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Apresentação ...............................................7

Mestre Baptista ..........................................9

Giba Giba ...................................................41

Dona Sirley ...............................................67

Seu Sidi .....................................................85

Índice

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Livro de Degravações do filme O Grande Tambor

Montar um documentário é muito difícil. Nos encontramos segui-damente em encruzilhadas onde se emaranham as histórias desco-bertas a cada entrevista. Por mais que se trabalhe em cima de um ro-teiro, as perguntas normalmente surgem a partir das respostas e nas pistas dadas por cada entrevistado. No caso deste filme, O Grande Tambor, o que era para ser a construção de um singelo caminho per-corrido por um instrumento musical foi se desdobrando em narrações sensacionais e polêmicas sobre o compêndio histórico do Estado do Rio Grande do Sul. A cada resposta éramos brindados mais e mais com o conhecimento de personagens que, a partir de um legado cultural ancestral, agora denominados – e alguns oficializados pelo Ministério da Cultura – Griôs, nos permitiram montar um grande mosaico a par-tir do Tambor de Sopapo daquilo que se tem por ser uma história tão mal contada nos ideários farroupilhas.

Estes mestres do saber, então, responsabilizados pela comunida-de em carregar na oralidade as histórias do seu povo, dificultaram de sobremaneira nosso processo de edição, de corte das falas, para que pudéssemos condensar em cerca de 90 minutos um raciocínio infor-mativo acerca daquilo que queríamos contar, tamanha era a riqueza de suas colocações e pontos-de-vista. Foi imaginando, então, que os poucos minutos cuidadosamente selecionados para montar o filme fossem insuficientes para marcar o registro de alguns depoimentos, que surgiu a idéia deste livro, trazendo da oralidade para a escrita as falas dos Griôs, a partir das entrevista que nossa equipe, composta por mim, Sérgio Valentim e Marcelo Cougo, realizou ao longo do pe-rído de produção do documentário.

Não deixe de ler, porque há muito mais além daquilo que monta-mos no filme. Aproveite!

Gustavo Türck, diretor do documentário.

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Mestre Baptista

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MESTRE BAPTISTA

Neives de Meireles Baptista, 76 anos em 2010. Trabalhou em fábrica de vidros, curtume, foi motorista de táxi, de ônibus urbano e interestadual. Tem o samba na alma, por sua descendência, mas aproximou-se mesmo do carnaval construindo instrumentos, fundando a Escola Imperatriz da Zona Norte, em Pelotas, e sendo mestre de bateria. Em 1999, recebeu o convite para montar 40 Tambores de Sopapo para o Projeto CABOBU. Aceitou e, hoje, é o prin-cipal luthier do instrumento no país.

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Em Pelotas, na “Praça dos Enforcados”.

Gustavo Türck (GT): Então, Mestre, conta para nós a história desta praça (Praça do Pavão em Pelotas), o que ela representa para o car-naval de Pelotas, para a história dos negros?

Mestre Baptista: Esta praça aqui, a lembrança dela vem com tris-teza. Para a gente que pertence à negritude aqui, né? Que é afro-descendente... As lembranças não são muito boas. Nesta praça aqui, que inclusive era motivo de festas há alguns anos, no tempo de escravidão, por que aqui eram enforcados os negros fujões, os negros indisciplinados, “eles” dependuravam nestas árvores aqui e convidavam toda a sociedade para assistir a matança dos negros. Inclusive, faziam festas, batiam palmas quando o negro começava a estrebuchar e espernear quando era enforcado. Então, esta praça nos traz lembranças muito tristes. Eu nem gosto de falar muito nis-so. Inclusive, esta praça aqui, dizem, dizem que em determinadas épocas, de noite, ela é assombrada. Tem gritos, tem lamentos desses negros que foram enforcados aqui. É a história mais ou menos que eu conheço. Eu não sou contemporâneo da época, mas o que contam é que aqui enforcavam negros, e é por isso que esta praça aqui tem o codinome de “Praça dos Enforcados”, certo? Mas, na verdade, é a Praça do Pavão. Mas é a “Praça dos Enforcados”. Todo mundo sabe, falou em Pelotas da “Praça dos Enforcados”, todos sabem que é esta praça aqui, a Praça do Pavão.

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GT: Mestre, fora essa história, a relação desta praça com o carnaval, se juntavam as pessoas aqui para fazer algum tipo de concentração mesmo com essa história toda?

Mestre Baptista: É, juntava. Na tua pergunta já está a resposta. Quando o carnaval era aqui na Av. Marechal Floriano ou pela Rua Quinze de Novembro, mais para cima à direita, muitas entidades que vinham aqui, principalmente do lado do bairro Fragata, eles faziam concentração aqui na praça. Eles não só concentravam como aqui eles bebiam, se embriagavam e aqui faziam suas necessidades fisioló-gicas aqui nesta praça. Porque, se vocês perceberem bem aqui, esta praça está praticamente às escuras, ela não tem iluminação. Então, existia essa concentração carnavalesca aqui em Pelotas, sim.

GT: Será que o fato de fazer as necessidades aqui, tratar a praça com um pouco de descaso não tem muito a ver com o que significava esta praça, Mestre?

Mestre Baptista: Não. Esse problema aqui da praça, dela estar nesse estado, é um problema político. Existe, inclusive, uma cobrança de imprensa escrita, falada, televisionada para cuidar mais desta praça aqui. Então, existem comprometimentos políticos em época de elei-ção, certo? Mas, depois que eles vão para o poder, não cuidam desta praça aqui. E é isso que vocês estão vendo, é uma praça bonita, an-tiga e histórica, mas infelizmente está mal cuidada.

Sérgio Valentim (SV): O senhor sabe da história de que o pessoal se reunia embaixo das figueiras? O Giba Giba contou para nós uma história de que no carnaval o pessoal se reunia aqui embaixo das figueiras...

Mestre Baptista: Justamente. É aquilo que eu falei. No carnaval existia concentração aqui antes deles subirem pro centro da cidade. Geralmente, as entidades que vinham deste lado da cidade (bairro Fragata), aqui era a concentração. E fora do carnaval também as pessoas vinham para cá passear. Aqui tem uma figueira grande, e as pessoas iam para lá tomar chimarrão, conversar, bater papo durante o dia, porque à noite não tinha iluminação, mas durante o dia existia reunião aqui nesta praça sim.

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SV: E o CABOBU reuniu aqui o pessoal?

Mestre Baptista: Não, não, não. O CABOBU, ele praticamente iniciou as oficinas lá na Unidos do Fragata, na Escola de Samba Unidos do Fragata, e depois deu continuidade no Colégio Pelotense. O CABOBU só passava por aqui, pois vinha pela Av. Bento Gonçalves, vinha pela Marechal Deodoro, dobrava aqui na Marechal Floriano, dobrava aqui do lado do camelódromo, do lado da CEEE. Aí, pegava a Lobo da Costa e subia e ia até o mercado. Essa era a participação da praça no CABOBU, era só na passagem, passava por aqui.

Em Pelotas, na oficina em sua casa.

Marcelo Cougo (MC): Que mão de obra, hein, Mestre? (referindo-se à instalação dos equipamentos para filmagem)

Mestre Baptista: Mas é assim que funciona, é assim. Vai lá no Rio de Janeiro olhar quando eles estão montando para televisionar as escolas de samba, aquela parafernália que têm. Lá tem até máquina aérea...

SV: Então, tá valendo. Seguinte, o senhor vai conversar comigo, não precisa olhar para a câmera. O senhor poderia começar falando seu nome inteiro para nós e ai nós vamos começar a conversar, eu vou Le fazendo perguntas, vamos lá?

Mestre Baptista: Meu nome é Neives de Meireles Baptista. Eu sou nascido em Pelotas no ano de 1936. Portanto, eu estou com 73 anos e, agora em junho, 27 de junho, faço 74 anos bem vividos aqui em Pelotas.

SV: Eu gostaria de saber... O senhor começou como com esta história, com a música, sendo mestre de bateria no carnaval. Me conta como começou?

Mestre Baptista: Certo. Eu praticamente não comecei, eu continuei. Porque, devido as minhas origens... E isso é público, é notório e é histórico que a percussão veio da África. Então, como eu sou afrodes-cendente, eu já tinha na alma, nas veias, esta virtude de percussão.

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Eu não aprendi com ninguém. Eu não tenho um mestre que tenha me ensinado alguma coisa. Isso já estava dentro de mim. Então, eu fiz o que tinha de fazer como um homem casado. Eu trabalhei.

SV: O senhor trabalhava com o quê, Mestre Baptista?

Mestre Baptista: Eu trabalhei em uma fábrica de vidros aqui em Pe-lotas. Depois passei a trabalhar em um curtume. Eu pregava carnei-ras, couro, e eu pregava nas tábuas para secagem. Depois, dali eu fui embora pra Cerâmica Pelotense. E, na Cerâmica Pelotense, trabalhei nove anos - entrei em 1949 e saí em 1958. Dali eu fui embora para os táxis, foram dez anos consecutivos de vida noturna de táxi aqui em Pelotas. Um dia, minha mulher estava vendendo Avon para ajudar nas despesas, porque o salário não era muito bom, eu era comissio-nado como motorista de táxi, e, então, ela estava vendendo Avon, aí, ela foi entrar em uma residência aqui na Rua Fernando Osório para oferecer Avon e foi mordida por um cachorro. Aí, me telefonaram quando ela estava no hospital, quando cheguei lá, não tinha leito para ela. Estava sendo atendida no chão, e aquilo me doeu muito por dentro. Então, eu resolvi deixar os táxis, porque eu não tinha direitos sociais nos táxis, e, aí, foi quando eu procurei a empresa (de ônibus urbanos) Turf. E eu ia todos os dias de manhã para pedir uma vaga. “Mas é difícil, porque tu trabalhaste em táxi, e a gente está que-rendo um motorista que já esteja habituado com carro grande, com ônibus. Tem até vaga, mas para ti vai ser difícil”. Daí, eu disse: “Ué, mas façam um teste comigo!”. Então, eu ia todo o dia. Soltava do serviço que eu trabalhava à noite e, sete horas, sete e meia da ma-nhã, eu estava lá. Aí, tanto que eles enojaram da minha cara que eu ia lá pedir serviço que eles resolveram fazer um teste comigo. “Faz um teste com ele aí, que assim já ficamos livres desse cara!”. Daí, tinha vinte motoristas lá fazendo teste, e eu fiz o teste. Era um carro a óleo, com uma caixa seca e embreagem desregulada. Eles faziam aquilo justamente para as pessoas rodarem no teste. Aí, voltamos de-pois de umas duas ou três horas de andar na cidade, retornamos para garagem da empresa. Aí, o diretor perguntou: “Quantos passaram?”. “Infelizmente, passaram só três”. “Sim, quais são os três que pas-saram?”. “É... Um é o Baptista aqui”. “Ah! Ele passou?”. “É, foi um dos melhores que passou no teste, e os outros são estes dois aqui que passaram”. Aí, o gerente foi e me deu os parabéns por ter passado no teste de direção e me convocou para que, no outro dia, às oito horas

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da manhã, eu estivesse lá para fazer experiência de linha. E, aí, eu fui. Fiz a experiência de linha, passei, fui com outro motorista, tudo direitinho. Levei a documentação, assinaram minha carteira, e eu tive na Turf dois anos. Nunca me envolvi em acidente, e foi quando eu resolvi ir embora para o Expresso Embaixador (de ônibus intermu-nicipais), ganhava mais. Fiz o teste no Embaixador, passei também, e eles me mandaram pedir minhas contas lá na Turf. Pedi as contas e fui para lá, onde fiquei por três anos. Foi aí quando me despertou a empresa Nossa Senhora da Penha (de ônibus interestaduais). A Penha entrou aqui em 1965 e cativou a minha mente, a minha lucidez. Eu perguntei para um motorista deles... Tive a oportunidade de saber se teria alguma dificuldade de eu trabalhar na empresa Nossa Senhora da Penha. Ele disse: “Olha, no teu caso tem. Tu me desculpe, eu não sou racista, mas a empresa Penha, aqui no Sul, não coloca pessoas de cor”. Eu só disse: “Faz o seguinte, tu só me avisas quando estiver lá que eu vou fazer... Onde é o teste?”. “É em Porto Alegre”. “E dá para tu me avisar quando tiver teste?”. “Te aviso”. E assim foi feito. Quando teve teste, ele me avisou: “Olha, estão inscrevendo motoris-ta lá”. Eram em novembro os testes, que era para iniciar a tempora-da. Ele me avisou. Aí, eu fui, fiz todos os testes que eram necessários em 1969, testes, inclusive, de saúde. Testes rigorosíssimos - teste de visão, de dentadura, audição, coração, teste de ânus para ver se não tinha nenhum problema de hemorróidas, teste de sangue... Fiz todos os exames e passei em todos eles. Passei no teste de direção. Nós fomos até Vacaria pela BR116. Passei no teste, e foi quando de-ram os parabéns. “Agora, o resto dos testes é em Curitiba. A matriz da Penha é em Curitiba, é no Paraná”. Aí, eu fui embora para lá, mas eu não estava empregado ainda, então, fiz um psicotécnico de cinco horas e meia no hospital Bom Jesus com um casal de chilenos doutores, um teste psicotécnico até muito rigoroso. Passei. Depois disso, fomos para as oficinas, eu já tinha passado no teste de direção e em todos os exames que tinham imposto para mim e eu passei em todos eles. Fui para oficina para conhecer o carro que eu ia dirigir, era uma Scania. Então, passamos três dias nas oficinas. O chefe da oficina mostrando para nós os possíveis incidentes que poderiam dar nas viagens com esse carro e, então, nos mostrou como nós tínha-mos que proceder para botar o carro a funcionar. Aí, trocamos os pneus traseiros e dianteiros, correias do ventilador. Então, fizemos tudo que era necessário dentro da oficina. Enquanto isso, assinaram

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a minha carteira. Depois, passamos na alfaiataria, pois lá havia uma alfaiataria própria. Foram tiradas as medidas, tudo direitinho, e fo-ram feitos os fardamentos. Quando estava todo mundo fardado, em-barcamos em um ônibus e fomos até São Paulo. Em cada curva que passávamos, o inspetor parava e dizia: “Aqui aconteceu um acidente assim, assim e assim. E morreram tantos por causa disso, disso, disso e disso”. Ele estava nos explicando tudo. Aí, chegamos em São Paulo, e eles olharam para mim e disseram: “O senhor que é de Pelotas vai entrar nesta estrada aqui”. Era a Via Dutra. “O senhor vai fazer Pelotas/Rio de Janeiro”. O seguinte, quando eu fui lá para a Penha, eu pensei que era motorista. Eles só aproveitaram a minha carteira e a minha boa vontade. Eu sofri uma reciclagem lá muito grande, eles me orientaram e me reorientaram como é que se dirigia um ônibus. Então, valeu essa orientação, eu aproveitei.

SV: Quantos anos o senhor ficou lá (na Penha)?

Mestre Baptista: Dezessete anos. Teve uma interrupção. Eu trabalhei de 1969 a 1971 e depois retornei em 1974. No total, foram dezessete anos, e nunca me envolvi em acidente. Saí condecorado. Só tive-ram dois motoristas da Penha que foram condecorados. Fui agracia-do também com uma festa em Porto Alegre na minha despedida em 1989.

SV: O senhor se aposentou em 1989?

Mestre Baptista: Me aposentei em 1989. Fui agraciado com o Cartão de Prata, e nesta festa se encontrava o diretor do DNR Nacional e mais o presidente da Penha Itapemirim, que era um complexo rodo-viário, o segundo maior do mundo, que só perdia para um da Alema-nha, porque lá, os ônibus, a empresa, pertenciam ao governo. Então, era o segundo maior complexo rodoviário do mundo, a Penha junto com a Itapemirim.

SV: A primeira privada, no caso?

Mestre Baptista: É, a primeira privada. Hoje, a Penha já não perten-ce mais à Itapemirim, já foi vendida para uma empresa aérea, para a GOL. Mas acredito que a matriz, a sede, continue sendo lá em Curiti-ba. Então, em 1989, eu me aposentei e iniciei a minha peregrinação na percussão dentro do carnaval.

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SV: Aí, em 1989...

Mestre Baptista: Aí, em 1989 eu me aposentei e em 1990 eu iniciei a minha peregrinação no carnaval de Pelotas. Inclusive, a primei-ra bateria show de Pelotas eu idealizei, eu montei, eu ensaiei e eu apresentei para o mundo carnavalesco de Pelotas. Inclusive, essa ba-teria tinha uma variação de exercícios que foi apelidada de “Banda Marcial”.

SV: E foi aqui na Nega Fulô?

Mestre Baptista: Não, iniciou na Nega Mafuça.

SV: Que é uma escola de samba?

Mestre Baptista: Não, é um bloco burlesco. Mas eles (o bloco) não iam sair porque não tinham verba. Não tinham condições de sair, não tinham dinheiro. Aí, foi quando o sobrinho da minha mulher era o presidente dessa entidade. Eu procurei ele, eu já tinha um projeto, já tínhamos conversado. Eu digo: “Quero saber o seguinte. A Mafuça não vai sair porque não tem nem instrumento, não tem dinheiro. E se eu emprestar os instrumentos para a Mafuça sair e pagar para a Mafuça sair? Eu posso fazer o pré-carnaval com a Mafuça?”. Aí, ele disse: “Pode”. “Quanto é que tu precisas?”. “Tanto”. “Tá na mão. Então eu vou fazer o pré-carnaval com a Mafuça”. Aí, então, foi feito o pré-carnaval com o saudoso Cláudio Silva, já falecido. Foi feito o pré-carnaval, através da FUNDAPEL na época. E aí eu realmente paguei eles e emprestei os instrumentos na data para sair (na ave-nida). Então, depois, a gurizada me procurou, pois o meu contrato com a Nega Mafuça tinha terminado. Era só para o carnaval. Me pro-curaram porque eles sentiram que era uma bateria diferente, tinha coisa diferente naquela bateria. Eles me procuraram aqui em casa e me perguntaram: “Por que eu não seguia?”. “Não, na Mafuça eu não vou seguir mais”. Foi quando eu estava montando a Bateria Show e disse para eles: “Vou montar uma bateria”. Eu tinha os instrumen-tos. “Mas tem uma coisa, eu não vou abrir mão da disciplina. Tudo bem?”. “Tudo bem”. Eu aproveitei esta gurizada que estava comigo lá e iniciou a Bateria Show Santa Terezinha. Uma homenagem que eu estava prestando ao bairro Santa Terezinha, inclusive com as cores da indumentária dos ritmistas em homenagem à Santa, a padroeira aqui do bairro, que é verde e branco, certo?

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SV: Esta foi a primeira?

Mestre Baptista: Esta foi a primeira. Essa bateria foi um sucesso mui-to grande. Eu tive duas vezes no Uruguai com ela, e ela saiu fora do Rio Grande do Sul, ganhou fronteiras e foi parar em Santa Catarina. Veio um pessoal de Florianópolis me procurar aqui para me contratar, e foi quando eu passei a me apresentar em Santa Catarina (Florianó-polis) com a Banda Scorpion.

SV: E o senhor era o mestre de bateria?

Mestre Baptista: Eu era o mestre de bateria. E eu estive lá (em SC) durante cinco ou seis anos. Depois, eu entreguei a bateria para o meu filho e para minha companheira (minha mulher). Depois disso, eu passei a peregrinar pelas escolas de samba aqui de Pelotas para buscar mais um aprendizado, e a primeira escola de samba que me contratou sem eu ter experiência em escola de samba foi a Estação Primeira do Areal. Depois eu estive na Academia do Samba por três vezes, tive na Escola de Samba General Teles, onde eu fui campeão. E aí depois surgiu um edital aqui em Pelotas, do Ministério da Cultu-ra, à procura de Mestres Griôs. Foi quando eu me inscrevi, mandei meu currículo para Brasília através do projeto Chibarro e da Univer-sidade Federal de Pelotas. Pelotas foi contemplada com dois Mestres Griôs, e eu sou um deles. A outra é a Dona Sirlei.

SV: E o Sopapo, Baptista?

Mestre Baptista: Depois de tudo isso aí, em 2000.

SV: Tu já eras Mestre Griô?

Mestre Baptista: Não. Em 2000, o Mestre Giba Giba, um pelotense ilustre, que saiu de Pelotas ainda menino, mas que foi contemporâ-neo do Sopapo, ele conheceu este instrumento. Ele tinha em mente um projeto para resgatar este instrumento que fazia parte das ba-terias de Pelotas até os anos de 1970/72, por aí. O instrumento de percussão das baterias aqui de Pelotas era só Sopapo, instrumento pesado.

SV: Era só Sopapo?

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Mestre Baptista: Era só Sopapo.

SV: Até que ano mais ou menos, Baptista?

Mestre Baptista: Até 1970/72.

SV: Não tinha surdo?

Mestre Baptista: Não, não tinha. Era Sopapo. E aí resolveram imitar o Rio de Janeiro. Porque aqui era o segundo e o terceiro carnaval do Brasil. Para quem não sabe, e eu vou aproveitar este documentário, Pelotas é uma das cidades mais negras do sul do país, certo? O contin-gente de escravos aqui foi muito grande, e eles deixaram este legado que é o Sopapo. Então, o Mestre Giba Giba, que estava trabalhando na Secretária de Cultura do governo Olívio Dutra, queria saber quem é que poderia fabricar este instrumento (o Sopapo). Tinha um rapaz lá, que trabalhava com ele na secretaria, filho da Dona Iraí. Pessoa virtuosíssima, pessoa muito honrada que também montou uma escola de samba, uma escola muito bonita, uma escola guerreira, que foi campeã várias vezes, a Unidos do Fragata. Ele foi e disse: “Minha mãe conhece todo mundo lá em Pelotas. Quem sabe ela conhece alguém que possa fabricar este instrumento?”. Aí, ele fez contato com a mãe dele. “Oh, tem um rapaz aqui que fabrica instrumento. De repente ele pode fazer este instrumento, que é o Mestre Baptis-ta”. Aí, foi feito o contato, foi feita a ponte. O Giba Giba fez contato comigo. Me procurou e me perguntou se eu faria este instrumento para ele. “Faço. Quantos tu quer?”. “Eu quero 40”. “Eu vou fazer um protótipo, e tu vens e olha para ver se é isso que tu queres. E Qual é a metragem?”. “Um metro de altura por cinquenta e dois de boca”. “Ótimo, eu vou fazer o protótipo e vou te chamar”.

SV: Quem lhe deu primeiramente como era este instrumento foi o Giba?

Mestre Baptista: Foi o Giba, mas eu também já conhecia este ins-trumento. Já conhecia do carnaval, mas nunca tinha feito. Aí, foram quebradas duas folhas de compensado, quebrou, pois eu não sabia. Até que eu acertei. Acertei e fiz um.

SV: E o instrumento que o senhor via no carnaval é igual ao que o senhor faz?

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Mestre Baptista: Não, este é mais sofisticado.

SV: Descreve o anterior aí, o do carnaval. Como ele era?

Mestre Baptista: O anterior, o do carnaval era maior. Ele era bem maior que este, e a boca era bem maior também. E os suportes onde vinham os puxadores para a afinação... Eles eram feitos de pranche-ta, eles eram dobrados, porque eles faziam um “L”, faziam um furo e, aí, aquilo ali com o tempo ia entortando, entortando e desafinan-do o instrumento. Chegava ao ponto de, às vezes, antes de entrar na passarela, ter que fazer uma fogueira para aquecer os instrumentos, porque a afinação era ruim, muito ruim a afinação. Mas era um suces-so na época (o Sopapo).

SV: E como ele era carregado?

Mestre Baptista: Era carregado com talabarte. Botava o talabarte no ombro e vinham. Botavam para o lado e vinham tocando com as duas mãos o Sopapo - justamente porque tem que dar bofetada nele para sair o som. Aí eu fiz o protótipo. Chamei o Giba Giba, e ele veio: “É isso aí que eu quero. Mas como é que tu fizeste?”. “Como eu fiz não interessa, quantos tu queres?”. “Eu quero 40”. “Então faltam 39”. Aí foi justamente quando iniciaram as oficinas do CABOBU na Escola Unidos do Fragata.

SV: E o que era o CABOBU? Explica para nós.

Mestre Baptista: O CABOBU, para quem não conhece, era um... Era não, porque ele vai retornar... Uma homenagem que o Giba Giba estava prestando a uns contemporâneos da época que manuseavam este instrumento. Então, ele tirou o sufixo dos apelidos deles e apro-veitou os prefixos. Eram o Cacaio, o Boto e o Bucha. Aí ficou CABO-BU. Então, era um projeto político, com verbas públicas do governo Olívio Dutra. E, na minha visão, o Olívio se recandidatou, mas não se reelegeu e acabou o CABOBU. Aí o Giba lutou aqui (em Pelotas) para ver se o prefeito da época, que era do PT, assumia o projeto, mas o prefeito falou que não tinha verba para isso aí. Era um projeto caro. Aí parou o CABOBU e foi lamentável que isso aconteceu, porque foi criada uma expectativa aqui dentro de Pelotas, a Orquestra do Sopa-po durou dois anos...

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SV: Foi formada uma orquestra de Sopapo?

Mestre Baptista: Foi formada. Eu formei uma orquestra de Sopapo, e foi um sucesso muito grande. Aqui teve profissionais do Rio de Janei-ro, teve profissionais de Minas Gerais, profissionais de São Paulo, da Bahia, que vieram para cá a convite do Giba Giba.

SV: Eles vieram para cá tocar Sopapo?

