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Page 1: ARENDT, Hannah. O Significado de Revolução. in Da Revolução

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Tradução:Fernando Dfdimo Vieira

Revisão de tradução:Caio Navarro de Toledo ..

U.F.M.G. - BIBLIOTECA UNIVERSITÁRIA

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.,CAPÍTULO'1

O SIGNIFICADO DE REVOLUÇÃO

1Não nos ocupamos aqui com a questão da guerra. A metáfora que

mencionei e a teoria de um estado de Natureza que interpretou e desen-volveu teoricamente essa metáfora - embora muitas vezes tenham servi-do para justificar a guerra e sua violência, em função de um mal originalinerente às coisas humanas e manifesto no início criminoso da Históriahumana - são ainda mais relevantes para o problema da revolução, pos-to~ue.(i" ..._ ~'"_ .. ,~, r;.~~~..i'S~~oo~a~~~n'.......~~~J~E~POlS as revoluçoe.s.; •embora possamos ser tentados a defini-lasj nâo são meras mudanças] A~ -revoluções modernas pouco têm em comum com a mutatic rerum da histó-ria romana; ou com a créou;", a luta civil que perturbava a polis gregaNão podemos equipará-Ias à IlE't'a.jjoÀ.aide Platão, a quase natural trans-formação de uma forma de governo em outra, ou à 7tOÀ.l't'S(Wv'élvuKúKÀ.wmçde Políbio, o denominado ciclo recorrente a que estão ligados os eventos'humanos, em virtude de estarem sempre sendo dirigidos para os extre-mos". A Antiguidade estava bem familiarizada com a mudança pOlítiCâ·I\.e com a violência que a acompanhava, mas nenhuma delas parecia darorigem a algo inteiramente novo. As mudanças não interrompiam o cursp.jdaquilo que a 'Idade Moderna passou a chamar de História, a qual, longede começar com um novo princípio, apenas recaiu num est~gio diferentedo seu ciclo, seguindo .um curso pré-ordenado pela própria natureza dos'acontecimentos humanos, e que era, portanto, imutável em si mesmo.

Há, no entanto, um outro aspecto das revoluções modernas que po-de ser mais promissor na identificação de precedentes anteriores à Idade'

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, ~.-.'. /,~, -,1-") •. .": -; I,------• Optamos aqui por manter as expressões gregas no corpo do texto conforme utilizado pela auto-ra, sem a conseqüente tradução para o português, segundo a edição original em língua inglesa daPenguin Books. (N. do Ed.)

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.' .., Moa~rna.~Quem poderia negar o imenso ~l gue",,"~<:~~.Q..~.QQl!l.yei.9...Ia dese~~31Lc;;.m todas as .E~V.Ql!K9J~_lL.._equem poderia deixar de lembrar

'1 que ÀristóteIêiÇql:úindõ'cô'meç'óu a interpretar e explicar a IlEt"al301.:aí dePlatão, já havia descoberto a importância daquilo que hoje denominamos

\ motivação econômica - a derrubada do governo pelos ricos e o estabele-cimento de uma oligarquia, ou a ~glp.ada do governo pelos pobres e o esta-

.beIeci,mento de uma democracia?/Outro fato igualmente bem conhecido:lda Antiguidade era o de que os hr~nos subiram ao poder com o apoio das'Icamadas simples ou pobres, e que sua maior probabilidade de se conser-[varern no poder estava nó desejo do povo de ter igualdade de condiçãciJA relação entre riqueza e governo, em qualquer país, e o entendimentode que as formas de governo estão ligadas à distribuição da riqueza, a sus-

~ peita de que o poder político pode simplesmente acompanhar o poder eco-nômico, e, finalmente, a conclusão de que o interesse pode ser a força mo-triz de toda luta política - tudo isso não é, naturalmente, invenção deMarx, nem tampouco de Harrington: "Domínio é propriedade, real ou .pessoal"; nem de Rohan: "Os reis comandam o povo, e o interesse co-manda os reis". Se quisermos lançar sobre um único autor toda a culpada chamada visão materialista da História, devemos recuar até IAristóte-les, que foi o primeiro a declarar que o interesse, que ele chamava deaUI.uptpov,aquele que é útil a uma pessoa, a um grupo ou a um povo, tem·e deve ter domínio supremo nas questões políticas.l

Entretanto, essas derrotas e sublevações instigadas pelo interesse, em-bora não pudessem deixar de ser violentas ou sangrentas, até que umanova ordem fosse estabelecida, eram apoiadas numa distinção entre po-~r~s e ricos, que estava, ela própria, fadada a i~rtão natural e inevitávelno corpo político, como a vida no corpo físico.'-.Aquestão social só come-ço~~ de~{::!!!~.h~Iõ.~~_~p~ln;.YJ21l!~ário quãnao. n~~õderría,'rn~~_~~C::§L9.~llg1B~1~?.~~~~ç.§lEama i~vida! ql~<:'~q9reia fo~e íner~!1-tCà CO!1.Ç:UÇ~i,ºJl_l!.T!!.ªEa,a duvidar-qUe a distiq@o entre os poucos que, por'

i 'tlrcüÍÍstâncias, forçà··ou·fraude:ÇcônSeguiram libertar-se dos giiTIí:Oesda

1·~q1t:~-~lÍ~~~~·:~~~~:~:~?c~~;~~~~~~:~~;i~tit~oençoada com a abundância, ao invés de amaldiçoada pela penúria foi,

na origem, pré-revolucionária e americana; surgiu diretamente da expe-riência colonial americanal Do ponto de vista simbólico, poder-se-ia dizer \wi'que o palco para as revolúções, no sentido moderno de uma transforma-' ',~ção completa da sociedade, foi armado quando John Adams, mais de uma / ~década antes da irrupção da Revolução Americana, assim declarou: "Sem:/r ~pre considerei a colonização da América como o início de um grandicso.projeto da Providência para a iluminação dos ignorantes e a emancipaçãoda parte escravizada da humanidade em toda a terra,,2. Do ponto ..de vistateórico, o palco ficou pronto quando, primeiro Locke - provavelmentesob a influência das prósperas condições das colônias dei Novo Mundo -e, em seguida, Adam Smith, afirmaram que o trabalho árduo, longe de

. ser o apanágio da pobreza, a atividade a que a indigência condenava os

) 18 DA REVOLUÇÃO

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que não tinham propriedade, era, com efeito, a fonte de toda a riqueza.Nessas condições, a rebelião dos pobres, da "parte escravizada dahumanidade", poderia, de fato, ter por objetivo mais do que a libertaçãodeles próprios e a escravização da outra parte da humanidade.

(A Am~ri.c:at9!1larª:s~ S) sÍIIl1:J()I()~~~.g1<!so<:jedadesem pobreza, muitontes dáIdade Moderna, em seu desenvolvimento tecnológico único, ha-

ver efetivamente descoberto os meios de abolir aquela miséria abjeta depura indigência, que sempre fora considerada como eterna. E foi somenteapós isso ter acontecido e se tornado conhecido do mundo europeu, quea questão social e a rebelião dospobres puderam desempenhar um papelverdadeiramente revolucionário.l O anti~o ciclo de_p_crenes recQrrêp.sias-- b di . - -' " .~I" . b 3se aseava na lslmçao.,..supest-álnent€--Ilatur"ll-;-eRtr:e..r:lcos-e.p.o res..;~oncreta existência da sociedade-ªID.l}FiGana,..ant~~n..to~da-l"e'-'.o-~;!S~ haviãJnterromnido esse~ciclQ,de~um~vez-per~teda~ Existe um gran-de número de discussões eruditas a respeito da influência da Revolução

.~:~Americana 'sobre a Revolução Francesa (bem como a respeito da influên-cia decisiva dos pensadores europeus no curso da própria Revolução Ame-ricana). Contudo, por mais esclarecedoras e justas que essas investigaçõespossam efetivamente ser, nenhuma influência demonstrável no decorrerda Revolução Francesa - tal como o fato de que ela teve início com aAssembléia Constituinte, ou de que a Déclaration des Droits de l'Homme foiconcebida segundo o modelo da lei de direitos de Virgínia - pode se equi-parar ao impacto daquilo que Abbé Raynal já havia qualificado de "sur-preendente prosperidade" das terras que ainda eram colônias inglesas na.América do Norté. .

Ainda teremos ampla oportunidade de discutir a influência, ou an-tes, a não-influência da Revolução Americana sobre o curso das revolu-ções modernas. É incontestável o fato de que nem o espírito dessa revolu-

") ção, nem as ponderadas e eruditas teorias políticas dos "~Lt,!pdado-=,re.s.'..'tiveram grande repercussão no continente europeu. Aquilo que os

. 'hom~ns da Revolução Americana contavam como sendo as maiores ino-.: vaçQ.c's_.donovo &üverno republicano, a aplicação e a elaboração da teoria

de~Ql~tesquí~)sobre uma divisão de poderes dentro do corpo político,descmp'eííhOUum papel muito diminuto no pensamento dos revolucioná-rios europeus de todos os tempos; foi rejeitada de pronto por Turgot, mesmoantes da eclosão da Revolução Francesa, por razões de soberania nacio-nal5, cuja "majestade" - e maJestasfoi o termo original de Jean Bodin,por ele depois traduzido como souueraineté - supunha a exigência de um .poder centralizado indivisíveL A soberania nacional, isto é, a majestade (do próprio poder público, como fora entendida nos longos séculos de mo- t.narquia absoluta, parecia estar em contradição com o estabelecimento de I1

uma república. Em outras palavras, é como se o Estado-nação, bem mais. antigo do que qualquer revolução, tivesse derrotado a revolução na Euro-.pa, mesmo antes do seu aparecimento, Mas, por outro lado.] aquilo qU~1representou para todas as outras revoluções o..prºº!e.ma.Il!~i~~IJ.r:g!"!til~:e .

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Jn'II'lH d'l w\l<.licôl.lllque se tiQham estabelecido na América, e que ~ .h/ll!1 q)!1l\l!cidCl~ naEuropa..,-rnuito antes.aa::Declaração.Ele--IuQependência.._.,

')I)VO continente transformara-se num refúgio, num "asilo" e num .1'/lnlO do encontro dos pobres; aí havia surgido uma nova raça de homens,., unidos pelos laços ele seda de um governo moderado" , e vivendo em con-dil:i1cH de "uma agTadável uniformidade", da qual "a pobreza absoluta,pi"" un que a rnortç:", havia sido banida. Apesar disso, Crêvecoeur, aci-1111. cit.ulu, era radicalmente contra à Revolução Americana, que ele via('011'" espécie de conspiração de "grandes personagens" contra "as das-

'17('H de homens comuns"~~'Não foi a Revolução Americana e sua preocu';-I---r---" ~~ - -l'~íi.O1;.)11!O eSl:abeleci~nto de um ~vo or..8'an~polítjcQ,.Jk..!!ma no-I' d . A"" .,,-vu onna C governo, mas SlIJLa menca., o novo contmente ,.0 am~

.ano. o "oovo homem", "a adorável igualdade", no dizer de-Ieffersen-."que OA pobres usufruem juntamente C;:OITLOS ricosíl, que r_ev-º1JJcioJ:!!ll!..oesptrito elos homens, primeiro.na Europa, e, em seguida,~l tilll!LQ.muI1:..:do - f; isso em tal-medida-que;-a-f>ar,.ti1'-àas~últimas..lªses da.Revolução;"fu,ncesa, até as revoluções de nossa própria ~poca, par.eceu aos revQIll.~'·

I ,9onário,i,ser mais importante mudar a tessitura da sociedader.tal comg\ fora.mudado na.América antes de-sua r,evoluGão,--do..que.mudar a:estrutu-.~a..de-domf~·io-pf:lJ.ftieô:I.•Se fosse verdade que nada mais ~stava em jog,oonas revoluções da Idade Moderna do que a mudança radical das condi-, ções sociais, poder-se-ia então dizer que a descoberta da América e a colo-o nização de um novo continente constituíram suas origeris - Como se a

"adorável igualdade" que surgira naturalmente, e como que organica-mente, no Novo Mundo, só pudesse ser conseguida, no Velho Mundo,através da violência e da sangrenta revolução, quando lá se espalhou anotícia de uma nova esperança para a humanidade. Essa concepção, commuitas e por vezes sofisticadas versões, tornara-se, de fato, bastante co-mum entre os historiadores modernos, que tinham chegado :~.~?~_~~9IÓ!$~~.9:~i:I~q~~TlenhulJl~.re~hWª.<?_E-ll..!_lli~oC~;:t:eré!...Q?-_A~irica~E certa {,~e notável que essa idéia seja, de alguma forma, apoiada por KarlM<n:x'1

ique parece haver acreditado que suas profecias sobre o futuro do capitarr ~o e as vi~douras revoluções. proletári~s não se aplic.avam ao ?~senvo~L 'I.'

