito em: 25/04/2011.1 Advogado. Mestre em Direito Pblico pela UNISINOS Universidade do Vale do Rio dos

    Sinos. Doutorando em Direito pela UNISINOS. Professor dos cursos de graduao em Direito da UNIJU Universidade Regional do Noroeste do Estado do Rio Grande do Sul e da UNISINOS. Autor da obra Medo e Direito Penal (Porto Alegre: Livraria do Advoga-do, 2011) e coautor da obra Sistema Penal e Poltica Criminal (Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2010). E-mail: [email protected]

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    de, especial relevncia. Isso porque o dito processo expansivo encontra-se assenta-do em bases que so caractersticas de um Direito Penal autoritrio e demasiada-mente repressivo, inadmissvel nesta quadra da histria, e que tem por consequn-cia graves violaes aos direitos e garantias fundamentais dos imigrantes.

    O medo e a insegurana que permeiam as relaes sociais na contempo-raneidade, em decorrncia das novas tecnologias e da incerteza que o futuro da sociedade globalizada representa, bem como diante do enxugamento at o limi-te mximo do modelo de Estado pautado no bem-estar social, conduzem a um ambiente de mixofobia, em que o medo de misturar-se com estrangeiros cada vez mais se acentua. Esse medo surge, em primeiro lugar, porque os estrangeiros so considerados parasitas do referido modelo de Estado, e, em segundo lugar, porque eles trazem consigo a possibilidade eventual de serem terroristas, o que decorre justamente do ambiente de guerra global que se instaurou no incio do sculo XXI, em especial depois dos atentados ocorridos em Nova Iorque, em se-tembro de 2001.

    Nesse sentido, o presente artigo pretende demonstrar que, no que se refere sua instrumentalizao para o combate imigrao irregular, o Direito Penal encontra-se na contemporaneidade, trilhando um caminho de retrocesso rumo a um modelo de Direito Punitivo de autor, por meio do qual no se assegura a pro-teo dos cidados e dos seus direitos fundamentais em face da atuao punitiva estatal, tampouco se busca a preveno prtica de crimes conforme preconizam os discursos clssicos de legitimao do jus puniendi do Estado , mas sim a domi-nao e a opresso exercidas precipuamente contra aquelas camadas sociais esco-lhidas como alvo por serem indesejveis em um determinado contexto social, em clara afronta ao princpio da dignidade humana.

    2 O direito penal em face do fenmeno da imigrao irregular na unio europeia

    No debate jurdico-penal contemporneo, a preocupao com o enfrenta-mento aos riscos representados pelas novas formas assumidas pela criminalidade

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    diante do fenmeno da globalizao assume papel de destaque. Os atentados terro-ristas ocorridos em grandes centros urbanos nos primeiros anos deste novo sculo a exemplo dos perpetrados em Nova Iorque em setembro de 2001 e em Madri em maro de 2004 deflagraram sinais de alerta nas polticas de segurana dos mais diversos pases, suscitando a discusso sobre a capacidade dos poderes pblicos em dar respostas efetivas a esses problemas.

    Ditos eventos, segundo Hardt e Negri,2 na verdade no criaram nem alte-raram a situao de guerra global na qual se vive na contemporaneidade, mas apenas obrigaram a reconhecer seu carter geral, ou seja, que no h como fugir ao estado de guerra e que no h um fim vista, uma vez que a guerra transfor-mou-se numa condio geral: em determinados momentos e lugares, pode haver cessao das hostilidades, mas a violncia letal est presente como potencialidade constante, sempre pronta a irromper em qualquer lugar. Quer dizer, os eventos referidos, em especial o primeiro, serviram para colocar em crise a iluso de segu-rana e invulnerabilidade do Primeiro Mundo.3

    Com isso, o estado de exceo paradoxalmente transforma-se na re-gra, fazendo com que se torne cada vez mais obscura a distino tradicional entre guerra e poltica, dado que a guerra vai-se transformando no princpio bsico de organizao da sociedade, reduzindo-se a poltica apenas a um de seus recursos ou manifestaes.4

    Pode-se, portanto, afirmar que a guerra transforma-se num regime de bio-poder, vale dizer, uma forma de governo destinada no apenas a controlar a po-pulao, mas a produzir e a reproduzir todos os aspectos da vida social.5 Diante disso, Prez Cepeda afirma que:

    2 HARDT, Michael; NEGRI, Antonio. Multido: guerra e democracia na era do Imprio. Trad. Clvis Marques. So Paulo: Record, 2005. p. 22-23.

    3 PREZ CEPEDA, Ana Isabel. La seguridad como fundamento de la deriva del derecho penal postmoderno. Madrid: Iustel, 2007.

    4 HARDT, Michael; NEGRI, Antonio. Multido: guerra e democracia na era do Imprio. Trad. Clvis Marques. So Paulo: Record, 2005. p. 33.

    5 HARDT, Michael; NEGRI, Antonio. Multido: guerra e democracia na era do Imprio. Trad. Clvis Marques. So Paulo: Record, 2005. p. 34.

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    [...] la guerra se convierte en un instrumento natural para preservar un orden igualmente natural que se identifica indisolublemente con los intereses neoliberales y con el instrumento decisrio de su ideario poltico: el dominio del mercado mundial o la ideologa del liberalismo, reduciendo la mundializacin a una dimensin, la econmica.6

    Isso fica evidente quando se analisa a alterao verificada no emprego cor-rente do conceito de guerra entre o fim do sculo XX e incio do sculo XXI. A retrica da guerra passa a ser usada para fazer referncia a atividades muito dife-rentes da guerra propriamente dita, ou seja, atividades que no envolvem violncia letal ou derramamento de sangue. Usam-se as metforas da guerra nos esportes, no comrcio, na poltica interna de um pas etc., para indicar competio, mas uma competio que no se d entre inimigos na acepo literal do termo, bem como para chamar a ateno para os riscos e conflitos envolvidos nessas atividades. Por outro lado, tambm se utiliza a retrica da guerra como manobra poltica para conseguir adeso de foras sociais em torno de um objetivo de unio tpico de um esforo de guerra, podendo-se citar como exemplo as guerras contra a pobreza.7

    No entanto, a partir do momento em que a retrica da guerra passou a ser utilizada tambm para mobilizao social contra as drogas no final do sculo XX e contra o terrorismo no incio do sculo XXI ela comeou a assumir um carter mais concreto. Ainda que, como no caso da guerra contra a pobreza, os inimigos no so apresentados como Estados-nao ou comunidades polticas especficas, ou sequer como indivduos, e sim como conceitos abstratos ou talvez um conjunto de prticas, essas guerras no so assim to metafricas, pois, como no caso da guer-ra tradicional, envolvem combates armados e fora letal. Com isso, nessas guerras cada vez menor a diferena entre o exterior e o interior, entre os conflitos externos e a segurana interna, razo pela qual se pode falar na passagem das invocaes metaf-ricas e retricas da guerra para guerras reais contra inimigos indefinidos e imateriais. 8

    6 PREZ CEPEDA, Ana Isabel. La seguridad como fundamento de la deriva del derecho penal postmoderno. Madrid: Iustel, 2007. p. 126.

    7 HARDT, Michael; NEGRI, Antonio. Multido: guerra e democracia na era do Imprio. Trad. Clvis Marques. So Paulo: Record, 2005.

    8 HARDT, Michael; NEGRI, Antonio. Multido: guerra e democracia na era do Imprio. Trad. Clvis Marques. So Paulo: Record, 2005. p. 35.

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    Como consequncia disso: Os limites da guerra tornam-se indeterminados, em termos espaciais e temporais. A guerra maneira antiga contra um Estado-nao tinha claras delimitaes espaciais, embora pudesse eventualmente disseminar-se por outros pases, e seu fim geralmente era marcado por uma rendio, uma vitria ou uma trgua entre os Estados em conflito. Em contraste, a guerra contra um conceito ou um conjunto de prticas, mais ou menos como uma guerra de religio, no conhece limites espaciais ou temporais definidos. Tais guerras podem estender-se em qualquer direo, por perodos indeterminados. E, com efeito, quando os dirigentes americanos anunciaram sua guerra ao terrorismo, deixaram claro que deveria estender-se por todo o mundo e por tempo indefinido, talvez dcadas ou mesmo geraes inteiras.9

    Em um contexto tal, o Direito Penal eleito como instrumento privilegiado de resposta ao conjunto de prticas que se convencionou chamar de terrorismo. E, no ambiente de guerra global, passou-se a preconizar a expanso do raio de interveno do Direito Punitivo, bem como a destacar a importncia de se relega-rem a segundo plano princpios e garantias que davam sustentao sua teorizao liberal, em nome de uma maior eficincia no combate.

    Isso tem conduzido, como adverte Prez Cepeda,10 em mbito global, a uma simbiose entre as noes e conceitos que outrora separavam o Direito Penal da guerra, o que fica claro a partir da anlise de uma das teorizaes mais polmicas da contemporaneidade no sentido de legitimao de um modelo tal de Direito Pe-nal. Trata-se da tese defendida por Gnther Jakobs,11 para o qual o combate efetivo da macrocriminalidade somente se viabiliza medida que haja uma diferenciao no trato daqueles que podem ser considerados ainda que cometam crimes even-

    9 HARDT, Michael; NEGRI, Antonio. Multido: guerra e democracia na era do Imprio. Trad. Clvis Marques. So Paulo: Record, 2005.

    10 PREZ CEPEDA, Ana Isabel. La seguridad como fundamento de la deriva del derecho penal postmoderno. Madrid: Iustel, 2007.

    11 JAKOBS, Gnther. Direito penal do cidado e direito penal do inimigo. In. CALLEGARI, Andr Lus; GIACOMOLLI, Nereu Jos (Org.). Direito penal do inimigo: noes e crticas. 4. ed. atual. e ampl. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2009. p. 19-70.