Mestre Baptista: Eles vieram para cá assistir e documentar o Sopa-po. Hoje, eu até falo com muita tristeza porque o CABOBU deu uma parada, mas agora, falando com o Mestre Giba Giba, ele me garantiu que está agilizado para o retorno do CABOBU e está contando com o meu profissionalismo, com o meu trabalho, com o meu conhecimento de mestre de bateria e fabricante deste instrumento para dar conti-nuidade ao CABOBU. Então, eu vejo isso com muita alegria e aguardo que o Giba Giba tenha sucesso nessa investida novamente. Se trata de um projeto muito grande. Projeto em nível nacional, aonde está elevando-se o nome da cidade e está elevando-se também a negritu-de da cidade mais negra do Sul do país, que é Pelotas.

SV: Eu gostaria que o senhor explicasse essa história de o senhor ter feito o tambor assim... De onde o senhor tirou o conhecimento? O Giba Giba lhe disse: “Eu quero um tambor assim, assim e assado”. Aí ele voltou aqui, e o senhor estava com o tambor pronto?

Mestre Baptista: Muito simples, eu vou filosofar então. Para aqueles que estão afim, para aqueles que acreditam. Eu há 50 anos professo o Espiritismo, embora não seja espírita, eu estou há 50 anos no Espi-ritismo, porque ser espírita requer uma série de virtudes angelicais que eu ainda não possuo. Mas tenho alguns conhecimentos quanto à profundidade do assunto, porque Espiritismo não é uma ciência, não é uma religião. Então, eu apelei para os Orixás, para eles me darem intuição para eu poder fabricar aquele instrumento... O Sopapo é uma cubana grande, ele é um atabaque, ele é o “Atabaque Rei”. Esse instrumento pertence a Xangô, certo? Então, pedi socorro para eles, e eles me deram socorro, eu fui atendido. Eu mantenho rela-cionamento com o mundo externo, com o mundo dos espíritos há 50 anos. Eu sou um médium e, então, sei como me comunicar com eles. Eles me passaram o que eu tinha de fazer e aí foi feito. Então, eu não quebrei mais compensados, e, a partir desse momento para cá,

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eles continuam me dando intuição. Este instrumental já sofreu um progresso, uma evolução dos primeiros que eu fiz para o CABOBU.

SV: E de antigamente? Como ele era antigamente?

Mestre Baptista: De antigamente ele já vem sofrendo uma evolução. Vocês podem perceber que os próprios afinadores são completamen-te diferentes, eles não são iguais aos afinadores de antigamente, que eram um “L”. Agora não. Agora é uma cruz e é soldado e é reforçado por dentro. Eu trabalho com compensado de 4mm, e ali onde é for-çado para afinar o couro, porque não é pele é couro, ele leva 12mm de compensado. Não sei se vocês já perceberam isso aí. Então ele leva 12mm - o de fora e mais duas partes pelo lado de dentro, que é um reforço para o compensado não sair para fora e nem entrar para dentro e para afinar o instrumento. Eu faço tudo aqui. A única coisa que eu não faço aqui é o couro, as madeiras e o ferro, o resto tudo eu que faço.

SV: E é couro de quê, Baptista?

Mestre Baptista: Inicialmente eu usei couro de cavalo, a raspa do couro de cavalo. Mas nós estamos com dificuldade aqui em Pelotas, porque o curtume que fornecia essas raspas de couro de cavalo não está mais trabalhando com cavalo. Então, eu passei a trabalhar agora com o couro bovino e o couro de bode velho.

SV: E os de antigamente? Eram com couro de cavalo?

Mestre Baptista: Era couro de cavalo.

SV: E ele originalmente era feito do tronco da árvore?

Mestre Baptista: Isso não é oficial. Segundo os meus conhecimentos, a história que chegou até mim, o Sopapo era feito de tronco de árvo-re. Acredito eu, por exemplo, que a árvore que os escravos lá na Áfri-ca faziam, que começaram a fazer este instrumento, devia ser uma árvore assim como a Cortiça. Eles começavam a cavocar por dentro, já deixando o tronco da árvore cônico, certo? Eles matavam o animal, depois eles pegavam o couro em natura do animal e botavam o couro na cinza para tirar o cabelo e, já molhado mesmo, eles botavam no instrumento e amarravam, puxavam e amarravam lá embaixo.

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SV: O que amarra o couro?

Mestre Baptista: Justamente, tem uns pinos e o couro é amarrado.

SV: E era assim que eles faziam antigamente?

Mestre Baptista: Antigamente era feito assim. Só que, quando eles iam tocar este instrumento, eles geralmente faziam fogueira e sen-tavam em cima.

SV: Como fazem os uruguaios?

Mestre Baptista: Justamente. Então, tem aqui este instrumento que é de origem africana (mostra o instrumento que foi a ele dado na África). Olha aqui os pinos. E aqui está a afinação do instrumento. En-tão, naquela época, quando eles iam tocar no sereno, o instrumento desafinava. Então, eles faziam a fogueira, botavam o instrumento no chão em direção à fogueira, aí, o instrumento afinava, eles sentavam em cima do instrumento e dali eles faziam as batidas e tocavam para os Orixás. Depois, este instrumento vem sofrendo, como eu falei anteriormente, uma evolução. Eu venho procedendo uma evolução neste instrumento.

SV: Gostaria que o senhor contasse um pouco para nós a história deste instrumento. Porque ele é um “Atabaque Rei”, então, a impor-tância dentro da religião. Por que o Sopapo carrega tanta coisa em volta dele? A gente estava conversando aquele dia que alguns músicos teriam medo ou receio de tocar, músicos que tocam percussão e que quando olham o Sopapo se apavoram com o tamanho, com a imposi-ção e tal. Eu queria que o senhor contasse um pouco da história dele e tentasse me dizer o que tem em volta deste instrumento que a gente não consegue explicar?

Mestre Baptista: As terreiras aqui de Pelotas, que são muitas... Tem muita terreira aqui em Pelotas. Elas não usam também este instru-mento, eles usam atabaques menores. Eles não usam este instru-mento aqui. O Sopapo tem uma força espiritual muito grande. Como eu falei anteriormente, ele é um “Atabaque Rei”, ele pertence a Xangô, e você, para manusear ele, tem que pedir permissão. Se você obedecer às regras para manusear este instrumento, ele vai trazer sorte para quem o tem. Então, quando eu entrego este instrumento,

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ele já vai praticamente consagrado daqui, já vai benzido. Quando eu entreguei um instrumento a vocês, eu avisei que ele iria levar luz para vocês, iria levar sorte para vocês. E o que aconteceu? Ele deu sorte, não deu?

SV: Muita sorte...

Mestre Baptista: Então, não precisa ter medo dele. Ele carrega uma energia muito forte. Ele deu muita sorte para mim também. Ele vem me mantendo e vem mantendo muitas pessoas. Todo aquele que ad-quire este instrumento, ele evolui financeiramente, certo? Então, muita gente que tem um espírito, uma mediunidade negativa, se afasta deste instrumento porque ele sente que se trata de um instru-mento sagrado. Eles se afastam dele, pois percebem que não é para eles este instrumento. Então, eu digo isso com algum conhecimen-to de causa, para manusear este instrumento, para ser proprietário deste instrumento, não pode ser um bruto, um estúpido, não pode ser um malvado. Tem que ser uma pessoa sensível, tem que ser uma pessoa cristã, pessoa caridosa, porque, então, dá certo. Se for uma pessoa estúpida, não vai tirar nem o som necessário que este ins-trumento produz. Porque ele tem várias tonalidades. Inclusive, se o carioca conhecesse este instrumento, o Sopapo, ele não precisaria ter inventado o surdo de terceira, pois este instrumento já fazia este papel aqui nas baterias de Pelotas.

SV: Ele fazia o papel do surdo de terceira?

Mestre Baptista: Sim, ele fazia o papel do surdo. Ele vinha fechando os espaços.

SV: Ele fazia o papel do surdo de primeira, de segunda e de tercei-ra?

Mestre Baptista: De primeira, de segunda e de terceira.

SV: E aí, conforme foi rolando a substituição, ele foi sendo deixado de lado para fazer só a terceira?

Mestre Baptista: Justamente. Mas aqui, na época da Orquestra de Sopapo, no CABOBU, eu fiz naipes com eles. Porque aí tu faz a afi-nação diferente deles, e a batida, a levada, tu também faz diferen-

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te. Então, tu podes fazer, por exemplo... Tu fechas uma sequência de batida com ele. Tu podes fazer a segunda, a terceira e a quarta com ele, e ele fecha todos os espaços, dependendo do manuseador, dependendo do mestre que está ensinando, orientando a tirar som deste instrumento. Então, se trata de um instrumento de grande va-lia que infelizmente o nosso carnaval, as nossas escolas de samba e nossas baterias abandonaram. Então, eu peço, aproveitando este documentário que está sendo feito, para as pessoas se aproximarem mais deste instrumento, que é um instrumento de grande sonorida-de, de várias sonoridades e é um instrumento sagrado. E, se este do-cumentário tiver alcançado as pessoas que praticam a religião afro, que estas adquiram este instrumento, que é de Xangô. Ele faz parte da religião afro.

SV: E as terreiras aqui não usam?

Mestre Baptista: Não, não usam. Não usam talvez até por falta de conhecimento. Porque ele foi apagado da história. E este instrumen-to, quando surgiu aqui em Pelotas, ele fazia parte do carnaval, e o carnaval fazia parte de uma festa pagã. Talvez por causa disso aí que os nossos chefes de terreira não quiseram que se usasse mais este instrumento.

SV: E provavelmente antes do carnaval ele era usado... Ou não?

Mestre Baptista: Olha, eu não tenho conhecimento. Não me chegou até agora, e eu estou há muitos anos dentro da religião, deste instru-mento fazer parte das religiões afros. Eu não me lembro, eu nunca vi. Eu acredito que nenhuma aqui tenha o Sopapo, não acredito. Eu vendi um para um cacique de terreira e depois eu fui ver este ins-trumento lá na Academia do Samba. Ele doou para a Academia do Samba, começou na terreira, mas não sei o que houve, se as pessoas não se adaptaram, e ele doou para a Academia do Samba. Eu fiz um também para uma terreira aqui perto de casa e eu falei com a ca-cique de terreira, e ela disse que não se adaptaram a tocar aquele instrumento. Foi feito o coreto, eu mandei direitinho para eles bota-rem dentro do coreto para tocar e, inclusive, independentemente a não se adaptar a tocar este instrumento ele estava criando problema dentro da terreira, porque as entidades baixavam e depois não que-riam subir, ficavam teimosas. Não queriam subir por causa do som

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deste instrumento. Então, foi criado problema dentro desta terreira, e ela se desfez deste instrumento, e ele hoje se encontra na Bahia. Porque, quando eu fui lá oficinar sobre o Sopapo em um projeto da Caixa Econômica Federal, em Salvador, ficaram cinco instrumentos. Eu levei quatro prontos e um eu oficinei lá, e um desses quatro foi o desta terreira que me havia devolvido o instrumento.

SV: Gostaria que o senhor contasse um pouco da importância, fa-lando um pouco da característica e do antigo carnaval que usava este Sopapo. Qual é a diferença sobre o carnaval de antigamente de Pelotas com a utilização deste instrumento, musicalmente falando. O senhor, como percussionista, como músico... Tecnicamente era di-ferente o carnaval daqui? O som? E as músicas produzidas, o samba era diferente pela utilização deste instrumento, pela marcação e pela característica dele? Então, como era o samba antigamente e a influencia do Sopapo neste samba e a transformação do samba com as mudanças, pois o samba foi mudando, mudando...

Mestre Baptista: Veja bem que eu falei anteriormente que Pelotas foi o segundo e terceiro carnaval do Brasil - por causa deste instru-mento, por causa do Sopapo. Então, na época, vinham turistas da Argentina, Uruguai, do Paraguai, do Chile, do Peru. Eles vinham todos para cá. Na época de carnaval aqui em Pelotas, tu não encontravas nenhum apartamento ou hotel à disposição, e, às vezes, tinham de dormir até em residências de pessoas que se dispunham a receber esses turistas... De tanta gente que vinha para cá. Por exemplo, es-tes bonecos que vocês veem em Olinda, Pernambuco e em Orlando nos EUA eram daqui de Pelotas. Era uma época em que tinham esses bonecos aqui e hoje só resta um boneco desses aí, que está represen-tando a época, que é a Bruxa da Várzea. Não sei se vocês chegaram a ver a Bruxa da Várzea? É um boneco grande e continua (no carna-val), que é daquela época. Aqui em Pelotas, a bicharada, os blocos eram muito grandes. Aqui nós tínhamos a Girafa da Cerquinha, nós tínhamos aqui o King Kong, tinha o Bloco do Galo, tinha o Bloco do Papagaio, Bloco do Bode, Bloco do Camelo, Bloco do Dromedário... Então, esses animais todos tinham aqui em Pelotas, porque o segundo e o terceiro carnaval do Brasil não era também só por causa do Sopa-po. Era uma época em que os clubes sociais de Pelotas participavam deste carnaval, com aqueles carros exuberantes, carros alegóricos. Então, o Sopapo fez parte dessa época e depois, por causa da buro-

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cracia - como diz o Giba Giba -, resolveram imitar o Rio de Janeiro e aí tiraram os metais. Pois não existia samba enredo, não existia harmonia... A harmonia era feita por metais, por sopro.

SV: Não tinha enredo?

Mestre Baptista: Não tinha enredo, não tinha carro de som, era tudo instrumental. Eram metais. Então eles tiraram os metais, tiraram o Sopapo para imitar o Rio de Janeiro, e aí entrou o carro de som, en-trou a harmonia, entraram os sambas enredo e os compositores para fazer os sambas de enredo, entraram os puxadores de samba. Aí, então, eles foram eliminando o carnaval de Pelotas e hoje eles não conseguem imitar o carnaval do Rio de Janeiro, porque ninguém con-segue, pois é o maior carnaval do mundo, e nem conseguem voltar às características do carnaval de Pelotas, que foi o segundo e terceiro carnaval do Brasil. Nós fugimos das nossas características... Inclusive tem até um ditado que o Giba Giba fala. Ele diz que estava afim de criar o “Bloco Sociedade Recreativa e Carnavalesca Eles Já nos Vi-ram”. Aí, tu pergunta para o Giba: “E quem é que já nos viu?”. “Os burocratas”. São os mesmos que acabaram com o carnaval de Pelotas e estão acabando. Hoje, existe aí uma meia dúzia de abnegados, de heróis que conseguem vir trazendo este carnaval através das entida-des carnavalescas. Pra tu colocar uma escola de samba hoje na rua, tu precisa de muita verba, sai muito caro. Então, são os abnegados, pois terminou o carnaval, e eles têm de fazer as contas de como vão pagar as dívidas que ficaram do desfile. O dinheiro que eles recebem para colocar uma escola de samba na rua é muito pouco, é insigni-ficante. Não há condições, e o carnaval de Pelotas, no momento em que quiseram imitar o carnaval do Rio de Janeiro, com o surgimento das escolas de samba, houve uma profissionalização do carnaval, e então todo mundo cobra. Então, o carnaval aqui de Pelotas gera em-prego e gera renda. E aí tem essa meia dúzia de abnegados que estão tentando levar o carnaval de Pelotas na raça. É difícil, mas eu oro que dê tudo certo para eles. Pois eu já tive... Já fundei uma escola de samba aqui em Pelotas e eu sei como funciona isso aí.

SV: Qual escola de samba?

Mestre Baptista: A Imperatriz da Zona Norte praticamente é um es-permatozoide meu. Ela nasceu aqui em casa, que é um seguimento

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da própria Bateria Show, verde e branca - que são as cores da Impe-ratriz da Zona Norte. O prelúdio da escola fui eu quem pediu para um compositor amigo meu fazer, e ele queimou pestana, fez dois ou três, e eu não aceitei: “Não é isso que eu quero, quero uma coisa mais lúdica, uma homenagem à Santa, à padroeira do bairro”. Aí, foi quando ele teve a ideia e me chamou e disse: “Vê se serve este aqui?”. Aí, ele cantou para mim, que é este aqui: “Oh, Santa Terezi-nha, nos abençoai. Somos a Zona Norte trazendo a bandeira da paz”. Daí eu aceitei: “É isso aí que eu quero”. E a escola continua até hoje com esse prelúdio. Então, essa escola nasceu aqui em casa.

SV: E que ano era isso, Baptista?

Mestre Baptista: Isso foi em... Nós estamos em 2010... Isso foi antes do CABOBU.

SV: Eu ia lhe perguntar isso agora. E tinha Sopapo na escola?

Mestre Baptista: Na Imperatriz não tinha. Porque foi antes do CA-BOBU. Pois quem é que revitalizou, quem resgatou o Sopapo pra-ticamente foi o Giba Giba, e isso a cidade deve para ele, pois ele resgatou o Sopapo através deste projeto, pois nós nem lembrávamos mais do Sopapo. Hoje não. Hoje eu tô montando um projeto, que é uma Ação Griô, no Instituto de Menores aqui de Pelotas, que trabalha com crianças carentes. E, a partir de março, eu estou iniciando este projeto com uma bateria. Essa bateria é uma homenagem póstuma, um tributo que eu quero prestar aos negros que pelearam na Guerra dos Farrapos, que estão esquecidos, que estão apagados. São os Lan-ceiros Negros. Então eu quero prestar essa homenagem póstuma a estes heróis que pelearam, muitos tombaram e foram enganados.

MC: Mestre, a gente andou visitando algumas charqueadas que resta-ram aqui em Pelotas e em nenhuma delas... Talvez somente em uma delas haja o resquício de uma parede de uma senzala. Todas as outras estão maquiadas para o turismo. A gente foi na “Praça dos Enforca-dos”, que é uma praça belíssima e muito importante para negritude de Pelotas, e ela está abandonada. A gente falou sobre o carnaval, e ele está burocratizado. A gente falou sobre o Tambor de Sopapo, que quase foi extinto, a gente falou sobre os Lanceiros Negros e sabe que essa história foi mal contada. Como é que o senhor sente isso?

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Mestre Baptista: Bom, o Sopapo não foi quase extinto... Ele foi extin-to e resgatado pelo Giba Giba. E olha... O que eu sinto é o seguinte, eu vejo isso com um pouco de apreensão e preocupação, pois estão tentando mascarar a história. Porque Pelotas foi uma das ultimas cidades a dar liberdade para o negro. Essa praça, que é a “Praça dos Enforcados”, é justamente porque ali os escravos eram enforcados, eram mortos ali - e com festa! Era convidada toda a sociedade de Pe-lotas para assistir a morte dos negros. Essas charqueadas, que estão maquiadas, que é para não dar ao turista a visão do que aconteceu aqui, as atrocidades que aconteceram na escravidão aqui em Pelotas. Pois há muitos negros que, depois da escravidão, já voltaram para África. Aqui teve príncipes, teve princesas. Inclusive, aqui no merca-do de Pelotas e no mercado de Porto Alegre, um príncipe assentou um Bará no centro do mercado. Tiveram aqui pessoas importantes, que foram trazidas para cá como escravos. Muitos não aceitaram a es-cravidão e terminaram se suicidando. Outros mataram porque eram negros rebeldes e não aceitavam aquilo, foram mortos. Hoje eu estou tentando - e se os Orixás me ajudarem - prestar essa homenagem a esses lanceiros. E digo mais uma vez: negros que foram enganados. Eles tinham um tratado para pelear e, depois que terminasse a Guer-ra dos Farrapos, eles teriam a liberdade deles. Essa liberdade não foi dada, não foi honrado o trato, e foram mortos - que é a grande traição dos Porongos. Isso está abafado. E que eu vou me incomodar com isso, vou. Mas e aí? É um direito meu como negro prestar essa homenagem, e eu não vou deixar morrer essa coisa tão bonita que eles fizeram no Rio Grande do Sul. Quero com isso dizer que eu estou montando uma bateria, estou montando um show, e nessa bateria vai Sopapo. Agora vai Sopapo. Então, ela vai no mínimo com três ou quatro Sopapos que eu vou colocar na bateria. Ela vai com surdo de primeira, que é feito como bumbo, vai com dois surdos de segunda, que é de náilon, que está com uma oitava acima do bumbo de primei-ra, entro com dois bumbos de terceira, de náilon também, que está com uma quarta acima do surdo de primeira e uma quarta abaixo do surdo de segunda, ele entra no meio. E vou também com um surdo de quarta, um surdo de marcação. E, aí, eu tô montando para quem toca violão, para quem é musico, um acorde fá com 7ª aumentada. Eu tenho o aparelho, tenho tudo aqui em casa onde eu afino meu violão e o bandolim e ali eu afino os instrumentos. Vai com seis ta-róis, seis repeniques, seis tamborins, seis afoxés, um par de pratos

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e quatro ganzás. E, se aparecer alguém que sabe tocar frigideira, eu vou colocar uma frigideira. Ou seja, eu tô resgatando alguma coisa que ficou muito longe daqui, que é as baterias de antigamente de Pelotas. Eu estou em busca do molho, eu não quero correria na minha bateria, eu quero cadência. Então, eu tô montando o show e espero que Deus me ajude, que os Orixás me ajudem e me auxiliem como têm me auxiliado até agora. E, para aqueles que fazem parte deste documentário, que assistem, que também participem, pois eu acho que não é eu, mas, sim, nós. Eu gosto de trabalhar em equipe e eu vou precisar de apoio. Embora eu tenha apoios importantes, pois o barco já saiu do cais do porto, já esta em alto mar...

Após pausa na entrevista, Mestre Baptista volta cantarolando.

Mestre Baptista: “Em seu lugar. Pedi para ficar. Porém você não me deixou. Agora, você voltou para seu governo...”. Me esqueci da letra (risos).

MC: O senhor se lembra de algumas marchas, cantigas de carnaval?

Mestre Baptista: Tem, tem.

MC: Tinha alguma que falasse do Sopapo?

Mestre Baptista: Não, daqui de Pelotas não.

MC: E aquela do Giba? Ele compôs ela para o CABOBU?

Mestre Baptista: É. Aquela ele compôs para o CABOBU. “CABOBU na tua terra. Hoje é dia do tambor...”. Ele fez uns arranjos bons na bateria. Giba Giba é um filosofo contemporâneo.

MC: Como é que foi a emoção de encontrar o Giba Giba? A gente viu que os dois têm muito respeito, muito carinho um pelo outro...

Mestre Baptista: É uma emoção grande, porque o Giba Giba... Eu tenho um carinho e um respeito muito grande por tudo que ele está fazendo para negritude através do resgate deste instrumento, do So-

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papo, e do qual eu sou beneficiado também. Porque aqui em Pelotas eu venho fazendo um trabalho também, paralelo, para a negritude aqui. E é aquilo que eu falei agora há pouco: é a escola de samba Imperatriz da Zona Norte, a primeira Bateria Show, que eu deixei aqui em Pelotas, e agora mais este projeto que eu estou fazendo em homenagem aos Lanceiros Negros. Então, eu também venho fazendo esse trabalho aqui, de valorização da “negrada”, e o Giba Giba vem fazendo isso há muito tempo. Foi um encontro que enriqueceu ainda mais a coisa negra, pois, se ele sozinho já estava revolucionando e eu também sozinho já estava fazendo guerra, agora virou uma batalha. É um casamento que deu certo, e ele mesmo falou aquele dia que veio aqui em casa: “Sempre que nos encontramos é porque vai acon-tecer alguma coisa”. Aí, foi quando eu contei para ele desse projeto dos Lanceiros Negros, e ele me falou que o CABOBU ia retornar. Eu tenho muito respeito, é uma pessoa que tem muito valor para mim, embora nós tivéssemos uma diferença através do CABOBU - e isso até nós acertarmos as coisas -, terminou com ele me entendendo e eu passando a entender ele. Para mim ele é quase como um Orixá, o Giba Giba. As ideias dele são quase sempre extraordinárias, ele está sempre lutando. Eu tenho um grande respeito e uma admiração pelo Mestre Giba Giba. É um compositor, um cantador, um lutador e ele projeta as coisas para as coisas acontecerem. Espero eu que Deus abençoe ele e que os Orixás iluminem ele também e que ele possa fazer muito mais coisas que ele já fez pela negritude e pelos não negros também, aqueles que também estão afim e respeitam a cul-tura negra. Também espero eu reencontrar novamente o Giba Giba no CABOBU e que nós sejamos felizes e possamos presentear não só a negritude, a sociedade pelotense e gaúcha, presentear os Orixás também. Com esse presente que Giba Giba nos deu aqui para Pelotas e que criou uma expectativa muito grande, mas deu essa parada... Até hoje eu sou cobrado por que o CABOBU acabou e se vai voltar o CABOBU. Mas eu não tenho certeza, pois eu dependo da Giba para o CABOBU voltar. O Odara, por exemplo, é uma continuação do CABO-BU, que inclusive tem Sopapo lá, tem atabaques também... E agora, com esse projeto dos Lanceiros Negros, que não é um CABOBU, mas é também um projeto direcionado para as coisas negras, certo? Então, eu tenho um relacionamento de respeito, de admiração muito grande pelo Mestre Giba Giba.

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MC: O senhor falou em casamento. Aqui, fora das câmeras, nós fala-mos um pouco sobre o masculino e o feminino, o Sopapo e a cuíca. O senhor é um mestre cuiqueiro e falou que o Sopapo é o pai do samba e a cuíca a mãe do samba. Eu gostaria de saber como se dá a sua re-lação com a Dona Maria, como é que entra essa relação do feminino com o Sopapo, que é um instrumento tocado por mãos masculinas?