:'-Vímento social nos Estados Unidos, Quaisquer que sejam os merrtos dar 'ir:',i'· qualificações de Marx -que mostram, certamente, uma compreensão ela: realidade fatual bem maior do que os seus adeptos jamais foram capazes, de ter -, essas mesmas teorias são refutadas pelo simples fato da Revolu-; ção Americana. Pois os fatos são renitentes; não desaparecem quando os\,historiadores ou sociólogos se recusam a tirar algum ensinamento deles,..,embora isso possa ocorrer quando todos os esquecem. Em nosso caso, es-\se esquecimento não seria acadêmico; significaria, literalmente, o fim da"República americana.

20 DA REVOLUÇÃO

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Algumas palavras ainda precisam ser ditas sobre a freqüente afirrna-ção de que todas as revoluções modernas são essencialmente, cristãs emsua origem, mesmo quando sua fé confessa é o ateísmo. O argumento emapoio a essa concepção geralmente aponta para a natureza nitidamen 1'(:

rebelde da seita cristã primitiva, com sua ênfase na igualdadc das almasperante Deus, seu manifesto desprezo por todos os poderes públicos, c suapromessa de um Reino dos Céus - noções e esperanças que se supõe te-nham sido canalizadas para as revoluções modernas, ainda que numa for-ma secularizada, através da Reforma. A secularização., a separação da re-ligião da política, e o surgimento de uni reino se..cular:,-com sua dignidade~~ia~tamente-um~fatm::_crllcial..no-fenâmeno~da.J:eyolúção. De fa-to, é bem possível que, no final, aconteça que aquilo que chamamos.rexo-lução seja precisamenteaquela fase transitória, que dá origem a u~ ..reino .rioVQ~-s~~~liJiÚ:-.--Mas,se isso to~verdade, então é a própriaG~culá~Ízaçã~>e 'não o conteúdo dos ensinamentos cristãos, que constitui a õrlgêiil"da--;~e-volução. O primeiro estágio dessa secularização foi o aparecimento do ab-solutismo, e não a Reforma; pois a "revolução" que, segundo Lutem,abala o mundo, quando a palavra de Deus é libertada da autoridade tra-dicional da Igreja, é constante e se aplica a todas as formas de governosecular; não estabelece uma nova ordem secular, mas, de forma constantee permanente, abala os fundamentos das instituições rnundanas+, É ver-dade que Lutero, por ter-se tornado eventualmente o fundador de umanova igreja, poderia ser incl~ído entre os grandes fundadores da História,mas sua instituição não foi, e nunca pretendeu ser, uma nouus ordo saeclo- .rum; ao contrário, o que se visava era libertar mais radicalmente a verda-deira vida cristã das considerações e preocupações da ordem secular, quais-quer que elas viesseni. a ser. Com isso não queremos negar que a dissolu-ção do elo entre a autoridade e a tradição, possibilitada por Lutero, suatentativa de basear a autoridade na própria palavra divina ao invés de apoiá-Ia na tradição, contribuiu para o enfraquecimento da autoridade na IdadeModerna: Mas isso, por si só, sem a fundação de uma nova igreja, teriacontinuado tão ineficaz como as expectativas e especulações escatológicasda baixa Idade Média, deJoachim de Fiore ao ReJormatio Sigismundi. Temsido sugerido recentemente que esses últimos podem ser considerados pre-cursores um tanto inocentes de ideologias modernas, embora eu duvidedisso"; da mesma maneira, os movimentos escatológicos da Idade Médiapodem ser vistos como os precursores das modernas histerias de massa.Por isso, o espírito rebelde, que....parece-tão-~.y~iàente-eTll-ceTrmnrrovim-en-tos estritãiTie'iite religigsos da Idaàe-MoQ€rna;resultou-sem}'}re ern-algu-mã'eSpécie de' Grande Despertar ou renascimento, os g!:lill.s,_não importao quanto possam ter "renascido" os seus seg1Jidores,_permaneceram ~i-ticamente sem consegüências e historicamente fúteis. Além disso, a teoriade que os ensin~tos cristãos são, em si mesmo's, revolucionários, se

o SIGNIFICADO DE REVOLUçio' ~I

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mostra não menos refutada pelos fatos do que a teoria da não-existência"de uma Revolução Americana. Pois o fato é que nenhuma revolução ja-;'mais foi feita em nome da cristandade antes da Idade Moderna, de tal sorteque o melhor que se pode dizer em favor dessa teoria é que ela necessitoude modernidade para poder liberar os germes revolucionários da fé cristã,

, o que é, obviamente, dar a questão como provada.Há, porém, uma outra alegação que se aproxima mais do âmago

do problema. Temos enfatizado o elemento de inovação inerente .a to-das as revoluções, e tem sido afirmado, com freqüência, que toda nos-sa noção de História, pois-que essa segue um desenvolvimento linear, é

acristã em sua origem. É óbvio que somente sob as condições de um con-

ceito de tempo linear, fenômenos como inovação, sin.gularidade-de..ac-<Ul.;teClmento.s •...e..Q.U1~PQdt:m.séE..C.oncehiv.ci§.Na verdade ;~afilosofia cristã

,,-rompeu com o conceito de tempo da Antiguidade, porque o nascimentode Cristo, tendo ocorrido num tempo humano secular, constituiu não só

.um novo princípio como também um acontecimento único e sem 'repeti-;ção. O conceito cristão de História, como foi formulado por Agostinho,só podia conceber um novo princípio em termos de um acontecimento trans-cendente que, incidindo sobre o curso normal da História secular. provo-

, casse a sua interrupção. Esse acontecimento, como salientou Agostinho, {\ocorrerauma vez, ..porém jamais ocorreria novamente, até o final dos tem- Up~ A História secular, na concepção cristã, permanecia circunscrita aosciclos da Antiguidade - impérios surgiriam e desapareceriam como nopassado - com a única exceção de que os cristãos, de posse de uma vidaeterna, podiam romper esse ciclo de perpétua mudança e contemplar, comindiferença" o espetáculo que lhes era oferecido.

Que a mudança preside todas as coisas mortais não era, na realida-de, uma noção especificamente cristã, mas uma idéia prevalecente nos úl-.timos séculos da Antiguidade. Como tal, teve uma maior afinidade comas interpretações clássicas gregas, filosóficas e mesmo pré-filosóficas, doque com o espírito clássico da res publica romana. Em contraposição aos

. romanos, os gregos estavam convencidos de que a mutabilidade, ocorren-do no rnundo dos mortais, e na medida em que todos eram mortais, nãopodia ser alterada, pois estava baseada.rem última análise, no fato de que

. DS VÉOl, os jovens, que eram ao mesmo tempo "os novos", estavam cons-• tantemente invadindo a estabilidade do status quo.[políbio, que foi talvez

o primeiro escritor a ter consciência do fator decisivo de gerações que sesucedem umas às outras através da História, enfocou os assuntos rqma-nos com uma perspectiva grega, ao salientar esse constante e inalterávelir-e-vir no campo da política, embora soubesse que o objetivo da educa-ção romana, em contraste com a grega, era unir c c os novos' aos velhos,

.fazer com que os jovens fossem dignos de seus ancestraiª-~j)(9 sentimentoromano de continuidade era desconhecido na Grécia, onde a mutabilida-de inerente a todas as coisas mortais era experimentada sem lenitivo ou

22 DA REVOLUÇÃO

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1111, conso~o; e fo~ essa experiênci~ que ~e.rsuadiu os filósofos gregos de que:l', eles nao preCisavam levar muito a seno os assuntos humanos, de que osi~[ ho.mens deviam deixar de conferir a esse campo uma dignidade totalmen-

'i;ll';'; te imerecida. Os illsuntos humanos II,1~_~<l,~,~,.~~~s!~!~mf;:!l_t~,_l!?:<:l,~..~:rE:=-r' ca produzia!!!...1!ª-d~_!!lteir.:ªm~Il_t~..!l~5),!se alguma coisa de novo existia

fi' 506 o sol, eram os próprios homens que nasciam no mundo. Por mais no-1. vos que os VÉOl pudessem vir a ser, todos estavam predestinados a con-,/, templar, através dos séculos, um espetáculo, natural ou histórico, que era

essencialmente sempre ~ mesmo.

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O conceito moderno de revolução, inextricavelmente li ado à:~ri'oãode que o curso a lstona come a subitament :um..n.OJW-x;u.mo,!de..qu.euma História inteiramente nova, uma História nunca antes conl:i~é:idâoriãrraaa esta para se esenro ar..J6.--a...!eswn ..€Glâ-e-alTt-es-tta-s-clnas-g:Fan{;le:r-;'oluções no [mal do século XVIII..: Antes que se engajassem naquilo queresultou em uma revolução, nenhum dos atores teve, o mais leve pressen- .timento de qual iria ser o enredo do novo drama. Entretanto, uma vez'iniciado o curso das revoluções, e muito antes que aqueles que se tinhamenvolvido nelas' pudessem saber se o seu empreendimento iria resultar emvitória ou em derrota, a novidade da História e o significado mais recôn-dito do seu enredo tornaram-se evidentes, tanto para os atores, como para

" os espectadores. O enredo era, inegavelmente, ~I2arecimento da lihsr-.t .illtds.,,Em 1793, quatro anos após a eclosão da Revolução Francesa, numa

" época em que Robespierre definia o seu governo como O "despotismo daliberdade", sem receio de ser acusado de falar por paradoxos, Condorcetresumiu o que todos sabiam: "h-, palavra re1!olucionário_sÓ.pode.s~,L~E.li.c!Ldaª_revoluções cujo objetivo seja·8. liberdade" 10. Que as revoluções estavamnã-ímmêildi'de anunciar uma era inteiramente nova, tinha sido atestadoanteriormente, com a criação do calendárioJ:,e..\illW,çionácio.,onde a execu-ção do rei e a proclamação da república eram contados como o ano um.

.~ j,cmdaL Rortanto, para..a.compreensão das..re'lOluç,ÇíeS_da_IdadeM~"..c derna, ue a idéia de liberg.a.d~~ a experiência de um nova come o se: .\:cõinc~d..ent~~:~E·aesde' que a noção corrente ncilnündeflivre-é deqti'~{i

, liberdade, e não a justiça, nem a grandeza, D critério mais alto pa~a ojul-gamento de constituições de corpos políticos, não é apenas o noSSOenten-

.dimento de revolução, mas nossa conceR,Çãode liberdade, nitídament~~volucion' . 'ua ori em ue ode medir até ue Dnto estamos re-parados Rara act:ita~,tW:.ejcitar...essli-cQiBGiQ&n<;:i~.Por conseguinte, mes-;;0 nessa altura em que ainda falamos do ponto de vista histórico, pode

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o SIGNIFICADO DE REVOLUÇ1Io

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ser prudente fazerinos uma pausa e refletirmos sobre um dos aspectos sobo qual a liberdade então aparecia - pelo menos para evitar os mal-entendidos mais comuns e ter um primeiro vislumbre da própria moder-.nidade da revolução como tal.

=: Pode ser um truísmo afirmar que libertação e liberdade não são amesma coisa; que libertação pode ser a condição de liberdade, mas quenão leva automaticamente a ela; que a noção de liberdade implícita nalibertação só pode ser negativa, e que, portanto, a intenção ele libertar nãoé idêntica ao desejo de liberdade. Nãoob.stante, se esses truísmos são fre-qüentemente.esquecidos, é porque a libertação sem~ esentou Comnitidez, enquanto a liberdade foi sel!!.P.reinçer!'ª,..s.e não totalmente inúti .

lérn disso, a liberdade desempenhou um papel relevante e um tanto con-trovertido na história do pensamento filosofico e religioso, e isso atravésdagueles séculos - desde o declínio do mundo antigo ao nascimento domoderno - em que não existia liberdade política, e em que, por razõesque não nos interessa discutir aqui, os homens não se preocupavam comisso. Portanto, tornou-se iJase axiomático mesmo em teoria oIítica en-: .\)-Ül tender podibe,dade olftÚ não umf~nômeno_ poli":?, m.. ao con"a- i.! .\

~. no, a gama maiS ou menos livre de atlvldades nao-J;l . m dete _I; ~--. ;'. , ".. .!:?mado corpo POhtlCQ pelJlUte-e..garante....aqueles-EI.uG-Q_CO.JlStltuem. \

~ ~~'" Liberdade, como fenô~eno políti~~, foi con.temporânea das cidades-V .,'- _Estad?s g::egas. pesde .Herodoto~ ela_fOI e?t.endI~a Como uma f~r:na de

~t'lorgamzaçao polItlca em. que os cldadaos VIVIam Juntos em condlçoes de,&",- não:mandoc .,emurna di"inção entee govern~te, e goveénado,". ~"a,,,,, noçao d~ nao-mando era exp""a pela palavra tsonomin; eUJa oaraete"'t~_

1/ ··-"·ca mais Importante, entre as formas de governo enumeradas pelos anti-I gos, era a de que a noção de mando (a "arquia", de apXElV, em rnonar-I .:__q~ia e olig"'quia, ou a "ecaem", de xpar,Tv, em de~occaeia) e,~ava in-

I '/teIramente ausente dela. A polzs era suposta ser uma IsonomJa, nao UmaI ,'ldemocracia. A Pala~~9-A~.~e-~~~'-CL1.::!~.~ig!.1,Íf!~ayª-então..o.gQy.em9_qª.maio.::..

ria, foi cunhããâ- orIginalmente por aqueles que se opunham à isopQmi.i!,.::-e"qüe-pieténâiãm"dizer:à -qlie'vocês "chamiúii.--aeriao::mãnCiÕ-·é:"~a verda-de,-apena"s'ü-iri'a'ÕütiàésPêCie'depoâér;éàPioi fanUa de governC);·O 'do-

' . 12 ' . .\!Jlfmo"pdb'demos ..... '. .. . .

