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UNIVERSIDADE DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO INSTITUTO DE LETRAS

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM LETRAS

ALMEIDA GARRETT: DIÁLOGOS DA FICÇÃO COM O

JORNALISMO (1834-1854)

Maria do Rosário A. M. da Conceição

Rio de Janeiro 2005

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Maria do Rosário A. M. da Conceição

ALMEIDA GARRETT: DIÁLOGOS DA FICÇÃO COM O

JORNALISMO (1834-1854)

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-graduação em Letras – área de concentração em Literatura Portuguesa, da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, como requisito parcial à obtenção do título de mestre. Linha de Pesquisa: Literatura Portuguesa e outros campos do saber

Orientador: Prof. Dr. Sérgio Nazar David

Rio de Janeiro

2005

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Maria do Rosário A. M. da Conceição

ALMEIDA GARRETT: DIÁLOGOS DA FICÇÃO COM O JORNALISMO

(1834-1854)

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-graduação em Letras – área de concentração em Literatura Portuguesa, da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, como requisito parcial à obtenção do título de mestre.

Aprovado em: _____________________________________________________ Banca examinadora:

_________________________________________________ Prof. Dr. Sérgio Nazar David (Orientador) - UERJ _________________________________________________ Profa. Dra. Ida Maria Santos Ferreira Alves - UFF _________________________________________________ Profa Dra. Lúcia Maria Bastos Pereira das Neves - UERJ

Suplentes:

_________________________________________________ Prof º Dr.Carlos Kessel - UFRJ _________________________________________________

Prof º Dr. José Carlos Barcellos - UERJ

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DEDICATÓRIA

Aos meus pais, Jorge Moreira da Conceição (in

memoriam) e Deolinda Alves de Castro.

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AGRADECIMENTOS

Um trabalho por mais individual que possa parecer, na verdade, é resultado de cooperações.

Agradecer às pessoas que contribuíram para a realização deste trabalho expressa apenas

parcialmente o meu reconhecimento, para com todos que colaboraram para que a pesquisa

seguisse adiante.

Aos meus pais, que proporcionaram e incentivaram meu aprendizado durante toda minha

vida;

A Paulo Roberto A. M. da Conceição, meu querido irmão, pelo seu incentivo e colaboração

nos momentos mais difíceis da minha vida;

A Fabiano de Siqueira Campos, meu amor, pelo seu incentivo e compreensão;

Ao Prof. Dr. Sérgio Nazar David, pela orientação deste trabalho, sempre disposto e

paciente nas minhas constantes e infinitas dúvidas e que divide comigo o interesse pelo

nosso Almeida Garrett;

Ao Real Gabinete Português de Leitura e à Fundação Calouste Gulbenkian, pela bolsa e

pesquisa que me permitiu levar à frente o levantamento das fontes primarias relativas à

recepção crítica de Viagens na minha terra e O arco de Sant’Ana;

A Antônio David e Belmiro Jorge, queridos irmãos, sempre carinhosos e incentivadores do

meu trabalho;

Aos professores João César de Castro Rocha, Marcos Alexandre Motta, Maria do Amparo

Tavares Maleval, Maria Cristina Batalha e Nadiá Paulo Ferreira, pelos doutos

ensinamentos;

A Fábio André Cardoso, querido amigo e companheiro nos momentos difíceis;

Aos colegas do grupo de orientandos do Prof. Sérgio Nazar David, pelo respeito mútuo e

colaboração em nossos encontros;

E finalmente a toda a minha família, que sempre me incentivou e ajudou a seguir o

caminho das letras.

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RESUMO

Portugal no século XIX presenciou uma subida significativa no número de jornais e revistas

publicados. Esse surto jornalístico estava ligado a uma prática política que tinha como

objetivo levar os ideais liberais aos cidadãos e, assim, formar o que então se chamava de

“opinião pública”. Tal processo não foi levado adiante de modo completamente pacífico

nem muito menos sem evidentes contradições e recuos. Foram muitos os liberais

portugueses que foram presos e exilados. A proposta deste trabalho é apresentar a recepção

dos romances Viagens na minha terra e O arco de Sant’Ana na imprensa portuguesa da

época. Os artigos que foram publicados em jornais a respeito de sua obra compreende o

período de 1834-1854. Dezessete destes vinte anos são de verdadeira instabilidade política

e marcam o início do constitucionalismo em Portugal (1834-1851). Os três anos restantes

avançam pelo início da Regeneração até o final do reinado de D. Maria II (1851-1853) e

culminam com o início da regência de D. Fernando II (1853) e a morte de Garrett (em 09

de dezembro de 1854). Neste período, Garrett publica Viagens na minha terra (1843 – 1845

– 1846) e O arco de Sant’Anna (1845-1850), onde suas idéias políticas serão discutidas

com complexidade e os rumos do liberalismo serão postos sobre a mesa.

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ABSTRACT The number of periodic (newspapers) and magazines published in Portugal, in the

nineteenth century, increased significantly. This journalistic boom was related to political

practices whose object was bring to the citizens the liberal ideals and, thus, to form what

was called “public opinion”. Such process was not taken ahead in a pacific way, withdrew

and contradictions were evident. Many liberal Portuguese’s had been imprisoned and

exiled. The proposal of this dissertation is to present the articles that had been published

regarding his works, relating them with his novels: Viagens na minha terra and O arco de

Sant’Ana. Seventeenth of these twenty years were of real politic instability and marked the

beginning of the constitutionalism in Portugal (1834-1851). The three remaining years

advance for the beginning of Regeneration until the end of D. Maria II reign (1851-1853)

culminating with the beginning of D. Fernando II regency (1853) and Garrett’s death (in

December 1854). In this period, Garrett published Viagens na minha terra (1843 – 1845 –

1846) and O arco de Sant’Ana (1845-1850), where he complexity discussed his political

ideas and raised the tendencies of the liberalism.

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SUMÁRIO

1 – Introdução 11

2 – O Processo Político: da Revolução de 1820 até a Regeneração 16

2.1 – Antecedentes 16

2.2 – O Liberalismo em Portugal 18

2.3 – O Anticlericalismo 28

2.4 – Jornalismo, Imprensa e Livros 30

3 – O arco de Sant’Ana 36

4 – Viagens na minha terra 54

5 – Conclusão 69

6 – Anexos 72

6.1 - Sobre O arco de Sant’Ana 72

6.1.1. - Jornal Diario de Governo — 19 de fevereiro de 1845 72

6.1.2 - Jornal A Revolução de Setembro — 24 de fevereiro de 1845 77

6.1.3. - Revista Universal Lisbonense — 3 de abril de 1845 81

6.1.4. - Jornal A Revolução de Setembro — 8 de abril de 1845 83

6.1.5. - Revista Universal Lisbonense — 3 de julho de 1845 87

6.1.6. – Revista Universal Lisbonense — 7 de novembro de 1850 99

6.1.7. - Jornal A Revolução de Setembro — 28 de fevereiro de 1851 100

6.1.8. - Revista Universal Lisbonense — 13 de março de 1851 108

6.1.9. - Jornal A Semana — Entre fevereiro e abril de 1851 117

6.2 - Sobre Viagens na minha terra 133

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6.2.1. - Revista Universal Lisbonense—17 de agosto de 1843 133

6.2.2. - Revista Universal Lisbonense—23 de novembro de 1843 134

6.2.3. - Revista Universal Lisbonense—7 de dezembro de 1843 134

6.2.4. - Revista Universal Lisbonense—26 de junho de 1845 136

6.2.5. - Revista Universal Lisbonense—11 de dezembro de 1845 137

7 - Referências Bibliográficas 141

7.1 - Livros 141

7.2. - Jornais e Revistas 144

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“(...) Assim o espírito de liberdade ora mais violento e geral, ora mais sossegado e parcial, mas sempre constante em movimento, luta contra a tirania, porque essa é a natureza sua, a do homem, e da sociedade para qual criou Deus o homem.”

(Garrett, Portugal na Balança da Europa – prólogo)

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1 – Introdução

O principal objetivo deste trabalho é apresentar a recepção dos romances O arco de

Sant’Anna e Viagens na minha terra de Almeida Garrett nas publicações periódicas

portuguesas da época. Relacionando-os ao panorama político de Portugal entre os anos de

1834-1854.

Na primeira metade do século XIX, o jornalismo ainda estava em desenvolvimento

em Portugal, e era importante construir uma “opinião pública”. Almeida Garrett esteve

sempre presente na defesa da liberdade e na afirmação do pensamento político cultural do

liberalismo português no século XIX. Assim, participou ativamente em várias publicações

jornalísticas, como também sofreu severas críticas de seus opositores.

Para verificarmos como ocorreu esse processo, selecionamos alguns periódicos que

julgamos serem importantes no que diz respeito ao período político estudado. Esta seleção

foi feita a partir de algumas referências que Gomes de Amorim, principal biógrafo de

Garrett, faz em Memórias biográficas. A sua obra nos auxiliou a encontrar os artigos

necessários para a realização deste trabalho.

Selecionamos a Revista Universal Lisbonense, que além ter publicado os capítulos

de Viagens na minha terra em primeira mão, publicou também uma quantidade

considerável de artigos a respeito da obra de Almeida Garrett. A Revista foi fundada em

outubro de 1841 e durou até meados de 1859. De agosto de 1853 até abril de 1857, teve a

sua publicação interrompida. Entre os anos de sua existência foi dirigida por vários homens

de proeminência. Entre os anos de 1842 e 1845, foi dirigida por António Feliciano de

Castilho. Entre os anos de 1845 e 1847 foi dirigida por José Maria da Silva Leal, e a partir

de meados de 1847 foi dirigida por Sebastião José Ribeiro de Sá. A Revista não era

ilustrada, tinha matérias de cunho científico, agrícola e comercial, sobre a atualidade,

notícias internacionais e da sociedade portuguesa. Neste periódico selecionamos dez artigos

em defesa de Viagens na minha terra e d’O arco de Sant’Anna. Cinco artigos estão sem

assinatura ou simplesmente assinados pela redação; dois artigos estão assinados pelo 1º

visconde de Azevedo (Francisco Lopes de Azevedo Velho da Fonseca); um artigo que,

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apesar de não estar assinado, a professora Ofélia Paiva Monteiro diz ser provavelmente de

António Feliciano de Castilho; e outros dois artigos, também sem assinatura, com indicação

de ter sido escrito pelo próprio Almeida Garrett (afirmações de Gomes de Amorim e Ofélia

Paiva Monteiro.

Foi selecionado também o jornal A Revolução de Setembro, periódico setembrista,

um dos jornais mais perseguidos pela ditadura de Costa Cabral. A Revolução de Setembro

teve uma vida longa. Foi fundado em 1840, por José Estêvão, Manuel José Mendes Leite e

Joaquim da Fonseca Silva, e teve como diretor António Rodrigues de Sampaio. A partir de

1851 até ao seu fim, em 1892, aderiu à política da Regeneração. Neste periódico foram

selecionados três artigos, que possuem respectivamente a assinatura de Teixeira de

Vasconcelos, Oliveira Marreca e Lopes de Mendonça. Todos os artigos são em defesa d’O

arco de Sant’Anna.

Utilizamos também o jornal Diário do Governo, folha oficial do governo português,

que teve em toda a sua história mudanças de nome e também vários redatores. Como era o

porta voz do governo, os redatores e a orientação política do jornal variavam conforme a

política do momento. Durante os anos de 1844 e 1845, o seu redator foi Carlos Bento da

Silva, conhecido cabralista. Neste periódico foi selecionado um artigo que não está

assinado, porém, Gomes de Amorim afirma ser da pena de Carlos Bento da Silva. Este

artigo faz uma séria crítica ao romance O arco de Sant’Anna. O curioso é que anos mais

tarde, em 1850, assinará ao lado de Almeida Garrett o protesto contra a Lei das Rolhas.

E por último, o jornal A Semana, publicado entre os anos de 1850 até 1852, redigido

por João de Lemos, Silva Bruschy, Ayres Pinto de Sousa e Jacinto Heliodoro de Faria

Aguiar Loureiro. Nesse periódico sai um extenso artigo, entre os meses de fevereiro e abril

de 1851, assinado por Latino Coelho, autor da primeira biografia de Almeida Garrett1.

Todos os jornais acima mencionados estão no acervo do Real Gabinete Português de

Leitura.

Os demais jornais citados neste trabalho, como O Católico e Revista Acadêmica,

por não ter sido encontrado nenhum exemplar, nas mais importantes bibliotecas cariocas de

estudos portugueses, foram citados a partir das obras utilizadas nesta dissertação.

1 A breve biografia escrita por Latino Coelho tem 1ª edição datada de 1855-6 (COELHO, 1855-6). É portanto anterior à celebre biografia de Gomes de Amorim, cujos três tomos saíram em 1880 (1º) e 1884 (2º e 3º tomos).

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O primeiro capítulo da dissertação vai traçar um panorama histórico de Portugal,

que compreende os anos da revolução de 1820 até a Regeneração. Este capítulo pretende

demonstrar o processo político e a construção das idéias liberais na sociedade portuguesa

do século XIX, articulando a esse processo a questão religiosa portuguesa, como também o

surgimento e estabelecimento da imprensa em Portugal.

O segundo capítulo trata do romance O arco de Sant’Ana. A edição utilizada é

edição crítica de Maria Helena Santana, de 2004. Esta edição faz parte da obra completa

coordenada por Ofélia Paiva Monteiro, publicada pela Imprensa Nacional-Casa da Moeda.

Nesta edição foram utilizadas as duas primeiras edições do romance, ambas publicadas em

vida do autor e por ele revistas, e também as versões manuscritas que as precederam. Este

capítulo demonstra como nasceu o romance, a princípio publicado sem indicação de autoria

e como foi sua aceitação na primeira hora nos meios literários portugueses. A partir de

artigos publicados nos jornais acima citados, verificou-se a recepção deste romance, e a

discussão que foi estabelecida em torno da obra. Ao mesmo tempo, o capítulo se propõe a

fazer uma análise do romance, destacando os aspectos políticos da obra.

O terceiro capítulo dedica-se ao romance Viagens na minha terra. A edição que

utilizamos foi organizada por Augusto Costa Dias. Não é uma edição critica. Ele somente

reproduz o texto exato da primeira edição, entretanto, enxerta o texto, utilizando um

exemplar de uso do próprio Garrett, onde existiam emendas feitas pelo autor.

Viagens foi publicado na Revista Universal Lisbonense em capítulos, tornando-se

posteriormente livro. Viagens, também como O arco de Sant’Ana, teve na sua origem

problemas com o governo de Costa Cabral. Viagens na minha terra é um relato da viagem

de Garrett a Santarém, para visitar o seu amigo Passos Manuel, opositor da ditadura de

Costa Cabral. Assim, a opinião publica vai atribuir a essa visita um aspecto político. O

objetivo do capítulo é mostrar a trajetória do romance, desde a sua primeira publicação em

capítulos, na Revista Universal Lisbonense, até a sua publicação em livro. Fazemos uma

análise de seus personagens, em conexão, com o mundo ali representado, destacando

também os aspectos políticos da obra.

Nesta dissertação foi elaborado um anexo, que traz, na íntegra, os artigos publicados

nos periódicos selecionados para estudo. Esses artigos foram transcritos sem qualquer

atualização ortográfica. Vale destacar que estes artigos, salvo engano nosso, são inéditos

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em livro, pouco conhecidos, e vez por outra apenas reproduzido em partes. compondo

assim, um farto material para futuros estudos.

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“(...) Que perspectivas para a raça humana! Que esperanças! Liberdade sem sangue, igualdade sem desavenças, religião sem fanatismo, monarquia sem despotismo, nobreza sem oligarquia, governo popular sem demagogos!”

(Garrett, Portugal na balança da Europa, seção primeira).

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2 – O Processo Político: da Revolução de 1820 até a

Regeneração

2.1 Antecedentes

Durante o período em que a Corte portuguesa esteve no Rio de Janeiro, Portugal foi

governado por uma junta presidida pelo marechal Beresford, que comandava o exército e

mantinha sob seu controle a nação portuguesa. A economia vivia um momento de profunda

crise. O comércio estava decadente, praticamente paralisado, não só pela ocupação francesa

como também pela abertura dos portos da colônia brasileira em 1808. Os comerciantes

portugueses estavam descontentes, pois haviam perdido o monopólio comercial, situação

agravada pelos Tratados, assinados com os ingleses. A agricultura estava desorganizada, as

cidades destruídas por causa das lutas com os franceses e as manufaturas portuguesas não

tinham condições de concorrer com as inglesas. Para muitos, tudo isso era resultante da

ausência da Família Real. Além disso, sabia-se que as lojas maçônicas, em Portugal,

divulgavam as idéias liberais, defendendo uma Constituição que limitaria o poder do

soberano, instituindo assim, uma Monarquia Constitucional.

Em 1814, com a derrota de Napoleão Bonaparte e o fim da guerra na Europa, o

retorno da Corte voltou a ser discutido em Portugal. Os portugueses sentiam-se

abandonados e queriam o seu monarca de volta. A queda de Napoleão tornou mais evidente

a decadência do reino português, que em nada fora beneficiado com a permanência da

Família Real na América.

Mas não era apenas Portugal que desejava mudanças. Em 1815, os vencedores de

Napoleão reuniram-se em um Congresso na cidade de Viena, com o objetivo de restaurar a

velha ordem transformada pela Revolução Francesa, evitar que as idéias liberais se

espalhassem e também reconduzir ao poder as antigas dinastias. Os participantes do

Congresso de Viena, tranqüilos por terem vencido os revolucionários, discutiam as

mudanças que deveriam ser feitas para anular as conseqüências produzidas pela Revolução

Francesa e pelo governo de Napoleão. A criação da Santa Aliança, uma associação formada

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pelos três reinos mais importantes presentes ao Congresso — Rússia, Áustria e Prússia —,

com poder de intervenção em nações onde movimentos liberais pudessem pôr em xeque os

governos absolutos, contribuía para ajudar a reconstruir a ordem conservadora européia.

Pelo princípio de legitimidade, defendido pelo príncipe Talleyrand, representante do

rei absolutista da França, Luís XVIII, no Congresso de Viena, os soberanos das antigas

dinastias que haviam sido depostos após a Revolução Francesa, principalmente no período

napoleônico, deveriam ser restaurados em seus tronos. Assim, Portugal deveria voltar a ser

governado pela dinastia de Bragança, representada pelo príncipe D. João. No entanto, D.

João, conhecido na Europa como o rei do Brasil, acostumara-se à idéia de permanecer no

Rio de Janeiro, concretizando o tão sonhado Império luso-americano. A solução

encontrada, atribuída ao próprio Talleyrand, e proposta ao representante português, conde

de Palmela, foi à elevação do Brasil a Reino Unido a Portugal e Algarves. Esta medida,

além de salvaguardar a presença da Europa e da realeza na América, também agradaria aos

súditos do Brasil, pois destruiria a idéia de colônia que tanto lhes desagradava, além de

afastá-los da idéia de Independência e de República. Ciro Flamarion Cardoso, nos fala a

respeito:

(...) E em 16 de dezembro de 1815, o Brasil passou à categoria de Reino Unido ao de Portugal e Algarve. Assim, a ex-capital colonial tornara-se sede de ministérios, secretarias, tribunais, repartições públicas, de um Conselho de Estado, outro de Fazenda etc. E foi no Rio de Janeiro que, morta a rainha, o até então príncipe regente foi aclamado, em 1818, como rei João VI. (CARDOSO, 1995, p.105).

A elevação do Brasil a Reino Unido colocava-o em condições de igualdade ou até

em situação superior a Portugal, visto que a Corte permanecia no Rio de Janeiro.

No entanto, a partir de 1820, a Europa foi sacudida por uma onda de movimentos de

contestação, de inspiração liberal, em reação às medidas restauradoras do Congresso de

Viena. Esses movimentos combatiam o absolutismo de direito divino dos reis, mas

admitiam a Monarquia desde que os poderes dos soberanos ficassem limitados por uma

Constituição e fossem respeitadas as liberdades individuais. Cito, a este respeito, Vargues

& Ribeiro:

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A herança cultural e filosófica do iluminismo transmitiu-se aos movimentos revolucionários dos séculos XVIII e XIX, contribuindo para consolidar a transformação social, em curso na Europa desde o século XVI. A partir de então, a desagregação do mundo medieval, onde dominara o religioso, é uma realidade, com a autonomização do político e do económico. O homem tornou-se o centro das preocupações e as novas concepções de Poder e da ordem são determinadas pela ciência, pelo progresso e pela riqueza. Esse amplo movimento social de transformação é acompanhado e definido pela emergência de uma ideologia – o liberalismo.

O liberalismo define-se como a expressão ideológica da génese e afirmação da sociedade que surge em conseqüência da desagregação da sociedade medieval e que determina na consciência política europeia a passagem do movimento das luzes ao movimento dos povos. (VARGUES & RIBEIRO, 1998, p.183).

Os movimentos revolucionários, a partir de 1820, ocorreram porque os sistemas

políticos novamente impostos à Europa eram profundamente inadequados. Num período de

rápida mudança social, os descontentamentos econômicos e sociais foram tão graves que

criaram uma série de manifestações inevitáveis.

2.2. O Liberalismo em Portugal

Os portugueses influenciados pelas idéias difundidas pelas lojas maçônicas, pelos

liberais emigrados, principalmente em Londres, criticavam e questionavam a permanência

da Corte no Rio de Janeiro. O momento era favorável à eclosão de um movimento liberal.

O liberalismo surgiu em Portugal na primeira metade do século XIX como uma ideologia política dominante legitimadora da nova ordem social preconizada por uma geração que se formou política e culturalmente na absorção dos ideais múltiplos do movimento iluminista.

Os nossos liberais conheceram as teorizações de diversos autores sobre a reforma sociopolítica, o que lhes facilitou uma compreensão dos novos conteúdos da liberdade e dos direitos do homem e os conduziu a uma reflexão sobre a reforma da sociedade (...).(VARGUES & RIBEIRO, 1998, p.184).

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No dia 24 de agosto começou na cidade do Porto este movimento, que logo se

espalhou por outras cidades portuguesas. Aproveitando-se da ausência de Beresford, que

estava no Brasil, o Exército revoltou-se, alcançando em poucos dias a adesão de todo o

norte. Formou-se uma “Junta Provincial do Governo Supremo do Reino” sob a presidência

do brigadeiro António da Silveira. Os seus principais objetivos se resumiam em tomar

conta da Regência e convocar as Cortes com o fim de elaborar uma Constituição. E essa

foi a tarefa fundamental das Cortes Constituintes de 1821 e 1822.

A Revolução do Porto exigia o retorno da Corte (visto como forma de “restaurar” a

dignidade metropolitana), o estabelecimento, em Portugal, de uma Monarquia

Constitucional e a restauração da exclusividade de comércio com o Brasil. Assim, D. João

VI, em fevereiro de 1821, jurava no Brasil a nova ordem constitucional. Contra a sua

vontade, decidiu, por fim, o regresso à metrópole. Oliveira Marques, assim se expressa:

D. João VI chegou à Lisboa em julho de 1821, depois de ter jurado as bases da futura Constituição. Muitos liberais olharam-se com desconfiança, vendo nele o dirigente natural de uma corrente de opinião conservadora e anticonstitucional. Todavia, D. João VI não traiu o seu juramento desde logo, aceitando com certa boa vontade tudo aquilo que as Cortes e os governos lhe foram impondo. É verdade que escolheu sobretudo ministros conservadores mas, no conjunto e durante dois anos, comportou-se bem para um primeiro monarca constitucional. Os dirigentes do movimento absolutista achavam-se antes na rainha Carlota Joaquina e no seu filho, o infante D. Miguel. (MARQUES, 1986, p.6-7).

A independência do Brasil aplicou um golpe mortal na situação precária das fontes

de receita portuguesas. Desapareceram os sonhos burgueses de recuperar a colônia perdida.

A independência deu aos liberais uma grande impopularidade. Assim, os adversários

culparam as Cortes por não terem conseguido trazer de novo o Brasil à condição de colônia.

Muitas das inovações do parlamentarismo não agradavam aos partidários do absolutismo.

Assim, o partido liberal se viu isolado no poder.

Em maio de 1823 os partidários do absolutismo pegam em armas em Vila Franca de

Xira. Começa a derrocada da primeira experiência liberal em Portugal. D. Miguel, filho

mais novo de D. João, se apresenta como cabeça do movimento anticonstitucional

conhecido como Vilafrancada. O infante obedecia a um plano conspirador, para destronar o

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rei, de quem se dizia que era influenciado pelos liberais. Entretanto, D. João VI rejeita a

idéia de voltar ao passado, promete uma Constituição modificada, nomeia outro executivo,

decreta a dissolução das Cortes e atribui o comando do exército a D. Miguel. Nesse período

as sociedades secretas são dissolvidas e muitos liberais caminham para o exílio. Entre estes

se encontra Almeida Garrett, que vai exilar-se na Inglaterra, onde entra em contato com a

literatura romântica de Byron e Walter Scott. Essa experiência é registrada por Garrett em

um diário que posteriormente será transcrito por Gomes de Amorim, em Memórias

biográficas:

Meu pae, minha mãe! Vós estaes tão longe: e nem o adeus da despedida, nem uma benção que me acompanhe no desterro e seja sobre a minha cabeça escudo de providencia aos azares que me aguardam por essas terras estranhas, onde me leva meu destino! Irei sozinho... só.... tão só como a andorinha que se perdeu do bando das companheiras quando atravessavam o oceano na quadra de suas emigrações! Nem um amigo para fallarmos em nossos passados gostos , para desabafarmos as maguas presentes! — Tudo ahi fica n’esse paiz de escravos e miséria! Amigos, companheiros.... esposa. E a minha esposa, a amada do meu coração, o único arrimo da minha alma desvalida! (...) (Apud AMORIM, 1881, tomo I, p.286).

A 30 de abril de 1824, menos de um ano após a Vilafrancada, D. Miguel revolta-se

mais uma vez, fazendo reunir as tropas de Lisboa, no Rossio. Na proclamação, que então

foi lida às tropas, referiam-se tentativas de assassínio da Família Real por parte dos liberais

e a necessidade de os destruir para conseguir a pacificação do reino. Com dificuldade, D.

João VI consegue retomar o controle da situação, exonerando D. Miguel do cargo de

comandante chefe do Exército e afastando-o para o exílio em Viena, para onde partiu a 13

de maio de 1824. Este movimento anticonstitucional ficou conhecido como Abrilada.

Em março de 1826, poucos dias antes morrer, D. João VI prepara o seu testamento

político. Ele nomeia para uma eventual Regência a infanta D. Isabel Maria. A decisão

visava impedir a subida ao trono de D. Carlota Joaquina.

O filho primogênito, D. Pedro, era o imperador do Brasil e herdeiro do trono

português. Ele é aclamado em Portugal como D. Pedro IV, logo após a morte de seu pai.

Entretanto, abdica à coroa em favor de sua filha Maria da Glória — uma menina de sete

anos — , sob a condição desta jurar a Carta e se casar com seu tio D. Miguel. D. Pedro

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colocou em marcha o regime constitucional, outorgando ao país uma Carta, que mantinha a

autoridade da monarquia. Nessa época temos o retorno de vários liberais que estavam no

exílio desde 1823. Após a outorga da Carta Constitucional, Garrett regressa a Portugal,

onde terá uma intensa atividade jornalística. É neste período que participa da redação de O

Português (que o levará à prisão no Limoeiro) e assume quase inteiramente a redação do

semanário O cronista.

D. Miguel regressa a Portugal, entrando em Lisboa a 22 de Fevereiro de 1828. Cumpria as determinações que a seu respeito o irmão, D. Pedro planeara – um governo de regência, substituindo o da infanta D. Isabel, e a efectivação do projeto de casamento com a sobrinha, a futura D. Maria II. A 26 de Fevereiro, o infante D. Miguel jura a Carta no Palácio da Ajuda, assume a regência e nomeia um executivo (...).Mas, a partir de Março, os actos do seu governo, contrariando as anteriores resoluções, vão imprimir uma nova mudança ao processo político em Portugal, porquanto a sua conseqüência principal foi o regresso a uma concepção e prática do poder absoluto. (VARGUES & TORGAL, 1998, p.64-65).

A reação contra D. Miguel inicia-se simultaneamente aos seus primeiros atos

políticos absolutistas. Os liberais iniciam, entre março de 1828 a agosto de 1831, uma série

de movimentos de revolta contra D. Miguel, e, no exílio, várias publicações são lançadas

com o intuito de levar adiante a tese de usurpação do poder praticada por D. Miguel.

Ocorrem também, dentro de Portugal, uma série de rebeliões, que, embora frustradas, são

um importante sinal da fragilidade política do governo miguelista. Entretanto, essas

rebeliões não serão ignoradas. D. Miguel estava rodeado de um aparelho de repressão

muito forte, levando um número grande de liberais à prisão, à condenação à morte por

fuzilamento ou enforcamento. O caminho que se abriu mais uma vez a tantos liberais foi o

desterro (imposto ou opcional). Aqui, em 1828, se inicia o segundo exílio de Garrett, que só

terminará em 1832. De novo na Inglaterra participa do jornalismo da emigração.

O grande número de exilados, tanto na Inglaterra como na França, fez surgir nesses

países um grande número de colaborações de portugueses em jornais, de que alguns

chegaram a ser os próprios redatores. É claro que a principal motivação desses exilados era

a do restabelecimento da liberdade em Portugal. Contudo, este grupo de exilados não tinha

uma posição única a respeito do destino de Portugal. Na última fase da luta política são

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visíveis as cisões entre os exilados. De um lado estavam os que tinham em Palmela o chefe,

que defendia uma orientação moderada, anglófila. De outro estavam os seguidores de

Saldanha, era um grupo mais radical, francófilo.

Almeida Garrett, que até este instante mantivera uma posição eqüidistante, escreve

uma série de cartas, com o pseudônimo de Mutius Scevola. Irritado com os abusos que

vinham acontecendo, assim se expressa:

Viemos cobertos de lagrimas, muitos de sangue, todos de oppobrio, viemos padecer e gemer na terra estrangeira; e nem a terra estrangeira nos pôde ser refugio contra a dominação odiosa da aristocracia, por quem perdemos a pátria. Sêcca de olhos, e sã de corpo, sem vergonha de suas infâmias, nem remorso de seus crimes, atraz de nós veio a toda a presa, para que lhe não escapasse uma hora de opressão, para que nem nas misérias do desterro, aos fadados portugueses coubesse um dia de liberdade. Por artes, por astúcia, por manha, por seducções dos incautos, por compra dos objectos e venaes, eil-a que se instaura na dominação — e nos domina, maltrata, e insulta, e corrompe como d’antes: e nós a sofrer. Que mais ou que menos do que isto nos tem feito os Palmellas, os Guerreiros, os Cândidos, os Balbinos, os Franciscos d’Almeida, os Carvalhos, os Magalhães? Esta liga de aristocracia e parasitas, de privilegiados, foi, é, e será a nossa perdição e ruína, se enfim não acordamos para nos libertar-mos, e os punirmos. (Apud AMORIM, 1881, tomo I, p.513-514).

Apesar das diferenças encontradas entre as duas facções de liberais exilados, foi

possível uma aproximação entre moderados e radicais face à violência e à repressão

miguelista e aos infortúnios do exílio.

D. Pedro abdicou da coroa brasileira a 7 de abril de 1831, em favor de seu filho de 5

anos. E no mesmo ano chega à Europa para lutar contra D. Miguel em nome da Carta e dos

direitos de sua filha D. Maria. A seu lado, os exilados, apesar das dissidências que os

opunham, empregam grandes esforços para repor em Portugal a ordem política liberal. Na

ilha Terceira é criado um foco liberal, com a formação do governo da regência. Assim, em

junho de 1832, parte uma expedição chefiada por D. Pedro com o intuito de restabelecer a

liberdade em Portugal. Compunham a expedição uns 7500 homens, incluindo 800

mercenários franceses e ingleses. Em 9 de junho de 1832, o exército liberal entra no Porto

evacuando as tropas do Governo.

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Começara assim a guerra civil no Continente. Iria durar dois anos, causando apreciáveis estragos, mortes e feridos. Acabou de arruinar também a já de si desastrosa economia nacional, entregando liberais e absolutistas à mercê dos credores externos. Ingleses, franceses e vários outros tomaram o seu quinhão da riqueza pátria e impuseram ao País um controle maior do que nunca. Auxílio estrangeiro e interferência estrangeira directa nos assuntos internos de Portugal iriam caracterizar a conturbada história do constitucionalismo monárquico até a década de 1840. Representantes diplomáticos das potências européias actuaram muitas vezes como conselheiros do rei e dos governos. (MARQUES, 1986, p.13-14).

Garrett trouxe esta guerra civil para o miolo de Viagens na minha terra,

inicialmente publicado em 1843, de agosto a dezembro, na Revista Universal Lisbonense

— dirigida então por António Feliciano de Castilho — e depois, entre junho de 1845 e

novembro de 1846, na mesma revista, agora sob a responsabilidade de Silva Leal, onde

saíram todos os capítulos, incluindo os seis já anteriormente publicados. No ano de 1846, é

publicada a 1ª edição em livro, em dois tomos. Nesta ficção-narrativa, o herói Carlos,

depois de deixar a casa paterna e o país, retorna ao continente para lutar ao lado dos

liberais.

Em 26 de maio de 1834 foi assinado na localidade de Évora Monte a proposta de

um armistício e rendição. As forças de D. Miguel tinham se reduzido incondicionalmente, e

poucos homens ainda permaneciam-lhe fiéis. Foi assinada uma verdadeira rendição, porque

D. Pedro tivera para com o adversário uma clemência inadmissível, no entendimento de

alguns liberais. A D. Miguel foi atribuído o pagamento de uma pensão anual no valor de 60

contos de réis e garantia de posse de bens próprios. Mas teria de embarcar para o

estrangeiro, com a proibição expressa de retornar a Portugal ou algum de seus domínios.

Em 15 de agosto de 1834, temos a primeira sessão Parlamentar, com a discussão de

proposta do Ministro do Reino para que D. Pedro conservasse a Regência até a maioridade

da rainha. Entretanto, essa Regência duraria pouco. Em 24 de setembro de 1834, morre D.

Pedro aos 36 anos.

Então, D. Maria II faz juramento solene à Carta Constitucional, depois de ter sido

declarada a sua maioridade. Esta nomeou logo um governo moderado, presidido pelo duque

de Palmela, dando início ao regime parlamentar em Portugal. Os anos que se seguirão, até a

Regeneração, serão atribulados. António Martins da Silva destaca este aspecto:

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Não foi fácil a vida dos primeiros governos após a restauração liberal. Agitação social, tumultos, mortes e assaltos fizeram-se sentir com alguma freqüência na capital e noutros locais; conflitos partidários, dentro e fora do Parlamento, tornavam mais precária qualquer hipótese de estabilidade governativa. Entre Maio de 1834 e finais de 1835 houve cinco governos, para além de algumas substituições pontuais; todos se identificavam com a facção liberal mais conservadora, à excepção do último, que era nitidamente de esquerda. (SILVA, 1998, p.83).

Portugal estava passando por uma profunda crise social e econômica, provenientes

de múltiplos fatores: a carestia da vida, o atraso e a falta de pagamentos dos salários dos

funcionários públicos, das pensões, a venda dos bens nacionais. Tal situação desencadeava

um mal-estar crescente, acirrava os ódios na imprensa. Eram necessárias, enfim, várias

mudanças.

Tentando reverter a situação, a Rainha convoca as cortes extraordinárias. Busca um

entendimento através do sufrágio, dissolvendo o Parlamento e marcando eleições para 15

de agosto de 1836. De um modo geral, as eleições favoreciam o partido do Governo, mas a

oposição conseguiu eleger alguns deputados. Em 9 de setembro, os deputados

oposicionistas são entusiasticamente recebidos em Lisboa. Não conseguindo controlar a

revolta, o governo conservador do duque da Terceira apresenta a demissão à rainha, que

nomeou um ministério favorável aos revoltosos e foi obrigada a aceitar a lei orgânica

vintista, que vigorou até que as futuras Cortes Constituintes aprovassem um novo texto

constitucional. Esse evento ficou conhecido como a “Revolução de Setembro”.

O primeiro governo saído desses acontecimentos foi constituído por membros da ala

radical do liberalismo, todos de oposição à Carta Constitucional de 1826.

Entre as primeiras medidas da nova administração contam-se o restabelecimento da Constituição de 1822, a obrigatoriedade para todos os funcionários públicos de jurarem o texto vintista, a clemência para os cartistas e adversários do novo regime, a redução das despesas públicas e a moralização da vida administrativa (com a diminuição dos encargos com pessoal e a supressão de empregos não indispensáveis, com a prestação de serviço a tempo inteiro por parte dos funcionários e a imposição de limites severos às acumulações de empregos). (SILVA, 1998, p.86-87).

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O principal personagem deste governo foi, sem dúvida, Passos Manuel, defensor do

patrimônio cultural, contribuindo para o desenvolvimento e preservação da cultura

portuguesa.

Todavia as coisas não foram nada fáceis para o primeiro governo setembrista. Menos de dois meses depois de tomar posse, Passos Manuel foi chamado à Belém por D. Maria II, que demitiu o Governo (3 de Novembro) e o substituiu por outro de feição contrária. A esta iniciativa da rainha não eram alheias a colaboração mais ou menos discreta do príncipe D. Fernando e a ingerência do rei Leopoldo I da Bélgica, seu tio, bem como eventuais apoios diplomáticos da Inglaterra e da França. Contudo, Passos Manuel recuperaria de novo o Poder: valeu-lhe a actuação pronta de Sá Bandeira e os apoios popular e da Guarda Nacional, que fizeram abortar aquele golpe de estado palaciano, conhecido por “Belenzada” (SILVA, 1998, p.87).

Apesar de todos os esforços, as autoridades não conseguiram pôr fim à crescente

agitação. Então, a 4 de abril de 1838, jurou-se a Constituição que ao longo de um ano fora

elaborada pelas Cortes Constituintes. Essa nova lei representava um compromisso entre a

Constituição de 1822 e a Carta de 1826. Todos estavam ansiosos pela tranqüilidade pública,

desejavam o entendimento entre as duas facções liberais. No entanto, o que ocorreu foi que

a nova Constituição não agradou nem aos setembristas mais fervorosos nem aos cartistas

mais ortodoxos, o que, de uma certa forma, acabou gerando mais um motivo de discórdia.

Defendia a nova ordem estabelecida um grupo de moderados, chamados de “ordeiros”, que

se estabelecia entre os dois grupos que disputavam o poder.

De 1838 até 1842 as facções existentes disputaram o governo, se alternando no

Poder. No entanto, em 27 de janeiro de 1842, um movimento chefiado por Costa Cabral

proclamou no Porto a Carta de 1826. Nos dias seguintes outras partes do país manifestaram

a sua adesão e, no dia 10 de fevereiro, um decreto declarou o texto constitucional de 1826

em vigor. Em 24 de fevereiro, Costa Cabral tomou posse como ministro do Reino. Ficou à

frente de um governo de direita que durou mais de quatro anos (primeiro período do

cabralismo).

