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VIDEOGAME, CINEMA 1 E PEDAGOGIAS CULTURAIS: POSSIBILIDADES DE INTERAÇÃO Prof. Dr. Raimundo Martins – PPG em Arte e Cultura Visual - UFG Doutoranda Jordana Falcão - PPG em Arte e Cultura Visual - UFG RESUMO Este artigo é parte da pesquisa de doutorado “Gamificação e educação da cultura visual: jogando com sentidos dados por crianças a advergames 2 em desenvolvimento no Programa de Pós- Graduação em Arte e Cultura Visual da Universidade Federal de Goiás. O texto é um recorte da pesquisa e aborda aspectos das pedagogias culturais que podem ser explorados nos games 3 , especificamente, os dilemas vividos por três personagens de videogames no filme Detona Ralph. Tomando a educação da cultura visual como campo de estudo para fundamentar as discussões, o artigo analisa modos de abordar temas complexos como estereótipos, educação inclusiva e representações de gênero no espaço escolar. Palavras chave: Educação da Cultura Visual, pedagogias culturais, cinema, videogame, Detona Ralph. ABSTRACT This article is part of the doctoral research “ Gamification and visual culture: playing with meanings from children and advergames , being developed in the Gradute Program in Art and Visual Culture at the Federal University of Goiás. The text is a partial result of the investigation which examines aspects of cultural pedagogies that can be explored in the games, specifically the dilemmas lived by three characters of the videogames included in the film Detona Ralph . Taking visual culture education as field of study to base the discussions, the article analyses different approaches to complex themes such as stereotypes, inclusive education, and gender representations within the school environment. Palavras chave: Visual Culture Education, pedagogias culturais, cinema, game, Detona Ralph. Da tela da TV para a tela do cinema

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VIDEOGAME, CINEMA1 E PEDAGOGIAS CULTURAIS: POSSIBILIDADES DE INTERAÇÃO

Prof. Dr. Raimundo Martins – PPG em Arte e Cultura Visual - UFGDoutoranda Jordana Falcão - PPG em Arte e Cultura Visual - UFG

RESUMO

Este artigo é parte da pesquisa de doutorado “Gamificação e educação da cultura visual: jogando com sentidos dados por crianças a advergames2” em desenvolvimento no Programa de Pós-Graduação em Arte e Cultura Visual da Universidade Federal de Goiás. O texto é um recorte da pesquisa e aborda aspectos das pedagogias culturais que podem ser explorados nos games3, especificamente, os dilemas vividos por três personagens de videogames no filme Detona Ralph. Tomando a educação da cultura visual como campo de estudo para fundamentar as discussões, o artigo analisa modos de abordar temas complexos como estereótipos, educação inclusiva e representações de gênero no espaço escolar.Palavras chave: Educação da Cultura Visual, pedagogias culturais, cinema, videogame, Detona Ralph.

ABSTRACT

This article is part of the doctoral research “Gamification and visual culture: playing with meanings from children and advergames, being developed in the Gradute Program in Art and Visual Culture at the Federal University of Goiás. The text is a partial result of the investigation which examines aspects of cultural pedagogies that can be explored in the games, specifically the dilemmas lived by three characters of the videogames included in the film Detona Ralph. Taking visual culture education as field of study to base the discussions, the article analyses different approaches to complex themes such as stereotypes, inclusive education, and gender representations within the school environment.Palavras chave: Visual Culture Education, pedagogias culturais, cinema, game, Detona Ralph.

Da tela da TV para a tela do cinema

Desde os anos 60, quando os primeiros jogos para computador4

passaram a ser comercializados, os games se desenvolveram em uma

sucessão incontável de avanços tecnológicos. Tais avanços favoreceram o

desenvolvimento diversificado de jogos de vários gêneros e a incorporação de

acessórios de controle como instrumentos musicais e simuladores de vôo. Os

consoles agora podem ser individuais e portáteis ou, ainda, podem permitir a

ação de múltiplos jogadores. Além disso, o acesso tornou-se facilitado pela

possibilidade de jogar conectado à internet ou mesmo por meio de celulares.