;0~'"' ..'Dessaforina, a i~-udade gue ~~sinall1~.r:~~~~.:roc-.~---:-rregúenteme~~ ,:omo um .p-mg.Q.~~~i6~rJ1'J.çLç.!. ..,~ra,

... nginalmente,. ~as~ ess.a. Es~. gu~ld~d.~~::~,!.ei,.~.;ap~ãy!:a ZSOTIO~~ria, ~~~~.~~~::SI~ç0A:l~çg.nd].~~~!_ emborá essa

~~"e, até certo ponto, a eondição de toda a ativida<je poHt;'a

1 no, m.undo

. a.~tig.o, ond.e o campo político. eS!~Xf.!....a._~~:tQ..apenas..a.os.que.pos-.,suza

m.PfQPl'le9ade ~ eS_~~ilV:?S,-mas a Igualdade dos que fazem parte do

. Corpo de pares, A isonomia assegurava íaó'rllC;, a igualdade, não porque( todo, o,. ho",eo, J"'''''_ilii~âiõido;-oUtivé;,,;;;- ;idó ·cr;.dó;-iguai" !"a;,i . ao éOllt!,~rio, pOfqlle. os_homenseriüri'~.:pºY~b-'attireza ((PÓeml), desiguais,.

~\ DA REVOLUÇÃO --- - .. .

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sua VÓJ.l.Oç,OStornaria iguais, A~igualdade existia apenas nessecá"i:!!.Ro es-\pecificarnentep ..oEtico; onde g_~h9mens convIviam uns com ps outros co- I_.~'ao:s. e nãO=c'õffiõ\JêssõãSPrivaaas:R~I?:ç~ eTl~r~_.~.~~e...a.-l1!lg?, I

.. f;:~I;~~j~~!~~i~~~;.i:~~~;'.;=~~Js~~~~~~.·~t~~::?J.~~~~ci~I~~~;;i~. ~7~~~1'I!Iíticas, feitas pelo" liõrrú!"In, dificilmente poderia s~r(':nt(ltizadaem derria- Isia, A igualdade da polis grega,sua isonornia, era um atributo da polis e /" Inão dos homens, os quais eram investidos.nessa.igualdade pela ..~~.~~cJªºiaJ l:/e não.emvirtudedonascimenr». Nem a igualdaP.e.-Ilen:J.a liberdaGle.el'a-~1 Ientendidas como uma qualidadC-inerente à Natw::.eza humana, nenhumadelas era CPúOl;~,.º9.~c!a~pela natu,rez::" e..s~desenvolvendo por si mesmas;elas"eram-VÓJ.l.úl,-1stQ_.é:_~õiivê.iic~ónaIse,artIhcIalS;-r>roãut(Js'do-esforço ..fiu., " s-

mano e das_ ualidades...d undo feÜp_p.~lQ§ehomens. . i';, Õs gregos afirmavam que~Q_ --ê.c :~-ã9-se-F-t}ntr-ê-Q~§:, /seus pares, e que, portanto, nem o tirano, nem o déspota, nem o senhor ",/ .,i

de. uma família - mesmo que fosse inteiramente liberto e não forçado por' ~I~('

outros - era livre. O ponto fundamental da equação de Heródoto, de li- "berdade com ausência de governo, era que o próprio governante não eralivre; ao assumir o domínio sobre outros, ele se privava daqueles paresem cuja companhia poderia ser livre. Em outras palavras, ele havia des:-\truído o próprio espaço político, resultando daí que nenhuma liberdadepôde sobreviver, nem para si próprio, nem para aqueles sobre quem exer- ..da o seu domínio. A razão para essa insistência na interconexão entre lf~: . \herdade e igualdade, no pensamento político, era.qlJ..!:_ª.LiQer<;lª.ili:,J:t:a-enJ.':.)'f}ten~!gi:\-.,.Ç,Qill.9,~s.~.e.~c:l?,.tp.'~ªnitesta.em.,certas.,.a.Jiyjºªq~J.rl.J ..!J:tl.,ª.nas.,,,embOl::anãd~.rabsolutamente em todas, e.que essa.s.a.ti\'i~a_<ic,::~,.só-PQd~a.II1apareceI'e ser:(,r' .r~aG-ci'uandõ'QiifrOs:as.obsel:vavam, as julgavam e-as conservavam na me .:»

mória. A vida de um homem'l1vre necessitava da presença de outros'. Emconseqüência, a própria liJ2~r.çLadedemandava um lugar onde as pessoas _.'pudessem se reunir -(á"ágora)o mercado público, .ou a polis, o espaçá .político propriamente ditõ-;---- . .

Se pensarmos nessa liberdade ~olítica em termos modernos, tentan-do entender o que Condorcet e os homens das revoluções tinham em menteãõproclamarem que a revolu ão tinluL _or alyoJJ..liº~rdade e gM~.J~.Jl,ªd~&.i.-mento da II erdade significava o início de uma História inteiramente no-vã; aeveillõs oDservar! :'primeirame·üte,-·ô·-rãtõ b-ãs-tan'téOEylo "de:qL:~le~pãsSlvelmente não estavam ensando apenas naquelas liberdades que ho-je associamos ao governo consíituç~ , e Qllc sao ap,ropnaãamente de-nominados direitos civis. Pois nenhum desses direitos, nem mesmo o di-reito de participar do governo, já que a taxação demanda representação,foi, na teoria ou na prática, o resultado da revolução 13. Eles foram o pro-duto dos" três grandes direitos primordiais": vida,liberdade, proprieda-de, em relação aos quais todos os outros direitos eram "direitos subordi-

PROJETO lnnT("\Q

PNBUJSESU/MEC,,~o SIGNIFICADO DE REVOLuÇriO 2:i

Page 6: ARENDT, Hannah. O Significado de Revolução. in Da Revolução

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~ governo a reparaçao de injusnças: lt'nmClra rsmenoa uonStltuclOnal), pero~ que~ "~is;t~rica~ente, o direito d~ petição é o ,~ir~ito ?rimár~~", e a inte~-

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I,)'ri Mas essa dificuldade em se traçan.uma fronteira entre libertação e.. m' liberdade, num determinado qyadLO_de..circunstâncias históricas, não síg-

"i I:; nifica que libertaçao e liberdade se'am a mesma coisa, ou que aquelas li- ," ..u, f?eWa es que' oram conquistadas em conseqüê.n.cia-daJibertação nos contem

.1,\ ~ toda a lustóna aa-llõeroãêIe, mesmo q.ll..e-a.qJlelesq:ue tentaram conguWra.ambas freqüentemente não distinguissem,,-C.QnLmui~a.dareza, essas q~-~ Os homens das revoluções do século XVIII tinham o perfeito direitoa essa falta de discernirnento; era ela própria natureza de seu empreendi-mento que eles descobrissem sua própria capacidade e desejo pelos "en-cantos da liberdade", como JohnJ ay certa vez assim qualificou, no próprioato da libertação. Pois os atos e feitos que a libertação deles exigia, lançaram-nos na atividade pública, onde, iÍitencionalmente ou muitas vezes inespe-radamente, começaram a construir aquele espaço onde a liberdade poderevelar os seus encantos e tornar-se. uma realidade visível e tangível. Da-do que eles não estavam, de forma alguma, preparados para esses encan-tos, dificilmente poder-se-ia esperar que tivessem plena consciência do novofenômeno. Não era outra coisa senão o peso de toda a tradição cristã queos impedia de admitir o fato evidente de que gostavam daquilo que fa-ziam, para além das imposições do dever. ..

Quaisquer que fossem os méritos das exigências expressas da Revo:-'\lução ÃmerlCanã-:=--nenh'üma TãXãção-';~~---l:ep-;~~~-~ta-ção'-=~--eIa"cerfa-':IrrlenteiiãÕ"ati;ãí~Cêm"flmçãõ·de-seÜs--ericãi1-fàs. Erã-'iirgõ-completamênte 1

~üferen~~-~c.~~~E~~~~~a?ão~~_~~~~~,~S?~_~!~_~~9~,-ª~_~~~~_~~_~~ ,',~_-~_r.~t~~r \ ': .r,:.~_~_~_~ª_~!~Q.erª-ç-º!,!_s"_.~T.dle}Çao,e,,.a,per:suasao,_e._tudo_omals,qll~_s~}azta \2J~necessário para levar essa reivindicação à sua conclusão lógica; governOjindependenteea criação de. uIT.l.!?()Y9corpo ,pol(tico, Fcii-~'ti~vesde'ssasexperiências que aqueles que, .naspalavraªde J ohn Adarns, tinham sido··~~1::~:~~~;,~e~:::f~~c~~~i~:~~:~~~~çl~~:e:;~~ft:t~D~~~~Ç~~:'~~~s,~~'~

'-'--"CY'qu-ea'-revoll:i'çaõ'tr'Oux'e ã luz -füressa'expérlêllêia'dê-ser-lívre, eessa foi uma experiência nova, embora não na História do mundo ociden-tal - foi bastante comum na Antiguidade greco-romana -, mas em rela-ção aos séculos que separam a queda do Império Romano do advento daIdade Moderna, E essa experiência relativamente nova, pelo menos paraaqueles que a viveram, foi, ao mesmo tempo, a experiência da capacidadedo homem para iniciar alguma coisa nova. Essas duas coisas juntas - umanova experiência que revelava ~apacjdade do homem para a n_?vi.da~e._ estão na base do enorme~~):jue encontramos tanto na RevoluçâoAmericana como na France~s'a sempre reiterada insistência d~ quenada comparável em grandeza e relevância jamais acontecera antes emtoda a História documentada da humanidade, e que, se tivéssemos de avaliá-Ia em termos de reivindicação bem-sucedida de direitos civis, pareceriainteiramente descabido.

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Page 7: ARENDT, Hannah. O Significado de Revolução. in Da Revolução

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J:i'ãJ:a:apdidai~ qualquer cou{J d'étaJde revolução, ou para enxergá-laemqual-'",qlle!,[email protected]ª.çiYiJ..,J;>opulações oprimidas freqüentemente se levantaram em

rebelião, e uma grande parte da antiga legislação pode ser entendida co-mo salvaguarda contra a sempre temida, embora rara, sublevação da po-pulação escrava. Além do mais, guerra civil e lutas de facções representavampara os antigos as maiores ameaças para todo corpo político, e a qllÂ.ía deAristóteles, essa curiosa amizade que ele exigia na relação entre os cida-dãos, foi concebida como a mais confiável defesa contra elas. Coups d'étate revoluções palacianas, em que o poder se alterna de um homem paraoutro, ou de um grupo para outro, dependendo da forma de governo emque ocorre o coup d'état, têm sido menos temidas, porque a mudança queelas acarretam é circunscrita à esfera do governo e provoca um mínimo"de inquietação no povo em geral, mas são igualmente bem-conhecidas edescritas,

Todos esses fenômenos têm em comum com a revolução o fato de~ que foram concretizadosatravés da violência, e essa é a razão pela qual.···(-'élessão, com tanta freqüência, confundidos com ela, Mas a violência não

é mais adequada para de~~rever o fenômeno das revoluçõesdôqüêãmu=aança;sornente-OndeO~r~~n~-sen'tídode umnovo prJneí15'fO,3?nd.f'a viOl~Ii~J.~-=-f()f.~!m~_~.~Pél.E~~tuirumªJor.ma.de~gõveinQ-com·-plGJamente_difer~ntf!,pal'a dar origem à formação d.~...lI}JLQºy'º,Ç.9!:P.<?polí-ti~9.L()I1.9~..a Iibertação ·dã·~pressãõã1meje~···pClõ·~~nº.s,. a çonstituiçã~~alili_~sdade,._é..q\.!.e.·li()ªemõs'Tarar·aê"·revorução. E o fato é que, embora aHistória tenha semprec'Õllfiêddõ-'aqüéles 'que, como AIcebíades, deseja-vam o poder para si próprios, ou aqueles que, como Catilina, eram rerumnouarum cupidi, ávidos de coisas novas, oéspírito revolucionário dos últi-mos séculos, ou seja,. a ânsiadelibertare d.~o}~§~lJ1ir.Y:rP.ca.no.y~~[).oradaonde a liberdade possa liãbitar, é algo sem precedentes e sem paraleiõ errl'toda a História anterí'or.-'----------- .....-..· --_ ...._..- ..--- .....-.---. --'" --.--...---~...~-----------_._-

3Uma maneira de datar o nascimento de fato de tais fenômenos histó--:-----_ _--_ .