Para os cartistas, o ano de 1842 seria o início de um período de conciliação, de

ordem e progresso. Entretanto, para os setembristas, miguelistas e cartistas dissidentes é o

início de um período que ficou marcado pela hostilidade.

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O Cabralismo adotou a bandeira da ordem e do desenvolvimento econômico,

consolidou o Estado Liberal, assente numa forte centralização e complexa burocracia.

Desenvolveu a rede viária. Criaram-se sociedades capitalistas privadas e alargaram-se as

relações econômicas externas.

O Cabralismo veio a ser imposto pelo dinamismo das novas forças que se

engrandecem. Eram os barões, descontentes com os ideologismos setembristas e desejosos

de uma adequada representação institucional. Costa Cabral satisfaz as reivindicações desse

grupo: dá-lhes uma Câmara dos Pares, vitalício e hereditário; um código administrativo

com 400 administradores de conselho, 4000 regedores e cerca de 3000 cabos de polícia,

todo um clientelismo estatizante.

Seguiu-se um novo período de guerra civil, a partir de março de 1846, quando, de

armas na mão, surgiu nova ampla coalizão, com setembristas e miguelistas. Setembristas

moderados (que exigiam a reforma da Carta já tão adulterada em seus princípios pelo

Cabralismo), setembristas radicais (que desejavam a reinstauração da Constituição de

1838), cartistas dissidentes (que reconheciam a necessidade de reformas constitucionais) e

os próprios miguelistas uniram forças, forjando assim forte oposição ao ministério de Costa

Cabral.

Um dos principais movimentos revolucionários deste período foi a revolta popular

da Maria da Fonte. Assim se chamou à revolução que eclodiu no Minho, em maio de 1846

contra o governo de Costa Cabral. A causa imediata da revolta foi a proibição de

sepultamentos dentro das igrejas, limitando-os aos cemitérios.

A Revolução da Maria da Fonte – também chamada Patuleia na sua segunda fase, de “pata ao léu”, o que revela o seu carácter popular – teve características muito complexas. Conjugou diversas forças contraditórias, que incluíam antigos absolutistas e partidários de D. Miguel, radicais esquerdistas, moderados, e até cartistas da Direita revoltados contra a violência dos métodos cabralistas e a corrupção infrene do regime. Teve consigo generais, aristocratas, clérigos, burgueses, proletários e trabalhadores rurais. E revestiu-se de aspectos muito interessantes de organização popular revolucionária (que esperam o seu historiador), na forma de Juntas locais que detiveram o Poder por algum tempo à escala regional, recusando-se a obedecer ao governo central, fosse ele o da rainha, fosse ele o da Revolução.

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A primeira fase da Maria da Fonte durou apenas um mês (Abril-Maio de 1846) e encerrou-se com a saída de Costa Cabral do Governo. (MARQUES, 1986, p.24-25).

A rainha D. Maria II, assustada com esta insurreição verdadeiramente popular, viu-

se obrigada a demitir o ministério cabralista, o que levou ao exílio Costa Cabral. Triunfara

a oposição cabralista e o ministério formado em maio de 1846 tendo à frente o duque de

Palmela que pretendia governar de forma mais progressista.

Em 5 de outubro de 1846, entretanto, ocorre um golpe palaciano, conhecido como a

“Emboscada”, organizado por Costa Cabral, mas posto em prática por Saldanha com o total

apoio de D. Maria II, e que provocou a demissão do governo de Palmela e à constituição de

um novo ministério cabralista.

Após essa remodelação ministerial, a oposição tomou medidas imediatas. Assim, a

Guerra Civil continua com a Patuleia. Começa, então, em meados de 1847, a segunda fase

das sublevações começadas com a Maria da Fonte. Este prolongamento da Guerra Civil

leva o governo a negociar com a Espanha, França e Inglaterra uma intervenção militar que

levasse a guerra ao fim.

No correr do ano de 1848, as desavenças continuam. O banditismo aumenta,

provocado pelo desemprego, crescem as guerrilhas que provocam a perturbação da ordem

pública. Assim, nos meses de março, abril e maio, aumentam os focos insurrecionais, tanto

em Lisboa como em outras localidades. Com o desenrolar dos acontecimentos, a crise

ministerial aumenta. Eram exigidas medidas severas e repressão violenta. Costa Cabral

reassume a chefia do executivo governamental em junho de 1849, apoiado por Saldanha.

As divergências mantiveram-se e será o próprio marechal Saldanha que, em abril de 1851,

dirigirá, do Porto, um golpe militar que afastará Costa Cabral do poder. É o fim do período

cabralista. Cito, a este respeito, Maria Manuela Tavares Ribeiro:

O processo político português, que até meados de Oitocentos viveu um percurso de intermitentes oscilações e de tensos conflitos sociais, experimenta, a partir de 1851, alguma estabilidade, com a aplicação e prática de regras de acção política. O equilíbrio do sistema consolidar-se-á, porém, mediante o funcionamento regular das instituições. Foi um longo e espinhoso esse trajecto... (RIBEIRO, 1998, p.102).

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2.3. O Anticlericalismo

O século XIX foi profundamente complexo e rico em transformações históricas. Os

desdobramentos da Revolução Francesa e da Revolução Industrial ressoaram em várias

regiões do mundo, produzindo ações e reações. Mudanças profundas ocorreram na

sociedade européia, um processo crescente de industrialização e descobertas cientificas e

tecnológicas.

Em Portugal, vários setores da sociedade sofreram mudanças ao longo do século

XIX. A partir do triunfo da Revolução Liberal de 1820, percebem-se alterações

comportamentais dos diversos grupos sociais existentes.

A Revolução de 1820 precipitou o processo que pôs fim à sociedade do Antigo Regime, estruturada numa base funcional, em ordens ou estados, e onde cada categoria social tinha um lugar, um estatuto e uma função bem definidos. Rompendo-se com os privilégios e os particularismos em que se apoiava a monarquia de direito divino, os liberais pretenderam criar uma nação de cidadãos, com os mesmos direitos e deveres, tratados de modo idêntico pelo poder político, num contexto de igualdade perante a lei. (VAQUINHAS & CASCÃO, 1998, p.381).

Criar uma nação moderna e civilizada era o objetivo prioritário. Porém, a

instabilidade política da primeira metade do século XIX impossibilitou o cumprimento

deste objetivo em vários setores.

Para produzir mudanças na sociedade e construir uma nova “opinião pública” e uma

nova idéia de cidadania e nação, era de extrema importância reformular a mentalidade de

uma boa parcela da população, que era na sua maioria analfabeta e católica. Para tanto,

seria necessário secularizar a cultura e diminuir o prestígio da Igreja.

A nova geração de intelectuais portugueses do início do século XIX tem como

missão diminuir a influência da Igreja, secularizando a sociedade e a cultura. A partir da

Revolução de 1820, os líderes liberais procuraram reduzir ao máximo a influência clerical

nas comunidades. É claro, que alguns bispos concordaram com o novo regime, auxiliando

no processo de divulgação dos ideais liberais. Entretanto, o cardeal-patriarca, D. Carlos da

Cunha, nega-se a jurar a Constituição. Nesse momento, a discussão sobre o papel da Igreja

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passa para primeiro plano, e começa um processo de reformas que pretende secularizar a

sociedade e as instituições. Cito, a este respeito, Vítor Neto:

O advento da contra-revolução, em 1823 (Vila-Francada), impediu a concretização das decisões tomadas, neste plano, da realidade, pelos vintistas, e a formação posterior de governos moderados (1824 a 1826) trouxe um novo alento à Igreja, o que permitiu a reconciliação entre os poderes temporal e espiritual. Com a outorga da Carta Constitucional (1826), o episcopado submeteu-se à ordem política, enquanto o baixo clero se envolveu de forma crescente na luta antiliberal. Nesse período, a classe paroquial recorria ao púlpito e utilizava os lugares públicos na divulgação das idéias contra-revolucionárias. Com o restabelecimento do absolutismo, em 1828, as forças reaccionárias tiveram acesso ao Poder e até 1832 desencadearam uma forte repressão sobre os liberais. Depois de algumas hesitações, a Cúria romana apoiou o miguelismo e apressou-se a reconhecer os bispos apresentados pelo monarca absoluto à Santa Sé. A esmagadora maioria do clero regular e uma grande parte dos sacerdotes optaram pela militância nas hostes miguelista, e envolveram-se directamente na batalha pela manutenção das estruturas sociopolíticas absolutistas.(NETO, 1998, p.228).

A partir de 1834, começa uma nova fase nas relações do Estado com a Igreja. O

novo governo procura diminuir o poder eclesiástico junto à sociedade, e dentro do possível,

reduzir a influência que o clero miguelista tinha sobre a população. Desse modo, os

padroados eclesiásticos foram extintos, a admissão a ordens sacras foi proibida e o Tribunal

da Legacia extinto. A partir de 30 de maio de 1834 deixam de existir as ordens religiosas

masculinas e conseqüentemente são nacionalizados os seus bens. Com este ato, o governo

liberal diminui o poder econômico e o prestígio político da Igreja, aumentando a sua

dependência para com o Estado.

Com a Revolução de Setembro, a posposta dos liberais para os assuntos

eclesiásticos sofre uma radicalização — ocorreu a substituição de vários párocos

miguelistas por eclesiásticos de confiança do governo.

(....) Até à restauração da Carta Constitucional, em 1842, a elite governativa assumiu uma maior firmeza no combate no combate ao “partido miguelista”, ao afastar os adversários do regime das suas facções religiosas. Entre liberais moderados (cartistas) e radicais (setembristas) não se detectam

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grandes divergências acerca dos diferentes aspectos que a “questão religiosa” comportava. Na realidade, as duas alas do liberalismo concebiam as relações entre o Estado e a Igreja à luz das teses regalistas e coincidiam na apologia que faziam de uma religião oficial e de um sistema político concordatário. Tanto uns como outros atribuíam uma dimensão externa ao regalismo, o qual, entendido nesta perspectiva, caucionava os “direitos do Estado português” em relação às ambições hegemônicas e teocráticas do internacionalismo romano. (NETO, 1998, p.231).

O anticlericalismo liberal vai expressar uma opinião desfavorável em relação ao

papel que a Igreja exerce na sociedade, colocando-a, em alguns momentos, como principal

causadora da decadência portuguesa e também como sendo contrária aos verdadeiros

ensinamentos de Jesus Cristo. Muitos liberais, entre eles Almeida Garrett, sonharam com

um catolicismo edificado nos moldes dos novos princípios liberais da sociedade moderna.

Esta geração sonhava com uma igreja nacional reformada, que pusesse em prática as idéias

liberais, principalmente os preceitos da fraternidade e igualdade.

Este sentimento anticlerical vai aparecer freqüentemente na literatura romântica,

como uma forma de criticar o papel do clero na sociedade liberal.

A esta luz, é explicável que os ataques à ignorância e aos costumes de algum clero fossem acompanhados, não raras vezes, pela contestação da sua função sagrada. Aquela atitude encontra-se expressa já nos primórdios da literatura romântica. Em O Arco de Sant’Anna (1845,1850), de Almeida Garrett, o herói (Vasco) é filho natural do bispo do Porto e, nas Viagens na Minha Terra (1843, 1845), Carlos, símbolo da nova ordem liberal e da passagem da fase revolucionária para a sua consolidação, é igualmente filho de um eclesiástico, bem como são freqüentes as denúncias da acção negativa dos frades. (CATROGA, 1998, p.501).

2.4 Jornalismo, Imprensa e Livros.

Outro fator importante a ser discutido para se entender o século XIX é o processo

que se dá a partir de 1820 em favor da liberdade de imprensa. A informação tem um papel

importante na sociedade do século XIX. Este novo hábito na vida do cidadão português

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contribui para a transformação da classe média. Criar uma sociedade moderna e civilizada

não seria possível sem o jornalismo.

A partir do século XIX surgiu toda uma série de publicações científicas, dicionários,

enciclopédias, revistas, almanaques e jornais, com o objetivo de difundir de forma mais

ampla o conhecimento.

Portugal no século XIX presenciou uma subida significativa no número de jornais e

revistas publicados. Este surto jornalístico estava ligado a uma prática política que tinha

como objetivo levar os ideais liberais aos cidadãos e, assim, formar o que então se chamava

de “opinião pública”. Esta prática jornalística não foi levada a cabo de modo

completamente pacífico nem muito menos sem evidentes contradições e recuos. Foram

muitos os liberais portugueses que foram presos e exilados em nome dessa causa.

(...) Depois da vitória liberal toda a gente se pôs a ler os jornais – o que contribuiu, mais que qualquer outra coisa, para a transformação dos costumes nacionais, ao nível da pequena burguesia, na qual, em virtude do povo raramente saber ler, se encontravam os leitores mais apaixonados, sobretudo em Lisboa e no Porto, centros nevrálgicos da Nação. (FRANÇA, 1999, p.166).

Após a vitória definitiva, e o fim da guerra civil (1834), pode-se dizer que estavam

criadas as condições necessárias para o desenvolvimento do jornalismo de opinião. O tema

principal continua a ser a liberdade. No entanto, se o surto jornalístico está ligado à política,

está também submetido à idéia da divulgação dos conhecimentos científicos e literários.

Estudando o surgimento dos periódicos em Portugal, percebe-se que os anos de agitação

revolucionária foram os mais produtivos. A criação de jornais sobe rapidamente até 1836,

decrescendo então no período que vai de 1840-45. Torna a subir em 1846, para voltar a cair

no fim do período cabralista com a célebre “Lei das Rolhas”.

Costa Cabral, compreendendo o poder que os periódicos exerciam nos cidadãos,

começa a perseguir jornais e seus colaboradores. O ápice da repressão ocorreu em 1850,

numa lei que levantou inúmeros protestos, e ficou conhecida como a “Lei das Rolhas”.

Alexandre Herculano e Almeida Garrett foram os primeiros a se manifestar, assinando um

documento, juntamente com Lopes de Mendonça, Fontes Pereira de Melo, Latino Coelho,

Oliveira Marreca, José Estêvão, Gomes de Amorim, Rebelo da Silva, Paulo Midósi, Bulhão

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Pato, Carlos Bento da Silva, Andrade Corvo, José Maria Grande e Xavier da Cunha (entre

outros), intitulado “Protesto contra a Proposta sobre a Liberdade de Imprensa”, que foi

publicado n’A Revolução de Setembro , no dia 21 de fevereiro de 1850, e termina assim:

Abstendo-se de discutir e propugnar os principios incontestaveis, offendidos nesse monstruoso projecto, os abaixo-assignados limitam-se a um protesto simples, mas, quanto nelles cabe, enérgico e solemne, contra todas as disposições do dito projecto de lei, em que são postergados os direitos e garantias inalienáveis da liberdade de pensamento, ficando assim seguros de que, se essa liberdade tem de parecer, ao menos os seus nomes não passarão deshonrados á posteridade com a mancha de covardia ou de connivencia em similhante attentado. (A REVOLUÇÃO DE SETEMBRO, 21/02/1850).

Esse surto jornalístico não estava somente ligado à difusão dos ideais liberais;

estava também relacionado a um tipo de jornalismo cultural. Os primeiros semanários

pitorescos aparecem neste período. Eles tinham como objetivo alargar o conhecimento do

mundo e levar diversão e instrução para um público que não tinha muito tempo para se

dedicar aos livros.

Ligada aos destinos duma civilização que, com as suas doenças infantis, assinalava uma crise de crescimento, a imprensa de opinião, de clamores românticos, deixava contudo um lugar para os jornais ou revistas culturais, na sua maior parte ilustrados. Os “semanários pitorescos” aparecem nessa altura, o primeiro dos quais desde o começo de 1835. Vistas de monumentos, de cidades sobretudo, mas também quadros célebres, alargam a informação: o conhecimento do mundo entrava nos costumes nacionais. (...) Do divertimento à instrução, tal era o principio desta imprensa que novas técnicas de reprodução permitiam animar. (FRANÇA, 1999, p.167).

Nesse período os homens de letras puderam exercer o seu papel de intelectuais na

crescente imprensa periódica. Os escritores de maior destaque conseguiam um grande

espaço nesse tipo de publicação. Garrett, em sua tarefa jornalística, percebeu o papel

importante que poderiam ter os periódicos, principalmente num período em que a

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informação era fundamental para formar a opinião pública. Deste modo, fundou jornais e

colaborou com vários deles.

Almeida Garrett participou de várias publicações, numa época em que o jornalismo

ainda estava em desenvolvimento em Portugal, sempre em defesa da liberdade e da

afirmação do pensamento político-cultural do liberalismo português no século XIX. Luís

Cabral, nos fala a respeito:

Garrett fundou jornais, colaborou diariamente num, escreveu outro integralmente. O “homem da pena de oiro” equivale ao tribuno pela clareza da expressão na sua mensagem. Na poesia, no romance, no teatro, na oratória parlamentar, na legislação, no gosto, no salão, no jornal Garrett desenvolveu uma forte ação cívica fundamental na defesa da liberdade. Como deixou escrito no O Portuguez Constitucional (2 de julho de 1836): “Queremos liberdade; este é o nosso partido. Mas queremo-la com leis, sem anarquia, sem imoralidade, com religião, com reformas, com economias, com todas as suas condições e em todas as suas conseqüências”. (CABRAL, 1999, p.20).

O que importa salientar é que, no decorrer de toda a sua vida, Garrett nunca deixou

de participar do jornalismo português, algumas vezes como fundador deste ou daquele

jornal ou revista de “instrução”, outras simplesmente como colaborador.

Esperava-se que o jornalismo tornasse possível a ampliação da instrução ao maior

número possível de leitores e assim exercesse a função civilizadora, imprescindível à

promoção social dos cidadãos e ao progresso do país. Para se construir uma sociedade

liberal e, conseqüentemente, a formação de uma opinião pública crítica era necessária a

liberdade de imprensa.

No século XIX, não será somente o jornal o único meio de difundir a chamada

“civilização”. Os livros também tiveram papel primordial nesta jornada. O livro, entretanto,

estava destinado a um público mais letrado. O jornal detinha vantagens com relação ao

livro. Primeiro, porque o jornal era mais barato, e segundo porque era mais atraente. O livro

por sua vez ficava encerrado num círculo de letrados e somente com muita dificuldade é

que chegava ao meio popular.

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As bibliotecas públicas eram poucas até o início do século XIX. Na cidade do Porto,

a primeira biblioteca pública foi fundada somente em 1833, por D. Pedro. O seu espólio foi

composto por algumas doações particulares e por acervo dos mosteiros extintos.

Além das bibliotecas públicas, existiam os gabinetes de leitura, que ofereciam dois

tipos de serviço para os leitores (espaço para leitura e aluguel de livros). Os gabinetes

foram espaços criados pelos livreiros, sendo o primeiro organizado, em 1801, em Lisboa,

por Maussé. A partir desta data, outros gabinetes de leitura foram organizados, não somente

pelas mãos de particulares, mas também por instituições culturais e profissionais.

A produção do livro e do periódico verifica-se, principalmente, nas cidades de

Lisboa, Coimbra e Porto, onde se encontravam as mais importantes impressoras e editoras

oficiais (Imprensa Régia; Imprensa da Academia das Ciências, em Lisboa, e a Imprensa da

Universidade de Coimbra). Conforme assinalam Torgal e Vargues:

(...) com o liberalismo assistimos a uma difusão muito grande da actividade impressora e editorial, que se vai espalhar por todo o País, sob forma variada. Neste sentido assumiram um papel importante algumas empresas livreiras — os livreiros franceses (os casos de Rey, Borel, Bertrand, Rolland ou Martin, em Lisboa, e Aillaud e Orcel, em Coimbra, Emercy, no Porto) tiveram, desde o princípio do século, e foram-no tendo cada vez mais, um papel siginificativo — ou então empresas de natureza cultural, como, apenas para citar um exemplo modelar, a Sociedade Propagadora dos Conhecimentos Úteis, criada em 1837, onde pontificou Herculano (...). (TORGAL & VARGUES, 1998, p.579).

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“Deixá-lo ir seu caminho, o senhor estudante: caminho que eu fiz tantas vezes, em muitos menos generosas cavalgaduras e em mais moderada andadura, quando, morto de saudades pelo meu pátrio Douro, ia choitando no proverbial macho de arrieiro para as doces margens do Mondego que tanto praguejava este ingrato coração, como se em toda a minha vida neste mundo eu houvesse nunca ter dias mais felizes do que tantos, tantos que ali passei na inocente e descuidada seguridade da vida de estudante.”

(Garrett, O arco de Sant’Ana – capítulo VII)

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3 - O Arco de Sant’Ana

O romance O arco de Sant’Ana começou a ser escrito em 1832, no Convento dos

Grilos (Porto), após Almeida Garrett ter desembarcado ao lado do exército liberal de D.

Pedro IV, vindo da ilha Terceira, nos Açores. Concluído em fins de 1844, somente será

publicado em 1845, pela Imprensa Nacional, sem indicação de autoria. O texto é

apresentado como sendo uma cópia de um manuscrito encontrado no Convento dos Grilos

por um soldado do Corpo Acadêmico, o “Nº 72”, sendo este o autor da carta direcionada ao

coronel Soares Luna, a quem o romance é dedicado. A primeira parte do romance engloba

os dezoito primeiros capítulos. Gomes de Amorim, em Memórias biográficas, retrata esse

período:

Começára no Porto o tomo I, em agosto de 1832, no convento dos Grillos, onde estivera aquartelado, continuou-o em agosto de 1841, e conclui-u no fim de 1844. De todas as suas obras, é talvez esta a que encerra maior numero de recordações da sua infancia, e de memorias interessantes para a sua biographia. O apparecimento d’esse volume suscitou varias discussões litterarias: uns o accusaram de combater as tendencias contrarias ao philosophismo encyclopedista, que tudo derrancou, ao passo que outros o defenderam com enthusiasmo. (AMORIM, 1881, tomo III, p.116-117).

Teófilo Braga, na “Elaboração d’O arco de Sant’Ana”, também faz referência ao

surgimento deste romance de Garrett:

Como nasceu a ideia d’O Arco de Sant’Ana? Garrett desembarcou no Porto em 1832 com a expedição do Exército libertador vinda da ilha Terceira; como soldado do Batalhão Académico foi aquartelar-se no abandonado Convento dos Grilos, no velho bairro da Sé do Porto. Aí, no pequeno remanso das horas de refrega, entre os colóquios descamerónicos de antigos companheiros de estudo, lembrou-se da tradição do Bispo, que exercia sobre a cidade os arbítrios do Poder Feudal, e quando o rei D. Pedro, o Justiceiro, impondo seu poder real, por sua mão castigou o Bispo, como conta pitorescamente o cronista Fernão Lopes. Garrett assistia nesse

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momento histórico à luta das hordas fradescas, alucinando pelas províncias o povo rude, para vir à matança dos liberais e dos pedreiros-livres. O rei D. Pedro surgia agora na figura de D. Pedro IV, como instrumento de uma transformação radical da sociedade. Garrett, na sua intuição suprema, viu esta relação do presente com o passado, e reuniu-os em um símbolo: a obra de arte, criada sobre a tradição da Idade Média portuense. (Apud GARRETT, 1963, p.211-212, vol. I).

O lançamento do primeiro volume provocou um enorme debate na imprensa

literária portuguesa da época. Não podemos esquecer que o primeiro volume d’O arco de

Sant’Ana é lançado durante a ditadura de Costa Cabral. E que a literatura serve a Garrett

como forma de combate contra a ditadura cabralista, às vezes em tom polêmico e irônico.

No dia 27 de janeiro de 1845, saiu no jornal Diario de Governo um anúncio,

saudando o novo romance histórico português: “Há damas, cavaleiros, frades, cônegos,

procissões, estudantes, e tudo quanto pode entrar num romance português da meia idade.”

(DIARIO DO GOVERNO, 27/01/1845, p.160). Entretanto, no dia 19 de fevereiro, sai a

primeira crítica ao romance, da pena de Carlos Bento da Silva, um conhecido cabralista que

mais tarde, conforme assinalamos, curiosamente, assinará o protesto contra a Lei das

Rolhas. Apesar do artigo não possuir assinatura, Teófilo Braga e Gomes de Amorim,

afirmam ser dele as palavras publicadas no Diario do Governo. Embora o autor inicie o

artigo afirmando que é “com grande prazer” que anuncia a publicação d’O arco de

Sant’Ana, começa logo a seguir uma extensa lista de pontos negativos do romance.

Ainda que o romance tenha sido publicado anonimamente, o redator acredita ser o

autor um homem experiente e bem conhecido do público, mesmo que se afirme que o

escrito tenha sido encontrado no Convento dos Grilos. É certo que ele não acredita nesta

versão, e supõe que tenha sido “copiado” por um contemporâneo que soube torná-lo

“palpitante de atualidade”. E destaca que o romance não parece ser obra de um autor

inexperiente, pelo contrário, parece pertencer a uma pena hábil.

A respeito da execução é facil de vêr que o escriptor não é por ahi homem que pela primeira vez corra os riscos de escrever. Está certo de si e da lingua. Redige como quem sabe perfeitamente compôr. Não ha inexperiencia no seu estylo, e se effectivamente o manuscripto foi achado no Convento dos Grillo, quem procurar bem ha de achar mais obras do mesmo

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auctor; por força. Talvez até discursos do parlamento e artigos dos jornaes. (DIARIO DO GOVERNO, 19/02/1845).

No mesmo artigo:

O auctor é anonymo. A quem quizesse reconcentrar a sua attenção, e reparar no estylo, porque o ha no livro de que tractamos, talvez lhe não fosse muito difficil pôr o dedo em que no livro poz a mão. Sejamos porém misteriosos, já que de misterio se quiz cercar o Romancista. Seja muito embora um manuscripto achado, ou feito achar, no convento dos Grillos na cidade do Porto. Baste-nos saber que foi recopilado por um contemporaneo que soube torna-lo palpitante de actualidade. (DIARIO DO GOVERNO, 19/02/1845).

Parece-nos que o critico sabia ou pelo menos tinha uma ligeira idéia de quem era o

autor do romance. Esta não é a única alusão que faz ao provável criador da obra. Ele utiliza

como exemplo de bela escrita e “singelesa das palavras” a peça Frei Luiz de Sousa, de

Almeida Garrett.

O autor do artigo destaca vários defeitos na obra, entretanto os seus argumentos

direcionam para a mesma questão, o fato de o romance ter sido escrito com o intuito de ser

político, ou seja, um “romance de oposição”, e acusa o autor do romance de utilizar a

literatura para fazer política. Assim, como se pode manter o interesse no romance,

argumenta, se a todo o momento são levantadas questões do mundo contemporâneo, se

constantemente se está falando de política como num jornal?

O Romance muitas vezes é elle tambem artigo de fundo quando se mette a fazer allusões. É romance da opposição. D Pedro o crú está a parecer-nos que no segundo volume pertencerá á Associação Eleitoral.(...).

O auctor é capaz de nos dizer, lá mesmo do tempo de D. Pedro o crú, que está no seu direito, e que póde muito bem escrever a historia no seculo XIV, e a ter a graça no seculo XIX. Acceitando a declaração, e não tractando do anachronismo, perguntaremos se é possivel conservar o interesse aos acontecimentos, quando as reflexões a cada passo nos distrahem das cousas de então para os homens de agora? Nesta obra ha tres entidades que marcham de frente, o romance, o artigo de fundo, e o folhetim. Falla-se por exemplo no Arco de Santa Anna, vem logo á baila o parlamento, e d’alli a pouco tracta-se da Polka. No segundo volume quando castiga o Bispo, apostamos que já se falla na Mazurka?

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Por isso é que vêmos roubar com toda a indifferença a Aninhas da rua do Arco. Como podemos atterrar-nos quando se aproximam os seus roubadores, se elles entram a fallar em politica como um Jornal de agora, só com a differença de ser com mais espirito. É preciso desenganarmo-nos? É livro ou é jornal? Queremos votar. Se são ambas as cousas votâmos contra. (DIARIO DO GOVERNO, 19/02/1845).

Bento da Silva continua a sua análise afirmando que autor do romance ri de todos,

pois é céptico, não crê em nada e não confia em ninguém. Automaticamente o leitor não

pode acreditar no que lê, pois a alma do livro está na crença de seu autor. E termina a

crítica “alertando” novamente para a identidade do autor:

Em elle querendo acha cousa melhor. Estejam certos disso; em o author o pretendendo, conta-nos cousas mais interessantes do que ter comido jantares feitos por Mr. Pigeon. (...). Tem muito talento, muito estylo, muita graça, muito gosto, o ponto está em querer. Nós temos a honra de ser dos seus maiores admiradores; mas quando lhe dá para dormir, não gostamos de o ouvir ressonar em politica. Assobia. Neste volume principalmente. (DIARIO DO GOVERNO, 19/02/1845).

Mesmo que O arco de Sant’Ana tenha sido publicado primeiramente de forma

anônima, não seria muito difícil identificar o autor da obra ou pelo menos suspeitar.

Almeida Garrett tinha uma produção literária extensa, participava de vários jornais,

escrevia discursos. Ou seja, mesmo o romance sendo anônimo, no meio literário não

deveria ser difícil identificar o autor.

É certo que todas essas críticas não passariam em branco. A seguir a este artigo, é

publicado em 24 de fevereiro, pelo jornal A Revolução de Setembro, conhecido jornal da

oposição, um texto assinado por Teixeira de Vasconcelos, em defesa d’O arco de Sant’Ana.

O artigo é muito irônico, e faz uma crítica direta ao que foi publicado no Diario do

Governo.

Ainda bem que resurgiu a critica litteraria! E ressurgiu, como devia, no Diario do Governo, que é folha official, e que tem por especial obrigação dar a toda a imprensa portuguesa o brioso exemplo do bom emprego do tempo e da sciencia. E mais uma obrigação que devemos ao governo, por que em fim o artigo, que se lê no nº 42 do Diario a folhas 189 com o titulo =

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O arco de Sant’Anna = tem o quer que seja de official como tudo quanto apparece naquellas columnas dos annuncios para traz. (A REVOLUÇÃO DE SETEMBRO, 24/02/1845).

Teixeira de Vasconcelos vai pontuar todas as críticas feitas pelo Diario do Governo,

defendendo ponto por ponto, sempre de forma irônica e contundente. Com relação a ser um

romance político ele afirma:

Mas esse pecado de soberba secular, e profana ainda não fecharia de todo as portas do céo ao nosso academico: assim elle não falasse na politica ... e não fizesse, como diz o Diario, um romance da opposição; e então para que? Para fazer D. Pedro 1º da associação eleitoral, á qual parece que tem de pertencer no 2º volume, segundo as mais discretas, e averiguadas informações da policia! Ainda bem! Ao menos não lhe tornam a chamar republicana!

Ahi está um ponto em que a critica official foi justa porque — aqui para nós — aquelle pateta do Gil-Vicente, o Luiz de Camões, o Ferreira, o Sá de Miranda, o Bernardes, e o Diogo do Couto se não pertencessem á associação eleitoral do seu tempo, e não mascavassem com allusões politicas as suas obras, outro gallo lhes cantára. (A REVOLUÇÃO DE SETEMBRO, 24/02/1845).

O jornal A Revolução de Setembro vê com bons olhos o fato do romance fazer

alusões à política portuguesa do século XIX. Este jornal foi o mais perseguido pelo governo

cabralista, principalmente pela sua posição sempre questionadora e contrária ao governo,

com isso se tornando um jornal de grande significado. O artigo em defesa d’O arco de

Sant’Anna vai afirmar que a “politica é o sangue das véas, é a questão das questões, é o

circulo dos interesses geraes, (...)” (A REVOLUÇÃO DE SETEMBRO, 24/02/1845). Com

relação ao autor do romance ser acusado de céptico, Teixeira Vasconcelos o defende:

E depois o 72 é sceptico. Sceptico?! Ainda essa nos faltava! Tambem não admira — depois que iniciaram S. João nos augustos mysterios, e que o fizeram pedreiro-livre ... e se o diz o Diario...!

Mas agora quasi seriamente: esta accusação de scepticismo, que ahi anda mais safada, que o diploma de litterato, já nos vai cheirando a caturrice e traz consigo idéas de tal orgulho, que fazem ..... que fazem rir: é o termo. (A REVOLUÇÃO DE SETEMBRO, 24/02/1845).

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Teixeira de Vasconcelos termina o seu artigo apontando qual será o destino d’O

arco de Sant’Ana, destacando a singularidade do romance e a sua importância para

produções futuras. Parece-nos também que o autor do artigo tinha conhecimento da autoria

do romance:

Entretanto, e apesar de todos esses defeitos o romance hade ser, e vai sendo lido com interesse, e agora que o Diario lhe pôz o sello de anti-ministerial já daqui lhe agouramos segunda edição — e merece-a que é uma das lindas composições, que temos visto apparecer na nossa terra, unica no seu genero, novo farol em estrada tambem nova entre nós, e coloccado por mão, que já plantou outros de não menos valia.

E nesse novo caminho hade ser trilhado. Crêmo-lo de veras. Ao menos nesse ponto não terão de chamar-nos scepticos.

Nunca as mãos doam ao nosso voluntario academico: revolva os seus apontamentos do Collegio dos Grilos, e venha o segundo volume, e depois outro, e outro, e outro.

Não enfada nunca — Já o sabe ha muito tempo. (A REVOLUÇÃO DE SETEMBRO, 24/02/1845).

No mesmo jornal, no dia 19 de março, saiu um artigo a favor da obra, com a

assinatura de Pereira da Cunha, e outro em 8 de abril, com a assinatura de Oliveira

Marreca. Este último prefere ignorar a disputa política para se centrar na estrutura do

romance, salientando a construção de alguns personagens. A polêmica ao redor do romance

se estabelece na imprensa portuguesa. A Revista Universal Lisbonense, de António

Feliciano de Castilho, faz referencia a este fato no artigo publicado, sem assinatura, na

revista de número 37, em 03 de abril de 1845.

A novela historica, entitulada Arco de Sant’Anna, chronica portuense; tem sido e é ainda objecto de accesa batalha. Criticas e defesas tudo está feito e porventura, com exageração, com paixão. Na questão que a proposito do prologo do livro se levantou, não ousamos nós a entrar; é materia cheia de melindres por uma e outra parte. Sabemos o como n’ella se deve raciocinar, uma vez assentados os factos, de que se hão-de derivar as consequencias; mas d’esses factos, que uns julgam ver existir de um modo, outros de outro modo diametralmente opposto, d’esses factos em que é temerário e iniquo o fantasiar, falta-nos ainda (só fallamos de nós) o necessario conhecimento: aguardamos que o tempo nol-o traga. (REVISTA UNIVERSAL LISBONENSE, 03/04/1845. p.448).

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Em 15 de junho, é publicado um artigo de forte crítica ao romance pela Revista

Acadêmica, de Coimbra, que é assinado por “um velho pároco de Coimbra”:

O A. do Arco de Sant’Ana julgou, que para demonstrar as exorbitâncias do clero, na época actual, devia ir revolver as crónicas, à cata de um facto escandaloso praticado por algum eclesiástico, para depois atirar com ele às turbas enfeitado com as suas louçanias poéticas, — dizer-lhes: “Aí tendes o que é o clero, odiai toda essa classe”. (Apud GARRETT, 2004, p.23).

Após a publicação deste artigo, a Revista Universal Lisbonense resolve posicionar-

se a favor do romance. E publica, no dia 3 de julho de 1845, um extenso artigo em resposta.

A introdução, apesar de estar em nome da redação, parece ser do próprio Garrett, ou pelo

menos de sua influência direta, como afirma Gomes de Amorim em Memórias biográficas.2

A Revista, além de partir em defesa do autor, divulga a identidade do mesmo, até então

“desconhecida” pelo público. Os trechos apresentados a seguir foram retirados da

introdução que teria sido escrita por Almeida Garrett:

Vimos com pezar e tristeza na Revista Academica da semana passada, um artiguinho de pouca extenção e menos fundamento em que, começando por nos dizer que a discussão andára desvairada porque deixára o fundo pela fórma, e antepozera a questão d’arte á questão social, continúa e conclue sem tractar nem uma nem outra das taes questões, asseverando-nos por fim duas coisas que nós, francamente e por muito que nos custe, temos obrigação de declarar que são falsas.

Uma é — que o facto em que se funda o romance é mera ficção da phantazia do poeta:

Outra — que vistas as tendencias do seculo não há que ter receio das tentativas do clero. (REVISTA UNIVERSAL LISBONENSE, 03/07/1845).

E mais adiante, Garrett se defende das acusações:

2 A segunda parte do artigo é assinada por F. L. de A. V. da F. — Francisco Lopes de Azevedo Velho da Fonseca (1º visconde de Azevedo).

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O A. do romance bem claro e positivo se expressa sôbre essa reacção religiosa e moral que elle tanto applaude, tanto approva, e, sem receio de muito aventurar, cremos podêr dizer que bastante ajudou entre nós. Ou nos erram muito bem fundadas conjecturas, ou a pessoa que suppomos ser, pelo menos, editor do Arco de Sant’Anna é a mesma que em outras obras bem conhecidas levantou o pendão d’essa reacção, que a dirigiu, que a excitou, que fez mudar os que ja estavam n’outro caminho, que instigou a começar n’elle os que ainda não tinham começado. E se a historia litteraria d’este seculo em Portugal forçosamente tem de confessar (ainda que a escrevam os mais invejosos inimigos) que a reacção, que a revolução moral da nossa litteratura foi capitaneada pelo A. de Camões, de Catão, de Adozinda, do Alfageme, do Gil Vicente, de Fr. Luiz de Sousa, do Tractado da Educação, do Portugal na Balança da Europa e de tantas obras em tantos e tão diversos generos — a critica contemporanea tambem não poderá, sem injustiça, accusar o A. ou pelo menos o editor do Arco de Sant’Anna de querer obstar a essa reacção.

Bem claro, repetimos, o diz elle no prologo: essa reacção, louva-a, que-la, ajuda-a com todos seus desejos e esforços, mas não quer que a torçam os interesseiros e materialistas do seculo em seu damnado proveito, não quer que os fanaticos e hypocritas a grangeiem em sua ganancia, que é ruina da religião, da moral e da sociedade. (REVISTA UNIVERSAL LISBONENSE, 03/07/1845).

A partir do momento em que o nome de Almeida Garrett é exposto no artigo na

Revista Universal Lisbonense, o tom dos debates se tornou mais ameno. O fato de o nome

de Almeida Garrett ser exibido ao público foi o bastante para a Revista Acadêmica

desculpar-se publicamente: “porque somos argüidos de nos deixarmos iludir a ponto

servirmos (sem o saber) de cego instrumento da calúnia contra um de nossos mais exímios

literatos!” (Apud GARRETT, 2004, p. 24). Na própria Revista Universal Lisbonense não

saiu mais nenhum artigo em defesa de Garrett referente ao primeiro volume d’O arco de

Sant’Ana. Também a discussão nos demais jornais do período ficou mais moderada.