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    tualmente como cidados, e aqueles que s podem ser enfrentados enquanto inimigos do Estado, pois das suas regras se afastaram definitivamente, como o caso dos terroristas e dos indivduos pertencentes ao crime organizado.

    Essa diferenciao entre inimigos e cidados decorre da compreenso de Jakobs de que os primeiros, pelo fato de constiturem uma ameaa ao sistema so-cial, no podem ser tratados como pessoas, mas sim combatidos como no--pessoas. Para o autor, um indivduo que no admite ser obrigado a entrar em um estado de cidadania no pode participar dos benefcios do conceito de pessoa, 12 razo pela qual o papel do Direito Penal do inimigo consiste em eliminar o perigo representado pelos indivduos (no-pessoas) que se encontram fora da ordem so-cial estabelecida e no oferecem garantias de que voltaro a agir com fidelidade s normas institudas por esta ordem social. Como aduz Jakobs:

    Quien no admite someterse a una constitucin civil puede lcitamente ser obligado a la separacin, siendo aqu indiferente, a la hora de plantear la cuestin de la legitimacin de las medidas de salvaguardia, que se expulse al enemigo del pas o que sea arrojado, a falta de posibilidad de destierro, a la custodia de seguridad, o sometido a una pena de aseguramiento, u otras posibilidades. En todo caso, el derecho no debe renunciar a causa del sujeto que persiste en su conducta desviada a alcanzar realidad; dicho de outro modo, quien no presta la garantia cognitiva de que se comportar como persona en derecho, tampoco debe ser tratado como persona en derecho.13

    Com efeito, no debate contemporneo a respeito do Direito Penal, passou--se a estabelecer uma relao diametralmente oposta entre garantias e segurana, sustentando-se a tese de que o endurecimento das leis e medidas punitivas im-prescindvel para aumentar a segurana dos cidados, ainda que custa do sacri-

    12 JAKOBS, Gnther. Direito penal do cidado e direito penal do inimigo. In. CALLEGARI, Andr Lus; GIACOMOLLI, Nereu Jos (Org.). Direito penal do inimigo: noes e crticas. 4. ed. atual. e ampl. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2009. p. 35.

    13 JAKOBS, Gnther. La pena estatal: significado y finalidad. In. LYNETT, Eduardo Montealegre (Coord.). Derecho penal y sociedad: estudios sobre las obras de Gnther Jakobs y Claus Roxin, y sobre las estructuras modernas de la imputacin. Bogot: Universidad Externado de Colombia, 2007. Tomo I. p. 57.

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    fcio dos direitos humanos e das garantias penais e processuais dos acusados pela prtica de delitos que colocam em risco a populao como um todo. por isso que se afirma que os conceitos de risco e de expanso ocupam o centro do processo de modernizao do Direito Penal, expressando a ideia de que a ateno nova realidade delitiva nsita ao ambiente de guerra global contemporneo perpassa pela ampliao do seu campo de atuao.

    Isso fica evidenciado diante da constatao de que, na evoluo atual das le-gislaes penais do mundo todo e, de modo especial, dos pases europeus , verifi-ca-se o surgimento de mltiplas figuras tpicas novas e, no raro, o surgimento de se-tores inteiros de regulao que tm na preveno dos riscos sua razo de existncia.

    Um claro exemplo disso o debate que se tem instaurado na atualidade acerca da utilizao do Direito Penal no controle dos fluxos migratrios ou, mais especificamente, no combate e a nomenclatura utilizada denota tratar-se de uma guerra imigrao irregular.

    Como refere Martnez Escamilla, no se est exagerando cuando se afirma que los actuales movimientos migratorios estn llamados a producir en nuestra so-ciedad un impacto ms profundo y significativo que cualquier otra cuestin social.14 Como consequncia, destaca Llinares15 que, nos ltimos vinte anos nos pases cen-trais europeus, a imigrao deixou o lugar minsculo que ocupava no ranking de importncia social atribuda s distintas polticas pblicas para praticamente enca-bear essa lista hipottica.

    A esse propsito, cumpre destacar que, salvo raras excees, as polticas de imigrao dos pases integrantes de Unio Europeia esto sendo construdas de

    14 MARTNEZ ESCAMILLA, Margarita. Puede utilizarse el derecho penal en la lucha contra la inmigracin irregular? Un anlisis del tipo bsico del art. 318 bis CP em clave de legitimidad. Revista Electrnica de Ciencia Penal y Criminologia. 2008. Disponvel em: . Acesso em: 22 mar. 2010. p. 2.

    15 LLINARES, Fernando Mir. Poltica comunitaria de inmigracin y poltica criminal en Espaa. Proteccin o exclusin penal del inmigrante? Revista Electrnica de Ciencia Penal y Criminologia. 2008. Disponvel em: . Acesso em: 22 mar. 2010.

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    cima para baixo e tendem a funcionar como polticas repressivas e excludentes, pautadas em prticas que priorizam o controle de fronteiras em detrimento da integrao dos imigrantes. A imigrao vista como uma ameaa, razo pela qual sua gesto se d em nvel de segurana, com destaque para o controle das fron-teiras e para o reforo dos instrumentos jurdicos e meios materiais que possam potencializar a luta contra os imigrantes irregulares.

    No tratamento legal da matria, verifica-se uma sensvel mudana no senti-do do recrudescimento das medidas destinadas ao controle da imigrao irregular, utilizando-se, para tanto, cada vez mais, de medidas punitivas. Nesse sentido, a Di-retiva n 2008/115/CE16, denominada Diretiva de Retorno, aprovada pelo Parla-mento Europeu em 16 de dezembro de 2008 e publicada no Jornal Oficial da Unio Europeia em 24 de dezembro de 2008, estabelece medidas de maior controle ao flu-xo migratrio e concede aos Estados-Membros da Unio Europeia uma autonomia procedimental e grande poder discricionrio na aplicao das aes nela contidas.

    A Diretiva prev, dentre outras medidas, em seu art. 15, que imigrantes sem documentos sejam presos, por ordem emanada por autoridades administrativas ou judiciais, durante at dezoito meses. Assim, os Estados-Membros esto autorizados a prender os estrangeiros objetos de procedimentos de expulso por at seis meses quando se entender que isso necessrio para a execuo da expulso. O n 6 do referido dispositivo prev que os Estados-Membros podem, no entanto, prolongar dita privao de liberdade por at doze meses a mais quando a expulso tenha sido inviabilizada por conta de falta de cooperao do nacional de pas terceiro em causa ou em decorrncia de atrasos na obteno da documentao necessria junto de pases terceiros.

    16 DIRETIVA de Retorno. Texto integral. Disponvel em: . Acesso em 1 maio 2010.

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    Essa mudana no tratamento legal da questo da imigrao irregular pelos pases integrantes da Unio Europeia analisada por Martnez Escamilla,17 a par-tir do discurso proferido por Jos Luis Rodrguez Zapatero, durante a campanha eleitoral para as eleies gerais na Espanha de 9 de maro de 2008. Para a referida autora, dito discurso serve para sintetizar a poltica europeia de controle da imigra-o, em especial quando Zapatero afirma que:

    Nuestra poltica de inmigracin tiene un principio: slopueden venir y quedarse los que pueden trabajar de acuerdo con la ley. Es decir, lucha con firmeza contra la inmigracin ilegal. Y eso hay que hacerlo en tres frentes. Primero, que no salgan de sus pases de origen personas empujadas por la desesperacin.Segundo,queelcontroldefronterasimpidalaentrada de inmigrantes que no tengan un contrato de trabajo garantizado. Y, tercero, que se pueda devolver a los pases de origen a las personas que entran ilegalmente aqu.18

    Ou seja, a referida luta contra a imigrao irregular deve buscar alcanar trs objetivos principais:

    el primero impidiendo que salgan y que se nos aproximen. El segundo, impidiendo que entren, que traspasen nuestras fronteras. Para el caso de que consigan entrar em nuestro territorio, el tercer objetivo sera echarles de l, forzarles a salir.19

    O primeiro objetivo (evitar a sada dos imigrantes de seus pases de origem) buscado por meio do controle dos fluxos migratrios pela Europa, fora das suas fronteiras, encarregando a outros pases de trnsito a tarefa de conteno da imi-

    17 MARTNEZ ESCAMILLA, Margarita. Puede utilizarse el derecho penal en la lucha contra la inmigracin irregular? Un anlisis del tipo bsico del art. 318 bis CP em clave de legitimidad. Revista Electrnica de Ciencia Penal y Criminologia. 2008. Disponvel em: . Acesso em: 22 mar. 2010.

    18 Apud LARA, Rafael. Regulacin de flujos? 20 aos de muerte en las fronteras. In. ASOCIACION PRO DERECHOS HUMANOS DE ANDALUCIA. Derechos humanos en la frontera sur. 2008. p. 91.

    19 MARTNEZ ESCAMILLA, Margarita. Puede utilizarse el derecho penal en la lucha contra la inmigracin irregular? Un anlisis del tipo bsico del art. 318 bis CP em clave de legitimidad. Revista Electrnica de Ciencia Penal y Criminologia. n. 2008. Disponvel em: . Acesso em: 22 mar. 2010. p. 5

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    grao em troca de presses e ajudas econmicas. Martnez Escamilla20 destaca as consequncias nefastas desse processo:

    Este encargo a pases tan poco respetuosos con los derechos humanos como, por ejemplo, Libia, Marruecos o Mauritania, se viene traduciendo en la reiterada vulneracin de derechos humanos por parte de la polica de estos pases, que se concreta en palizas, desvalijamentos e incluso homicidios y todo ello con el silencio cmplice de Europa, que gasta ingentes cantidades de dinero en militarizar las fronteras de estos pases para evitar la inmigracin pero se desentiende de cuestiones de un humanitarismo bsico como facilitar el retorno de los inmigrantes interceptados quienes tienen que volver a sus lugares de origen enfrentando las mismas penalidades, peligros y abusos que sufrieron en su intento de llegar a Europa y ello ahora en um estado fsico muy deteriorado y con importantes traumas psicolgicos.