ricos gerais como as revoluções - ou de Estados-nações, de imperialismo. ou regime totalitário, e outros semelhantes -=- é, certamente, descobrir quan-

do a palavra que, a partir de então, permanece ligada ao fenômeno, ara-. rece pela primeira vez. Obviamente, cada nova manifestação entre os

homens necessita de uma nova expressão, seja um novo vocábulo cria-

20 DA REVOLUÇÃO

do para cobrir a nova experiência, seja o uso de uma antiga palavra, àqual é atribuído um significado inteiramente novo. Isso é duplamente ver-dadeiro na esfera política da vida, onde o discurso tem o domínio supremo,

Não é, portanto, um .interesse meramente acadêmico observar quea palavra revolução ainda está ausente onde nos mostramos bastante incli-nados a julgar que poderíamos encontrá-Ia, isto é, na historiografia e nateoria política do início da Renascença, na Itália. É particularmente sur-preendente que Maquiavel ainda empregue a mutatio rerum de Cícero, suamutazioni del stato, em suas descrições sobre a derrubada violenta dos go-vernantes e substituição de uma forma de governo por outra, na qual semostra tão apaixonadamente e, por assim dizer, prematuramente interes-sado. Pois o seu pensamento sobre esse problema dos mais antigos da teo-ria política não estava mais ligado à tradicional resposta, segundo a qualo. g~~ de_l;lE!._~ºJ].g~t;.va..à.demrt~ci.'l, <!-~~:w-..Q.ÇI.ªçiaJey..a"à.o.li-~gy"ia, ~.,9lÜ~m;fLl,Ú~.)ev.<1,;~;W{m,~çj}.üa,e .}j~~~X~E~a- ,~.S.X~9~.~,s,...s~~~,pos~i!?~i.qt!:ç!~§,.g.l:;lip_~~Et~Aini<:.~~~!!º..t.~.E!2LR1~..tfu;I.,sistematizadas depois porAr1stóteles, e ainda descritas por Bodin' quas!:;~em nenhuma mudança fun-damental. O principal interesse de Mãqulâvei:'com suas inúmeras mut;zioni, uanaeioni e alterazioni que abundam' tanto em sua obra ao ponto queseus intérpretes poderiam qualificar equivocadamente os seus ensinamen-tos de "uma teoria da mudança política", foi precisamente o imutável, 1"2j~.v~.i~~~~_~ ...i~~.!i~~ªy.~!;._~r.:r!-!e.§~!!!.()~_~..E.~<0~!ee-:2._~st<fv'e:.L..º_q~e rW'"qJQ91a tão importante para <I, história das re,:.0uç§es, .~~ qual foi um pre- .

~~~1~~p~~~0~~~~f:x:~:~!~~'~~~:~:~~~~g::b~~~i~~~~~a;:tttf~~~j·.~\aqui não é nem mesmoqueele já se mostre tão familiarizado com os ele- \,mentos mais marcantes elas revoluções modernas - com a conspiração Ie a luta de facções, com o incitamento do povo à violência, com os distúr- :bios e a derrocada das leis que acabarão por lançar num torvelinho todo !o corpo político, e, finalmente, com as oportunidades que as revoluções I

oferecem aos adventícios, aos homines nooi de Cícero, aos condottieri de Ma- /qui::el, que :m~rg~m"da~ camadas inferiores para o ~~pl~ndor do ~undo lpolítico, e da insignificância para urn poder ao qual primeiramente tinhamjj;

. ;~~aDdor~~~~~~s~~s~~~:~~-~~~~~~~~~J;~~~~to u~~~n~~~~rr~1t·"""." .p.'" "". . -, "'" '" .. , - - p - .. '." . '.. . "I /j

~ c~j~~Jeise.p_q§,t?la.gos. .de ação eram. indep~,nd{!!lte~,.?~.s.ensinarnentos d~I{ Igr.~Ja, .ern particular, e,em geral, dos padrões morais, transcendendo ali e~~~~_?C?~_.a.s~~p~~?s.hu~~g.o.,~.Foip·or essa razão que de irisistia ci'ile"as J

pessoas que ingressavam na política deviam, em primeiro lugar, aprender \"a não serem boas", isto é, a não agirem segundo os preceitos cristãos18 .

O que principalmente o distinguiu dos revolucionários foi que ele via suainstituição - a criação de uma nova Itália, de um Estado-nação, italiano,organizado segundo os modelos francês e espanhol - como uma rinooazio-ne, e renovação era, para ele, a única alierazione a salute, a única alteração

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Page 8: ARENDT, Hannah. O Significado de Revolução. in Da Revolução

benéfica que era capaz de conceber. Em outras palavras, o pathos especifi-camente revolucionário do absolutamentenovo, de ummíçio"qüe,3u~tjfi-cassê~coiiÜ~çarã:córitár'o-tempo a pârtíraOeverit~ revolucionário, era-lhe

<tofàlmenfé 'estranho. Noentanto, mesmo a esse respeito, elenão 'estavatão distanciado dos seus sucessores do século XVIII como pode parecer.Veremos mais adiante que as revoluções começararn como restauraçõesou renovações , e que o pathos reVoíuClonáriode~~i~íci6 inteiramenten~vonasceu somenteno C:,u!"so~opróprio evento. R'õbespierre teve mais de ummotivoparaasseverar, com razão, que "6 plano da Revolução Francesafoi esboçado amplamente nos livros [... ] de Maquiave1,,19; poisele pode-ria facilmente ter acrescentado: Nós também "amamos nosso país maisdo que a salvação da nossa alma,,2o. '

Na verdade, a maior tentação de ignorar a história da palavra e da-j:ar o fenômeno da revolução a partir da desordem das cidades-Estados ita-lianas, durante a Renascença, está nos escritos de Ma~~L Ele certa-mente não foi o pai da ciência política, ou da teoria política, mas é difícilnegar que se pode muito bem ver nele o Rai espiritucl."gª-EY9Iuç~0. Nãoapenas já podemos encontrar nele esse esforço consciente e apaixonado,no sentido de reavivar o espírito e as instituições da Antiguidade romana"

'que se tornou, a partir de então, tão característico do pensamento políticodo século XVIII;' ainda mais importante nesse contexto é sua notória in-sistência no papel da violência no campo da política, que nunca deixoude 'chocar os seus leitores, mas que também encontramos nas palavras eações dos homens da Revolução Francesa. Em ambos os casos, o elogio

,da violência se apresenta estranham ente em conflito com a professada ad-miração por tudo quanto era romano, dado que na República 'romana eraa autoridade, e não a violência, que regulava a conduta dos cidadãos. En-tretanto, embora essas semelhanças possam explicar a elevada considera-ção por Maquiaveí, nos séculos XVIII e XIX, elas não são suficientes pa-ra equilibrar as diferenças mais notáveis. O retorno revolucionário ao an-'tigo pensamento, político não objetivava, nem conseguiu fazer reviver aAntiguidade como tal; o que', no caso de Maquiavel, era apenas o aspecto

"político da cultura do Renascimento corno um' todo, cujas'ar-tes e letras suplantaram de longe todos' os avanços políticos das cidades-Estados italianas, estava inversamente, no caso dos revolucionários, bas-tante em desacordo com o espírito de sua época, que se afirmava, desdeo início da Idade Moderna e do aparecimento da ciência moderna, haverse distanciado de todas as realizações do passado, E não importa quantoos revolucionários possam admirar o esplendor de Roma, nenhurri delesteria se sentido tão à ';ontade na Antiguidade como Maquiavel; não te-riam podido escrever: "Ao cair da tarde, volto a casa e 'entro em meti ga-binete; à porta, dispo o vestuário do dia, coberto de lama e pó, e envergotrajes suntuosos e elegantes; e vestido com apuro, ingresso nas antigas cortesdos' homens antigos, onde, acolhido por eles com afeto, me nutro do ali-

30 DA :REVOLUÇÃO

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'ijF , , al nasci ,,21 Sal' Imento que e so meu, e para o qu nasci . e guem er. essas e outras

frases semelhantes, concordará de boa vontade com as revelações de estu-dos recentes que vêem, na Renascença, apenas a culminância de uma su-cessão de reflorescimentos da Antiguidade, que começou logo após as épocasrealmente obscuras, com a Renascença carolíngia, e terminou no séculoXVI. Pela mesma razão, .constatar-se-á que, politicamente, os incríveisdistúrbios nas cidades-Estados, nos séculos XV e XVI, foram um fim, enão um início: o fim das cidades-municípios medievais, com seu autogo-vemo e sua liberdade de vida política22. .-

E-Q(2~t!'9.J<;,?~,::,:i~s~s~,~p~i-ª:~de11a~qlJi,ªx~L§.~l?!.~.~_yi?l~nci<té méli~sugestiva. Foi a conseqüência direta da dupla perplexidade em que teori-camente se encontrava, e que, mais tarde, tornou-se a perplexidade bas-·tante prática com que se defrontaram os revolucionários. A perplexidadeconsistia na tarefa da fundação, 'no estabelecimento de um novo começoque, como tal, parecia exigir violência e violação, como se fosse uma re-petição do antigo crime lendário (Rôrnulo matou Remo, Caim_m;~to.pAbel) ,dos prim6rdios da História. Além disso, essa tarefa de<tiÚJ,,ºªçãó estava; j,/

ligada à tarefa de fazer as leis, de dar vida a uma nova autoridade e impô-Ia aos homens; autoridade essa, entretanto, que tinha de ser concebidade tal maneira que viesse a substituir adequadamente a antiga autoridadeabsoluta, porque outorgada por Deus, extinguindo, por conseguinte, umaordem terrena cuja confirmação mais alta foram os mandamentos de umDeus onipotente, e cuja fonteúltima de legitimidade fora a crença de umaencarnação de Deus sobre a terra. Por essa razão, Maquiavel, inimigo exa-cerbado de considerações religiosas em assuntos políticos, foi levado a pe-dir auxílio divino, e mesmo inspiração, para os legisladores - exatamentecomo os "iluminados" do século XVIII, John Adams e Robespierre, porexemplo. Esse "recurso a Deus", é claro, só se fazia necessário no casode "leis extraordinárias", ou seja, leis que dessem origem à fundação deuma nova comunidade. Veremos, mais tarde, que essa ~!~~!lla~E~~~ij:arefa d~!<::~<:>1.~s.~~_=_,<::~,on~!:ªL!Jm.nOy,o,,ªb,s_ºt~to.:Rara&.ubstltJÜLQ...abso-!-':l,~~1!?J).9,!:l<::J:giyi.11º__= é~-ºs.9~!!.yel,.p.ois.o po der, ~'?!?_.s:.Q...~gk~.9,-ª-ª-,pll!r1!!i-(J~~<::humana, nunca pode atingir a onipotência, e leis que se baseiam nopoder humàiiO'nunca podem serabsolutas, Porúúitü;o"c'ãpelõ' aos-altos

· _..•· ·.'·,,·.'v. . . .. . r ..Céus", como diria Locke, não foi inspirado por nenhum sentimento de-;religiosidade, mas sim ditado exclusivamente pelo seu desejo de "fugir aessa dificuldade,,23; da mesma forma, sua insistência sobre o papel da vio-lência na política era motivada nãotanto por sua assim denominada visãorealística da natureza humana, mas pela vã esperança de que pudesse en-contrar alguma qualidade em certos homens que pudesse se igualar às qua-lidades que associamos ao divino. I

' Contudo, ,tudo isso foram apenas premonições, pois as idéias de Ma-quiavel ultrapassaram de longe toda a efetiva experiência de sua época.O fato é que, não importa o quanto possamos estar inclinados a interpre- I

/ (I O SIGNIFICADO DE REVOLUÇÃO 31/

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Page 9: ARENDT, Hannah. O Significado de Revolução. in Da Revolução

tar nossas próprias experiências à luz dos acontecimentos deflagrados pe-las lutas civis que assolaram as cidades-Estados italianas, não foram essastão radicais que viessem a sugerir, aos que delas participaram ou foramtestemunhas, a necessidade de uma nova palavra, ou a reinterpretação deuma mais antiga. (A nova palavra que Maquiavel introduziu na teoriapolítica e que tinha sido usada mesmo antes dele, foi a palavra Estado,/0 stati4. A despeito de seus constantes apelos à glória de Roma e reitera-das referências à história romana, sentiu claramente que uma Itália unifi-cada deveria constituir um corpo político tão diferente das cidades-Estadosantigas ou quinhentistas que impunha fosse-lhe atribuído um novo nome.)

As palavras que naturalmente sempre ocorrem são rebelião e revolta,cujos significados foram determinados e mesmo definidos desde o final daIdade Média. Essas palavras, porém, nunca indicaram libertação, comoa entendem as revoluções, e muito menos traduziram o estabelecimentode uma nova liberdade. Pois libertação, no sentido revolucionário, veioa ~~@iflç?:I_gl.l~~º_<:l<?"s_~guelesqiie-~~y~~~sempre vivido ~~~_bscu.!J.9~ª~,

'sujeitos a qualquer que foss-eo-poaer, não apenas no presente, m~~._;:tt~a-v"éi de toda ã Hístônã;-nãéisiffiplesmêntecomõmalv{dlios:-l1iai:=~~~~~!!1_~ ..bras davastã màiória -dahumanld~ª~:;:9.iF.>Qg!~i~---º~]!.~ml[de~ dey.~riamt"~cf~~~er-~~t=s~_~~féi~~a~~~~~~~:~iªi!'Qs~$.lJEr.:':.l.!!.qUj-ª:_!.~~:..Se, à guisa decomparação, quiséssemos unaginár um evento dessa natureza em termos

f\ de condições antigas, seria como se não o povo de Roma ou Atenas, oi populus ou o demos, as classes mais baixas da cidadania, mas os escravos. e os estrangeiros residentes, que compunham a maioria da população sem\ jamais fazer parte do povo, tivessem se sublevado e exigido igualdade dti,;.F-.direitos. Isso, como_sabe!!l0sLjamais aco~u. A própria idéia de igual-l