A importância de Garrett para a sociedade da época era muito grande. A sua obra

teve sempre grande influência e participação nas alterações que se faziam tanto na vida

cultural como na estrutura política portuguesa. Foi ele sempre um grande defensor do

Cristianismo ao lado da Liberdade. Em seu ensaio Portugal na balança da Europa,

publicado em 1830, quando estava no exílio, deixa claro a sua posição:

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Uma religião que declara e professa ser o Criador o unico o unico arbitro e senhor do Universo, todos os homens iguais diante dele, que promete amparo ao fraco e desvalido, castigo ao soberbo e opressor, que declara uma comum origem, uma lei comum, um comum juiz de todos os homens, é a maior e mais certa e mais poderosa base da liberdade que pode entrar na moral pública dos povos. O espirito do Cristianismo quebra os ferros dos escravos, consola os oprimidos, conforta os fracos, promete justiça aos agravados; e a espada de seu Deus vingador está, como a de Dâmocles, suspensa por um fio sobre a cabeça dos reis, lembrando-lhes a todo o instante que há leis superiores às deles, leis que igualam os homens na presença do supremo Arbitro de tudo. (GARRETT, 1963, p. 812-813).

A cada obra publicada por Garrett, se tem a certeza do seu compromisso com a

Verdade, que estaria na confluência da causa Liberal e com o Cristianismo.

O segundo volume foi publicado no início de 1851, mas já se encontrava pronto

desde o final de 1849, como atesta uma carta de Garrett a Gomes Monteiro, datada de 7 de

março de 1849, publicada por Gomes de Amorim em suas Memórias biográficas.

Sim senhor. O Arco está quase acabado. Mas antes disso, quero que me diga alguma coisa sobre o remate dele. Lembre-me alguma coisa bem nossa, bem do Porto, bem tripeira, porque esta obrita é toda das reminiscências da minha infância, da minha terra natal. Ajude-me a concluí-la bem assim. (Apud AMORIM, 1881, tomo III, p.250-251).

O segundo volume d’O arco de Sant’Ana teve uma recepção bem mais tranqüila e

saíram artigos, em diferentes jornais, elogiando a obra. Em 28 de fevereiro foi publicado

um artigo no jornal A Revolução de Setembro, assinado por Lopes de Mendonça. No jornal

A Semana, saiu um extenso artigo assinado por Latino Coelho, entre fevereiro e abril de

1851. Na Revista Universal Lisbonense, saiu um artigo assinado pelo Visconde de Azevedo

publicado no dia 13 de março de 1851.

No artigo 19 do 5º volume da REVISTA UNIVERSAL LISBONENSE, nos arrojámos a dizer alguma coisa sobre o 1º tomo do Arco de Sanct’Anna, que por aquelle tempo se havia publicado. Hoje, que o 2º veio preencher nossos desejos, satisfazendo tão amplamente a muito firme esperança, que nelle haviamos fundado, arriscaremos tambem algumas observações a seu respeito, para não ficar incompleto o nosso começado

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empenho; e se, por pouco usados em escrever para o público, padecermos erros e equivocações amiudadas, desde já pedimos desculpa ao illustre auctor do Arco de Sanct’Anna, protestando-lhe, que difficilmente seremos excedidos no respeito e admiração sincera, que lhe dedicamos. (REVISTA UNIVERSAL LISBONENSE, 13/03/1851).

Todos os artigos agora publicados contêm análises elogiando a obra, concentrando-

se nas questões dramáticas e lexicais. Em 1851, apenas alguns setores mais conservadores

da sociedade portuguesa atacam Garrett. Vejamos o jornal O Católico:

Magoa-nos dize-lo, mas a verdade é esta: o autor do Arco de Sant’Ana quer lembrar como os povos e os reis se uniram para debelar a aristocracia sacerdotal e feudal. [...] Quereria o autor do Arco de Sant’Ana que ainda hoje se praticasse destes actos, quando fosse contra membros do clero? Pode moralizar-se uma classe, ofendendo-a, desacreditando-a, atraindo sobre ela o desprezo? (Apud GARRETT, 2004, p.25-26).

O arco de Sant’Ana constitui um exemplo de aproveitamento da história com um

propósito de denúncia e de intervenção crítica. Garrett ajusta uma situação político-social

opressora a um tipo de literatura que estava se tornando moda na Europa: o romance

histórico. No prefácio que antecede à primeira edição d’O arco de Sant’Ana, intitulado “Ao

Leitor Benévolo”, Garrett refere-se à importância de Walter Scott, Lamartine e Vitor Hugo

como precursores de uma nova forma de fazer literatura: “Walter Scott ressuscitou a poesia

dos tempos feudais, e nos entusiasmou com ela; Lamartine fez-nos chorar sobre as ruínas

dos mosteiros; Victor Hugo fez-nos carpir a soledade das nossas quási abandonadas

catedrais” (GARRETT, 2004, p.56). Entretanto, ao assumir uma reconstrução do passado,

Garrett prevê uma tentativa de analisar o presente. Vivia-se num momento político muito

diverso. Garrett, acredita ser oportuno avaliar as relações entre a Igreja e o Estado:

Há doze anos, há dez, há cinco, há três, era inconveniente, era impolítico, não era generoso — que é peior — recordar a memória de D. Pedro Cru açoitando por suas mãos um mau bispo.

De repente, em dous anos, a oligarquia eclesiatica levantou a cabeça. Pode-se dizer deles o que em mui diverso sentido dizia o eloqüente panegirista dos primitivos cristãos: “São de ontem e já invandem tudo, o palácio, a cúria, o conselho do príncipe e as assembléias da nação.” Já

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pretendem com uma exigência, já dispõem com uma arrogância! ... Já, nas imaginação, atiçam as fogueiras do Rossio, e benzem a corda das forcas no Campo de Sant’Ana. E enquanto não chega esse dia de glória e de bênção, vão aconselhando e aprovando quanta crueldade e perseguição podem contra os liberais, contra os mesmos que suscitaram e dirigiram essa reacção de opinião, sem a qual nem reis nem papas lhes faziam suster nas mãos o báculo, e a púrpura nos ombros. (GARRETT, 2004, p.59).

O romance histórico, ao buscar uma explicação para o passado, procura

proporcionar ao seu leitor a sensação de que está lendo uma obra verídica, que não está

sendo criada, aspecto que corrobora o didatismo da matéria narrada, tão ao gosto de Garrett

e dos escritores românticos em geral. É claro que o intuito de Garrett era chamar a atenção

para os problemas do presente. A construção histórica é de fato um alerta aos leitores com

relação aos problemas do século.

A publicação d’O arco de Sant’Ana tem um objetivo muito claro, combater a

oligarquia eclesiástica, que “levantava a cabeça” junto com a ditadura cabralista. Procurava,

portanto, ser uma obra de combate, principalmente contra os bispos ligados a Costa Cabral.

O arco de Sant’Ana retoma um episódio do capítulo VII da Crónica de D. Pedro I, de

Fernão Lopes. A ação acontece durante o reinado de D. Pedro I (1357 – 1367), que passou

para a história como o justiceiro. Neste episódio, o rei castiga um bispo corrupto da cidade

do Porto.

Fernão Lopes nasceu entre 1380 e 1390 em Lisboa, de uma família do povo, e

faleceu por volta de 1460. É considerado um dos maiores historiógrafos de língua

portuguesa. Foi contratado por D. Duarte para se dedicar à investigação da história do

reino. São de sua autoria: a Crónica de Portugal de 1419, a Crónica D. Pedro I, a Crónica

de D. Fernando, e as duas primeiras partes da Crónica de D. João I. Damião de Góis

atribui-lhe ainda a terceira parte da Crónica de D. João I, e a Crónica de D. Duarte, que foi

novamente redigida por Rui de Pina. Segundo Saraiva:

Fernão Lopes pertencia à primeira geração de depois dos combates de Lisboa em 1383 e dos da batalha de Aljubarrota, isto é, a geração dos filhos de D. João I. Tinha a profissão de tabelião, ou notário, “geral”, isto é, com a regalia de a poder exercer em qualquer localidade do Reino. O cargo era de nomeação régia, mediante exame, e exigia um mínimo de letras, o que o colocava na franja dos clérigos, cujo hábito chegavam a usar, embora os

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clérigos de estatuto superior considerassem isso um abuso. Em 1418 era guarda-mor da Torre do Tombo ou, como hoje diríamos, chefe do arquivo público do Reino, a quem competia passar certidões de documentos régios. Em 1434, D. Duarte concede-lhe uma boa tença vitalícia pelo trabalho que teve em pôr em crónica as histórias dos reis “que antigamente em Portugal foram” e também os “grandes feitos” de “Elrei meu Senhor e pai”.(...) Foi aposentado de guarda-mor da Torre do Tombo, por estar “mui velho e flaco”, em 1454, isto é, cinco anos depois de Alfarrobeira. Mas desde 1450 que entrara em funções outro cronista. (SARAIVA, 1995, p.166 - 167).

Fernão Lopes desempenhou uma função através da qual se notabilizou, como o

“pai” da história portuguesa. As suas crônicas transbordam realismo descritivo e

dramaticidade. Com uma simplicidade lingüística atrai ainda hoje a todos, permite aos

leitores viver com ele acontecimentos que afetaram profundamente a sociedade portuguesa.

A Crónica de D. Pedro I, além da sua valia histórica, tem um alto significado

ideológico e literário. Vale ressaltar o interesse no prólogo, onde abertamente se refere às

questões dos fundamentos do poder temporal, que têm a justiça como seu principal suporte:

Deixados os modos e definições da justiça que por desvairadas guisas muitos em seus livros escrevem, somente daquela para que o real poderio foi estabelecido, que é por serem os maus castigados e os bons viverem em paz, (...).E porquanto el-rei Dom Pedro, cujo reinado se segue, usou da justiça, de que a Deus mais apraz que cousa boa que o rei possa fazer, segundo os santos escrevem, e alguns desejam saber que virtude é esta e, pois é necessaria ao rei, se o é assim ao povo; nós, naquele estilo que o simplesmente apanhamos, o podeis ler desta maneira. (LOPES, 1977, p.41).

Outro ponto interessante desta crônica, que também está presente no prólogo, é que

a vida do rei, o seu comportamento e a sua personalidade deverão ser a regra pela qual a lei

é elaborada e transcrita, não podendo haver reino com boas leis alicerçadas em maus

costumes:

Ora se a virtude da justiça é necessária ao povo, muito mais o é ao rei, porque se a lei é regra do que se há-de fazer, muito mais o deve de ser o rei que a põe e o juiz que a há-de encaminhar: porque a lei é príncipe sem alma, como dissemos, e o príncipe é lei e regra da justiça com alma. Pois quanto a coisa com alma tem melhoria sobre outra sem alma, tanto o rei deve ter

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excelência sobre as leis, cá o rei deve de ser de tanta justiça e direito que compridamente dê as leis a execução; de outra guisa, mostrar-se-ia seu regno cheio de boas leis e maus costumes, que era torpe cousas de ver, pois duvidar se o rei há-de ser justiçoso não é outra coisa senão duvidar se a regra há-de ser direita, a qual, se em direito desfalece, nenhuma cousa direita se pode por ela fazer. (LOPES, 1977, p.42).

O prólogo da Crónica de D. Pedro I nos leva a perceber o motivo pelo qual Garrett,

aquartelado no Convento dos Grilos, escolhe esta crônica para se inspirar. O autor concilia

no romance uma relação do passado com o presente, e assim cria uma obra que servirá

como instrumento de transformação da sociedade.

O romance O arco de Sant’Ana se passa no século XIV, seu enredo é simples: um

bispo tenta seduzir uma mulher do povo (Aninhas) cujo marido se encontra ausente. Este

bispo tem um passado desabonador, pois tivera um filho (Vasco) com uma judia que

abandonara (Guiomar). Há também o romance de Vasco com Gertrudinhas. Vasco

desconhece ser filho do bispo e coloca-se à frente de um movimento popular contra as

tiranias do bispo, com o apoio de D. Pedro, que inflige, por fim, um castigo exemplar ao

eclesiástico.

É um romance supostamente verídico. O autor se diz romântico, portuense e amador

das tradições populares:

Pois bons quinhentos anos antes deste fatal acontecimento, fora esse arco de sant’Ana testemunha e próprio lugar de cena, da interessantíssima historia, que vou relatar, e que extraí, com escrupulosa fidelidade, do precioso manuscrito achado na livraria reservada do reverendo Prior dos Grilos, a quem Deus perdoe não ter deixado na sua cela, quando fugiu, nem uma caixa de doce, nem uma garrafa de vinho potável, nem gulosice de nenhuma espécie, das que eram de esperar naquele devoto aposento, e que bem contávamos achar nele os pobres estudantes quando ali chegámos mortos de sede e de cansaço. (GARRETT, 2004, p.71).

Almeida Garrett, começa o romance fazendo uma crítica ao poder eclesiástico.

Quando O arco de Sant’Ana começa a ser escrito por Garrett, no ano de 1832, o autor do

romance estava participando ativamente na luta contra o regime miguelista. Neste período,

com o restabelecimento do absolutismo desde 1828, a Igreja tivera acesso ao poder e até

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1832 desencadeara uma forte repressão contra os liberais. Em 1842, com a ditadura de

Costa Cabral, novamente esta oligarquia eclesiástica parece ter acesso ao poder. Logo no

segundo capítulo do romance, temos um diálogo entre Gertrudinhas e Aninhas, que

demonstra o temor que elas possuem com relação ao Bispo:

As lágrimas porém da boa Ana, com serem mui sentidas e sinceras, não lhe interromperam o discurso nem por meio segundo, continuou logo:

— Sim, sim; e bem no digo eu. Tenho coisa cá dentro que me agoira grande mal a mim e aos meus; e não me vem senão daquele bispo, que é a perdição e ruína desta cidade, ele e os seus cónegos, e os seus portageiros, e os seus archeiros e toda essa gente da Sé.

— E mete na conta o reverendo padre Fr. João de Arrifana, que é boa peça. Mas não há-de ser assim, Aninhas, que Deus nos há-de acudir, e a justiça de el-rei D. Pedro.

— E donde há-de ela vir, menina? Não sabes que desde o interdito grande e das excomunhões que houve nesta terra por causa do alvoroto do povo contra a tirania do bispo D. Pedro, e que depois se acordou tudo com el-rei e o papa, nunca mais as justiças de el-rei se quiseram meter com a nossa terra, nem catar-nos foros, nem ser por nós, e nos deixaram à mêrce do bispo e da sua gente? Como há-de el-rei D. Pedro gora ...? (GARRETT, 2004, p.76-77).

O aspecto político da obra será constantemente enfatizado por Garrett. Também no

segundo capítulo o autor faz a seguinte observação a respeito de Gertrudes (amiga de

Aninhas), que propõe que Vasco vá à Corte avisar ao rei D. Pedro sobre as tiranias do

Bispo:

— Pois hás-de ver, hás-de ver! — replicou a entusiasta Gertrudes, com um acento que nem a mais exaltada malhada ou setembrista dos nossos dias saberia imitar — com uma firmeza e confiança que a fariam admitir sem mais provas na républica de ... em qualquer das repúblicas com que nos mimoseia de vez em quando a Polícia para maior glória sua e descanso nosso. (GARRETT, 2004, p.78).

Almeida Garrett irá rechear a sua obra com comentários políticos e observações que

colocam em cheque a situação de Portugal do século XIX. Como o próprio autor adverte na

Advertência que abre o segundo volume da obra: “O romance é deste século: se tirou o seu

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argumento do décimo quarto, foi escrito sob as impressões do décimo nono; e não o pode

nem o quer negar o autor”. (GARRETT, 2004, p.61).

O que Garrett pretende com a obra é defender o Cristianismo e a Liberdade,

atacando as “oligarquias anãs” do século XIX. No prólogo à primeira edição, Garrett

afirma:

E todavia, confessemos a verdade: estas modas de “renascença”, esta paixão pelo gótico em literatura e arquitectura, este horror ao clássico, inspirado pela escola romântica, tem sim, tem ajudado mais do que se cuida, nas funestas tentativas de reacção e retrocesso social que, há trinta anos a esta parte, andam insaiando as oligarquias anãs do nosso século para se substituírem às gigantescas aristocracias dos tempos antigos. (GARRETT, 2004, p. 55-56).

Garrett afirma que o entusiasmo de seus contemporâneos pelo gótico na literatura,

influenciado pela escrita de Walter Scott, fez com que a oligarquia de seu tempo utilizasse a

questão em proveito próprio. Garrett, assim, denuncia o perigo do gosto pelo gótico,

deixando claro para o seu leitor, qual o objetivo d’O arco de Sant’Ana:

Hoje não é já só conveniente, é necessária a recordação daquele severo exemplo da crua justiça real.

Hoje é útil e proveitoso lembrar como os povos e os reis se uniram para debelar a aristocracia sacerdotal e feudal.

Não há medo, repito, que ela volte; mas há certeza que tenta voltar: e essa tentativa só por si, e só em si, é uma revolução terrível.

Eis aqui porque hoje se publica e de pouco se conclui o romance que aqui vai. (GARRETT, 2004, p. 59).

No prefácio, d’O arco de Sant’Ana, Almeida Garrett se dirige ao público leitor

como um pedagogo. É sua intenção escrever uma obra de combate contra as oligarquias,

contribuindo para a edificação de uma sociedade liberal e cristã. O tom pedagógico do

romance é dado pelo tratamento que é o narrador dá ao leitor, tais como: “Leitor benévolo”,

“leitor amigo”. Utilizando esses termos, Garrett cria uma aproximação, uma intimidade

com o leitor, que desta forma pode ser conduzido. É desta aproximação que o autor precisa

para dar ao seu romance um tom de veracidade, como se a história que está sendo narrada

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não fosse fantasia, e sim verdadeira.

Esta aproximação se torna necessária para que Garrett possa colocar D. Pedro como

o defensor e justiceiro, que inflige um castigo exemplar ao bispo tirânico. Para Garrett, é

necessária a existência de um poder que possa providenciar o bem-estar de todos, porque

isto é cristão e natural. Cito, a este respeito, Sérgio Nazar David:

E é por isso que Garrett está longe de ser o defensor da liberdade e o democrata, do modo como talvez muitos de nós hoje concebamos estes termos. Liberdade para Garrett é o estado natural do homem. E, sendo o estado natural do homem, e não outra coisa, fica implícita uma verdade natural a que este homem terá de obedecer. Fica implícita uma razão que é erguida à condição de razão natural, capaz de ser para todos regra de ouro. E a democracia de Garrett exige alguém que, como supremo árbitro, possa mediar conflitos de classe acima dos interesses do “povo” como se a sociedade não fosse de classes, como se houvesse um bem-estar para todos, o que significaria dizer um bem-estar igualmente salutar para todos. Enfim, se a liberdade é mesmo o estado natural do homem, só o rei, enquanto aquele que sabe o que o outro quer, pode garantir isto. (DAVID, 2001, p.137-138).

Ao buscar na Idade Média as armas para lutar contra a oligarquia de seu tempo,

Garrett constrói um modelo a ser apresentado aos homens de seu tempo: “Donde veio

dizer-se que a grande receita para acabar com as revoluções era fazer justiça direita a todos,

grandes e piquenos, como fazia el-rei D. Pedro. Deus lhe fale n’alma!”. (GARRETT, 2004,

p.359).

Embora Garrett se proponha a fazer uma obra de combate, ele entra em contradição

em vários momentos do decorrer do seu texto. Ele defende a liberdade, um valor

pretensamente novo, com armas velhas, como o castigo que é dado ao Bispo por ele ser um

pecador. Combate o velho modelo absolutista, mas defende a figura paterna: o Rei, que

vem fazer justiça; e o Bispo, que afinal é poupado pelo filho. Garrett critica a tirania, mas

mantém a defesa de uma sociedade em que os “pequenos” esperam a proteção dos

“grandes”. Ou seja, foi necessária a criação da figura paterna de D. Pedro, para poder

promover a ordem e restaurar o bem-estar naquela sociedade:

Estava o homem muito incolhido e quási agachado junto aos cancelos

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e em frente do porta-maça do cabido que os guardava... senão quando, alevantando-se alto e sobranceiro, arrojou de si com desusada força os alebardeiros que pretenderam conte-lo, e pronunciando não sei que palavras, que deviam de ser mágicas pelo efeito que fizeram, todos em derredor se lhe prostraram aos pés, os cancelos abriram-se de par em par, o homem da ruim capa entrou para dentro dos precintos capitulares, e levantando do chão a bandeira da cidade, que Vasco tinha sido obrigado a largar na luta:

— “Sou eu que levanto agora, este pendão”, brandou ele com grande voz: “eu que defendo a cidade da Virgem e a tomo na minha proteção”.

Tudo calou, tudo tremeu, tudo caiu de joelhos em terra. O homem era el-rei D. Pedro — el rei D. Pedro, o cru, o justiceiro!

(GARRETT, 2004, p.341-342).

Entretanto, durante o desenrolar do romance, Garrett tenta esconder que D. Pedro

também ficou conhecido como o amante de D. Inês. Essa tentativa de Garrett, tem objetivo

claro, serve para erguer e construir a figura do Rei que está acima do bem e do mal e dos

conflitos de classe. N’O arco de Sant’Ana identificamos somente uma passagem que o

autor fala à respeito de D. Inês:

Talvez ia amercear-se, talvez ia perdoar D. Pedro. D. Pedro perdoar! Pois ia; ia decerto. Nem sempre fora cru o amante de Inês. Se o poder de injustiças o tinham feito justiceiro e duro, se à força de crueldades tinham obliterado naquele coração o caminho da piedade; não fora tanto que lho não achasse ainda a penetrante impressão de tamanho padecer. (GARRETT, 2004, p.349).

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“Se exceptuarmos o débil clamor da imprensa liberal já meio esganada da polícia, não se ouve no vasto silêncio deste ermo senão a voz dos barões gritando contos de réis.”

(Garrett, Viagens na minha terra — capítulo XIII)

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4 – Viagens na minha terra

Viagens na minha terra marcou o nascimento da ficção romanesca de assunto

contemporâneo na literatura portuguesa. É uma obra única, quer pela estrutura, quer pelo

estilo. É uma obra complexa, misto de narrativa de viagens, de crônica jornalística, de

autobiografia, de comentário político e de novela sentimental. Nela Garrett coloca as suas

preocupações, principalmente com os rumos de Portugal.

Viagens na minha terra é escrito e publicado em uma situação política adversa. Esta

circunstância faz da obra um importante testemunho crítico dos caminhos da sociedade

portuguesa liberal e romântica.

O romance é constituído basicamente pelo relato de um fato verídico: a viagem de

Garrett, de Lisboa a Santarém, para visitar Passos Manuel, ex-chefe setembrista e o

principal opositor da ditadura de Costa Cabral. No entanto, embora a opinião pública

atribuísse a visita um objetivo político, nada prova que fosse esta a intenção de Garrett:

Era uma idéia vaga, mais desejo que tenção, que eu tinha há muito de ir conhecer as ricas várzeas desse Ribatejo, e saudar em seu alto cume a mais histórica e monumental das nossas vilas. Abalam-me as instâncias de um amigo, decidem-me as tonterias de um jornal, que por mexeriquice quis encabeçar em desígnio político determinado a minha visita.

Pois por isso mesmo, vou: — pronunciei-me (GARRETT, 1992, p.84).

Assim, a incerteza que envolveu a visita de Garrett foi habilmente explorada no

romance, onde o autor demonstra a sua arte despertando a curiosidade e a expectativa em

relação à política.

No dia 22 de junho de 1843, Almeida Garrett já teria retornado de Santarém. Então,

recebe uma carta de Castilho, diretor da Revista Universal Lisbonense, em que lhe é feito

um convite para escrever as suas “impressões de viagens”:

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Hoje me denunciou o Conde da Taipa que V. Exª fizera muitos curiosos apontamentos da sua peregrinação a Santarém. Tinha eu o maior empenho que se pode imaginar em inserir na Revista esse itinerário ou parte dele: e isto com franqueza, não só pelo merecimento da coisa, mas também pelo nome do autor. (...) Todos os bons nomes da nossa literatura já cá estão, e alguns com muita obra como Herculano; mas falta o de V. Exª, e esta falta é irreparável (...). Rogo pois, e suplico instantemente a V. Exª, dê bom despacho ao meu requerimento, e lho dê breve. Se a excursão a Santarém se não puder aprontar a tempo de poder começar a aparecer neste volume, venha qualquer coisa outra: duas linhas e o nome de V. Exª bastam-me por agora; mas repito, as tais impressions de voyages seriam o meu maior empenho. (Apud MONTEIRO, 1966, p.7-8)

Garrett respondeu logo ao pedido e no dia 17 de agosto de 1843 é publicado na

Revista Universal Lisbonense o primeiro capítulo de Viagens na minha terra. O prólogo de

apresentação da obra, na Revista, nos diz:

O escripto cuja publicação agora incetamos, é exemplar de genero precioso e novo em nossa literatura. O seu auctor, o Sr. Conselheiro Almeida Garrett, que nos honra com a sua amizade e collaboração, cabe a gloria de ter aberto mais de um caminho, que outros apóz elle tem seguido e hão de seguir. — O theatro moderno, e o romance patrio fundou-os elle incontestavelmente. As impressões de viagens, como em todos os paizes de adiantada civilisação hoje se escrevem em grande abundancia, — estre-as também elle agora. (REVISTA UNIVERSAL LISBONENSE, 17 de agosto de 1843).

Essa nota elogiosa que antecede o capítulo e que não tem assinatura é

provavelmente de António Feliciano de Castilho, como afirma Ofélia Paiva Monteiro3.

Os seis primeiros capítulos foram publicados entre agosto e dezembro de 1843, nos

tomos II e III da Revista Universal Lisbonense. Acompanha o capítulo V, publicado no dia

23 de novembro, uma breve “Advertência”. Nela os editores saem em defesa da obra: “É a

Viagem na minha terra obra política e partidária para deverem estranhar o vel-a em nossa

folha?!” (REVISTA UNIVERSAL LISBONENSE, tomo III, 23 de novembro de 1843).

Provavelmente os primeiro capítulos de Viagens já estariam causando algum tipo de reação

3 A autora faz referência a este fato na obra Viagens na minha terra. O nascer da modernidade literária portuguesa. (MONTEIRO, 1993)

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entre os partidários de Costa Cabral, que era Ministro do Reino desde 1842. Os editores

continuam a “Advertência”:

O auctor é um dos sectários sabidos e confesados da opposição. No seu escripto dá testimunho d’isso mesmo: mas o seu escripto ainda assim, não deve ser havido como politico. Em obras litterarias e politicas do genero d’esta, ao revéz das obras scientificas, techinas ou de qualquer outro modo didacticas, o estylo é o fundo principal e ás vezes o todo: a doutrina occupa o segundo logar e ás vezes nenhum; e como em certas musicas:agradam e não se lhes pergunta pela trova.

Se a “Viagem na minha terra” val como romance bem está, e bem estamos; — o restante que lembre em furta-côres as da esquerda, as da direita, ou as do centro — pouco mal e pouco bem virá por ahi á republica: que nem já hoje se transformam opiniões com palavras, nem com duas ou tres phrases desgarradas no meio de uma relação leve e faceta se hão de ellas nunca transformar. Os que tomarem a politica pelo caroço d’este fructo litterario, comam-n’o deitando fora o caroço; — os que a julgarem casca, comam-n’o sem a casca — os que a tomarem pela polpa não n’o comam, — e temos correntes as nossas contas. (REVISTA UNIVERSAL LISBONENSE, 23 de novembro de 1843).

Duas semanas depois, foi publicado o capítulo VI das Viagens, também com

alusões à política cabralista, e em 1843 a obra não teve continuação. Este número da

Revista também traz um artigo esclarecedor com o título “Lei de Imprensa”, onde se afirma

a neutralidade da Revista, e não se deixam de justificar “gracejos políticos” de Almeida

Garrett:

O que dissemos na advertencia preliminar ao capitulo quinto d’esta Viagem nos desobriga de emithirmos e fundamentarmos o nosso parecer á cerca de cada um dos gracêjos politicos do Sr. GARRETT, e com tal desobrigação folgamos nós muito, que não trajamos nenhuma libré politica e muito menos n’esta folha. Toca porém o auctor n’este capitulo um ponto, que, por se referir a um grande principio de direito constitucional, deve ser considerado; não o faremos extensa e analyticamente: tudo para isso nos falta; espaço, gosto, e sciencia; mas de corrida e com sincera consciência havemos de fazel-o. (REVISTA UNIVERSAL LISBONENSE, 07 de dezembro de 1843).

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Os editores continuam o artigo fazendo uma crítica a um projeto de lei que o

Governo apresentara ao parlamento para ser votado. Os editores acreditam que esta lei seja

injusta:

Mas a lei offerecida pelo governo ao parlamento será por ventura boa? temos que não. Confessado e provado que o jury connstituido era injusto, importava — ou demittil-o de todas as causas de imprensa e não unicamente de algumas, como faz o projecto; ou, se isto era inconstitucional, reformal-o (reformar é sempre em boa philosophia preferível ao destruir). (REVISTA UNIVERSAL LISBONENSE, 07 de dezembro de 1843).

Viagens na minha terra parece ter partido mesmo do propósito sugerido por

Castilho: fazer umas “impressões de viagens”. Entretanto, Garrett tratou logo de alargar o

projeto, aumentando as suas “viagens”, percorrendo a sociedade portuguesa do seu tempo.

A publicação foi cancelada, sendo retomada somente em junho de 1845, pela

própria Revista Universal Lisbonense, agora dirigida por Silva Leal. Os seis primeiros

capítulos de Viagens na minha terra foram publicados, com algumas alterações, seguidos

agora do restante da obra. Os capítulos saíram nos tomos V e VI, entre junho de 1845 e

novembro de 1846. A obra será concluída em novembro de 1846, mesmo ano em que saem

os dois tomos que compõem a primeira edição em livro.

Entre as duas publicações na Revista Universal Lisbonense ocorreram, conforme

apontamos, algumas modificações. Os seis primeiros capítulos que saíram, em 1843, foram

reformulados e novamente escritos. O artigo que antecede a segunda publicação de

Viagens, chama atenção para este fato:

E vendo que o auctor tinha notadamente corrigido os primeiros capitulos publicados há dois annos, pareceu á redação que seria mais conveniente, depois de tão longo intervallo, reproduzil-os agora juntamente com os ineditos, não só para continuar sem interrupção a serie toda, como para aproveitar as valiosas correcções e additamentos com que um escriptor tão escrupuloso costuma sempre enriquecer e melhorar as segundas edições de todas as suas obras. (REVISTA UNIVERSAL LISBONENSE, tomo V, 26 de junho de 1845).

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É certo que não se tratava de uma simples “segunda edição”, na Revista. Da

primeira edição fizeram parte os seis primeiros capítulos. Esta foi cancelada,

provavelmente, devido as constantes alusões à política opressora de Costa Cabral.

Os seis primeiros capítulos da versão de 1843 sofreram várias alterações, mas as

que mais tomam corpo são as que foram efetuadas a partir do capítulo IV. No trecho a

seguir vamos observar o que foi alterado por Garrett:

(...) Então o que ? Não concebem um secretario d’estado philosopho, um ministro poeta, escriptor elegante, cheio de graça e talento? Não, bem vejo que não: teem esta idéa fixa de que um ministro d’estado ha- de ser por força, ou um caixeiro malcreado e petulante que ganhou quatro vinténs a agiotar, ou um bacharelzito de requiem arvorado em homem d’estado pelos veneraveis das logeas, ou um general a quem não chegam as forragens e gratificações ordinarias e extraordinarias.... Mas isso é nos países adiantados (REVISTA UNIVERSAL LISBONENSE, capítulo IV, 9 de novembro de 1843, grifo nosso).

A parte que está destacada em negrito na citação está na primeira publicação das

Viagens e foi retirada para a publicação de 1845 e substituída por uma mera frase: “(...) ser

por força algum semsaborão, malcreado e petulante” (REVISTA UNIVERSAL

LISBONENSE, tomo V, 17 de julho de 1845).

Não é a nossa intenção fazer uma edição crítica das três versões publicadas de

Viagens. Serve somente de alerta para futuras averiguações. Há três versões dos seis

primeiros capítulos com várias modificações. A edição de Viagens organizada por Augusto

Costa Dias destaca as diferenças existentes entre a publicação de Viagens de 1845-1846 e a

que foi publicada em livro em 1846. Mas, não salienta as diferenças existentes dos seis

primeiros capítulos publicados em 1843 para os que foram publicados em 1845.

Não podemos esquecer que em 1845, o clima político em Portugal ainda era de

opressão, e que com certeza Garrett não gostaria de ver a sua obra novamente perseguida.

Vale ressaltar também que, quando Garrett publica em 1845 novamente as Viagens, é

exatamente este o período em que está ocorrendo o debate em torno do lançamento d’O

Arco de Sant’Ana. No anúncio que sai na Revista Universal Lisbonense em fins de 1845 e

mais tarde é incorporado à primeira edição das Viagens na minha terra — que, apesar de

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não estar assinado, Ofélia Paiva Monteiro afirma ser da pena de Almeida Garrett — ele se

defende, usando o discurso na terceira pessoa:

Tem sido acusado de sceptico: é a accusação mais absurda e que póde denunciar em quem a faz, ou grande ignorancia ou grande má fé. Quando o nosso auctor lança mão da cortante e destruidora arma do sarcasmo, que elle maneja com tanta fôrça e dexteridade, e que talvez por isso mesmo, conscio de seu podêr, elle rara vez toma nas mãos — veja-se que é sempre contra a hypocrisia, contra os sophismas e contra os hypocritas e sophistas de todas as côres que elle o faz. Crenças, opiniões, sentimentos, respeita-os sempre. Ainda as suas ironias que tanto ferem, não as dirige nunca sôbre individuos; vê-se que despreza a facil vingança que, como tão poderosas armas, podia tomar de inimigos que o não poupam, de invejosos que o calumniam, e a quem por cada dicterio insulso e ephemero com quem o teem pretendido injuriar, elle podia condemnar ao eterno oppobrio de um pelourinho immortal como as suas obras. Ainda bem que o não faz! mais immortaes são as suas obras, e quanto a nós mais punidos ficam os seus emulos com esse desprêzo do homem superior que se não appercebe de sua malignidade insulsa e insignificante.

Voltando á accusação do septicismo, ainda dizemos que não póde ser sceptico o espirito que concebeu, e em si achou côres com que pintar tão vivos, characteres de crenças tão fortes como o de Catão, de Camões, de Fr. Luiz de Sousa, — e aqui n’esta nossa obra, os de Fr. Diniz, de Joanninha, da Irman Francisca. (REVISTA UNIVERSAL LISBONENSE, 11 de dezembro de 1845).

Garrett, logo de início, abre o romance com uma citação de Xavier de Maistre e faz

uma referência a sua principal obra, Voyage autour de ma chambre, apresentada como

inspiradora das suas Viagens:

Que viaje à roda do seu quarto quem está à beira dos Alpes, de Inverno de Turim, que é quase tão frio como S. Petersburgo — entende-se. Mas com este clima, com este ar que Deus nos deu, onde a laranjeira cresce na horta, e o mato é de murta, o próprio Xavier de Maistre, que aqui escrevesse, ao menos ia até ao quintal.

Eu muitas vezes, nestas sufocadas noites de Estio, viajo até à minha janela para ver uma nesguita de Tejo que está no fim da rua, e me enganar com uns verdes de árvores que ali vegetam sua laboriosa infância nos entulhos do Cais do Sodré. E nunca escrevi estas minhas viagens nem as suas impressões: pois tinham muito que ver! Foi sempre ambiciosa a minha pena: pobre e soberba, quer assunto mais largo. Pois hei-de dar-lho. Vou

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nada menos que a Santarém; e protesto que de quanto vir e ouvir, de quanto eu pensar e sentir se há-de fazer crónica. (GARRETT, 1992, p. 83).

No prefácio que antecede à nova publicação dos folhetins na Revista Universal

Lisbonense, no ano de 1845, Garrett volta a mencionar Xavier de Maistre como fonte de

inspiração e acrescenta dois escritores ingleses do século XVIII: Swift e Sterne. No mesmo

prefácio, o autor defende a valorização do elemento estético da obra, consciente talvez da

originalidade do romance para a sociedade portuguesa de sua época, na medida em que

abrangia e problematizava o conceito de literatura.

Os nossos leitores terão pois o gôsto de ler em portuguez um livro interessante, tanto pelo lado moral como pelo lado critico e litterario, em que acharão fundidos, em mui bem intendida harmonia, os admiráveis estylos de Swift, Sterne e Xavier de Maistre; e em que resplandece a philosophia, erudição e amor das coisas pátrias, sem o phantastico das Viagens de Guliver, nem a satyra mordente de Tristam Shandy, mas com toda a elegância e graça da Viagem a roda do meu quarto. (REVISTA UNIVERSAL LISBONENSE, tomo V, 26 de junho de 1845).

E mais adiante:

O escripto, cuja publicação agora encetâmos, é exemplar do gênero precioso e novo em nossa literatura. A seu auctor, o Sr. Conselheiro ALMEIDA GARRETT, que nos honra com a sua amizade e collaboração, cabe a gloria de ter aberto mais de um caminho, que outros apóz elle tem seguido e hão de seguir — o theatro moderno, e o romance pátrio fundou-os elle incontestavelmente. As impressões de viagens, como em todos os países de adiantada civilisação hoje se escrevem em grande abundancia, — estrea-as também elle agora. (REVISTA UNIVERSAL LISBONENSE, tomo V, 26 de junho de 1845).

Viagens na minha terra pode ser considerado como marco dentro da história do

romance em Portugal. Almeida Garrett, ao escrever as Viagens, construiu um romance que

se tornou sinônimo de investigação do homem e do mundo que está ao seu redor, o que era

uma inovação para a escrita de sua época. Entretanto, vai buscar nos clássicos ingleses do

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século XVIII, principalmente nos humoristas Swift e Sterne, influências para a sua obra, o

que se percebe, nitidamente, principalmente no tom de humor e no aspecto digressivo da

obra.

Ian Watt, em seu livro a Ascensão do romance, demonstra como o romance se torna

uma forma literária nova, diferente da prosa de ficção do passado. Assim, escritores

ingleses do início do século XVIII, como Defoe, Richardson, Fielding, reformularam e

influenciaram esse novo estilo de fazer literatura:

O romance é a forma literária que reflete mais plenamente essa reorientação individualista e inovadora. As formas literárias anteriores refletiam a tendência geral das culturas a conformarem-se à prática tradicional do principal teste da verdade: os enredos da epopéia clássica e renascentista, por exemplo, baseavam-se na História ou na fábula e avaliavam-se ao méritos do tratamento dado pelo autor segundo uma concepção de decoro derivada dos modelos aceitos no gênero. O critério fundamental era a fidelidade à experiência individual – a qual é sempre única e, portanto, nova. Assim, o romance é o veículo literário lógico de uma cultura que, nos últimos séculos, conferiu um valor sem precedentes à originalidade, à novidade. (WATT, 1990, p.14 e 15).

Em Viagens na minha terra não temos mais romance no sentido de história irreal,

imaginária. O espírito e a matéria estão lado a lado. O caráter autocrítico do romance já

aparece nesta obra.

Estas minhas interessantes viagens hão de ser uma obra-prima, erudita, brilhante de pensamentos novos, uma coisa digna do século. Preciso de o dizer ao leitor, para que ele esteja prevenido; não cuide que são quaisquer dessas rabiscaduras da moda que, com o título de Impressões de Viagem, ou outro que tal, fatigam as imprensas da Europa sem nenhum proveito da ciência e do adiantamento da espécie. (GARRETT, 1992, p. 90).