Mestre Baptista: Olha é um relacionamento que, por exemplo... Tu falou na minha companheira, a Dona Maria, que é meu anjo da guar-da. Ela me ajudou nesse resgate deste instrumento. Ela e meu filho, que mora aí nos fundos, me ajudaram a resgatar este instrumento fazendo as oficinas junto comigo. Meu filho e a minha esposa me ajudaram a fazer os 39 Sopapos que restavam para o CABOBU. Sem-pre estiveram junto comigo. O feminino é indispensável, o feminino é bíblico. Veja que, perguntado ao senhor Jesus Cristo se a Terra ia acabar e quando, ele disse: “Não te preocupeis quando a Terra vai acabar, porque, enquanto existir um jota ou um til, a Terra aí estará”. Eu entendo que ele estava falando por parábolas que, dentro desse jota e til, está a mulher. Ou seja, quando a mulher parar de parir, não existirá mais motivos para a Terra estar aqui. A mulher é a dona do mundo, é ela que alavanca a humanidade. Então, logo que ela não quiser parir mais, não existirá mais necessidade da Terra estar aqui. E enquanto a cuíca... A cuíca rouba o espetáculo e hoje, por isso, é muito difícil tu ver uma banda de pagode com cuíca. A cuíca rouba o espetáculo... Geralmente, o sambista, o carnavalesco, que é o meu caso, nós somos vaidosos, a gente quer aparecer, só que a cuíca não deixa. Assim que a cuíca entra no samba e começa a tocar, ela rouba o espetáculo e rouba a atenção do pessoal. Vocês viram aquele dia que eu estava tocando lá em Rio Grande? Que o pessoal todo prestava atenção? Foi ou não foi? Estava todo mundo interessado na cuíca. É um instrumento de difícil execução. Eu levei muito tempo para po-der manusear ela. Aquilo ali é um vibrador que tem aí dentro, e eu desenvolvi alguma coisa para poder tirar som dela, eu não trabalho com água pura. A cuíca também é um ritual, e venho desenvolvendo alguma coisa nela para ela poder gritar. A cuíca é um instrumento de percussão, e, se tu colocar uma bateria a tocar, eu me retiro uns 4 ou 5 metros dela e começo a tocar e acompanhar a bateria, pois, se tu não escutar a cuíca, eu dou ela de presente para ti. Então, eu não trabalho com água pura, não é água pura. O pano... Eu uso um pano especial para tocar a cuíca. A afinação... Tem que saber afinar

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também ela. Então, existe um casamento entre a cuíca e o Sopapo, o surdo e o pandeiro, estes quatro são indispensáveis em uma roda de samba. E aí entra o feminino, pois tu não faz uma roda de samba sem a mulher. A mulher é a graça, o encantamento. A mulher samba, ela dança, ela canta. Eu tenho grande respeito, apreço e admiração pelo sexo oposto. Diz que a mulher é o sexo frágil, mas eu não acredito. Eu, se não fosse a minha mulher, talvez eu tivesse sucumbindo. Agora mesmo eu sofri um problema de saúde e estou fazendo um trata-mento caro, e minha mulher foi quem encabeçou um projeto para eu poder fazer esse tratamento pedindo auxílio para os carnavalescos, para as pessoas conhecidas, porque eu gasto R$ 800,00 por mês com esse tratamento. Porque eu sou muito covarde quando se trata de ci-rurgia e eu não quis fazer a cirurgia. Eu optei por fazer o tratamento natural, e quem encabeçou e idealizou a ajuda para esse tratamento foi a minha mulher. E é por isso que eu digo: ela não é minha com-panheira, ela não é minha esposa, ela é meu anjo da guarda. Existe, então, um relacionamento muito grande, e eu não faço nada, não tomo nenhuma atitude em relação à percussão sem primeiro conver-sar com ela, e ela que diz se tá bom, tá regular ou se tá ruim. Então, ela participa diretamente de 100% das minha decisões como mestre de bateria, como percussionista e como músico.

SV: Mulher toca Sopapo?

Mestre Baptista: Pode tocar, eu, por exemplo, não tenho preconceito de mulher tocar Sopapo. Só que ela tem que ter três itens que eu não abro mão, que é a disciplina, a disciplina e a disciplina. Aí não tem problema nenhum, e ensino ela a tocar o Sopapo. Eu não sou sopa-peiro, mas sou um mestre de bateria e sei como se manuseia ele. Eu toco todo e qualquer instrumento de uma bateria. Se aparecer uma mulher que queira aprender a tocar o Sopapo, não tem problema nenhum. Eu não tenho preconceito nenhum.

SV: O senhor conhece mulher que toca Sopapo?

Mestre Baptista: Não.

SV: No Odara também não tem?

Mestre Baptista: Não, no Odara as mulheres só dançam. Quem toca Sopapo lá é o Dilermando.

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MC: E ele toca bem?

Mestre Baptista: Toca bem. Ele é meu aluno. Eu que dou umas orien-tações a ele. E ele vai me auxiliar na montagem desta bateria lá no Instituto de Menores. Ele também é um aprendiz de Griô, e por isso eu oriento ele.

SV: O senhor sendo de Pelotas não chegou a conhecer nenhum dos CABOBU? Cacaio, Boto e Bucha?

Mestre Baptista: Conheci, fui contemporâneo.

SV: Ah, é? Então me conta uma história desses rapazes...

Mestre Baptista: Conheci eles. O Cacaio, eu cheguei a levar a cuíca lá. Foi um dos grandes mestres de bateria, um dos melhores que teve aqui em Pelotas. É uma pena que Deus já levou ele. Eu levei a cuíca pra ele lá, e ele disse: “Dá uma puxada”. E aí eu puxei, ele fez “ok” com o dedo e disse: “Aprovado”. “Solta ela” - ele dizia. E eu soltava. “Pô, que loucura!” - dizia ele. Em uma época que não existiam os recursos de percussão que se tem hoje. Hoje já está tudo diferente. Tem surdo de segunda, de terceira, surdo de quarta, surdo de náilon e, naquela época, não tinha. Era tudo couro. Eram Sopapos e não ti-nham tamborins. E assim mesmo ele brilhou aqui, o falecido Cacaio. Eu assisti eles.

SV: Ele era tocador de Sopapo?

Mestre Baptista: Ele tocava Sopapo, ele era mestre de bateria. En-tão, ele tocava todos os instrumentos de uma bateria. Para ser mes-tre de bateria tem que manusear todos os instrumentos de uma bate-ria, e ele era mestre de bateria, o Cacaio. O Bucha tocava Sopapo na Escola General Teles com ele, e o Boto tocava na Academia do Samba e era um dos melhores deles. O Boto era um baita de um negão, era um guarda-roupa. Tu ficava na entrada da prefeitura de Pelotas e, quando ele entrava lá na Dom Pedro II, há duas quadras, você ouvia o Sopapo do Boto tocando, ouvia aquelas baitas mãos tocando naquele instrumento. Então eu conhecia eles, era contemporâneo.

SV: E o Pássaro Azul, que era de Rio Grande, o senhor conheceu? Contam que era um negro muito grande também e que vinha tocar

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aqui em Pelotas e tocou com o Boto... O Boto tocava de um jeito e ele tocava de outro?

Mestre Baptista: É. Para tocar aqueles instrumentos tinha que ser grande. Eu conheci um bar aqui em Pelotas que se chamava Pássaro Azul... É aquilo que eu estou falando, tu montava os naipes de Sopa-po, mudava a maneira de tocar e a afinação do instrumento.

SV: E, pelo o que o senhor sabe, o Sopapo é de Pelotas ou é de Rio Grande?

Mestre Baptista: Olha, a certeza que eu tenho é que ele é africano. Mas como foi parar na mão dos escravos eu não sei. Eu não sei direito a história do Sopapo, eu só sei que o primeiro Sopapo que apareceu aqui em Pelotas veio de Rio Grande, veio de trem.

SV: Trazido pelo Sardinha?

Mestre Baptista: Eu não sei quem é que trouxe, mas veio em uma entidade carnavalesca de Rio Grande, na General Vitorino. Isso é mais ou menos o que eu sei.

SV: Nós encontramos em pesquisas... Na verdade o professor Mário Maia encontrou uma aquarela de 1862, sobre Pelotas, onde ele viu um grupo de negros tocando um instrumento grande, feito de tronco de árvore, sendo tocado no chão, idêntico ao Sopapo. E a história que o rapaz de Rio Grande contou para nós é que tinha uma fábrica de processamento de carne, a Swift, e tinha uma cara dessa empresa, um executivo, que tinha este tambor em casa. Aí, o Sardinha, que foi o cara criador da primeira escola, que é a General Vitorino, era mo-torista da empresa e, por um acaso, viu na casa desse cara o tambor e levou o Sopapo para escola General Vitorino. No ano seguinte, saiu no carnaval e era tocado pelo Pássaro Azul, que era o Adão. E aí, no ano seguinte, eles vieram para Pelotas... Mas o que se diz é que já existia o Sopapo em Pelotas?

Mestre Baptista: É o que eu te falei, as histórias se confundem. Eu sei duas histórias: os escravos tinham este instrumento, mas não era igual a este que estamos fabricando hoje, eles eram feitos de tronco de árvore e, para mim, eu acho que eles usavam a cortiça, cavoca-vam por dentro, tirando o miolo da árvore, e depois colocavam no

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chão, acendiam a fogueira para afinar os instrumentos e aí eles ba-tiam para os Orixás, batiam sentados nos instrumentos - essa é uma das histórias que chegou até mim, eu não sou contemporâneo dessa época. Eu conto das baterias de Pelotas para cá, que eu convivi e é o que eu sei. E, assim como vocês estão recolhendo dados, eu também estou, e o que eu sei é isso aí. Um instrumento já mais apurado, já mais sofisticado, veio parar aqui em Rio Grande trazido por um ca-nadense. Mas nas charqueadas, com os escravos, já existia o Sopapo, os primitivos. Então, é o que eu sei e o que me chegou até agora da história do Sopapo.

SV: E, aí, depois desse período em que o Sopapo desapareceu da cul-tura, ele vem retornando nas escolas de samba depois do CABOBU? Não tinha mais Sopapo nas escolas de samba?

Mestre Baptista: Não. E não está retornando também. Alguma escola que tem Sopapo aí é porque foi doado pelo Giba Giba na inauguração do CABOBU. Todas as entidades, cada uma ganhou um Sopapo, e a Academia do Samba ficou com dois Sopapos, pois é aquilo que eu fa-lei, que um cacique de terreira comprou um e, não sei o que houve, deu de presente esse Sopapo à Academia do Samba. Aí, tinha outro do Fica Aí, que também doou para a Academia do Samba. A Academia do Samba nasceu... Ela é oriunda do Clube Cultural Fica Aí, então a Academia do Samba deveria ter - ou tem - três Sopapos lá. Um que eles ganharam do CABOBU, do Giba, outro que esse cacique doou e mais um que foi doado pelo Clube Cultura Fica Aí. Ao menos eu vi três Sopapos lá na Academia do Samba. Agora, dizer que eles mandaram fazer ou que fizeram uma ala de Sopapos... Eu desconheço.

SV: E o que tu achas do carnaval hoje, atualmente? O carnaval de Pelotas, para onde se desenvolveu, musicalmente falando... O que tu achas? Qual a tua opinião hoje? Tu sendo homenageado por uma escola. Tem um samba enredo que cita o senhor. Primeiro eu quero que o senhor fale da homenagem e depois do carnaval, como está e para onde vai?

Mestre Baptista: Bom, em primeiro lugar, eu me sinto muito honrado e vaidoso com esta homenagem que a Ramiro Barcelos, uma das es-colas mais tradicionais de Pelotas, está fazendo a minha pessoa. Eu nem sei se sou merecedor. Eu, inclusive, participei da gravação do

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samba com o Sopapo e com a cuíca e, lamentavelmente, não posso participar do desfile por causa do meu problema de saúde. Mas eu me sinto muito honrado, envaidecido e agradecido pela homenagem que a Ramiro Barcelos está prestando para o Mestre Baptista pelos serviços prestado ao carnaval de Pelotas. Eu vejo assim, se eu pudes-se participar do desfile da Ramiro Barcelos, eu iria com muito prazer, com muito gosto, mas, infelizmente, eu não estou em condições de desfilar este ano. E, como eu estou falando, eu só tenho mais é que agradecer à diretoria da Ramiro Barcelos pelo reconhecimento, pela homenagem que eles me prestaram, pois eu sou citado no samba e, inclusive, esse samba foi feito em Porto Alegre, em Esteio, na Grande Porto Alegre, pelo Estevam, ex-petroleiro, ele trabalhava na Petrobras e é o autor desse samba. Ele já esteve aqui em casa e dei-xou o CD para mim aqui. Eu me sinto muito gratificado e cheguei à conclusão que o que eu fiz aqui em Pelotas não foi em vão. Alguém viu, e então eu não passei despercebido aqui. Então eu contribui de alguma forma e com alguma coisa com o carnaval de Pelotas. Hoje, eu vejo o carnaval de Pelotas... Eu que assisti ao carnaval do passa-do, vejo com muita apreensão e com tristeza. Não é esse aí... Não é o nosso carnaval. Eu que assisti ao segundo e terceiro carnaval do Brasil... Hoje nós perdemos para Florianópolis, perdemos para Porto Alegre, perdemos para Uruguaiana, perdemos para Recife, perdemos para Salvador, para São Paulo... E eu não sei em que lugar que está o carnaval de Pelotas justamente por ter fugido das características próprias do carnaval de Pelotas. E esse é o preço que nós estamos pa-gando por querer imitar o Rio de Janeiro, e ninguém consegue imitar o Rio de Janeiro, que é o maior carnaval do mundo. E, hoje, nestes dias bicudos que estamos vivendo, nesta fase com falta de dinheiro, é muito difícil de botar uma escola de samba na rua, pois se precisa de muito dinheiro. São fantasias caras, carros alegóricos, coisas para montar as alegorias, uma bateria - com o preço que estão os instru-mentos... Ou seja, o carnaval de Pelotas está profissionalizado e é uma imitação muito rudimentar do carnaval do Rio. Eu estou vendo o carnaval de Pelotas com muita apreensão e, ao mesmo tempo, batendo palmas para essas pessoas que ainda conseguem fazer car-naval hoje com essa crise que esta aí. São heróis estes presidentes de escolas de samba e entidades carnavalescas de Pelotas. Eles estão trazendo o carnaval pelo braço, no peito e na raça, mas está muito longe do que foi o carnaval de Pelotas. Este carnaval que está aí, eu

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não sou muito chegado. Inclusive, ano passado, eu não fui e, neste ano, eu também não vou nem olhar. Não vou olhar porque é enxugar gelo, é chover no molhado, e eu vou ver o quê? As baterias na corre-ria que está aí, para que isso aí? Para que essas correrias? Então, eu não gosto. Eles não estão sambando, eles estão marchando. Pobre dos passistas que vão sambando na frente da bateria... Quando che-gam lá no fim, eles vão extenuados, cansados lá no fim da passarela. Então, por que a correria? E isso é também mais uma imitação do Rio de Janeiro. Eu sou mais favorável que o mestre de bateria faça o samba cadenciado e para que correria? Tem uma hora e vinte para andar trezentos metros ou trezentos e vinte metros, que é a nos-sa passarela aqui, não precisa correr. Por que correria? Cadencia o samba, dá tempo das pessoas se exibirem, se apresentarem, para o passista e para o mestre-sala e porta-bandeira se apresentarem... Mas não. Eles passam correndo na passarela, para quê? Eles estão marchando, e aí não é escola de samba, é escola de marcha. Então, eu vejo com certa apreensão, embora eu diga que esses dirigentes de escolas de samba e entidades carnavalescas daqui de Pelotas sejam uns heróis. Estes, depois que termina o carnaval, vão fazer contas para ver quanto ficaram devendo. Não é fácil não. E eu digo isso como fundador de uma escola de samba aqui em Pelotas, de eu ter que colocar dinheiro do meu bolso para poder colocar a escola na rua. O carnaval de Pelotas está profissionalizado e não tem fundo, não tem verba para isso aí. E, conforme vocês sabem, a LIC não está existindo mais, né? Então, a verba que está vindo de auxílio para o carnaval é da prefeitura. Agora deu uma melhorada, pois deu uma injeção de verba aqui no carnaval de Pelotas através do Unidos Pelo Samba, que eles não deram dinheiro, mas distribuíram vinte mil reais para cada escola através de instrumentos e botaram os dirigentes das escolas de samba dentro de um ônibus e foram para o Rio de Janeiro fazer compras de até dez mil reais - mais o instrumental que eles re-ceberam, então, foi um total de vinte mil reais... Com isso acredito que já melhorou um pouco, já deu uma folga na tesouraria, no caixa dessas entidades. Enfim, eu vejo com apreensão o carnaval de Pelo-tas e gostaria que o carnaval participativo retornasse para o centro da cidade. Eu sou da época dos Dominós, da época dos Mascarados Cômicos, que faziam as pessoas rir. Eu que sou da época da bicharada que tinha aqui em Pelotas, eu que sou de uma época dos bonecos gigantes que tinham aqui, eu que sou de uma época do Sopapo e dos

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metais. Então, vejo o carnaval de Pelotas com muita apreensão e muita tristeza, sinceramente, porque sou testemunha desse carnaval de Pelotas aqui - e que o Giba Giba viu também -, que foi o segundo e terceiro carnaval do país, mas que agora acabou.

SV: O que o Sopapo simboliza para as pessoas, para os negros des-cendentes de africanos que estão aqui? De que forma o senhor acha que o Sopapo pode, como símbolo, de alguma forma, resgatar esta história que foi apagada? E como o Sopapo pode resgatar esta história dos negros, que foi esquecida assim como o tambor foi esquecido?

Mestre Baptista: Olha, a prova está no sucesso desse projeto do Giba Giba, o CABOBU, que ficou na história de Pelotas. Inclusive, eu mon-tei uma orquestra de Sopapos e mais a minha bateria. E, quando chegava ali no Mercado, que ali era a apoteose, eu tirava os instru-mentos da bateria e deixava só a orquestra de Sopapos funcionando e mais o pessoal, que hoje é do Odara, fazendo a Dança Afro. O Sopapo pode enriquecer muita coisa para a negritude aqui de Pelotas. Acon-tece que se não tem Sopapo como é que eles vão tocar? Tem que ter Sopapo. Se tiver Sopapo, aparece tocador de Sopapo. Aqui na minha residência tem vindo gente saber o preço do Sopapo, tem gente que quer sair nas baterias aqui, mas só toca Sopapo. Então, o que é que está faltando aqui? É o instrumental... E mão de obra existe, tanto é que o CABOBU provou isso aí. Eu fiz quarenta Sopapos para o CABOBU e, na época, eu devo ter saído com uns vinte sopapeiros e mais a minha bateria. Hoje, por exemplo, quem está divulgando mais o So-papo, quem está difundindo este instrumental é Porto Alegre. Foi um sucesso muito grande este instrumental, os cinco que ficaram lá em Salvador, na Bahia, foi sucesso os dois que eu oficinei lá em Campi-nas... Pois o resto do Brasil não tinha conhecimento deste instrumen-to. Ele sumiu do mapa, e quem o resgatou foi o Giba Giba.

SV: O senhor conhece mais alguém que faça Sopapo?

Mestre Baptista: Olha, eu sei que tem, mas eu não conheço. Através do CABOBU foram criadas oficinas aqui para fazer Sopapo, e o Mário Maia é um deles. O Dilermando também é um deles, um dos alunos que aprenderam comigo aqui. Só que tu, para fazer um Sopapo, pre-cisas de maquinário.

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SV: E o CABOBU influenciou inclusive nisso? De passar adiante o co-nhecimento?

Mestre Baptista: Influenciou. Tinham oficinas, e eu passei conheci-mento para eles. O Mário Maia já fez Sopapo e fez porque eu vi lá na universidade, fui lá e vi. Ele tem Sopapo feito por ele. Ele saiu com um Sopapo feito por ele na escola General Teles. Agora, em série, o único que está fazendo Sopapo acredito que seja eu. Pode ter alguém que saiba fazer sim, eu não sou o único, mas quem está fazendo em série sou eu.

SV: A gente ainda não encontrou...

Mestre Baptista: Pois é, mas deve existir sim.

SV: Fala alguma coisa aí que não te perguntei... Algo que o senhor queira falar.

Mestre Baptista: Em primeiro lugar, eu queria agradecer a oportuni-dade. E, para todos aqueles que verem este documentário, eu quero mandar um abraço do Mestre Baptista, um abraço da cidade de Pelo-tas a todas as pessoas que assistirem a este documentário. Dizer que usem este instrumento e que conheçam o Sopapo.

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GIBA GIBA

Gilberto Amaro do Nascimento é o homem dos 150 anos - não revela jamais a sua idade. Na sua caminhada de vida de artista e ativista, tem feitos que marcaram a história cultural do Rio Grande do Sul: fundou a Praiana, primeira escola de samba de Porto Alegre, e idealizou o CABOBU, um festival que retirou do esquecimento um dos ícones da cultura afrodescendente do extremo sul do Brasil, o Sopa-po. Percursionista nato e filósofo contemporâneo, como o classifica Mestre Baptista, é homem de opiniões fortes contra os “burocratas” do Estado, a quem culpa pela não continuidade da produção cultural autêntica das regiões brasileiras.

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Na sua casa, em Porto Alegre.

GT: Então tá, Giba. Vamos começar pelo começo. Pode inciar contan-do a história do Giba Giba com o Sopapo, indo lá para Pelotas...

Giba Giba: A história com o Sopapo... A história do Sopapo, como eu vou dizer, é de amor à primeira vista. Quando eu via os caras tocando o Sopapo... Aquele som daquele instrumento... Eu ficava olhando, acompanhando. Aí, eu vim pra Porto Alegre, não trouxe Sopapo ne-nhum, nem pra tocar. E, por acaso, fundamos a escola de samba. E, por acaso, mais de cinquenta por cento da turma da escola de samba era de Pelotas. E, por acaso, nós botamos o Sopapo nas escolas sim-plesmente por uma razão, uma influência cultural.

GT: Era a primeira escola de samba de Porto Alegre?

Giba Giba: É, neste formato de escola de samba, foi. Pode ser que tivesse outras coisas com nomes de escola de samba, mas não eram. Os blocos de Porto Alegre eram grupos carnavalescos...

SV: Bambas não era escola?

Giba Giba: Era Grupo Carnavalesco Bambas da Orgia. Todos eram gru-pos carnavalescos, saíam só tocando marcha. Era uniforme, todos os grupos saíam tocando marchinha. E a fantasia também era uniforme, do porta-estandarte a... Não tinha porta-bandeira, não tinha mestre-sala, não tinha nada disso.

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GT: E não tinha Sopapo nesses outros?

Giba Giba: Não, não tinha. O pessoal nem sabia o que era, aqui não tinha. Nem a gente sabia que aqui não tinha. É por isso que a cultura é uma coisa fantástica, porque ela não tem rótulo, ela não tem “isso é assim, isso é assado”. Ela é o jeito de cada lugar. E, quando as pessoas saem daquele lugar e vão pra outro, elas levam aquele jeito. É aí que vão ser formando as coisas, como qualquer coisa: a cultura alemã, a cultura italiana... Eles vão ali, ficam ali, eles não vão dizer “nós vamos fazer isso, nós vamos aquilo”. Não, já está feito ao natu-ral, tudo foi feito com naturalidade. Perdeu a naturalidade quando começaram a enquadrar, a regulamentar todas as coisas que eram espontâneas. E aí foi descaracterizando e tal. E, depois, o processo cultural que se desenvolve com a racionalidade do dia a dia passou a ser controlado, perdeu seu efeito natural, perdeu sua espontanei-dade. E é por isso que está esta conflagração brasileira de ninguém se entender. Porque está todo mundo... Foi mexido o jeito de ser de cada lugar, alterou o ecossistema existencial. Porra, merda! E é foda!

GT: Como é que tu vês a contribuição deste tambor aí? Eu me lembro de uma frase que tu dizes numa outra entrevista, que a gente fez lá na Universidade, quando tu percebeste que não tinha mais Tambor de Sopapo... Antes de começar, antes de tu montares o CABOBU, e aí a gente fez aquela entrevista na Universidade, se lembra? A gente levou uma galera... E aí eu me lembro de uma frase tua: “Eu vi que não tinha mais Sopapo nas escolas de samba de Pelotas e pronto: está em extinção a matriz cultural do samba da minha terra”. Essa frase, pra mim, é muito forte, é muito simbólica. Como é que esse tambor se transforma na matriz cultural do samba?