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Nunca antes se jogou tanto quanto nos dias de hoje. Jane McGonigal

(2011) contabilizou que juntos, os jogadores de videogames ao redor do globo,

gastam atualmente 3 bilhões de horas por semana em desafios on line. Apenas

no game World of Warcraft foram investidos coletivamente pelo menos 5,93

milhões de anos jogando. O título do jogo é tema da segunda maior

enciclopédia colaborativa virtual do mundo, perdendo apenas para a Wikipedia.

Atualmente, Grau e Veigl (2011) medem a relevância da produção e do

consumo de jogos informando que a indústria dos games já superou

economicamente a de filmes. Embora os jogadores se distribuam entre todas

as faixas etárias, é nas crianças que a indústria dos games concentra seu foco,

pois cerca de 45% dos jogadores ainda não alcançou os 18 anos (DAHL,

EAGLE E BÁEZ, 2009). Cada vez mais as crianças tem acessado a internet e,

de acordo com Moore (apud DAHL, EAGLE E BÁEZ, 2004), duas em cada três

crianças com idades entre 5 e 14 anos, ficam online exclusivamente para jogar.

Atentos ao interesse que os games tem despertado em crianças, os

produtores de cinema trataram de abordar o tema na animação Detona Ralph.

A estratégia englobou também o lançamento on line5 dos principais jogos

presentes no filme, como o próprio Detona Ralph (figura 1), Corrida Doce e

Missão de Herói, além de uma versão do longa metragem em jogo para o

console Wii.

Figura 1 - Game Detona Ralph

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A trama se passa numa realidade paralela à de um fliperama. Depois

que a loja fecha, os personagens dos jogos ganham vida, saem das máquinas

e circulam por uma cidade virtual. O personagem título do game destrói janelas

de prédios para que o herói Felix Jr. as conserte. Mas, ao fim de seu

expediente de trabalho, o “vilão” não consegue socializar com outros habitantes

de seu jogo e passa a ser evitado em outros espaços da cidade. Cansado de

ser excluído, Ralph, então, parte para outros jogos em busca de uma medalha,

artefato que provará seus méritos e permitirá seu ingresso no grupo.

Da sala de estar para a sala de aula

Participando do cotidiano de crianças e jovens, os games e o cinema

são parte de uma cultura visual contemporânea midiatizada. São capazes de

articular significados e habitar o imaginário de tal forma que já não é possível

desconsiderar essas mídias como centrais nesse momento da experiência

humana (SILVESTONE, 2005). De acordo com Martins e Tourinho (2011) as

mídias difundem informações, valores e opiniões e, os usos e sentidos

conferidos às suas imagens merecem, por esta razão, a atenção que a cultura

visual lhes tem dispensado:

Convivemos com mídias conhecidas (fotografia, televisão e filme);

mídias tradicionais (pintura, escultura e design) e, ainda, novas

mídias artísticas e multimídias, como a web e o processamento

digital. Juntas, essas mídias veiculam imagens de informação, de

arte, ciência, ficção, publicidade e cultura popular, enfatizando o papel

e a importância das visualidades e das mídias visuais no nosso

cotidiano e na disseminação de ideias nas esferas pública e privada.

Como campo de estudo transdisciplinar, a cultura visual, além do

interesse de pesquisa pela produção artística do passado, concentra

atenção especial nos fenômenos visuais que estão acontecendo hoje,

no uso social, afetivo e político-ideológico das imagens e nas práticas

culturais que emergem dos usos dessas imagens. (TOURINHO e

MARTINS, 2011, p. 53)