    O segundo objetivo (evitar a entrada dos imigrantes na Europa) traduz-se na tentativa de impermeabilizao das fronteiras europeias de forma a evitar o ingresso dos imigrantes. Com isso, incrementa-se a imigrao irregular e, conse-quentemente, os riscos assumidos pelas pessoas que pretendem transpor as fron-teiras, podendo-se falar em una relacin directa entre incremento de las dificultades y nmero de muertes en el intento, lo que hace especialmente patente en la frontera sur de Europa, donde la intensificacin del control supuso la bsqueda de travesas alternativas,mslargasymspeligrosas.21

    Por fim, no que se refere consecuo do terceiro objetivo (forar os imi-grantes a sarem do territrio europeu), frequente a utilizao, pelos pases inte-grantes da Unio Europeia, do Direito Penal. Nesse sentido, o Direito Punitivo se

    20 MARTNEZ ESCAMILLA, Margarita. Inmigracin, derechos humanos y poltica criminal: Hasta donde estamos dispuestos a llegar? Revista Para el Anlisis del Derecho. n. 3, p. 2-45, 2009. Disponvel em: . Acesso em: 22 mar. 2010. p. 6.

    21 MARTNEZ ESCAMILLA, Margarita. Inmigracin, derechos humanos y poltica criminal: Hasta donde estamos dispuestos a llegar? Revista Para el Anlisis del Derecho. n. 3, p. 2-45, 2009. Disponvel em: . Acesso em: 22 mar. 2010. p. 7.

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    expande e se rearma como resposta aos medos e inseguranas da populao diante da imigrao irregular.

    Com isso, o imigrante que consegue superar os obstculos e ingressar em territrio europeu depara-se com um Estado poderoso disposto a tudo para for-lo a retornar ao seu pas de origem. A esse respeito, algumas alteraes operadas nas legislaes dos pases centrais europeus merecem destaque.

    Entre elas, pode-se citar inicialmente, no caso da Itlia, o Decreto Legislati-vo n 286/1998, o chamado Texto nico Sobre a Imigrao22. Referido texto legal trata dos imigrantes ilegais no como sujeitos passivos dos delitos nele previstos ou seja, no so tratados como titulares do bem protegido , mas apenas como objetos materiais das condutas descritas ou como autores de delitos.

    Segundo Donini,23 h apenas dois nicos casos em que o estrangeiro parece ser, de modo direto ou indireto, objeto de tutela e, portanto, pessoa ofendida, de incriminaes autnomas do Texto nico: so as hipteses do art. 12, incisos 5 e 5-bis, que se referem aos delitos de favorecimento da permanncia ilegal ou da hospedagem de imigrantes clandestinos, os quais so castigados se foram cometi-dos com a finalidade de obter um injusto proveito da condio de ilegalidade do estrangeiro ou, respectivamente, se se apresentam a ttulo oneroso e com a finali-dade de obter um injusto proveito.

    Em razo do exposto, o j citado penalista italiano refere que o tratamento legal da questo da imigrao na Itlia representa una poltica de la exclusin, penalmente armada. Isso permite aproxim-la, no contexto do Direito Penal de combate, ao Direito Penal do inimigo, uma vez que:

    convierte a los adversarios en no personas destinadas a ser neutralizadas o excluidas sin culpabilidad, o en todo caso sin uma culpa correspondiente a la sancin que es aplicada,

    22 Texto integral Disponvel em: . Acesso em: 23 abr. 2010.

    23 DONINI, Massimo. El ciudadano extracomunitario: de objeto material a tipo de autor en el control penal de la inmigracin. Revista Penal, n. 24, p. 52-70, 2009.

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    transformando la respuesta penal en la ms tpica de un derecho penal de autor.24

    Tais constataes, refere Donini,25 permitem inferir a evidncia de que nos encontramos en los confines com la biopoltica, ou, em outras palavras,

    [...] con aquel mbito donde el poder soberano disciplina el estatus de quien no tiene derechos de ciudadania y se manifiesta al Estado por ser simplesmente un cuerpo, con su identidad fsica, sexual, tnica, geogrfica, etc., sobre el cual el poder dicta las leyes, comenzando as a asignar o negar derechos en razn de las corpreas o, en el tipo penal, de proveniencia geogrfica.

    Na linha do at aqui exposto, cumpre referir o surgimento dos chamados delitos de solidariedade. Alm da previso de ditos delitos na legislao italiana, o art. 318 bis do Cdigo Penal espanhol, aps redao conferida pela Lei Orgnica 11/2003, comina uma pena de quatro a oito anos de priso a quem directa o indi-rectamente, promueva, favorezca o facilite el trfico ilegal o la inmigracin clandes-tina de personas desde, en trnsito o con destino a Espaa, o con destino a otro pas de la Unin Europea.

    Em comentrio ao referido tipo legal, Martnez Escamilla26 refere que se trata de um claro exemplo de expanso do Direito Penal, uma vez que o legislador, dentre todas as condutas de favorecimento que poderia ter optado criminalizar pela sua gravidade como, por exemplo, a concorrncia de nimo de lucro, a atu-ao no marco de uma organizao delitiva etc. levou a cabo uma regulao oni-compreensiva, o mais ampla possvel, com a finalidade de criminalizar, nos termos do dispositivo sob anlise, qualquer comportamento relacionado com a imigrao irregular que de alguma forma, direta ou indiretamente a favorea.

    24 DONINI, Massimo. El ciudadano extracomunitario: de objeto material a tipo de autor en el control penal de la inmigracin. Revista Penal, n. 24, p. 52-70, 2009. p. 59-60.

    25 DONINI, Massimo. El ciudadano extracomunitario: de objeto material a tipo de autor en el control penal de la inmigracin. Revista Penal, n. 24, p. 52-70, 2009. p. 61.

    26 MARTNEZ ESCAMILLA, Margarita. La inmigracin como delito. Un anlisis poltico-criminal, dogmtico y constitucional del tipo bsico del art. 318 bis CP. Barcelona: Atelier, 2007.

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    Assim, o bem jurdico tutelado pelo tipo penal em comento no a digni-dade ou os direitos dos cidados estrangeiros, uma vez que o Direito Penal, nesse caso, no chamado a proteg-los, mas sim a defender a sociedade deles, ou seja, daqueles imigrantes que no se pode ou no se quer aceitar. Exsurge da a razo principal da existncia do tipo legal: ser um coadjuvante no controle da imigrao irregular.

    Alm disso, cumpre ressaltar que, ainda que os referidos dispositivos, que tratam dos chamados delitos de solidaridade, no castiguem com penas o imi-grante, mas sim as pessoas que com ele se solidarizam, ajudando-o a promover seu projeto migratrio, isso acarreta consequncias perniciosas para os imigrantes, do ponto de vista dos direitos humanos, sendo bastante ilustrativo o seguinte relato feito no informe Derechos Humanos en la Frontera Sur, relativo ao ano de 2007, elaborado pela Associao Pr-Direitos Humanos da Andaluzia:

    En mayo de 2007, veintisiete migrantes permanecieron durante ms de veinticuatro horas desesperadamente agarrados a jaulas de atn de 35 cm. de largo tiradas, en pleno Mediterrneo, por un remolcador malts cuyo capitn se negaba obstinadamente a detenerse para tomarlos a su bordo, o incluso a escoltarlos hasta la costa. Ya que ayudar a los nufragos conducindolos al puerto significa, para los salvadores, varios das de inmovilizacin de su barco, cuando no son perseguidos, adems, por haber facilitado la inmigracin ilegal, como pas en el mes de agosto de 2007 con siete pescadores tunecinos, mandados a prisin en Siciliadespusdehabersalvadodelahogamientoacuarentay cuatro personas. El delito de ayuda a la entrada y a la residencia ilegal de extranjeros, que permite llevar a juicio no solo a aquellos que se designa como pasadores de fronteras porque hacen pagar sus servicios, sino a cualquiera que lleva asistencia a un inmigrante desprovisto de papeles, est por otra parte generalizndose tanto en las legislaciones europeas como en los pases de trnsito. Es bajo este fundamento que, en Francia, militantes asociativos de la regin de Calais fueron inculpados porque procedan a la distribucin de comida o albergaban exiliados. En Marruecos, es porque la amenaza de actuaciones judiciales pesa como una espada de Damocles, que numerosos subsaharianos se ven privados de transporte pblico:portemoraserinculpadosenaplicacindelaley02-03 relativa a la entrada y a la estancia de los extranjeros por haber tomado a su bordo a extranjeros en situacin irregular,

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    no es raro que los conductores de autocar se nieguen a subir a Africanos.27

    Para alm dos tipos penais voltados expressamente questo da imigra-o, existem tambm aqueles delitos que, ainda que no faam referncia direta aos imigrantes e/ou s pessoas que so com eles solidrias, buscam, reflexamente, atingi-los. Um exemplo tpico, no Direito Penal espanhol a criminalizao da atividade dos manteros ou topmanta como so chamados, na Espanha, os vendedores ambulantes de reprodues ilcitas de CDs, DVDs ou produtos simi-lares (que expem suas mercadorias sobre mantas nas ruas).

    Com efeito, os imigrantes ilegais, como refere Matnez Escamilla,28 so o exemplo mais evidente de excluso do indivduo operada pelas normas: sin pa-peles,sinderechos,sinisiquieraposibilidaddeganarseunsustento. Restam poucas opes a essas pessoas, uma vez, que so proibidas de trabalhar e que proibido dar-lhes emprego. A atividade de mantero, nesse caso, aparece como uma das poucas alternativas que lhes restam.