Giba Giba: Não é uma questão de se transformar. É quase que, pra-ticamente, inconsciente. É como se fosse, por exemplo, o cara do Sopapo. Ele não nasceu assim: “Vou fazer o Sopapo pra ser o instru-mento...”. Não. Cada região tem os seus tambores, a sua maneira de ser, o seu jeito de ser. E esses tambores, a maneira de ser, eles são confeccionados com a sua influência regional, com o que tem ali. As pessoas sempre dizem assim: “E esse instrumento aí, veio da África?”. Não, da África não veio absolutamente nada. Da África só veio a memória. Só, né?! A cultura africana é um barato por causa

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disso, porque os caras chegaram aqui zeradinho, sem nada, só com o paninho do corpo em cima. E reconstruíram a África fora da África, com a sua cultura, com tudo isso. Isso que é importante. E essa re-construção é que faz parte dessa naturalidade. Quer dizer, em cada região do Brasil onde os negros foram espalhados... E aí ia ficando cada lugar com o seu jeito. É por isso que eu falo que, às vezes, as pessoas querem unificar o carnaval. Eu digo: “Pô, o carnaval só é unificado numa coisa, ele é unificado na alegria, na fantasia, na espontaneidade”. Mas não no enrijecimento de uma categoria. Cada lugar com o seu jeito de ser. E, quando o cara perde o jeito de ser, ele perde duas vezes, ele perde aquele jeito natural que ele era e jamais chegará a ser o outro. Então, é uma coisa que é assim. O Sopapo não é uma coisa misteriosa. Ele é um fundamento, acredito eu, de um instrumento que foi criado assim... Por exemplo, em Pelotas, quando a gente era criança, a gente criava um monte de instrumentos sem saber o porquê. Em cada zona da cidade, era normal: “Vamos fazer um bloco de carnaval? Vamos!”. Era isso. “Como vamos fazer? Quem sabe fazer tambor? Eu sei, eu sei!”. Aí, chegava no curtume que tinha em Pelotas, e os caras davam o couro pra gente, e cada um fazia um instrumento com a sua habilidade. Se o instrumento ficasse bom, o cara repetia. E aquilo ficava. Quer dizer, essa é a cultura, sabe como é?! E eu acredito que o Sopapo é um desses fenômenos, assim como tem aquele tambor do candombe. Quando ele nasceu, depois ele foi se solidificando. Assim como a Praiana. Quando a Praiana veio com aquele jeito de carnaval, era aquele jeito, ela sozinha. Ela não saiu pra ganhar, nem pra perder. Saiu só pra fazer o carnaval. Só que foi uma revolução geral. E aí todo mundo já se transformou em escola e tal. Mas ela tinha que ter ficado... Acredito eu que a gente perdeu uma grande oportunidade de fazer o carnaval e as escolas do jeito da gente, pra ver o jeito que seria. Essa seria talvez a contribuição da Praiana, de fazer com o jeito mesmo do Rio Grande do Sul. Como tem o jeito de Minas fazer, como tem o jeito de Recife, como tem da Bahia. Cada lugar tem um jeito. Agora, se tu vai querer fazer do jeito de um outro lugar, aí tu tá ferrado, porque jamais tu vai fazer do jeito de outro lugar.

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GT: Tu estás te referindo à “carioquização” do carnaval?

Giba Giba: Não é que seja “carioquização”. Porque eu acho assim... Cada lugar tem o seu jeito. Cada um tem o seu jeito, não é igual. Não é questão de ser melhor nem de ser pior, é que não é igual.

GT: Sim. O Baptista diz muito isso: não adianta imitar porque a gente não vai conseguir fazer do jeito deles...

Giba Giba: Claro. E o pior é que tu perde aquele know how que tu tinha. Eu sou do tempo de quando o Herivelton Martins, o Risadinha, foi passar carnaval lá em Pelotas, porque lá tinha aquele ritmo e tal. Ele não ia passar lá pra ver o ritmo que tinha no Rio, ele ia lá pra ver o ritmo que tinha lá. Porque, se não fosse, ele ficava no Rio. É que nem se tu quer fazer igual ao fulano... Então não. Então chama o fulano, não é?! Como uma vez eu estava fazendo um show, e um cara chegou e disse: “Vem cá, tu não vai cantar o Chico?”. E eu digo: “Bah, eu adoro o Chico, eu amo o Chico, só que eu não tenho o mí-nimo de talento de chegar e fazer a coisa que ele faz. Agora, vamos combinar o seguinte: o dia que tu quiser ouvir o Chico, tu contrata ele. O dia que tu quiser me ouvir, tu contrata eu. O dia que tu quiser ver o Antônio, tu contrata o Antônio. Agora, tu não contrata o Antô-nio pra querer ouvir o José”. Claro, tu casar com uma mulher que é parecida com a fulana... Então casa com a fulana, entende?! É um conjunto de coisas que a gente não se flagra. Quer dizer, isso é que é cultura. Então, nós estamos fodidos porque nós burocratizamos a espontaneidade, e a espontaneidade burocratizada é uma merda.

GT: E me diz uma coisa, Giba. Só pra nós continuarmos nesta história do carnaval. O Sopapo embalava muito, lá em Pelotas, o carnaval de rua mesmo. O pessoal diz muito, em Pelotas e Rio Grande, isso: “A gente sabia qual era o bloco que estava vindo, qual era o pessoal saindo, só pelo tambor”. Era o jeito que os caras tocavam. Cada es-cola tinha uma característica de tocar o instrumento. E daí tinham os grandes sopapeiros...

Giba Giba: Claro, tinha. E a própria escola tinha a sua identidade. Tu ouvia e sabia. Assim como Porto Alegre também tinha. Os blocos de Porto Alegre também tinham uma identidade: tinham os Coman-ches, o Seresteiro, o Céu Azul, o Bambas da Orgia, o Embaixadores do Ritmo, os Cariocas... Quer dizer, todos esses blocos, todos esses,

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os Xavantes, Aimoré e tal. Todos eles, qualquer um deles, tu ouvia e tu identificava: “Aí vem vindo os Xavantes. Aí vem vindo os Coman-ches”. Só de ouvir. E eles não combinavam de fazer diferente, é que já era diferente ao natural. Não é que fosse diferente: era caracte-rístico. É como três irmãos, três pessoas iguais, mas diferentes. E qual é a diferença? Bom, a diferença é a subjetividade da existência. E é isso que, digamos assim, não sei, a tecnocracia, a burocracia, seja lá o que for, não entende. Até é bom, porque não entende até pra sua própria sobrevivência. Porque o dia que eles entenderem isso eles não sobrevivem mais, porque são duas linhas paralelas que não se encontram mesmo.

GT: E nós percebemos com essas entrevistas que a gente tem feito que o Sopapo estava no cerne desta caracterização dos blocos lá de Pelotas...

Giba Giba: É, das escolas. Porque tinham blocos que não tinham o tambor, era normal. Por exemplo, não me lembro da Girafa da Cer-quinha, que é um bloco tradicional até hoje, eu não me lembro se eles tinham o Sopapo na Girafa, acho que não tinha. Porque a Girafa cantava marcha, e o Sopapo não é bom pra marcha, o Sopapo é bom pra samba.

GT: Então ele estava mais nas escolas? Ele era marcador? Tem uma diferenciação de como ele é usado hoje pra como era antigamente. Porque falam do surdo de terceira, que foi sendo substituído...

Giba Giba: É, o Sopapo é mágico. Ele é fascinante. Claro, tinham os tambores, surdos, tamborins, tal, tal e tal. E o Sopapo, como ele é batido com a mão, aí ele faz a segunda, terceira, quarta, quinta. Aí ele faz tudo. E por isso que é importante que cada um toque a mesma música com o seu jeito, com o mesmo fim. Essa é a coisa mais mara-vilhosa, ele tem uma identidade. Por exemplo, a Praiana tinha dez sopapeiros, dez “nego” sovando. Aquilo vinha bonito. Um vinha do lado do outro, o outro mais do lado e tal. E o cara vinha, como eu vou dizer, é quase como uma confraria, uma identidade dos Orixás, uma batida de todo mundo tocando pro mesmo santo. E a gente só olhava um pro outro e já sabia: “Aquela outra”. E fazia assim com a cabeça e tal. E isso aí tudo... Não tem partitura pra isso. Só tem...

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GT: Sentimento.

Giba Giba: Sentimento! E é por isso que é cultura. Não tem cópia, não tenho como copiar, o cara nasceu ali e vai sendo aquilo. É como o cara ser chinês, nasceu na China e vai até o final. Tu não vai botar outra coisa nele. Por isso que a humanidade fica uma merda. Por-que ela intervém, ela é intervencionista no jeito de ser dos outros, na maneira de ser dos outros. E daí dá o conflito, essa é a história da humanidade. É isso que nós aqui não entendemos. Até as pes-soas que mandam em nós não entendem isso. Tanto não entendem que eles mandam. E, se entendessem, não mandavam, obedeciam. Porque eles, os políticos, estão lá não é pra mandar, estão lá é pra obedecer. E eles estão mandando, porque já está invertido. Porque é uma procuração que a gente deu pra eles, a gente não deu o poder, a gente deu uma procuração pra eles fazerem o que eu quero, não pra eles fazerem o que eles querem. Tá tudo mudado. E dentro dessa confusão...

GT: Tu não dás o poder.

Giba Giba: Claro, tu não deu o poder pra ninguém. Ninguém tem. Mas o cara usufruiu daquilo e depois fica fazendo o que acha que tem que fazer. Perdeu aquele senso da convivência, conviver contigo e tal. Quer dizer, ainda bem que tu pensa diferente de mim. Os caras demonizam quem pensa diferente. “Não, ele é isso porque...”. Óti-mo! Porque quanto mais gente pensar diferente mais a gente constrói coisas diversificadas. Agora, o sentido maior disso tudo é a brasilida-de. Nunca ouvi dizer: “Isso aqui é bom para o Brasil”. O cara sempre diz assim: “Isso é bom para uma parte”. Não, uma parte é uma parte com um todo, aquela parte sozinha não significa nada. Tu tá lutando pra ser íntegro, pra ser inteiro, como tu vai ser uma parte? E de dizer que a tua parte é que é a certa, só de dizer isso tu já é um ditador. Se eu disser que a minha parte é que é a boa e a tua é uma porca-ria... Porra, eu sou um ditador! Eu não tenho a mínima capacidade de convivência com ninguém. E se eu não tenho a capacidade de convi-vência com ninguém, como é que eu vou querer administrar alguma coisa? Administrar todo mundo só porque eu quero, que acha como eu acho? Eu digo isso porque isso aí enrabou a cultura, que terminou com tudo. Aqui em Porto Alegre a gente fazia trezentos blocos em qualquer lugar. Eu digo em Porto Alegre, mas é em qualquer lugar.

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Era fazer um bloco de carnaval e não precisava de absolutamente nada. Nós: “Vamos fazer um bloco? Qual o nome do bloco?”. A discus-são era entre nós. “É bloco carnavalesco ‘tatata’”. E pronto. “Vamos fazer uma reunião onde? Na tua casa, na casa de quem?”. Fazia uma reunião. “Que dia que nós vamos sair? Tal dia”. Pronto. Não tinha problema nenhum. Não dava briga, não dava morte, não dava con-fusão, não dava nada. Aí o cara fala: “Bom, agora tem a associação disso, a mensalidade disso, ‘papapa’... Sindicato...”. Pronto, termi-nou! Porque todas as pessoas disso não tinham absolutamente nada a ver com... Como é que é aquela coisa do primário? Que era o que a gente estava fazendo. Já tinham outros caras lá que não tinham nada a ver, já estava discutindo: “Não, porque tu tocou pro ‘pipi’ e agora tu não vai tocar pro ‘papá’. Agora tu tocou pro ‘agá’ e...”. Entende?! Isso aí foram os caras daqui que colocaram ali. E aí fodeu. E o que criou? Criou o clientelismo. Eu, pra me enquadrar em alguma coisa, eu tenho que ir por ali, por aqui, sabe como é? E, antes, o processo do Estado, de modo geral, de todo o Brasil, a única interferência que ele tinha com relação a qualquer atividade cultural era só não atrapalhar. E, agora, os caras atrapalham. Até porque os caras não são do ramo.

GT: Tu não achas que isso aconteceu porque aumentou o número de pessoas?

Giba Giba: Não, é proporcional. Se fosse assim, Tóquio seria a cidade mais suja do mundo. E é a mais limpa, porque as pessoas não botam um pedacinho de papel na rua. As pessoas levam o lixo pra casa, tu não vê um lixo na rua. Agora, os duzentos anos, o bicentenário do Chopin? Na terra dele, na praça, nas ruas da cidade, tem um disposi-tivo eletrônico, tu senta ali e aperta um botão e ouve a obra do cara, sentado na rua! Quer dizer, uma multidão. Aqui, tu bota um telefone na rua e os “nego” quebram. Os caras vão pro futebol e incendeiam! Mas antes a gente ia para o futebol, ficava todo mundo junto, todo mundo brincando, cansei de passar pela torcida do Grêmio: “Êêê!”. E eles: “Êêê!”. Tudo legal. E vice-versa. Nunca teve um... Eu me lem-bro do primeiro Grenal que eu assisti na Baixada. E eu nem sabia o que era Grenal, sabe? Recém tinha chego em Porto Alegre e, quando vi, entrei lá e tava vendo o jogo e nem me incomodei. Eu tinha uns dez anos, tava lá no campo da Baixada meio assim sem saber direito. Não conhecia as ruas da cidade. “Como é que vai?”. “Vai por aqui,

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vai por ali...”. Cheguei e entrei. Tu saía nas ruas, tu saía sozinho, tu andava só nas ruas. Não tinha interferência. É por isso que eu digo: “Cuidado que eles já nos viram... Sociedade Cultural Beneficente Re-creativa e Escola de Samba Cuidado Que Eles Já Nos Viram”. Porque, quando a tecnocracia, a burocracia, te vê, eles já criam uma coisa. E aí tá fodido. Porque, por exemplo, faz a lei disso, a lei daquilo, contra isso, contra aquilo... E aí tá fodido. Quanto mais lei tem, mais crime existe - é ao contrário! Claro, se tem quinhentas leis, tem quinhentos crimes. Então, nós estamos fora da lei em alguma coisa. Tem excesso de lei, um monte de lei, uma anula a outra. Se tu parar, acontece alguma coisa, mas se tu não sei o quê... E aí, no final, não dá em nada. Ela só vai valer quando ela é sumária. A diferença nossa, por exemplo, com aqueles lugares que falei é que a lei lá é sumária: tu fez, “pá!”, é isso, seja o que for, não tem história. Não sei se está certo ou errado, a única coisa é que tu sabe o que acontece. E aqui só acontece com um coitado qualquer.

GT: Giba, voltando um pouco, pra gente falar dos sopapeiros. Quem tu conheceste de sopapeiro bom? Quem eram os grandes sopapeiros que tu conheceste? Vamos falar disso antes de entrar no CABOBU...

Giba Giba: Isso é difícil. É difícil porque sabe quando tu convive com os artistas? De tão natural que é tu não registra. Não era uma coisa excepcional. Era do tipo: “Toca aí, pega o surdo”, e tal. Quem sabia, sabia. Agora tem oficina disso, daquilo... Tudo isso não é natural. Por que não é natural? Porque as oficinas são boas, mas eu digo que não é natural porque tiraram a gente da rua. Por exemplo, tinha o Dunga, o Caloca, o Pássaro Azul, Boto, o Bucha, Wilmar, o Pandorga, Zé Carlos, Vassourinha, Banha... Eu falei esses nomes, mas acontece que eu falei esses nomes e devem estar faltando mais uns dez ou vinte, ou mais até. Eu até botei no projeto, porque eles eram artistas sem saber. Como na casa da Dona Leotina, que eu ia todos os dias ali e ficava tocando. E agora que eu vejo... Porra, tinha quinhentos mil artistas ali no meio, mas ali era tão natural que não era como se fosse artista.

GT: E esse pessoal que tocava Sopapo tinha uma certa notoriedade, não tinha? Por exemplo, o Pássaro Azul, que a gente viu em Rio Gran-de... Porra, o cara era uma...

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Giba Giba: Claro, o Pássaro Azul, o Boto, o Valcredo, o Banha, o Bu-cha... Esses caras eram “artistão” mesmo. Claro, tinham uma noto-riedade. Eles tocavam e tinham carisma. Aquela história do carisma, aquilo que é subjetivo... Toca e tem o carisma. Tem cara que toca e não tem o carisma. Tem cara que não joga nada, mas tem uma balaca que tu: “Bah, esse cara e bom!”. E o outro corre que nem louco e é isso. Então, eu acho que o que a gente tem que resgatar é a natura-lidade das coisas. Enquanto a gente não resgatar o jeito de ser, e o Estado ficar no lugar que ele tem que ficar, não vai adiantar absolu-tamente nada. Porque o Estado é que tá fora do lugar. Vê uma coisa: os caras inventaram o trabalho infantil escravo. Olha que loucura! Cem por cento da minha turma - cem por cento da minha turma! -, brancos, pretos, pobres ou ricos, todo mundo trabalhava com doze, treze, quatorze anos. Era status trabalhar, não era miséria trabalhar. Eu ficava louco pra fazer quatorze anos e poder trabalhar. Não era pra comer, porque eu morria de fome, era status. Em casa era assim: “O filho do fulano trabalha”. Era status. A gente tinha orgulho de trabalhar e estudar. Uma sociedade que tem isso, ela está pronta. O problema é que o Brasil estava caminhando pra se tornar uma so-ciedade, uma nação legal. E aí desmontaram, deram uma paulada, foderam. O cara que começou a construir o Brasil... Sabe quem foi? Foi o Getúlio. O cara que fez todas as leis trabalhistas, todas as leis legais que tinha, e aí desmancharam pra dizer que fizeram. Aquilo tava prontinho, não precisava de mais nada... Sindicato, nada. O cara trabalhava e, quando fazia seis meses, já estava garantido no trabalho. Se o cara te botasse na rua, ele te indenizava, não tinha Justiça do Trabalho, não tinha nada. Era tudo ao natural, era sumá-rio. Não tinha discussão. Nós tivemos que acomodar politicamente as coisas, botamos a política na frente das coisas. O Brasil tem quinhen-tos e dez anos, velho. Era, tinha e foi... Se era bom, era, tinha e foi. Por que que não é?

SV: Deixa só eu te fazer uma pergunta pra completar o raciocínio pra chegar no CABOBU. Tu contas no teu projeto a origem do Sopapo, e eu queria que tu contasse pra nós. Qual a tua ideia? De onde surgiu o Sopapo? Claro, ele vem da África, mas me refiro em Pelotas, especi-ficamente, com aquela imagem, aquela aquarela que se tem, aquela festa com eles tocando...

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GT: 1861.

SV: Inclusive tem na capa do projeto. Queria que tu me contasse de onde tu achas que esse instrumento surgiu ali. Em Pelotas ou em Rio Grande? Porque há uma discordância.

Giba Giba: Eu acho, inclusive, que é difícil tu chegar e dizer que foi primeiro aqui ou primeiro ali. Porque Pelotas e Rio Grande são irmãs siamesas. A influência cultural... Como eu vou dizer? Um deriva do outro. Se surgiu em Pelotas ou se surgiu em Rio Grande, não tem como... Por exemplo, aquela reprodução daquela aquarela que tem ali é de um pintor que pintou o Rio Grande do Sul. A importância dele é como a de Debret para o Brasil. Ele foi pintando tudo aquilo ali em 1861. Então, se ele registrou em 1861 é porque vem de antes. Porque ele já registrou aquele quadro ali e poderia ser em Pelotas ou em Rio Grande. Aquela região não era tão demarcada como é hoje. Já criaram não sei quantos municípios. Naquele tempo tinha Pelotas e Rio Grande e, depois, tinha aqueles lugarzinhos como Capão do Leão, Cascata... Tudo ali era subsede do município. E Pelotas e Rio Grande tinham um intenso intercâmbio cultural. No fim de semana se ia de trem pra Rio Grande ou vice-versa. Acontecia um baile em Rio Grande, “vamos pra Rio Grande!”. A escola de samba de Rio Grande ia pra Pelotas. O outro ia pra Rio Grande. Quer dizer, sempre foi as-sim, aquela mistura. E essas decisões todas eram decisões tomadas simplesmente pelas sociedades. Não tinha estatal no meio, não tinha “pede licença pra não sei quem e pega ali, abre ali, fecha...”. É mui-to difícil tu chegar e falar em uma coisa sem falar na outra, porque a decadência dessa coisa tá ligada diretamente à intervenção.

GT: O Pássaro Azul ia tocar em Pelotas então. Eles iam de trem, não iam?

Giba Giba: A General Vitorino… E aí ia todo mundo para estação es-perar a chegada dos caras, e eles desciam e era aquela zoeira. Todo mundo sambava ali no Rio Grande. Ali naquela praça de Pelotas, naquele redondo. Os “nego” dançavam naquela praça. Terminava o carnaval e não tinha uma planta quebrada, velho. E agora tu vê. Agora, o “nego” tem que proibir tudo. Tu cuida, os caras quebram, arrebentam tudo. E era o quê? A educação. A facilidade que o cara tinha pra estudar comparado com hoje... Não dá nem pra comparar.

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Pra chegar em uma escola, naquela época, tu não estudava só se não quisesse. Era só tu chegar na escola e dizer: “Quero estudar aqui”. E tu ficava. Meu pai, eu, qualquer um. Meu pai chegou no Patronato e saiu de lá formado. Não tinha polícia, não tinha partido de nada... “Porque tu é isso, tu é aquilo, eu sou isso...”. Esse “blablablá” é que é foda, velho, não tem nada a ver! E, quando começou a ficar assim, eu comecei a ver a decadência. Começou a desmanchar. Tudo que era natural deixou de ser natural. E quando deixa de ser natural tu já não sabe mais o que tu vai falar. É a mesma coisa com os índios. Eles andam tudo nus e, quando tu bota roupa em um, pronto, tá fodido. Aí o cara já ficou com vergonha de estar nu. Então, tudo aquilo era natural, uma coisa fantástica, a cidade vivia... Havia respeito. Um cara sozinho, se tinha uns guris brigando, o cara chegava com uma barbinha, só de ter a barba branca, e dizia: “Vamos parar de brigar aí”. E os “nego” tudo “vupt”! Podia ser valente, podia ser porrada, dizia: “Sim, senhor. Desculpa”. Faziam bailes e festas nas casas das pessoas: “Bah, vai ter festa na casa do seu fulano”. E ia todo mundo dançar. Daqui a pouco chegava um velho: “Terminou o baile”. E todo mundo: “Sim, senhor”. Hoje em dia nem dá pra pensar. Tu coloca trinta na tua casa pra cantar e dançar... Não dá pra fazer. Já começa que o vizinho chama...

GT: Vem a polícia, estão fazendo muito barulho...

Giba Giba: Pois é, tá uma loucura. Então, com é que eu vou concei-tuar as coisas, como é que vou colocar as coisas, isso e isso, aquilo e aquilo, dentro dessa confusão geral? Eu tenho dificuldade para res-ponder as coisas porque não são respostas isoladas. Não é: “Isso e aquilo, então...”. Não é. Isso tudo começou quando chegou o vilão. E daí pronto. Quando chega o vilão, especialmente convidado, aí fodeu! Fodeu tudo, esse que é o problema.

GT: Vamos falar um pouco do CABOBU, Giba. Como é que surgiu a ideia de tu montares o CABOBU? Como aconteceu?

Giba Giba: Quando eu vi que tava esse lance assim... Era primeiro de maio, eu ia chegando em Pelotas pra tocar no Parque do Trabalhador e ia conversando com as pessoas o que a gente tá conversando agora. Que tinha isso: “Agora vocês vão chegar lá e vocês vão ver que tem Sopapo, que tem o samba, que tem isso, que tem aquilo”. Aí cheguei

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lá e não tinha. Aí eu falei para os guris: “Cadê?”. E os guris nem sa-biam do que eu estava falando. Os guris de lá não sabem do que a gente está falando. E eu digo: “Opa! Tá muito mais sério do que eu imaginava, tá pior do que pensava”. Foi daí que eu digo: “Bah, como é que nós vamos resgatar isso?”. Eu digo: “Porra, vamos fazer um projeto”. Aí eu falei pra Sônia Duro, eu aprendi a falar Sônia Duro... Porra, ela é foda. Aí eu digo: “Pô, Soninha, vamos...”...

GT: Que ano foi isso, Giba? 1997?

Giba Giba: Não. Foi acho que em 1992 ou 1993. Não lembro.

GT: Mas tu chegaste a Pelotas e...

Giba Giba: Quando é que o Pila foi secretário?

GT: Em 1998.

Giba Giba: O Pila, em 1998?!

GT: Foi, foi em 1998, no ano em que o Olívio ganha o Governo. Então é 1999, 2000, 2001 e 2002.

Giba Giba: Então foi em 1999, 1998. porque, antes disso, eu ficava conversando com o Pila e tal esses papos que a gente tá tendo agora, a mesma coisa. Aí, quando o Pila pegou, ele me chamou: “Tu vai ficar comigo aqui”. Então tá. Eu digo assim: “Só se eu fizer isso”. E ele disse que ia ser o projeto número um da secretaria. E foi uma batalha pra gente fazer aquilo. Quer dizer... Integralmente a gente não fez até hoje. Porque nem ele conseguiu fazer. Tu sabe a história, nem vamos falar. Pra tu ver como é que é. “Pô, esse cara vai resgatar e os outros vão se flagrar...”. Mas, se não é pra se flagrar, então não faz!

GT: Então, a motivação é esta: tu chegas lá em Pelotas, e os caras não sabem o que é Tambor de Sopapo.

Giba Giba: É, a gurizada, que são os herdeiros, os seguidores das coi-sas. E então eu digo: “Vamos fazer um projeto. Quem será que sabe fazer? Será que tem alguém que sabe confeccionar Sopapo e tal”.

GT: Como é que tu chegas no Baptista?

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Giba Giba: Tem a escola de samba lá em Pelotas, tem o Fragata, a Dona Iraí, mãe do Ben Berardi, que é uma grande dama pelotense, presidente de honra, eterna presidente da Unidos do Fragata. O Ben Berardi disse pra mim assim: “A minha mãe conhece o cara que sabe fazer”. E foi a Dona Iraí que me apresentou o Mestre Baptista. E aí nós fizemos um projeto, conversamos, eu e a Sônia Duro, conversa-mos com o secretário pra ele ver. O Pila era arejado, viu como é que era, e eu disse: “Vamos fazer uns quinze Sopapos”. E a Sônia disse: “Não, vamos fazer quarenta!”. E tinha que fazer um convênio com a Prefeitura de Pelotas - aí é que vem a grandeza da coisa. Porque o Pila era supra, não queria nem saber de nada, era a cultura em pri-meiro lugar. E a Prefeitura de Pelotas abraçou o projeto, o diretor do Colégio Pelotense abraçou o projeto, cedeu a escola pra tudo o que a gente queria fazer.

