Vieira, o Incansável - Revista de História

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  • 12/03/2015 Vieira,oIncansvelRevistadeHistria

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    Vieira, o IncansvelBrao direito do rei e inimigo da Inquisio, jesuta dedicouse a muitoscombates, perdeu a maioria, mas marcou o sculo

    Ronaldo Vainfas

    1/1/2015No exagero dizer que Antnio Vieira foi o principal jesuta lusobrasileiro do sculo XVII. Nomnimo. Neto de mulata pelo lado paterno e filho de meia cristnova pelo lado materno, sempretentou esconder tais origens, mas teve pouco xito. Nos anos em que viveu na corte, seus inimigos oacusaram de judeu e mulato em panfletos difamatrios. Em uma sociedade marcada pelo ideal delimpeza de sangue, eram denncias graves.Nascido em Lisboa, em 1608, ele passou a infncia e a juventude na Bahia, onde seu pai foi escrivodo tribunal da Relao, nomeado pelo rei. Foi l que Vieira tornouse jesuta e iniciou a carreira deorador sacro, missionrio e poltico. Acompanhou as conquistas holandesas, tanto na Bahia em 1624quanto em Pernambuco em 1630. J era muito prestigiado em 1640, quando D. Joo IV foi aclamadorei de Portugal em prejuzo do rei castelhano Felipe IV. A Restaurao estava em marcha contra aUnio Ibrica, e Antnio Vieira integrou a comitiva enviada pelo governador do Brasil para jurarlealdade ao novo rei.Com seu carisma, logo conquistou a confiana do monarca, tornandose seu principal conselheiro.Viveu no reino entre 1641 e 1653, atuando em misses diplomticas na Frana e na Holanda. Suagrande obsesso foi, ento, lutar pela consolidao da monarquia, renovando suas bases de apoio erecuperando o errio rgio. Portugal estava combalido, privado da maioria das capitanias aucareirasdo Brasil, de portos estratgicos na costa africana e de praas importantes na ndia.O projeto de Vieira, adotado pelo rei, foi o de buscar o suporte dos cristosnovos, amparado emDuarte da Silva, grande banqueiro, com ligaes na Bahia, que o jesuta conhecia bem. Mas o planoousava mais: atrair os cristosnovos que tinham regressado ao judasmo na Frana e na Holanda. E setratava no s dos capitais, mas tambm de incentivar os prprios mercadores e suas famlias a viverem Portugal.

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    A gravura em guaforte, de 1650, retrata o processo da guerra de Restaurao Portuguesa at acoroao de D. Joo IV. (Imagem: Fundao Biblioteca Nacional)

    claro que tal plano implicava enfrentar a Inquisio. A luta comeou em 1643, com a Proposta feitaa elrei em que se lhe representava a necessidade que tinha de admitir os judeus mercadores queandavam por diversas partes da Europa. A conjuntura era propcia porque o Santo Ofcio estavadividido. Parte dele seguia o inquisidor geral, D. Francisco de Castro, favorvel dinastia dos Felipes.O prprio inquisidormor fora preso por integrar uma conspirao contra o monarca portugus, em1641, embora libertado pouco depois.Apoiado pelo rei, Vieira reuniuse com mercadores judeus em Rouen e Amsterd, assegurando que aInquisio estava nas ltimas. No estava: mandou prender homenschave da rede liderada pelojesuta, como Duarte da Silva e o judeu novo (portugus convertido ao judasmo) Manoel Vila Real,que acabou queimado. Tambm morreu na fogueira, em 1647, o jovem Isaque de Castro, causandoindignao na comunidade judaicoportuguesa de Amsterd. Tais fatos abalaram a credibilidade deVieira entre os judeus portugueses da dispora europeia.Mas o padre reagiu ainda em 1647, com a Proposta a favor da gente da nao sobre a mudana deestilos do Santo Ofcio e do fisco. Defendia nada menos do que retirar da Inquisio o controle dosbens confiscados aos cristosnovos condenados como judaizantes. O rei adotou a proposta em alvarde 1649. No mesmo ano, surgiu a Companhia de Comrcio do Brasil, com capitais de cristosnovos,por isso mesmo chamada de companhia dos judeus. A conexo entre o combate ao confisco de bens eos interesses dos cristosnovos era evidente.