    No entanto, o art. 270 do Cdigo Penal espanhol tipifica como crime sujeito a pena de priso de seis meses a dois anos e multa de doze a vinte e quatro meses a atividade de quem, com nimo lucrativo e em prejuzo de terceiro, reproduza, plagie, distribua ou comunique publicamente, no todo ou em parte, uma obra li-terria, artstica, ou sua transformao, interpretao ou execuo artstica fixada em qualquer tipo de suporte ou comunicada atravs de qualquer meio, sem a au-torizao dos titulares dos correspondentes direitos de propriedade intelectual ou seus cessionrios. Ou seja, el Cdigo penal, en cuanto castiga la distribucin con nimo de lucro de una obra artstica sin el consentimiento del titular o cesionario de

    27 Apud MARTNEZ ESCAMILLA, Margarita. Inmigracin, derechos humanos y poltica criminal: Hasta donde estamos dispuestos a llegar? Revista Para el Anlisis del Derecho. n. 3, p. 2-45, 2009. Disponvel em: . Acesso em: 22 mar. 2010. p. 10.

    28 MARTNEZ ESCAMILLA, Margarita. Inmigracin, derechos humanos y poltica criminal: Hasta donde estamos dispuestos a llegar? Revista Para el Anlisis del Derecho. n. 3, p. 2-45, 2009. Disponvel em: . Acesso em: 22 mar. 2010. p. 14.

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    los derechos, est tipificando y castigando con penas de multa y prisin de seis meses adosanslaconductadelosmanteros,fazendo,assim,comqueoimigranteveja-se

    preso nas redes do Direito punitivo en primer lugar por inmigrante y por irregular, perotambinporpobreyporexcluidosocial.29

    Do at aqui exposto, pode-se afirmar, de acordo com Llinares,30 que a re-lao entre Direito Penal e imigrao passou de uma relao de ignorncia para uma relao de excesso. Diante desse quadro, perquirir o porqu da atual con-centrao de foras do Direito Penal no combate imigrao irregular, promo-vendo um retrocesso rumo a um modelo de Direito Penal de autor, no bojo do qual a pessoa punida pelo que e no em virtude daquilo que fez, assume especial relevncia. com o que se preocupa o tpico a seguir.

    3 O imigrante ilegal: parasita ou terrorista

    Como salienta Bauman,31 a era moderna pode ser considerada a era das grandes migraes, na qual massas populacionais at agora no calculadas, e tal-vez incalculveis, moveram-se pelo planeta, deixando seus pases nativos, que no ofereciam condies de sobrevivncia, por terras estrangeiras que lhes prometiam melhor sorte.

    A lgica das trajetrias perseguidas pelos imigrantes dependia, ento, das presses dos pontos quentes da modernizao, mas possvel afirmar que, com certa regularidade, os imigrantes vagaram das partes mais desenvolvidas

    29 MARTNEZ ESCAMILLA, Margarita. Inmigracin, derechos humanos y poltica criminal: Hasta donde estamos dispuestos a llegar? Revista Para el Anlisis del Derecho. n. 3, p. 2-45, 2009. Disponvel em: . Acesso em: 22 mar. 2010. p. 14-15.

    30 LLINARES, Fernando Mir. Poltica comunitaria de inmigracin y poltica criminal en Espaa. Proteccin o exclusin penal del inmigrante? Revista Electrnica de Ciencia Penal y Criminologia. 2008. Disponvel em: . Acesso em: 22 mar. 2010..

    31 BAUMAN, Zygmunt. Vidas desperdiadas. Rio de Janeiro: J. Zahar, 2005. p. 50.

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    (mais intensamente modernizantes) do planeta para as subdesenvolvidas (ainda no atiradas para fora da balana socioeconmica sob o impacto da modernizao). 32

    Isso significa dizer que essas pessoas que saram das partes mais desen-volvidas para as partes subdesenvolvidas do globo o fizeram em funo da sua incapacidade de obteno ou manuteno de um emprego compensador ou mes-mo da impossibilidade de herdar um determinado status social em seus pases de origem. Considerando, diante desse quadro, que os pases nos quais esse ex-cedente populacional disfuncional se acumulava eram os pases que detinham superioridade tecnolgica e militar em relao queles que ainda no estavam sofrendo os processos modernizantes, a estratgia buscada foi justamente trans-formar as reas subdesenvolvidas em reas vazias notadamente por meio do extermnio massivo dos povos autctones que pudessem acondicionar esses excedentes.

    Em outras palavras, o processo de extermnio massivo de aborgenes tinha a finalidade de preparar os lugares por eles habitados para desempenhar o papel de depsitos do refugo humano que o progresso econmico produzia na Europa, em quantidades crescentes.33

    O fato que, hoje, com a vitria da modernidade, quando o mundo cele-bra o triunfo do moderno estilo de vida, baseado no livre mercado, economia e consumo livres e McDonalds para todos, no se produz gente suprflua apenas na Europa, para depois descarreg-la no resto do mundo, mas a superfluidade hu-mana produzida em toda parte, visto que o modelo produtivo moderno se afirma em praticamente todos os pases.34

    Com isso, verifica-se um movimento de retorno, ou seja, os descendentes das pessoas que outrora foram despejadas nos depsitos de refugo humano cons-titudos pelos pases subdesenvolvidos hoje deixam suas cidades superpovoadas na

    32 BAUMAN, Zygmunt. Vidas desperdiadas. Rio de Janeiro: J. Zahar, 2005.33 BAUMAN, Zygmunt. Vidas desperdiadas. Rio de Janeiro: J. Zahar, 2005.34 BAUMAN, Zygmunt. Confiana e medo na cidade. Rio de Janeiro: J. Zahar, 2009. p. 81.

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    direo oposta, buscando nas grandes cidades dos pases europeus a mesma coisa que seus progenitores buscavam ao emigrarem.

    E esses pases de destino deparam-se, ento, na contemporaneidade, com o dilema de encontrar um jeito de alojar os imigrantes, administrando seus in-teresses com os interesses das suas superpopulaes, afinal, esto repletos de gen-te suprflua tambm, e j no podem mais mand-las para outros lugares, pelo simples fato de que o planeta est cheio, no h mais espaos vazios e, portanto, nossos suprfluos ainda esto entre ns.35

    Nesse contexto, a caracterstica das migraes contemporneas que mais inquieta e suscita o interesse por esta pesquisa reside en la respuesta que los actores institucionales estn dando a este fenmeno, respuesta que se sita en las antpodas delaperturismodelosmomentoshistricosapuntados.36

    Com efeito, os imigrantes contemporneos transformam-se, invariavel-mente, em uma ameaa, sendo construdos como sujeitos de risco. Isso decorre do fato de que a condio de estrangeiro, por si s, traduz a ideia de uma pessoa que est ocupando ou usurpando um posto ou lugar que no lhe corresponde, ra-zo pela qual, na contemporaneidade, os imigrantes so vistos como parasitas de um WelfareStatecada vez mais caula no cumprimento de seu desiderato.

    Isso conduz a uma situao paradoxal: quanto mais persistem num de-terminado lugar as protees do bero ao tmulo, hoje ameaadas em toda parte pela sensao compartilhada de um perigo iminente, mais parecem atraentes as vlvulas de escape xenfobas, o que decorre do fato de que os poucos pases que relutam em abandonar as protees institucionais transmitidas pela modernidade slida [...] veem-se como fortalezas assediadas por foras inimigas, considerando os resqucios de Estado social um privilgio que preciso defender com unhas e

    35 BAUMAN, Zygmunt. Confiana e medo na cidade. Rio de Janeiro: J. Zahar, 2009. p. 82.36 MARTNEZ ESCAMILLA, Margarita. Puede utilizarse el derecho penal en la lucha

    contra la inmigracin irregular? Un anlisis del tipo bsico del art. 318 bis CP em clave de legitimidad. Revista Electrnica de Ciencia Penal y Criminologia. 2008. Disponvel em: . Acesso em: 22 mar. 2010. p. 2.

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    dentes de invasores que pretendem saque-los. Em funo disso, a xenofobia a suspeita crescente de um compl estrangeiro e o sentimento de rancor pelos estra-nhos pode ser entendida como um reflexo perverso da tentativa desesperada de salvar o que resta da solidariedade local. 37

    E, uma vez que o Estado, embora no tendo ainda eliminado, mas reduzido grandemente a sua interferncia na mitigao da insegurana coletiva produzida pelo mercado, volta-se cada vez mais para outras variedades, no econmicas, de vulnerabilidade e incerteza em que possa basear sua legitimidade, a questo da se-gurana pessoal ameaas e perigos aos corpos humanos, propriedades e hbitos provenientes de atividades criminosas, a conduta anti-social da subclasse e, mais recentemente, o terrorismo global assume o centro das preocupaes.38

    Parte-se, ento, para uma utilizao poltica do capital medo, aproveitan-do-se do fato de que o processo da globalizao e a consequente sociedade de risco que se configura na contemporaneidade propiciam o surgimento de um sentimen-to generalizado de insegurana diante da imprevisibilidade das relaes sociais. Resultado dessas incertezas que nunca se teve tanto medo e nunca o medo assu-miu uma dimenso to ubqua. por isso que, no ambiente lquido-moderno, a vida transformou-se em uma constante luta contra o medo, companhia indissoci-vel dos seres humanos.

    Neste contexto, considerando-se que a vulnerabilidade e a incerteza hu-mana so as principais razes de ser de todo poder poltico, bem como que todo poder poltico deve cuidar da renovao regular de suas credenciais,39 verifica-se que o combate imigrao irregular tornou-se um forte lema de campanha, visto que o imigrante representa o esteretipo ideal da fonte inesgotvel de riscos, em especial no j referido ambiente de guerra global contemporneo.