SV: Quem era o diretor?

Giba Giba: Era o Eduardo Brodi Nogueira, o Adinho! Bah, o Adinho fez assim: “Olha, a chave da escola tá aqui, está aí o teatro, está tudo aí, vocês podem fazer o trabalho durante todo o ano aqui, a sala que vo-cês quiserem”. Quer dizer, foi um conjunto de pessoas que sacaram e controlaram. E aí o Adinho me apresentou a Maritza, uma bailarina maravilhosa e tal. E ela preparou a escola de dança. Enquanto esta-vam preparando a escola de dança, o Mestre Baptista estava confec-cionando o Sopapo... As oficinas todas assim, sabe, juntas, durante todo o ano. E nos finais de semana eu ia lá em Pelotas, no Colégio Pelotense, pra ver o andamento do projeto, se estava andando e tal. E já ensaiando. E quando chegou no final do ano estava tudo pronto. Quer dizer, o Sopapo e o CABOBU são um pretexto pro resgate cul-tural de todo o Rio Grande do Sul, não é do Sopapo, não é o instru-mento, o tambor. O tambor é o agregador, o símbolo. Como o tambor foi o primeiro instrumento de comunicação do homem aqui na terra. E eu botei como símbolo pra gente se comunicar culturalmente com a cidade. É um pretexto que eu tinha de todo o Rio Grande retomar a sua cultura real, a sua cultura regional, cada um com a sua, era esse o pretexto. Então o que seria o CABOBU? Seria essa festa dos tambores... Então, o tambor é que é o agregador. A cultura africana, ela é agregadora, pacificadora, harmoniosa, maravilhosa. Imagina se fosse ao contrário a escravidão? Se fosse ao contrário a escravidão, até hoje os brancos estariam matando os negros, pois se foi o contrá-

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rio, e são eles que continuam, entende? Pra tu ver a índole africana, e eles vendem o contrário. Então, esse símbolo de agregação é o símbolo do tambor africano, ele que dá o toque de brasilidade pro Rio Grande do Sul. E por isso que eu digo que é um projeto estatal, porque seria o quê? A cultura do Rio Grande do Sul, porque se ela fosse suprapartidária, não tem nada a ver com partido, é cultura, ela faria o seguinte: fazia um convênio com cada cidade do Rio Grande do Sul, cada uma, para sua manifestação. Digamos assim, Tapejara, eu não chegaria na cidade de Tapejara e diria: “Vocês fazem isso, vocês aquilo”. Não! Chegava na Secretaria de Cultura e perguntava: “O que vocês têm na cidade?”. “Nós temos isso e isso”. “Então vocês se preparem para o grande encontro cultural do Rio Grande do Sul, que é a festa do CABOBU, no dia tal e tal”. E, então, chegava no final do ano em Pelotas, que seria a sede, receberia, digamos, duzentas ou trezentas cidades, ou quinhentas, ou dez ou vinte cidades do Rio Grande do Sul. E cada uma com a sua representatividade cultural. Não é cada um com um tambor, é cada um com o seu jeito de ser.

GT: O tambor só como manifestação daquele lugar?

Giba Giba: Claro, Pelotas era com o tambor porque Pelotas era do tambor. Rio Grande também. Cada um com a sua. Fortalecia tudo. É aí que dá a identidade cultural. Aquele mosaico que você via, você via uma festa da cultura do Rio Grande do Sul, sem imposição de nada, completamente democrático. Claro, o Sopapo como fio condu-tor, porque o tambor iria chamar. O tambor chama, não tem quem fique parado com o tambor. Essa é a diferença. E o que aconteceria? Aconteceria de o Rio Grande do Sul vestir a camiseta verde e amarela para o resto da vida.

GT: Legal. Não deu pra fazer do jeito que tu querias, mas o que gerou esse projeto?

Giba Giba: Esta conversa que nós estamos tendo aqui agora!

GT: Mas especificamente... Foram duas sessões e...

Giba Giba: A gente fez a primeira edição: Caçapava, São Lourenço, Rio Grande, Dona Francisca, Porto Alegre, Arroio Grande... Todas as cidades concentraram as delegações no Colégio Pelotense. Cada uma com a sua delegação. Foi uma coisa lindíssima. E mais a turma de

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Pelotas junto, que nós juntamos, e ficou uma bateria de uns duzentos tambores, trezentos tambores. Tinha sopro, cavaquinho, violão. E cada delegação destas com sua representatividade pra todo mundo na cidade. Só não entrava quem não quisesse. E aí fizemos o cortejo desde o Colégio Pelotense até a Praça do Pavão e, quando chegamos na Praça do Pavão, encontramos com o resto da sociedade de Pelotas que estava lá e subimos todo mundo em direção ao centro da cidade. Porra, foi “duca”, do diabo!

GT: E os quarenta Sopapos no cortejo?

Giba Giba: Não, não tinham quarenta Sopapos no cortejo. Tinham uns vinte. Porque ainda foi distribuído em praça pública vinte Sopapos. Na segunda edição, a gente repetiu a mesma forma, e era pra ser um evento institucional, como a Festa da Uva, como tem a Fenadoce... Só que... Eu vou omitir essa parte porque...

SV: Mas e daí o Sopapo não ia virar lei também e cair nas mãos dos burocratas?

Giba Giba: Não, é uma coisa institucional. A Festa do CABOBU... Como tem festa de tudo quanto é lugar.

SV: Institucional da Cultura e não do Estado?

Giba Giba: Sim, claro. E daí ficava uma festa como é o Porto Alegre em Cena. É questão de visão. Visão de quem está com a faca e o queijo na mão. Só que quem está não tem essas coisas, e a gente fica malhando em ferro frio.

GT: E pra tua música, Giba, qual a contribuição do tambor, pra musi-calidade nas tuas obras?

Giba Giba: É total.

GT: Como é que tu compões com o tambor? Que relação é esta que tu estabeleces com ele que tu já chegas aqui, batuca. Como tu enxergas isso? É pra não ser objetivo mesmo, pra gente viajar bastante...

Giba Giba: Porque o ritmo é uma coisa da própria vida. Tanto que tem o biorritmo, arritmia, disritmia, quer dizer... Já faz parte da própria vida. Por exemplo, quando a natureza tá fora do ritmo, dá

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terremoto, maremoto. E, quando tá tudo andando dentro do ritmo... É por isso que tem arritmia, disritmia... E o ritmo é a essência da coisa, tudo que tu fizer do ritmo tem tambor. Mesmo que tenha o compasso, tem o tambor. Por isso que a África é a mãe, por isso que a África é a primeira de todas. E até isso já dá inversão: se a África é a primeira, se a África é a mãe de todas as coisas e a África que tá na “m”... Alguma coisa muito séria tá acontecendo. Está invertida a posição. Até porque as pessoas não querem perder o poder. Quando tudo for, digamos assim, quando a justiça chegar a dar a César o que é de César, aí vai ficar tudo legal. Está desequilibrado, porque está tudo fora do lugar. Quem está mandando é quem não tinha que mandar. Aliás, ninguém tinha que mandar, tinha é que conviver, e as pessoas confundiram conviver com mandar.

GT: Quer dizer que quem dá o equilíbrio pra ti, na tua obra, é o tambor?

Giba Giba: Claro, é o ritmo, é o tambor, que é o pai de todas as coi-sas, os Orixás, é o Rei, é o Congo, é o reinado do tambor. Porque a vida tá sempre no ritmo, ela anda no ritmo. Quando estremece algu-ma coisa, o que que dá? Terremoto, maremoto, vulcão... E, quando a Terra tá em harmonia, ela está em harmonia. Por isso que tem o ritmo, biorritmo, arritmia, disritmia. Por isso que tem um monte de louco que diz assim: “Ah, eu estou completo em contato direto com a natureza”. E fica parado... E o cara é louco. Mas o cara não é louco, ele tá ali na natureza, ele tá legal. O índio, ele tá ali, ele convive. Nós é que vamos chegando: “Não, nós temos que botar o rio pra lá, tirar daqui e botar ali”. Porra, e aí queremos que fique tudo legal. Não vai ficar legal! “Vocês que estão aí, não podem ficar aí”. Aí vocês estão bem acomodadinho ali, legal, batendo um papo... “Não, agora tem uma lei que vocês não podem ficar sentado aqui, tem que ficar sentado ali”. E vocês têm que ficar rindo, tem que dizer: “Bom, ago-ra é lei isso, é lei aquilo”. E aí tu fica todo descaracterizado. É por isso que tá todo mundo nervoso, tá todo mundo agredindo o outro. Tu não se dá conta, mas tu não seguiu o teu ciclo natural que tinha que ter seguido. Interferiram em ti, tem interferência em nós. E como ninguém está se entendendo, ninguém sabe a causa disso, perderam a reflexão. Eu entro em conflito contigo, com o outro ali... Sabe quando todo mundo fala, todo mundo grita, todo mundo briga, e daí ninguém tem razão? E a razão não é discutível, a razão é a razão. Nós

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chegamos em um ponto em que não adianta simplesmente. Eu digo assim: “Pô, tu é gremista ou colorado? Colorado? Então não é”. O fato, o concreto, deixou de ser concreto. Os “nego” transformaram o abstrato em concreto em detrimento do fato. Essa é a burocracia. E aí nós temos que dar vida para o inexistente. Os caras chegam assim: “O governo fez isso, fez aquilo, me deu aquilo, me deu isso”. Mas como que o governo dá isso? Ele não tem nada. De quem que ele tirou, quem deu pra ele? Ele não tem nada. Ele tem que chegar lá e me obedecer. É como se tu me desse uma procuração. Se vocês me nomeiam representante, eu tenho que cuidar o meu interesse ou o de vocês? É o de vocês! Eu tenho que prestar contas pra quem? Pra vocês! Eu não tenho que prestar contas pra um grupo que é uma par-te. Se tem essa inversão e se é essa inversão que está mandando em nós, é matemático, é científico, o resultado tem que dar nisso que tá dando! Não pode dar outro.

Edu Nascimento (filho do Giba): Eu quero fazer uma pergunta. Eu queria saber qual é a tua alegria em tocar o Sopapo na tua música. É importante até porque influenciou o projeto do CABOBU, e a im-portância das pessoas que vieram a participar do CABOBU de fora do estado, de todo o Brasil. O que isso te influenciou, qual a importância das pessoas que vieram e viram o CABOBU? Parece que veio o Naná Vasconcelos... Artistas consagrados que vieram pra cá participar des-se projeto importante. E boto isso no teu trabalho, os músicos que tu tocas, o CABOBU, o Sopapo, como é que ele é tocado, como tu expuseste esse projeto pra convencer, ou são teus amigos que vieram pra cá pra mostrar o Sopapo, a importância do projeto, do tambor pra festa do CABOBU e pro Giba Giba?

Giba Giba: Tu falou uma coisa interessante. Em primeiro lugar está a alegria de tocar o tambor. Isso é uma coisa que a gente já nasceu ali em casa. Tocava colher, tocava tambor, tocava de tudo quanto é jeito. E, quando eu vi a primeira escola de samba lá de Pelotas, que é a Estrela do Oriente... “Vem meu amor/é demais minha dor/deixaste o nosso lar tão de repente”... Eu digo: “Deus o livre! Está aí o Sopa-po”. E depois eu vi o Boto tocando, vi os caras do Sopapo. E aí eu me apaixonei. E aí eu tinha uns 15 ou 16 anos, e o Boto chegou pra mim e disse: “Olha, tu vai tocar este instrumento”. E eu digo: “Oba!”. Eu fiquei cheio de razão. Até que as coisas se fizeram naturalmente até o ponto que eu falei, de fazer esse projeto do CABOBU com essa

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grandeza. Mas foi tão transcendente, porque foram três dias de fes-ta, que vieram essas pessoas dessas cidades todas, veio gente do Rio de Janeiro, veio o Paulo Moura, Haroldo Costa, Djalma Correia, Naná Vasconcelos... E toda essa turma completamente encantada com esse movimento. Inclusive vendo que o Rio Grande do Sul tava com aquele toque de brasilidade, porque parecia que não tinha negro, parecia que não tinha cultura brasileira no Rio Grande do Sul. E essa foi a grande contribuição. E lamentável foi a interrupção do projeto porque, eu não sei, daí é especular, pessoas que queria se adonar, não sei... Eu sei que o reflexo foi tão profundo que o Paulo Moura e o João Donato agora gravaram um CD, Dois Panos para a Manga, e com-puseram uma música com o nome de Sopapo. Porque nesse lance da confecção dos 40 tambores foram distribuídos 20 tambores em praça pública para que todas as pessoas vissem ou levassem os instrumen-tos. E pra distribuir pela cidade pra ele começar a ser usado. Então, o Djalma Correia ganhou um, o Paulo Moura ganhou um, o pessoal das escolas de samba cada um ganhou, os visitantes ganharam... Foram 20 tambores distribuídos. E aí está plantada a semente. Só que as respostas que eu tenho que dar pra tudo isso seriam respostas práti-cas do acontecimento que ia se fazendo em si. Ele foi interrompido bruscamente e virou uma teoria de uma coisa que seria automatica-mente. Quer dizer, ele ia se refazendo. Por exemplo, em um dia tinha 10 cidades representadas lá em Pelotas. A intenção era que tivessem 200 ou 300. E, se tivesse continuado, chegaria a esse ponto. É aí que entra o lado burocrático, estatal, que meio que interrompe. Porque a gente não pode fazer nenhuma interferência em uma cidade sem ter o aval do Estado, da cidade. A gente tem que pedir licença pro Estado, licença pra prefeitura pra ocupar as ruas. Tem que ter esta sustentabilidade. E é aí que entra o lado que a gente fica meio as-sim... O entrave, sem dar uma resposta objetiva. Porque isso era um sonho nosso. O Edu falou uma coisa legal, dizendo assim: “A alegria que a gente teve foi incomensurável, foram três dias de festas, de sonho, um sonho concretizado”.

Edu Nascimento (filho do Giba): E qual a impressão que eles tive-ram de ver o tambor, que foi criado aqui no Sul, não sei se poderia dizer assim, qual a influência, o que eles acharam? Por que tem um troca...

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GT: Tem uma questão do Naná Vasconcelos que não quis tocar o tam-bor...

Giba Giba: Foi uma brincadeira que ele fez. Porque ele viu os ins-trumentos, todo mundo tocando... “Toca aí”. E ele: “Não, não. Não vou botar a mão nisso aí, que eu não sei... Pode estar benzido!”. Foi nesse sentido. Eu mesmo, pra botar a mão no instrumento do Naná, eu perguntei: “Posso tocar?”. “Pode”. E aí eu toco. Depende, eu não sei se eu posso tocar naquele instrumento ou não. Foi nesse sentido: “Eu vi aquilo ali, parece um Orixá”. Esses rituais assim que são só para os iniciados.

Edu Nascimento (filho do Giba): Esse é um ponto legal, porque de repente o Naná viu como um ritual. Ele é percussionista e, como ele viaja pelo mundo todo, cada região do Brasil ou do mundo tem o seu tambor. E, como o Rio Grande do Sul não tem uma característica de tambor aos olhos do Brasil, é isso que eu queria saber, a impressão do Naná, do Djalma, do Paulo Moura... Como eles viram o Sopapo? A impressão deles?

Giba Giba: Foi de paixão, um ritual. É o mestre, né?! Por exemplo, o Ney Lopes fez o Dicionário Banto do Brasil e incluiu o Sopapo.

GT: Virou verbete.

Giba Giba: É. O Paulo Moura e o grande Maestro João Donato estavam na casa do Carlos Manga, o Sopapo tava do lado, e o João Donato perguntou: “Olha, que tambor é este? Que instrumento é este?”. E aí ele contou a história do tambor, está no encarte. Este ritual foi assimilado por 90% ou 100% de todos os artistas que compareceram, estiveram e sentiram, inclusive. E disseram que é uma festa que tem que se reproduzir no Rio Grande do Sul. Aliás, por sinal, o Rio de Ja-neiro, São Paulo e tal estão esperando a terceira edição do CABOBU, de tão impressionante que foi. Só falta nós aqui no Rio Grande do Sul enxergarmos esse fato. Mas, quando eu disse “eu não tenho muita coisa pra falar, eu estou cansado de dizer, de falar e tal”, é porque a gente vem batendo na mesma tecla. E, então, às vezes eu tenho a impressão que eu estou sendo repetitivo. E eu mesmo me chateio de estar falando a mesma coisa, falando, falando... “Falta aquilo, falta isso, não anda...”. Se fosse em qualquer outro lugar do Brasil já tava rolando. Ao invés da gente estar sentado e conversando, a gente

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tava tocando na rua. Se fosse na Bahia nós não estaríamos falando, a gente estaria fazendo. Por exemplo, a pedra fundamental, quando foi largado o primeiro e o segundo CABOBU, automaticamente, ele já se realimentava ao natural.

GT: Mas essa é a tendência no Rio Grande do Sul, de se extinguir es-sas coisas. Isso remonta ao início do Positivismo aqui, que entra pra limpar a história, limpar a contribuição do negro na história do Rio Grande do Sul...

Giba Giba: É, eu acho que é uma coisa política.

Edu Nascimento (filho do Giba): Claro. Aproveitando essa coisa polí-tica, falando da tua influência como Giba Giba e Banda... O condutor da tua banda é o Sopapo, então tu influenciaste um monte de gente. Duas bandas, que eu sei, que tocam - ou tocavam, não sei se tem ainda - são a Bataclã FC e o Serrote Preto.

GT: A gente vai falar com o pessoal, vamos falar com o Serraria tam-bém. Que tem influência direta...

Giba Giba: Sim, é isso que estão fazendo. Essa parte já não é do meu domínio. Quer dizer... Já é uma gratificação, a semente já está an-dando, estamos regando essa semente. Por exemplo, antigamente os pioneiros não tinham consciência do pioneirismo, e o que está acon-tecendo é que a gente está retomando a consciência, forçadamente, porque ao natural ela se desenvolvia.

GT: Mas e, se não fosse fazer o CABOBU, talvez o tambor tivesse su-mido mesmo, não ia ter tambor espalhado...

Giba Giba: Claro.

GT: O Baptista está fazendo um monte de tambor e ele não fazia tambor. Ele disse que sabia, que estava no sangue, mas ele começou a fazer há dez anos. E hoje ele é o maior construtor de Sopapo do Brasil.

Giba Giba: O Fischer escreveu uma crônica sobre o Sopapo, eu tenho aí a crônica dele. É legal, e ele diz assim: “Giba, depois disso você

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pode dormir tranquilo pro resto da vida que tu não precisa fazer mais nada”. O Fischer escreveu isso aí.

GT: E são ações praticas, não é, Giba? É juntar as pessoas na praça pública e produzir o tambor.

Giba Giba: Exatamente. O que que sobra disso, qual a referência que tem, se tu faz a coisa voltada pra cultura real, o resultado é esse e ele se faz naturalmente. Se tu planta a semente, e a semente é verdadeira...

GT: Sim, porque a gente parte de uma realidade de que o tambor está sumindo. Tu chegas lá em Pelotas e vês que a gurizada não sabe o que é o Sopapo. Monta-se o CABOBU, e é uma pena que ele não siga como uma festa mesmo, que nem tu planejavas, mas se coloca de uma hora pra outra 40 tambores na rua, bota na rua, e, a partir disso, já deve ter se produzido o quê? Mais uns 100 nesses dez anos?

Giba Giba: É, acho que é. Lá em São Paulo, lá em Campinas, já foi feito mais um outro, ao vivo, foi um barato!

GT: E isso é o resultado direto da intervenção.

SV: Só, antes de terminar, queria que vocês falassem da questão da religião e do uso do Sopapo na religião, no ritual da cultura negra. Queria que tu falasses disso, por que tu falas que Sopapo na mão de negro é religião. E queria saber dessa relação que existe com a reli-gião. Ele era tocado para os rituais, quais rituais?

Giba Giba: É que geralmente as baterias... Eu sempre digo que o sam-ba real é o samba-religião, porque ele é derivado da religião. Chega o navio negreiro e ali os negros com a sua cultura, amontoados, um em cima do outro. Pra eles sobreviverem, eles mantinham a cultura de-les na cabeça, dançavam jongo, todos esses rituais africanos, jongo, umbigada, samba de roda. Tudo batido com as mãos e com os pés no navio. E vêm os Orixás, as batidas, os tambores... Dali foram saindo os derivados. Todo o ritual africano é derivado disso daí. Por isso que as batidas das escolas de samba no Rio, Salgueiro, Mangueira, Porte-la... Cada uma tinha a sua batida. É como tocar pro santo. Pra quem é leigo, o cara toca pra Bará, Oxum, Odê, Oti... Cada um tem a sua (batida), tem os sons-fundamento. Se tu tá tocando para um santo, e

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eu entro tocando pra outro santo, o cara sente. Eu não sei tocar pra todos os santos. O Boto, eu fui saber há pouco tempo, que ele era um Babalorixá... Ele tinha todos os toques de todos os santos na mão.

GT: E no Sopapo isso?

Giba Giba: Não, ele tocava, ele tinha... O toque, depois, é o deri-vado.

GT: Tava na musicalidade.

Giba Giba: Ele era um Alabê legítimo. E o grande código da percussão exatamente é o cara tocar pro mesmo santo. Quer dizer, as levadas... E essas levadas que tem é tu que tem que descobrir tocando. O meu primo, aquele que faleceu, o João Carlos, tocava uma viola na Banda Itinerante. Eu disse pra ele: “João Carlos, eu tenho um samba que eu fiz, eu acho que é legal pra Academia”. “Pô, legal Giba. Agora vamos ver se teu samba está enquadrado dentro do ritmo da bateria da escola”. Porque tu compor pra uma escola não é a mesma coisa que tu compor pra outra escola. Porque cada uma tem a sua identidade. E essa identidade se formou com a naturalidade cultural daquele jeito. Não era diferente porque queria. Tipo os Comandos fazerem uma batida dos Seresteiros. Eu saí nos Comandos e depois saí nos Seresteiros, e os Seresteiros, a sede era na minha casa. A sede era lá em casa, e eu saía no outro, nos Comandos. E era batida diferente, mas eram os mesmos instrumentos. E saiu diferente, porque era... A identidade não tem explicação. Por exemplo, o Salgueiro é Xangô, da Justiça, e cada escola tem uma, e é pela levada dela. Eu não sei qual é o santo de cada escola.

SV: Mas e no terreiro, na religião?

Giba Giba: Na religião... A religião africana é fantástica. Eu não sei se tem alguma outra religião que transcenda, que tu consiga te comuni-car de um país pro outro sem nunca ter visto ninguém e fazer igual. Sem tu ler um livro... Como é que pode? Por exemplo, na Rota dos Orixás, o cara está lá na Nigéria, faz o ritual lá e tá conversando com o cara lá no Recife. Sem nunca terem se visto, fazem o mesmo ritual, sem ter um livro, sem ter uma gravação, um filme, sem ter nada. Como é que pode? É a única no mundo que tem isso. Porque os outros todos são dogmáticos, tem livro, tu lê... Na África não tem nada. Os

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caras saíram da África completamente nus, só com um pano enrolado no corpo. Angola, Congo, Benguela, Monjolo, Cabinda, Mina... Aquela história da música do Jorge Ben, “Angola, Congo, Benguela, Monjo-lo, Cabinda, Mina, Quiloa, Rebolo. Assim como são os homens, os enviados de Oxalá... Eu quero ver... Quando Zumbi chegar...”. Quer dizer, quando os caras chegavam aqui tudo misturado e separavam: “Tu é Angola, tu é Congo, Benguela...”. Quer dizer, misturavam pra não ter a mínima possibilidade de se comunicar. E, mesmo assim, eles se comunicaram, não só aqui entre eles no Brasil como em todo o mundo. Porque em todo o mundo o negro é igual. E isso é foda. O Pierre Verger, que tem o livro dos Orixás, fotógrafo francês, morou quarenta anos na África e mais quarenta anos na Bahia. Um branco francês, foi iniciado por Ogã. Ele esteve aqui em Porto Alegre, e eu tive o prazer de trazer ele em 1983. Veio o Pierre Verger, o Haroldo Costa, o Ney Lopes, foi no Projeto Feitoria. E ele fez uma exposição aqui no estúdio de arte com as fotografias dele. Então, ele fotogra-fou na Nigéria um ritual dos Orixás e depois fotografou em Recife o mesmo ritual. Igual. Como é que pode? Sem nunca terem se visto, sem nunca alguém dizer se é assim ou assado. Aqui não disseram pra eles que era assim. Eu tenho a fita do cara na África conversando com o outro lá em Recife. E isso é um dos dados que atestam a nossa sobrevivência aqui na Terra, a sobrevivência africana. Mesmo com toda essa desdita, todo mundo contra e tal, e a gente sobrevivendo na manha. Por isso que o negro diz “na manha”. As gírias que a gente tem, o jeito de dizer, isso tudo é negro, pra se defender do ataque. Porque a gente cria as coisas, e os caras vem e “pum”, assume, des-caracteriza e ficam mandando na gente. É por isso que eu estou meio deslocado no carnaval, o cara fica meio descolocado. Porque de re-pente eu não entendo mais de carnaval, não entendo de samba, não entendo de mais nada. Não que seja academicismo, é acadêmico, mas é um acadêmico popular, não é uma academia ariana. É uma academia existencial, do mundo, humana, brasileira, africana. Essa que eu acho que é a cultura real.

Edu Nascimento (filho do Giba): A cultura virou o “bastantão”.