E mais adiante:

É um mito, porque — porque... Já agora, rasgo o véu e declaro abertamente ao benévolo a profunda idéia que está oculta debaixo desta ligeira aparência de uma viagenzita que parece feita a brincar, e no fim de

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contas é uma coisa séria, grave, pensada como um livro novo da feira de Leipzig, não das tais brochurinhas dos boulevards de Paris.

Houve aqui há anos um profundo e cavo filósofo de além Reno, que escreveu uma obra sobre a marcha da civilização, do intelecto — o que diríamos, para nos entenderem todos melhor, o Progresso. Descobriu ele que há dois princípios no mundo: o espiritualismo, que marcha sem atender à parte material e terrena desta vida, com os olhos fitos em suas grandes e abstractas teorias, hirto, seco, duro, inflexível, e que pode bem personalizar-se, simbolizar-se pelo famoso mito do Cavalheiro da Mancha, D. Quixote; — o materialismo, que, sem fazer caso nem cabedal dessas teorias, em que não crê e cujas impossíveis aplicações declara todas utopias, pode bem representar-se pela rotunda e anafada presença do nosso amigo, Sancho Pança.

Mas como na história do malicioso Cervantes, estes dois princípios tão avessos, tão descontrados, andam contudo juntos sempre, ora um mais atrás, ora outro mais adiante, empecendo-se muitas vezes, coadjuvando-se poucas, mas progredindo sempre.

E aqui está o que é possível ao progresso humano. E eis aqui a crônica do passado, a história do presente, o programa do

fututo. Hoje o mundo é uma vasta Barataria, em que domina el-rei Sancho. Depois há de vir D. Quixote. (GARRETT, 1992, p.90-91)

Assim, Viagens não retrata somente uma viagem ao Ribatejo. Aqui, mais do que

tudo temos viagens pela história, pela tradição e pela literatura. Garrett criou o estilo

digressivo, como se a obra se organizasse na presença do leitor, com quem dialoga

familiarmente, em tom despreocupado, como se brincasse, ora se confessando, ora

utilizando um tom íntimo.

Garrett também faz uma crítica a um determinado tipo de romance, que para ele é

subliteratura, por seu aspecto pouco realista e escapista. O autor percebe que a literatura,

que deveria ser a expressão da sociedade, não o é. Assim, Garrett faz questão de explicar ao

leitor como está sendo produzida a literatura do seu tempo, e assim, ironicamente, se inclui.

Sim, leitor benévolo, e por esta ocasião te vou explicar como nós hoje em dia fazemos a nossa literatura. Já me não importa guardar segredo; depois desta desgraça, não me importa já nada. Saberás, pois, ó leitor, como nós outros fazemos o que te fazemos ler.

Trata-se de um romance, de um drama — cuidas que vamos estudar a história, a natureza, os monumentos, as pinturas, os sepulcros, os edifícios, as memórias da época? Não seja pateta, senhor leitor, nem cuide que nós o

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somos. Desenhar caracteres e situações do vivo da natureza, colori-los das cores verdadeiras da história... isso é trabalho difícil, longo, delicado; exige um estudo, um talento, e sobretudo um tacto! ... Não, senhor: a coisa faz-se muito mais facilmente. Eu lhe explico.

Todo o drama e todo o romance precisa de: Uma ou duas damas, mais ou menos ingênuas, Um pai — nobre ou ignóbil, Dois ou três filhos de dezanove a trinta anos, Um criado velho, Um monstro, encarregado de fazer as maldades, Vários tratantes, e algumas pessoas capazes para intermédios e centros. Ora bem vai-se aos figurinos franceses de Dumas, de Eug. Sue, de

Victor Hugo, e recorta a gente, de cada um deles, as figuras que precisa, gruda-as sobre uma folha de papel da cor da moda, verde, pardo, azul – como fazem as raparigas inglesas aos seus álbuns e scrapbooks, forma com elas os grupos e situações que lhe aparece; não importa que sejam mais ou menos disparatados. Depois vai-se às crônicas, tiram-se uns poucos de nomes e de palavrões velhos; com os nomes crismam-se os figurões, com os palavrões iluminam-se ...(estilo de pintor pinta-monos)4. E aqui está como nós fazemos a nossa literatura original. (GARRETT, 1992, p.104-106).

Almeida Garrett avalia cuidadosamente a realidade do país. Discute as dificuldades

pelas quais Portugal passou para implantar o regime liberal. Afirma que estas dificuldades

são fruto da confrontação do espiritualismo — representado por D. Quixote — com o

materialismo — representado por Sancho. O autor também observa a figura do frade como

espelho da sociedade velha, que se fechara ao desenvolvimento do seu tempo e à liberdade,

e caíra no erro de se unir ao despotismo. Entretanto, também sente por não ter dado direção

social a estes frades. Surgiu a figura do barão, que, para Garrett, é muito mais perigosa:

Frades...frades... Eu não gosto de frades. Como nós os vimos ainda os deste século, como nós entendemos hoje, não gosto deles, não os quero para nada, moral e socialmente falando.

No ponto de vista artístico porém o frade faz muita falta. (...) Ora o frade foi quem errou primeiro em nos não compreender, a nós,

ao nosso século, às nossas inspirações e aspirações: com o que falsificou a sua posição, isolou-se da vida social, fez da sua morte uma necessidade, uma coisa infalível e sem remédio. Assustou-se com a liberdade que era sua

4 A expressão que está entre chaves é acréscimo feito por Garrett num exemplar de seu uso, que se destinava à segunda edição.

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amiga, mas que o havia de reformar, e uniu-se ao despotismo que o não amava se não relaxado e vicioso, porque de outro modo lhe não servia nem o servia.

Nós também erramos em não entender o desculpável erro do frade, em lhe não dar direcção social, e evitar assim os barões, que é muito mais daninho bicho e mais roedor. (GARRETT, 1992, p.149-151).

Mas Viagens na minha terra não são apenas construídas por essa narrativa

principal, onde se discute a sensibilidade estética, a experiência humana e a sociedade do

seu tempo. Encontra-se aqui também uma segunda narrativa, uma novela sentimental, a

história de Joaninha, a “menina dos rouxinóis”, que tem por protagonista uma personagem

masculina: Carlos.

Inicialmente a história é narrada ao Autor, após a chegada a Santarém, por um

companheiro de viagem. Este autor torna-se ouvinte, para depois ao leitor dar a conhecer os

fatos e documentos do pungente drama de Carlos. O autor resolve fixá-lo por escrito, após

convencer-se de que se tratava de um romance por inteiro.

Alguns episódios narrados pelo Autor a respeito de Carlos podem ser identificados

na vida do próprio Garrett, como também nas características que o próprio Autor apresenta.

Entretanto, estas características não podem ser apresentadas pelo mero viés biográfico.

Carlos, o protagonista, é formado em Direito e, convertido ao Liberalismo, é

obrigado a emigrar. Ele nos é apresentado como um “ingênuo”, em luta contra a hipocrisia

social, de acordo com o mito do bom selvagem, difundido pela obra de Rousseau. Antes de

sua descrição, que também está no capítulo XXIV, Garrett apresenta a sua reflexão:

Formou Deus o homem, e o pôs num paraíso de delícias, tornou a formá-lo a sociedade, e o pôs num inferno de tolices.

O homem — não o homem que Deus fez, mas o homem que a sociedade tem contrafeito, apertando e forçando em seus moldes de ferro aquela pasta de limo que no paraíso terreal se afeiçoara à imagem da divindade — o homem assim aleijado como nós o conhecemos, é o animal mais absurdo, o mais disparatado e incongruente que habita na terra. Rei nascido de todo o criado, perdeu a realeza: príncipe deserdado e proscrito, hoje vaga foragido no meio de seus estados, altivo ainda e soberbo com as recordações do passado, baixo, vil e miserável pela desgraça do presente.

(...) E quando as memórias da primeira existência lhe fazem nascer o

desejo de sair desta outra, lhe influem alguma aspiração de voltar à natureza

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e a Deus, a sociedade, armada de suas barras de ferro, vem sobre ele, e o prende, e o esmaga, e o contorce de novo, e o aperta no ecúleo doloroso de suas formas.

Ou há-de morrer ou ficar monstruoso e aleijão. (GARRETT, 1992, p.212-213)

No desfecho do romance, Carlos se confessa impotente, diante das forças sociais e

assim justifica a sua opção de se tornar barão e abandonar Joaninha. A perdição de Carlos

está confirmada exatamente porque ele é todo humano, mesmo que se sinta culpado por

deixar para trás o seu amor:

Perdido para todos, e para ti também. Não me digas que não: tens generosidade para o dizer, mas não o digas. Tens generosidade para o pensar, mas não podes evitar de o sentir.

Eu estou perdido. E sem remédio Joana, porque a minha natureza é incorrigível. Tenho

energia demais; tenho poderes demais no coração. Estes excessos dele me mataram.... e me matam! (GARRETT, 1992, p.312).

A originalidade de Viagens reside na prosa, um prosa maleável, baseada no código

oral e na espontaneidade da escrita, fruto de um labor artístico, de gosto apurado, de uma

sensibilidade lingüística requintada.

Devemos lembrar que à narrativa da viagem se soma a novela da menina dos

rouxinóis, que está dentro do livro. Embora o Autor se esforce para apresentar esta última

como real, tão verídica como a narrativa de viagem, a este respeito nada podemos afirmar

que ateste tal fato. Assim, por este artifício, realidade e ficção estão em territórios até certo

ponto indefinidos nas Viagens.

Almeida Garrett através de Viagens deixa claro a sua desilusão com o mundo de sua

época, e sua crescente descrença no Liberalismo. Apesar das modificações que atingem o

século XIX através de um processo de modernização, essa transformação só ocorre na

periferia, não conseguindo esconder o Portugal feudal que ainda permanece. Na verdade,

Portugal ainda era uma estalagem da Azambuja, cercada de miséria e abandono:

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Aí está a Azambuja, pequena mas não triste povoação, com visíveis sinais de vida, asseadas e com ar de conforto as suas casas. É a primeira povoação que dá indício de estarmos nas férteis margens do Nilo português.

Corremos a apear-nos elegante estabelecimento que ao mesmo tempo cumula as três distintas funções de hotel, de restaurante e de café da terra.

Santo Deus! que bruxa que está a porta! Que antro lá dentro! ... Cai-me a pena da mão. (GARRETT, 1992, P.94).

Mais adiante continuará a sua crítica à miséria que cerca o país por todo o lado,

atingindo o povo e até aos monumentos que representam a história nacional de Portugal.

Garrett está temeroso pelo legado que os barões estão deixando na sociedade:

Uma nação grande ainda poderá ir vivendo e esperar por melhor tempo, apesar desta paralisia que lhe pasma a vida da alma na mais nobre parte de seu corpo. Mas uma nação pequena, é impossível; há-de morrer.

Mais dez anos de barões e de regímem da matéria, e infalivelmente nos foge deste corpo agonizante de Portugal o derradeiro suspiro do espírito.

Creio isto firmemente. Mais ainda espero melhor todavia, porque o povo, o povo povo, está

são: os corruptos somos nós os que cuidamos saber e ignoramos tudo. (...) Jesus Cristo, que foi o modelo da paciência, da tolerância, o verdadeiro

e único fundador da liberdade e da igualdade entre os homens, Jesus Cristo sofreu com resignação e humildade quantas injustiças, quantos insultos lhe fizeram a ele e à sua missão divina; perdoou ao matador., à adultera, ao blasfemo, ao ímpio. Mas quando viu os barões a agiotar dentro do tempo, não se pôde conter, pegou num azorrage e zurgiu-os sem dor. (GARRETT, 1992, p.306-307).

Esta desilusão com o mundo faz com que Garrett, no final do romance, dê ao

personagem principal de Viagens um destino curioso: ele se sente impotente perante os

acontecimentos, se deixa levar pela influência da sociedade, torna-se barão, e, mesmo

assim, se sente de algum modo culpado:

A desolação e o opróbrio entraram no seio da nossa família. Eu renuncio para sempre ao lar doméstico, a tudo quanto quis, a tudo quanto possa querer. Deus que me castigue, se ousa fazer uma injustiça, porque eu não me fiz o que sou, não me talhei a minha sorte, e a fatalidade que me persegue não é obra minha.

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(...) Creio que me vou fazer homem político, falar muito na pátria com que

me não importa, ralhar dos ministros que não sei quem são, palrar dos meus serviços que nunca fiz por vontade; e quem sabe?.... talvez darei por fim em agiota, que é a única vida de emoções para quem já não pode ter outras. (GARRETT, 1992, p.335).

Um fator liga os dois romances de Garrett aqui estudados. Os dois protagonistas —

Vasco e Carlos — são filhos de clérigos. Garrett constrói a história de ambos de uma forma

bem similar. Vasco d’O Arco de Sant’Ana é filho do Bispo da cidade do Porto, e não sabe

nada sobre a sua origem, descobre no final do romance quem é seu pai, e, apesar de toda a

sua luta contra a tirania do Bispo, se reintegra ao mundo, perdoa o pai, reafirma o poder de

D. Pedro e acaba se casando com Gertrudinhas. Carlos é filho de Frei Dinis, e, da mesma

maneira que Vasco, não tem conhecimento sobre a sua paternidade. Carlos é o

representante do mundo novo, do Liberalismo, enquanto Frei Dinis é o representante do

mundo velho, o Absolutismo. Ambos, pai e filho, terminam o romance aniquilados pela

culpa. Embora pareçam estar em lados opostos (barão/frade), ambos abrem mão do que

lhes é mais próprio. Ambos abrem mão de escolher uma mulher e optam por certo tipo de

morte em vida: o baronato (bem-estar vazio da vida mundana) e o hábito de frei, sob o qual

frei Dinis busca redimir seus “pecados”.

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“Este é um século democrático; tudo o que se fizer há-de ser pelo povo e com o povo .... ou não se faz. Os príncipes deixaram de ser, nem podem ser, Augustos. Os poetas fizeram-se cidadãos, tomaram parte na coisa pública como sua, querem ir, como Eurípedes e Sófocles, solicitar na praça os sufrágios populares, não, como Horácio e Virgílio, cortejar no paço as simpatias de reais corações.”

(Garrett, Frei Luís de Sousa, Ao Conservatório Real)

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5 – Conclusão

Com a conclusão deste trabalho, percebemos, nitidamente, a importância da obra de

Almeida Garrett para entender a sociedade portuguesa da primeira metade do século XIX.

Garrett em muitos momentos é acusado de fazer política nos seus romances, e é claro que o

faz. A polêmica que surgiu em torno da publicação d’O arco de Sant’Ana e de Viagens na

minha terra não era despropositada. Os seus textos eram construídos com várias alusões

políticas. Seu ataque às práticas absolutistas e ao governo de Costa Cabral eram constantes,

como também a defesa do ideal liberal.

A restauração em 1842, por Costa Cabral, da Carta Constitucional de 1826 e a

instauração do governo ditatorial, provocaram em Garrett o dever do combate. É claro que

diminuíra nele o radicalismo da mocidade (MONTEIRO, 1993), e, assim, a sua oposição

não seria tanto contra a Carta, mas sim contra a forma de Governo, que proporcionava o

surgimento de velhas práticas. N’O arco de Sant’Ana, Garrett acredita ser o momento para

esta discussão, e avalia as relações existentes do Estado com a Igreja naquele momento

político:

De repente, em dous anos, a oligarquia eclesiatica levantou a cabeça. Pode-se dizer deles o que em mui diverso sentido dizia o eloqüente panegirista dos primitivos cristãos: “São de ontem e já invandem tudo, o palácio, a cúria, o conselho do príncipe e as assembléias da nação.” Já pretendem com uma exigência, já dispõem com uma arrogância! ... Já, na imaginação, atiçam as fogueiras do Rossio, e benzem a corda das forcas no Campo de Sant’Ana. E enquanto não chega esse dia de glória e de bênção, vão aconselhando e aprovando quanta crueldade e perseguição podem contra os liberais, contra os mesmos que suscitaram e dirigiram essa reacção de opinião, sem a qual nem reis nem papas lhes faziam suster nas mãos o báculo, e a púrpura nos ombros. (GARRETT, 2004, p.59).

Observamos também alguns pontos em comum entre O arco de Sant’Ana e Viagens

na minha terra. O conflito envolvendo a questão paterna que percorre as duas narrativas é

muito claro. Vasco, um personagem bom e revolucionário se contrapõe à figura opressora

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do Bispo. Vasco possui uma personalidade inconstante, e, apesar da tentativa do autor, é

um personagem com menos densidade psicológica do que Carlos de Viagens. Cito O arco

de Sant’Ana.

Digo intermitente, porque tinha semanas inteiras de ser o melhor estudante e o mais aplicado de quantos entravam nos claustros da Sé, e ora queria ser físico e ser doutor, ora ser cônego e até ser papa se possível fosse. Mas de repente dava-lhe a veneta e jurava por San’Barrabás que ou havia de ganhar as esporas de oiro e o cinto de cavaleiro, ou então queria antes ser homem de ofício, burguês pançudo e massudo — que assim melhor o deixariam casar com Gertrudinhas, que, no fim de contas, era a única Idea fixa ou semifixa de seu móbil espírito. (GARRETT, 2004, p.92-93)

Outro ponto em comum entre as duas obras de Garrett, aqui referidas, é o fato que

há motivos no passado para que tanto Frei Dinis como o Bispo possuíssem um caráter

“vicioso”. É uma tentativa de compreender o indivíduo através dos fatos biográficos de seu

passado.

O arco de Sant’Ana anuncia um discurso mais coloquial, construindo uma ligação

mais intensa entre o leitor e o autor. Entretanto, será em Viagens na minha terra que este

tipo de narrativa é construída de uma forma mais intensa. Usando um discurso em um tom

bem coloquial, e freqüentemente interpelando o leitor a propósito dos acontecimentos

decorridos na sua viagem, Garrett cria uma estratégia que dá um tom de veracidade ao

romance, principalmente ao utilizar uma linguagem onde as digressões estão sempre

presentes, o que marca na prosa literária portuguesa “o nascer da modernidade”

(MONTEIRO, 1993). Aqui Garrett discute a condição humana e a história de seu país, e

aborda conflitos íntimos do protagonista Carlos, através da carta final que este escreve a

Joaninha.

O fato de Viagens na minha terra ter sido primeiramente publicado numa revista,

que era então um importante instrumento de ação cultural, orientado para o público burguês

e romântico, tudo isto facilita o caráter pedagógico da obra e traz o leitor mais para perto

dos preceitos liberais e cristãos do autor.

Outro ponto de destaque na obra de Almeida Garrett, e que fica claro no decorrer

das Viagens na minha terra, é a crítica que o autor faz ao regime cabralista, fortemente

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apoiado numa oligarquia financeira de barões. Garrett deixa claro neste momento a sua

desilusão com o mundo e a sua crescente descrença em relação aos rumos do liberalismo

em Portugal. Não acredita que a vida moderna que estava sendo apresentada a Portugal

pelos barões, fosse realmente favorável e benéfica a sua terra.

Não podemos, por fim, perder de vista as ambigüidades presentes em ambas as

obras. Almeida Garrett, apesar de ser um grande defensor do liberalismo, não consegue

visualizar a possibilidade de a proposta liberal ser levada adiante. Ele defende a liberdade,

um valor ainda novo para a sociedade portuguesa, porém utiliza formas arcaicas de pensar

para punir os opressores. Critica a tirania, porém acredita numa sociedade de classes sem

conflitos, conflitos estes que ele tenta esconder denunciando a ganância e a cobiça dos

“maiorais”. Almeida Garrett aposta na subjetividade dos seus protagonistas, Carlos de

Viagens sai da casa paterna, Vasco d’O Arco quer fazer uma revolução. Entretanto, ambos

afirmam no final do romance o poder do pai, perdoando os “crimes” que estes cometeram.

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6 – Anexos

6.1 Sobre O arco de Sant’Ana.

6.1.1. Jornal Diário do Governo — 19 de Fevereiro de 1845.5

É sempre com grande prazer que temos a annunciar a publicação de uma nova obra.

Sinceros e ardentes amantes das lettras folgamos de vêr-lhe tributar por outros o culto, que

da nossa parte não póde ir além do zelo dos bons desejos. A modéstia porém não nos atalha

o passo para que exerçâmos em toda a sua plenitude as funcções da critica litteraria.

Fallemos pois livremente sobre o Arco de Santa Anna.

O auctor é anonymo. A quem quizesse reconcentrar a sua attenção, e reparar no

estylo, porque o ha no livro de que tractamos, talvez lhe não fosse muito difficil pôr o dedo

em que no livro poz a mão. Sejamos porém misteriosos, já que de misterio se quiz cercar o

Romancista. Seja muito embora um manuscripto achado, ou feito achar, no convento dos

Grillos na cidade do Porto. Baste-nos saber que foi recopilado por um contemporaneo que

soube torna-lo palpitante de actualidade.

O prefacio, esse, parece-nos que não tem a pretenção de ter sido tambem achado;

contenta-se de ter sido feito. Diz-se nelle que os poetas e romancistas que deram á idade

media todo o prestigio que podia nascer de paginas eloquentes, consagradas a este

assumpto, foram causa, sem o quererem, de que o partido ecclesiastico (que lá fóra

realmente existe) quizesse aproveitar, em beneficio seu, o que tinha sido emprehendido por

consideração da arte. Accusa-se este partido de ter querido converter em systema litterario

n’uma reacção politica, e de nos querer trazer dos livros para o mundo os castellos feudaes,

e os costumes das épocas a que a historia já tinha posto o epitafio.

5 Artigo sem assinatura. Gomes de Amorim e Teófilo Braga afirmam que o artigo é de a Carlos Bento da Silva.

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Em uma palavra, quiz-se tambem fazer um Judeu Errante. Porque não? Vejamos

porém se para isso se tomaram as necessarias precauções.

A scena passa-se no tempo de D. Pedro o crú. Fica-nos muito longe para que o

auctor possa como Mr. Eugenio Sue tirar de um romance conclusões contra cousas

actualmente existentes. Mas que querem? O auctor mostra-se no prefacio grandemente

assustado e o susto não é o melhor conselheiro.

Se porém a idéa que se vê ter presidido á publicação do livro tem alguma cousa de

commum com o pensamento de Romance francez, pede a justiça que se declare que no

mais não ha realmente a minima imitação.

Estamos pois no tempo de Pedro o crú e temos um Bispo no Porto que, entre muitos

outros maleficios, abusava dos meios que tinha á sua disposição para arrancar filhas e

mulheres a pais e maridos. Neste primeiro volume, na Rua de Sanct’Anna, no Porto, um

familiar do Bispo, por seu mandado, rouba uma rapariga cujo marido se achava ausente.

Uma sua intima amiga quando pela manhã a não vê apparecer, e se certifica de a terem

roubado, acerta com o auctor do rapto e é causa de que o povo em tumulto vá diante dos

Paços do Bispo romper em altos gritos de indignação. Este, vestido para sahir em Procissão

apresenta-se com uma altivez magnanima, diante de cujo aspecto e de algumas palavras a

multidão desce das elevadas notas do seu agreste alarido e cahe, diz o auctor naquelle

estado paralitico que succede ás grandes irritações.

Não desanimemos porém, apesar da parylisia do povo. O primeiro volume antes de

acabar tem a bondade de nos informar que El-Rei D. Pedro se acha dentro do Porto, onde

vem castigar a ousadia do Bispo, chamado que fôra, segundo suppomos por um D. Vasco,

estudante, que desconfiamos pertencer ao Bispo por laços mais estreitos do que presume, e

que sabemos ter tomado aquella resolução accedendo ás instigações de Gertrudes, a intima

amiga de Anna, a esposa raptada.

Esta é pouco mais ou menos a acção. A respeito de execução é facil de vêr que o

escriptor não é por ahi homem que pela primeira vez corra os riscos de escrever. Está certo

de si e da lingua. Redige como quem sabe perfeitamente compôr. Não ha inexperiencia no

seu estylo, e se effectivamente o manuscripto foi achado no Convento dos Grillos, quem

procurar bem ha de achar mais obras do mesmo auctor; por força. Talvez até discursos do

parlamento e artigos dos jornaes.

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O Romance muitas vezes é elle tambem artigo de fundo quando se mette a fazer

allusões. É romance da opposição. D Pedro o crú está a parecer-nos que no segundo volume

pertencerá á Associação Eleitoral. A respeito de associação, não se cuide que a questão

sobre, se as Camaras Municipaes tem ou não direito de representar, se não ache tractada

com alguma extensão por occasião de uma reunião popular contra... Pero Cão, Almudeiro

do Bispo do Porto.

O auctor é capaz de nos dizer, lá mesmo do tempo de D. Pedro o crú, que está no

seu direito, e que póde muito bem escrever a historia no século XIV, e a ter a graça no

século XIX. Acceitando a declaração, e não tractando do anachronismo, perguntaremos se é

possivel conservar o interesse aos acontecimentos, quando as reflexões a cada passo nos

distrahem das cousas de então para os homens de agora? Nesta obra ha tres entidades que

marcham de frente, o romance, o artigo de fundo, e o folhetim. Falla-se por exemplo no

Arco de Santa Anna, vem logo á baila o parlamento, e d’alli a pouco tracta-se da Polka. No

segundo volume quando D. Pedro castiga o Bispo, apostamos que já se falla na Mazurka?

Por isso é que vêmos roubar com toda a indifferença a Aninhas da rua do Arco.

Como podemos atterrar-nos quando se aproximam os seus roubadores, se elles entram a

fallar em politica como um Jornal de agora, só com a differença de ser com mais espirito. É

preciso desenganarmo-nos? É livro ou é jornal? Queremos votar. Se são ambas as cousas

votâmos contra.

E mais temos pena porque devemos votar na generalidade contra algumas cousas

muito boas, que na especialidade se acham no livro. A scena, por exemplo, do tumulto

diante dos Paços do Bispo, está o mais pictorescamente escripta; e o modo porque aquelle

tumulto se desfaz é tão imprevisto e novo como é natural.

Será o nosso defeito de não podermos accreditar na obra? Suppômos que não. O

auctor é que está mui baldo de fé. Em quem acredita elle, no livro? É nos grandes, ou é no

povo? Em nenhum. O auctor é sceptico. Ri-se de todos. Não confia em ninguem. Com o

scepticismo não se funda destroe-se. A alma de um livro está nas crenças do seu auctor.

Quando o que escreve não sente o que diz, o leitor não sente o que lê. Quando se

apresentam aos nossos olhos differentes objectos, não é possível por muito tempo excitar a

attenção, quando se não sabe inspirar o interesse. Que me importa o tumulto do povo contra

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o Bispo, se um não vale mais do que o outro. E não basta dizer a verdade é aquella, fômos

exactos.

Não se tracta só de ser exacto, é preciso mais alguma coisa. A exactidão satisfaz em

mathematica, mas não basta nas obras da imaginação. Um cadaver é exactamente do feitio

de um homem, mas que differença!

O auctor ri muito de tudo para que acredite em alguma cousa. Só de vez em quando,

é que em vez de gracejo, vem aos cantos da boca a espuma da raiva política, citaremos. Em

muitas discussões similhantes, preparatorias de não menores infamias, outros

parlamentos, teem visto levantar-se um truão, homem de estado, a aconselhar com vileza e

crueldade os maiores flagicios, dizendo sandios gracejos e torcendo-se visagens de bobo

para fazer rir, nos solemnes momentos de angustia publica, outros cumplices tão

grosseiros e vendidos com os de Pero-Cão ha quatrocentos annos.

Parece o trecho do primeiro artigo de fundo do ultimo aprendiz redactor de um

jornal da opposição. O auctor realmente escreveu para a posteridade?! Perguntamos.

Queriamos saber se escrevendo assim tem a pretenção de cuidar que seja qual for o verniz

de um estylo, é possível dar ás exaggerações de jornalista a duração de uma obra litteraria.

Muita cousa deste genero que se acha no volume de que tractamos não é do dominio da

critica litteraria. É para ter resposta no artigo de fundo.

Não queremos commeter a menor injustiça. O livro injusto, e politico, e sceptico

como é, faz-se ler, graças á flexibilidade da phrase, ao agradavel emprego de um estylo

cheio as mais das vezes de propriedade. Devemos comtudo fazer uma observação.

Para corrigir o defeito de um dialogo demasiadamente academico, como o que entre

nós se usava, o auctor recorre á mais ingenua naturalidade, para que as palavras postas na

bôca dos interlocutores tenham toda a apparencia da verdade. Não basta, tornarmos a

repetir, e se o auctor, muitas vezes fugindo ao defeito que reprova, acertar com palavras tão

singelas como expressivas, muitas outras, põe-se a dizer cousas naturaes sim, mas perdõe-

nos elle, que mui humildemente lho advertimos, mais ou menos semsabores. “Menina estás

boa. .— Tambem eu. — Tambem tu. — Está frio .— Toma sentido. — Já tomei. — Olha

cá. — Já olhei. — Veremos. — Verei.” Resumimos a nossa observação dizendo que se

póde abusar do natural como de tudo. Em Frei Luiz de Sousa, por exemplo, a singelesa das

palavras é sublime porque corresponde á profundidade dos sentimentos, no Arco de

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Sant’Anna a simplicidade do dialogo é muitas vezes a alteração de pieguices que

constituem a conversa de senhoras visinhas. Se o que é natural devesse sempre agradar,

nada agradaria tanto como a semsaboria, porque nada ha tão natural. Mandai stenographos

assistir a qualquer conversa ordinaria entre pessoas sem espirito (nem a Anninhas nem a

Gertrudinhas o quizeram ter junto ao seu Arco) e tereis o mais natural de todos os dialogos,

mas não nos condemneis nunca a uma tal leitura.

Alguem nos tachará de severos; não de certo quem lêr o livro sem preconceitos.

Demais, temos todo o direito de ser severos com o author que achou o Arco de Sanct’Anna.

Em elle querendo acha cousa melhor. Estejam certos disso; em o author o pretendendo,

conta-nos cousas mais interessantes do que ter comido jantares feitos por Mr. Pigeon. Neste

logar o remorso fe-lo exclamar: está-me parecendo que sou um grande pateta. Não é. Tem

muito talento, muito estylo, muita graça, muito gosto, o ponto está em querer. Nós temos a

honra de ser dos seus maiores admiradores; mas quando lhe dá para dormir, não gostamos

de o ouvir ressonar em politica. Assobia. Neste volume principalmente. Não sabemos o que

seja em litteratura escrever um romance da opposição, produz-nos o mesmo effeito do que

querer em pintura resolver a questão de fazer um painel ministerial. A arte anda acima da

ephemera agitação dos tempos em que vivemos. Victor Hugo indignou-se de que se tivesse

pretendido achar no verso de um dos seus dramas uma allusão politica. Não queria victorias

de circumstancias. Tinha razão.

Tendo fallado do estilo da invenção do livro, não podemos por despedida deixar de

mencionar um caracter, que em poucas paginas ficou magistralmente descripto; é o caracter

da beata Briolanja Gomes. É chistoso sem ser carregado. É natural sem ser commum.

Muitos caracteres traçados assim fariam a fortuna do livro em que se achassem.

Terminando, não podemos deixar de recommendar a leitura deste romance, apezar

da sua politica, que em nosso entender não faz mal se não ao author. Queira Deos que o

segundo volume seja mais francamente litterario, para que possamos justamente ser seus

mais decididos apaixonados. Ha de se-lo. O author deve ter cahido em si, e ha de prestar-se

a ter a condescendencia de excitar a admiração.

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6.1.2. Jornal A Revolução de Setembro — 24 de fevereiro de 18456

Ora graças a Deos, que ressuscitou a critica litteraria! A pobresita parecia que tinha

morrido, ou que por singular, e moi caricata metamorfose se convertêra em artigos de

encommenda com diploma de exemio litterato, de abalisado cultor das letras, de

extremado poeta, e de ... nem sabemos quantos outros primorosos titulos conferidos a todo

o cidadão portuguez que escrevesse quatro bons, ou maus versos, ou quinze até vinte linhas

de prosa muito e muito mascavada! Esta isempção de direitos nas alfandegas da boa critica

estragou tudo, e creou a seita dos Piégas litterarios!

Ainda bem que resurgiu a critica litteraria! E ressurgiu, como devia, no Diario do

Governo, que é folha official, e que tem por especial obrigação dar a toda a imprensa

portuguesa o brioso exemplo do bom emprego do tempo e da sciencia. É mais uma

obrigação que devemos ao governo, por que em fim o artigo, que se lê no nº42 do Diario a

folhas 189 com o titulo = O Arco de Sant’Anna = tem o quer que seja de official como tudo

quanto apparece naquellas columnas dos annuncios para traz.

Sete, ou mais ainda serão elles, peccados mortaes pezam sobre o nº 72 do corpo

academico! Pobre voluntario: escapaste dos projecteis do inimigo, da fome, e da colera, e

— o que são vaidades do mundo! — para ires fazer companhia nas profundas do inferno ao

perro de Pero Cão, que não haverá para ti, como para o bom do bispo haveria, e para o

tochudo fr. João de Arrifana uma bulla de composição, que á hora da morte te salde as

contas! Assim Deos queira estar por essas bullas, e por muitas outras obras dos seus servos!

Mas se o maganão do voluntario foi fallar nos padres .... e na reacção ecclesiastica

...., e então em que occasião! Agora que o clero de Hespanha quer tudo, quanto possuia

com rasão, e direito, e também o que nunca deveria ter, e que o nosso .... o nosso? Coitado;

nem sabe o que delle querem, e mais querem ou parecem querer alguma cousa mas ás

cegas, muito ás cegas porque não ha faze-los lembrar do que por cá houve, a estes homens

que até da historia contemporanea se esquecem, a estes seis, sete, ou talvez oito dormentes

da Grecia.

Assim mesmo fizeram injuria á coragem do nosso academico! O auctor, diz o

Diario, mostra-se no prefacio grandemente assustado, e o susto não é o melhor 6 Artigo assinado por Teixeira de Vasconcelos.

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conselheiro. Pois o nosso soldado nº 72 era lá homem, que se assustasse com essas cousas?

Ora! Ainda que elle ouvisse nas camaras a um prelado da igreja propôr um índice

expurgatorio para os livros, e lêsse em um folheto que era rigorosa obrigação dos povos

votar com os bispos! N’isso, perdoe-nos o contemporaneo, enganou-se — lêa outra vez o

prefacio, e lá verá o = portx inferi non prevalebunt = em muito bom portuguez, e frase pura

em que péze aos litteratos do Correio com almadraque,e sem elle.

Susto de que vençam, não o temos, porque estamos no anno do Senhor de 1845,

mas receio de que nos mordam de furto como os cães pequenos, e aviso ao publico de que

se não deve deixar morder, isso lá póde ser, e crêmos, que realmente é.

Mas esse pecado de soberba secular, e profana ainda não fecharia de todo as portas

do céo ao nosso academico: assim elle não fallasse na politica .... e não fizesse, como diz o

Diario, um romance da opposição; e então para que? Para fazer D. Pedro 1º da associação

eleitoral, á qual parece que tem de pertencer no 2º volume, segundo as mais discretas, e

averiguadas informações da policia! Ainda bem! Ao menos não lhe tornam a chamar

republicana!

Ahi está um ponto em que a critica official foi justa porque — aqui para nós —

aquelle pateta do Gil-Vicente, o Luiz de Camões, o Ferreira, o Sá de Miranda, o Bernardes,

e o Diogo do Couto se não pertencessem á associação eleitoral do seu tempo, e não

mascavassem com allusões politicas as suas obras, outro gallo lhes cantára.

Pois fizeram-a limpa! Aconteceu-lhes como ao nosso voluntário: comiam as suas

berças .... comiam-as? Se as tinham!

E que haviam elles de fazer? Se a politica é o sangue das véas, é a questão das

questões, é o circulo dos interesses geraes, e mais importantes, e não há saltar delle para

fóra por mais que se queira! E já nesse tempo era de uso fazer da politica um nicho, metter-

se lá dentro, e dizer aos profanos — noli me tangere — São tão velhas estas malicias

humanas!

Porém o nosso voluntario perdeu com isso muito mais do que todos os outros que

ousaram ter dous gráos de intelligencia acima dos seus contemporaneos, e brilhar com ella

no meio da récua dos alarves, que os cercaram logo a soprar .... a soprar .... a soprar á luz,

que lhes offendia a vísta, a vêr se a apagavam; e apagaram-a ....! Morreram á mingua ....! E

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sabem o que o nosso academico perdeu? O interesse do romance. Até o Diario viu roubar

com toda a indifferença a Anninhas da rua do Arco!

E então quem lê a crônica de D. Affonso V., póde lá importar-se com que fr. Vasco

da Alagoa fuja do pulpito para que o não mate o povo mesmo na igreja de S. Domingos por

fallar pela rainha, e contra os infantes? Qual historia?!! Pois o pateta do chronista até os

ditos de um barbeiro refere.... e que ditos? É quasi direito publico estreme: parece mesmo

um artigo do fundo, ou circular da associação eleitoral! Eram as proprias palavras do

barbeiro, era a verdade, mas não se devia dizer porque bulia no nicho, e quem bole no

nicho, é feio: diz-se-lhe como ás crianças — não ponha a mão, que suja a pintura.

Ora aquelles cães da quadrilha do Almudeiro para que haviam de fallar na politica

do século XIV? E se fosse so isso .... vá, mas aquella maioria .... aquelle truão ...são

carapuzas de guisos, das que usavam os bobos das antigas côrtes, e que vão cahir em certas

cabeças que é mesmo uma consolação. E então é que por mais que se sacudam para as

deitar fóra, é peior: os guisos soam, reune-se o povo, ha gargalhada, chufa, e vaia de levar

couro e cabello. É mesmo uma especie de surriada de entrudo.

Maldita similhança é esta da maioria do Pero Cão do século XIV com as maiorias

dos Peros Cães do século XIV, com as maiorias dos Pêros cães de outros tempos! A

verdade da comparação é que mata — se a comparação fosse forçada, cahia, como cahem

todas as patranhas, que o governo vende aos mercieiros, aos taes mercieiros do romance,

quotidianamente com o pomposo titulo do Diario do Governo.

Este peccado do nosso academico não tem absolvição. Se fosse uma

murmuraçãosita como a de Rui Vaz na ante sala do bispo, assim por entre os dentes, e com

o resguardo de quem sabe quanto aquellas indiscrições custam, e como se pagam, bagatella,

mas em publico, e raso, em livros, que há de correr mais mãos, e maior número de terras do

que o Diario e durar muito e muito mais que todos os Diarios ... nulla est redemptio!

E depois o 72 é sceptico. Sceptico?! Ainda essa nos faltava! Também não admira —

depois que iniciaram S. João nos augustos mysterios, e que o fizeram pedreiro-livre .... e se

o diz o Diario....!

Mas agora quasi seriamente: esta accusação de scepticismo, que ahi anda mais

safada, que o diploma de litterato, já nos vai cheirando a caturrice e traz consigo idéas de

tal orgulho, que fazem .... que fazem rir: é o termo.