    37 BAUMAN, Zygmunt. Confiana e medo na cidade. Rio de Janeiro: J. Zahar, 2009. p. 20-21.

    38 BAUMAN, Zygmunt. Vidas desperdiadas. Rio de Janeiro: J. Zahar, 2005. p. 68.39 BAUMAN, Zygmunt. Vidas desperdiadas. Rio de Janeiro: J. Zahar, 2005. p. 66.

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    Como destaca Llinares,40 o fato de vivermos em uma sociedade de risco na qual a sensao de insegurana cada vez maior no influi nos caracteres do fe-nmeno migratrio, mas faz com que as fontes dessa insegurana sejam centradas em determinados focos, em mbitos concretos ou em grupos que, independente-mente do fato de serem precursores de mais delinquncia ou no, so temidos pela sociedade, sendo que na atualidade, tanto a nivel popular, como en los mdios de comunicacin, es frecuente considerar que el crecimiento de la delincuencia es um fenmenodebidoengranpartealaumentodelainmigracin.

    Objeta-se, no entanto, o porqu da criao da atmosfera de alarme em tor-no da questo da imigrao irregular e da utilizao do Direito Penal como ferra-menta imprescindvel para o seu combate. Nesse sentido, duas razes principais, j referidas podem ser desenvolvidas.

    Em primeiro lugar, porque o inimigo representando pelo terrorista, por meio de equiparaes conceituais equivocadas, faz com que recaia sobre todo e qualquer imigrante uma fundada suspeita de uma potencialidade terrorista. Em segundo lugar, porque o imigrante tambm visto como um parasita de um modelo de Estado qual seja, o de bem-estar social que cada vez mais se esvai.

    No que diz respeito ao primeiro motivo, cumpre salientar a influncia do discurso jurdico-penal gestado no bojo do que se tem denominado paradigma da segurana cidad, que parte do pressuposto de que a criminalidade dos so-cialmente excludos constitui a dimenso no tecnolgica da sociedade de risco, a justificar, por exemplo, a antecipao da tutela penal tanto pela necessidade de responder com estruturas de perigo s novas formas de criminalidade como pela urgncia de atuar contra a desintegrao social e a delinquncia de rua originada pelos socialmente marginalizados.41

    40 LLINARES, Fernando Mir. Poltica comunitaria de inmigracin y poltica criminal en Espaa. Proteccin o exclusin penal del inmigrante? Revista Electrnica de Ciencia Penal y Criminologia. 2008. Disponvel em: . Acesso em: 22 mar. 2010. p. 7.

    41 DEZ RIPOLLS, Jos Luis. La poltica criminal en la encrucijada. Buenos Aires: B de F, 2007.

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    Quer dizer, paralelamente s preocupaes poltico-criminais com a me-gacriminalidade caracterstica da sociedade de risco que so objeto de anlise no bojo da teorizao do Direito Penal do Inimigo, o fato de o fenmeno expansivo do Direito Penal nesse setor coincidir com o processo de desmantelamento do Estado Social redunda no ressurgimento, sob influncia dos movimentos de Lei e Ordem, do repressivismo e do punitivismo como formas por excelncia de se combater a criminalidade dita tradicional.

    E, como destaca Zaffaroni,42 embora os novos inimigos da sociedade de risco sejam perigosos, no se pode, por meio do Direito Penal para eles espe-cialmente criado, legitimar a represso sobre os pequenos delinquentes comuns, quais sejam, os dissidentes internos ou os indesejveis em uma determinada ordem social. Com isso, pretende-se justificar um controle maior sobre toda a po-pulao tendo por escopo prevenir a infiltrao dos terroristas, reforando-se, assim, o controle exercido principalmente sobre a clientela tradicional do sistema punitivo.

    O modelo da segurana cidad vampiriza na expresso de Dez Ripolls o debate penal surgido no bojo da sociedade de risco. Para o referido autor,

    [...] las vas de acceso del discurso de la seguridad ciudadana al discurso de la sociedad del riesgo vienen constituidas en su mayor parte por una serie de equiparaciones concepctuales que, basndose en la equivocidad de ciertos trminos, tratan como realidades idnticas unas que presentan caracteres muy distintos e incluso contrapuestos. En resumidas cuentas, se da lugar a que el discurso de ley y orden parasite conceptos elaborados en otro contexto.43

    Ou seja, se establece una ecuacin de igualdad entre el sentimiento de inse-guridad ante los nuevos riesgos masivos que desencadena el progreso tecnolgico, y

    42 ZAFFARONI, Eugenio Ral. O inimigo no direito penal. Trad. Srgio Lamaro. Rio de Janeiro: Revan, 2007.

    43 DEZ RIPOLLS, Jos Luis. La poltica criminal en la encrucijada. Buenos Aires: B de F, 2007. p. 149.

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    el sentimiento de inseguridad callejera ligado al miedo a sufrir un delito en el desem-peo de las actividades cotidianas.44

    Assim, a par do Direito Penal criado para a preveno dos novos riscos da sociedade contempornea, desenvolve-se um crescente interesse por aspectos microssecuritrios como as inseguranas relacionadas pequena delinquncia, que passa a fazer parte do catlogo dos medos dos cidados, em funo da sua pro-ximidade para com eles. E considerando-se que o risco e o medo do delito, uma vez surgidos, tendem a proliferar por meio, principalmente, da influncia da mdia de massa , de modo retroalimentativo, se generan nuevas demandas securitarias, el anhelo de un mundo normativamente acolchado, donde los productos normativos se construyen en la lgica de la seguridad, aun a costa de otros valores polticos fun-damentales,comolalibertad.45

    Por outro lado, em relao ao parasitismo social, deve-se atentar para o fato de que o modelo de gesto da imigrao nos pases centrais europeus inspi-rado fundamentalmente e de forma reconhecida em interesses econmicos. Como salienta Martnez Escamilla,46

    Se admite a quien consideramos que puede ser til paranuestra economa, una economa que h pasado de prospera a maltrecha. La inmigracin que desde esta perspectiva econmica no podemos o no queremos asumir, se concibe como una amenaza, como una por definicin indeseada invasin. A partir de esa percepcin, la poltica migratoria se concentra en el rechazo, ponindose al acento en control de fronteras y en la persecucin y hostigamiento de quienes consiguen esquivarlas, en el refuerzo de los instrumentos jurdicos y de los medios materiales para afrontar lo que se h denominado lucha contra la inmigracin irregular.

    44 DEZ RIPOLLS, Jos Luis. La poltica criminal en la encrucijada. Buenos Aires: B de F, 2007. p. 149-150.

    45 PREZ CEPEDA, Ana Isabel. La seguridad como fundamento de la deriva del derecho penal postmoderno. Madrid: Iustel, 2007. p. 49-50.

    46 MARTNEZ ESCAMILLA, Margarita. Inmigracin, derechos humanos y poltica criminal: Hasta donde estamos dispuestos a llegar? Revista Para el Anlisis del Derecho. n. 3, p. 2-45, 2009. Disponvel em: . Acesso em: 22 mar. 2010. p. 5.

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    Isso significa dizer que as mudanas econmicas drsticas pelas quais tm passado as economias europeias tornam boa parte dos imigrantes inteis, visto que muchos han pasado a engrosar las listas del paro, dejan de cotizar y ya no parecen cuadrar las cuentas que antes nos permitan afirmar que la inmigracin aporta mu-chomsentrminoseconmicosqueelgastopblicoquepudieragenerar.47

    Nesse rumo, Barge se refere existncia de duas espcies de imigrao, quais sejam, a boa e a m:

    [...] existe una buena inmigracin, los pases de la Unin deben poder beneficiarse de ella, esta inmigracin elegida debe responder a las necesidades econmicas de Europa y no tiene vocacin a ser permanente; existe una mala inmigracin, esta inmigracin sufrida, no corresponde a las necesidades de la Unin Europea, es portadora de inseguridade y criminalidad, debe ser combatida. De ah la obsesin de limitar la inmigracin en direccin de Europa, al tiempo de querer atraer una inmigracin de la que se tendra necesidad.48

    Essa boa imigrao lembra Beck49 deve-se ao fato de que os imigrantes sujeitam-se realizao de trabalhos que no geral ningum, nos pases de destino, quer assumir. Alm disso, a boa imigrao tambm abrange os sem papis, visto que, em relao a eles, a explorao laboral ainda maior em virtude do fato de que tm de trabalhar s escondidas, ganhando, em troca, uma pequena quantida-de de dinheiro. Assim, esses indivduos acabam se tornando objeto de chantagem e explorao e isso que, na tica do referido autor, encontra-se por detrs dos sem papis: ao passo que no possuem nenhum tipo de direito, suas atividades e prestaes so funcionalmente indispensveis, no s para a sobrevivncia deles prprios e de suas famlias que vivem no outro lado da fronteira, mas tambm

    47 MARTNEZ ESCAMILLA, Margarita. Inmigracin, derechos humanos y poltica criminal: Hasta donde estamos dispuestos a llegar? Revista Para el Anlisis del Derecho. n. 3, p. 2-45, 2009. Disponvel em: . Acesso em: 22 mar. 2010. p. 8.

    48 BARGE, Pierre. Las polticas de inmigracin y asilo de la Unin Europea: polticas sin salida. In: ASOCIACION PRO DERECHOS HUMANOS DE ANDALUCIA. Derechos humanos en la frontera sur. 2008. p. 7.