Giba Giba: “Bastantão”, exatamente.

Edu Nascimento (filho do Giba): De vez em quando dá pra colocar o arroz e feijão, que é comum a todos, mas esqueceu de botar uma

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proteína... Então, bota um arroz com feijão que todo mundo come. Não desvalorizando o arroz e feijão, mas...

Giba Giba: Então a gente está correndo atrás de querer saber como é que é a cultura. Quanto mais o cara vai entrando e querendo sa-ber como é mais ele vai afundando na contradição, porque é uma contradição. Ao mesmo tempo que o cara está impondo uma coisa, se tu tá impondo, tu já tá terminando com aquilo. Se tu impõe teu pensamento, impõe tua posição... E tudo isso nos tirou aquela con-vivência democrática... Que palavra horrível, horrível porque não é, não tem democracia. A gente não sabe conviver com a democracia. Por exemplo, a gente é intolerante, e, se tu é intolerante, tu não é democrático. É ou não é?!

GT: Bom, Giba, tá mais que bom.

Giba Giba: Bah, falei demais!

SV: Quando que foi Giba Giba e Banda?

Giba Giba: Bah, desde 1960 e poucos...

Edu Nascimento (filho do Giba): Pode ser o único negão no Brasil tocando um tambor pesadão, cantando e tocando e a banda atrás.

Giba Giba: É, talvez seja o único no Brasil.

SV: Já é uma coisa difícil, ainda mais no Rio Grande do Sul...

Giba Giba: Exatamente, talvez esse seja o maior ineditismo até. Por-que tu tocar e cantar é difícil, mas bater e cantar é muito difícil. Tu pendura aquele negócio pesado em cima, aí tu tem que respirar, aí tu dá umas porradas em cima, bate, e aí tu respira e canta e dança!

Edu Nascimento (filho do Giba): Negro bom não incomoda!

Giba Giba: Eheheheh!

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DonA SIRlEy

Sirley Amaro é daquelas carnavalescas da gema. Se sentar com ela em sua casa, pra um café com bolo recém prepa-rado, lá virão álbuns e mais álbuns de fotografias da gran-de foliona que é. Suas histórias preencherão todo o tempo da visita e ainda faltará o que dizer. Dona Sirley é Mestre Griô com muito gosto e faz jus à preservação da tradição oral de sua cultura.

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Em Pelotas, na Estação Primeira do Areal.

GT: Dona Sirley, a senhora fazia bonecas, né? A gente podia começar com a senhora nos contando um pouco sobre o receio que aqui existia sobre se fazer bonecas negras... Se pintavam bonecas e se tinha esse receio de falar na questão do negro... Não sei se tu recordas isso, mas por que o receio de resgatar essa história?

Dona Sirley: Não, não. Eu falei da falta de informação que a gente tinha quando surgiu a biblioteca Griô. Foi essa parte que eu falei, essa parte aí, né?

GT: Sim, mas tu usaste a palavra receio...

Dona Sirley: É, uma coisa que me ajudou a incentivar... Tudo que apareceu na cidade sobre o negro eu gostei de participar. Mas a gente não tinha muita informação, a gente não tinha também aconteci-mentos, palestras sobre a história do negro e, quando um casal veio para organizar essa biblioteca, fui procurada pela mulher porque eu fazia a roupa de bonecas para ela vender e eu comecei a tomar gosto e descobrir que boneca negra era uma coisa que não existia e achei muito interessante. Quando eles foram embora aqui de Pelotas, in-clusive, ela levou duas bonecas de modelo que ela usava como ma-nequim. E ela tinha até o modelinho das roupas, e, quando ela foi embora, eu disse pra ela, eu não queria entregar aquelas bonecas para poder ficar de lembrança, e ela até não tava querendo que eu

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ficasse com as bonecas, mas ela acabou deixando, e eu tenho uma naquele painel que eu carrego... É muito interessante, a minha mãe fazia bonecas negras. Na minha infância eu brinquei com bonecas negras. Só que tem essa coisa do receio... Até hoje a boneca negra trás um estigma. Como até ainda hoje as pessoas usam o boneco de pano para fazer oferendas, por exemplo, faz o boneco e dá o nome daquela pessoa que tu queres fazer o bem ou o mal, e isso faz com que pessoas até hoje tenham medo de bonecas, ainda mais de pano. Lembro de histórias de pessoas que não gostavam que os filhos ganhassem bonecas negras pois achavam que as pessoas faziam bonecas e já colocavam alguma coisa. Isso tudo eu já vi no decorrer da minha vida. Nos dias de hoje, por exemplo, quando eu iniciei a exercer a minha Ação Griô aqui no Instituto de Menores, eu tentei fazer uma oficina, em uma das viagens que eu ganhei do projeto, eu aprendi a fazer umas bonecas com uma professora em Porto Alegre, e as bonecas não tinham feições, aquelas negras da África que não tinham voz, que não deixavam elas falar, e eu trouxe uma boneca para mostrar a eles e tentei fazer uma oficina, mas eles começaram a achar que era vudu, feitiçaria e falavam muito naquilo. E eu, como estava começando as ações e precisava ter a simpatia deles, achei que não ia ser uma boa, eu podia insistir, mas achei que não ia ser uma boa. Aquilo poderia se espalhar na escola, e eu ainda não era bem conhecida, eu estava iniciando nas ações de cultura negra. Bom, mas, voltando à história das bonecas, eu nesse meio tempo resolvi iniciar a fazer bonecas, a tentar fazer bonecas de pano, pois teve toda uma trajetória. Eu me lembro que nesse meio tempo o Eduardo, que é meu filho e que mora comigo e hoje é evangélico, ele já estava envolvido com rap e começou a sair da cidade para eventos. O Edu-ardo nunca estudou, ele nunca teve uma profissão definida e agora no decorrer da vida é que eu vejo que ele é um artista. Ele teve o dom de trabalhar em várias profissões, nunca teve uma profissão de-finida, mas tudo que ele inventou fazer... Ele trabalhou de pedreiro, inventou coisas para fazer... Logo que aumentou a rede telefônica, que tinha aqueles fios coloridos, ele inventava florzinhas e vendia. Ele vendeu sanduíche na praia e aí, depois, ele começou a aprender a fazer brinco e se interessou em artesanato. E, em uma das viagens, ele começou a se interessar pela parte negra, viu muita coisa de bambus, de sementes, então ele, de repente, desenvolveu o dom de artesão. Sempre gostou muito de trabalhar com coisas naturais,

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bambu, semente e, de repente, ele foi em um evento por aí e viu que tinha um pessoal fazendo bonecas negras e me disse: “Mãe, vamos fazer bonecas negras”. E aí ele me deu as dicas, e aí eu comecei a pegar o gosto de fazer bonecas.

GT: E vocês, quando começaram a fazer essas bonecas negras, vocês fizeram algum tipo de raciocínio? Por que não existia? Que seria indis-pensável... Vocês tinham esse tipo de pensamento, Dona Sirley?

Dona Sirley: Sim, justamente. Eu sempre tive uma coisa em mim. Nos dias de hoje eu me sinto assim - não com vaidade - uma divulga-dora e uma incentivadora da cultura negra. Eu sempre achava falta de coisas do negro. A gente não tinha televisão, era mais o cinema, e, devido a certas restrições e ao racismo que a gente sofreu em Pelotas até uma certa época, partindo daquelas bonecas negras e da viagem do Eduardo, que me veio com essa informação, aí foi toda uma cami-nhada. Eu não tenho datas, mas ele começou a se especializar nesses artesanatos mais tipo afro, e as pessoas gostavam, e aí aconteceu de eu ir visitar o outro, que mora na Bahia, e aí descobri que lá na Bahia eles vendiam as bonecas. Bonecas que são feitas para a região lá, tanto que eu tenho bonecas naquele meu painel feitas de celulose, que elas são assim, gordinhas, bundudinhas, perninha grossa, beiçu-dinhas, têm um jeito de negras. E eu trouxe uma caixa, mas depois faltou. Eu conheci Salvador em 1997, e nessa época o Eduardo já estava interessado que eu fizesse as bonecas, que ele levava e vendia nos lugares onde ele ia. Eu trouxe uma caixa dessas bonecas e man-dei buscar mais. Eu não sei que época foi no Brasil que, te lembra uma época em que faltou matéria-prima do plástico? Eu não sei que governo foi aquele? Acho que foi a Estrela que fechou...

GT: Foi o Collor?

Dona Sirley: Não, tem um negócio de que o plástico acabou...

GT: Sim, sim. Quebrou um monte de indústrias de plástico...

Dona Sirley: É muito interessante essa pergunta...

GT: José Sarney ou Collor, uma coisa assim...

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Dona Sirley: Aí eu mandei buscar uma caixa a mais e a fábrica tinha quebrado lá em Salvador. Nesse meio tempo eu fiz amizade com umas amigas que vieram passar o carnaval aqui em Pelotas e viram que eu gostava muito da negritude. Uma delas disse para mim que quando ela chegou no Rio ela tinha visto uma loja lá com bonecas negras. Aqui em Pelotas, até hoje, eu estava olhando... Pois tem uma loja de costura que vende cabeças de bonecas para fazer, e eu estava olhando que nunca tem de negra nessa loja e eu não sei se é porque elas não pedem ou a fábrica não faz. Aí uma delas disse: “Gaúcha, eu vou te mandar uma caixa com três dúzias de bonecas!”. E aí ela mandou. Quando chegou aqui, elas eram bem diferentes das de Sal-vador. Elas eram como as Suzi pintadas de negro com estrutura física de estadunidense. Os olhos, eles pintaram de negro, mas, assim, eles ficaram olhos verdes, azuis, e elas são assim acinturadinhas, per-ninhas magrinhas. Chegou, e eu me lembro... Mesmo não tendo a data, mas aconteceu antes da eleição do Lula, e eu me lembro pelo seguinte, essas bonecas chegaram, e eu trabalhava em um ateliê de alta costura, que alugava roupas de festa... Mas eu não sabia bem que tipo de roupas eu ia fazer. Fiz um tipo de baiana, eu não tinha informações e fui fazendo o tipo de roupa que dava. E aí a Rosane me ajudou. Nós tínhamos muita coisa colorida. A gente fez umas saias ro-des, e eu nunca tinha trabalhado com aquela pistola de cola. Então, a gente fazia um turbante, colocava uns brinquinhos, e o Eduardo foi para uma viagem e vendeu todas aquelas bonecas. Um dia ele chegou para mim e falou que teria um seminário de cultura antirracismo lá no hotel, que é ali na barragem, um hotel da rede Manta, que fica ali de onde a gente chega de Porto Alegre, que é o hotel Touring Park Hotel, e ele tinha sido convidado para esse seminário antirracismo e teria um espaço pra ele vender. Ele me disse: “Mãe, vamos fazer bonecas?”. Aí eu fiz bastante. Vendemos todas porque a boneca ne-gra era uma coisa escassa. As pessoas ainda reclamavam porque elas tinham olhos verdes, azuis... Mas eu recebi elas assim. Eu tentei pin-tar, mas não deu certo. O narizinho delas era pequeno, arrebitado... Eu ainda tenho algumas.

GT: Tu sempre buscaste trazer a questão da negritude nos teu bone-cos?

Dona Sirley: É, na época da Barby, eu lembrei agora, eu ainda não estava envolvida com bonecas negras. Falando também do Eduardo,

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que sempre teve este dom de vender, aí ele estava falando: “Mãe, estou tão sem dinheiro, vamos fazer umas roupas de Barby que eu vou tentar vender na avenida?”. Ele sempre foi bom vendedor. Hoje ele está em uma empresa de segurança, destas que vende de porta em porta, e ele tem o dom de vender. Olha, chovia muito e nós passa-mos três dias dentro de casa cortando, ele me ajudou a cortar tudo, foi e vendeu. Isso antes das bonecas negras. Quer dizer que, quando surgiram as bonecas negras, mais gosto eu tinha.

GT: Dona Sirley, a gente precisa falar do carnaval... Porque a gente falou de pessoas que vieram de outro estado para fazer uma bibliote-ca do negro aqui, que, mesmo sendo um lugar de projeção do negro, tendo uma história muito forte aqui... E nós chegamos a mencionar isso, tu fizeste um comentário no carro na vinda, da cozinha do Mu-seu da Baronesa, que mandaram eliminar tudo... Tu disseste que o pessoal não queria mencionar a escravidão. Como é que tu enxergas isso aqui em Pelotas? Esta tentativa?

Dona Sirley: Isso eu vou gostar muito de falar, mas como eu ainda estava lá atrás, pois eu ainda vou falar do meu pai, eu não sei se eu retorno lá atrás e falo do meu pai e do carnaval ou...

GT: Eu gostaria que a senhora fizesse uma linha de raciocínio, mas que a senhora abordasse esse...

Dona Sirley: Eu estava falando da costura, mas vou transferir pro meu pai e carnaval. Costura eu até já falei. Meu pai me passou um grande incentivo do carnaval, porque meu pai tinha uma coisa muito interessante, quando ele chegava, ele não batia na porta, ele ba-tucava. Gostava muito de chegar na porta batucando, e eu achava aquilo muito interessante. Minha mãe abria a porta e ele entrava sambando. Às vezes eu sambava com ele. Aí eu sempre conto que naquele tempo os blocos eram muito pequenos e eu me lembro assim que nos primeiros anos de vida, uma das primeiras coisas que marcou o carnaval, é que ele puxava os blocos e cordões, mas não era só ele em Pelotas. Eram poucas pessoas que faziam fantasias grandes, então ele comprava um tecido preto e eu ajudava minha mãe a fazer como se fosse um godê, que é um pano redondo que fica assim como um poncho. Então, ele tinha uma fantasia de morcego... Na rua onde eu nasci e me criei, os carnavais começavam bem próximo. Eu não

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sei se vocês já gravaram... É ali perto da Catedral, numa daquelas ruas. Ali é um foco carnavalesco da antiga, e eu ficava em volta da Quinze/Andradas... Então eles se fantasiavam e os blocos em geral se concentravam ali naquelas imediações. Tinha pessoas que faziam dominós enormes... As pessoas não combinavam nada, daí vinha um bloco e aquela pessoa vinha na frente até o centro, animando. E eu tinha muito medo daquela fantasia, do meu pai, porque era um mor-cego. A minha mãe fazia uma touca e botava, assim, uma coisinha vermelha para fazer que era a boca, e ele gostava muito de sambar. Minha mãe também gostava muito de carnaval, então nós íamos em um clube chamado Depois da Chuva. Naquele tempo existiam blocos de carnaval e não existiam escolas de samba, existiam os cordões carnavalescos e blocos carnavalescos.

GT: E isso basicamente na rua? Não tinha passarela do samba?

Dona Sirley: É, era bem diferente de hoje.

GT: Depois a senhora nos aponta onde era...

Dona Sirley: Nós tivemos três clubes fortes negros que eu ainda vi. Só que tiveram outros antes. Os nomes eram muito pitorescos. O clube mesmo da minha infância era o Depois da Chuva, onde tinha um bloco que era o da Girafa da Cerquinha, que era da mesma zona, então era ligado ao Depois da Chuva. O primeiro bloco que eu saí na vida foi o da Girafa na Cerquinha, era bloco de criança.

GT: Era só de crianças negras?

Dona Sirley: Olha, quando o carnaval surgiu, eu acho que sempre houve algum branco no carnaval, mas o carnaval também levou um estigma que era do negro em Pelotas. O carnaval era negro.

GT: O que a senhora chama de estigma, Dona Sirley?

Dona Sirley: Assim, é que as pessoas iam para o carnaval, olhar o car-naval... Toda a população, mas tinham brancos que não queriam sair, achavam que o carnaval era do negro, entende? Eu conto ainda hoje, esta escola de samba que eu pertenço, a Estação Primeira, quan-do ela surgiu, surgiu muito, assim, que era escola de brancos, pois ela foi fundada por brancos. A grande população negra não admitia.

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Achavam que o carnaval era coisa de propriedade do negro, assim, pela dança, pelo batuque. E cedo eu gostei, eu sou uma pessoa que não gosta muito de baile, eu gosto de sambar, adoro sambar na rua perto de uma bateria de uma escola de samba. Para mim tem uma coisa muito interessante, se eu estiver com dor, doença, tristeza, aquilo parece que me dá uma esperança de vida...

GT: E como eram as baterias?

Dona Sirley: As baterias... Bloco tocava só marcha. Eu tenho que me sentar um dia com o Giba Giba, porque ele se lembra da Girafa da Cerquinha, que tinha uma marcha muito bonita e o refrão dizia: “Gi-rafa, girafa, girafa/essa Girafa da Cerquinha está maluca/ainda não é hora do batente/ela fica impertinente/acordando toda a gente”. E aí vem uma letra que o Giba Giba sabe... Lá em Brasília a gente andou meio que cantando, e eu tenho de me sentar com ele para res-gatar... ”Eu me levanto antes das 5h/já tô correndo para tomar ba-nho e café/e ainda encontro o pessoal chegando e cantando/Girafa, girafa, girafa/e só termina quando o sol raiar...”. É muito bonita essa marcha. Aí, depois eu me lembro da segunda vez... Eu já era maior e saí em um cordão. A Girafa era bloco, só que os clubes, quando fa-ziam blocos, eles chamavam Cordões Carnavalescos, porque naquele tempo não tinha estas “empurranças”, mas os cordões saíam com cordas nas laterais, e acho que é por isso que se chamavam assim. Eu me lembro que eu saí em um carro no Depois da Chuva. Na infância eu segui saindo na Girafa, mas depois já jovem...

GT: Eu preciso saber como eram as baterias, tinha Sopapo?

Dona Sirley: As baterias... Aí eu vou entrar nas escolas de samba. Isso que eu estou contando para ti não tinha ainda escolas de samba.

GT: Sim, mas tinha bateria?

Dona Sirley: Já tinha bateria sim. Mas, por exemplo, eu nasci em 1936 e, quando eu tinha quatorze ou quinze anos, que idade eu ti-nha? É, em 1950, a Escola de Samba General Osório, que depois ter-minou e veio a Ramiro Barcelos... Aí já tinha escola de samba, e o forte da nossa escola era o ritmo do Sopapo. Se eu soubesse que hoje nós íamos ter essas histórias todas, eu tinha gravado mais coisas na minha cabeça, por quê? Porque a gente sente muita falta hoje do que

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tinham nossas baterias de bom. O que tinha era aquele “Durugun-dum”... Vocês já viram o Mestre Baptista tocar, o que o Sopapo faz... E a pessoa que tocava Sopapo fazia a batida na escola de samba, que hoje não tem mais. Podia ter outras mais, mas era essa batida, o “Durugundum”, que levava a escola de samba. Só que cada escola de samba tinha uma, ou alguém especializado, e cada um tinha um estilo. Por exemplo, na Teles tinha o Cacaio, que ele tocava Sopapo e depois, com a evolução, ele veio a ser ensaiador. Na Academia tinha o Boto, para mim o tocador de Sopapo que mais dava aquele “Durugundum”... Porque o Sopapo... Nenhum instrumento faz esse retorno, e eu não sei explicar. O Boto tinha uma mania que era muito interessante. Ele tinha a mania de tocar de costas na escola. Se a escola vinha vindo para cá, ele vinha de costas olhando por cima do ombro. Ele era grandão, sabe? E vinha com a mão assim... “Duru-gundum”! Já na minha escola, a Osório, eu não me lembro... Quem tocava o Sopapo na Osório era o Paulo, mas o Paulo já tocava meio diferente.

GT: E quantos que tinham? Quantos tocavam Sopapo em uma bate-ria?

Dona Sirley: Olha, eu acho que Sopapo era um por bateria, porque tinham os surdos. Hoje, o surdo é levado até em umas rodinhas e naquele tempo não. O surdo foi crescendo de tamanho. E o surdo era uma batida só, a pessoa que vinha perto do surdo não ficava muito perto, porque tinha uma bolota grande que fazia assim, aquela ba-tida: “Pumbu! Pumbu!”. E o Sopapo: “Durugundum!”. E tinha outra batida que fazia “Pumbubu!”, que aí eu não sei, pois tem o surdo de primeira e de segunda... É como chama, né? O primeiro é o que faz “Pum! Pum!”. E o outro faz “Pumbu! Pumbu!”. E, agora, juntando as três coisas... O pandeiro, hoje, acho que as escolas tem pandeiro, mas naquela época tinha pandeiro, tinha frigideira... Coisas que eu não sei se as escolas ainda trazem. Uma coisa que fazia muito sucesso nas escolas de samba era a frigideira e o reco-reco. O reco-reco arte-sanal... Eles pegavam um ferro lá na fundição e faziam várias cavas e passavam uma baqueta e fazia “Traque! Traque!” no ritmo...

GT: E, Dona Sirley, para nós falarmos um pouquinho mais do Tambor de Sopapo, puxando pela sua memória, nesses carnavais de rua, nos bailes, o Sopapo estava presente? Tu te recordas alguma coisa disso?

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Dona Sirley: Não. Em baile não, porque nós tínhamos para tocar em baile uma coisa muito linda, que foge um pouco do Sopapo. Nós tivemos muito aqui em Pelotas - e eu não sei em outras cidades -, nós tivemos muitas bandas de jazz. Nós chamamos de “jás”... E tinha o “Jás” Estrela... Em inglês se pronuncia “diés”, né? Nós chamávamos de “jás”. Dentro do salão, dificilmente uma bateria de escola de samba... Eu não me lembro assim de entrar. Eles visitavam os clubes, sim, mas ficavam na frente.

GT: O Giba Giba nos menciona - já falou conosco outras vezes, e o próprio Mestre Baptista - que, na rua mesmo, nesses blocos, ou em determinados lugares, estava lá o Sopapo...

Dona Sirley: Sim, a gente chegou a ter definições das escolas de sam-ba de saber de longe qual era pela batida do Sopapo. Naquele tempo, as escolas saíam armadas da sede. Ainda esses dias uma amiga minha que está vendo que as escolas não saem armadas, e ela não é muito carnavalesca, me perguntou se a minha escola ia na muamba, que é longe do Centro. E ela falou: “A Estação vai vir sambando já?”. Ima-gina! Ela é ainda do tempo...

GT: Saía do barracão já sambando?

Dona Sirley: É. A Teles ainda hoje está situada ali perto do campo do Brasil de Pelotas. Mas ela era lá na Dom Pedro II, perto da Universida-de Católica. Da universidade até duas quadras foi onde a Teles come-çou e viveu muito tempo, e, para vocês terem ideia, as escolas saíam prontas do lugar. As rainhas saíam sambando pro Centro e, às vezes, até voltavam sambando. Eu cansei de sair da Osório... A Beneficência Portuguesa, vocês sabem onde é? Tá. A Osório, indo daqui para lá, ela fica uma quadra antes da Beneficência. Eu tô falando com vocês e parece que eu estou me vendo saindo sambando da Osório, dobrar na Floriano e para depois entrar ali nas ruas de carnaval. A Acade-mia era do Fica Aí. O Fica Aí era aqui na Félix da Cunha, imediações entre a Catedral e onde eu nasci e me criei. Então, a Academia saía dali pronta. Só que depois o Fica Aí se mudou lá para a Deodoro, e a Academia é uma escola de samba antiga, é uma das escolas de samba que eu nunca assimilei muito... O Fica Aí foi o clube que teve a época da discriminação com o negro, e a Academia surgiu dentro da Fica Aí. Então, as pessoas frequentadoras do Fica Aí tinham uma empáfia

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muito grande. Eles começaram a se distanciar dos outros negros mais pobres pelas condições que tinham. Foi no auge dos alfaiates negros em Pelotas. Aquelas famílias, esposas e filhas dos alfaiates que do-minaram. Teve também a época dos cozinheiros negros, doceiros. Eu vou explicar porque houve essa fase de profissionais negros em Pelotas. Esses profissionais negros foram grandes alfaiates aqui em Pelotas e então eles ganhavam muito bem, e as pessoas que frequen-tavam o Fica Aí se vestiam melhor, tinham mais condições. Hoje eu falo para o presidente do Fica Aí - e é interessante, porque hoje eu sou “Ficaizense” -, o Dr. Raul, que é o presidente atual, que eu sofri discriminação aqui. Quando eu estudei no Colégio Pedro Osório - e naquela época também não existia tantas escolas como agora... E no Colégio Pedro Osório, que ficava ali no casarão grande, na Av. Osório, perto de onde eu nasci e me criei, ele pegava crianças de grandes pontos da cidade, porque não eram muitas escolas, e nós éramos muitas meninas negras na escola. Quando eu entrei no primário, eu tinha 13 anos. A quinta série, todas aquelas meninas negras que vi-viam juntas ali no Pedro Osório, aquelas que as famílias já estavam bem, que já não quiseram que não ficassem sem estudar para não serem domésticas, elas foram para o Assis Brasil, que era uma escola fundamental que preparava os alunos para serem professores. Essas meninas, quando passaram para o Assis Brasil, elas passaram a já não cumprimentar a mim, e eu sofri isso...

GT: Queres dizer que havia discriminação com as próprias amigas negras?

Dona Sirley: Com as próprias amigas. Elas foram estudar e, já sa-bendo que seriam professoras... É aquele tal racismo que o negro tem com o próprio negro, que ele cresce e acha que, se ele vai se dar com um negro mais pobre, eu não sei o que acontece... E por que eu sou Chuva? Porque eram três clubes negros: Depois da Chuva, Chove Não Molha e o Fica Aí. O Chove até não era tão discriminador. Eu frequentei até uma certa idade o Chuva, só que depois o Chuva começou a ter problemas com a presidência, começou a ficar meio decadente. O Chove estava forte, ele não tinha muito essas... E a gente debandou muito do Chuva para o Chove. Eu nunca consegui oportunidade de ser “Ficaizense”. As pessoas tinham muita mania de olhar as festas... As Festas da Primavera... A do Fica Aí, com aquelas negras muito bonitas, e eu tinha vontade de estar ali, mas eu nunca

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fui olhar uma festa do Fica Aí. Tinham pessoas negras, até de menos posses, que iam olhar. E eu nunca quis ir olhar, e era perto da minha casa. Bom, da minha infância e juventude, eram esses.