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Que cada qual julgue boa, e só boa a sua crença é doutrina corrente; porém que

atravesse com a espada da critica o que não tem essas, mas sim outras crenças mui diversas,

e que lhe diga — Crê no que eu creio, ou morre, que és sceptico — é de mussulmano mais

legitimo, e chapado que Fuad –Ef-fendy, que em muito boa paz nos deixou sem que em

paga de não crêrmos no alcorão nos chamasse scepticos.

Chame-nos o agiota sceptico, porque não acreditamos na virtude moral da

agiotagem, o despota, porque não crêmos na utilidade e conveniência da oppressão, o

financeiro, porque lhe cuspimos no salvaterio, o padre porque não temos fé no indice

expurgatorio, no beaterio, e na inquisição, e o impio porque despresamos a pseudo-

fortalesa do seu espirito ... pouco nos importa: é o natural despeito do amor proprio, e, o

que é mais, dos interesses offendidos, mas placida, e logicamente não se póde asseverar,

que o scepticismo seja a mola real da escóla de Democrito.

Para rir com tino, e gosto, para rir filosoficamente — porque o outro riso é o dos

parvos — é necessário crêr, e crêr com muita força, e esta mania de chamar scepticos aos

que se riem das loucuras, que vão por esse mundo é de um requinte de vaidade extremo.

O critico official ou quis deixar-se ferir de algum desses sorrisos, ou quer obrigar-

nos a pôr fé nas suas crenças ... quem sabe ...? Talvez nem uma, nem outra cousa:

necessidade de combater pelos seus; força de consoante politica, que faz brancos exercitos

de formigas! E no fim tambem nós seremos scepticos, porque não acreditamos na politica

do Diario, nem na imparcialidade da sua critica litteraria? Fôra cruesa — e muito grande

cruesa comnosco, que ao menos a respeito do Diario temos alguns pontos de crença

incontroversa, e firme ... acreditamos nos talentos, e no brilhante futuro do seu redactor.

Mas onde fica o arco de Sant’Anna? Maldito scepiticismo que nos hia levando pelas

ruas da amargura. Cá estamos outra vez junto ao Arco da Santa, a ouvir conversar a senhora

Anninhas, e a senhora Gertrudinhas a sua conversa de visinhas, mas fallam tão

corriqueiro...sem aquella singeleza de palavras tão sublime porque corresponde a

profundidade do sentimento com que fallava a filha de Manoel de Sousa Coutinho no fr.

Luiz de Sousa! Mas que tem que ver umas visinhas do Arco da Santa, e mulheres do povo

do século 14 com louçanias de senhoras da côrte do século 16, e com os seus requebros, e

primores? Pois olhem que em uma e outra parte estavam stenografos a ouvir, e a escrever

logo logo tudo, que sahiu tal qual lá se passou nos Paços de Almada entre senhores illustres

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e letrados, no Arco de Sant’Anna entre duas visinhas, a mulher do fisico, e a filha do

caldeireiro ... mas condemnar á leitura desta conversação a aristocracia destes tempos ... é

supplicio demasiado cruel. Paciencia: fica o livro para a plebe: os fidalgos do governo não

o lêem ... também pelo que elles lêem....!

Por ultimo vai fallar na polka! Na polka que por ser republicana, e popular é a dança

da associação eleitoral; é uma insistencia politica, que desgosta: lá os jantares de mr.

Pigeon lhe perdoavamos nós — cada um falla do que sabe, e vai regularmente para onde

gosta, e tem de uso. Nós gabamos as comidas do Manoel Hespanhol, e temos um criado

que adora uma tasca da Praça da Figueira. São gostos. Cá pela nossa parte assentamos que a

sciencia culinária do cosinheiro de mr. E Villele não desdiz da gravidade do romance.

Entretanto, e apesar de todos esses defeitos o romance hade ser, e vai sendo lido

com interesse, e agora que o Diario lhe pôz o sello de anti-ministerial já daqui lhe

agouramos segunda edição — e merece-a que é uma das mais lindas composições, que

temos visto apparecer na nossa terra, unica no seu genero, novo farol em estrada também

nova entre nós, e collocado por mão, que já plantou outros de não menos valia.

E esse novo caminho hade ser trilhado. Crêmo-lo de veras. Ao menos nesse ponto

não terão de chamar-nos scepticos.

Nunca as maos doam ao nosso voluntario academico: revolva os seus apontamentos

do Collegio dos Grilos, e venha o segundo volume, e depois outro, e outro, e outro.

Não enfada nunca — Já o sabe ha muito tempo.

6.1.3. Revista Universal Lisbonense — 3 de abril de 1845.7 A novela historica, entitulada Arco de Sant’Anna, chronica portuense; tem sido e é

ainda objecto de accesa batalha. Criticas e defesas tudo está feito e porventura, com

exageração, com paixão. Na questão que a proposito do prologo do livro se levantou, não

ousamos nós a entrar; é matéria cheia de melindres por uma e outra parte. Sabemos o como

n’ella se deve raciocinar, uma vez assentados os factos, de que se hão-de derivar as

consequencias; mas d’esses factos, que uns julgam ver existir de um modo, outros de outro

modo diametralmente opposto, d’esses factos em que é temerario e iniquo o fantasiar, falta-

7 Artigo sem assinatura.

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nos ainda (só fallamos de nós) o necessario conhecimento: aguardamos que o tempo nol-o

traga.

Outra questão é a das allusões politicas de que dizem que o livro está coalhado,

allusões detestaveis, allusões deliciosas, segundo na côr conformam ou discrepam com o

libré de quem as lê. Nós que não temos libré nenhuma, nem já somos — louvado Deus —

militantes da politica, e só pela paz e pelos interesses materiaes e moraes batalhamos,

deixaremos fallar ahi também os desputadores encarniçados: dizemos unicamente que para

o nosso particular gosto, ministerialismo e opposição, nos parecem damnar egualmente o

effeito a escriptos d’este genero, d’esta elevação e d’esta valia.

As nossas questiunculas pequenas, porque pequenas são, e sem poetica nobreza

porque são hodiernas, intercaladas n’esta formosa fabrica de recordações do nosso mundo

velho, que são grandes porque as vemos ao longe, e que são nobres, porque um nobre

talento passou por alli, destoam-nos, aos ouvidos quando mais não seja, como aos olhos do

architecto antiquario destôam os enxertos mesquinhos na frontaria dos Jeronimos: — e dá-

nos pena ver que foi o proprio auctor quem assim andou arrebicando de ornatos postiços e

superfluos o seu monumento, cujo preço e valia elle devia conhecer como toda a gente.

Faz-nos pena porque todos estes enxertos são tão morredoiros, que dentro em cincoenta

annos nem já intelligiveis ficarão, e a obra, em que apparecem, é de uma solidez, de uma

traça e de uma tão prima execução, que ha-de durar tantos seculos quantos se fallar a nossa

lingua. Não é pois tanto por nós como pelos vindoiros, que nos afoitamos a pedir ao auctor

que na promettida segunda parte do seu romance, resista varonilmente a estas velleidades

do humor politico. Quando o tempo nos houver enterrado a nós, aos nossos artigos de

fundo, e aos nossos folhetins, a todas as nossas coisas, nomes e memórias, — quando outra

geração, tiver assentado, a rir, o seu novo mundo de materia e de idéa sobre as ruinas do

nosso, este edificio litterario chamado Arco de Sant’Anna se lhe mostrará necessariamente

desfigurado por uma quantidade de lacunas, que elles já não saberão preencher por mais

que o tentem: e quem sabe? Talvez que, para então, lá a cabo de eras isso mesmo, esses

enygmas e misterios, se venham a tornar um poderoso attractivo e um pasto poetico ás

imaginações?! Talvez! Mas o destino de um livro assim não deveria nunca associar-se a um

talvez.

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O relevante conceito, que devemos fazer do homem, que nos escreveu, brincando,

uma novella que em poucos dias havemos relido inteira, nos deu animo para ainda uma vez

jurarmos verdade em depoimento litterario. Commetteriamos imprudencia n’isto de que nos

hajamos de arrenpender? — Por parte d’elle não o tememos: por parte dos donatos

cabisbaixos, receâmolo e muito. São elles os que tornam impossivel toda a critica sisuda e

bem intencionada. São leigos, rusticos e velhacos: com tudo especulam; com o benedicite e

com o coice do tamanco.

6.1.4. Jornal A Revolução de Setembro - 8 de abril de 18458

É classico ou romantico?

Boa questão! Prende elle o interesse, ou surprehende o entendimento? Arrebata o

espirito pelo grandioso das imagens, exalta o enthusiasmo pelo sublime do heroismo,

alimenta no fundo do coração a melancolia das almas privilegiadas; como Eurico?

Horrorisa como os quadros de Radcliffe, ou espectro em Hamlet? Arranca lagrimas, e

persuade a morrer como Werther; ou faz estalar de riso como o Cinabro de Hoffman? Fere

o vicio com o sarcasmo envenenado de Juvenal, com o amargor de Swift, com a satyra

maliciosa, ás vezes cortesã, de Voltaire, com a ironia ligeira e engraçada de Mery?

Desperta docemente a tristeza ao mesmo passo que a alegria, e interessa pela originalidade,

e a sciencia dos contrastes, pelo conhecimento do coração como Sterne? Ora lêde, e

ajuizae; mas não me pergunteis mais se é clássico ou romantico o Arco de Sanct’Anna.

Cançada das luctas ensangüentadas da convenção, e dos dramas terriveis mas

gloriosos do imperio, a Europa, sequiosa de repouso, leu com suave deleite a elegia pastoril

de Paulo e Virginia. Saciou-se de descanço, sentiu-se de novo a vida de commoções, e

como não poude depara-las n’outra parte, foi bebe-las ao romance. O romance havia de

entroncar-se na raça nova de ideas que nascia com este seculo; e ainda quando se espalhava

nas fisionomias e costumes de outra idade, evocando o espirito dos tempos passados, tinha

de amoldar-se ás necessidades moraes, e a fórma civilisadora do tempo presente; tinha de

ser a historia do homem, como a historia é o romance da humanidade.

8 Artigo assinado por Oliveira Marreca.

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Para os que não são estranhos ás revelações da nossa natureza moral — e quem ha

ahi que inteiramente o possa ser? — é sem duvida que appetecemos a sensação do

desconhecido, e inesperado com empenho igual pelo menos ao com que aspiramos á

fortuna. Eis a origem do romance. Empreza facil não é decerto este genero de composição,

que na altura á que teem subido os progressos do espirito humano, requer fantasia de poeta,

synthese, e analyse, ás vezes, de filosofo; e, já a sciencia do archeologo, se o romance é

historico, já a sciencia da actualidade, se é contemporaneo. Julguem-no por obra superficial

os entendimentos mutilados; os diminutivos da republica das letras que tenham, embora,

por apodo o nome de ficção engenhosa, com que o appellidam; as intelligencias mais

severas consagraram algumas horas á cultura d’este genero: Montesquieu fez o Templo de

Guido; Benjamin Constant, Adolpho; Fievée, o Dote de Suzaninha; Sismondi, Julia Severa,

Chateaubriand não admira: a imaginação é a faculdade predilecta n’este escriptor

extraordinário.

Ao ponto, em que se acha, chegou o romance, como tudo chega — gradualmente.

Heróico, quando idolatrou o maravilhoso e a belleza, e se rodeou de genios, e fadas, nos

tempos da cavallaria. Narrativo, quando aos botes de lança, substituiu, os discursos

estirados. Epistolar, depois que trocou a monotonia eterna d’esse ponto sem actores — o

narrador — pelo apparecimento das personagens, como nas — Amizades perigosas — e na

Julia de Rousseau. Pittoresco (ou dramático?) quando, retrato fiel da vida, imitou pelo

dialogo o matiz dos caracteres, o movimento das figuras, a vivacidade das paixões, o

cambiante das scenas, a rapidez dos sucessos. Perfeito? Ainda não. Então por tombar e

demarcar as raias da sua provincia o seu merito está por definir.

Os que preferis o romance pittoresco mas poético, real mas ideal que Victor Hugo

ideou, dizeime, será Notre Dame de Paris o vosso modelo? Para os que presaes o social, os

Mysterios de Pariz, ou ainda, o Judeu Errante serão o typo do social? Daes a primazia ao

histórico? Aqui estão Walter Scott, e Alfredo de Vigny; os caracteres salientes, as figuras

com ossos e musculos, o desenho mais fresco e menos polido de um; e as linhas tão castas,

tão puras, e tão suaves do outro, porém menos originais; — qual escolheis?

A theoria, a regra suprema, o segredo do romance cifra-se n’uma palavra —

agradar. É como o drama. Regra inconstante, é certo, escrava da opinião, dos tempos, e dos

caprixos, meridiano differente para cada época, para cada paiz, para cada leitor, para o

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mesmo leitor em cada uma das suas idades. Mas se quereis agradar sempre, homens da arte,

não escrevaes para os interesses transitorios, para as verdades transitorias, que as ha

tambem; escrevei para o coração, dirigivos ás paixões eternas que n’elle germinam, e que

em todos os seculos, e em todas as nações são immutaveis como a providencia que alli

dentro as plantou, porque se as poesias do século dourado de Roma logram a mocidade

eterna, é que pintaram o homem, e a nossa naturesa, e debaixo de uma allegoria engenhosa

disfarçaram verdades reveladas a todos os povos.

E o Arco de Sanct’Anna?

Lá vamos chegando. É no porto. Reina D. Pedro crú. É senhor temporal, e espiritual

do burgo do bispo D. Egidio (se a chronica lhe acertou com o nome). E este bispo

esquecido da sua esposa em Christo gosta das mulheres casadas, e das solteiras também.

Anninhas, uma rapariga que mora ao Arco de Sanct’Anna, e tem ausente o marido, é

requestada, de ordem do prelado, por Pero-Cão, mordomo ostensivo, e mercúrio secreto de

sua reverendissima. Resiste, e como resiste, n’uma noute é raptada. Uma visinha e amiga

sua intima, ao levantar-se na manhã seguinte, descobre o rapto, e atinando com a origem

d’elle, faz amotinar o povo. O povo amotinado corre em tumulto aos paços episcopaes,

vociferando palavras de indignação. O bispo paramentado para sair na procissão de S.

Marcos, apresenta-se ao tropel dos populares com aspecto composto e impertubavel. Estes

tutubem. Mas depois de um torpor momentaneo, renasce mais tremenda a sua irritação.

Apparece então Paio Guterres, um clerigo muito bem quisto, e respeitado, e á sua voz

persuasiva é dissipado o tumulto.

Comtudo o rapto não ficará por vingar, porque se o grande reparador não se mostra

ainda, já se adivinha. Elrei está já nas visinhanças do Porto: vem punir o attentado do bispo

por aviso que lhe deram. Levou-lho a instigações da amiga de Anninhas, um D. Vasco,

estudante e .... (afilhado?) do bispo? O segundo volume o dirá.

Eis a trama do romance, cujo fundamento é um passo da nossa história.

Aos que teem noticia deste passo historico não ha para que lh’o contemos. Aos que

a não teem, para que lhes aguaremos com a narração o interesse da espectativa? Mas para

nós que o sabemos, ainda é arriscado, pela leitura sómente deste primeiro volume,

bruxolcar a intenção moral do auctor, se não acceitarmos o que o prefacio indica.

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Nem a acceitamos, nem a repudiamos; e destacando-nos do prologo,

desentendendo-nos da intenção que elle manifesta, tomando este primeiro volume como se

fôra um pensamento completo, e um quadro acabado, vemos erguer-se nelle dois grandes

vultos — o bispo, e o povo — e com esses vultos surgirem duas ideas — o abuso do poder,

e a reacção popular. — Á roda destes dois vultos, e destas duas idéas se aggregam outros.

O bispo, grande senhor e perdulario, cerca-se de frades ociosos e glutões. O prelado

prepotente e devasso tem por ministro de seu despotismo, e confidente de seus prazeres a

Pero-Cão. O povo opprimido, mas restribando, porque é generoso e forte, levanta o seu

braço para defender uma mulher debil, e desamparada; e de caminho, como é rasão, faz seu

protesto armado, berrado, e vociferado contra as vexações que soffre e os tributos que paga.

Robusto de lingua e membros, é fraco de cabeça; precisa de encostar-se a duas moletas,

Martin Rodrigues, e Gilianes, seus magistrados; dois Mazaniellos grutescos, desenhados ao

natural com excessivo talento, e que dão ares de familia daquella esguia, cadaverica,

escanifrada, e mui patriotica figura de Claus Hammerlein, presidente da corporação dos

ferreiros, em Quintino Quiward. Mas o povo titubeando diante do porte nobre e altivo do

bispo, não desmaia de um susto ridiculo — fôra engano cuida-lo — obedece, involuntario,

ao prestigio de um sentimento moral, acata o symbolo do poder representado no bispo.

Parece pequeno o povo, e o bispo esse é grande: fa-lo grande apesar do perigo, e da

consciencia do seu crime o orgulho da auctoridade offendida, que é um monstro

impenetravel ao remorso. Esta lucta moral do bispo com o povo, do orgulho de um com o

sentimento da justiça que anima o outro, da hesitação momentanea do ultimo com o

despertar terrivel da sua colera, é bella e descripta com o vigor genial, e o rasgo do pincel

dos mais eminentes dramatistas. Raro se encontrará scena de tão extremada perfeição nos

mais celebres romances; e nem até lhe faltou para coroa-la com um lance admiravel a

intervenção providencial de Payo Guterres, [...] de paz assomando no mais revolto da

tormenta popular.

E depois vede com que talento nos pinta o amor da mulher, o leviano do estudante,

a voracidade do rapaz, o anafado e pachorrento daquelles bons conegos, o susto tão comico

de fr. João, o susto tão profundo e caracteristico de Pero-Cão, a rapacidade do almudeiro, a

ingenuidade da boa tia Briolanja Gomes, e como naquella sua deschahida tão sincera para

fazer rir ás gargalhadas um Heraclito, transparace a paixão eterna da mulher, que não perde,

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mesmo no occaso da idade, a esperança de ser amada! E no cabo de figuras grutescas, de

caracteres simples, do retrato de preceito, do vulto magestoso do bispo para remate

apparece uma figura sinistra — a bruxa — sinistra, agoureira, maldicta, infernal como as

feiticeiras de Macbeth!

Talvez na téla variada de tantas figuras correu o pincel do auctor com subeja pressa:

mas quem sabe se o que n’este volume parecem esboços incompletos, não tomarão corpo e

serão vestidos no segundo? Se as lacunas que se affiguram aqui, não serão cheias mais

tarde? Se até as que julgamos por manchas, ainda que muito leves, não hão de ser antes

sombras destinadas a dar realce á luz deste quadro? Esperemos pelo outro volume para que

então transpire melhor a intenção litteraria do romance, para que vejam os architectonicos

se hão de ter que excommungar o romancista como protestante, e os romanticos se

desenganem, como já hoje o hão de estar, que o stylo, o dialogo, e o drama deste livro se

pertencem ao classico, pelo que são para imitar como modelos; pertencem ao romantico,

pelo que teem de progressivo e creador.

Quanto ás crenças do auctor: o auctor crê porque é poeta. Crê nas grandezas do

povo, porque é homem; e tambem crê nas suas miserias, porque é filosofo; não lhas

dissimula; se elle fora cortesão! ... Ri-se como Erasmo, quando se ha de rir; e é grave como

Tacito quando lhe convém ser grave. Mostra o dedo da Providencia no caracter de Payo

Guterres, e glorifica o povo na virtude do homem popular.

Pelo que nos toca: juiz muito incompetente, e muito humilde; critico antes das

bellezas que dos defeitos, o maior que encontramos nesta obra, é o não no’la ter dado o

auctor completa na primeira estampa. E se elle, para prosseguir, carecesse que o

afoutassemos, repetir-lhe-hiamos as palavras de um escriptor genial que terá lido: as

producções anteriores do homem de genio serão sempre preferidas ás mais recentes, para

que se fique entendendo que elle desce em ves de subir.

6.1.5. Revista Universal Lisbonense — 3 de julho de 18459

9 Este artigo é dividido em duas partes. Aprimeira não é assinada. Gomes de Amorim declara que parece ser da autoria de Garrett. A segunda parte do artigo é assinado por F. L. de A. V. da F. Identificado por Gomes de Amorim como Francisco Lopes de Azevedo Velho da Fonseca — 1º visconde de Azevedo. Ver: (AMORIM, 1884, p.117).

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A imprensa tinha ha muito discutido, larga senão profundamente, ésta publicação

recente, e nova entre nós no seu genero. Ainda o 2º vol. que deve trazer o complemento da

obra, não appareceu, e ja a discussão se quer reanimar.

Vimos com pezar e tristeza na Revista Academica da semana passada, um

artiguinho de pouca extenção e menos fundamento em que, começando por nos dizer que a

discussão andára desvairada porque deixára o fundo pela fórma, e antepozera a questão

d’arte á questão social, continúa e conclue sem tractar nem uma nem outra das taes

questões, asseverando-nos por fim duas coisas que nós, francamente e por muito que nos

custe, temos obrigação de declarar que são falsas.

Uma é — que o facto em que se funda o romance é mera ficção da phantazia do

poeta:

Outra — que vistas as tendencias do seculo não ha que ter receio das tentativas do

clero.

A auctoridade de Duarte Nunes em que se estriba a primeira d’estas asserções, é das

mais fracas e suspeitas da nossa história. Com a España sagrada, e com argumentos e

auctoridades de outra polpa lh’o mostraremos quando queira disputar. O tam laconico dizer

basta por ora ésta resposta.

Mais curta é ainda, porèm mais terminante, a resposta que damos á segunda.

Remettemos o A. do artigo á leitura dos jornaes francezes do mez passado, signanter á

sessão da camara dos deputados de França de 2 de maio último.

E por emquanto fiquemos aqui.

Há porém no mesmo artigo um periodo que precisa correcção: não pertendemos

dar-lh’a, estamos certos que lh’a dará o público; mas desejariamos antes que a corrigisse a

redacção d’aquelle esperançoso jornal, como decerto lhe fará muita honra.

Eis aqui o periodo.

“O A. do Arco de Sant’Anna julgou que ... devia ir resolver as chronicas á cata de

um facto escandaloso ... atirar com elle ás turbas ... e dizer-lhes: Ahi tendes o que é o clero,

odiai toda essa classe ...”

Estas coisas não se escrevem, accusações d’esta não se fazem — desde o P. Alvito

Buella de saudosa memoria. E nós conhecemos tanto alguns dos redactores da Revista

Academica, sabemos tanto que elles são incapazes do vilisimo officio de calumniador, que

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estamos certos foram illudidos por quem lhes mandou o artiguinho, e não repararam no

alcance d’estas descomedidas palavras.

No artigo que hoje inserimos na REVISTA, com muita decencia e boa-fe se allude a

uma accusação parecida com ésta — accusação muito menos grosseira, posto que não mais

fundada.

O A. d’este elegante e primoroso artigo, que nós publicâmos com muita satisfação,

mais refere do que faz sua a dita accusação: e n’isso mostra sua boa-fe e delicadeza. Diz-se

que o A. do Arco de Sant’Anna pertende oppor-se á reacção religiosa, do seculo presente e

fazer com que voltemos ao philosophismo do seculo passado. A asserção parece-nos de

todo infundada.

O A. do romance bem claro e positivo se expressa sôbre essa reacção religiosa e

moral que elle tanto applaude, tanto approva, e, sem receio de muito aventurar, cremos

podêr dizer que bastante ajudou entre nós. Ou nos erram muito bem fundadas conjecturas,

ou a pessoa que suppomos ser, pelo menos, editor do Arco de Sant’Anna é a mesma que

em outras obras bem conhecidas levantou o pendão d’essa reacção, que a dirigiu, que a

excitou, que fez mudar os que já estavam n’outro caminho, que instigou a começar n’elle os

que ainda não tinham começado. E se a historia litteraria d’este seculo em Portugal

forçosamente tem de confessar (ainda que a escrevam os mais invejosos inimigos) que a

reacção, que a revolução moral da nossa litteratura foi capitaneada pelo A. de Camões, de

Catão, de Adozinda, do Alfageme, do Gil Vicente, de Fr. Luiz de Sousa, do Tractado da

Educação, do Portugal na Balança da Europa e de tantas obras em tantos e tão diversos

generos — a critica contemporanea tambem não poderá, sem injustiça, accusar o A. ou pelo

menos o editor do Arco de Sant’Anna de querer obstar a essa reacção.

Bem claro, repetimos, o diz elle no prologo: essa reacção, louva-a, que-la, ajuda-a

com todos seus desejos e esforços; mas não quer que a torçam os interesseiros e

materialistas do seculo em seu damnado proveito, não quer que os fanaticos e os hypocritas

a grangeiem em sua ganancia, que é ruína da relegião, da moral e da sociedade. Eis aqui o

que elle não quer. Contra essa reacção, cuja bandeira elle levantou em Portugal — e talvez

na Peninsula toda, e que depois foi seguida por tam honrados e brilhantes espiritos, elle não

levanta agora nova e opposta bandeira; não, certo: levanta-se a infileirar-se na denodada

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phalange em que militam os Montolosiers, os Chateaubriands mesmo, os Delamartines, os

Eugenios Sue.

Pouco sabe, ou muito finge ignorar do movimento social e litterario da Europa

quem não ve o proprio A. das Meditações Poéticas e da Viagem ao Oriente, combater, em

nome do Catholicismo, os falsos christãos e os falsos sacerdotes, que querem hastear a Cruz

do Redemptor como vehiculo do despotismo, do obscurantismo e da intolerancia, quando

elle poeta, elle e os seus predecessores, e os seus seguidores, (apostolos e prophetas do

seculo) a tinham feito amar e adorar dos povos, por que lh’a mostraram abraçada com a

liberdade, porque viam pregada n’ella, com os braços abertos, a VERDADE ETERNA o

Verbo increado da Salvação.

A memoravel e ja citada sessão de maio na camara dos deputados de França, deve

tirar todas as dúvidas aos que não véem ainda bem claro a presente conspiração da

oligarchia ecclesiastica, contra as liberdades e contra a civilisação dos povos. Não é so o

eloqüente e ponderado discurso de Mr. Thiers, são as tristes respostas de Mr. Berrier, são as

confissões e promessas do ministerio francez, as que provam a existencia, a extenção e

amplissimas tenções d’essa consiração.

Ja disseram por ahi gentes que em Portugal não havia perigo nem receio d’esta

conspiração. Ignorâmos em que se fundam os que tal dizem; desconhecemos o poderozo

isolador que esses estadistas tenham descuberto para nos não chegar o impulso. Ignoramo-

lo tanto mais, quanto vemos na nossa terra menos geral a illustração, menos conhecida a

religião santa de que se abusa, menos intendido o Evangelho, a lei da liberdade e da

igualdade, em cujo nome todavia por tantos seculos nos imposeran o despotismo.

E receia-se em França o que em Portugal não mette medo!

Para nós é claro que o A. do “Arco de Sant’Anna”, tam bom christão como bom

patriota, o que quer é que a reacção religiosa não seja sophismada. Tambem para nós é

claro que elle não teve a louca pertenção de suppor que com um romancinho se fazem ou

desfazem reacções; mas que sabe, conhece e crê que a reacção moral e religiosa do

principio d’este seculo foi em grande parte trazida pela poesia e pela litteratura, que a não

trouxeram em nenhuma parte, e em Portugal menos que em parte alguma, nem as

prégações dos padres, nem os seus escriptos — e quase que tinhamos vontade de dizer, nem

os seus exemplos.

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Não quer, não quer decerto — nós o jurâmos por elle — não quer o A. do “Arco de

Sant’Anna” que voltemos ao Philosophismo que tudo derrancou. Como o pode querer elle,

elle que o denunciou, elle que o escarnece, que o accusa que o fastiga, elle primeiro homem

liberal de Portugal que ousou fazê-lo, e conservar-se liberal, e protestar que a liberdade, que

a san philosophia, que a verdadeira sciencia e a verdadeira política o renegavam e

expulsavam?

Quem ousaria em Portugal voltar ás insensatas e ridiculas blasphemias do

philosophismo encyclopedico depois que o fulminou para sempre na tribuna um deputado

liberal, tantas vezes proscripto por liberal, perseguido por liberal, o Sr. Almeida Garrett?

Não o crê o elegante e erudito escriptor do seguinte artigo: não o crê, e declara que

o não crê. Tampouco o crê o imprudente escriptor d’ess’outro em que fallâmos e que tanto

excathedra, em tampoucas palavras julgou uma obra d’aquellas.

Est’outro artigo, que inserimos, responde a si mesmo e responde ao jornal de

Coimbra. Ficâmos que ésta será a opinião de quantos o lerem como elle merece por que é

modelo de stylo, de elegancia e de cortezia: é critica como a sabem fazer pessoas de bem

quando para a honrarem e se honrarem a si, tomam a penna.

****

O “Arco de Sancta Anna” é um romance, que ultimamente por ahi tem dado muito

que fallar. Uns dizem, que o livro fôra escripto de proposito para obstar a completar-se no

seculo actual, e nos seguintes, a reacção a favor da religião e da crença, que tanto se ia

adiantando contra os principios de immoralidade e corrupção, que o seculo precedente n’os

havia legado; outros acham que o romance é uma coisa a modo de folhetim de periodico de

opposição, feito de caso pensado e a sangue-frio, para preparar a opinião eleitoral, e dar

com todos os votos de malhão sobre o descocado estudante Vasco, ou em quem com elle se

pareça: estes vêem alli uma satira allegorica contra imaginarias notabilidades da presente

epocha; aquelles teiman, que, á imitação dos habeis romancistas da Europa, o auctor do

“Arco de Sancta Anna” quiz formar um quadro, onde n’os fizesse ver as idèas e os

costumes da nossa idade média junctos a um facto notavel na historia d’esse tempo: e

tambem não falta quem se persuada, gente simples, que foi realmente um manuscripto

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achado entre varios calhamaços que parávam na deserta livraria do convento dos Grillos,

porventura composto pelo Padre Mestre Fr. João d’Arrifana, tanto ao vivo acham elles

pintando o retrato do reverendo, que sómente por elle proprio têem por possivel que fôsse

feito!

No meio d’esta prodigiosa variedade, e incerteza de opiniões, todos concordam em

um ponto essencial para o merecimento litterario do romance, e é que o seu estylo possue

toda a belleza e propriedade que se requerem n’um similhante genero de composições; até

quem o pensaria, até a mesma seita dos Piégas, avèssa por força d’instincto a uma

producção de merecimento tão subido, ficou de queixo cahido e bôca á banda, quando viu

resurgir a orthoxia litteraria tão formosa por entre os montões do entulho heretico, em que a

tal pieguice a havia sepultado! A critica, essa caprichosa sultana da litteratura, que com

rasão aborrecida e enfastiada dos Piégas, ha tanto tempo dormia lethargico somno, tambem

acordou agora muito esperta, e vividoira; o “Arco de Santa Anna” foi agua-ardente de cem

graus, com que a senhora critica levou pelas meninas dos seus olhos, pestanejou,

pestanejou, e afinal saltou sobre o “Arco” com tal frescura e segurança, que decerto elle

tem, como os das aguas-livres, algum passeio por cima construido fortemente para ahi se

poder andar com toda a soltura e desembaraço. O romance tem sem duvida comsigo

alguma attracção talismanica: uns o louvam, outros o censuram, mas todos o querem ler; e

também nós humilde, e pequena família de insectos imperceptiveis no paiz das bellas lettras

tivemos appetite de ler o “Arco de Sancta Anna” e, por não ficar em mingua com a moda,

de dizer alguma coisa a respeito d’este já celebre monumento da nossa litteratura nacional:

ahi vai pois sem mais preambulos o que n’os apareceu, principiando pelo prologo.

Diz o publicador do romance que, o motivo porque este sai á luz do dia, é para

neutralisar o mau effeito que as obras de Walter Scott, Chateaubriand, Lamartine, e de

muitos outros escriptores illustres iam promovendo no espirito da geração actual. Saudosas

recordações, compaixão, amor mesmo pelos monumentos desamparados, e por alguns hoje

abandonadas, instituições da idade media iam renascendo na Europa; á campina sêcca e

desolada do arido scepticismo, em que o século 18 se mirrou desesperado, succediam os

prados viçosos e amenos da crença e sentimentalismo religioso, regados e animados pelo

enthusiasmo, e pelos esforços litterarios de uma mocidade brilhante, cheia de vida, de

desejos, e de esperanças! Já não era do grande tom ser incredulo; já os pequenos auctores

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não precisavam de escrever por força alguma contra o Christianismo para poderem alcançar

a graça, mais que efficaz, de um benevolo sorriso, e curto mas lisonjeiro louvor da parte

dos grandes philosophos e colossaes litteratos: a religião tornava a ser moda, os costumes

doces e puros, e com elles a felicidade social, ganhavam terreno. Tudo isto diz, e affirma o

author do prologo, quando a paginas 9 se explica d’este modo: “Ganhava a tolerancia,

ganhava a moral, ganhava a religião com ella; porque em verdade o philosophismo do

seculo passado tinha derrancado tudo á força de corrigir e apperfeiçoar”. Ora, se pela

confissão do proprio auctor do prologo o philosophismo do seculo anterior tudo derrancou,

porque n’os vai logo depois o mesmo prologo dizer a paginas 11 que esse seculo tem

direito para n’os argüir de insconstantes e ingratos, como desacreditadores, deshonradores,

sophismadores, e annuladores da sua missão?! Como?! Porventura quem derranca tudo terá

direito para queixar-se contra aquelles que procuram salvar alguns restos puros e

incolumes, que por milagre escapassem do derrancamento universal?! Teremos nós de fazer

ainda o processo monstro a Noé porque poz em coberta enxuta as reliquias do genero

humano?! Isto é na verdade incomprehensivel! Não negâmos, antes confessâmos, que o

século 18 derrocou completamente a oligarchia ecclesiastica que nos tempos da idade

media tanto mal causara ao verdadeiro espirito religiosos, o qual deve proteger, e jamais

escravisar os interesses e a liberdade da sociedade humana; mas que substituição se deu

então a essa com tanta justiça derrocada oligarchia? O atheismo, o scepticismo, a

desmoralisação, isto é, o derrancamento de tudo. Tambem o seculo 18 destruiu uma por

uma, moral e materialmente, as loucas pertenções do feudalismo brutal, que pesava

terrivelmente sobre a humanidade opressa, e a invilecia degradando-a do seu sublime

character; mas por quem foi substituido o elemento governativo, embora monstruoso, que o

feudalismo offerecia? Primeiro pelo despotismo dos reis, depois pela successão rapida e

interminavel de revoluções desnecessarias e medonhas, pela habilidade especuladora de

desalmados agiotas, pela dictadura sanguinaria e barbara de obscuros tribunos, e sôbre tudo

pelo egoismo desmoralisador, queremos dizer: pelo derrancamento.

Foi para estabelecer uma linha de separação entre este fatal derrancamento e o que

ainda existia puro na sociedade, que os escriptores mencionados pelo auctor do prologo, se

reuniram em um unico e magestoso pensamento, qual foi o de restaurar do abatimento em

que jazia a velha crença religiosa sempre boa, e sempre consoladôra. Esses homens

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inspirados conheceram, que o philosophismo encetára uma obra justa no seu principio,

vantajosa nas suas consequencias, como era a destruição da oligarchia clerical e do

feudalismo mixto; mas viram tambem, que o mesmo philosophismo por incognito impulso

de seu philosophico destino, querendo exclusivamente empregar o elemento sceptico, tudo

confundiu e derrancou, substituindo um cahos a outro cahos, e ás folias da estupidez os

desvarios da intelligencia. Acharam então que sómente na religião estava o elemento

verdadeiro e proprio para dar firmeza e duração a uma nova ordem de coisas, que sendo

visivelmente boa e civilisadora, comtudo acabava sempre pela confusão e derrancamento:

levantaram-se nos diversos pontos da Europa essas vozes poderosas, e cheias de persuação

e encanto, que fizeram accordar do mais desastroso adormecimento muitas intelligencias

superiores, que por não reflectirem um pouco, se deixavam arrastar, como cegas, no meio

do quasi geral delirio. Abriram finalmente os olhos, fixaram-n’os sôbre o mundo, e sôbre

ellas mesmas, e comprehenderam quanto convinha pôr termo a tão desatinada carreira;

abraçaram-se com a religião, como o unico centro natural e capaz de sustentar os homens

nas suas tentativas de razoavel civilisação, e bem intendido progresso. Estes grandes genios

foram intendidos e seguidos, porque na verdade é preciso um enthusiasmo extraordinario

para não perceber que o scepticismo traz forçosamente o egoismo comsigo, e sendo o

egoismo na sociedade humana por sua natureza centrifugo, não póde servir de centro á

existencia de corpo algum social. D’esta convicção, que entrou no espirito de grande parte

dos homens pensadores, nasceu a reacção religiosa que desde os começos do seculo actual

se tem felizmente sentido.

Não pertendemos assegurar que entre os individuos de que se compoem a classe

ecclesiastica não haja quem, vendo succeder ao orgulho sceptico a benevolencia religiosa,

nutra esperanças de tornar outra vez a empoleirar-se sobre a liberdade espiritual, e bens

temporaes dos fieis; estamos persuadidos de que é isso muito possivel, não só porque ha

muito padre sceptico, mas até porque em trôco de um Pedro Celestino, que resigna o

pontificado, apparecem meia duzia de Bonifacios que por elle estão morrendo! mas por

ventura será mister que, por medo de ser cavalgadas por algum padre, n’os lancemos de

novo nos braços do philosophismo, que tudo derrancou? Não haverá um meio termo entre

cavalgado ou derrancado? Supponhamos que o amigo padre, vindo a modo de quem não

quer a cousa, escondido por detraz de Walter Scott, Chateaubriand, e Lamartine, firma de

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repente os pés no chão com uma força, que faz tremer a terra, inteiriça-se e aperta os

dentes, como um indemoninhado, e dando um pulo diabolico tracta de se escarranchar

sobre nossos cachaços livres, e ha muito tempo desacostumados de similhantes cargas

talares: não teremos o recurso de o sacudir por cima de um tojal, ou dentro de um atoleiro,

antes que corrermos com elle a um precipicio infallivel, em que todos devemos acabar,

como fez Sansão, e como ia fazendo o cavallo de D. Fuas Roupinho nos pincaros da

Pederneira?! Pois os governos não terão força bastante para conter o clero dentro dos

limites, que lhes estão marcados? É uma verdade incontestavel que sem ministros não póde

existir a religião, mas porque estes ministros são susceptiveis de conspirar, passemos sem

elles, deixemos de gozar os effeitos civilisadores e beneficos que n’os promettia a reacção

romantico-religiosa, e voltemos sem demora ao philosophismo, que tudo derrancou!