Como já posto, a cultura visual se vale de conhecimentos

transdiciplinares para abordar criticamente as potencialidades de vários tipos

de imagem para consolidar, desconstruir ou questionar processos

interpretativos (NASCIMENTO, 2011). Hernandéz (2011, p. 34) complementa

esse argumento afirmando que o campo “permite indagar sobre maneiras

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culturais de olhar e os efeitos sobre cada um de nós”. Assim, a cultura visual se

aproxima da educação ao investigar a construção de sentidos e significados

advindos de experiências com imagens. Nascimento (2010, p. 213), ao analisar

os objetivos da Educação da Cultura Visual afirma que:

É possível presumir que o interesse principal é tentar confrontar diferentes modos de ver, dizer, pensar e fazer veiculados pelas imagens. Questionar as interpretações existentes, atentando para as condições históricas que contribuíram para tornar uma determinada afirmação aceitável, e criar possibilidades para que outras possam surgir, são as provocações fundamentais da Educação da Cultura Visual.

Por meio da Educação da Cultura Visual é possível estudar imagens de

arte, do cotidiano e das novas mídias, especialmente. Isso por que o campo

reconhece a existência do que Kincheloe e Steinberg (apud AGUIRRE, 2009)

chamam de “pedagogias culturais”, ou seja, “um conjunto de conteúdos

formativos que não são administrados pelas vias tradicionais de educação

formal, mas sim pelos meios de comunicação de massa, basicamente”

(AGUIRRE, 2009, p. 165).

Fernando Hernandez (2007, p. 81) também defende a inclusão de

objetos/assuntos familiares aos estudantes, embora alheios aos currículos,

como, por exemplo, filmes e jogos eletrônicos, nas problematizações sobre

educação e escola. Para o autor, quando estabelecem relações entre o que

aprendem na escola e as experiências externas a ela, os alunos se sentem

mais motivados a aprender. A partir desse argumento, Hernandez explica que

o “objetivo dos educadores (...) deveria ser o de considerar os interesses e os

prazeres da cultura visual dos alunos e alunas como possibilitadores de

reflexão crítica”.

Tourinho e Martins (2011) concordam com Hernández ao caracterizar o

espaço da escola e os professores, especificamente os professores de arte,

como mediadores das discussões sobre as imagens do cotidiano e, em

decorrência, as produções simbólicas daí depreendidas. Para os autores

Essas condições e circunstâncias [emergência da imagem digital e

seu uso pelas indústrias de entretenimento] apontam para a

necessidade de formar professores de arte preparados não apenas

para analisar e interpretar imagens, artefatos artísticos e tecnológicos,

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mas, especialmente, para ajudar os alunos a compreender e

desenvolver uma atitude crítica em relação à indústria da imagem e

do entretenimento. (TOURINHO E MARTINS, p. 56)

Incluindo as pedagogias culturais em seus debates, a Educação da

Cultura Visual ressalta a importância ao mesmo tempo em que reconhece a

força das imagens do cotidiano como detonadoras de diálogos capazes de

promover reflexão e criticidade acerca de tais artefatos. Diante disso,

proporemos, a seguir, um breve debate sobre diferenças que consideramos

importante destacar e refletir com crianças a partir do filme Detona Ralph

(figura 2).

Figura 2 - Poster do filme e o personagem título.

Ralph, Vanellope e Calhoun: espaços de ensino das pedagogias culturais

Detona Ralph é um faz-de-conta infantil que dá vida, personalidade e

sentimentos a personagens virtuais de jogos de um fliperama. O filme

mostra/aborda situações e dilemas da vida real quando a loja fecha e

funcionários dos games saem de seus postos de trabalho para bares, reuniões

de grupo de apoio (Vilões Anônimos) e encontros românticos, por exemplo.

Ralph trabalha como vilão e sua função é destruir janelas para que Felix

Jr. possa consertá-las. O papel de “bad guy” que desempenha no serviço

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acaba atrapalhando e até mesmo comprometendo sua vida social, pois os

outros personagens o consideram grosseiro, descuidado e mau. Em uma

discussão sobre porque Felix Jr. é homenageado nos 30 anos do jogo e ele,

excluído da festa, Ralph ouve comentários depreciativos acerca do seu

comportamento enquanto as qualidades de Felix Jr. são enaltecidas e, como

exemplo, mencionam a medalha que ele ganha ao fim de cada partida. Assim,

Ralph acredita que ao conquistar sua própria medalha, conseguirá demonstrar

que é bom e poderá integrar-se aos outros.