GT: Dona Sirley, a gente não pode fugir da história, e eu preciso falar sobre a sua homenagem agora na sexta-feira de carnaval, como é que foi isso junto do Mestre Baptista?

Dona Sirley: Bom, essa homenagem foi muito interessante. Eu estava falando para vocês que eu era da Escola de Samba General Osório, que durou cinco anos. Tem coisas que não são de muita persistên-cia... As pessoas mais velhas vão saindo, e os novos parecem que têm preguiça de levar a coisa, e a General Osório acabou. Nisso, algumas pessoas fundaram a Ramiro Barcelos. A Ramiro Barcelos é uma escola que tem sede própria, mas a gente sempre que pode ajudar a Ramiro a gente aceita, vai e ajuda, porque é uma escola de raiz bem negra, que foi fundada por aquelas pessoas que eram da Osório. A Ramiro e a Teles, quando surgiram, foram escolas de negros. Elas custaram muito a ter brancos nas escolas e aquela coisa toda.

GT: E o Sopapo presente?

Dona Sirley: A Ramiro chegou a ter muitos Sopapos. Eu não me lem-brava do Zé Patão... Eu vi muito na Teles, mas depois, quando a Estação surgiu e ele não era morador aqui do Areal, eu já vejo ele tocando várias vezes na Estação. Eu acho que o Sopapo não saiu de um todo, porque ele toca esse Sopapo, mas eu não encontrei mais com ele. Mas falando da homenagem, a Ramiro é essa escola de raiz, ela tem um conselho, e eu não sei se todas as escolas têm esse con-selho, e tudo tem de passar pelo conselho. Essas pessoas são bem idosas e são bem antigas. Então, elas têm divergências entre elas, então, já vem há um bom tempo a escola parada, não tendo um bom crescimento, porque essas pessoas não se unem... E aquele que vai para escola e consegue fazer alguma coisa bota a escola na rua. Os que não fazem ficam malhando o outro. É uma coisa mais ou menos assim que acontece. Tem pessoas que são ramirenses de coração, e me parece que tudo surgiu de um rapaz chamado Ignácio, que o pai dele foi um grande ramirense, que era sobrinho da Maria Amaro, mãe do Daniel Amaro, e no ano passado ela estava... Ela tinha um presidente que não estava muito bem, ele não tinha apoio e entregou

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a presidência, como já estava no meio do ano e já se tinha alguma coisa, a Dedé... A Dedé é um braço forte da Ramiro. Ela estava tra-balhando com este Seu João, que soltou a presidência, e como ela tinha algumas coisas ela se juntou com mais um grupo de mulheres e colocou a Ramiro na rua no ano passado. Foi com muito sacrifício. Faltou um montão de coisas, se perdeu um monte. Aí, em março, elas entregaram o cargo. E, para esse cargo, tinha de fazer uma chapa, mas não apareceu ninguém para assumir. E aí o Michel, que é este menino que está na presidência, tem vinte e dois anos, e o pessoal diz que ele entregou a cara a tapa, ele resolveu assumir a Ramiro com a mãe dele. Essa família... Eles são ramirenses. Ele é neto de ramirense. Eu não sei por onde isso começou... Então, esse Ignácio, que é sobrinho da Maria Amaro, que eu não sei como conheceu o Seu Estevão, que é pai da Ester, que a Ester estudou com a Daiane, são formadas em História, e aí eu não sei como chegou até a Nara Louro, que é uma professora da Federal, que é professora de História, e ela já tem feito carnaval em outras escolas de samba. Ela tem casa de batuque, ela é historiadora da África. De onde surgiu a ideia pri-meira, eu não sei. Primeiro parece que ela fez o enredo. E foi assim que a Daiane me colocou. E aí o Estevão foi procurado pelo Ignácio e formaram este trio para fazer a letra do samba. Quem participou da letra e fez a melodia foi, em Esteio, um rapaz chamado Negro Dê, que é da Leopoldinense. Ele é negro, gordinho... Ele é ajudante de bateria lá. Então, os construtores do samba são estas pessoas: o Estevão, o Negro Dê, a Daiane e a Ester. Em outubro eu fui procurada, e as coisas vão se encaixando. Em uma entrevista que eu dei depois de uma viagem, o Estevão ouviu e ele ligou para a rádio, eu escutei ele falando: “Eu gostei tanto de escutar esta senhora falar, que coisa boa este projeto da Ação Griô, eu não sei bem o que é Griô, mas mi-nha filha, que é professora de História, eu vou falar para ela e acho que ela vai gostar de saber disto aí”. Eu lembrei agora que nisto teve uma festa no Fica Aí, o lançamento de um CD, e eles vieram para essa festa e fomos apresentados. A Ester veio falar comigo e... Sabe aquelas coisas que vão rolando assim? Aí eles me comunicaram e me consultaram se eu permitia que o samba, que tem o refrão: “Grande festa no terreiro/Maria Amaro mandou avisar/Dona Sirley suas histó-rias vai contar/Mestre Baptista o Sopapo a fabricar”...

GT: E como é que foi que eles chegaram no Baptista?

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Dona Sirley: Chegaram pelo seguinte. E é isso que eu tô dizendo... Uma coisa se encaixa na outra. Eu deduzi assim: ele escutou falar dos Griôs e nessa festa que falei a menina veio até minha mesa, a Ester, que é uma das compositoras, e disse: “A senhora que é a Dona Sirley? Meu pai falou muito da senhora para mim, dos Griôs, e eu sou pro-fessora de História, me formei...”. Aí eu marquei um encontro com ela em um bar e eu não conhecia bem ela. Ela vem muito a Pelotas. Nos encontramos no bar, e eu levei muitas fotos, o livro do Griô, e contei como foi que eu fui convidada e o que eu fazia como Griô, o que eu vi nas viagens e o que o livro mostrava também. É aquela coi-sa, eu não sei bem quem deu o primeiro passo, mas foi daí. É o que aconteceu. Quando eles quiseram fazer um samba falando de Griôs, sabendo que a gente estava no projeto... Acho eu que é por isso que eles chegaram até nós, a mim e ao Mestre Baptista. A Maria Amaro, que não está no projeto, mas ela é considerada uma Griô, porque ela tem uma casa de religião... Então, por bem, eles acharam que essas três pessoas iam representar bem os Griôs. E aí eles prestaram essa homenagem. Eu, no caso, acho que, quando eles viram que eu estava nessa Ação Griô, eles acharam por bem me homenagear, porque eu não sou... Eu sou uma carnavalesca assim... As pessoas que me co-nhecem sabem que eu venho no carnaval desde a infância. Eu não saí ainda do carnaval.

GT: Sim, sim...

Dona Sirley: E falando da Osório, quando a Osório terminou e a Rami-ro surgiu, eu não fui ser Ramiro, mas eu já saí duas vezes na Ramiro no decorrer da vida, em alguns anos que a Estação não saiu. E, nesse meio tempo de Osório, eu passei dois anos... Eu fui morar em Porto Alegre com uma tia. Não era bem morar, eu fui visitar ela... Eu já falei para vocês dos Caetés? Quando começaram a tirar as pessoas de Canguçu para trabalhar em lugares diferentes, a minha mãe veio para Pelotas, e esta irmã dela, de criação, quando vieram a se reen-contrar, eu já era jovem. E, quando eu fui visitar estas primas, elas pertenciam às tribos Caetés, Iracema, que era na Getúlio Vargas. Eu achei aquilo tudo muito interessante. Elas me convidaram para eu sair e, daí, eu não saí na Osório. No ano seguinte, a Diva veio passar o carnaval aqui em Pelotas e trouxe aquela fantasia de índia. Eu ti-nha a minha, então, nós saímos na Osório de índia e foi um sucesso

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tremendo, pois era um tipo de fantasia que não tinha aqui. Foi muito interessante.

MC: A senhora falou da Maria Amaro e da religião e não chegou a di-zer se teve alguma entrada e se professa esta religião e, mais, se tem alguma relação do Sopapo com isso, se há, se houve?

Dona Sirley: Olha, o Sopapo na religião não. É o seguinte, eu tenho uma trajetória na religião bem misturada. Não por vontade, porque é a vida. A primeira religião que eu fui frequentar foi a Católica, por-que esta família que minha mãe trabalhava era e, embora meu pai alugava uma casa e a gente ficava independente, eles ficaram traba-lhando sempre muito tempo nessa casa. Família rica da sociedade, e eu fiz todos os mandamentos da igreja, batizado e tal. Meus pais, aos poucos, começaram a se emancipar. Meu pai gostava muito de um centro espírita que tem de frente à catedral. E então, em família, a gente ia no centro espírita kardecista, e eu me lembro que frequen-tei o centro muito tempo. Nesse meio tempo, a minha mãe era muito de novidades de religião, surgiu uma amiga que convidou ela para um centro de caboclos de mesa, que teve muitos anos aqui em Pelotas. Era guarani e típico kardecista, só que baixavam caboclos, índios... E eu fui batizada nesse centro. Já lá nos meus onze anos surgiu uma outra amiga contando para minha mãe que ela tinha conhecido um centro de umbanda - e foi aí que eu conheci a umbanda. Eu adorei conhecer a umbanda, porque é uma coisa meio parecida com o car-naval, por causa dos pontos, só que não tinha tambor. Esta umbanda que eu conheci era umbanda de linhas brancas, que chamam que é aquela só para caridades, não tem toque, só trabalham para o bem, para aconselhamentos. E aí, dos onze anos aos vinte, a gente só ficou frequentando essa religião. Mas não tinha tambor. Pode ser que em outra tenha, mas a gente tem que contar a vivência da gente. Esse centro era muito bom, e a Dona Erotide começou a ficar velinha, começou a ensinar outras pessoas, só que, nesse meio tempo, vinte, vinte e poucos anos, eu fui para Porto Alegre. Em Porto Alegre eu ia com a minha tia em um centro no bairro Partenon, lindíssimo, que tinha tambor. Aí, eu voltei para Pelotas depois de quatro anos.

SV: Atabaque? Ou era Sopapo?

Dona Sirley: Atabaque, eu, Sopapo, nas minhas religiões, eu não vi.

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GT: Sopapo tu só viste no carnaval?

Dona Sirley: Só no carnaval. E digo para vocês que é o mesmo que bolo. Dou uma receita de bolo para vocês três. O bolo de cada um não vai sair igual. Então, tem aquela coisa da Teles... Como as esco-las vinham tocando da sua sede para o Centro, se a gente estava no centro da cidade, nós sabíamos quem era a Teles, quem era a Osório ou quem era a Academia, porque cada uma era diferente, usava o Sopapo de maneira diferente.

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SEu SIDI

Ele chega no bar trazido por um membro de nossa equi-pe. Estava mal, um pouco doente. Pergunta: “Mas afinal, o que vocês querem? Não tenho muito para falar”. Aos poucos, pelo interesse em se conversar sobre o carnaval, vai se soltando, sem se importar com as luzes e a câmera. Saca, então, do bolso um samba enredo que havia feito há pouco para o carnaval daquele ano: “Mas não vai dar, já estou muito velho e o bloco não vai sair...”. Resignou-se o fundador das Mariquitas, que foi uma das melhores esco-las de samba da região de Pelotas e Rio Grande.

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Em Rio Grande, no Bar do Dejair.

GT: Então, a gente já sabe por que estamos aqui? Vamos conversar sobre o carnaval de Rio Grande e do Sopapo. Seu Sidi, como é teu envolvimento com o carnaval, desde que ano, como é que começou?

Seu Sidi: Olha, eu fui envolvido no carnaval desde os meus onze anos. Lá em casa, como eram conhecidas as famílias antigamente, que cada uma tinha suas entidades, então, lá em casa, nós éramos os Bracistas. Meu avô presidiu o Rancho Carnavalesco Braço. É, presidiu o Braço umas cinco vezes. Então, nós todos ali nascemos no carnaval praticamente. Eu mesmo nasci em um dia de carnaval. Bem, a gente ali, então, viu os primeiros acordes. O Braço, naquela época, tinha orquestra. Não era só batucada, tinha orquestra mesmo: sax, trom-bone, pistão...

GT: Metais?

Seu Sidi: É. Vamos simplificar. Metais tinha bastante mesmo. Era um cordão, era lindo de se ver. E não existe mais.

GT: E Sopapo, tinha nesta época?

Seu Sidi: Não, não tinha. Só tinham os surdos. E Sopapo não tinha. E estes treme-terra também não tinham. Tinham uns surdos grandes.

GT: Eram bem diferentes os estilos de música?

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Seu Sidi: É, era tudo marcha. Não tinha samba, era só marcha.

GT: E o senhor se recorda de quando foi que viu pela primeira vez o Sopapo, como é que foi?

Seu Sidi: Eu vi que ele surgiu na Escola de Samba General Vitorino. E, por intermédio de algumas amizades, inclusive o próprio Sardinha, que mais tarde veio a ser meu compadre, ele é padrinho do meu guri e foi nosso regente lá nas Mariquitas... O pessoal da extinta General Vitorino depois passou para as Mariquitas. E, então, foi ali na General Vitorino que eu vi o Sopapo. Eu estava em cima de uma viatura, em frente onde hoje é o Banco do Rio Grande do Sul, eu estava em cima de uma viatura, porque tinha muito povo naquela época e, de cima de uma viatura, eu via perfeitamente a Vitorino desfilando. E foi umas das primeiras escolas de samba. E aí eu vi o Sopapo com o Chi-nês vindo batendo. Depois eu fui saber a procedência, de como é que eles tinham aquele instrumento, porque todo mundo ficou de boca aberta. Aquilo só tinha em Havana, o cara só via em filme, e aquele dia tive a oportunidade de ver na Vitorino. Aquilo veio do empréstimo de um cidadão. Na época eles chamavam de gringo, um americano que emprestou para eles, americano ou inglês. Eu acredito que aque-le instrumento foi adquirido em algum lugar de Havana, Cuba. Por lá. E, quando ele veio para cá, eles vieram para o frigorifico, a Swift, e ele trouxe e aproveitou e emprestou para o pessoal.

GT: Não era como esse aí? (referindo-se ao Sopapo que está ao lado do Seu Sidi, produzido pelo Mestre Baptista)

Seu Sidi: Não, não, não. Ele era de taloeiro, feito tipo aqueles barris de vinho.

Dejair: Tipo aquelas tinas que tinham antigamente, com ripas de madeira. E aí formava o tambor.

GT: Estilo barril?

Seu Sidi: É, tipo barril. Todo de madeirinha. E, então, era o Chinês que batia.

GT: E, nessa época, então, este era o único Sopapo que existia?

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Seu Sidi: Era.

GT: Mas depois começou a entrar alguns outros?

Seu Sidi: Depois entrou a Vila Isabel, que foi o cidadão lá da Cidade Nova que fez um para Vila Isabel. Aí, o regente da Vila Isabel, depois que foi padrinho nosso e levou o esquema... Fomos lá e falamos com este taloeiro e fizemos um para as Marequitas, onde o Pássaro Azul começou a bater ele. O da Vila Isabel não veio... O Pássaro Azul veio, mas não veio o Sopapo.

Dejair: O Pássaro saía antes na Vila Isabel?

Seu Sidi: Na Vila Isabel, batendo o Sopapo. E já era bem falado como um dos melhores batedores de Sopapo. Depois, eu conheci em Pe-lotas um cidadão batendo Sopapo, o nome dele era Luís, mas sabe como é estes nomes artísticos aí...

GT: Boto?

Seu Sidi: Isso, Boto. Mas ele não batia igual ao Pássaro. Respeito a memória dele, parece que hoje ele é falecido, mas ele batia um Sopapo força. O que é diferente. Ele era um moreno muito grande e então tinha uma força nos braços danada, dava cada lapada no ins-trumento... E não é isso aí. O Pássaro era mais na manha.

Dejair: O Pássaro era mais na cadência.

GT: Tinha uma história que ele batia com uma mão só?

Seu Sidi: Isso, mas batia com as duas. Uma ele marcava e a outra ele fazia... Ele ritmava, e nós que estávamos lá na frente sentia quando ele parava o instrumento lá atrás. Depois, e agora eu vou contar um fato pitoresco para vocês, quando o Sopapo começou a sair fora e ele já não queria mais tocar o instrumento, todas escolas estavam terminando com o Sopapo, e ninguém queria mais Sopapo e tal... Eu fiz para ele (Pássaro Azul) um surdão. Um rapaz me conseguiu um tonel na Ipiranga, um tonel de breu, e aquilo ali era uma folha de aço galvanizado muito fininha, bem fino mesmo, tipo um papel. Tanto que não se tornou um instrumento pesado para ele, embora ele fosse grande e ter resistência para carregar. E aí ele abandonou um pouco

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o Sopapo e saiu com aquele... Mas não se adaptou com baqueta, ele batia com a mão.

SV: Batia no surdo com a mão?

Seu sidi: É, batia com a mão.

GT: O senhor sabe me dizer, Seu Sidi, por que as escolas decidiram acabar com o uso do Sopapo?

Seu Sidi: Eu acho que é natural. Tu nem sabe por onde, que pé que acabou... E eu fiquei muito triste. Quando eu vi, nós já estávamos envolvidos com aquele negócio, nós tínhamos três Sopapos, e sabe o que é que eu fiz? Eu serrei aqueles Sopapos, pois eles são muito grandes, e aí comecei a presentear os terreiros. Não fiz distinção. Tinha um terreiro amigo lá, eu dei um. Um amigo tinha um terreiro lá, dei outro... Cortei eles no meio, pois eram muito grandes, e hoje tenho visto nos terreiros aí, e não importa para eles que é grande, entendeu? Não importa para eles se for grande.

Dejair: Mas naquela época...

Seu Sidi: Naquela época eles queriam pequeno. Então eu marcava e cortava. Dei todinhos de presente, porque foi abolido o Sopapo. E foi onde eu fiz para o Pássaro Azul este treme-terra. E, agora, esses anos atrás, fomos presenteados pela Educação e Cultura com um Sopapo destes. E aí estamos voltando com ele...

GT: Aos pouquinhos tu achas que está voltando?

Seu Sidi: Tá voltando. O pessoal está gostando, e ele é ritmo. Nossa banda não saiu, deu um fracasso, que eu estou espinhando para ver o que aconteceu, e nós íamos sair com dois destes aqui (Sopapos). O André e o filho do finado Bidi... Iam sair três, pois eu tenho um, mas aquele é propriedade minha mesmo. Tem um que é da escola, o que está rasgado... E eu até vi no Dejair, ali. Aquele instrumento está rasgado ali embaixo, e, quando tu for trocar, eu vou te pedir, tu não coloca fora. Se tu puder me dar um pedacinho... Porque este couro de cavalo não é sopa para tu achar, e eu vou ver se consigo remendar ele. Eu tenho certeza do que eu vou fazer, ele vai perder uns 20% ou 30% de ritmo. Ele vai perder, mas eu vou ajeitar ele.

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Dejair: Mas, de repente, numa das nossas idas lá no Baptista a gente consegue...

Seu Sidi: É, no Baptista a gente consegue. Para mim fazer teria que ser a barrigueira, que é fina, porque, se for do lombo, eu não vou pegar, porque não vou ter condições. Eu não vou ter e dificilmente alguém vai ter. Tem que deixar de molho no vinagre três dias. Ele tem que ficar tipo um merengue para tu poder manusear ele, senão...

SV: Foi o senhor que fez seu Sopapo?

Seu Sidi: Não, eu sei marcá-lo por que marco na folha, entendeu? A gente faz aqueles repeniques, cuícas cônicas, mas na folha, o que é fácil de dobrar. O que eu estou achando meio difícil é este aqui (Sopapo). Este aqui está me provando que é difícil de virar. Tu pega o inverso da madeira, é difícil. O Baptista é profissional, e eu queria descobrir. Não vou tirar o mérito do Baptista, pelo contrário, ele vai pegar até mais mérito comigo. Eu não vou tirar o pão dele, não vou fabricar isso aqui. É só curiosidade de saber.

GT: E tu, Dejair? Esta história de ter este espaço onde todo o sábado, todo fim de semana, o pessoal se reúne... É um outro lado da cultura do carnaval?

Dejair: É. A gente, quando começou, quando tivemos essa ideia, foi de resgatar... Antigamente eles faziam no Bar do Bira. Aqui tinha um cidadão, já falecido, que era estivador. E, aí, então, na minha ju-ventude, as pessoas iam ali, e, de uns anos para cá, não existia mais isso. Então eu tive essa ideia até para reunir os amigos, os camaradas do nosso tempo e a juventude que não participou disso. Então, aos sábados, a partir das 16 horas, nós fizemos este pagode aqui na nos-sa casa. Dia de semana ela funciona normalmente como lancheria, café e xerox e, aos sábados, para descontrair e reunir os amigos, nós fizemos o pagode.

GT: E movimenta bastante?

Dejair: Movimenta, movimenta. Nós tínhamos outra casa, que era es-pecífica de pagode, que era a Casa de Bamba, mas aí teve que fechar, problemas com vizinhança e tal...

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GT: E como é a história desse Sopapo aí?

Dejair: O Sopapo veio parar aqui pois eu conheci o Baptista por uma casualidade. Eu fui a Pelotas, eu e um amigo meu, pois eu sou des-pachante previdenciário, e fui a Pelotas e encontrei o Seu Baptista perto do Hospital Santa Casa. Este amigo meu era conhecido dele de infância, aliás, ele conhecia o Leandro, amigo meu, e o Leandro reco-nheceu ele, porque ele era motorista da Penha aqui em Rio Grande. Reconheceu ele, e aí ficamos conversando, e ele perguntando como é que estava o carnaval aqui em Rio Grande. Eu falei que nós tínhamos esta casa aqui onde se fazia pagode, e ele ficou de aparecer aqui em Rio Grande, como veio aqui. A primeira vez ele veio e trouxe a cuíca dele e tal. Da outra vez ele veio e chegou para mim e perguntou: Dejair, não queres um Sopapo? Eu faço Sopapo lá em Pelotas, e tu não queres um Sopapo para manter na tua casa lá e manter a tradição do Sopapo? Respondi que para mim seria uma satisfação. Aí ele trouxe.

GT: E o pessoal toca bastante?

Dejair: Toca. Usamos bastante o Sopapo. Agora mesmo no carnaval nós fizemos um bloquinho e saímos com ele. Andamos no Centro e no bairro Getúlio Vargas. Demos uma volta com o Sopapo. A primeira vez até, nós fizemos o nosso bloco aqui motivados pelo Sopapo. Eu, por apreciar, vi muito o Pássaro e o Peri, que também tocava Sopapo.

GT: O pessoal que tocava Sopapo era meio famoso então?

Dejair: Ah, era...

GT: Famoso que eu digo de todo mundo conhecer e respeitar...

Dejair: Exato.

Seu Sidi: É, realmente é verdade.

Dejair: Uma das falhas do não prosseguimento desse instrumento, eu acho, foi porque tinha aquelas pessoas... Como nós citamos... Tinha o Pássaro, o Peri, que também tocava no final, mas os caras respeita-vam tanto, idolatravam tanto o instrumento que não teve ninguém a coragem de seguir. Não é como um surdo. Eu toco um surdo e estou

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cansado, então dou para outro. Não, o Sopapo tu pegava ele e ia até o final.

Seu Sidi: Até o final...

GT: E o Sopapo marcava o samba?

Dejair: E aí se extinguiu por causa que não teve outras pessoas com qualidade para substituir aqueles... A meu juízo, né?

GT: Com relação a este samba de hoje, samba de roda, pois isto é samba de bloco, de rua. O samba de roda, tu sentes que tem uma diferença tocado com o Sopapo?

Dejair: É, ele preenche, dá mais firmeza no som...

Seu Sidi: Dá mais firmeza, exatamente...

Dejair: Pelo menos aqui dentro, quando a gente faz aqui o pagode, o pessoal tem gostado. Aqui, quem toca para nós é o Geraldo. Tu co-nhece o Geraldo, Sidi? Geraldo, um cara alto, tu sabe quem é...

Seu Sidi: Da vida devo conhecer.

Dejair: O Rudi, o Rudi acho que é parente teu, Sidi? Não é? O irmão daquela guria que trabalha no Fórum ali.

Seu Sidi: Sim, o Rudimar Collares. Ele sabe tocar.

GT: Não é qualquer um que toca o Sopapo, né?

Dejair: Aqui, desta época aqui, desta turma nova do pagode, eu só vi dois até agora. Um que a gente sabe que é consagrado, que é o André Brizolara, que toca. E sei o Rudi e o Geraldo, que tocou aqui, não conheço mais ninguém.

Seu Sidi: É, os outros que eu conheci quase todos morreram.

GT: Tem história aí que falam de duelos de Sopapos que faziam nes-ses blocos? Que o Pássaro Azul com o Boto, eu acho... Vocês escuta-ram falar dessa história? Tem um pesquisador aí que nos falou, nos comentou essa história.

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Seu Sidi: Não.

Dejair: O que eu me lembro, que eu assisti... Assistia naquela época é que o carnaval, as escolas passavam e aquele arrastão atrás. E o Pássaro com uma mão ele batia e com a outra ele protegia a escola.