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    Gravura do Padre Veira pregando na Igreja deSanto Antnio da Bahia. (Imagem: FundaoBiblioteca Nacional)

    No campo diplomtico, Vieira escreveu o Papel Forte, em 1649, propondo a entrega aos batavos dascapitanias aucareiras em disputa. A Insurreio Pernambucana havia azedado as negociaes com osholandeses pela recuperao daquela capitania, e o jesuta estava convencido de que, se a Holandabloqueasse o Tejo como ento ameaava, a soberania portuguesa seria destroada.Vieira abriu frentes de combate que no tinha condies de vencer. No caso pernambucano,contrariou os conselheiros do rei que apostavam, com razo, na vitria dos rebeldes. A proposta sobreo confisco de bens dos cristosnovos desencadeou um conflito com o papado, o que levou osinquisidores a recorrer para anular o alvar real. D. Joo IV, cuja legitimidade no era reconhecidapor Roma, negouse a cumprir a deciso papal. Vieira apoiou o monarca nesta deciso, para no dizerque o aconselhou, mas foi longe demais: contrariar o papa significava atropelar os estatutos daCompanhia de Jesus, cujo voto solene era justamente o de lealdade incondicional ao Sumo Pontfice.O alvar foi confirmado, mas os jesutasportugueses se dividiram. O grupo de inacianosque apoiava o papa triunfou, e o padre portugusquase foi expulso da Companhia, o que s noocorreu graas interveno do rei. Na soluonegociada, Vieira continuou jesuta, mas foiafastado da corte. Realizou sua ltima missodiplomtica em Roma, em 1650, propondo aosdelegados castelhanos o plano de casar a filha dorei espanhol com o herdeiro do trono portugus,D. Teodsio, incluindo a mudana da corte deMadri para Lisboa. Unio Ibrica portuguesa.Desastre total.Ele no teve sada seno partir para So Lus, em1653, no cargo de Superior das Misses. Por algumtempo caiu em total melancolia. Escrevendo a um velho companheiro, contou que andava vestido comum pano grosseiro da terra, mais pardo do que preto, dormia pouco e no saa de sua palhoa pornada. No tardou, porm, a recobrar o nimo, percebendo que ali havia inimigos poderosos acombater: os apresadores de ndios. Antes de tudo, treinou os padres e organizou os aldeamentos.Percorreu vasto territrio, visitando Belm do Par, a serra de Ibiapaba, no Cear, e diversas partesdo Maranho. Viajava em comboio de canoas pelos rios amaznicos.Arrancou do rei leis favorveis aos ndios e combateu os apresamentos arbitrrios. Pregou sermescontra os escravistas e interveio em vrias causas especficas com o apoio do governador, conseguindoprovar muitos cativeiros ilegais. Mas no primava por tentar compreender os ndios, como Anchieta nosculo anterior. Pregando a missionrios, chegou a chamlos de selvagens terrveis. Que os padres seacautelassem! Vieira no amava os ndios, mas a catequese da Companhia de Jesus. De todo modo, oscolonos o odiavam. E em 1661, deram um basta: expulsaramno, e aos demais jesutas.Durante o exlio amaznico ele tambm se dedicou s letras, varando noites ensimesmado com ofuturo da monarquia portuguesa. Escreveu, em 1659, a famosa Carta ao Bispo do Japo, dandocontinuidade a um escrito iniciado dez anos antes, a Histria do Futuro. Neste ltimo, previa aascenso de Portugal como a cabea do Quinto Imprio do Mundo, reflexo inspirada pelo encontrocom o principal rabino portugus de Amsterd: Menasseh Ben Israel. Outra influncia foram as Trovasdo Bandarra, consideradas a Bblia do sebastianismo. No texto de 1659, sustentou que o advento doQuinto Imprio estava prximo com a ressurreio de D. Joo IV, falecido em 1653, herdeiro de D.Sebastio, desaparecido (morto jamais!) em Alccer Quibir, no norte da frica, em 1578.Vieira mostrouse ancorado em dois sistemas de conhecimento. De um lado, tinha conscincia dadecadncia portuguesa no sculo XVII. De outro, parecia convencido de que a glria eterna daquelamonarquia era vontade de Deus. Buscava a ligao invisvel entre os atos polticos e os desgniosdivinos, combinando o clculo maquiavlico com o modelo providencialista da histria, moda deSanto Agostinho.

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    Detalhe da biografia de Vieira por Andr de Barros,publicada em 1746. (Imagem: Fundao BibliotecaNacional)

    Expulso do Maranho, passou anos terrveis emPortugal. Intimado pela Inquisio de Coimbra, em1663, presumiu que o acusariam pelas atitudesantiinquisitoriais dos anos 1640. Nada disso. Oproblema residia em seus escritos profticos eherticos. Em 1665, foi preso e redigiu suadefesa, base de outro escrito indito, a ClavisProphetarum (Chave dos Profetas). Nele Vieirarecua, deixando Portugal de lado para realar oReino de Cristo como cabea do Quinto Imprio.Medo da Inquisio? Talvez. Em 1667, foicondenado recluso em alguma casa inaciana,privado do direito de pregar e proibido de votarou ser votado para cargos na Companhia de Jesus.