.;:' dade, como nós a entendemos, isto é, que todas as pessoa~ nascem iguais, 1\! pelo simples fato de haverem nascido, e que a igualdade é um direito ina-II\ to, era totalmente desconhecida antes da Idade Moderna. ~- É verdade que a teoria medieval e pós-medieval já conhecia a rebe-

lião legítima, a sublevação contra a autoridade constituída, o franco desa-fio e a desobediência. No entanto, o alvo dessas rebeliões não era umacontestação da autoridade e da ordem estabelecida das coisas, como tais;era sempre uma questão de mudar a pessoa que acontecia estar investidade autoridade, fosse a troca de um usurpador por um monarca legítimo,fosse a substituição de um tirano que tivesse abusado do poder por umgovernante legal. Por conseguinte, ~]Je às_p_~~ío.s.s.e re~oJ1h_eçid"oo direitQ. dedecidir qllem não deveria governá-Ias, certamente não o ti-'nF~J~ai:.~~~s_ço.lher q~.~~~ti.~~~ii:'·~·-;-uit~menõsJãIDillsnàuve"r-egistro[de--que as pessoas tivessem o direito de se governar a si próprias; ou deindicar aquelas de suas próprias fileiras para os negócios do governo. On-de realmente aconteceu que homens das camadas sociais inferiores se ele-vassem para o esplendor do poder público, como no caso dos condottieri dascidades-Estados italianas, seu ingresso na esfera pública e no poder foi

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32 DA REVOLUÇÃO

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devido a qualidades pelas quais se distinguiam do povo, por uma virlu queera tanto mais louvada e admirada por não ser reconhecida por origemsocial e nascimento. Entre os direitos, os antigos privilégios e liberdadesdo povo, manifestamente não se encontrava o direito de participar dogo-vemo. E esse direito de autogoverno não está ainda claramente definidono famoso direito de representação, decorrente da taxação. Para poder go-vernar, era preciso que alguém tivesse nascido com esse direito, um ho-mem livre, na Antiguidade, e, na Europa feudal, um membro da nobreza;e não obstante houvesse bastantes palavras na linguagem política pré-moderna para descrever a rebelião de súditos contra um governante, nãohavia nenhuma que descrevesse uma mudança tão radical que os própriossúditos se tornassem governantes.

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4' \~\M) vo.cPPQue o fenômeno da revolução sejaum fato ímpa; na História pré-

. moderna não é, de forma alguma, Uma coisa natural. E certo que muitaspessoas concordariam que a.avidezpor coisas novas, juntllm~g~ç:_cO.lJLi_·COJl-v...icçã<kde...qJJ.e.•'l-JI2Q.y,ação.,.comotal, é algo desejável, são característi- ..cas rnarcantesdomundoem qu~yiveIIlI:J~L.e_equiparar essa concepção dasociedade moderna com um espírito revolucionário é, de fatoç rnuito C():.

mum.i.Entretanto, se entendermos por espírito revolucionário o espírito-que realmente brotou da- revolução, então esse anseio moderno por inova-ção a qualquer preço deve ser cuidadosamente diferenciado daquele. Psi-cologicamente falando, a experiência de fundação, combinada com aconvicção de que um novo drama está na iminência de se desenrolar naHistória, tornará os homens "conservadores" e não "revolucionários",ávidos em preservar o que foi realizado e assegurar sua estabilidade, aoinvés de se mostrarem receptivos às coisas novas, aosnovos avanços e no-vas idéias. Ademais, do ponto de vista histórico, os h0l'!lerl.~m:i.I.!!.l?irasrevol1,lçpes -::-jsto _~rii§uel~_gg~ nã_~apenãSTizera:m:umã revolução, masintroduziram as rev~h!çº~ª_I!º_ç~náriO-da-polítiea--n-ãG--estav.arn.ahsolu:

-tamente=-anslõsos=p:-6-r~~~ª_s.nºy'ª~,-p.()~.ll~~_~-º_~~_p',--ti.f!._saeclo~!!!..,~é_essa-áyersão-ã'inovaç6es-que ainda ecoa na própria palavrarevo[üção, um ter-mú-rerãtivilnienteaiú:igõ-que·só ientàmen~(!ªºg~iiig~~~y.=!iQ~§slgllifka~d-õ-:--Bã-vádãa-e:--o·p"rópnõ-üsodessã-páIávra indica muito clarnmenteaiâliãde expectativa e propensão por parte dos protagonistas, que não es- -tavarn mais preparados para alguma coisa sem precedentes do que os.seusespectadores contemporâneos. O ponto a destacar é que ~orr:.A~athos_de uIll";:t_.I!º.Y~..(!;:'~I_"q:I1.!<~.nçQn.!r-'~I.:mQÜ1ªJ~qI~id~:t=énLcondlçõ.e.s__quase.idên-

-ficas: e com infindáveis variações, pelos agentes principais da~.R~volu-çoes-Alli~ilçãna_e:Fra-íiçe~~;·_sÓ__~elO.ª_i9n_ª~.d~põis·qü-;;:dieiàrãm,-mmtõco-rlg.:a.:~suavontad(!, a umponto semretorno.....---~_.- ' - .. '

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o SIGNIFICADO DE RfjVOLUÇÁO 33

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Page 10: ARENDT, Hannah. O Significado de Revolução. in Da Revolução

A palavra reuoluçdo foi originalmente um termo astronômico, que cres-ceu em importâncià nas ciências naturais com o De reooluuonibus orbium coe-

, lestium de Copêrnicoé". Nesse emprego científico, o vocábulo reteve seupreciso significado latino, designando .1?}:n-º'lÜJ,:tl:;n.!()_regl:l.la..r:,..sistemáticoecíc;!i~Q diiê.~~trelf:l:s.,o qual, visto que todos sabiam que-não depéildia dainfluência do homem e que era, portanto, irresistivel, não era certamente

l,' caracterizado nem pela novidade, nem pela violência. Ao contrário, a pa-, lavra indica claramente uma recorrência, UIn..ITtQYÍJ:nep~JLc(clico;é a per-

feita tradução latina do õ.uaKúKÀ.fficnç de Políbio, um termo que tambémteve origem na astronomia e foi usado metaforicamente no campo da po-lítica. Se era usado nos assuntos humanos sobre a terra, só poderia signifi-car que as poucas formas conhecidas de governo giram entre os mortaisem eterna recorrência, e com a mesma força irresistivel que faz com que

',as estrelas sigam suas trajetórias preestabelecidas no espaço. Nada pode-i ria estar mais distanciado do significado original da palavra revolução do

, "que a idéia que se apoderou obsessivamente de todos os revolucionários,J isto é, que eles são agentes num processo que resulta no fim definitivo deI uma velha ordem,' e provoca o nascimento de um novo mundo., Se o caso das revoluções modernas fosse tão nítido como uma defini-

ção didática, a escolha da palavra revolução seria ainda mais intrigante doque realmente é. Quando, de início, a palavra desceu dos céus e foi intro-duzida para descrever o que acontecia na terra entre os mortais, apareceuclaramente corno uma metáfora, transportando a noção de um movimen-to eterno, irresistivel e sempre recorrente às oscilações aleatórias, aos al-tos e baixos do destino humano, que haviam sido comparados ao nascere ao pôr do sol, da lua e das estrelas, desde tempos imemoriais~NQ..Aé,culo

_', XVII;, onde pela primei ra vez encontramosapalavraccmo te:r:!l1_q,_p-QlJ!j-:~~cQ~:oconteúdo metafórico estava aindãmaÍs próximo do significado origi-

nal da palavra, pois era usada em relação a um movimento de circulaçãoe de retorno a algum ponto preestabelecido, e, conseqüentemente, de re-torno a urna ordem predeterminada. J~QJ:.tantn,_a..palavra.foijnjcialmenteusada.não quando aquilo que denominamos revolução rebentou na Ingla-terra, e Cromwell assumiu a primeira 'ditadura revolucionária, mas, aocontráriovem 1660, ~p.ó.s..iJ.,Qçr!::l!:~acladoParlª,mento, e por ocasjão darestauração da-mon·ã~quia.)~Ieç;isarriente_com o mesmo sentido,·~~paJ.avra

.~Loi usada ~IJl1688, quando osStuarts foram expulsos e o-poder real foi_trânSferido para.Guilherme e Maria26. A Revolução Gloriosa, o aconteci-, ffirntü-em que, muito paradoxalmente, o termo encontrou guarida defini-

tiva nalinguagem histórica e política, não foi entendida, de forma alguma,como uma revolução, mas como uma reintegração do poder monárquico .:à SUa antiga glória e honradez.

O fato de que a palavra revolução significou originalmente restaura-! ção , algo, portanto, que para nós representa exatamente o oposto, não é

uma mera excentricidade semântica. ~§'Le.':.o)yç§.e:,~~!~?_~~ÇllJºS.XVII e

34 DA REVOLUÇÃO

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XVIII que, para nós, parecem mostrar todos os indícios de um novo espí-r,it9' ó~_e~pírito'éhiIÇlide 1vf0de~n.a,. pretendera!n ser apenªs~~:~,~~ª-»HǪ~S.E verdade que as guerras civis da Inglaterra prenunciaram um grande nú-mero de tendências que viemos a associar ao que foi essencialmente novonas revoluções do século XVIII: o aparecimento dos Igualitários e a for-mação de um partido composto exclusivamente por pessoas das camadasinferiores, cujo radicalismo entrou em conflito com os líderes da revolu-ção, indicam claramente o curso da Revolução Francesa; ao passo que aexigência de uma constituição escrita como "fundamento de um governojusto", reivindicada pelos Igualitários e, de certa forma, atendida quandoCromwell introduziu um "Instrumento de Governo" para úlstitu ir o Pro-tetorado, antecipa uma das mais importantes realizações, se não a maior,da Revolução Americana, Contudo, o fato é que aquela efêmera vitóriada primeira revolução moderna foi oficialmente interpretada como uma'restauração, ou,' mais precisamente, corno' I a liberdade restaurada pelasbênçãos de Deus", como está gravado no grande brasão de 1651.

Em nosso contexto, é ainda mais importante observar o que aconte-ceu mais de um século depois.' Pois não nos ocupamos aqui com a história

'dasrevoiuções como tal, com seu passado, suas origens, ou com a trajetó-ria do seu desenvolvimento. Se quisermos saber o que é a revolução -suas implicações gerais para o homem como um ser político, sua significa-ção política para o inundo em que vivemos, seu papel na história moder-na - devemos nos voltar para aqueles momentos históricos em que a re-voluçãoapan:ceu em sua,pl~ituQ.e, assumiu uma espécie de papel defini-tivo, e começou a lançar oS"!ieus encantos na mente dos homens, indepen-dentemente dos abusos, crueldades e privações de liberdade que possamtê-los levado à rebelião.

Em outras palavras, devemos nos voltar para as Revoluções France-sa' eJ\meÚçGlg.a"J':_deYemo;;le~ar em-conta qué.àinbas foi.arii-,prõfagõiiíiª~

,d'~~,em seus estágios ini~~a.:is,>,porhomens.qll('!.estav<l_f!1!iEmemente con-'-venéiClosdé-que naofari~ml outra coisa senão restaurar uma à,'üií"gaorClem.de:coisa~~q~~}~f.:aj?çrtÜrl:íacra- e' v~õh~da pelo 4t:~p~ti~~~.4;;:~S;iiªrçis:ª~~ _sülutÓs'ou por al:>l!sosdo gove~~o colonial. .Eles alegavam, com toda sin-ceridade, que desejavam o retomo dos velhos tempos em qUe-as-êOisaserain-como»ae-Vlam---se'r~--'--"-' -,--,------ .. ,'- -. ,- 00 __ "_' ------·----i-. --. Isso-d~~~rigem a muita confusão, especialmente no que diz respeito'ª_.!3:.::Y2hiç.ão-Airiericana, que nª()_.':!~_~~!,<?-u-êe]J~p.r:ºPú.Qll..fgh.o_~,-~_~I!!~~,\.:>

,p~rta.~!g,.:..9'§homem_que.~niciar:a!I.lª_~):!,!_s_t!;!_l!F"!,Ç,.ªQ'_'loraínos mesmos qU~..c._º@.~Çaraw,~!;;-.ter:minar:.Çlm-Cl.x,e'{9LlI,ç-ªPL~_!=h~g~ª,_f!.1~~§,!,~,o ~-~ublr' ãQ..Q?-

cte.ce_ao.gQY\::WQ.Jlanova-ordem_de ..coisaaO que julgavam que fosse um"restáuração", o restabelecimento de suas antigas prerrogativas, trans-formou-se numa revolução, e suas idéias e teorias sobre a Constituiçãobritânica, os' direitos dos cidadãos ingleses e as formas de governo colo-nial, desembocaram numa declaração. de independência. Mas o movi-

o SIGNIFICADO DE REVOLUÇÃO 35

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Page 11: ARENDT, Hannah. O Significado de Revolução. in Da Revolução

}11_e.!1:to..'l~.é!_1.C:,!:()U.ª-I~.Y91yçª-º-!>ó.J()L!:.<:yg)!tçiQU_ário..por. inadY_exJ~n_c::iél,.e Ben-jaminFranklin, que tinha mais informações precisas sobre as colônias doque qualquer outro homem, pôde escrever mais tarde, com toda franque-za: "Nunca ouvi, em qualquer conversa com qualquer pessoa, ébria ousóbria, a menorexpressão de um desejo de separação, ou qualquer alusãod 1· d . Amé ,,27 S he que ta coisa pu esse ser vantajosa para a erica . e esses omensforam, de fato, "conservadores" ou "revolucionários", é, na verdade, im-possível de decidir, se se empregarem essas palavras fora do seu contextohistórico, como termos genéricos, esquecendo que conservadorismo, co-mo credo político e como uma ideologia, deve sua existência a uma reaçãoà Revolução Francesa, e é significativo apenas no que diz respeito à His-tória dos séculos XIX e XX. E a mesma observação, ainda que provavel-mente menos inequívoca, pode ser feita em relação à Revolução France-sa; aqui, também, nas palavras de Tocqueville, "poder-se-iaacreditar quea meta da futura revolução não era a derrubada do antigo regime, massua restauração,,28. Mesmo quando, no transcurso de ambas as revolu-ções, os seus agentes tomaram consciência da impossibilidade de restau-ração e da necessidade de se aventurarem numa empresa inteiramente nova,e quando, portanto, a própria palavra revolução já havia adquirido seu no- !