Escrevam-se romances que desfaçam depressa as saudaveis impressões, que com trabalho e

vagar iam fazendo o “Mosteiro”, o “Abbade” os “Puritanos de Escocia”, os “Martyres”, a

“Viagem ao Oriente” etc? Somos sinceros, e por isso declaramos francamente que n’os

desagrada este pensamento. Se o clero urde uma vasta conspiração com o fim de tornar aos

tempos em que o Arcebispo de Braga D. Lourenço andava na guerra dando catanada de

criar bicho nos seismaticos dos castelhanos, pedimos a quem tiver d’isso noticia, que revele

os nomes dos chefes e dos instrumentos, que se empregam em tão criminosa como

anachronica pertensão; é um dever sagrado, de que ninguem se póde dispensar sem

deshonra; cem annos de continuados esforços da civilisação contra a ignorancia valem bem

a pena de que não haja quem hesite um momento em declarar á face do mundo inteiro, o

que sabe de tenebrosas machinações tramadas por clerigos traidores á pátria, assim como ao

seu proprio instituto; porém que se escreva um romance para tornar suspeita e aborrecida

uma classe de homens, de cuja existencia a religião do paiz não póde prescindir e que se

inventem factos imaginarios, todos elles abominaveis, para transtornar as cabeças da

multidão, que lê e não reflecte, é isto o que n’os parece dar á justiça de menos o que dá

demais ao perigo: é o mesmo que faria um valente espadachim o qual para vingar-se do seu

offensor, em uma sala de companhia, apagasse primeiro as luzes, e a miudasse depois as

cutiladas á direita e á esquerda. Quantos innocentes cahiriam victimas d’esta vingança de

amouco?

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Ainda bem que o pensamento annunciado pelo auctor do prologo como presidindo á

publicação do “Arco de Sancta Anna”, não produz no romance o effeito que o mesmo

auctor promette: seu proprio coração o trahiu; cuidou que hia por uma estrada, e foi por

outra. Passemos já a esmiuçar este phenomeno notavel no romance, onde tudo é bello, e

deixemos o prologo, que n’os afflige e violenta, por isso que o auctor o escreveu talvez em

occasião que se achava de mau humor, e se lhe figurou descobrir no romance um

pensamento que lá realmente não existe; examinemos. Um bispo soberbo e vicioso,

abusando hypocritamente da sua dignidade sagrada, sómente d’ella se serve para conter o

povo em respeito, em quanto o vai continuamente opprimindo com toda a qualidade de

vexações e tyrannias. Os foros e direitos feudaes, que seus vassalos lhe pagam, são

cobrados com o maior desavergonhamento e crueldade; a insolencia do maldicto Pero-Cão,

almudeiro do prelado, não guarda pêso nem medida; e como se não bastara extrahir aos

pobres homens do povo o derradeiro ceitil das algibeiras, la vai Pero-Cão á frente de uma

cafila de brejeiros, que se acoitam no paço episcopal, almudar-lhes tambem as mulheres e

as filhas, que tiveram a desgraça de excitar a muito respeitavel concupiscência de S.illma. É

com um d’estes factos altamente escandalosos que o “Arco de Sancta Anna” nos entretem,

tomando-o por seu assumpto principal. Havia partido para Lisboa cuidar de certos arranjos

domesticos um ourives do Porto, cazado de pouco tempo com uma rapariga de vinte annos,

chamada Anna, tão virtuosa como bella, que fazia a felicidade do bom ourives, tendo-lhe ja

dado um filhinho por premicia da ternura conjugal. Durante a ausencia do marido o bispo

por ocaso bispou as feições graviosas da amavel Anninha, e no mesmo instante se ateou em

S. Illmª. a chamma da concupiscencia, que para estar sempre accesa, segundo conta a

história , uma braza lhe bastava! Desde então começou o bispo de buscar todos os modos

possiveis com que satisfizesse a infame paixão que o atormentava; Pero-Cão principiou

logo as suas visitas ao arco de Sancta Anna. Promessas, ameaças, inganos, terrores, tudo foi

posto em jogo para obrigar a virtuosa Anninha a sujeitar-se ao energico appetite

ecclesiastico de S.illmª.; porem tudo inultimente, porque a joven espoza, fiel aos seus

deveres, rejeitou com altivez e desabrimento, as infames offertas que se lhe faziam, e ainda

que não deixava de temer a fulminante vingança do bispo desprezado, nem assim mesmo

succumbiu á malvada vontade d’elle.

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Eis-aqui o que nos conta o romance em um dialogo da meiga Anninha com a sua

joven amiga e vizinha Gertrudes. Este dialogo modelo de simplicidade e de pureza, tanto ao

natural retrata a ingenua linguagem e credula conversação de duas raparigas do povo, que

não temos pejo de confessar que n’este genero ainda não lemos cousa portugueza de

merecimento maior. Pero-Cão faz uma das suas usadas avançadas nocturnas; a innocente

Anninha vê-se arrebatada para os paços espiscopaes; e é no dia seguinte á noite do rapto

que o padre mestre Fr. João de Arrifana, intimo amigo e valido do bispo, subia pelas sete

horas da manhan as sonóras escadas do paço. A pintura do frade e a sua subida pelas

escadas acima, é uma das mais lindas coisas que havemos lido na nossa vida; aquelle

sorriso malicioso brincando por entre as roscas das bochechas gordas e córadas; aquelle

impulso dado á formidável barriga logo ao trepar o primeiro degrau... parece até que se está

ouvindo o surdo bater do cordão de esparto pelas pregas do hirto borel do habito: quem há

ahi, que não ficasse conhecendo o padre mestre Fr. João da Arrifana, que não assistisse com

elle em várias patuscadas por occasião do peditorio, e que lhe não ouvisse as retumbantes

gargalhadas, que dava, e chascosas historietas, que contava para divertir os bemfeitores?

Dois traços dados em um retrato com este de Fr. João, bastam para classificar o pintor de

primeira ordem. Pois a beata Briolanja Gomes! O brio, coragem e desfastio escholastico do

bravo e ingenuo estudante Vasco! A paternidade, e pachorra clássica de Martim Rodrigues;

e de Gil Eannes seu companheiro! É uma galeria de paineis tão primorosos, tão bem

acabados, que não se sabe qual escolher por pena dos que ficam! Não nos lembrâmos de ter

rido tanto, e com tamanha vontade, como quando vimos os dois Edís portuenses n’aquella

falsa, mas galantissima posição, entre o bispo que os repelia e o povo que os empurrava; e

seis linhas foram sufficientes para completar uma descripção tão perfeita, que outros em um

livro inteiro não conseguiriam esboçar: a isto é que nós chamamos e sempre chamaremos

mão de mestre, e venham cá os Piegas contradizer-nos!

Quanto ao estillo contentar-nos-hemes de fazer observar a flexibilidade admiravel

com que o auctor sabe amoldal-o a todas as situações: rapido e desigual, no dialogo

tumultuoso do povo amotinado; ligeiro e simples, quanto estão conversando as duas jovens

amigas e vizinhas do arco de Sancta-Anna; grave e ronceiro, nos pansudos discursos de

Martim Rodrigues; aspero e incisivo; no excommungado de Pero-Cão; estafador, no

fanhoso mas agudo falsete da venerável Briolanja Gomes; fluido e variado, nas descripções

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e narrações. N’uma palavra o auctor vive com as suas personagens, conversa com elllas, e,

sem que nada lhe escape, nos vem depois contar quanto viu e ouviu, com tal exactidão e

habilidade que nós as ficâmos conhecendo, como se lá tambem houvessemos estado. Pelo

que toca aos characteres diremos afoutamente, que desde a primeira pagina do livro até a

ultima nenhum encontrámos que se dementisse; todos são o que devem ser e se conservam

como convem: é verdade, que se falla na polka, e em Mr. Pigeon; é verdade, que a respeito

do perro de Pero-Cão se affirma ser homem quasi parlamentar; porém estas allusões leves e

abstratas, que os leitores podem applicar assim ao Sobrecú de Cromwel como ao senado de

Mario, não desconsideram por algum modo o “Arco de Sant”Anna”, pelo contrario,

augmentam-lhe o interesse e formosura, foi um prazer mais, que elle nos procurou. D’estas

allusões usou em alguns de seus romances o immortal Walter Scott, e já primeiro as tinha

usado tambem nos seus o ingraçado Fielding. Tractemos de resumir porque já vamos sendo

mais longos do que desejávamos: o “Arco de Sant’Anna”, é um livro bem delineado e

optimamente escripto. Ha um bispo orgulhoso e libertino, que pertende cobrir com o

respeito das vestes pontificaes a pratica das suas infames accões; o povo opprimido com as

mais inauditas violencias, amotina-se e pede alivio para tamanha oppressão; um rei severo,

porém justo e amigo do povo, vai entrar em scena para punir o criminoso mitrado, que se

acha com o direitso de sobejo a um exemplar castigo: eis a materia que compõe o primeiro

volume do “Arco de Sant’Anna”; em tudo isto nada ha que não mereça approvação dos

homens de bem, e de crença religiosa e christan. Não teriamos por tanto razão quando

dissémos, que o auctor do prologo viu no romance um pensamento que alli realmente não

existe ?! Porventura o descredito dos bispos corrompidos não dá cada vez mais realce ás

qualidades verdadeiramente evangelicas dos prelados virtuosos?! Dissémos, que o coração

trahiu o auctor, porque, se assim não fóra, não houvera elle apresentado em frente do bispo

o bello contraste do venerando arcediago de Oliveira, o responsavel Paio Guterres! Parece-

nos estar ouvindo Chateaubriand a descrever Belisario no meio da corrupção do baixo-

imperio: “C’etait um de ces hommes qui paraissaient de loin á loin dans le jours du vice

pour interromre le droit de prescription contre la vertu”. Este character de Paio Guterres é

de uma perfeição consoladora; pena é que o auctor lhe não concedesse maior

desinvolvimento; apellamos para o segundo volume, em que não deixamos de ter muito

firmes esperanças. Não é possível que a intelligencia superior e generosa, que soube

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imaginar um Paio Guterres, escrevesse de proposito para desconceituar o clero geralmente,

e o tornar suspeito e odioso; o bispo, esse padre desmoralisado e preverso, que roubou a um

marido honrado a esposa amavel e fiel, delicias e felicidade da sua vida, na verdade

estamos fumegando por vêl-o, sem perda de tempo deposto com infamia da cadeira que

deshonra; porém confessâmos sinceramente que não queremos depois d’isso ficar sem

bispo nenhum; desejâmos que venha outro bispo, e que este necessariamente seja Paio

Guterres, o arcediago de Oliveira.

6.1.6. Revista Universal Lisbonense — 7 de novembro de 1850.10

Publica-se o segundo volume deste romance ha tanto tempo esperado com

impaciencia.

Subscreve-se em Lisboa, em casa dos Srs. Viuva Bertrand e Filhos, aos Martyres;

no Porto, em casa do Sr. Moré, em Coimbra, em casa do Sr. J. A. Orcel.

Póde-se dizer desta obra que o auctor, na primeira parte della, pouco mais fez do

que desenhar com bastante correcção, e collorir com mais propriedade ainda, o fundo

historico do seu quadro, povoal-o de muitas figuras, umas sérias, outras burlescas, mas

todas interessanes: começava a pôl-as em movimento, quando de repente parou, e nos

deixou naquella estalagem ou taberna de Gaia, em frente da cidade invicta, com o povo

amotinado ao norte do Doiro, o bispo e a sua procissão do lado do sul cantando

tranquilamente as ladainhas.

Cinco annos são passados sem sabermos o que foi feito da bella Anninhas, da sua

amiga Gertrudes, de Vasco, e da feia bruxa que o está fascinando.

Se o bispo tornou para o paço, se a bernarda dos caldeireiros gorou ou foi por

deante, e conseguiu acclamar o — Senatus Populusque Portucallensis — sobre as ruinas do

throno episcopal; se a seraphica pansa de Fr. João da Arrifana, o municipal abdomen de

Martin Rodrigues, mettidos cada um em sua cuia da balança conseguiram restabelecer o

equilibrio do estado, e fazer reinar, com o braço e baraço de Perocão, a ordem de Varsovia

naquella inquieta terra do Porto — ou se vem ElRei D. Pedro, que se comeu a polpa da

10 Artigo sem assinatura.

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ostra e deu metade da casca a cada um dos litigantes.... tudo isto saberemos em fim, porque

a historia conclue nesta segunda parte ou volume, que vae publicar-se.

O segundo volume do Arco de Sant’Anna é o 12º da edição uniforme das obras do

Sr. Almeida Garrett. Todas as outras que faltavam se teem reimpresso successivamente em

terceira e quarta edição, e se acham em casa dos Srs. Bertrands, e mais casa já

mencionadas.

Está no prelo uma nova, muito melhorada e muito mais correcta edição da DONA

BRANCA, formando o 13º volume das mesmas obras.

6.1.7. Jornal A Revolução de Setembro — 28 de fevereiro de 185111

Não houve desapontamento, quando chegou finalmente o livro que se fizera tanto

tempo esperar, e desejar. A montanha não pariu um rato: e este segundo volume é

infinitamente superior ao primeiro.

É que também é escrito com menos preoccupações politicas, está mais acalmado de

odios, e desdens contra padres e barões, entrou nelle mais o coração do que a cabeça, e o

poeta, deslumbrado pelo fervor da sua propria inspiração, esqueceu-se do homem que era, e

sacrificou no altar da arte, pura e simplesmente.

Não póde haver maior imparcialidade neste nosso juizo. Ninguem, mais do que nós,

deseja que todos tomem armas, e cinjam a cruz, nesta crusada da civilisação, e da liberdade:

mas no seu lugar e campo proprio: que o auctor se não impressione exclusivamente do

seculo aonde se passa a acção, consinto: lembrando-se mais do seculo em que vive, que do

seculo aonde pousa a sua imaginação, atraiçôa de certo os dons do seu proprio talento, e

falsifica, involuntariamente, a verosimilhança litteraria, e historica do assumpto. No

primeiro volume acontecia isto de certo: apesar de que as figuras eram apenas esboçadas no

quadro, os accessorios constituíam-se em evidente anachronismo com o pensamento

fundamental. O frac a par do gibão plebêo, a calça de couro, rudemente desenhada em

contraste com o arnez, e a cimeira da idade-media, não digo que não offerecessem muito

sal, muito picante aos paladares democraticos, mas transpunham os limites severos do

romance historico. As divagações espirituosas e humoristicas, que não empallideciam a par

11 Artigo assinado por Lopes de Mendonça.

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das de Sterne ou Nodier, faziam do primeiro volume do Arco de Sancta Anna um livro

delicioso, e que seria lido sempre com avidez, não o podiam elevar, seguramente, até

constituir-se em um monumento do genero, como cumpria ser concebido e executado pelo

poeta de Camões e D. Branca, do Frei Luiz de Sousa, e Gil Vicente.

O segundo volume, esse sim, é feito com amore, e torna O Arco de Sancta Anna,

uma das mais admiraveis composições da litteratura moderna portuguesa. A penna que

havia traçado o magnifico capitulo do primeiro volume — Ecce sacerdos magnus — dedo

que denunciava o gigante — desenrolou o drama encetado com interesse palpitante,

avivando-o com as cores suaves, e correctas de um assombroso estylo.

A simplicidade da acção em nada faz diminuir o interesse dramatico do romance. É

esse um grande merito, em qualquer composição litteraria. A profusão dos incidentes, a

abundancia dos personagens, nunca hão de constituir, a meu ver, um symptoma decisivo de

vigor, e energia intellectual.

Quantas composições sobreviverão, á fecundidade nervosa de Dumas e Sue?

Quanto não será mais apreciado A. Dumas quando desenha suavemente uma historia

singela do coração como em Amaury e o Capitão Paulo, do que no momento em que

accumula, em dez volumes, mil divagações admiravelmente contadas, mas que tão

facilmente s’esquecem, como os contornos caprichosos traçados na areia, desfeitos horas

depois, pelas ondulações crescentes da maré?

Quem não trocará, de boa vontade, alguns formosos capítulos de Mathilde, pelos

quadros, brutalmente retinetos, dos Mysterios de Paris, ou do Judeu Errante?

O seculo desoito presenceou um igual espectaculo, e os ensinos do passado, não

desmentem as previsões da critica Prévost, teve suspensa toda a sociedade de Paris, pelo

espaço de desaseis annos, quando escrevia Marianna; e o auctor de Cleveland, e do Deão

de Killerine, figuraria hoje apenas nos catalogos de livraria,, se não tivera associado o seu

nome, a um pequeno volume, que ha de ser eternamente um primor d’arte — Manon

Lescaut.

Chamem-me, se quizerem, descuidoso inoclasta de reverenciados idolos. O auctor

de Lelia, e do capitão Manprat, a alma apaixonada que escreveu Judyana, e Valentina,

mesmo quando abandona as tradições do romance philosofico, para esboçar François

Champy e la Petitte Fadette eleva-se sobranceiro a toda essa literatura industrial, que

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negoceia os dons do talento, e mais d’uma vez os prostitue, nessas mal elaboradas

improvisações em dez, doze volumes. Balsac, com o seu Lys dans la vallée, Eugenie

Grandet, e la femme de trente ans, hade viver mais no futuro, do que essa ninhada de

romances-folhetins, embora assignados por nomes, d’uma popularidade incontestada, e

tambem de reconhecido merito, em mais d’um capitulo, faiscante de vida, e de sentimento.

Na obra do Sr. Garrett houve um pensamento social. Não tratamos de o discutir.

Vamos muito longe na nossa purificação religiosa. A liberdade do pensamento achamo-la

incompativel com a existencia d’uma religião do estado. Cremos firmemente que o

catholiscismo hade ser eternamente reaccionario: a ultima esperança de concordia

esvaeceu-se nos conciliabu-los de Gaeta, e na queda da constituinte romana. N’uma futura

organisação politica, a liberdade de cultos deve ser uma realidade: que o catholicismo

mantenha o seu logar, pela intelligencia, pelo sacrifício, pelo uso austero, e pela

assimilação cuidadosa das verdades do Evangelho: que se não queira impor pela força das

tradicções, pelo gosto d’um privilegio, pelas suas allianças indecoras, e subservientes com

os poderes do estado.

Entretanto, O Arco de Sant’Anna, ordeiro, e cortez, como é, não faz pouco serviço a

esta luta, que tem de se empenhar algum dia. Embora, o proprio auctor, grite —

misericordia — no momento da tempestade, ninguem lhe póde negar a gloria de haver feito

encaminhar o baixel para essas regiões perigosas, mas ao cabo das quaes, havemos de

avistar a terra da promissão.

Entremos na parte propriamente litteraria, que não vale a pena de envenenar os

odios, que professam á minha humilde pessoa, tantas almas devotas, e tantas interessantes

senhoras, que perdendo todas as illusões da terra, volveram o espirito exclusivamente para

o céo.

Um bispo mau escandalisa os burguezes, e arraia-miuda do Porto, pela devassidão

dos seus costumes, e não menos pelos vexames da sua administração financeira. Vasco, que

é o filho estremecido do seu amor, ainda que occulte, a elle, e a todos, os laços estreitos que

o ligam ao seu coração, levado pela generosidade das suas idéas, e tambem pelos olhos

negros e feiticeiros de uma certa Gertrudinhas, fructo encantador do matrimonio

burguezmente legal de mestre Martim, membro do senado portucalense, torna-se o cabeça

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de uma revolta popular occultamente soprada por D. Pedro 1º, que a aristocracia

denominou crú, e o povo justiceiro.

E como é que a poetica sylpha, a gentil borboleta, desentranhada da grosseira

chrysalida de um par, burguez, de corpo e alma, se torna a nimpha Egeria destes rancores

populares? É que a torpe crapula do bispo tentava ennodoar uma das mais formosas

cachopas do Porto, a bella Anninhas, recentemente casada com o mestre Affonso,

caldeireiro, e depositada nos carceres do aljube, no proprio momento em que o

descontentamento publico buscava um motivo para se insurgir contra o bispo, e para vingar

affrontas na quesilante pessoa de Pero-Cão, seu almudeiro, o que é dizer que era ladrão: seu

agente secreto, o que é encarta-lo n’um certo officio, cujo nome a decencia me obriga a

callar, e que o auctor mais franco, poz com todas as lettras, na boca das turbas irritadas, e

sedentas de desaggravo. Ora a Anninhas, era intima amiga de Gertrudes, e a rua do Arco de

Sant’Anna, escutára mais de uma vez as longas praticas de janela a janela, entre as duas

visinhas, creadas na doce e despreocupada familiaridade do tete-á-tete.

Mas Vasco, no seio dos seus projectos, tivera ainda um mysterioso incentivo que

lhe avivára a resolução, que lhe robustecera o espírito, que o engrandecera até o ponto de se

julgar o vingador tremendo e fatal de sua mãi, que crestára os annos e a bellesa, victima de

uma acção infame, em que o seu coração não fôra cumplice.

Era esta historia o remorso vivo e pungente do bispo, e que o auctor mais de uma

vez soube evocar, com, aquelle raro conhecimento do coração, que dá ao livro um tão

subido valor philosofico.

Ferido e semi-morto, fôra encontrado o bispo, quando era ainda secular, e

cavalleiro, n’um campo de batalha: conduzido a casa de um judeo rico, Abrahão-Zacuto,

pelos próprios cuidados do santo velho, elle durante a convalescença, seduzira sua filha, a

formosa Esther, raro typo dessa bellesa asiatica, que ainda reluz e deslumbra nas

descendentes da captiva e desolada Sião.

Vasco era filho dessa mulher, que jurára vingar-se e que durante muitos annos,

acalentára no peito esse pensamento sinistro, para o entregar como horrivel herança ao filho

arrancado dos seus braços, arrebatado as suas maternaes caricias, medrando e crescendo

longe de seus beijos, e das suas lagrimas!

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No centro deste quadro apenas apparece o vulto indistincto do amigo do povo, de

Pedro 1º, homem raro, em que o sentimento energico de justiça, quase que se confunde com

a satisfação pessoal de vingança: tão grande, tão poderoso era o empenho com que

acceitava a austera missão de reger e dirigir os negocios do estado! O homem quasi que

desapparecia perante os deveres solemnes de rei.

O bispo, apesar de sentir vagamente, no seu espirito, avexado de desconsoladoras

lembranças, um presentimento sinistro, um como rumor longínquo da revolta, que começa

a rugir o seu hymno de vinganças, tenta cevar os embotados appetides na priosioneira, por

quem arde em brutaes e criminosos desejos.

Este capitulo, não direi que é o melhor, mas como pintura, ao mesmo tempo fugitiva

e correcta, raros temos visto nas litteraturas estrangeiras, que possam competir com elle.

Quereis um retrato, que se vos figura na imaginação, apesar de esboçado em pinceladas

rapidas, e com traços de cor formosa, e suavemente desmaiada? É o de Anninhas.

“Quanto se póde imaginar de gracioso, de mollemente feminino e suave, tudo isso

era Anninhas. As feições pouco pronunciadas do seu rosto, as formas arrendondadas, mas

debeis de seu corpo alto,fino, e dobradiço como uma vergontea de primavera, tudo nella

caracterisava aquella debilidade quase infantina, aquella dependencia, aquella fraqueza, que

são a maior força de um sexo nascido para obedecer e ser guiado, mas que é elle quem

manda e governa quando quer quando sabe ... quando a mulher é verdadeira mulher, e de

seu proprio desvalimento tira o valor immenso que tem.”

“Naquelle estado agora, no desalinho de seu trajo, no susto que a descora, na

afflição que a pertuba, Anninhas está mais bella ainda. O genero de sua belleza é dos que se

não transtornam com estas ancias mortaes; antes nellas se apura, se afina a suave, e por

assim dizer, lenta fascinação de seus encantos. O cabello castanho-ondado, cahia-lhe

desentrançado e longo pelas espaduas mal cubertas de uma tunica listada de branco e de

roxo vivo, que era o seu unico vestido. Os olhos pardos, grandes, lustrosos, mas sem muita

vivacidade, pareciam mais de uma virgem consagrada ao altar. Ninguem pediria paixão

áquelles olhos, elles não tinham senão piedade, indulgencia, uma expressão de bondade que

vinha d’alma. Branca era, mas como é branca a prata fôsca: um branco puro sem brilho.”

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Como vêde não é a musculatura vigorosa, o colorido energetico de Caravaggio, ou

Ribera, é todo vago poetico, toda a vaporosa realidade dos mestres da velha Alemanha

espiritualista.

Quando o bispo, n’um acesso de voluptuosidade febril e delirante, pretende

violentamente desvanecer a um tempo o grito d’alma que o accusa, e a resignação angelica

e pudica de Anninhas, que o subjuga, quando o tigre sedento tenta apagar o remorso, na

satisfação de um vicio brutal e feroz, e lhe apparece de repente a figura grave, pallida, e

severa de um respeitavel clerigo: quando Anninhas, solta daquelle amplexo que lhe vexa,

simultaneo, a innocencia d’alma, e o pudor quasi virginal da sua fé de esposa, se refugia no

fundo do aposento, para se abraçar com um crucifixo — a scena tem um movimento tão

dramatico, attinge um tal pathetico sóbrio e reprimido, que só ella bastaria, para dar ao

romance a popularidade conscienciosa e sentida, que classifica e imprime uma obra d’arte

na imaginação publica.

É no momento em que o bispo, composto de partes boas e depravadas, como todo o

ente real e humano, não exclusivamente virtuoso, com os delambidos heroes dos romances

de Scudéry, nem absurdo e unicamente detestavel, como os incriveis Rodins e Lugartos de

Eugenio Sue — se deixa vencer pelas supplicas evangelicas e christãs do arcediago Paio

Gutterres, quando chora nos seus braços as faltas de um passado irreparavel — que a

revolução se agita e tripudia, e vem debaixo dos seus paços, accender de novo o seu

orgulho adormecido, e as suas paixões, um momento acalentadas pelas palavras brandas do

bom prelado.

A transição é tambem admiravel de poesia e verdade. Julga aquelle homem

cumplice com os revoltosos, pensa que o virtuoso aviso não viera do amigo, e do sacerdote,

mas do conspirador encuberto e hypocrita, e o demonio de seus torpes vicios, que lhe mora

de contínuo dentro d’alma, renasce furioso e indomavel. É assim sempre: os caracteres

corrompidos raras vezes se suspendem sobre o abysmo da perdição: a logica das

catastrophes humanas impelle-os fatalmente a uma queda, umas vezes tragica e

ensangüentada, outras vezes vergonhosa e infame.

A revolta entretanto, por isso mesmo que tem chefe, e chefe que, apesar do verdor

dos annos, pelas relações de gratidão com o bispo, já se mostra demasiado favorecedor da

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ordem e da legalidade, vae em procissão á casa do conselho municipal, buscar o pendão da

cidade, e sobre tudo, captar o apoio moral do senatus populus quae portucalensis.

Os dois capitulos que se seguem estão escriptos com um espírito e um chiste, que

contrasta agradavelmente. Os Paes da patria dormindo a somno solto, e a eloquencia de

Gilianes, a ponto de adormecer de novo os paes e a propria patria insurreccionada, tudo

captiva a attenção, e mais d’um leitor maliciosos se ha de recordar de scenas identicas nas

abobedas contemporaneas de S. Bento. Affirmam até que o typo do orador órgão-de-

berberia, e do discurso-aranzel, fora tomando do vivo, da catadupa parlamentar e

economica, do prurido incansavelmente oratorio do nosso historico amigo Agostinho

Albano. Este ao menos ainda serce para isso, para personagem de romance — e os outros?

A guerra civil, no capitulo seguinte, o armisticio e mais scenas que se seguem até o

desenlace, não suspendem um instante o interesse dramatico. A conclusão, sobre tudo, é um

quadro magestoso e completo, que recorda aquellas admiraveis pinturas de batalhas, que o

Ticiano e Tintoreto pintaram nas salas do palacio ducal em Venesa.

Os populares e o bispo accordam em fazer uma convenção. A scena é na sé. O povo

desarmado e contricto, contricto em presença do augusto daquelle espectaculo, a um tempo

religioso e politico, enche as abobedas da igreja e confia na lealdade do seu senhor irritado

e dos chefes que elle espontaneamente escolhêra. Paio-Gutterres, allucinado pelo fervor do

seu zelo e dos puros affectos que lhe transbordam d’alma, tenta congraçar os espiritos n’um

discurso bem insignificante e banal, como todos os discursos pastelleiros, mas, ao menos,

como rara excepção, sincero e convicto. O bispo insoffrido dá um signal, e a traição

consuma-se: os sectários e milicia episcopal tomam desarmado e desprevenido o povo, e

acabar-se-ia tudo n’uma tragedia barbara e sanguinolenta, se no meio do acontecimento não

apparecesse um pobre popular, que era el-rei D. Pedro, e fizesse quebrar todas as furias, em

presença da auvtoridade e do magico esplendor do seu nome real.

O romance, como é de rasão, acaba maravilhosamente para as almas sensiveis. A

não ser o bispo, cuja sorte talvez alguma beata deplore, e a morte de Pero-Cão, enforcado

como Judas, o que fará doer o pescoço a mais d’um desses ladrões descarados e torpes, que

nos enlamêam os vestidos no rodar de carruagens e caleches — o matrimonio corôa

sanctamente os amores juvenis de Vasco e Gertrudes, Anninhas volta aos braços do seu

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espoco, e el-rei D. Pedro dança nas vôdas talvez alguma polka-masurka, ou enraivecido

cotillon, que tudo devia haver no seculo quatorze como ha no nosso.

Fallaremos agora no estylo? Eu só o definirei por uma comparação. Nunca vistes

n’um baile uma dessas donzellas vestidas de branco, bellas e coquettes, que vos

deslumbram pelo seu andar, provocador e casto ao mesmo tempo? Não lhe fallasteis, e não

a vistes sorrir para mostrar dentes alvos e formosos, não vos enfeitiçou ella, quando curvou

maviosamente o pescoço, de resplandecente brancura como se fôra um cysne banhando-se

nas aguas de um tanque sumptuoso, fazendo estremecer os anneis, e as tranças do seu

cabello negro, entrelaçado de flôres naturaes, tão risonhas como os seus olhos, tão

perfumadas como a sua respiração? Não posso, não sei explicar melhor a impressão deste

estylo, tão juvenil, e tão calculado, que une n’uma só individualidade, os movimentos

infantis da donzella, a todos os segredos e coquettismo da mulher de sala.

O dialogo então, esse é inexplicavel de belleza, e de verdade. Na língua portugueza

— digo-o, sem temor que as cabelleiras dos fosseis se errissem por um milagre, nunca, nem

em tempos antigos, nem nos modernos, se dialogou tão correcta e suavemente.

Agora, perdoe-nos o nosso amigo Garrett, não nos escapou um ou outro trecho, de

visivel conciliação — de ordeirismo velho e relho, esteril como idéa, impotente como facto,

prejudicial entretanto, porque demorou a aproximação de ideas sãs e robustas, generosas e

fecundas, que nos levantem deste fosso, aonde jazemos, sem honra, nem gloria, e mesmo

sem as compensações materiaes de uma vida abastada, e contente.

Que seja monarchista, admitto: mas monarchistas, como a monarchia é, como tem

sido, como não pode deixar de ser. Querer fazer com ella uma alliança com o povo, para se

defender do omni-absorvente despotismo dos senhores das burras, dos alcaides mores dos

bancos, e de todo este feudalismo agiota, é um sonho que mal parece poder dar-se na

cabeça de um homem de tamanha projecção intellectual.

Sabeis qual é um dos fundamentos da tyrannia agiotica, e monetaria? É o imposto.

Se atacais o imposto, atacais a monarchia que vive, que se compraz com elle, e que por elle

é o servo, o bode-emissario dos alcaides-mores dos bancos.

Sabeis aonde reside a superioridade absorvente dos senhores das burras? É no

principio do credito, constituído e formulado pelo capital.

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Quereis organisar, democratisar o credito? Atacais a monarchia, condemnais-l’a

irremissivelmente, ligada como está, á classe dominadora e omnipotente.

A monarchia vive tão intimamente estreitada aos abusos, a sua existencia está tão

firmemente baseada nesse esteio da classe-media, que ella elevou, e com que ella abateu a

aristocracia, que não ha uma unica reforma séria, que a não ameace, ou a não tenha por

inimiga.

Quereis reformar a monarchia, e dar-lhe outra naturesa para que ella combata ao

lado do povo? Isso é ainda mais vagamente theorico do que todas as vagas theorias do

socialismo.

Sejamos francos e sinceros, sobre tudo quando examinarmos as cousas de alto. O

governo representativo não provou bem, senão com uma excepção, em Inglaterra.

Corrompeu e enervou os caracteres, escravisou as classes inferiores, e fez da propriedade, e

do direito da posse, o elemento principal da sua existencia.

O dilemna pois está proposto neste seculo, sem as reticencias inintelligiveis de

Gilianes: lamento que assim seja: quisera que fosse mais pousada e gradual a marcha dos

acontecimentos: mas é necessário acceitar a força inflexivel desse mysterioso destino, que

uns chamam providencia, e outros denominam fatalidade, entre a republica democratica e

social, e o despotismo illustrado, ou não illustrado, não nos parece haver meio termo.

6.1.8. Revista Universal Lisbonense — 13 de março de 1851.12

No artigo 19 do 5º volume da REVISTA UNIVERSAL LISBONENSE, nos

arrojámos a dizer alguma coisa sobre o 1º tomo do Arco de Sanct’Anna , que por aquelle

tempo se havia publicado. Hoje, que o 2º veio preencher nossos desejos, satisfazendo tão

amplamente a muito firme esperança, que nelle haviamos fundado, arriscaremos tambem

algumas observações a seu respeito, para não ficar incompleto o nosso começado empenho;

e se, por pouco usados em escrever para o publico, padecermos erros e equivocações

amiudadas, desde já pedimos desculpa ao illustre auctor do Arco de Sanct’Anna,

protestando-lhe, que difficilmente seremos excedidos nos respeito e admiração sincera, que

lhe dedicamos.

12 Artigo assinado por V. de Az. Identificado por Maria Helena Santana como visconde de Azevedo.

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Quem quer que tivesse lido o 1º tomo do Arco de Sanct’Anna, não podia deixar de

sentir uma viva impaciencia de saber o que se passou entre o amavel estudante Vasco e a

velha bruxa de Villa Nova de Gaia. As ultimas linhas do XVIII Cap. do romance nos

apresentavam a velha taberneira com uma face nova, e era tão energica, tão penetrante a

linguagem empregada n’aquella descripção preparatoria, que o leitor, quasi como

adivinhando o que se ia seguir-se, almejava por presenciar a scena de affectuoso e

fortissimo sentimento, cujos sós vislumbres tanto podêr já tinham sobre a sua imaginação.

A curiosa anciedade, que o auctor soube tão habilmente excitar, augmentada ainda pela

prolongadissima demora em ser satisfeita, acha-se de sobejo saciada com o Cap. XX do

romance. O dialogo entre a mãe e o filho é de um effeito verdadeiramente dramatico, e o

caracter da hebrêa não podia ser retratado por um pincel mais expressivo e vigoroso; cada

palavra d’Esther é como a ponta de um punhal açacalado e agudo gravando dolorosamente

em nossos corações os pensamentos de profunda tristeza, e de odio abafado, porém vivaz e

terrivel, que dominavam n’aquelle tempo essa nação por toda a parte oppressa e perseguida,

á qual o proprio conhecimento de sua superioridade intellectual e pecuniaria, prostrada e

impotente perante seus rusticos e semi-barbaros senhores, servia unicamente de tornar mais

acerbo o mysterioso abandono, a que a entregara o dedo omnipotente de Jehova! Termina o

capitulo por uma magnifica descripção onomatopeica, como raras vezes se encontra; a

chuva teimosa e esparralhada entrando pela telha vã, que cobria o lar, infiltrando-se por

ella, e vindo avivar o verde lustroso da rama de pinheiro, que tapizava aquelle pobre chão, é

admiravel. Deve notar-se, que o adjectivo esparralhada é quem principalmente constituiu a

propriedade e belleza do quadro, por isso mesmo que é este adjectivo que, parecendo fazer-

nos ouvir o som da chuva, fórma a onomatopêa, que os melhores escriptores tão

escassamente empregam pela difficuldade de achal-a. De proposito quizemos revelar esta

circumstancia, que talvez a alguem pareça insignificante e ninhêga, mas que de nenhum

modo tal é: e se os leitores se derem ao trabalho de riscar a palavra esparralhada, hão de

vêr como toda a descripção perde a maior parte da sua força e magnificencia. O auctor

apropriando, ou antes creando para a litteratura uma palavra apenas até agora usada pelo

vulgo, .... pelo vulgo, a quem a natureza ensina as onomatopêas, que tanto a miudo escapam

aos estudos do sabio, pôde darnos o goso de um painel tão primoroso e bem acabado, onde

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a belleza das idéas é superiormente sustentada pelo mimo e pureza da dicção. É assim que o

genio tem sabido em todos os tempos enriquecer e aformosear a sua lingua.

Continúa o auctor conservando neste 2º tomo a mesma elegancia e frescura de

estylo, que tanto faz realçar o merecimento do 1º. A paginas 40, por exemplo, aquella

especie de exclamação prophetica tão oriental, tão biblica, que a velha pronuncia a meia

voz, e sem attender ao filho, que a escuta, é toda de uma perfeição, que mal póde ser

excedida. Ha muitos pedaços de egual propriedade e eloquencia, espalhados por todo o

livro, as descripções, sobre tudo, são sempre proprias; naturaes, pintorescas. Será nas

scenas discriptivas, que o Arco de Sanct’Anna tem de primar em quanto se não extinguir

entre nós o sentimento e o gosto.

Egualmente bello, egualmente perfeito é o nosso romancista na incisão do dialogo, e

no, permitta-se-me a expressão, saber pilhar a fraseologia propria dos populares. De tudo

isto se acha excellente modelo a pag. 51, na conferencia de Garci-Vaz com os artesãos e

burguezes amotinados: “Eu cá a minha coisa é, que morra o bispo, e que nada de sizas, nem

de portagens.” — “Eu não é tanto por isso, mas que Giliannes não seja mais juiz, que é um

asno e um tratante” — “Pois eu, não senhor; eu o que quero é ....” — “Para lá, para lá, meus

amigos; agora nada mais. Silencio! e trate cada qual de se preparar para esta noite.” Uma

tamanha variedade de vontades, os motivos tão pequenos em si mesmos, tão individuaes,

tão diversos, e até oppostos entre si, que, conglobando-se, produzem os mais estupendos

effeitos nas grandes revoluções populares, e a phrase, tão propria dos homens das classes

infimas, tudo aqui se encontra exprimido de um modo, que assaz dificultoso será d’egualar.

Surprehende-nos vêr como o auctor, que tem passado sempre a sua vida entre as classes

elevadas e cultas da sociedade, sabe transformar-se em homem do baixo povo, fallar sua

technica linguagem, usar dos seus ademãs simples e grosseiros: de certo algum genio, que o

acompanha e protege, lhe revéla e ensina todas estas coisas. Bellezas similhantes ás que

havemos apontado, brilham por toda a extenção do romance, e seria trabalho inutil e até

caustico fazermos aqui dellas um indice alphabetico, ou resenha micrographica, rivalisando

em narcotismo com os famosos discursos de Giliannes.