Em busca do prêmio, Ralph entra no jogo Missão de Herói, toma o lugar

de um dos soldados para combater “insetrônicos”6 e, enfim, recebe a

recompensa. Na volta para seu jogo, acaba indo parar em Corrida Doce (uma

corrida de karts feitos de balas, chocolates e sorvete dirigidos somente por

meninas igualmente vestidas por doces) onde conhece Vanellope von

Schweetz (figura 3). Vanellope, por sua vez, também se sente isolada pelos

demais, pois, embora se sinta igual às outras corredoras, ela é considerada um

tilt7 e, por isso, não tem permissão para pilotar.

Figura 3 - Vanellope von Schweetz

Sem se dar conta, Ralph acaba transportando um insetrônico para a

Corrida Doce. Com o mundo doce em risco, a Sargento Calhoun – uma militar

brava e enérgica que lidera os soldados em Missão de Héroi – precisa conter a

ameaça. Em paralelo, Felix Jr. – com seu martelo mágico que conserta tudo -

está a procura de Ralph, pois, sem ele, “Detona” não funciona e será

desligado. Em busca de seus objetivos, Sargento Calhoun e Felix Jr. (figura 4)

seguem juntos para Corrida Doce.

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Ralph não entende a ideia de mau que seus colegas tem sobre vilões.

Vanellope é excluída por ser um tilt e Calhoun, porque não é delicada e

sensível como se espera que uma mulher seja.

A história divertida que os envolve pode ser usada como espaço de

ensino nas pedagogias culturais, espaço estratégico para construir com os

alunos/crianças uma reflexão crítica sobre estereótipos, educação inclusiva e

representações de gênero, como veremos a seguir.

Figura 4 - Sargento Calhoun e Felix Jr.

Ralph, em certa altura do filme, finalmente aceita o convite para

participar do grupo “Vilões Anônimos”, momento quando antagonistas de todo

o fliperama se encontram para partilhar conflitos sobre suas maldades. Ralph

assume que não quer mais ser um bad guy, decisão que causa uma reação

péssima nos personagens que já entenderam sua importância como vilões e,

por isso mesmo, afirmam que não podem mudar de atitude, ou seja, não

podem mudar o modo como são vistos e como agem. Ainda nessa cena um

zumbi lhe diz: “Rótulos não o fazem feliz. Bom, mau. Você deve se amar”.

A frase sobre rótulos é um convite para uma discussão sobre

estereótipos, sobre identidades, pondo em perspectiva o caráter cambiante e o

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modo como elas nos formam e transformam. Stuart Hall (2003) apresenta três

modos de entender o conceito de identidade, a saber: sujeito do iluminismo,

sujeito sociológico e sujeito pós-moderno. Expondo brevemente, podemos

dizer que o primeiro conceito de identidade concebe o sujeito como um ser

centrado, racional e auto-consciente, cuja identidade é imutável desde o

nascimento até o fim da vida. Esse conceito é sobreposto pelo segundo, que

emerge durante a modernidade e reflete a complexidade desse novo arranjo:

embora guarde uma essência, a identidade do sujeito é reconfigurada em suas

associações a grupos e relações com pessoas, valores, símbolos e ambientes

pelos quais transita. Esse entendimento de identidade costura os sujeitos à

estruturas tornando uns e outra, porém, unificados e previsíveis. Há ainda o

sujeito pós-moderno, que

assume identidades diferentes em diferentes momentos, identidades que não são unificadas ao redor de um ‘eu’ coerente. Dentro de nós há identidades contraditórias, empurrando em diferentes direções, de tal modo que nossas identificações estão sendo continuamente deslocadas (HALL, 2003, p. 13)