    49 BECK, Ulrich. Qu hay detrs de los sin papeles? In. El Pas. 4 jan. 2010.

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    ante todo, para la supervivencia de las sociedades del bienestar occidentales y de los pasesemergentes.Diantedessaconstatao,Beckreferequenosengaamosano-sotrosmismosconlacategoradeilegales:nopodemosolvidarquelacriminalizacin

    de estas personas oculta el hecho de que no podemos renunciar a sus prestacionaes funcionales.

    justamente em razo disso que Brandariz Garca50 destaca o fato de que o regime sancionador previsto para os imigrantes em especial no que se refere realidade espanhola resulta de uma simbiose entre as racionalidades de excluso seletiva e de incluso subordinada. Excluso seletiva porque as regras relativas expulso dos imigrantes irregulares nem sempre so efetivamente levadas a cabo, em razo da falta de vontade poltica de que se leve toda possibilidade de expulso s ltimas consequncias, o que generara el riesgo de bloquear, o de reducir drs-ticamente, unos flujos migratorios que, con independencia de su irregularidad, cum-plen funciones de extraordinaria relevancia, incluso imprescindibles, para el sistema socialyeconmicoespaol.

    Diante desse quadro, que entra em cena a incluso subordinada, ou seja, uma racionalidade voltada facilitao do empleo masivo de fuerza de trabajo migrante en condiciones de suma flexibilidad y explotacin, de acuerdo con las necesidades de un sistema productivo crecientemente postfordista. Isso significa dizer que a los migrantes se aplica la vertiente ms severa del nuevo rgimen de workfare, en el que se afirman segmentaciones del mercado de trabajo en clave tnica, en la medida en que las actividades de valor aadido alto o medio tienden a ser reservadas para la fuerza de trabajo autctona.51

    50 BRANDARIZ GARCA, J. A.; PUENTE ABA, L. M. (Org.). Funcionalidad de la construccin de los migrantes como sujetos de riesgo en el sistema penal espaol. Derecho penal del enemigo, gestin de la exclusin e inclusin subordinada. Jura Gentium. Revista de filosofa del derecho internacional y de la poltica global, 2009. Disponvel em: < http://www.juragentium.unifi.it/es/surveys/migrant/brandari.htm>. Acesso em: 25 jul. 2010.

    51 BRANDARIZ GARCA, J. A.; PUENTE ABA, L. M. (Org.). Funcionalidad de la construccin de los migrantes como sujetos de riesgo en el sistema penal espaol. Derecho penal del enemigo, gestin de la exclusin e inclusin subordinada. Jura Gentium. Revista de filosofa del derecho internacional y de la poltica global, 2009. Disponvel em: < http://www.juragentium.unifi.it/es/surveys/migrant/brandari.htm>. Acesso em: 25 jul. 2010.

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    A partir da anlise do que foi at o momento exposto, permite-se inferir que a utilizao do Direito Penal no combate imigrao irregular na Unio Europeia deve-se ao fato de que:

    O novo medo dos terroristas foi misturado e cimentado com o dio aos parasitas, sentimento bem entrincheirado, mas que precisa de constante alimento, matando dois coelhos com uma s cajadada e dotando a atual cruzada contra os parasitas da previdncia de uma nova e invencvel arma de intimidao de massa. Enquanto a incerteza econmica no mais preocupao de um Estado que preferiria deixar para seus sditos individuais a busca individual de remdios individuais para a insegurana existencial individual, o novo tipo de temor coletivo oficialmente inspirado e estimulado foi colocado a servio da frmula poltica. As preocupaes dos cidados com seu bem-estar foram removidas do traioeiro terreno da prcarit promovida pelo mercado, no qual os governos dos Estados no tm capacidade nem vontade de pisar, e levadas para uma rea mais segura e muito mais telefotognica, em que o poder aterrorizante e a resoluo frrea dos governantes podem ser de fato apresentados admirao pblica. 52

    Mas alm desses fatores, cumpre salientar, por fim, que os imigrantes, a par da potencialidade terrorista e do parasitismo social, exalam o odor opressivo do depsito de lixo que, em seus muitos disfarces, assombra as noites das poten-ciais vtimas da vulnerabilidade crescente, ou seja, encarnam de modo visvel, tangvel, em carne e osso o pressentimento inarticulado, mas pungente e doloro-so da condio de descartvel daqueles que os perseguem e odeiam.53

    A soma desses fatores permite falar, ento, no surgimento de um ambien-te social pautado pela mixofobia, ou seja, pelo medo de misturar-se, ou, ainda, como um impulso em direo a ilhas de identidade e de semelhana espalhadas no grande mar da variedade e da diferena. 54 Na tica de Bauman, a mixofobia no passa de uma:

    [...] difusa e muito previsvel reao impressionante e exasperadora variedade de tipos humanos e de estilos de vida

    52 BAUMAN, Zygmunt. Vidas desperdiadas. Rio de Janeiro: J. Zahar, 2005. p. 71.53 BAUMAN, Zygmunt. Vidas desperdiadas. Rio de Janeiro: J. Zahar, 2005. p. 73.54 BAUMAN, Zygmunt. Confiana e medo na cidade. Rio de Janeiro: J. Zahar, 2009. p. 44.

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    que se podem encontrar nas ruas das cidades contemporneas e mesmo na mais comum (ou seja, no protegida por espaos vedados) das zonas residenciais. Uma vez que a multiforme e plurilingstica cultura do ambiente urbano na era da globalizao se impe e, ao que tudo indica, tende a aumentar , as tenses derivadas da estrangeiridade incmoda e desorientadora desse cenrio acabaro, provavelmente, por favorecer as tendncias segregacionistas.55

    E em razo dos trs motivos apresentados e do correlato ambiente de mi-xofobia que gera o que Bauman se refere : se no houvesse imigrantes batendo s portas, eles teriam de ser inventados, uma vez que eles fornecem aos governos um outro desviante ideal, um alvo muito bem-vindo para temas de campanha selecionados com esmero. 56

    Nesse ponto, deve-se ressaltar que a formao da opinio pblica acerca dos medos, da insegurana e da necessidade de afast-los por meio da interveno do sistema punitivo, principalmente sob influncia dos meios de comunicao de massa, desgua na presso popular sobre os poderes pblicos para que as reformas penais necessrias para fazer frente a cada vez mais aterradora criminalidade se-jam efetivamente levadas a cabo.

    Com isso, os poderes pblicos, conocedores de los significativos efectos so-cializadores y, sobre todo, sociopolticos que la admisin de tales demandas conlleva, noslosemuestranproclivesaatenderlassinoqueconfrecuencialasfomentan.57 O Estado, assim, ao invs de introduzir elementos de racionalidade nas demandas por mais segurana, alimenta-as em termos populistas58, dado que la legitimidad del poder pblico exige que la promesa de la seguridad crezca con los riesgos, y sea ratificadaantelaopininpblica.59

    55 BAUMAN, Zygmunt. Confiana e medo na cidade. Rio de Janeiro: J. Zahar, 2009. p. 43.56 BAUMAN, Zygmunt. Vidas desperdiadas. Rio de Janeiro: J. Zahar, 2005. p. 73.57 DEZ RIPOLLS, Jos Luis. El derecho penal simblico y los efectos de la pena. Boletn

    Mexicano de Derecho Comparado. Disponvel em: . Acesso em: 23 abr. 2008. p. 66.

    58 SILVA SNCHEZ, Jess-Maria. La expansin del derecho penal: aspectos de la poltica criminal en las sociedades postindustriales. Madrid: Cuadernos Civitas, 1999.

    59 PREZ CEPEDA, Ana Isabel. La seguridad como fundamento de la deriva del derecho penal postmoderno. Madrid: Iustel, 2007. p. 51.

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    Por conseguinte, os polticos presos na essncia competitiva de sua ativi-dade deixam de buscar o melhor para preocupar-se apenas com o que pode ser transmitido de melhor e aumentar sua clientela eleitoral.60 Isso porque o poltico que pretender confrontar o discurso majoritrio acerca da criminalidade logo desqualificado e marginalizado dentro de seu prprio partido, razo pela qual aca-ba por assumi-lo, seja por clculo eleitoreiro, seja por oportunismo ou at mesmo por medo.

    Assim, as medidas buscadas pelos atores polticos devem ser penalogica-mente crveis e ao mesmo tempo manter a credibilidade poltica e o apoio popu-lar. Nesse sentido, as respostas ao crime que possam ser tidas como veementes, inteligentes e efetivas ou expressivas so as mais atraentes, ao passo que as que possam ser interpretadas como retrao, reconhecimento do fracasso ou dissocia-das do sentimento pblico so consideradas inconvenientes. Ou seja, o problema mais de retrica poltica e aparncia do que de efetividade prtica.61

    Nesse contexto, o Direito Penal assume, como ressalta Albrecht62, um ca-rter de arma poltica, apresentando-se como um instrumento de comunicao, uma vez que ele permite transladar os problemas e conflitos sociais a um tipo de anlise especfica que se apoia na funo analtica e categorial caracterstica do discurso penal, dado que o cumprimento dessa funo no requer mais que a de-monstrao exemplar da atividade da prtica legislativa e da justia penal.

    Por esse vis, Brandariz Garca63 destaca que las crescientes demandas p-blicas de seguridad se convierten en un valor pblico que puede ser fcilmente

    60 ZAFFARONI, Eugenio Ral. O inimigo no direito penal. Trad. Srgio Lamaro. Rio de Janeiro: Revan, 2007. p. 77.

    61 GARLAND, David. La cultura del control: crimen y orden social en la sociedad contempornea. Trad. Mximo Sozzo. Barcelona: Gedisa, 2005.

    62 ALBRECHT, Peter-Alexis. El derecho penal en la intervencon de la poltica populista. La insostenible situacin del derecho penal. Granada: Comares, 2000. p. 472.

    63 BRANDARIZ GARCA, Jos ngel. Itinerarios de evolucin del sistema penal como mecanismo de control social em las sociedades contemporneas. In. CABANA, P. F.; PUENTE ABA, L. M. (org.). Nuevos retos del derecho penal en la era de la globalizacin. Valencia: Tirant lo blanch, 2004. p. 37-38.

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    negociado mediante el siguiente intercambio: consenso electoral a cambio de sim-blicas representaciones de seguridad.