O Arco de Sanct’Anna não é um romance grave e sério, qual por exemplo o Eurico,

onde as scenas diversas devem todas ser repassadas de um colorido forte e sevéro, como

exige a sisudez magestosa do assumpto: mas, no Arco de Sanct’Anna, que é ao Eurico o

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mesmo que o Orlando Furioso é á Jerusalém Libertada, a ligeiresa, e até algumas vezes o

desalinho do estylo constitue sua maior e mais caracteristica formosura. O auctor não quiz

compor um livro dedicado todo a pintar os costumes da épocha, em que os factos nelle

narrados aconteceram; se tal tivéra sido a sua intenção, não duvidariamos affirmar que se

illudiu, e que nos deu apenas um esboço imperfeito e mesquinho, o que provariamos com

os romances de Walter Scott, modêlo indisputavel neste genero; mas se o nosso chronista é

o primeiro a dizer alto e bom som, que do XIV seculo tirou somente o seu argumento, e que

as impressões, sob as quaes o escreveu, são todas do XIX, que a este pertence o seu

romance, não podemos, nem devemos exigir a proporção e verdade de certas fórmas

convencionadas, que elle proprio declara não ter querido adoptar. Para se conhecer que este

nosso juiso não é susceptivel de contestação, bastará reflectir em que o auctor pelo decurso

do livro falla varias vezes de si e de pessoas e factos contemporaneos, tão particulares e

restrictos, que nem a velha Esther, a qual vimos ser em genealogia mais instruida e exacta,

que o adulador calhamacento padre Sousa, seria capaz de lhes descobrir parentesco com o

argumento fundamental do romance! Tolerar-se-hia isto no Waverley, no Talisman, no

Eurico? De nenhum modo; em quanto que no Arco de Sanct’Anna, além de tolerar-se,

aprecia-se, por ser mais um dos puxativos acipipes, que o tornam tão agradavel e picante.

A respeito de costumes — não temos aqui a examinar, senão a maneira, porque o

auctor refere os do seculo, em que collocou as suas personagens, se os desmente, ou ao

menos se os desfigura e transforma: mas deste essencial defeito ninguem de certo accusará,

com justiça, a generalidade do romance, que nos occupa. Se o auctor, em logar de retratos

antigos, em vulto inteiro, nos deu apenas meios corpos e miniaturas; se em vez de descrever

longa e completamente uma épocha, se contentou com tocar de corrida em algumas coisas,

que nellas se passaram, é isso consequencia necessaria do genero, a que quiz pertencesse o

seu livro, e nós não temos direito para pedir-lhe contas de mais, que o por elle promettido.

Forçoso é todavia confessar, que a fórma, escolhida pelo auctor para nella encaixilhar o seu

quadro, offerece, em alguns pontos, uma desegualdade de proporções tal, que é difficilima,

ou quasi impossivel de harmonisar.

Sirva de exemplo no Cap. 32 o discurso de Giliannes a pag. 214. O auctor quiz

descrever alli o typo de um destes oradores maçantes, de que os parlamentares modernos

appresentam muitas e engraçadissimas copias; e com effeito quando se lê aquelle discurso

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tão cheio de palavrões sonoros, e tão vasio de idéas reaes e positivas, onde o compassado

zum zum das frases academicas martella o pensamento de tal arte, que nem o auditorio

póde attingir o que o orador quererá dizer, nem elle mesmo sabe o que diz, a gargalhada se

escapa ao leitor ainda antes de lembrar-se que vai rir .... gargalhada estrondosa,

esparralhada com uma cauda maior, que a do cometa de 1666! Porém acaso este retrato,

em si mesmo tão proprio e bem acabado alguem poderá suppol-o existente no seculo XIV?

Naquelle tempo não se conheciam academias, nem os homens do porte de Gilianes

fallavam jamais assim e quando muito apenas um João das Regras seria capaz de

aproximar-se daquelle estilo, embora soubesse manifestar suas idéas com claresa e

precisão. Foi neste e em alguns outros logares, onde o auctor quiz apresentar pinturas de

objectos, cuja existencia, ou melhor diremos creação, é nova e privativa de tempos mais

modernos, que a verdade e mesmo a verossimilhança dos costumes visivelmente se alterou:

concordamos em que esta alteração seja em rigorosa litteratura um defeito, mas sem ella

como teriamos nós rido com tanta vontade e praser? A este respeito nos recordamos de que,

sendo ainda bem creança, vimos uma gentil rapariga, a quem tres ou quatro signaes, que lhe

haviam ficado das bexigas, augmentavam notavelmente a graça de seu lindo rosto.

Pediremos porém aqui licença ao romancista para fazermos uma observação, a que

o duro mister de critico nos obriga: a prophecia, com que termina o discurso da Giliannes,

que teria sido uma lembrança galantissima, dita por outra pessoa em outra occasião, não

nos parece motivada sufficientemente, e ainda menos convenientemente preparada. Que

noticia podia ter similhante orador da lingua ingleza, e, o que é ainda mais, dos poetas

inglezes? Não era para resonar roncando, que os populares do Porto deviam neste caso abrir

as bocas, mas sim para perguntarem espantados, quasi como outr’ora os israelitas a Saul.

“Que fazes tu, pedaço de asno, mettido entre os prophetas?” Achamos que esta inesperada e

mal cabida prophecia, em vez de augmentar, diminue o effeito deste maravilhoso retrato; a

vivesa de espirito do auctor, pondo-o a elle mesmo no logar da personagem, que falla no

romance, arrebatou-o neste sitio para fóra da estrada real, e , ainda que fosse para o céu, é

certo que sahiu do caminho, que levava “Da se lontano il vide al ciel salire” com tudo

apesar deste senão, que a nossa franca sinceridade nos veda dissimular, tencionamos ainda

dar mais algumas valiosas risadas com a leitura deste discurso revoltamente erudito do

nosso inimitável Giliannes.

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Tambem achamos excessiva e menos propria a accusação feita por Esther ao culto

catholico, que se lê a pag. 42. Esther de certo não tinha estudado Voltaire, Dupuis, e outros

escriptores da mesma opinião, para acoimar tão duramente os catholicos de irem buscar as

superstições de todos os cultos da terra para comporem o seu. Que Esther os accusasse de

adorarem a Jesu Christo, de prestarem veneração aos sanctos e ás imagens, ella que,

seguindo a letra do antigo testamento, adorava sómente a Deus, isso entendemos nós; mas

que culpasse os christãos pela adopção das contas, como se as contas fossem um culto, e

não simplesmente um modo de sommar as orações, que Pedro, o Ermitão, importou do

Oriente para a Europa, e que a egreja julgou proveitoso, mandando celebrar o rosario, não

como uns poucos de graos enfiados em linha ou retroz, mas como symbolo de uma reunião

de orações tiradas dos livros sanctos, achamos filosophia de mais para uma mulher, e para

uma mulher do decimo quarto seculo: é verdade que a judia vivendo entre gente do povo, e

affeita a vêr as velhas taes, como Briolanja Gomes, agarradas a umas camaldulas tão

grossas, como os mais corpulentos bogalhos, persuadidas que os graos de virtude e

salvação se mediam pelo alentado das contas, podia muito bem escandalisar-se com isso;

mas então quem sabe fallar a linguagem, que ella falla, tambem sabe que as supertições de

algumas duzias de velhas e mesmo de velhos não póde, com justiça, attribuir-se a uma

religião, cuja sanctidade e sublime moral tão claramente se acham definidas.

Tambem nos pareceu exagerada a scena entre o bispo e o veneravel Paio Guterres,

que se encontra a pag. 189.

Não ignoramos a energia e desafogo concupiscivel, que dominava no clero daquella

épocha, senão que o digam as varonias episcopaes de um soffrivel numero de nossas

familias aristocráticas; vimos até como Walter Scott nos descreveu a Sir Brian de Bois

Guilbert; todavia a fama da descrença impia, vulgarmente acreditada a respeito dos

Templarios, justifica de alguma sorte o romancista escocez; mas um bispo, vicioso como

um demonio; isso não tem duvida, conservando porém as exterioridades da religião, da qual

era indigno ministro, como no proprio romance havemos lido, não podia, sem grande

contradicção comsigo mesmo, soltar dos labios resequidos pela infame paixão, que o

devorava, essas expressões desalmadas e brutaes, que o auctor lhe faz dizer .... e diante de

quem? do arcediago de Oliveira, cuja austera virtude de ha muito conhecia, e a quem tinha

respeito e medo .... dissemos mal, diante do Crucificado, que naquelles tempos de barbaria

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e dissolutos costumes, porém crentes, e não scepticos, fazia curvar a cerviz aos monarchas

mais libertinos e despoticos, aos Henriques de Inglaterra, aos Filippes de França!

Não diremos, que um homem chegando a tocar os derradeiros limites da

desesperação, não podesse exprimir-se, como o bispo se exprime, embora houvera elle sido

um dos mais rigidos e asceticos solitarios da Thebaida! Estes casos com tudo são

extraordinarios e rarissimos; dão-se quando o sujeito perde o juizo, e fica louco varrido ....

mas o ratão do bispo, não era desses, tão máo, quanto finorio, ainda não conseguimos

pescar-lhe pelo decurso da historia um unico signal de alienação ... aquilo eram testos de

bronze, e ... safa! se elle sómente por vêr, que lhe escapava a nossa Anninhas, apezar de ser

ella moça de tão bons bigodes, e açodado pelos gritos populares, que escutava, mas que

naquelle mesmo dia já tinha ouvido sem se alterar e discompor de tão estranho modo, se o

bispo, dizemos, sómente por estas duas causas, aliás graves, chegava todavia a

encommendar-se a S. Judas Iscariote, a blasfemar contra Christo, e contra a veneranda

religião, em que fôra creado, confessamos com ingenuidade o nosso terror ... antes mil

vezes quereriamos encontrar-nos, ainda que fosse no logar mais ermo e escuso da terra,

com um cão damnado, com um tigre, com um leão, com um communista, até mesmo com

um jesuita, que com S.Illmª em ocasião, que desempenhasse o officio de galgo, após uma

bonita e interessante rapariga!

Temos emittido francamente a nossa opinião ácerca deste excellente romance, cuja

ligeira analyse havemos feito com tanto maior desafogo, quanta é a nossa convicção de que

um homem collocado na altura, onde o auctor se elevou, não quererá vêr em seus

admiradores outros tantos anciões do Apocalypse: só a divindade tem direito a incessantes

amens, e aquelle, cujas obras, filhas de um genio vasto e sublime, já de antemão lhe

grangearam uma gloria immortal na litteartura portuguesa, carece mesmo de que

observações, como estas nossas, severas e por ventura atrevidas, attestem á posteridade que

a geral veneração, a seu nome consagrada pelos proprios contemporaneos, e ao seu grande

merecimento; a deveu, não á lisonja.

Algumas scenas ha levemente tocadas, e nas quaes desejariamos maior

desenvolvimento: por exemplo, o amor puro, platonico de Paio Guterres, quando não era

ainda ecclesiastico, esse amor espiritual, desligado da materia, que tanto eleva e engrandece

as almas, e que tão bellas coisas forneceu ao celebre Richardson, que pinturas nos não

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offereceria, sobre tudo debaixo de um pincel tão delicado, como o do nosso auctor? É uma

perda para nós, e uma perda muito para sentir. Tambem não achâmos cabalmente explicado

o modo porque a infeliz Esther tinha meios de introduzir-se nos esconderijos, que do Paço

episcopal conduziam ao Aljube; pelo dizer do prelado, a velha era avezada a andar por

aquelles sitios; mas como lhe acontecia isso? É mysterio, que fica por esclarecer, assim

como tambem o fica saber-se a rasão porque escapou ás iras de S. Illmª, pois se em uma

parte a encontrâmos disfarçada com ulceras e andrajos para que o temivel mitrado a não

conheça, em outra se nos deixa entrever, que elle não ignorava a sua existencia, e os

logares, que habitava.

Entre as palavras novas, que, como já fizemos notar, esta qualidade de romances

semi-serios admitte, e que produzem muitas vezes o optimo resultado, que o auctor,

melhor, que qualquer outro, tem tão repetida e habilmente conseguido em muitas de suas

obras, não sabemos se as princezas fregonas a pag. 71, e o flanar a pag. 72 devem ser

contadas. Eram palavras, que podiam ser substituidas por outras de cunho puritano, e que

não augmentam a graça da locução, nem a riqueza da lingua. De alguns outros vocabulos

usou ainda o auctor, que nos parece acharem-se incluidos nesta classe, como por exemplo

— rebulada — Talvez seremos alcunhados de pechosos, e dados a examinar ninharias; não

é assim: amando sinceramente a nossa lingua, que para ser immortal, se outras obras de alto

merito não possuira, os Lusíadas lhe bastavam, buscamos quanto em nós cabe, e de modo

que nossos poucos conhecimentos litterarios o permittem, indagar se ella conserva a sua

pureza primitiva, e se, adquirindo novas riquezas, estas não servem de corrompel-a. O Arco

de Sanct’Anna é produção de um genio, que como todos sabem, ha de occupar sempre

entre os nossos mais famosos escriptores um dos primeiros logares: tudo quanto escreve

tem grande auctoridade, e por isso lhe pediriamos, que assim como na nota 3ª deste 2º tomo

distinguiu e explicou a orthografia dos adjectivos — estranho — e — extranho — quando

uma nova edição do romance sahisse a publico nos explicasse tambem alguma coisa sobre a

introducção destas palavras novas que empregou. Quando possa haver duvida em um

vocabulo, em uma virgula, que seja escripta por penna de tão superior jerarchia, nada é

indifferente, antes tudo carece de explicação.

Não escreveremos aqui um longo artigo, porque nem sciencia, nem saude temos

para poder fazel-o; pondo termo por tanto ao nosso imperfeitissimo trabalho, diremos, que

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o Arco de Sanct’Anna será lido com delicioso prazer em quanto houver quem dê verdadeiro

apreço á frescura e ás graças simples e ingenuas da nossa bella lingua portuguesa. Tem

imperfeições, que ninguem nos accusará de tentarmos occultar; mas qual é a obra humana

isenta dellas? Ricardo, Coração de Leão, esperando encontrar na gruta do ermitão de

Copmanhurst um frasco de exquisito Madeira no XIII seculo, como nos conta o grande

Walter Scott, não é de certo uma das perfeições do todavia muito perfeito Ivanhoé.

Os peccadinhos do auctor do Arco de Sanct’Anna são no nosso entender mais de

omissão, que de commissão, isto é, parece-nos, que, principalmente no 2º tomo, tinha

bastante pressa de acabar: omittiu coisas necessarias para esclarecimento do enredo

dramatico do romance, que por isso mesmo ficou obscuro e deficiente em alguns logares, e

scenas, que deveriam ter sido desenvolvidas e trabalhadas, apenas ligeiramente as indicou.

Na parte moral: deixando alguns pequenos farrapos de nuvem, tão pequenos, que

quasi se não enxergam, tivemos a satisfação de nos não enganarmos com o prognostico que

fizemos em 1846: um prelado vicioso foi punido, e o governo de uma diocese foi dado,

como sempre devêra ser, ao ecclesiastico mais digno e virtuoso, que nella existia: que mais

podem exigir os escrupulosos? Potamio, arcebispo de Braga, foi deposto em 10º concilio de

Toledo pelo crime de incontinencia, crime, cujas circunstancias o tornavam muito menos

odioso, que o do amigo de Fr. João de Arrifana; é verdade que o castigo do metropolita

bracharense lhe foi infligido pela fórma e pelas pessoas, para isso devidamente habilitadas

pelas leis disciplinares da egreja, e nada menos canonico, que o azorrague d’El-Rei D.

Pedro: porém se a punição foi applicada por incompetente excecutor, sofreu-a quem a devia

soffrer, e a moralidade de um romance pensâmos que não requer mais que isto. Muito nos

agradaria que El-Rei D. Pedro não tivesse feito diante do altar as suas costumadas

zurzidélas: o auctor sacrificou neste logar ao effeito dramatico a decencia e a magestade do

culto religioso, e, apesar da admiração e respeito que lhe tributamos, não poderemos

approvar jámais tal sacrificio.

Por ventura algum defeito, e de certo muitas bellezas do romance escaparam ás

nossas observações; mas já dissemos que a nossa veia é para pouco, e por isso dando por

findo este nosso mal amanhado artigo, iremos amenisar a nossa imaginação exhausta e

secca com lêr pela quarta vez o Arco de Sanct’Anna.

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6.1.9. Jornal A Semana — Entre fevereiro e abril de 185113

Passam os annos por esta pobre — em todo o genero pobre e pobrissima terra de

Portugal — sem que o critico, esse critico que descrevem ferino, rude, capripede como um

satyro de cascata — tenha quasi um resfolgar para o seu improbo e lugubre mister litterario.

O seu officio é todo de carpideira, ou de clerigo de requiem. É administrar o ultimo

sacramento litterario a esses mal estreados escriptos, que já tortos e rachiticos vem da

cabeça do auctor; cingir-lhes a mortalha, ou accommoda-los no sacco mortuario, atira-los

ao mar, como aquelles prisioneiros que morriam na fortalesa d’If, no romance de “Monte-

Christo”, vê-los afflorar as aguas, sulca-las, remeche-las em ondas concentricas ...e sumir-

se, sumir-se para sempre no oceano do esquecimento. E tudo se acabou. São defuntos que

nem valem um necrologio, nesta terra onde os barões e os merceeiros ricos o tem sempre,

lusido de pompas oratorias, como se morrido tivessem em Marathona, legando a sua gloria

á patria, e encommendado ao cinzel oratorio de Demósthenes o officio piedoso de lhes

gravar os nomes nos bronzes da republica.

Eu não sei que mau fado persegue os desventurados criticos e lhes concita sobre a

fronte as cóleras de todo o mundo. Se bem atino com a razão, deve de ser, por certo, a de

que ninguém gosta de nascer tolo ou semsabor, e muito menos ainda que alguma penna

atrabilaria lhe vá desenrollar ao estendal e soalheiro publico as pequices da intelligencia.

Que em boa paz seja dito — eu não sei a razão porque se não chama feio a ninguem em

lettra redonda — pelo menos eu nunca vi esta exprobação, posto que noventa e nove vezes

sobre cem haja a certeza de não ser uma calumnia — e se diz rasgadamente a quem passa, e

nos apita, nos cicia, nos regouga, ou nos recita maus versos, e prosa ainda mais soez — vós

sois um mau poeta, e vós outro um ruim escriptor. O codigo da civilidade anda erradissimo

— deficiente nesta parte, e eu aposto já daqui que se o bom padre Roquete, que lá da

agitada Paris nos envia em cada mez tão apertados pacotes de illustração franceza —

attentar bem na urgencia do caso, ha de, como bom catholico e ainda melhor e mais galante

cortezão que é, accrescentar um appendice ao seu precioso tractado da urbanidade, para nos

ensinar que se não deve chamar racca a seu irmão, que a tanto monta o desfiar-lhe nas

bochechas as sandices das trovas, ou desentralhar-lhe a rede de uma prosa ruim.

13 Artigo assinado por Latino Coelho.

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Como quer que seja o caso não passa como nós quiseramos; antes é estylo e usança

que o critico tome as pedras para lapidar os seus mal agourados irmãos em Apollo, ou as

espadanas e louros para atapetar-lhes o caminho triumphal, e lhes inflorar a testa de

esplendidas coroas.

Temos o braço cansado, e dolorido de punir crimes litterarios, e já nos enfada este

officio que é mais de executores d’alta justiça, que de lictores jubilosos em ovação

consular. Temos, desde que andamos neste lidar de criticos, amontoado as corôas, e vimo-

las antes apodrecer, de que appareça alguem para que as fadassem musas. Dir-se-hia que

Apollo, como um rei constitucional, e dorido de continuas revoltas populares, se

desmandou n’uma perseguição atroz, e de Tito ou Marco Aurelio deu comsigo na

inhumanidade e furia d’algum czar ou grão-sultão. E no fim de contas Apollo achamos-lhe

razão no que faz, que bem n’o tem desacatado, e é rei — que mais que façam demagogos

litterarios — não desce do throno, nem dissolve para comprazer aos tribunos do solecismo

— o reaccionário e tenaz parlamento das camenas.

Agora chega-nos a occasião de folgarmos e desencrespar as rugas da fronte. Agora

verão que tambem sabemos applaudir, e juntar a nossa voz ao coro de uma gloria merecida.

Não nos hão de ver escondendo com um gyrão do manto a melhor belleza do quadro, para

que o publico — como se elle fosse cégo e lerdo — não contemplasse por si o que é bello,

antes de nós lh’o apontarmos com a vara magistral. Saberão que — como alguem por ahi

faz a reputações genuinas, e a nomes esculpidos em paginas immortaes — não andamos a

regatear o premio de honra a quem n’o ganhou com juz e razão, e a conceder-lhe uma por

uma — e com mil penas e remordimentos — as folhas cortadas cerce na arvore, para as

entrelaçar — bafejadas de más vontades — na coroa do genio, a só que elle tem para se

consolar das que lhe rouba em ouro, e em galardões de principes — o merceeiro nobilitado,

o agiota, o empreiteiro de eleições, e o chatim que suas malas artes levaram até mais

próximo do cofre — para não dizermos tonel ou dorna — das mercês.

O “Arco de Sanct’Anna” dá-nos margem a exercer aquella parte mais nobre do

criticar, qual é a de recapitular bellezas, e de enlevar se nos fructos do verdadeiro poetar;

sem que comtudo se entenda que so hão de haver hymnos accordes e moviosos, sem

queixas e sem pesares; que só há de o incenso arder no thuribulo sem que uma ou outra vez

algum grãosinho de má resina se ennovelle em fumo nos ares, recendendo menos

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suavemente ao olfato delicado do auctor. E daqui já o promettemos — não serão todas

laudaticias as cordas em que vibramos; tambem ha sons asperos que destoarão por ventura

(duvidamo-lo) ao ouvido do auctor.

Mas é assim que entedemos a critica, e nós não somos cortezãos, que espesinhemos

pequenos, para adular os defeitos dos grandes. Sabemos que o genio impõe a admiração,

mas nunca a idolatria; e tambem o sol, com ser o sol, tão formoso, e tão grande, achou um

ser, um nada quasi, invisivel n’um planeta que é; como dizem os sabios um ponto no

espaço, um observador que descubrisse através do manto real ondeado de deslumbrante

esplendor, as maculas negras do disco solar.

O “Arco de Sanct’Anna” nasceu no Porto, e historicamente para o Porto. Foi

sonhado e ideado ainda no tumultuar da guerra civil, e escripto nos ocios do cerco

memoravel — se ocios havia então naquelle centro da mais enfurecida e assanhada lucta

intestina, que a não ser um degrau fatal da nossa civilisação, ficaria marcada como uma

pagina calamitosa, que se houvera sido a parturição laboriosa de idéas que ainda agora

saem do germen fora o mais sanguento dos fratricidios perpetrados ao sol de Portugal.

Veio á luz ha cinco annos, em um primeiro tomo a que agora serve de complemento

um segundo e ultimo volume. Que a idéa-mãe a inspirasse o Porto com as suas velhas

tradições, e usanças, e habitos, com que o auctor conversaria tanto nos primeiros annos de

sua vida, cremo-lo nós sinceramente. Que os alicerces se começassem de erigir sobre o

terreno demarcado pelas chronicas, confusas é verdade, mas já eloquentes das violencias

ecclesiasticas e feudaes, e que as paredes se levantassem ainda sobre a traça historica, e

crescessem nesta primavera de renascença, em que os animos já lassos de destruir, se

remontavam á poesia dos tempos heroicos, isso tambem o acreditamos. A obra porém,

completou-se sob diversa inspiração. Nas pedras mal juntas ainda, robusteceu-se a ligação e

o nexo com argamassa toda nova, toda actual, toda contemporanea, e a cupula arrojou-se

mais alto do que o pedia o simples interesse do romance, ou a lettra escassa dos velhos

chronicões.

Depois de demolir continuo e necessario (pouco em muitas coisas foi elle, e

exagerado talvez n’algumas) o animo repousou-se nos escombros em que se ia a levantar a

nova basilica de civilisação patria. Viram-se esperanças perdidas, e murchas; illusões

candidas e risonhas, quando ainda em botão, desabrocharem rapidas em desenganos

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pungentes e cruéis; sonhos de adolescencia crente parar em vigília amarga, como de quem

desperta a um estalão de tempestade; promessas mentidas em vez de votos sinceros, e a

materia que saira do cahos aos conjuros da propria potencia revolucionaria, ennovellar-se e

confundir-se quasi n’um novo cahos, que reproduzia quasi o primeiro, intercalando a um e

outro um cataclysmo de sangue, e uma voragem entulhada de ruinas.

Nem as aspirações orgulhosas, e enredadoras do mau clero tinham succumbido na

lucta revolucionaria. As raises da inquisição tinham ganhado fundo o terreno, e alastrado os

campos assás para não hastearem de novo ao menos o tronquinho vivaz do despotismo

clerical. Nesta terra onde a intolerancia fizera hecatombas funebres em honra do Deos vivo,

aqui onde a influencia do clero gastara annos a debellar para renascer depois, tripudiando

sobre a lousa do Pombal, o obscurantismo ecclesiastico encarou as forças para mais rijo

combate, e tentou reconquistar com más traças e artifícios o sceptro temporal que lhes

abolira de ha muito a civilisação, e que lhe viera arrancar das mãos a liberdade, que venceu,

se quer no nome, ainda fumegante da batalha.

“De repente, em dois annos (dizia em 1845 o auctor do “Arco de Sanct’Anna” no

prologo do primeiro volume), a oligarchia ecclesiastica levantou a cabeça. Pode-se dizer

delles o que em mui diverso sentido dizia um eloquente panegyrista dos primitivos cristãos:

— são de hontem e já invadem tudo, o palacio, a curia, o conselho do principe e as

assembléas da nação.”

Já naquelle tempo eram assim. Decorreram mais dez annos e chegados ao de 1850 o

fornilho que andaram apparelhando como bons mineiros que são — fez explosão ...

coitados! Julgaram que se ia alli acabar a Babylonia que os desempossára das suas pingues

prebendas, e do seu bom disfructar os bens da terra. Se alguem houve de sair ferido desta

pugna subterranea, foram elles, de certo, que souberam então o que ha de temerario e

insano em vir lidar com as bombardas grossas da nova civilisação, trazendo por armas os

montantes enferrujados que elles nem tem já pulso para menear. Vieram como juncos a si

medir com as naus de linha, e sairam corridos e retalhados. Bem viram então que acharam

pela frente christãos e catholicos, onde cuidavam encontrar herejes ou lutheranos. Não

houve logar para excommunhões, e debandaram como aquella tumultuaria procissão, em

que, o bispo vai no “Arco de Sanct’Anna” resar as litanias a S. Marcos de Gaia, e cantar o

“Boa gente” ao povo do Burgo-novo.

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O “Arco de Sanct’Anna” não deve ser julgado como um simples romance. É mais

do que um romance, menos que uma historia. É uma satyra verdadeira e pungente, satyra a

que as velhas chronicas deram o mote, o fundo, e a que a veia original e animada do Sr.

Almeida Garrett deu a glosa rescendente de espirito, e de séria observação, em que elle

desenhou — á roda do personagem historico — os elegantes arabescos da sua musa, ora

folgazã, ora grave e poetica, mas sempre genuinamente portugueza, sempre attica no sal,

sempe fluente na dicção, e florida no estylo.

O clero, o ruim, trouxera a terreiro as suas macerações, as suas penitencias, as suas

peregrinações, e os seus martyrios. Preparou-se e ainda hoje não descontinúa na empresa —

para escrever a sua apologia com o sangue, se preciso fôr, dos pensadores livres — para

celebrar as ceremonias da sua beatificação junto dos postes ainda fumegantes dos novos

autos de fé. O Sr. Garrett pediu á historia que lhe dissesse o que ás vezes tem sido o clero, e

, com a luz da tradição, mostrou-nos que sob a dalmatica episcopal lusira já o arnez

temporal do tyranno militar, e que muitas vezes os pastores fementidos e descrentes,

armaram no baculo de paz a espada do exterminio.

Assim como os clerigos maus ficam, á similhança de ex-votos, como diz o poeta,

pendurados do “Arco” — tambem alli se fazia praça para offerecer á exprobração ou abuso

do publico os falsos liberaes, que erigiram o egoísmo em systema politico, dourando-o, e

alindando-o como o edificante pretexto da liberdade, e que deposeram uma aristocracia

poetica para alevantar uma ochlocracia hybrida e prosaica, cancellando o livro das

linhagens para o substituir pela carta de conselho , e pondo por herdeiros aos famosos

descobridores da India, os Gamas e Albuquerques do orçamento ....

No “Arco de Sanct’Anna” ha, fazendo de tela, o romance historico que dá a formula

geral do pensamento do auctor. É um relancear saudosissimo de olhos para aquelle viver

antigo e nacional dos nossos avoengos. É o preito que a melancolia para ás eras antigas a

que se vinculou a gloria. É como o pesar intimo do que de si tinha poesia de enlevar, e que

fomos forçados a alluir, porque chegaram o prazo fatal no revolutear perpetuo da

civilisação. É o suspiro do antiquario, a lamentar a ultima pedra tombada das impostas do

“Arco”, é a contradicção entre o homem que se compraz no progresso e no conforto

ridículo, e o poeta, que amaldiçoa a larguesa da rua, o desafogo das casas, o puro e livre do

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ar, e toda a hygiene municipal, comprada a troco de um monumento que os annos tinham

sagrado, e que o alvião administrativo intimou rudemente em nome da civilisação.

É aquelle o quinhão do poeta, que se revela sempre em quanto escreve. Os tempos

que já lá vão tem sempre poesia, ainda que se haja mister de pôr embargos á historia. O que

a historia diz é para a intelligencia, é para a rasão. O que narra a chronica, o que a tradição

foi commemorando, é como que uma legenda para o sentimento. Crê-se na historia, como

homem, como racionalista, como politico. Ama-se a poesia das reminiscencias vagas, e das

lendas nacionaes como poeta e devaneador. Eis os segredo da antinomia apparente do

mesmo coração, e da mesma intelligencia.

No meio dos seus amores á liberdade, o poeta, qualquer que seja, não esquece os

seus brazões, os da sua terra, que todos se introncam nas quadras heroicas do seu viver.

Como Chateaubriand é ao mesmo tempo fidalgo e democrata, e na sua lyra ha cordas

igualmente afinadas, intimas, sinceras, e affectuosas para entoar o hymno funebre da velha

patria expirante, e a canção heroica da nova idéa que floreja no berço. Entre estas cordas,

sentidissimas todas, vibram as que lançam no presente a exprobação ruidosa das almas

insoffridas. O poeta vive para o passado pela melancolia, para o futuro pela esperança, para

o presente pelo despreso.

No “Arco de Sanct’Anna” ha o romance historico, mais como se fosse uma ballada

que como archeologia.

Ha a satyra religiosa, não como desacato, senão como desforço ao christianismo.

Ha finalmente o pamphleto politico, não revendo coleras, nem transudando injurias,

mas esboçando em quadros animados, singelos, cheios de verdade, e de vida, os ridiculos

dos nossos dias, ás vezes reflectidos a seculos de distancia no reinado celebre D. Pedro-

Cru.

Como romance historico, o “Arco de Sanct’Anna” está muito longe de se amoldar

ás fórmas rigorosas que dão a feição caracteristica aos escriptos deste genero. Percebe-se a

cada passo, vê-se em cada capitulo que o auctor recolhendo o facto como a chronica o

referia, ou como a tradicção o narrara, tomou a liberdade de o adornar com os arabescos de

uma imaginação livre, e que sem se prender ás doutas e profundas investigações

consignadas no “manuscripto dos Grillos” buscou o interesse antes nas paixões do que na

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historia, e mais nos caracteres do que nas paixões, ainda mais no amargor da satira, no vivo

e pungente das allusões, do que no desenho historico dos caracteres.

As chronicas na sua rude singelesa contavam entre as acções do justiceiro e

vingador D. Pedro, um episodio conciso, mas significativo e dramatico: é a punição

tremenda, ousadissima, por então, do bispo de Coimbra. Duarte Nunes diz “que el-rei vindo

a cidade do Porto, ouvio dizer no caminho que o Bispo daquella cidade, que era um prelado

honrado, e de grande auctoridade, tinha fama de dormir com uma mulher de certo cidadão,

e que seu marido com medo delle, se não ousava queixar” e depois accrescenta; “vindo o

bispo, e despejado o paço, el-rei vendo-se soo com a prêa nas mãos, se despio, ficando em

pelote de escarlate, e por sua propria mão tirou ao Bispo todas suas vestiduras, e com um

açoute na mão, brandindo-o para lhe dar, lhe disse que confessasse sua culpa.”

Eis o alicerce historico do romance. A chronica não resa do nome do bispo, não lhe

attribue maus tractos e tyrannias para com os honrados freguezes e mesteiraes do Porto, e

diz assim a medo, e como quem escrupulisa de pôr nome de adultero a um pontifice da

egreja, que el-rei ouvira dizer no caminho — em fórma de boato — a violencia que o pastor

commetia na pessoa da ovelha casta e pudibunda, que revivecida, e remodelada

poeticamente pela inspiração do Sr. Garrett, é a Anninhas que os leitores conhecerão já pela

haverem visto súpplice, desolada e sempre pudicissima, luctar a sós com a fera brutesa do

prelado portucalense.

Com este simples dado historico, a fantasia do poeta pôde voar liberrima, e

desprendida de todas as cadêas archeologicas, procurando a solução do problema sem

importunar as cinzas dos personagens extinctos, e sem macular as suas azas perfumadas e

ligeiras, roçando pelo pó dos cartorios, e pelo esfarelado pergaminho dos diplomas antigos.

O “Arco de Sanct’Anna” não é pois um romance historico na accepção genuina do

termo. Quem procurar a época de D. Pedro-Cru, atravez daquellas paginas logicas,

elegantes, fugitivas, não terá uma decepção, nem encontrará um desapontamento, porque

em vez da erudição historica, e da exactidão archeologica, terá o que mais é de apreciar

para os leitores de hoje — o sentimento, a florescencia do estylo, e o viço poucas vezes

desmerecido de uma dicção espirituosa.

O enredo é simples, a traça modesta. É como uma habitação singela, mas

primorosamente ordenada, onde a vista se não confunde no enredado das galerias, antes se

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compraz em descobrir do limiar toda a bem disposta topographia dos aposentos. Não é

edifício gigante, alteroso, pompeando as galas superfluas de uma decoração esplendida; é

antes como um chalet suspenso graciosamente das montanhas, facil de percorrer n’um

minuto, mas difficil de gosar n’um anno.

Não se admire pois, o leitor de que o “Arco de Sanct’Anna” não vergue ao peso de

descripções eruditas. Como era o “Arco” que deu o nome á historia? Qual era a

physionomia desta casa da meia idade, onde se albergava o abdominoso ou ventrudo juiz

municipal, e quaes eram as confrontações precisas daquella vivenda burgueza? O auctor

não no-las descreveu, nem de tal se necessitava, porque não é o romance caderno

importuno de lançadores de decima. O leitor quereria avivar as suas reminiscencias

scottianas, e desejaria encontrar a descripção viva e colorida dos paços episcopaes, fortes e

acastellados como de senhor e rico-homem, explendidos e abastecidos como paraiso

terrestre de bispo, e bispo do século XIV. Eu tambem me associo ao desejo dos leitores, se

é que tal desejo nasceu e se formulou acaso. A imaginação compraz-se em revoar pelo

passado, e em phantasiar e colorir a sombra, mal esfumada pela historia, daquelle viver

antigo. A batalha suppõe a idéa do terreno; a historia entrelaça-se com a geografia. O ideal,

a posição, o sentimento, estas tres manifestações do homem, como ser intelligivel, tem

necessidade de alguma coisa de material, em que possam projectar-se. A nossa naturesa é

assim rebelde á abstração, e a nossa alma por tal maneira conformada, que precisamos tocar

o mundo physico para nos elevarmos na região ideal.

Mas o auctor não nos quer dar um romance historico, como os de Walter-Scott,

como os de Victor-Hugo, como o Cinq-Mars de Vigny, o mais correto e o mais bello, o

mais ideal e o mais historico de quantos romances temos lido, ou como o Monge de Cister,

exemplo moderno do genero na litteratura nacional.

O “Arco de Sanct’Anna” não tem um cunho indelevel e caracteristico do tempo em

que o poeta refere a sua acção. Assim como ha o que quer que seja de indeciso nos logares,

um certo anatopismo, que nasce não da ausencia das indicações geographicas, senão da

escassez das descripções, ha tambem nelle um vago de tempo, que se poderia chamar um

anachronismo na accepção larga e genuina da palavra. A época esta alli esboçada, mas em

traços soltos, descontinuos, fugitivos. Percebe-se aqui e acolá o traço do esfuminho que

assombreou, não a medo, porque mão costumada a primorosos coloridos contornou e

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desenhou o quadro, mas com a intenção expressa de indicar n’um esbocêto ligeiro, as

feições de uma quadra politica, em que se destaca o vulto de um rei celebrado por virtudes

severas, e flagellado por cruesas inauditas.

A historia singela do “Arco” é até o meio a reprodução daquella scena tragica de

Virginia, tão energicamente descripta pelo romancista da historia romana, por aquelle Tito-

Livio, que era — apesar de tudo — um escriptor imaginoso, e um poeta elegantissimo de

fabulas heroicas.

É um bispo que arrebata uma mulher virtuosa e pudica do lar domestico, para a

sepultar no carcere episcopal. É um bispo que persegue as ovelhas, mas as ovelhas

formosas, as ovelhas consagradas no altar á religião do matrimonio, para as amar ... mas

com que amor? Com o amor da concupiscencia, com o amor carnal, com o amor de um

soldado velho, que nunca desaprendeu a sedução, e a brutesa das batalhas, com o amor de

um prelado ancião, que faz victimas em nome da fé, para as entregar ao mundo, prostituidas

em nome dos seus impudicos e atrozes desejos. É o Appio Cláudio, com as vestes

pontificaes, quebrando a liberdade ás mulheres do povo, e lançando-as no carcere, ante-sala

infame do seu thalamo condemnado. Com a differença porém, que a Virginia é desta vez

uma honesta, mas bella, mulher do Porto, e que em vez de um Virginio que como pai a

defenda contra a volupia do tyranno, a triste mulher tem apenas um honrado marido que

anda pela côrte a negocios, entregando a honra do seu tróro á incorruptibilidade da esposa,

á proteção do ceo, e quem sabe se ao acaso, como fazem muitos maridos dos nossos dias,

sem se confessarem singelos e populares como o pobre Affonso de Campanha.