Seu Sidi: O Sopapo, por exemplo, lá nós chegamos a ter 4 Sopapos. Onde o melhor mesmo que batia era o Adão (Pássaro Azul). Aí tinha o Adão Careca, tinha o Seu Bahia, que depois foi para Bahia, e tinha um outro que batia.

Dejair: Seu Bahia, o estivador?

Seu Sidi: Isso. Tinha quatro Sopapos, e então eles ficavam atrás e não deixavam aquela gama de gente que vem ali sambando entrar, porque senão entravam escola a dentro. Tinha muita gente que vinha ali atrás, que era sambista, admirador da nossa escola, que às vezes ajudava a fazer parede, pois o povo que vem lá atrás vem que vem né(risos). E tu não pode tirar, porque são admiradores, e os que não são vêm na corrida do samba...

SV: O senhor conheceu o Pássaro Azul?

Seu Sidi: Conheci, o nome dele é Adão Afonso Silveira.

SV: Fala um pouco dele aí para nós, Seu Sidi.

Seu Sidi: Ele trabalhava com móveis. Trabalhou muitos anos e se aposentou. Era profissional em lustres, trabalhava com móveis e se vendia muitos móveis naquela época. Ele trabalhou muitos anos nis-so. Conheci ele desde menino, jogamos futebol juntos na época, do profissional, e depois no carnaval.

SV: E ele era da Vitorino e foi com o senhor para as Mariquitas?

Seu Sidi: Não, ele era da Vila Isabel, e a Vila Isabel fechou e eles foram para as Mariquitas.

GT: Como é que ele tocava o Sopapo, de lado? Normalmente a gente vê que o pessoal carrega ele na frente.

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Seu Sidi: Olha, ele colocava em qualquer lado. Não tinha feição para ele, sabe? Botava aqui (lado direito), botava na frente, sabe como que é? Vinha, às vezes, só com uma mão batendo, marcando. Ele era canhoto. Vinha sempre com um lenço enxugando o suor, porque ele suava muito. Hoje eu até tive vendo aí no médico o porquê do suor nas mãos e na cabeça, mas isso é outro papo, é medicina(risos)... Mas para ele não tinha feição. Colocava em qualquer lado.

GT: E tem Sopapo em terreira?

Seu Sidi: Tem, tem. Eu faz muito tempo que não vou, muito tempo mesmo. Eu presenteei aí uns dois ou três e acredito que ainda tenha, se eles cuidaram do instrumento como eu gosto de cuidar, ainda deve ter...

GT: E eles eram deste tipo assim? (referindo-se ao Sopapo que está com eles)

Seu Sidi: Não, eles eram menor, o diâmetro em cima.

SV: E por que o senhor cortou, Seu Sidi?

Seu Sidi: Eu não cortei por minha vontade, foi o próprio terreiro que me pediu. Ele era muito grande, e eu cortei, dei de presente. Cortei, cortei e dei de presente, porque os caras não tocaram mais.

Dejair: Sim, sim.

Seu Sidi: E aí é que eu tô te dizendo. Deixaram de tocar o Sopapo. Por exemplo, o Pássaro Azul passou a tocar o treme-terra que eu fiz para ele, um tremendo treme-terra tipo este aqui (Sopapo), só que era bem levianinho, que até uma moça pegava ele. Fui eu que fiz para ele, e ele passou a sair com ele e largou o Sopapo. O Sopapo dele eu dei de presente, só que eu não lembro para quem. Dei para um terreiro. Mas como fazem muito anos, eu não lembro. Dei o So-papo do Adão Careca, dei o do Seu Bahia... Nós tínhamos uns três ou quatro Sopapos.

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GT: O senhor fez quantos Sopapos?

Seu Sidi: Não, eu nunca fiz Sopapo. Aquilo tudo era serviço de talo-eiro. Era aqueles assim... Com as madeirinhas...

GT: Tá, então o senhor está me dizendo que os Sopapos que o senhor serrou e deu não eram desse tipo aí, do Mestre Baptista?

Seu Sidi: Não, não. Estes aqui estão aparecendo agora. Na nossa época não tinha isso aí, era tudo serviço de taloeiro. Não tinha este tipo de Sopapo aqui.

GT: Esse aí com a folha de compensado?

Seu Sidi: Acredito que não tivesse profissional na época que fizesse este aqui. Virar a madeira como ele tá virando... E eu vou te dizer, senão os caras faziam, porque este aqui é mais leviano que aqueles do taloeiro.

Dejair: Aquele era madeira grossa, né? Maciça.

GT: O Sopapo original é de tronco de árvore...

Seu Sidi: É, eu já ouvi falar isso aí, inclusive por ti.

GT: A gente está pesquisando. Isto vem dos escravos que estiveram nas charqueadas... Não se carregava ele, o pessoal tocava sentado em cima.

Seu Sidi: É. Independente do Sopapo, eles também faziam aquele tipo de castanholas, que eles bloqueavam aqueles troncos e batiam neles, eles davam para tirar um som. É verdade ou não?

GT: Isso aí a gente não viu. Sempre vimos que é com a mão e com a pessoa sentada em cima...

Seu Sidi: Gustavo, vai em frente que tu vai encontrar, vai em frente que alguém vai te dizer isso aí. Eles eram dotados de mais aptidões, veja bem. Eles “ocavam” para fazer o Sopapo e “ocavam” para fazer uma percussão.

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GT: No tronco mesmo?

Seu Sidi: É, no tronco mesmo. Eles deixavam ele oco e que ele dava o tom tipo aquelas castanholas, entendeu? Vai em frente que alguém vai te fornecer esses dados.

GT: Sim, na lateral dele sai o som...

Seu Sidi: Isso. Eu agora mesmo estou tentando... As castanholas até desapareceram e eu andei procurando estes marcos de postes, aque-les antigos, que eram feitos daquela madeira meia marrom... A Gra-biúva e o Grape. E então eu fiz umas castanholas de Grape. Quem fez... Eu dei as coordenadas todas para o Dino, e ele fez elas. Eu fiz o desenho para ele, fiz isto aqui (desenha no papel que está em cima da mesa), entedeu? Olha aqui, Gustavo. Essa é a castanhola e ela é feita de Grape e tem um som... Eu queria arrumar destes marcos que a madeira é Grabiúva e aí tem outra tonalidade, melhor que a Grape. Tem o Angico, que a gente também faz, mas a castanhola boa é o Grape e a Grabiúva. A gente queria fazer igual como se faz com o Agogô, fazer de três tonalidades, e eu vou fazer. Então, eu moldei uma agora e eu não quero ela assim (volta a desenhar no papel), eu quero ela cônica. Eu tenho ela lá em casa e nem me lembrei senão eu ia mostrar o molde que eu fiz de cartolina e montei ela e estou para levar no carpinteiro e nós vamos fazer, montar... Vamos ter que colar e estamos com medo é que a cola não resista.

GT: O senhor é um ativista do carnaval em Rio Grande?

Seu Sidi: Fui. Eu agora estou perdendo as forças.

Dejair: Foi um dos pioneiros aqui.

Seu Sidi: Desde os meus 11 anos a gente já era carnavalesco. E lá em casa meu avô foi presidente do Braço 5 vezes. Aquela época dava gosto de ver o carnaval, duas horas da tarde os Ranchos já estavam na rua. O Braço, o Oriente... E, então, aqui tinha o Oriente, Braço, Só Sai de Dia e o Recreio, que era só sociedade. Os cordões que saíam na rua, o Encarnado, Branco e Preto... Eram o Só Sai de Dia, que só saía de dia mesmo - o nome dizia tudo. Tinha aquela gíria, e aquela época era meia preconceituosa, e então aquele cordão Só Sai de Dia era só branco. E branco bom, eles eram bom mesmo. Aí tinha o

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Braço, que era só moreno. Tinha o Oriente, era só moreno também, uns meio descascados, e tinha aquela rivalidade. E tinha o Olha Para Lua, de branco também. Tinha o Paquetá, que era moreno também. Então, quando saíam esses cordões, aí era uma loucura. O carnaval começava às 2 horas da tarde e então saíam até 7 ou 8 horas, e o pessoal tinha umas entidades que faziam comida para aqueles com-ponentes que moravam longe, porque 9 horas já estava na porta lá, que 9 horas tinha saída de novo. O Braço tinha que ir à praça... A prefeitura e o prefeito, naquela época, abria a prefeitura, subiam lá em cima, e hoje tu vai ali a prefeitura está fechada. E nem querem carnaval ali perto deles. Os anos foram mudando, e eu falei agora há pouco ali pro Ramon: “Pô, Ramon. O carnaval da Colombo não é vocês que vão fazer, é o povo que faz...”.

Dejair: Sim.

Seu Sidi: Aquilo ali é o povo que faz, aquilo ali é um prêmio para o povo. O povo é que quer, não é carnaval para os presos dentro das entidades. Aquilo ali é um prêmio pros caras que saem fora das entidades. Se tu vai para uma entidade, tu tem que ir com a tua ca-misinha, calça, sapatinho, assim... Na segunda-feira, tu vai do jeito que tu quiser, pode ir com a tua pipa de bebida e vai tomando que ninguém vai te dizer nada, ninguém tem nada a ver com isso e nem a policia e nem ninguém. Já na entidade, ali, tu está privado disto aí, tens que sair... Então, o que eles mais tiraram foi o carnaval da Co-lombo. Tiraram o carnaval da Colombo, ora!!! Ah, por quê?! Vai ter?! Não teve. E eu até guardei este documento que ele me deu. E isto aqui é para provar que (tira um documento da carteira) ele marcou para nós dia 21. Olha aqui, assinado por ele. E está aí embaixo, lá do gabinete da prefeitura...

GT: “Saída dia 16/02 e dia 21/02”...

Seu Sidi: E está assinado embaixo! Eu disse para ele: “Faz na Colom-bo!”. E aí ele liberou a Colombo, mas aí... Tirou o carnaval da Co-lombo, tirou 70% do carnaval rio-grandino. Deu pra ele. Isso, Dejair e Gustavo, são chamados de os mentores do carnaval rio-grandino e es-tão distorcendo o carnaval, e não é eu quem quero, é o povo. A gente vê que os caras são inocentes, eles privam ali as entidades e prendem os caras ali, e todo mundo tem que sair dentro da sua disciplina, mas,

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na segunda-feira, tu tem que liberar os caras, senão os caras não vão sair mais, e até libera os instrumentos pros caras fazer uma charan-ga... Eu fazia isso, sempre fiz. “Olha, Sidi, nós vamos para Colombo”. E eu dizia: “Pode ir até para Pelotas, pro Rio, eu tô liberando”. E di-ziam: “Sidi, não faz isso, eu vai...”. E até bebida! “Libera aí um litro ou dois que eles vão tomar e vão...”. Carnaval é isso aí. O cara quer se despir daquelas coisas, daqueles compromissos, daquelas coisas que aconteceram. O cara quer atirar tudo para o ar. Então, era assim o carnaval. O Dejair... Estás com quantos anos Dejair?

Dejair: Eu estou com 53 anos.

Seu Sidi: Ainda alcançou alguma coisa... Então ainda pegou muita coisa boa no carnaval.

Dejair: É, eu assisti.

Seu Sidi: Tu era daquela turma do Bangu, né?

Dejair: Eu ainda peguei o Camelo, o Bangu...

Seu Sidi: Mas e aí, quando deixou os cordões carnavalescos, veio a bicharada. Os cordões foram abolidos e aí veio os bichos: Camelo, Galo, Gorila...

Dejair: O Galo era da brigada, né?

Seu Sidi: Não. O da brigada era o Tigre. E o do exército era o Quebra Osso. Eu fui servir em 50, e, como eu puxava o Sem Borbulha, os ca-ras me chamaram lá na frente do comandante e do subcomandante para fazer um bloco lá na barra do quartel. E aí eu não aceitei, de jeito nenhum, eu vou arrumar encrenca... Gente que servia naquela época era danada pra caramba. Esses caras na cidade se “fiando”, e ainda coloca a farda em cima. É o tal do preconceito que te digo. E aí acha que é esculhambação, e eu não ia estar segurando este foguete, eu não segurei e aí não tinha quem segurasse. Então não saíram.

GT: E hoje o senhor está nesta de tentar resgatar o carnaval de al-guma forma?

Seu Sidi: Olha, Gustavo. Eu vou te falar sinceramente. Eu sofri agora uma grande decepção e eu estou me desvanecendo com o carnaval.

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Eu acho que já é hora, o momento mesmo de eu parar. Se precisar ir lá no meu bloco, alguém que segure ela, a entidade, e, se precisar de umas tintas - e vão precisar -, porque eu perco na idade, mas ganho no conhecimento, poderei ajudar com alguma coisa. Apesar do carnaval estar sofrendo uma grande evolução, periga as coisas que eu faço já estarem ultrapassadas, mas eu acredito que não, né. Fazer sambas enredo não é qualquer um que faz. E fazer, em si, a apoteose... E tu vê, eu juntei... E eu não quero me enaltecer, mas o momento veio a ser propício, na hora, e nós não tivemos valor, não ti-veram, a turma não teve resposta para me dar. E isso não é qualquer um que faz isto aí. Eu fiquei depois impressionado de como é que eu consegui, pois as Mariquitas nasceu de dentro do Sem Borbulha. Nós tínhamos o Sem Borbulha e via passar a General Vitorino, via passar a Vila Isabel, e nós só olhando eles. Aí pensei por que nós não fazemos uma escola de samba, se nós temos um número suficiente de gente? E aí eu, Cabana e Jorge Costa...

Dejair: Negão Cabana?

Seu Sidi: Negão Cabana. Então nós vamos fazer. O Cabana saiu e ele até era regente do Sem Borbulha. E mais o Jorge. E foi aí que nós fizemos as Mariquitas, mas nós não largamos o Sem Borbulha, que era nossa ala para segunda-feira de carnaval. Então, este ano eu consegui me lembrar, fazer o Sem Borbulha, e as Mariquitas eu fiz dois estandartes, mandei confeccionar dois estandartes, um com as Mariquitas e outro com o Sem Borbulha, tanto que tenho até a letra que era o tema enredo, pois às vezes nós chegávamos na frente da rádio e perguntavam: “Como é o samba enredo de vocês?”. Puxa, o cara olhava assim e via nós fardados, cada um de um jeito, carnaval de todos os tempos... Pô, isso menospreza, está entendendo? Então, nós íamos organizados. E, então, olha aqui (tira um papel do bolso), eu fiz um samba aqui. Seguinte: “Carnaval 2010, Bloco Sem Borbulha, fundado em 49, e Associação Recreativa Cultural Escola de Samba Mariquitas”. Eu vim na Barra em 49, quando eu estava servindo, eu vim lá da Barra de a pé, para nós sairmos segunda-feira de carnaval no Sem Borbulha, eu estava de serviço em 49 e eu coloquei aqui, olha (falando da letra do samba): “Mariquitas e Sem Borbulha fize-ram combinação/para fazer no carnaval a sua apresentação”. Quer dizer que os dois unificaram, tanto que todo mundo aderiu. Fizemos camisa branca para o Sem Borbulha e fizemos camisa vermelha para

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Mariquitas: “Mariquitas nunca morreu nem morrerá/e junto do Sem Borbulha vem comemorar/Vem cantar, vem cantar/Vem dançar no Sem Borbulha até o dia clarear/Vem cantar, vem cantar/Vem dançar nas Mariquitas até o dia clarear”. Entendeste? Este aqui foi o samba nosso e nós não conseguimos. Foi muito em cima, e mal ensaiamos, mas ele é pequeno e foi fácil. Eu tinha um mestre de canto na mão, tudo direitinho. Tinha a guria do Gilmar, mas o Gilmar é... Eu não vou menosprezar ele, mas já cheguei à conclusão de que, com o Gil-mar, não dá para contar muito com ele, não dá. Ele é muito avoado e ele não leva o... Ele só quer tocar aquelas músicas antigas que dá no trombone, e não é isso aí. E o pessoal até às vezes critica e diz: “Lá vem ele com o ‘Mamãe eu quero mamá’”. Antigamente era, né? O Braço e o Oriente saíam com aquela “Mamãe eu quero, mamãe eu quero”; ”Eu fui às touradas em Madri, parará-tim-bum”. Só marchas. Tinham os cordões, só marcha bonita:”Andorinha, teu verão está lon-ge, longe está o meu amor, eu canto, eu choro...”. Pô, isso aí era do Braço, o Braço era... Eu tinha cabelo, né, Dejair(risos)? O Dejair é da família Camelo e ele vai dizer alguma coisa do Camelo que ele conheceu.

Dejair: O Camelo, eu me lembro quando ia lá no campo do Vila, te lembra nos domingos de manhã, o finado Abelardo e aquela turma toda? Eu me lembro do Camelo.

Seu Sidi: O Camelo foi fundado na sede do Bangu, no corredor da Leal Santos...

Dejair: O pai jogou no Bangu.

Seu Sidi: Eu conheci teu pai, o Maravilha.

Dejair: Dinácio, compadre do Maravilha.

Seu Sidi: Pô, péra aí. Teu pai jogou comigo, Dinácio, zagueiro?

Dejair: Isso, isso...

Seu Sidi: Teu pai era zagueiro.

Dejair: Jogava na lateral esquerda.

Seu Sidi: Não, jogou mais de zagueiro.

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GT: Tu jogava bola também, Seu Sidi?

Dejair: Jogava, foi profissional.

GT: O Pássaro Azul era jogador também?

Seu Sidi: Jogava também. Era lateral esquerdo. Dinácio jogava bem também.

SV: O Chinês, não?

Seu Sidi: Olha, o Chinês jogou no time do Bangu. E eu vou falar muito pouco dele, pois eu não gosto muito deste tipo de jogador. Eu gostava da pessoa dele, mas não dele como jogador. Ele era aquele lateral que quer parar o adversário só com pontapé, e aí não diz nada. Ele tem é que jogar, pontapé já era.

GT: E em que posição o senhor jogava, Seu Sidi?

Seu Sidi: Eu? No ataque joguei em todas.

GT: Era goleador?

Seu Sidi: Davam sopa, eu fazia uns golzinhos.

GT: Em qual time tu jogaste aqui?

Seu Sidi: Joguei no São Paulo, joguei no Rio Grandense, joguei no Brasil de Pelotas...

GT: Jogou no Brasil de Pelotas?

Seu Sidi: Joguei. Joguei na época do Caruso, Oswaldo e Taubua. Da-rio, Siara e Tibirica. Na esquerda, nesse dia que eu joguei, fui eu na esquerda. Gita na meia, Setefolvo, Negrito, meia direita Caizé e pon-ta direita Mortoza. Me esqueci do lateral direito Tavares. Bah, melhor jogador do Brasil para mim era o Tavares. Eu era engatado no Tava-res, ele jogava uma bola. Agora, o resto lá era igual a mim, atirava de qualquer jeito. Mas eu me decepcionei com o Brasil, nós não viemos aqui falar em futebol, mas eu me decepcionei com o Brasil...

GT: Mas isso faz parte também...

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Seu Sidi: Bom, nós viemos aqui para falar em carnaval e não em futebol. Vou mudar um pouco. Então, o carnaval rio-grandino está morrendo, eles estão fechando o carnaval. Gustavo, tu via nas ruas os bloquinhos e hoje não se vê. Este ano eu vi na rua um que outro. E não é por ele estar aqui presente, mas vi o do Dejair muito bem ar-rumadinho, com estandarte, que é o que eu gosto, por mais pequeno que seja, o estandarte retrata aquela turma que vem. Antigamente, tu passava aqui domingo de manhã e já tinha uma turma. Hoje tu não vê mais isto. Tu estava aqui e aí passava três, quatro mascarados lá na frente e falavam... E tu ficava “quem será?”, “me conhece?”. Outro passava lá, três, quatro com um tamborinzinho e uma caxeti-nha - “pam, pam, pam!” - e ia para a Colombo. Então, tu chegava lá e estava todo mundo naquele vai e vem, sabe? Não tem mais isso. Tu quer tirar aquilo para fora, que tu sofreu no ano, os revés todos que tu sofreu, e tu quer se livrar e hoje não tem como. Hoje tem que ir para um bar escutar um som, uma coisa assim, pois através do carna-val não tem mais como.

GT: A ideia, então, Dejair, é continuar com o bloco?

Dejair: É. A ideia é continuar com o bloco. E o bloco são as pessoas que vêm aqui no pagode no decorrer do ano, aos sábados, e partiu dessas pessoas da gente formalizar o bloco. Foi assim que surgiu nos-so bloco.

GT: E o Sopapo junto?

Dejair: O Sopapo junto, já está aqui com a gente...

Seu Sidi: (Olhando para o Sopapo) Já está aí ele...

Dejair: Permanecerá conosco por mais muitos anos, se Deus quiser, e o bloco vai continuar.

Seu Sidi: Eu vou aproveitar o ensejo e te dizer que, se tu precisar de alguma força com o bloquinho, estou aí. Se tu precisar de algum instrumento, tu sabe como é, né?

Dejair: Eu lhe agradeço...

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Seu Sidi: A gente esta aí... Uns reco-recos, umas castanholas... Eu vou te dizer uma coisa, eu entendo, pois depois de viver 40, 50 anos dentro do samba... Tu aprende alguma coisa. Tu escuta o som, mas, de música, se tu me perguntar, eu não sei nada. Eu tive a habilidade de fazer aqueles agogôs, e eles chamam de piano aqui, pois eu colo-quei uma caneca do lado da outra...

Dejair: Aquele que saía na cintura, quem é que tocava aquele lá?

Seu Sidi: O finado Cruxe, mas depois do Cruxe um guri fazia. Ele esta lá na Negra, eu fui lá hoje. Eu fiz dois, com materiais diferentes, e tu vê a diferença de tonalidades deles. São sete canecas cônicas, cada uma com uma tonalidade, batidas com madeira, pois com ferro não dá a resposta técnica.

Dejair: Amarra na cintura e vai...

Seu Sidi: O Rui pegou e solou: “Eu vou pra Maracangalha, eu vou...”. Gustavo, eu fiquei louco com aquilo ali. Então, eu me emocionei com o instrumento que eu fiz sem saber. O finado Irã foi lá na sede e tocou parabéns nele...

SV: Seu Sidi, eu gostaria que o senhor falasse um pouco para nós do Sardinha, que é um personagem importante...

Seu Sidi: Ah, é. O Sardinha...

SV: O senhor conheceu o Sardinha?

Seu Sidi: João Quadros, o Sardinha, era meu compadre, padrinho do meu guri. Ele era irmão de criação de uma mulher minha e ele já faleceu.

GT: Sardinha faleceu?

Seu Sidi: Sardinha faleceu, e essa que era minha mulher, que era irmã dele, faleceu também. O Sardinha era regente da General Vi-torino, fundador e regente da Vitorino. Aí, a escola deles acabou e eu não sei por quê. Ele saía no Sem Borbulha. Ele saía na General Vitorino, que saía toda padronizada, mas, na segunda, ele saía no Sem Borbulha. Saía lá de chinelo, pés descalços, como queria o Sem Borbulha. Não tinha bandeira, não tinha bandeira... Então, quando

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nós saíamos na noite, ele era o regente. Regente da escola e bom cantor. Ele que puxava o samba da escola. Naquela época nós puxá-vamos os sambas que eram feitos no Rio: Jamelão, Jair Rodrigues, sambas daquela época. Então, nós cantávamos os sambas daqueles caras. Às vezes, até marchinhas. E o Sardinha era o regente, puxava o samba, e ele também se apresentava em festivais. Teve uma trupe aqui que o diretor era o José, uma Trupe Africana que se apresen-tava no teatro que tinha ali na União Operária, na Dr. Nascimento, e domingo eles faziam apresentações, cantava Sardinha, a Solange cantava, e o Sardinha era cantor. Eu tinha até um retrato dele. Ele usava um terno completo, uma cartolinha tipo Frank Sinatra, bengala e ele usava para fazer aquelas apresentações. Ele era bom mesmo e cantava bem. Ele que puxava os sambas da nossa escola.

SV: E quem pegou o Sopapo na casa desse senhor inglês? Foi o Sardi-nha ou foi o Chinês?

Seu Sidi: Bom, eu acredito que foi... O Sardinha não, pois o Sardinha não trabalhava na Swift, e este instrumento saiu da Swift. Quem tra-balhava ali era o Chinês, o Dácio. O Dácio era da Vitorino e era muito bem quisto, muito bem quisto. Ele tinha uma simpatia, e aqueles gringos tinham uma simpatia por ele, e ele era afilhado dos homens, como se diz na terra, independente de ser trabalhador, ele caiu nas graças daquela gente. E foi por intermédio dele e do próprio Chinês que arrumaram este instrumento.

SV: Quem trouxe para Vitorino foi o Chinês não foi o Sardinha?

Seu Sidi: Não, não. O Sardinha não foi.

SV: O Sardinha era motorista?

Seu Sidi: Ele era da Texaco, motorista da Texaco. Ele que pegava estes óleos com um caminhão tanque.

SV: Nós pegamos um depoimento de alguém dizendo que o Sardinha era motorista e que foi ele que teria trazido o Sopapo para Vitori-no...

Seu Sidi: Não, eu acredito que não, porque ele não trabalhava na Swift. Bom, eu estou te dizendo pelo fato, não é? Quem poderia tra-

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zer era quem tramitava ali com aqueles gringos. E quem tramitava ali era o Dácio, que tinha uma afeição muito boa com aqueles gringos, e o Chinês... Fora estes dois, quem disser que trouxe vai ser surpresa para mim. Os que conviviam ali com os gringos eram estes. Eu só não forneço mais dados porque eu não lembro e eu não vou estar forjan-do fatos para dizer a vocês.