vo significado, Thomas Paine ainda pôde, em consonância com o espíritode uma época pretérita, propor, c~m toda seriedade, chamar as Revolu-- A' F d " I - ,,19 E . -çoes mencana e rancesa e contra-revo uçoes .' ssa propoSlçao,

na verdade estranha por provir da boca de um dos homens mais "revolu- ,<' cionários" de sua época, mostra, laconicamente, como a idéia de retorno, ,!

de restauração, era preciosa para as mentes e os corações dos revolucioná-.,; rios. Paine não queria mais do que recuperar o antigo significado da pala- li

vra revolução, e expressou sua firme convicção de que os acontecimentos·da época haviam feito com que os homens voltassem a "um período ini-cial" em que estiveram de posse de direitos e prerrogativas de que foramdespojados pela tirania e pela conquista. E esse "período inicial" não é,.absolutamente, o hipotético estado pré-histórico de Natureza, como o sé-culo XVII o entendia, porém um período preciso da Hist6ria, ainda quenão-definido. -

Paine, devemos lembrar, usou o termo contra-revolução em respostaà enérgica defesa de Burke em favor dos direitos dos ingleses, garantidospor antiqüíssimos costumes e pela História, contra a idéia mais moderna

_dos direitos do homem. Mas o ponto é que Paine, não menos do que Bur-ke, sentia que a inovação absoluta seria um argume!lto contra e não a fa-vor da autenticidade e legitimidade de tais direitos. E desnecessário acres-centar que, falando historicamente, Burke estava correto e Paine, errado.Nãb há nenhum período na História em que a Declaração dos Direitosdo Homem pudesse haver retroagido. Os séculos precedentes podiam terreconhecido que os homens fossem iguais no que tange a Deus ou aos deu-ses, já que esse reconhecimento não é cristão, mas romano na origem;

36 DA REVOLUÇÃO

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os escravos romanos podiam ser membros perfeitamente integrados às cor-porações religiosas, e, dentro dos limites da lei sagrada, seu status legal erao mesmo dos homens livres3o, Mas direitos políticos inalienáveis, comunsa todos os homens em virtude do nascimento, teriam parecido, a todasas épocas anteriores à nossa; o mesmo que pareceu a Burke .::-.uma con-tradição em termos. E é interessante observar que a palavra latina homo,equivalente a "homem", significava originalmente alguém que não eranada além de um homem, uma pessoa sem direitos e, por conseguinte,um escravo.

Para o nosso presente propósito, e especialmente em função do nos-f so esforço maior para compreendermos a mais fugidia e, contudo, a mais: impressionante faceta das revoluções modernas, ou seja, o espírito revolu-:1 cionário, é relevante lembrar que a idéia geral de inovação e novidade,

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como tal" existia an.tes dás revoluções, e, não obstante, estava basicamen-te ausente de seus primórdios. Em relação a esse e a outros aspectos seriatentador argumentar que os revolucionários eram antiquados em termosde sua própria época, antiquados certamente quando comparados aos ho-mens de ciência e aos filósofos do século XVII, os quais, como Galileu,enfatizavam a "absoluta novidade" de suas descobertas, ou, como Hob-bes, afirmavam que a filosofia política não era mais antiga do que sua obraDe Ciue, ou, como Descartes) insistiam em que nenhum filósofo tivera su-cesso antes com a filosofia. E claro que reflexões sobre o "novo continen-te", que dera origem a um "novo homem", tais comoas que citei, deCrêvecoeur e John Adams, e que podiam ser encontradas em inúmerosoutros e menos destacados escritores, eram bastante comuns. Mas, em con-traposição aos anúncios de cientistas e filósofos, o homem novo, da mes-ma forma que a terra nova, era tido como sendo uma dádiva da Providên-cia,:e não um produto dos homens. Em outras palavras, o estranho palhasde riovidade.itão característico da Idade Moderna, necessitou de quase du-zentos anos para abandonar a relativa reclusão do pensamento filosóficoe científico, e ingressar no mundo da política. (Nas palavras de Robes-pierre: "Tout a changé dans I'ordre physique; et tout doit changer dans l 'ordre mo-ral et politique.") Mas ao atingir essa esfera, na qual os acontecimentos di-zem respeito a muitos, e não a poucos, adquiriu ele uma expressão nãoapenas mais radical, corno também tornou-se dotado de uma realidade pe-culiar apenas ao mundo político. ~gi apena~.P-2-ª_~Ç.C>Er.~~ª<l:~_r.~~~~ç_§~sdo século XVI~t9~_~_oshomenscomeçaram __~_~?El1_a.r:_<:<?E~r:;i~~::i_<l.E~-.9~eumnovo prinCípio podia ser um fenômenopolítico, podia ser a conseqüênciadaqúilo·c[u-e·oshõmens-tí~h~;;;-féÍto-e"qu~:-~~~~~i~~-t~~~nte,se -dlsptise-:rafifa-fazer .-Aparfircreerlfãõ-,--um-·' 'ilõvô -conúnente-j-;-e ,-rilô:V-o}iomem-"queCleIe surgisse não mais seriam necessários para instilar a esperança deuma nova ordem de coisas. A nouus ordo saeclorum não era mais uma bên-ção advinda do "grande plano e desígnio da Providência", e a novidadenão era mais a vaidosa e simultaneamente assustadora, posse de alguns.

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o SIGNIFICADO DE REVOLUçAo 37

Page 12: ARENDT, Hannah. O Significado de Revolução. in Da Revolução

Quando a inovação alcançou o mercado público, tornou-se o início de uma, nova História, desencadeada - ainda que involuntariamente - por ho- !

mens de ação, a ser encenada posteriormente e ampliada e difundida pelasua posteridade.

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~'Enquanto os elementos de novidade, começo e violência, todos inti-.mamente associados ao nosso conceito derevolução, estão claramente au-sentes do significado original da palavra, bem como do seu primeiro em-prego metafórico na linguagem política, existe uma outra conotação dotermo astronômico que já mencionei brevemente, e que ainda permanecemuito forte em nosso próprio uso da palavra. Refiro-me à noção de irre-sistibilidade, o fato ele que o movimento giratório das estrelas segue umatrajetória predeterminada, e é independente de qualquer influência do poder

I~li.umano. Sabemos, ou acreditamos saber, a data exata em que a palavrarevolução foi usada pela primeira vez com uma ênfase exclusiva na irresisti-bilidade, e sem qualquer conotação de um movimento giratório recorren-te; e tão importante se apresenta essa ênfase ao nosso entendimento derevolução, que se tornou uma prática comum datar o novo significado po-lítico do antigo termo astronômico a partir do momento desse novo uso.

A data foi a noite do 14 de julho de 1789, em Paris, quando LuísXVI recebeu do duque de La Rochefoucauld-Liancourt a notícia da que-da da Bastilha, da libertação de uns poucos prisioneiros e da defecção dastropas reais frente a um ataque popular. O famoso diálogo que se travouentre o rei e seu mensageiro é muito lacônico e revelador. O rei, segundoconsta, exclamou: "C'est une réoolte'"; e Liancourt corrigiu-o: "Non, 'Sire,

W'est une révolution". Aqui ouvimos ainda a palavra - e politicamente pelatóltima vez - no sentido da antiga metáfora que transfere, do céu para_a terra; o seu significado; mas aqui, talvez pela primeira vez, a ênfas~deslocou-se inteiramente do deterrninismo de um movimento giratório cí-clico para a sua irresistibilidade31. O movimento ainda é visto através daimagem dos movimentos das estrelas, mas o que é enfatizado agora é que~stá além do poder humano detê-lo, e, como tal, é uma lei em si mesma.O rei, ao declarar que a investida contra a Bastilha era uma revolta, rea-firmou o seu poder e os vários meios à sua disposição para fazer face àconspiração e ao desafio à autoridade; Liancourt replicou que o que tinhaacontecido era irrevogável e além do poder de um rei. O que Liancourtviu - e o que devemos ver e entender, ouvindo esse estranho diálogo -que julgou ser, e sabemos que com razão, .irresistível e irrevogável?

A resposta, para começar, parece simples. Por trás dessas palavras,podemos ainda ver e ouvir a multidão em marcha, o seu avanço avassala-

38 DA REVOLUÇÃO

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dor pelas ruas de Paris, que ainda era, nessa época, não apenas a capital.da França, mas de todo o mundo civilizado - a sublevação da populaçadas grandes cidades, inextricavelmente mesclada ao levante do povo pelaliberdade, ambos irresistíveis pela pura força do seunúmero. E essa mul-tidão, aparecendopelaprimeira vez em plena 11lZ do dia, era na verdadea multidão dos pobres e dos oprimidos, que em todos os séculos passadostinham estado ocultos na obscuridade e na degradação. O que a partir de-l"então tornou-se irrevogável, e que os protagonistas e espectadores da re-volução imediatamente reconheceram como tal, foi que o domínio públi-!co - reservado, até onde a memória podia alcançar, àqueles que eram li-vres, ou seja, livres de todas as preocupações relacionadas com as necessi-dades da "ida, com as necessidades físicas - fora forçado a abrir seu es-paço e ~ua luz a :ssa imensa ~aior~a dos que não eram livres, por estarem jpresos as necessidades do dia-a-dia. J

~ A noção de um movimento irresistível, que o século XIX logo deve- ,ria conceituar na idéia de necessidade histórica, ecoa, do princípio ao fim, 'nas páginas da Revolução Francesa. De repente, um conjunto de imagens_"inteiramente novas começa a se agrupar em torno da antiga metáfora, eum vocabulário totalmente novo é introduzido na linguagem política. Quan-do pensamos em revolução, ainda pensamos quase automaticamente emtermos dessas imagens, nascidas naqueles' anos - em termos da torrent ré-volutionnaire, de Desmoulin, em cujas ondas impetuosas' 'os participantesda revolução foram impelidos e arrebatados, até que o redemoinho os su-gasse da superfície, e todos pereceram, juntamente com seus inimigos, osagentes da contra-revolução. Pois a poderosa corrente da revolução, naspalavras de Robespierre, foi constantemente impulsionada pelos" crimesda tirania", de um lado, e, de outro, pelo "progresso da liberdade", osquaisinevitavelmente se defrontavam, de tal forma que movimento e con- .'tramovimento nem se equilibravam nem se restringiam ou prendiam umao outro, mas, de uma forma misteriosa, pareciam confluir numa torren-te ,de' 'violência progressiva", ~recipitando-se na mesma' direção com umaimpetuosidade cada vez maior 2. Esta é a majestosa" torrente de lava darenovação, que nada poupa e que ninguém pode conter", como GeorgForster testemunhou em 179333; e o espetáculo submetido ao signo de Sa-turno: "A revolução devorando os seus próprios f.tlhos", como se expres-sou Vergniaud, o grande orador da Gironda. É a "tempestade revolucio-nária" que colocou em marcha a revolução, a tempête réoolutumnaire de Ro-bespierre e sua marche de Ia Révolution, aquele poderoso turbilhão que .var- .,reu ou fez submergir o inesquecível e nunca inteiramente esquecido co-meço, a afirmação da "grandeza do homem contra a pequenez dos gran-des", como salientou Robespierre'l", ou "a defesa da honra da raça hu-

" al d H il 35 P' . L' •mana ,nas p avras e am ton . arecia que uma torça maior queo homem interferira quando os homens começaram a afirmar sua grande-za e defender a sua honra.' '

o SIGNlFICADO DE REVOLUçio 39II

Page 13: ARENDT, Hannah. O Significado de Revolução. in Da Revolução