    Mas a Inquisio no conseguiu anular Vieira: um golpe palaciano no mesmo ano resultou na suspensode sua pena. O rei D. Afonso VI foi destronado pelo irmo, D. Pedro, apoiado por amigos do jesutana corte: o duque de Cadaval e o conde da Ericeira. Amparado na nova ordem, ele recuperou aliberdade e os seus direitos como jesuta e pregador.No custou a perceber, porm, que jamais teria a influncia poltica de antes. Partiu para Roma em1668, para tentar anular mais do que suspender a sentena que recebera do Santo Ofcio. Mas seuprojeto, como sempre, era mais ambicioso. Apoiado pelos cristosnovos portugueses, lideroucampanha para desmoralizar a Inquisio portuguesa e, quem sabe, obter do papado a extino dotribunal. Em 1673, revisou as Notcias recnditas do modo de proceder da Inquisio, escritas por umexnotrio patrocinado pelos cristosnovos. O texto trucidava a Inquisio como tribunal. Um anodepois, escreveu o Memorial a favor da gente de nao hebreia, condenando a limpeza de sanguecomo critrio para separar cristos velhos e novos. Usou, ento, argumento indiscutvel: o prprioCristo era judeu. A campanha deu certo. A Inquisio portuguesa foi suspensa no mesmo ano e, noano seguinte, a sentena contra Vieira estava anulada.Em 1680, retornou a Lisboa com assento no Conselho de Estado. Voltou a atuar nas questescoloniais, conseguindo a aprovao de nova lei contra o cativeiro dos ndios e a jurisdio exclusiva daJunta das Misses sobre os aldeamentos. Em 1682, foi criada, sob a inspirao do jesuta, aCompanhia de Comrcio do Maranho, com capital de cristosnovos. Entre outros, ela recebeu omonoplio de vender africanos no Maranho. A companhia resumia uma antiga convico de Vieira edos jesutas, em geral: incentivo escravido negra e combate ao cativeiro indgena.quela altura, o religioso vivia novamente no Brasil. Deixara Lisboa em 1681, inconformado com arestaurao da Inquisio, e voltou sua terra de formao, a Bahia de Todos os Santos. Jseptuagenrio, dedicouse publicao do vasto sermonrio pregado durante dcadas. Recluso nacasa do Largo do Tanque.Nem por isso ficou quieto. Apoiou o irmo Bernardo Ravasco, secretrio de Governo do Estado doBrasil, contra o governador Antnio de Sousa Meneses. Era uma disputa poltica com ares de casopolicial, pois Bernardo fora acusado pelo governador de ser o mandante do assassinato de FranciscoTeles, alcaidemor de Salvador, em 1683. Ravasco foi preso e teve seu patrimnio embargado. Em1687, porm, recuperou bens e cargo por gesto de Vieira junto ao conde de Cadaval, velho aliado.Nos ltimos anos de vida, ainda teve flego para esgrimir suas posies sobre assuntos coloniais.Posio rebelde em 1694, ao criticar o acordo feito pelos jesutas com os administradores de ndiosem So Paulo. Posio conservadora em 1691, quando condenou a alforria dos quilombolas dePalmares em troca da paz. Esta mesma liberdade, escreveu, seria a total destruio do Brasil.Zumbi morreu em 1695, decapitado. Vieira em 1697, com quase 90 anos. Alquebrado mas lcido,faleceu de morte natural. Seu maior bigrafo, Joo Lcio de Azevedo (18551933), qualificou o Vieirada ltima fase como vencido, derrotado nas lutas que enfrentou ao longo da vida. Mas a opinio

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    inexata. Primeiro, porque perdeu algumas batalhas, mas venceu outras. E sobretudo porque, mais doque vitrias, o que ele mais apreciava era o combate. Soldado de Cristo, jesuta do rei.Ronaldo Vainfas professor da Universidade Federal Fluminense e autor de Antnio Vieira, jesuta dorei (Companhia das Letras, 2011).Saiba MaisAZEVEDO, Joo Lcio. Histria de Antnio Vieira (original de 1921). So Paulo: Alameda, 2008.AZEVEDO, Silvia Maria & RIBEIRO, Vanessa Costa. Vieira: vida e palavra. So Paulo: Loyola, 2008.LIMA, Lus Silvrio. Padre Vieira: sonhos profticos, profecias onricas. So Paulo: Humanitas, 2004.