As iras do povo incendem-se com a profanação da casta Anninhas. O tribuno que

insurge as turbas é Vasco, o estudantinho, o aprendiz de conego, segundo o programa do

bispo, ou o aspirante á mula hipocratica do mestre Simão, o physico, segundo os instinctos

medicos e doutoraes do escolar. Vasco subleva as massas, e erigi-se em dictador, ajudado

dos irmãos Vaz, dois servos e feituras do bispo, que mudam de convicções como agora se

diz, que retiram a sua confiança aos actos episcopaes, e que passam a dirigir a opinião

publica, e a guiar a revolução por bom caminho. Depois da revolução na rua é preciso ir ao

fim, e atacar. Segue-se o assalto aos paços do bispo, o armisticio, as convenções, as

avenças, as trepidações da auctoridade, as concessões momentaneas, mas vagas, e duplices,

como de quem as quer trair dalli a pouco. Vem o conselho ruim, e dispõe-se tudo na Sé

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para desarmar o povo insurgido, no momento em que elle estiver sonhando victoria, e

ouvindo os discursos pasteleiros do bom e piedoso arcebispo de Oliveira, typo destes

homens que por excesso de honestidade e de ordeirismo, são em todas as epocas

verdadeiras creaturas inuteis, e até mesmo perigosas, nos seus desejos impotentes de

conciliação. Quando os homens d’armas do bispo tem suffocado a insurreição, cercando os

burguezes e populares reunidos solemnemente na cathedral, para ouvirem o despacho do

prelado ás justíssimas exigencias do povo, el-rei D. Pedro apparece, e então o Appio

Claudio catholico, é açoutado pelo monarcha justiceiro, e exautorado publicamente,

segundo as fórmas do ritual romano. A Virginia salva a sua honra, sem passar pela

semsaboria tragica do punhal, e Vasco que apparece filho do bispo humilhado e contricto, e

da judia Esther, ou Guiomar, mobil e agente secreto e implacavel da conjuração, cae dos

escudos populares onde o erguera a onda caprichosa do povo sublevado, para se abraçar

com a sua formosa e quase heroica Gertrudinhas, a quem paga com o nome de esposo a

dedicação patriotica com que fôra principal instrumento da salvação da patria. Resta um

personagem — o povo. Esse, provavelmente, dissipou-se como o fumo de uma machina de

vapor no instante da sua intensidade. Derramou-se pela cidade, cantou o hymno, poz

luminarias, deu vivas, e entrou depois em sua casa, tendo ouvido no caminho o tinir dos

copos nos festins dos grandes, que nasceram e medraram com a revolução, e que diziam

emphaticamente ao povo esfaimado como d’antes: — Salvamos-te!

Desde a bernarda dos Caldeireiros, até á revolução de 1820, não ha memoria, que

de tantas revoluções da cidade eterna, a melhor estufa de Portugal para a florescencia das

bernardas, nenhuma fosse tão bem succedida como a de Vasco, que se tivera vivido no

tempo da companhia dos vinhos do Alto Douro, teria impedido, por uma victoria gloriosa, a

carnificina que o marquez de Pombal deu por epilogo á bernarda vinhateira do Porto; e que

se se tivesse dado ao incommodo de estender a sua jovialissima existencia até o nosso

tempo, teria achado, sem sair do Porto, onde exemplificar de novo as propensões

revolucionarias, e quem sabe se estaria agora seguindo a vida ecclesiastica, deão, ou mesmo

deputado ... da bulla da cruzada.

Um romance que sae da penna do sr. Garrett não póde deixar de enlevar por muitas

bellezas immutaveis. Uma qualidade fundamental lhe daria salvo-conduto para atravessar

impavidamente a opinião pública, ainda quando todas as regras do genero houvessem sido

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abertamente infringidas, e que uma severa critica lhe houvesse levado a autopsia até o

esqueleto, para lhe pôr a descuberto os defeitos da concepção. — Esta qualidade é o estylo,

o atticismo do dialogo, a sua naturalidade, a rica singellesa, e o espirito que como uma

aureola necessaria circunda o pensamento do escriptor, apenas elle se revela na sua fórma

verbal e poética. O enredo póde ser frouxo, a época apenas indicada n’um traço, como ás

vezes n’um plano topografhico ligeiramente debuxado se representa um rio caudal por um

veio de anil; os caracteres podem ser imperfeitos, como os esbocetos de uma imaginação

fecunda, mas descuidosa; a historia póde vir com os seus rollos de pergaminhos, com os

seus sellos antigos amarellados pelo tempo, com os seus garafunhos paleograficos, pôr

embargos ao desenlace do poema, e castigar aqui e acolá o arrojo do romancista que

inventa a historia e a vai esquadriar a seu sabor, para fazer-lhe coincidir os entalhes com a

fabula do romance, a phalange dos philologos e dos eruditos póde vir, mesmo, arripiar e

eriçar solemnemente as suas cabelleiras apolvilhadas diante das heresias neologicas e das

innovações de lingoagem; tudo isto póde ser. Mas a este libello offerecido pela critica

implacavel em nome da torre do Tombo, da poetica, da physiologia do coração, da verdade

dos caracteres, do purismo quinhentista, e até — quem o diria? — das decretaes e das

constituições apostolicas, lá tem o “Arco de Sanct’Anna” por eloquentes patronos o

formoso e o natural do dialogo, o agudo do epigramma, e o pintoresco e animado de

algumas das scenas populares, traçadas com a sagacidade de um observador fino, e

alindadas palhetas de um colorista inspirado.

Ha de feito no “Arco de Sanct’Anna” bellezas difficilmente imitaveis. Todas as

scenas em que o sr. Garrett intentou descrever-nos os movimentos populares do “burgo” do

Porto, são realmente admiraveis de belleza, de verdade, de epigramma, e de ligeireza de

estylo. Não dizemos, — nem pomos por isso a mão no fogo — que fosse aquella a theorica

e a practica das “bernardas” no seculo XIV, e que nos quadros revolucionarios do “Arco de

Sanct’Anna” se ache resumida, na revolta dos caldeireiros, todo o nascer, o vigorar, o

crescer, o declinar, e o morrer daquelles arremeços gigantes da burguezia que começava a

trepar aos alcaçares das aristocracias de espada e de baculo, e a medir as suas forças com o

pulso robusto das castas privilegiadas, e a armar a estacada onde devia dar-se esta justa de

muitos seculos, que deu com a nobreza em terra para levar o sceptro ás mãos da burguesia,

segundo e necessario gráu da escala revolucionaria. O que nós podemos, porém, asseverar,

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é que ha naquellas scenas o sello da verdade universal. Accrescentemos que ha um pouco

de malignidade, e um pouco de desfavor para as classes populares, e que o romancista

tomando ás vezes o povo por heroe, e collocando-o nos grupos do primeiro plano, lhe

compensa a estatura collosal com o grotesco da caricatura, e que lançando-lhe aos hombros

a chlamyde da magestade, não se esquece de lhe cozer a um dos girões do manto algum

pedaço do saio ridiculo do truão. É verdade que até nisso ha toques naturaes. Todas as

scenas populares tem o seu lado brutesco, e os seus episodios folgasãos e ridiculos. Até as

grandes revoluções — as que assignalam os capitulos da historia e reformam o mundo —

com seus dramas em que os actores são povos, e o auditorio a humanidade inteira, lá

desenham aqui e acolá os seus grupos caricatos, e emparelham os Hudibras fanfarrões, e os

Sanchos ridiculos com os bustos austeros e venerandos dos Catões e Girondinos. A

humanidade é grande, mas o homem é pequeno.

A graça com que sr. Garrett foi maliciosamente desenhar episodios que são todos

nossos, e da nossa época, no quadro apparentemente “fossil” do seculo XIV, não é uma das

menores bellezas do “Arco de Sanct’Anna” considerado não como romance, senão como

um folhetim espirituoso, escripto entre as molduras da historia, não como chronica

poetisada, senão como satyra de “Figaro” traçada no verso de um pergaminho da edade

media.

Ninguem deixará de ver a reprodução exacta dos nossos ridiculos parlamentares,

das nossas caricaturas politicas em muitos daquelles quadros, onde o anachronismo implora

o seu perdão, em nome do epigramma ligeiro e espirituoso. Mas digamo-lo francamente,

em quanto nos comprazemos com a satyra implacavel das nossas mesquinharias

constitucionaes, em quanto rimos abertamente da cellulosa pessoa do juiz municipal, e

desatamos uma gargalhada conscienciosa em applauso á eloquencia academico-parlamentar

do “pasteleiro” Gileannes, a musa do romance historico vem pertubar a nossa admiração

sincera, e o nosso gozo ineffavel, representando-nos as violações flagrantes em que o

romancista se mostrou menos cortez e respeitador da gravidade e verosimilhança da novella

historica.

Gileannes é, de certo — ninguem o nega — um personagem verdadeiro para os

nossos tempos, e contornando tão esmerada e tão correctamente que não será preciso

convocar um jury de peritos para decidir da sua similhança com o original, ou originaes que

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do mundo real transplanta para a téla do romance. Mas Gileannes, que é uma satyra, que é

um retrato espirituoso, que é uma pagina de Timon, ou se querem um typo de Gavarni, é

uma anomalia, uma excrescencia, um anachronismo na acção do “Arco de Sanct’Anna”.

Gileannes é quasi impossivel, é inverosimil, pelo menos, como typo de um burguez orador

do seculo decimo quarto. Gileannes é não só impossivel, é absurdo como propheta, e como

citador as statistica, que nasceu nos modernos tempos, e dos versos de Shakespeare, que

ainda mesmo hoje, a maioria dos burguezes, e não burguezes, fallando em parlamentos ou

em camaras municipaes, ignoram que existisse nunca no mundo. Ainda mais, o interesse

pelo personagem suppõem a coincidencia do seu typo com uma encarnação actual do que

se chama em frase plebêa um massador parlamentar. Deixai decorrer alguns annos, e a

allusão morta, e inintelligivel, deixará apparecer em toda a sua desnudez a impropriedade

historica do malfadado Gileannes.

A inverossimilhança do desfecho só pode ser resgatada pelo grandioso e bem

traçado da scena final, em que o bispo acha na aspereza de D. Pedro, o Crú, a justa punição

das suas torpezas. Era direito estabelecido que elrei chegando ao Porto se não demorasse no

burgo mais que vinte e quatro horas. A cidade, como terra da Virgem — civitas virginis —

era temporal e espiritualmente governada pelo bispo, que se reputava, por uma ficção de

direito feudal, revelar directamente da padroeira do Porto. Era um costume singular e

poetico, com que os bispo, senhores do direito divino, se esquivavam á auctoridade e á

supremacia do rei. Se o rei chegava ao Porto, o alcaide não lhe ía entregar as chaves, como

o faziam os alcaides das outras terras do reino. O costume mandava que as chaves se

depozessem no altar da Virgem, como legitima senhora que era do burgo portucalense. O

rei se queria assumir a auctoridade, tinha de ir ao altar tomar as chaves, e se o fazia era

inculpado de sacrilegio, como profanador, não dos bens da egreja, senão do patrimonio do

ceo. O costume, pois, e a lenda como ella anda nas chronicas e tradicções, ministrará

riquissimo fundo aonde debuxar a scena final do romance. O sr. Garrett aproveitou os

dados historicos, mas alterou-os um pouco no que tinham de mais inviolavel. Um bispo,

degradado pela auctoridade régia, despojado das infulas sacerdotaes, e de principe da

egreja, e verberado ignominiosamente diante do sacrario, é um arrojo que nem D. Pedro

commetteria. Podiam naquelles tempos assassinar Thomaz Beckett, ou Thomaz de

Cantuaria, junto dos degráus do throno pontificial; podiam encarcerar um prelado, exila-lo,

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persegui-lo, e martyrisa-lo; mas chegar á cathedral, e despir uma por uma as vestes

episcopaes ao prelado mais indigno, com as formalidades austeras do ritual romano, era

commettimento a quem nem bastava a corôa imperial do occidente, que tanto pugnou com

os papas e com a egreja, e que sob tantas excommunhões, vergou sempre na lucta, até cair

de rojo aos pés do poder theocratico. Naquelle tempo, mais do que hoje, era temerosa a

sentença — Não ouseis tocar nos christos do Senhor; — naquelle tempo, mais do que

n’algum outro, era inviolavel a egreja, não da inviolabilidade escripta e theorica que as

revoluções refutam, senão desta inviolabilidade que fazia do templo um asylo, e que dava

direito a um thesoureiro de uma cathedral de França a pousar sobre o altar-mór o falcão e o

nebrí, ao voltar da caça de altaneira a resar vesporas no côro.

A scena final do “Arco de Sanct’Anna” é de mão de mestre, apezar dos defeitos

historicos. Quizeramos, porém, que o bispo fosse menos condescendente, menos timido,

menos poltrão. Achamos inexplicavel esta evoluçãoção rapida que se effeitua no caracter, e

no animo do feroz prelado portuense. Pois a só apparição de D. Pedro basta a desarmar o

braço episcopal? Só o desembuçar desse vulto obscuro, que assiste até o meio da scena,

escondido na penumbra da nave, é sufficiente para fascinar o prelado? E não só para o

vencer, senão para o convercer tambem? E para o converter, e para lhe dar o

arrependimento com a punição, e para lhe despir com as vestiduras prelaticas prelaticias os

odios e paixões mundanas, e toda a crapula do peccador inveterado, e lhe transfundir uma

alma candida, penitente.amorosa, resignada, flagrante de abnegação e de piedade? O

Senhor do Porto tinha supplantado a revolta, estava seguro da reacção, enganara o combate

com a artimanha, e assentára sobre a perfidia os novos fundamentos da sua dominação.

Estava senhor do campo, e D. Pedro, desajudado, porque os seus partidarios estavam

desarmados e presos, converte em ruina do bispo os apparelhos do seu triumpho! Não eram

estas as tradições do Porto, nem as do alto-clero portuguez. As desintelligencias da cleresia

com os reis nas primeiras idades da monarchia, as luctas recentes do bispo do Porto contra

a autoridade real, ensinavam agora ao prelado não a obediencia facil, mas a resistencia

tenacissima. Os bispos daquelle tempo não tinham só o baculo mystico, mas o sceptro

inflexivel. Para elles Cephas cortando a orelha a Malco era tão louvavel e merecedor de ser

o claviculario do céo, como curvando-se ao martyrio na futura metropole do mundo

christão. O christianismo pratico daquelles tempos não mandava offerecer uma face depois

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de esbofeteada a outra, e o clero lançava para longe a bainha da espada para que lhe não

fosse dito como a S. Pedro “mette a tua espada na bainha”.

Que D. Pedro vença, bem. Mas que D. Pedro convença isso é que não é facil de

entender. Que o rei justiceiro seja facil em mandar responder aos audazes e criminosos

pelo seu algoz, isso di-lo a historia. Que seja proficiente na cathechese cristã é o que a

historia calou. Dirão que o desarmou ao bispo aquelle olhar terriel de el-rei a exprobrar-lhe

as suas malfeitorias e infamias; e que para tal effeito foram tambem parte a vista daquella

Esther, erguida diante do bispo como a estatua da Nemésis, e a chaga aberta naquelle peito

endurecido pelo desamor do seu Vasco, pela duresa do filho que idolatrava, e que ao

empunhar a espada a vez primeira, a apontara ao coração do pae, n’uma revolta e n’uma

conjuração aleivosa. Acceito. Mas permittam-me que eu explique o meu gosto. Prefiriria

ver baquear o bispo, grande como era no crime, a vê-lo assistir ao seu funeral. Sacrificara

aqui o exemplo de uma conversão repentina á naturalidade do caracter. Para canduras, para

amenidades d’alma lá estavam a Gertrudinhas, a Anninhas, para piedade a tia Briolanja

(que nos recorda, posto que menos definida, menos historica, menos colorida — a tia

Domingas do Monge de Cister), e lá estava para bondade messer Martim, o burguez, e lá

tinhamos a final o reverendo Paio Guterres, não só para nos edificarmos na sua hombridade

e perfeição, mas até para vermos os sacrificios da virtude, galardoados com a mitra do

Porto, se o papa de então consentisse em lhe enviar as bullas, sendo vivo o legitimo pastor.

Fazemos ainda um reparo. Para o entrecho e contextura do romance, o bispo é a

primeira figura, o protagonista em que naturalmente se fixam as vistas do leitor. É a figura

que se projecta com mais colorido e mais vida na téla animada do poeta. No bispo ha todos

os contornos, todas as tintas de um caracter perfeitamente concebido, e minuciosamente

desenhado. É nelle que se resume a moralidade historica da acção. Era preciso que o vulto

episcopal apparecesse em todo o seu sinistro esplendor, como symbolo e imagem do mau

pastor; assim como havia mister de que fossem bem negregados os seus crimes, para que o

flagello do rei justiceiro estalando-lhe na face resumisse — n’um epilogo eloquente — toda

esta satyra Menippéa, destinada a punir no prelado do seculo XIV os desvios e crimes do

mau clero actual.

Mas o leitor quer antes um personagem a quem decernir a corôa, do que um outro a

quem vote as maldições do estylo. Assim como o bispo é o protagonista dos odios, Vasco é

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indispensavelmente o protagonista das affeições do leitor. Folgamos de que os burguezes e

a raia miuda do Porto levantem por seu capitão escolar, o emprehendedor.

Congratulemonos de que, chefe de uma opposição dita e feita, opposição — não de

mesnsagens e petições, mas de chuços e partazanas — leve a bom recado o intento

revolucionario, e faça vingar a “bernarda dos caldeireiros”. Ainda assistimos com

affectuosa emoção ao consorcio meio-burguez da endemoninhada, mas sempre candida

Gertrudinhas. Permitta-nos, porém, o auctor uma observação. Achamos aquelle Vasco

pouco poetico, pouco privilegiado para gozar dos foros de protagonista. Quizeramos que o

amor ministrasse mais alguns toques a um quadro onde os odios, e malquerenças da guerra

civil entenebrecem, e por vezes ensangüentam a scena. Que primorosos dialogos não

supprimiu o Sr. Garrett! Que scenas de melancolia e de amor intimo no não debuxára o

pincel que creou Adozinda e Magdalena! Como não se animaria, tomando o corpo de uma

individualidade poetica, a figura de Gertrudinhas, já seductora nos seus primeiros

lineamentos e na sua vaga apparição!

O amor será uma banalidade, — é-o, sem duvida, banal como o coração, banal

como as paixões, banal como tudo no mundo. Mas o amor, chrysalida mysteriosa que se

patentêa em mil metamorphoses sempre originaes, o amor, marmore vulgar, donde o

coração, e a poesia sabem ainda extrair formosissimas imagens, o amor é a harmonia do

romance, a vida da acção, o fecho mysterioso deste fragil edificio da vida, cujos cimentos

estão assentes em lagrymas e sangue. Assim como a lua, transparecendo entre as nuvens,

completa e allumia docemente uma paizagem tristemente colorida, assim o amor tempéra

no romance, a aspereza das paixões, e a secura das ambições humanas. Nos cantos d’Ossian

o amor preside de longe ás batalhas, e o ecco plangente e doce das vozes femininas, vem

misturar-se á pavorosa harmonia das tempestades, e ao clangor dos escudos nas florestas do

norte.

Ora o amor de Vasco será o amor do homem politico, o amor da realidade, o amor

laconico como um sorriso, despegado quasi como a indifferença. Mas não é de certo o amor

ideal, o amor do romance, o amor dos dezoito annos, expansivo, cioso, exclusivo, ardente e

enthusiasta. Vasco ama como quem prefere a gloria fugacissima de uma “bernarda” ás

castas affeições da sua amante Gertrudinhas; ama como deveria amar a mãe dos Gracchos,

como as mulheres de Sparta, como amaria hoje uma destas donzellas de rija tempera, que

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preferissem a causa publica ás doçuras de um amor juvenil. Em Vasco vemos o conjurado

antes do amante. Em Gertrudinhas vemos a matrona precoce antes da mulher apaixonada.

Basta de reparos. Tomámos o ramalhete florido, e ceifámos aqui e acolá o que nos

parecem folhas mais crestadas, o que se nos afigurou não florejar, e não recender tão

suavemente. Mas as bellesas ficaram intactas. Havia flores menos recortadas nas pétalas,

menos viridentes, de menos primor nas fórmas? Que importa? O pergume é ainda tão

inebriante, e em tão perennes effuvios o estão aspirando as paginas astisticas do “Arco de

Sanct’Anna”! E que perfume! o estylo, a graça do dizer, o espirito inimitavel. Ora quando

um romance tem um estylo elegante, espirito nas sentenças, e graça e vernaculidade no

exprimi-las, tem comsigo o verniz para encubrir defeitos na contextura.

E quando se critica um romance que sae da penna de quem escreveu o seu nome no

frontespicio de Camões e D. Branca, de quem fundou e enriqueceu o moderno theatro

portuguez, de quem não precisa a pedraria falsa das lisonjas para marchetar os loiros de

poeta, e de quem de sobra possue com que encommendar-se á posteridade, não é arrojo

nem profanação que se ponham objecções, ou se formulem reparos.

6.2. Sobre Viagens na minha terra.

6.2.1. Revista Universal Lisbonense — 17 de agosto de 184314

O escripto, cuja publicação agora incêtamos, é exemplar de genero precioso e novo

em nossa literatura. A seu auctor, o Sr. Conselheiro ALMEIDA GARRETT, que nos honra

com a sua amizade e collaboração, cabe a gloria de ter aberto mais de um caminho, que

outros apóz elle tem seguido e hão de seguir. — O theatro moderno, e o romance patrio

fundou-os elle incontestavalmente. As impressões de viagens, como em todos os paizes de

adiantada civilisação hoje se escrevem em grande abundancia, — estrêa-as tambem elle

agora.

14 Prólogo de apresentação do primeiro capítulo de Viagens na minha terra. O artigo não é assinado. Ofélia Paiva Monteiro afirma ser este texto provavelmente de António Feliciano de Castilho.

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134

No que damos á luz offerecemos pois aos frívolos em estudo desinfastiado, — aos

estudisos, uma recreação prestadia – aos ingenhos fecundos, um incentivo poderoso.

6.2.2. Revista Universal Lisbonense — 23 de novembro de 1843.15

É a VIAGEM NA MINHA TERRA obra politica e partidaria para deverem

estranhar o vel-a em nossa folha?!

Eis-aqui a este respeito candidamente a nossa opinião.

O auctor, é um dos sectarios sabidos e confesados da opposição. No seu escripto dá

testimunho d’isso mesmo: mas o seu escripto ainda assim, não deve ser havido como

politico. Em obras litterarias e poeticas do genero d’esta, ao revéz das obras scientificas,

techinas ou de qualquer outro modo didacticas, o estylo é o fundo principal e ás vezes o

todo: a doctrina occupa o segundo logar e ás vezes nenhum; é como em certas musicas:

agradam e não se lhes pergunta pela tróva.

Se a VIAGEM NA MINHA TERRA val como romance bem está, e bem estamos;

— o restante que lembre em furta-côres as da esquerda, as da direita, ou as do centro —

pouco mal e pouco bem virá por ahi á republica: que nem já hoje se transformam opiniões

com palavras, nem com duas ou tres phrases desgarradas no meio de uma relação leve e

facéta se hão de ellas nunca transformar. Os que tomarem a politica pelo caroço d’este

fructo litterario, comam-n’o deitando fora o caroço; — os que a julgarem casca, comam-n’o

sem a casca — os que a tomarem pela pôlpa não n’o comam, — e temos correntes as

nossas contas.

6.2.3. Revista Universal Lisbonense — 7 de dezembro de1843.16

O que dissemos na advertencia preliminar ao capitulo quinto d’esta Viagem nos

desobriga de emittirmos e fundamentarmos o nosso parecer ácerca de cada um dos gracêjos

politicos do Sr. GARRETT, e com tal desobrigação folgamos nós muito, que não trajamos

nenhuma libré politica e muito menos n’esta folha. Toca porém o auctor n’este capitulo um

15 Advertência que antecede o capítulo V de Viagens na minha terra. Artigo assinado por: “A redacção”. 16 Artigo publicado junto com o capítulo VI de Viagens na minha terra, com o título “Lei de Imprensa”. Não está assinado.

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ponto, que, por se referir a um grande principio de direito constitucional, deve ser

considerado; não o faremos extensa e analyticamente: tudo para isso nos falta; espaço,

gosto, e sciencia; mas de corrida e com sincera consciencia havemos de fazel-o.

Na actual questão da imprensa nenhuma das partes disputantes nos parece ter por si

toda a razão. O relatorio, pelo Governo apresentado, mal poderá a Opposição, e ainda o

empenhado e grandioso talento do nosso amigo o Sr. GARRETT contrastal-o quanto aos

factos, que são de rigorosa verdade, — nem quanto aos principios, que são de inconcussa

philosophia, — nem quanto ás consequencias moraes que são dedusidas com mathematico

rigor. A liberdade da imprensa é um direito inalienavel dos cidadãos; a repressão dos

excessos da imprensa é outro direito tambem inalienavel da sociedade e uma sua obrigação

irremissivel.

A imprensa portugueza passou de livre a licenciosa. Póde-se e deve-se reprimir: as

leis vigentes não bastam para isso; é necessaria uma lei nova; o governo póde propol-a; o

parlamento, achando-a boa, deve approval-a.

Até aqui nada ha em que possam caber refutações ou duvidas, muito menos injurias

ou improperios.

Mas a lei offerecida pelo governo ao parlamento será por ventura boa? temos que

não. Confessado e provado que o jury constituido era injusto, importava — ou demittil-o de

todas as causas de imprensa e não unicamente de algumas, como faz o projecto; ou, se isto

era inconstitucional, reformal-o (reformar é sempre em boa philosophia preferivel ao

destruir).

Para a reformação do jury havia o meio mais facil, mais natural e mais efficaz; —

era exigir-se ao cidadão, para ser jurado, além, ou em vez do censo pecuniario, legaes

abonos do seu senso intellectual: o jury composto dos homens de lei, dos ecclesiasticos, dos

medicos, dos mathematicos, dos philosophos, dos approvados em qualquer sciencia por

uma Universidade, pela Eschola Polytechnica, pela Aula do Commercio etc., dos

professores de qualquer disciplina ou arte liberal etc., etc., etc., não se deixaria enganar, —

nem facilmente subjugaria a sua consciencia, — nem malbarataria por iníquas sentenças o

seu credito.

A substituição, que ao jury se pertende fazer, para o julgamento das injurias da

imprensa contra os objectos maximos do estado, parece-nos mal conforme á carta e á

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philosophia do direito. Uma camara, julgando é já muito — julgando porém em causa

propria (allegue-se o que se allegar de analogias e exemplos estrangeiros) repugnará sempre

o senso intimo: — debalde se diz, que um tão respeitavel corpo e em tão solemnes actos, ha

de timbrar em mostrar-se justo. Não passa isso de um presumpção e pouco verosimil: mais

depressa seria justo e até generoso o individuo offendido, sentenciando ao seu offensor,

porque temeria sempre a nota de egoismo ferrenho, que nenhum dos membros de uma

camara póde recear em condemnando ao inimigo da mesma camara. Ahi, até a mais

flagrante injustiça poderá parecer muitas vezes acto heroico e admiravel sacrificio dos

sentimentos particulares ao interesse e honra da communidade. Antes em tal caso trocar as

mãos, — fazer os pares juizes das offensas contra os deputados, e, aos deputados, das

offensas contra os pares, seria ainda talvez um desvio de constitucionalidade, mas não seria

já infracção do eterno e fundamentalissimo principio de direito nemini licet sibi jus dicere.

Esperâmos que estas razões: se porventura teem o pêso que lhe suppomos, sejam

bem aceitas pelo Governo, que notoriamente não procurou, no seu projecto, senão o bem, e

pelas Camaras legislativas que, não menos ardentemente, o desejam; e que de mais a mais

para emendarem a proposta que se lhes offereceu, teem a razão fortissima do seu melindre

6.2.4. Revista Universal Lisbonense — 26 de junho de 1845.17

A redacção da Revista tem a satisfação de annunciar ao público ter obtido a

continuação e complemento do manuscripto que com este mesmo titulo se começou a

publicar no 3º volume do seu jornal.

Os nossos leitores terão pois o gôsto de ler em portuguez um livro interessante,

tanto pelo lado moral como pelo crítico e litterario, em que acharão fundidos, em mui bem

intendida harmonia, os admiráveis estylos de Swift, Sterne e Xavier de Maistre; e em que

resplandece a philosophia, erudição e amor das coisas patrias, sem o phantastico das

Viagens de Guliver, nem a satyra mordente de Tristam Shandy, mas com toda a elegancia e

graça da Viagem a roda do meu quarto.

17 Artigo, não assinado, que antecede à segunda publicação, na Revista Universal Lisbonenese, do capítulo I de Viagens na minha terra.

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137

E vendo que o auctor tinha notadamente corrigido os primeiros capitulos publicados

ha dois annos, pareceu á redacção que sería mais conveniente, depois de tão longo

intervallo, reproduzil-os agora juntamente com os ineditos, não só para continuar sem

interrupção a serie toda, como para aproveitar as valiosas correcções e additamentos com

que um escriptor tão escrupuloso costuma sempre inriquecer e melhorar as segundas

edições de todas as suas obras.

Por este modo poderão os nossos leitores levar a fio um escripto que precisa ser lido

seguidamente para se não perder nada do admiravel effeito que produzem a singelesa e

graça do estylo, a fina crítica, e o tacto philosophico das obras do Sr. A. G.

Começâmos hoje portanto como o primeiro capítulo, e d’aqui em diante cada

número da Revista publicará um até final conclusão.

Reproduzimos aqui tambem o que a respeito d’esta obra nas nossas columnas o Sr.

A. F. de Castilho no princípio de sua publicação: é um ornamento d’ella, e de que a não

devemos privar.

“O escripto, cuja publicação agora incetâmos, é exemplar de genero precioso e novo

em nossa literatura. A seu auctor, o Sr. Conselheiro ALMEIDA GARRETT, que nos honra

com a sua amizade e collaboração, cabe a glória de ter aberto mais de um caminho, que

outros apóz elle tem seguido e hão de seguir. — O theatro moderno, e o romance patrio

fundou-os elle incontestavalmente. As impressões de viagens, como em todos os paizes de

adiantada civilisação hoje se escrevem em grande abundancia, estrêa-as tambem elle agora.

No que damos á luz offerecemos pois aos frívolos em estudo desinfastiado, — aos

estudisos, uma recreação prestadia — aos ingenhos fecundos, um incentivo poderoso”.

6.2.5. Revista Universal Lisbonense — 11 de dezembro de 1845.18

Os proprietarios editores da REVISTA, vendo a popularidade extraordinaria que

ésta obra tem alcançado, quando publicada em fragmentos nas columnas do seu jornal,

intendem fazer um serviço ás lettras e á gloria do seu paiz, imprimindo-a agora reunida em

um livro para melhor se podêr avaliar a variedade, a riqueza e a originalidade de seu estylo

18 Anúncio da publicação de Viagens na minha terra em livro. Mais tarde este texto é incorporado à primeira edição (em livro). Apesar de não estar assinado na Revista e de aparecer na edição em livro assinado pelos EDITORES, Ofélia Paiva Monteiro afirma ser da pena de Almeida Garrett.

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inimitavel, a philosophia profunda que incerra, e sôbre tudo o grande e transcendente

pensamento moral a que sempre tende, ja quando folga e ri com as mais graves coisas da

vida, ja quando seriamente discute por suas leviandades e pequenezas.

As VIAGENS NA MINHA TERRA são um d’aquelles livros raros que so podiam

ser escriptos por quem, como o auctor de CAMÕES e de CATÃO, de D. BRANCA e do

PORTUGAL NA BALANÇA DA EUROPA, do AUTO DE GIL-VICENTE e do

TRACTADO DA EDUCAÇÃO, do ALFAGEME e de FR. LUIZ DE SOUZA, do ARCO

DE SANCT’ANNA e da HISTORIA LITTERARIA DE PORUGAL, de ADOZINDA e

dos LEITURAS HISTORICAS e de tantas producções de tão variado genero, possue todos

os estylos e, dominando uma lingua de immenso podêr, a costumou a servir-lhe e obedecer-

lhe; — por quem com a mesma facilidade sobe a orar na tribuna, entra no gabinete nas

graves discussões e demonstrações da sciencia — voa ás mais altas regiões da lyrica, da

epopeia e da tragedia, lida com as fortes paixões do drama, e baixa ás não menos difficeis

trivialidades da comedia; — por quem ao mesmo tempo, e como que mudando de natureza,

póde dar-se todo ás mais aridas e materiaes ponderações da administração e da politica, e

redige com admiravel precisão, com uma exacção ideologica que talvez ninguem mais tem

entre nós, uma lei administrativa ou de instrucção pública, uma constituição politica, um

tractado de commercio.

Orador e poeta, historiador e philosopho, critico e artista, jurisconsulto e

administrador, erudito e homem d’Estado, religioso cultor da sua lingua e fallando

correctamente as extranhas — educado na pureza classica da antiguidade, e versado depois

em todas as outras litteraturas — da meia-edade, da renascença e contemporanea — o

auctor das VIAGENS NA MINHA TERRA é igualmente familiar com Homero e com o

Dante, com Platão e com Rousseau, com Thucidides e com Thiers, com Guizot e com

Xenofonte, com Horacio e com Lamartine , com Machiavel e com Chateaubriand, com

Shakspeare e Euripedes, com Camões e Calderon, com Goethe e Virgilio, Schiller e Sá-de-

Miranda, Sterne e Cervantes, Fenelon e Vieira, Rabelais e Gil-Vicente, Addison e Bayle,

Kant e Voltaire, Herder e Smith, Bentham e Cormenin, com os Encyclopedistas e com os

Sanctos-Padres, com a Biblia e com as tradições sanscritas, com tudo o que a arte e a

sciencia antiga, com tudo o que a arte emfim e a sciencia moderna teem produzido. Ve-se

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139

isto dos seus escriptos, e especialmente se ve d’este que agora publicâmos apezar de

composto bem claramente ao correr da penna.

Mas ainda assim, e com isto somente, elle não faria o que faz se não junctasse a

tudo isso o profundo conhecimento dos homens e das coisas do coração humano e da razão

humana; se não fosse, além de tudo o mais, um verdadeiro homem do mundo que tem

vivido nas côrtes com os principes, no campo com os homens de guerra, no gabinete com

os diplomaticos e homens d’Estado, no parlamento, nos tribunaes, nas academias, com

todas as notabilidades de muitos paizes — e nos saloes em fim com as mulheres e com os

frivolos do mundo, com as elegancias e com as fatuidades do seculo.

De tantas obras de tam variado genero com que, em sua vida ainda tam curta, este

fecundo escriptor tem enriquecido a nossa lingua, é ésta talvez, tornâmos a dizer, a que elle

mais descuidadamente escreveu, mas é tambem a que, em nossa opinião, mais mostra os

seus immensos podêres intellectuaes, a sua erudição vastissima, a sua flexibilidade de

estylo espantosa, uma philosophia transcendente, e por fim de tudo, o natural indulgente e

bom de um coração recto, puro, amigo da justiça, adorador da verdade e inimigo declarado

de todo o sophisma.

Tem sido accusado de sceptico: é a accusação mais absurda e que póde denunciar

em quem a faz, ou grande ignorancia ou grande má fé. Quando o nosso auctor lança mão da

cortante e destruidora arma do sarcasmo, que elle maneja com tanta fôrça e dexteridade, e

que talvez por isso mesmo, conscio de seu podêr, elle rara vez toma nas mãos — veja-se

que é sempre contra a hypocrisia, contra os sophismas e contra os hypocritas e sophistas de

todas as côres que elle o faz. Crenças, opiniões, sentimentos, respeita-os sempre. Ainda as

suas ironias que tanto ferem, não as dirige nunca sôbre individuos; ve-se que despreza a

facil vingança que, com tão poderosas armas, podia tomar de inimigos que o não poupam,

de invejosos que o calumniam, e a quem por cada dicterio insulso e ephemero com quem o

teem pretendido injuriar, elle podia condemnar ao eterno oppobrio de um pelourinho

immortal como as suas obras. Ainda bem que o não faz! mais immortaes são as suas obras,

e quanto a nós mais punidos ficam os seus emulos com esse desprêzo do homem superior

que se não appercebe de sua malignidade insulsa e insignificante.

Voltando á accusação do septicismo, ainda dizemos que não póde ser sceptico o

espirito que concebeu, e em si achou côres com que pintar tão vivos, characteres de crenças

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140

tão fortes como o de Catão, de Camões, de Fr. Luiz de Sousa, — e aqui n’esta nossa obra,

os de Fr. Diniz, de Joanninha, da Irman Francisca.

Não analysâmos agora as VIAGENS NA MINHA TERRA: a obra não está ainda

completa e não podia completar-se portanto o juizo; dizemos somente o que todos dizem e

o que todos podem julgar ja.

A nosso rôgo, e por fazer mais digna da sua reputação ésta segunda publicação da

obra, o auctor prestou-se a dirigil-a elle mesmo, corrigiu-a, additou-a, alterou-a em muitas

partes, e a illustrou com as notas mais indispensaveis para a geral intelligencia do texto: de

modo que sahirá melhorada do que primeiro se imprimíra.

VIAGENS NA MINHA TERRA

POR

ALMEIDA GARRETT

BELLA EDIÇÃO CORRECTA E NITIDA, REVISTA, AUGMENTADA E

ILLUSTRADA PELO AUCTOR.

DOUS VOL. 8vo

O primeiro volume sahirá nos primeiros dias do anno que entra, o segundo seguirá

immediatamente.

As pessoas que quizerem assignar deverão fazel-o com a maior brevidade.

Preço para os assignantes somente 480 rs.

Assigna-se: em Lisboa, no Escriptorio da REVISTA UNIVERSAL, rua dos

Fanqueiros nº 82 — 1º andar, no Porto, Francisco José Coutinho, na Typografia

Commercial Portuense, em Coimbra, Joaquim Maria Soares de Paula, na Imprensa da

Universidade, em Faro, José Coelho de Carvalho, em Braga, Luiz do Amaral Ferreira, rua

da Fonte da Corcova nº 23, em Evora, José Mathias Carreira, na Terceira, Lucas José

Chaves, no Fayal, Manuel Maria Madruga de Bettancourt, em S. Miguel, Sebastião Tudury,

no Rio de Janeiro, Agostinho de Freitas Guimarães e Comp.ª, no Pará, Luiz Francisco

Collares, e em Pernambuco Izidoro Luiz de Souza Monteiro.

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141

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Lisboa: Editorial Caminho, 1997.

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In: LINHARES, Maria Yedda (org.). História geral do Brasil. São Paulo: Editora Campus,

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História de Portugal – O liberalismo. 5º volume. Lisboa: Editorial Estampa, 1998.

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masoquismo moral nas literaturas portuguesa e brasileira (1829 - 1899). Tese do

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Rio de Janeiro: EdUERJ, 1996.

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de Portugal – O liberalismo. 5º volume. Lisboa: Editorial Estampa, 1998.

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In: MATTOSO, José (org.). História de Portugal – O liberalismo. 5º volume. Lisboa:

Editorial Estampa, 1998.

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Portugal – O liberalismo. 5º volume. Lisboa: Editorial Estampa, 1998.

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Garrett. Lisboa: MNT, 2003.

VASCONCELOS, Sandra Guardini. Dez lições sobre o romance inglês do século XVIII.

São Paulo: Boitempo Editorial, 2002.

7.2. Jornais e Revistas:

A REVOLUÇÃO DE SETEMBRO. Lisboa: Typ. de J. B. de A. Gouveia. (1845-1851).

A SEMANA: jornal litterario e instructivo. Lisboa: Imprensa Nacional. (1851).

DIARIO DO GOVERNO. Lisboa: Imprensa Nacional.(1845).

REVISTA UNIVERSAL LISBONENSE: Jornal dos interesses physicos, Moraes, e

literários por uma sociedade estudiosa. Lisboa: Imprensa Nacional. (1843-1851)

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