Nas décadas seguintes à Revolução Francesa, essa associação de umapoderosa corrente subterrânea, que arrastava os homens inicialmente pa-ra a superfície de feitos gloriosos, para em seguida subrnergi-Ios no perigoe na infâmia, havia de se tornar predominante. As diferentes metáforasatravés das quais a revolução era vista, não como obra do homem, mascomo um processo irresistível, as metáforas da caudal, torrente ou corren-teza, ainda foram forjadas pelos próprios participantes, os quais, 'ÍJOrmais .,embriagados que estivessem com O vinho da liberdade, no abstrato, posi-tivamente não mais acreditavam que estivessem agindo livremente. E -se, por um instante, refletirmos desapaixonadamente - como poderiameles ter acreditado que fossem, ou jamais tivessem sido" os autores de seuspr6prios atos? Que outra coisa, que não a tormenta enfurecida dos acon-tecimentos revolucionários, poderia tê-Ios transformado e a suas convic-ções mais profundas no espaço de poucos anos? Não tinham sido todoseles, os monarquistas de 1789; que, em 1793, foram levados, não apenasa executar um determinado rei (que podia ou não ter sido um traidor),mas a denunciar a própria realeza como "um crime eterno" (Saint-]ust)?Não tinham sido, todos eles, os ardentes defensores dos direitos da pro-priedade privada, que, nas leis de Ventôse, em 1794, proclamaram o con-fisco não apenas das propriedades da Igreja e dos émigrés, mas de todosos "suspeitos", para que fossem entregues aos "desafortunados"? Nãotinham sido eles os instrumentos da formulação de uma constituição, cujofundamento básico era a descentralização radical, apenas para descartá-Iacomo algo absolutamente sem valor, e instalar, em seu lugar, um governorevolucionário através de comitês que eram mais centralizados do que qual-quer coisa que o Ancien Régime jamais conhecera ou ousara pôr em práti-ca? Não estavam travando e mesmo ganhando uma guerra que jamais ha-viam desejado, e que jamais haviam acreditado que pudessem ganhar? Oque poderia restar no final, além do conhecimento de que, de alguma for-ma, eram possuidores mesmo no início, ou seja (nas palavras de Robes-pierre, escrevendo ao seu irmão, 1789), que "a atual Revolução havia sus-citado, em poucos dias, acontecimentos mais grandiosos do que toda a his-tória anterior da humanidade"? E, no fim, somos tentados a pensar queisso deveria ter bastado.

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I' Desde a Revolução Francesa, tem sido comum interpretar qualquerlevante violento, seja ele revolucionário ou contra-revolucionário, em ter-

\mos ele uma continuação do movimento iniciado originalmente em 1789,

J como se os tempos de calma e restauração fossem somente as pausas emv que a corrente imergiu no subsolo para acumular forças e irromper nova-

mente na superfície - em 1830-,_~m 183~,eml11.±fL.Jilll-~..lJ.! __~871,para mencionar apenas as cf~tas mais importantes do século XIX. De""Ca':"'"da vez, os adeptos e opositores dessas revoluções entenderam os eventoscomo conseqüências imediatas de 1789 ..E se for verd~ como disse ~!.EX,que a Revolução Francesa foi encenada com roupagens romanas, é igual-

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10 DA REVOLUÇ}\O

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'mente verdade que todas as revoluções seguintes até, e iD:<;:IY.siY{!,-'lJ~,evo-luçaoª-é-b~.l~§!~~Iq-i~;m-õD.~it.tª.dªs~§~ggq,dº,_Ê-_!3_,~~gr.-ª~_f!__~~~Igº~g!:l~_~si~eles-enrolaram do 14 de julho ao 9 de Terrnidor e ao 18 de ):~,Egmªriº.:-datas·queficar-ãm-gr-ãV:ii:"ª~~]J(ºjliiido~Jiã.~m~m6iíi~çtº-R9Y..c:>_Jr~~_ê.s._q~c::,..airiaaIioje~-toac;s-imediatamente as identificam com a queda da Bastilha,á-mõrte-dc--Robesplerre -e-~Cãscensaõd~_~~p<>1~~913_~~~~~~!~:N~o .foi nanossá epõcã;'"""riúfiriios-meãaos"'d.üséculo XIX que a expressão "revoluçãopermanente", ou, ainda mais sugestivamente, révolution en. permanence, foicriada (por Proudhon), e, com ela, a idéia de que "não houve nunca vá-. l-h' I - ,. ",36nas revo uçoes, mas qu~ a apenas uma revo uçao, unica e perpetua .

Se o novq conteúdo metafórico da palavra revolução derivou-se dire-tamente das experiências daqueles que primeiro fizeram e, em seguida,impuseram a revolução na França, é óbvio que o seu sentido pareceu ain-da mais plausível aos que, de fora, observavam o seu transcurso, comose fosse um espetáculo. O que apareceu com mais nitidez nesse espetáculofoi que nenhum dos participantes podia controlar o curso dos aconteci-mentos, e que esse curso tomou uma direção que pouco ou nada tinhaa ver com os objetivos e metas intencionais dos homens que, pelo contrá-rio, se viam obrigados a submeter sua vontade e objetivos à força anôni-ma da revolução, se é que queriam realmente sobreviver. Isso pode nosparecer bastante trivial hoje, e provavelmente achamos difícil cornpreen-"der que nada, senão banalidades, possa ter-se originado daí. Contudo, pre-cisamos apenas nos lembrar dos rumos da Revolução Americana, onde :aconteceu exatamente o oposto, e recordar o quanto era forte o sentimen-to de que o homem é senhor do seu destino, que impregnava todos os seusatores, pelo menos no que diz respeito ao governo político, para entendero impacto que o espetáculo da impotência do homem em face do cursode sua própria ação deve ter tido. O conhecido choque de desilusão, sofri-do pela geração que viveu na Europa durante o transcurso dos eventosfatais que vão de 1789 _até a restauração dos Bourbons, transformou-sequase imediatamente num sentimento de terror reverente e de admiraçãopelo poder da pr6pria História. Onde antes, isto é, nos dias felizes do Ilu-minismo, apenas o poder despótico do monarca parecia se interpor entreo homem e sua liberdade de agir, surgiu de repente uma força muito maispoderosa que compelia os homens à sua vontade, e da qual não havia li-bertação possível, revolta ou fuga, a força da História e da necessidadehistórica.

Teoricamente, a conseqüência de maior alcance da Revolução Franjcesa foi o nascimento do moderno conceito de História, na filosofia de Hegel.A idéia verdadeiramente revolucionária ~~ Hegel_[Qi_-ª de_9...~_~E._~:r:!!igºÃOsoTutõ'dos fllósofôsrevéfãià-se no domínio dos assuntos humanos, istoc,-pre-cisamente náqú-êfeclõ·míllio dã"sexperíências-humãllãs-qü-e-;:;~ tt!9~,º::fosliavíamunanimemente"exclufdõ" cõmo ·fõnte-ouodg:émd~Rª,dii5_(!~_ªº7.s'olutôs:"OmoaaodêSsa~ova"revel~ção~~a fo;mad;;~ p~~~esso históri-.

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co, foi indubitavelmente a Revolução Francesa, e a razão pela qual a filo-sofia alemã pós-kantiana veio a exercer uma enorme influência no pensa-.mento europeu do século XX, especialmente em países sujeitos a agita-ções revolucionárias - Rússia, Alemanha, França -, não foi o seu assimchamado idealismo, mas ao contrário, o fato de que havia abandonadoa esfera da mera especulação e buscado formular uma filosofia que corres-pondesse e compreendesse conceitualmente as mais novas. e reais experiên-cias da época. Contudo, essa própria compreensão era teórica, no antigosentido original da palavra teoria; a filosofia de Hegel, embora tratasse daação e do domínio dos assuntos humanos, consistia na contemplação. An-te a visão retrospectiva do pensamento, tudo o que tinha sido político -atos, palavras e acontecimentos - tornava-se histórico, resultando daí queo mundo novo, que fora anunciado pela revolução do século XVIII, nãorecebeu, como Tocquevilleainda reivindicava, uma" nova ciência da po-lítica,,]7, mas uma filosofia da História - completamente à parte da trans-formação talvez ainda mais significativa da filosofia em filosofia da Histó-ria, de que não nos ocupamos aqui.

Politicamente, a falácia dessa nova e tipicamente moderna filosofia. é relativamente simples. Consiste ela em descrever e compreender todoo domínio da ação humana não em termos do ator e do agente, mas doponto de vista do espectador que assiste a um espetáculo. No entanto, es-sa falácia é relativamente difícil de identificar, em razão da verdade a elainerente, que consiste em que todos os dramas encetados e representadospelos homens só desvendam seu verdadeiro significado ao atingirem o seufinal, de tal forma que pode parecer, de fato, que apenas o espectador,e não o agente, pode aspirar a compreender o que realmente aconteceu,em qualquer determinada sucessão de fatos e acontecimentos. Foi parao espectador, com muito mais ênfase do que para o ator, que a lição daRevolução Francesa pareceu demonstrar a necessidade histórica, ou o fa-to de Napoleão ter-se tornado um "destino,,]8. Contudo, o ponto em ques-tão é que todos aqueles que, por todo o século XIX e na maior parte doséculo XX, seguiram as pegadas da Revolução Francesa, se viram nãosimplesmente como sucessores dos homens da Revolução Francesa, mastambém como agentes da História e da necessidade histórica, com a con-seqüência óbvia, ainda que paradoxal, de que, em lugar da liberdade, foia necessidade que se tornou a principal categoria do pensamento políticoe revolucionário. .

Ainda assim, sem a Revolução Francesa, pode-se duvidar que a filo-sofia jamais tivesse tentado se ocupar com o domínio dos assuntos huma-nos, ou seja, descobrir a verdade absoluta em um domínio que é reguladopelas relações dos homens e seu relacionamento uns com os outros, e que

. é, portanto, relativo por definição. A verdade, não obstante fosse concebi-da "historicamente", isto é, entendida como revelando-se no tempo, nãoprecisava necessariamente ser válida em todas as épocas, embora tivesse

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42 DA REVOLUÇÃO

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de ser válida para todos os homens, independentemente do lugar em quepossam morar e do país em que porventura tenham nascido. Em outraspalavras, a verdade não devia referir-se ou dizer respeito aos cidadãos,em cujo meio apenas podia existir urna grande diversidade de opiniões,nem aos nacionais, cujo senso de verdade estaria limitado por sua própriahistória e experiência nacional. A verdade tinha de referir-se ao homemqua homem, o qual, como uma realidade terreria, tangível, não existia emlugar algum. Por conseguinte, se a História estava destinada a tornar-seum meio de revelação da verdade, devia ela ser história mundial, e a ver-dade que se revelava a si mesma tinha de ser um 'I espírito mundial". Nãoobstante, embora, a noção de História só pudesse atingir dignidade filosó-fica sob a condição de abranger o mundo inteiro e os destinos de todosos homens, o conceito da própria história mundial é nitidamente políticoem sua origem; foi precedido pela Revolução Francesa e pela Americana,ambas se orgulhando de haver ensejado uma nova era para a humanida-de, por se tratar de eventos que diriam respeito a todos os homens qua ho-mens, sem levar em conta o lugar em que vivessem, as suas circunstân-cias, ou quaisquer que fossem as.suas nacionalidades. A própria noção dehistória mundial surgiu da primeira experiência de política mundial, e em-bora o entusiasmo tanto dos americanos como dos franceses pelos "direi-tos do homem." tenha arrefecido rapidamente com o nascimento da nação-Estado - que, por mais efêmera que possa ter sido essa forma de gover-no, foi a única conseqüência relativamente duradoura da revolução na Eu-ropa -, o fato é que, de uma forma ou de outra, a política mundial temsido,' desde então, um coadjuvante da política. .

Um outro aspecto dos ensinamentos de Begel que, não menos ob-viamente, deriva das experiências da Revolução Francesa, é ainda maisimportante em nosso contexto, pois exerceu uma influência imediata ain-da maior nos revolucionários dos séculos XIX e XX - os quais, mesmo ~.~que não tenham aprendido as lições de Marx (ainda o mais ilustre discí- ~c?cr:pulo~ue.H~.liamaistevel;.e nunca tenham se pre~ç,1lpado:m ler He- 7;;;gel, consideravam a revoluçao em termos das categorias hegehanas Esse ;~')'aspecto' diz respeIto ao caráter do movimento histó'ncO~@!!.... o _.~:~Hegeretodos os seus adeptos, é, ao mesmo tempo, a-i'aJ.éticoe movido-E,e- _:~L.--.---.-----.~f::----.- ---.------.- ...,---,,--- -, .,

Ii:_~~ssida~ reyg!!!.Ç~Q_~-da..con_t.r.:~:Ievol'!:0?1do 14 de julho ao 18de Brumário e à restauração da monarquia, nasceu o movimento e o con-tramovimento dialético da História, que arrãSIà-õ-s"nõliH!,f[s-ení-iiíâcor-r"ente irresistivel, como um põCIerllM caudal subterrâneo, ao qual devemsubmeter-se no próprio instante em que tentam estabelecer a liberdade sobrea terra. E~~@ii!~a famosa.dialética da liberdade e da neE~si':; _dade, em que ambas finalmente coincidem - talvez o mais terrível, e,llUmãnamente falando, o mais intolerável paradoxo de todo o pensamen-to moderno. E Hegel, entretanto, que chegara a ver no ano de 1789 omo-mento em que a terra e o céu se reconciliavam, pode ainda ter pensado.em termos do conteúdo metafórico original da palavra revolução, como se