    Chega-se, assim, ao: [...] reino del proceder legislativo declarativo-formal, cuya pretensin fundamental es plasmar en la norma legal del modo ms fiel y contundente posible el estado actual de las opiniones colectivas sobre una determinada realidad social conflictiva, y que est ayuno de cualquier consideracin sobre la medida en que la norma en cuestin puede colaborar a la solucin del problema. 64

    Entre as razes principais da utilizao poltica do Direito Penal encontra--se o fato de que, por meio dele, o legislador adquire uma boa imagem em face da sociedade, na medida em que, a partir de decises poltico-criminais irracio-nais atende s demandas sociais por segurana, obtendo, assim, reflexamente, um grande nmero de votos. No obstante isso, a utilizao do Direito Penal simblico representa a alternativa mais barata na hora de articular solues para problemas sociais, visto que as medidas e programas sociais sempre so mais custosos do ponto de vista financeiro.65 Com isso, el Estado reencuentra o, ms bien, persigue la legitimacin perdida como consecuencia de su retirada de los territorios de lo eco-nmicoydelosocial.66

    Vislumbra-se, assim, o surgimento de certo populismo punitivo que, na lio de Callegari e Motta, pode ser definido como aquela situao em que

    64 DEZ RIPOLLS, Jos Luis. El derecho penal simblico y los efectos de la pena. Boletn Mexicano de Derecho Comparado. Disponvel em: . Acesso em: 23 abr.2008. p. 66.

    65 PREZ CEPEDA, Ana Isabel. La seguridad como fundamento de la deriva del derecho penal postmoderno. Madrid: Iustel, 2007.

    66 BRANDARIZ GARCA, Jos ngel. Itinerarios de evolucin del sistema penal como mecanismo de control social em las sociedades contemporneas. In. CABANA, P. F.; PUENTE ABA, L. M. (org.). Nuevos retos del derecho penal en la era de la globalizacin. Valencia: Tirant lo blanch, 2004. p. 38.

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    consideraes eleitorais primam sobre as consideraes de efetividade67. Para os referidos autores o discurso poltico quase nunca reflete as medidas necessrias, embora aparentemente demonstre aos cidados certa tranquilidade, que poder advir das aprovaes das medidas propostas. 68

    Com efeito, a populao, acossada diante do medo e da insegurana dian-te da crescente imigrao irregular, pugna por resultados rpidos e eficientes, e os partidos polticos, buscando dar respaldo a esses anseios, respondem cada vez mais debilitando as garantias atinentes segurana jurdica, por meio de medidas legislativas.

    Sobre o tema, Bauman69 destaca que os poderes de Estado j no podem mais fazer quase nada para aplacar a incerteza que permeia as relaes sociais na contemporaneidade, e o mximo que podem fazer mudar seu foco para objetos alcanveis, quer dizer, tir-la dos objetos em relao aos quais nada podem fazer e coloc-la sobre aqueles que pelo menos lhes propiciam uma demonstrao de sua capacidade de manejo e controle. E os refugiados, pessoas em busca de asilo, imigrantes os produtos rejeitados da globalizao encaixam-se perfeitamente nesse papel.

    Ocorre que, em um ambiente tal, as funes do Direito Penal so perverti-das e so oferecidas opinio pblica perspectivas de soluo aos problemas que no correspondem com a realidade. Com isso, a democracia lembra Baratta70 substituda pela tecnocracia, ou seja, pela comunicao entre os polticos e o

    67 CALLEGARI, Andr Lus; MOTTA, Cristina Reindolff. Estado e poltica criminal: a expanso do Direito Penal como forma simblica de controle social. In. CALLEGARI, Andr Lus (Org.). Poltica criminal, Estado e democracia. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2007. p. 17.

    68 CALLEGARI, Andr Lus; MOTTA, Cristina Reindolff. Estado e poltica criminal: a expanso do Direito Penal como forma simblica de controle social. In. CALLEGARI, Andr Lus (Org.). Poltica criminal, Estado e democracia. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2007. p. 18-19.

    69 BAUMAN, Zygmunt. Vidas desperdiadas. Rio de Janeiro: J. Zahar, 2005. p. 84.70 BARATTA, Alessandro. Funciones instrumentales y simblicas del derecho penal: una

    discusin en la perspectiva de la criminologa crtica. Pena y Estado: la funcin simblica del derecho penal. Barcelona: PPU, 1991. p. 37-55.

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    pblico. E quando isso ocorre, a poltica cada vez mais assume a forma de espet-culo, visto que as decises e os programas de deciso no se orientam no sentido de uma transformao da realidade, mas sim no sentido de uma transformao da imagem dessa realidade diante dos espectadores, ou seja, no busca satisfazer as necessidades reais e a vontade poltica dos cidados, mas sim seguir a corrente da opinio pblica.

    Ora, a teorizao do Direito Penal do Inimigo, no que diz respeito ao seu foco principal o inimigo tem demonstrado apenas fracasso. Com efeito, a persecuo megacriminalidade constitui a principal afronta eficincia do Direi-to Penal. Que punio pode ser imposta, por exemplo, a um terrorista disposto a amarrar explosivos ao corpo?

    O terrorista, na contemporaneidade, ao lado dos demais inimigos da so-ciedade, incorpora a figura do monstro humano de que fala Foucault,71 uma vez que ele representa a infrao, ele a infrao, e a infrao levada ao seu ponto mximo (infrao em estado bruto). O problema est no fato de que, mesmo sen-do a infrao, ele no deflagra uma resposta da lei. O monstro, portanto, uma infrao que est automaticamente fora da lei. por isso que, para Foucault, o que faz a fora e a capacidade de inquietao do monstro que, ao mesmo tempo em que viola a lei, ele a deixa sem voz. Ele arma uma arapuca para a lei que est infringindo. 72

    No entanto, as equiparaes conceituais equivocadas gestadas no bojo do paradigma da segurana cidad, aliadas incapacidade do Estado em perseguir a megacriminalidade, fazem com que elementos extrados desse discurso sejam uti-lizados para a persecuo a outras formas de criminalidade, mais ao alcance das mos dos Estados. E os imigrantes, em circulao pelo globo, em busca de subsis-tncia e na tentativa de se estabelecer onde ela pode ser encontrada, acabam por se tornar um alvo fcil para a descarga das ansiedades provocadas pelos temores

    71 FOUCAULT, Michel. Osanormais:cursonoCollgedeFrance(1974-1975). Trad. Eduardo Brando. So Paulo: M. Fontes, 2002.

    72 FOUCAULT, Michel. Osanormais:cursonoCollgedeFrance(1974-1975). Trad. Eduardo Brando. So Paulo: M. Fontes, 2002. p. 70.

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    generalizados de redundncia social, razo pela qual acabam sendo recrutadas para auxiliar os esforos governamentais dos Estados que pretendem reafirmar sua autoridade, reduzida e enfraquecida. 73

    Ou seja, a maioria dos poderes polticos no tem capacidade nem dis-posio para se engajar na luta contra as foras criminosas que, com frequncia demasiada, controlam recursos que nenhum governo, sozinho e muitas vezes em conjunto, pode igualar.74 Em funo disso, os governos preferem dirigir a animo-sidade popular contra os pequenos crimes a se engajar em batalhas que com toda probabilidade prosseguiro por um tempo interminvel e decerto consumiro re-cursos incalculveis, mas que tendem virtualmente a serem perdidas 75

    Afinal, com maior efeito e menores custos, os bairros de imigrantes, reple-tos de potenciais gatunos e batedores de carteira, podem ser usados como campos de batalha na grande guerra pela lei e a ordem que os governos travam com muito vigor e publicidade ainda maior. 76

    Nesse rumo, a legislao penal dos pases centrais europeus voltada questo da imigrao irregular avana no sentido da conformao de um modelo de Direito Penal que assume algumas caractersticas peculiares, objeto da anlise a seguir.

    4 Direito penal versus imigrao irregular na Unio Europeia: rumo construo de um modelo de direito penal de autor

    Conforme salientado no decorrer do presente trabalho, a legislao penal dos pases centrais europeus direcionada ao combate imigrao ilegal permite afirmar que se assiste construo de um modelo de Direito Penal de autor. Tal afirmao possvel a partir da anlise de algumas caractersticas peculiares do referido modelo.

    73 BAUMAN, Zygmunt. Vidas desperdiadas. Rio de Janeiro: J. Zahar, 2005. p. 81.74 BAUMAN, Zygmunt. Vidas desperdiadas. Rio de Janeiro: J. Zahar, 2005. p. 82.75 BAUMAN, Zygmunt. Vidas desperdiadas. Rio de Janeiro: J. Zahar, 2005.76 BAUMAN, Zygmunt. Vidas desperdiadas. Rio de Janeiro: J. Zahar, 2005.

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    A primeira dessas caractersticas refere-se ao crescente processo de politi-zao do Direito Penal, a partir de uma concepo poltica da noo de segurana, o que representa uma simplificao do discurso poltico-criminal, que passa a osci-lar ao sabor das demandas conjunturais miditicas e populistas, em detrimento de programas srios e efetivos de poltica criminal. Com isso, una necesidad espasm-dica de seguridad irrumpe desde los mdios de comunicacin masivos, exigiendo a lo penaleldesarollodefuncionesirracionalesapotropaicas:nodesubsidiariedad,sino

    deprimaratio,segnlosrecorridosdelhorrorvacuipunitivoydetutela.77

    Como segunda caracterstica, pode-se falar na instrumentalizao do Di-reito Penal no sentido de evitar que os riscos se convertam em situaes concretas de perigo, ou seja, uma utilizao do Direito Penal como instrumento preventivo em lugar de um Direito Penal que reacionava a posteriori contra um feito lesivo in-dividualmente delimitado, tornando-se possvel falar em uma gesto punitiva dos riscos em geral. Na lio de Prez Cepeda,78 configura-se uma legislao penal no pretrito imperfeito do subjuntivo, a partir da qual los comportamientos que se van a tipificar no se consideran previamente como socialmente inadecuados, al contrario, secriminalizanparaqueseanconsideradoscomosocialmentedesvalorados.