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no curso da Revolução Francesa o irresistível movimento cíclico dos cor-pos celestiais tivesse descido sobre a terra e as coisas humanas, conferindo-lhes uma "necessidade" e regularidade que pareciam situar-se além da"melancólica casualidade" (Kant), da triste "mistura da violência e faltade sentido" (Goethe), que até então dera a impressão de ser a qualidadepredominante da História ic' da trajetória do mundo. Portanto, o parado-xo de que a liberdade é fruto da necessidade, no próprio entendimentode Hegel, dificilmente seria mais paradoxal do que a reconciliação do céu.e da terra. Ademais, nada havia de jocoso na teoria de Hegel, nem qual-quer graça vã na sua dialética da liberdade e da necessidade. Ao contrá-rio, elas devem ter exercido, mesmo nessa época, um forte atrativo sobreaqueles que ainda estavam sob o impacto da realidade política; a inabalá-vel força de sua plausibilidade fundamentou-se, a partir daí, muito menosna evidência teórica, do que numa experiência repetida com freqüêncianos séculos de guerras e revoluções. O conceito moderno de História, comsua ênfase sem precedentes na História como um processo, tem muitasorigens e, entre elas, especialmente, o inicial conceito moderno de nature-za comoum processo. Enquanto os homens tomaram como modelo as ciên-

. das naturais, e consideraram esse processo como um movimento cíclico,rotativo e sempre recorrente - e mesmo Vico ainda entendia o movimento

.histórico nesses termos - era inevitável que a necessidade fosse inerente'tanto ao movimento histórico quanto ao astronômico. Todo movimentocíclico é um movimento necessário por definição. Mas o fato de que a ne-cessidade, como uma característica inerente à História, sobrevivesse à mo-derna ruptura do ciclo dos eternos retornos, e fizesse seu reaparecimento

'num movimento que era essencialmente retilíneo - e que, portanto, não.retornava ao que já era conhecido anteriormente, mas se alongava rumo-.a um futuro desconhecido -, esse fato deve sua existência não à especula-

",ção teórica, mas à experiência política e ao curso dos acontecimentos reais.Foi a Revolução Francesa, e não a Americana, que ateou fogo ao

mundo, e foi, conseqüentemente, do curso da Revolução Francesa, e nãodo desenrolar dos acontecimentos na América, ou dos atos dos' 'Pais Fun-dadores" que o atual uso da palavra revolução recebeu suas conotações e ,matizes em todos os lugares, inclusive nos Estados Unidos.jA colonizaçãoÇ"

__ ---<taAmérica do Norte e o gove~~~:p~!.!~~~?._~_~~ ..~~~ados Unidos consti- (r tuem talvez o maior, e certamenteo-InaIS audacioso empreendimento do \I pOvo europeu; contUCIo, õsEStadõSUiiicros1lveiãm-efefiVâmeiífe~amícía- I

tiva de su~<2P..~i~~!.~!9.JjJq29LPº!:!.c:.~mais de"cêiü-àllàs, em esplênâido,(

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culo passado, estiveram sujeitos à tríplice investida da urbanização, in--. - dustrializaçâo, e, acima de tudo, da imigração em massa. Desde então,

-as teorias e os conceitos, embora, infelizmente, nem sempre suas expe--riências subjacentes, migraram, uma vez mais, do velho para o novo rnun-do, e a palavra revolução, com suas conotações, não é exceção a essa regra.

44 DA REVOLUÇÃO

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É estranho, na verdade, verificar que a opinião iluminada americana dos'~ Xx, ainda mais que a européLa, esteja freqüentemente in:~ii~-adaa interpretar a Revolução Americana à luz da Revolução Francesa, ou acríticar aquela por não ter tão obviamente se ajustado às lições of~spor essa última. A triste verdade da questão é que a Revolução Francesa,que redundou em aesastre, tenha.1eito..história-no..mundo ~assõ--queªlS,gõfuçao Americana, tão triunfantemente vitoriosa, tenh~~~rl'!l?~E:~::doum acontecimento clê.:'J.mpÓit-anclã·guasc"gueapenas local... .

.---- -, 'OlS sempre que, em nosso próprio século, as revoluçÕ~s-aparêceramna cena política, elas foram interpretadas segundo imagens evocadas nocurso da Revolução Francesa, compreendidas em conceitos elaborados pelosespectadores, e entendidas em termos de necessidade histórica. Notávelpor sua ausência no espírito dos que fizeram as revoluções, bem como nodaqueles que as observaram e tentaram a elas ajustar-se, estava a profun-da preocupação com as formas de governo tão característica da Revolu-ção Americana, mas também muito importante nas fases iniciais da Re-volução Francesa. Foram os homens da Revolução Francesa que, intimi-dados com o espetáculo da multidão, exclamaram com Robespierre: "LaRépublique? La Monarchie? Je ne connais que la question sociale"; e eles perde-ram, juntamente com as instituições e constituições, que são "a, alma daRepública" (Saint-Just),a própria revolução 39, A partir daí, os homens,arrebatados à sua revelia nos vendavais revolucionários, para um futuroincerto, assumiram o lugar dos orgulhosos idealizadores que intentaramconstruir seus novos lares com base no saber acumulado de todas as épo-cas pretéritas, na forma como o entendiam; e, com esses iniciadores, de-sapareceu a confortadora confiança de que uma novltS ordo saeclorum podiaser erigida com idéias, segundo um modelo conceitual, cuja verdade eraassegurada por sua própria antiguidade. Não o pensamento, apenas a prá-tica, apenas a aplicação poderia ser nova. O tempo, nas palavras de Wash-ington, era "auspicioso", pois havia "desvendado para nós [... ] os tesou-ros do conhecimento adquirido pelo esforço de filósofos, sábios e legisla-

, dores, durante uma longa sucessão de anos"; com a ajuda deles, os ho-mens da Revolução Americana julgaram que podiam começar a agir se-gundo as circunstâncias, e a política inglesa não lhes deixou outra alterna-tiva senão a fundação de um corpo político inteiramente novo. E já quelhes fora oferecida a oportunidade de agir, a História e as circunstânciasnão mais podiam ser consideradas culpadas: se os cidadãos dos EstadosUnidos "não conseguissem ser completamente livres e felizes, a culpa se:ria inteiramente deles" 40 . Jamais lhes teria ocorrido que, apenas algumasdécadas mais tarde, o mais arguto e penetrante observador do que haviamfeito assim concluiria: "Retorno ao passado, através das eras, até a maisremota Antiguidade, mas não encontro nada que se compare ao que está

-ocorrendo diante dos meus olhos; já que o passado deixou de lançar sualuz sobre o futuro, o espírito do homem vagueia na escuridão,,41 . v

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o SIGNIFICADO DE REVOLUÇÃO 45

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· omágico fascínio que a necessidade histórica lançou sobre as men-tes dos homens, desde o início do século XIX, aumentou de intensidadecom a Revolução de Outubro, que, para o nosso século, teve o mesmo'profundo significado da primeira cristalização das melhores esperanças doshomens e da posterior constatação da inteira dimensão do seu desespero,que a Revolução Francesa representou para seus contemporâneos. Ape-nas que, dessa vez, não foram experiências inesperadas que transmitirama .lição, mas a modelagem consciente de um curso de, ação sobre as expe-riências de uma época e acontecimentos passados. E certo que somentea dupla compulsão da ideologia e do terror, uma compelindo os homensde dentro para fora, e a outra, de fora para dentro, pode explicar plena-mente a candura com que os revolucionários de todos os países que caí-ram sob a influência da Revolução Bolchevista caminharam para sua ruí-na; mas aí a lição presumivelmente assimilada da Revolução Francesatornou-se parte integrante da compulsão a que se impôs o pensamento ideo-lógico de hoje. O problema foi sempre o mesmo: os que freqüentaram aescola da revolução aprenderam e souberam antecipadamente o rumo quedeve tomar uma revolução. Foi o curso dos acontecimentos, e não os ho-mens da revolução, que eles imitaram. Se tivessem tomado como modeloos revolucionários, teriam protestado sua inocência até o último suspiro 42.

Mas não podiam fazer isso, pois sabiam que uma revolução deve devorarseus próprios filhos, assim como sabiam que uma revolução daria origema uma seqüência de revoluções, ou que, ao inimigo declarado, seguir-se-ia o inimigo oculto sob a máscara dos "suspeitos", ou que uma revoluçãose dividiria em duas facções extremas - os indlllgents e os enragés - queverdadeiramente ou "objetivamente" trabalhavam juntas para solapar ogoverno revolucionário, e que a revolução era "resgatada" pelo homemdo centro, o qual, longe de ser mais moderado, aniquilava a direita e a

'. esquerda, como Robespierre liquidou Danton e Hébert. s.sue os qome~,sI da RevoluC;:ª,-l?R~~,'!:.,~Rre~d~E.~!r.l_.C::C!I~.~._~~~(J.~~l~~º]f..a.l1cesa.- e esse1 ap~ado constituiu quase que toda a sua preparação - !~~IE~tória1

\<:_@? aç8 Eles adquiriram a habilidade de reP!5!se..!!.té!r...q1,!';11q~r.Jlap'c:1

I~i~ef1s~~c!fs:d~:6~~J!~~~s2~~-.~~~~te~.~~r.~~e~i~sfa~~.~~~1~~:~~~···\dispo'stos a-ãceifá=lo;'ôe preferência a ter de ficar de fora da peça.\ , . ..

"'-Háumã-certa-comicidade 'grandiosa no espetáculo desses homens _que ousaram afrontar todos os poderes vigentes, e desafiar todas as auto-ridades da terra, e cuja coragem estava além ele qualquer dúvida _submetendo-se, muitas vezes de um dia para outro, com humildade, e semqualquer expressão de revolta, ao apelo da necessidade histórica, não lhesimportando quão louca e incongruente possa ter-lhes parecido a aparên-cia exterior dessa necessidade. Foram ludibriados, não em razão das pala-vras de Danton e Vergniaud, de Robe'Spierre e Saint-Just, e de todos osoutros, que ainda 'soavam em seus ouvidos; foram ludibriados pela Histó-.ria, e se ~m os tolos.da História. ':~.~r-:-=~.;'--~'=õ'"-,=,.,..".~.---'._--~------'--.-.46 DA REVOLUÇÃO

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,t ..: CAPÍTULO 2,A QUESTÃO SOCIAL

.~Les malheureux stmt Ia puissance de Ia terre

(Saint-Just)

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l'Os revolucionários profissionais do início do século XX podem ter

sido os tolos da História, mas certamente eles próprios não eram loucos.Como uma categoria de pensamento revolucionário, a noção de necessi-dade histórica tinha algo mais a recomendá-Io do que o mero espetáculoda Revolução Francesa, mais ainda do que a atenta recapitulação do cur-so dos seus eventos, e da subseqüente condensação dos acontecimentos emconceitos. Por trás das aparências, havia uma realidade, embora talvezfosse a primeira vez que ela aparecesse em plena luz da História. Numavisão introspectiva, a necessidade mais poderosa de que temos conheci-mento é o processo vital, que impregna os nossos corpos e os mantém numestado de constante mudança, cujos movimentos são automáticos, inde-pendentes de nossa vontade e irresisríveis - isto é, de uma avassaladoraurgência. Quanto menos agimos, quanto menos ativos nos mostramos,tanto mais intensamente esse processo biológico se afirma, impõe sobrenós sua intrínseca necessidade, e nos intimida com o seu fatídico automa-tismo de pura transcorrência, subjacente em toda a; história humana. Anecessidade dos processos históricos, assimilada originalmente à imagemdo movimento cíclico, regular e necessário dos corpos celestes, encontrousua poderosa contrapartida na necessidade recorrente a'que toda a vida'humana está sujeita. Quando isso aconteceu, e aconteceu quando os po-bres, movidos por suas neêessidade's físicas,lrtº.!D...p~Eam no palco da Re-volução F'rmcesa, a metáfora astronôniI~~tão piausivel~en~ adequida ià perpétua mudança, aos altos e baixos do destino humano, perdeu suas'antigas co~otaçõ~s: e adq,:ir~u a acepç~o ,b~ológica q~e ~icerça e irnpreg- .na as teorias SOCIaISe orgamcas da História, as quats tem em comum o 1

fato de compararem uma multidão - a pluralidade fatual de uma =:.ou um povo, ou a sociedade - a um corpo sobrenatural, movido por umasobre-humana, irresistivel "vontade geral". .

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ti QUESTÃO SOCIAL 47