    Donini79, a esse respeito, discorre a respeito da passagem de um Estado de Direito para um Estado de preveno, ou seja, um Estado que, por razes de segurana, pede aos cidados a renncia aos direitos que possuem em face dele, anticipando la intervencin invasiva de los poderes pblicos a todo nivel, y no solo envistadeparticulares,circunscritasemergencias. Vislumbra-se, ento, como de-monstrado supra, uma crescente utilizao, na elaborao legislativa, de estruturas tpicas de mera atividade, ligadas aos delitos de perigo abstrato, em detrimento de estruturas que exigem um resultado material lesivo, como consequncia da con-cepo do Direito Penal como instrumento de preveno de riscos.

    77 DONINI, Massimo. El ciudadano extracomunitario: de objeto material a tipo de autor en el control penal de la inmigracin. Revista Penal, n. 24, p. 52-70, 2009. p. 68.

    78 PREZ CEPEDA, Ana Isabel. La seguridad como fundamento de la deriva del derecho penal postmoderno. Madrid: Iustel, 2007. p. 313.

    79 DONINI, Massimo. El ciudadano extracomunitario: de objeto material a tipo de autor en el control penal de la inmigracin. Revista Penal, n. 24, p. 52-70, 2009. p. 68.

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    Por fim, pode-se falar no desapreo cada vez maior pelas formalidades e garantias penais e processuais penais caractersticas do Direito Penal liberal, que passam a ser consideradas como obstculos eficincia que se espera do sistema punitivo diante da insegurana que permeia as relaes sociais na contemporanei-dade, em especial no que se refere ao medo dos estranhos, dos parasitas. Como assevera Dez Ripolls:

    [...] se admiten ciertas perdidas en el principio de seguridad jurdica derivadas de la menor precisin en la descripcin de los comportamientos tpicos y del uso frecuente de la tcnica de las leyes penales en blanco; se hace una interpretacin generosa de la lesividad real o potencial de ciertos comportamientos, como en la punicin de determinadas tenencias o en el castigo de apologas; se considera razonable una cierta flexibilizacin de los requisitos de la causalidad o de la culpabilidad; se aproximan, hasta llegar a veces a neutralizarse, las diferencias entre autora y participacin, entre tentativa y consumacin; se revaloriza el principio de disponibilidad del proceso, mediante la acreditacin del principio de oportunidad procesal y de las conformidades entre las partes; la agilidad y celeridad del procedimiento son objetivos lo suficientemente importantes como para conducir a una sgnificativa reducin de las posibilidades de defensa del acusado...etc.80

    Essas caractersticas permitem concluir que se vivencia, no que se refere ao tratamento penal da imigrao irregular na Unio Europeia, o abandono de um modelo de Direito Penal do fato e a aproximao a um Direito Penal da exclu-so.81 Isso fica evidente quando se constata que no se busca, por meio das medi-das penais gestadas para o combate imigrao irregular a exemplo das acima analisadas a ressocializao ou a reeducao dos migrantes: elas se voltam, precipuamente, sua excluso. Pretende-se, to somente, excluir o no desejado, o que permite identificar ditas medidas com o Direito Penal do inimigo defendido

    80 DEZ RIPOLLS, Jos Luis. La poltica criminal en la encrucijada. Buenos Aires: B de F, 2007. p. 137.

    81 BRANDARIZ GARCA, Jos ngel. Itinerarios de evolucin del sistema penal como me-canismo de control social em las sociedades contemporneas. In. CABANA, P. F.; PUEN-TE ABA, L. M. (Org.). Nuevos retos del derecho penal en la era de la globalizacin. Valen-cia: Tirant lo blanch, 2004.

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    por Jakobs, uma vez que se est diante de um instrumento executor de uma poltica meramente inocuizadora.

    Nesse sentido, Donini refere que:[...] el extracomunitario irregular es, por tanto, una persona a excluir, un enemigo, en el sentido de que se usa contral el instrumentopenal soloparaexcluirlo:novaleno son meramente formales y ficticios los principios del merecimiento de la pena, los criterios ordinarios de la ofensa y de la culpabilidad, de la proporcionalidad retributiva y de las finalidades de recuperacin. El hombre, aqu, es solo um alien que es devuelto al remitente.82

    Isso significa dizer, em outras palavras, que a poltica criminal que tem orientado as medidas punitivas voltadas ao combate imigrao irregular na Unio Europeia tem ocasionado um retrocesso rumo conformao de um modelo de Direito Penal de autor, no qual la razn de ser de la punicin (o de una respuesta sancionatoriaagravada)noconsisteenelhechocometido,sinoeneltipodeautor,

    seja porque falta el hecho que es sustituido por un sujeto antijurdico, o porque el hechoexisteperoessintomadeunjuiciosobreelautor:esverdadquenosequierela

    comisindelhecho,peroporqueenrealidadessuautorquienresultaindeseable.83

    Ou seja, o Direito Penal gestado para o combate imigrao irregular na Unio Europeia configura uma corrupo do Direito Penal liberal, uma vez que trata como proibido, reprovvel, perigoso, no o ato em si, mas uma forma de ser do autor, qual seja, a sua condio de imigrante irregular. E isso representa um retrocesso inadmissvel, uma vez que, por meio de um modelo tal de Direito Penal, no se reconhece e tampouco se respeita a autonomia moral da pessoa, quer dizer, sua dignidade humana, olvidando-se, reflexamente, do fato de que o Direito Penal deve estar a servio da conteno das pulses absolutistas do Estado de polcia que

    82 DONINI, Massimo. El ciudadano extracomunitario: de objeto material a tipo de autor en el control penal de la inmigracin. Revista Penal, n. 24, p. 52-70, 2009. p. 69.

    83 DONINI, Massimo. El ciudadano extracomunitario: de objeto material a tipo de autor en el control penal de la inmigracin. Revista Penal, n. 24, p. 52-70, 2009. p. 62.

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    se encontra enclausurado no seio de todo e qualquer Estado de Direito histrico,84 razo pela qual somente pode ser utilizado como ultima ratio para a proteo dos bens jurdicos mais relevantes, sendo o respeito aos direitos fundamentais do ser humano o pressuposto central da interveno punitiva.

    5 Concluso

    As polticas de imigrao dos pases centrais europeus notadamente os integrantes da Unio Europeia assumem na contemporaneidade traos altamen-te repressivistas e excludentes, uma vez que assentadas em prticas que priorizam o controle das fronteiras no sentido de sua impermeabilizao, bem como na perseguio e expulso dos imigrantes que eventualmente conseguem transp-las.

    Isso decorre do fato de que a imigrao vista como uma ameaa diante do enxugamento do Estado de Bem-Estar Social e do consequente parasitismo representado pelos imigrantes, bem como diante do medo cada vez maior da me-gacriminalidade, em especial do terrorismo, sempre associado imigrao.

    Da a funcionalidade da construo dos imigrantes irregulares enquan-to sujeitos de risco, uma vez que os poderes de Estado, diante do fenmeno da globalizao, j no podem mais agir com eficcia para aplacar a incerteza que permeia as relaes sociais, razo pela qual mudam seu foco para objetos alcan-veis, ou seja, para aquilo que pelo menos lhes propicia uma demonstrao de sua capacidade de manejo e controle. O objetivo, aqui, restabelecer a confiana no papel das instituies e na capacidade do Estado em afrontar os riscos da contemporaneidade por meio do Direito Penal, ainda que custa de medidas que cumpram com um papel meramente simblico de tranquilizao.

    No entanto, a partir disso, gera-se um ambiente social de mixofobia ou de medo de misturar-se com os imigrantes, razo pela qual a sua gesto cada vez

    84 ZAFFARONI, Eugenio Ral. O inimigo no direito penal. Trad. Srgio Lamaro. Rio de Janeiro: Revan, 2007.

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    mais se d em nvel de segurana, com destaque para o controle das fronteiras e para o reforo dos instrumentos jurdicos e meios materiais que possam poten-cializar a luta contra a imigrao irregular, em detrimento da integrao dessa populao.

    Como consequncia, verifica-se um franco processo de expanso do Direi-to Penal, que chamado a intervir nas questes atinentes imigrao, mais especi-ficamente no que se refere ao controle dos fluxos migratrios. Isso permite afirmar que se assiste, na Unio Europeia, construo de um modelo de Direito Penal de autor, visto que, em muitos casos, a condio pessoal de ser imigrante ilegal vem sendo, por si s, convertida em delito, ou ento considerada enquanto causa de justificao de medidas punitivas mais drsticas que priorizam a inocuizao do indivduo, propiciando assim uma atuao do direito punitivo em clara afronta aos direitos fundamentais da pessoa humana.

    (Author) criminal law and illegal immigration into the European Union: the indifference to the excess in a punitive mixofobia environment

    Abstract

    The paper analyzes the manipulation of criminal law by countries from Eu-ropean Union in order to combat illegal immigration. This study starts on the so-cial and economic reasons that underlie the construction of illegal immigrants as citizens at risk. Next, it is demonstrated that this context is able to create a mixo-fobia environment (afraid to mix it up) in relation to immigrants, which provokes, then, the central concern of labor: the influence of mixofobia on how the Criminal law has been used to control of migration flows by European Union countries. Such behavior allows to affirm that people are witnessing a movement back toward a model of Author Criminal Law, established on punitive measures for highly re-pressive nature that violate the guarantees of criminal and procedural law of these immigrants.

    Keywords: Criminal law. Illegal immigration. European Union.

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