Apoiados nos conceitos de Hall (idem), podemos supor que Ralph é um

“sujeito sociológico em conflito”, pois, nesse caso, assumir esse tipo de

identidade pressupõe uma orientação em relação a lugares que pode ocupar –

ou não, como o apartamento de Felix Jr. - e papeis que deve desempenhar,

como por exemplo, detonar coisas. Ao mesmo tempo, os outros personagens

em seu entorno foram programados de forma específica para lidar com um

vilão – evitando-o, revistando-o ou eliminando-o. A discrepância que emerge

desse conflito tem como foco a sua essência ou característica que não é de

vilania como se esperava, mas de solidariedade e conciliação. Nesse contexto,

algumas questões podem ser propostas para discussão com as crianças: o que

elas pensam dos rótulos que recebem e dos rótulos que atribuem a colegas?

Esses rótulos, de fato, dizem delas ou, as definem? É possível desvencilhar-se

dos rótulos?

Vanellope aparentemente está integrada ao universo de Corrida Doce.

Sabe como funcionam os mecanismos do jogo e o que precisa para participar

da disputa. Mas, logo fica claro que algo está errado, pois, para ser bem

sucedida, é necessário subverter as regras ao construir seu próprio kart. Além

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disso, ela terá que usar a medalha de Ralph para se inscrever na prova.

Quando é surpreendida ou desafiada, Vanellope fica momentaneamente azul e

pixelada (figura 5) a ponto de perder o controle de suas ações. A princípio,

essa reação parece desimportante, mas, no decorrer da corrida, esse tipo de

tilt leva a menina a viver isolada numa caverna – situação que sugere uma

falha estrutural do jogo – sendo rechaçada pelas outras corredoras e impedida

de competir.

Figura 5 - Vanellope em tilt

Há uma cena da animação em que o rei de Corrida Doce promete

devolver a medalha de Ralph desde que ele não permita que Vanellope dispute

a corrida. O rei afirma que quer apenas protegê-la, pois, se ela ganhar, vai

entrar na lista de avatares que os jogadores podem escolher, mas, se for

escolhida e der o tilt, o jogo será desativado provocando o desemprego de

todos na Corrida Doce. E o mais grave: ter/ser um tilt não permite que o

personagem possa sair do jogo e, nesse caso, Vanellope seria desligada junto

com a máquina.

O isolamento disfarçado de cuidado que é imposto a Vanellope remete à

inclusão de alunos com necessidades educacionais especiais em turmas

regulares da escola. O direito ao acesso de estudantes especiais na educação

regular está assegurado pela constituição, mas, esbarra em problemas como

inadequação estrutural, despreparo da equipe pedagógica e, sobretudo,

atitudes discriminatórias (GRANEMMAN, 2007).

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Se por um lado, os professores reivindicam a necessidade de uma

formação adequada para lidar pedagogicamente com questões envolvendo

uma educação inclusiva, por outro, há aqueles que utilizam com sucesso o

pouco que aprenderam. Cavalcante (2005) relata uma experiência ocorrida na

rede municipal de educação em Florianópolis. Lá os professores dispõem de

salas adaptadas e equipadas, além da ajuda de profissionais como

fisioterapeutas e psicológos, condição que permite o desenvolvimento de um

trabalho de qualidade. No entanto, eles destacam como determinante a

participação dos demais alunos para a manutenção do estudante com

necessidades educacionais especiais na escola:

As crianças também percebem o quanto é necessário observar e respeitar as necessidades dos amigos. ‘A Taila não consegue ver e o único jeito de ela prestar atenção na aula é ouvindo. Por isso a gente faz silêncio’, conta Jéssica Silva, de 10 anos (CAVALCANTE, 2005)

Levar este tema para a sala de aula é importante para colocar em pauta

exclusões que se estendem também para alunos considerados ‘fora do

padrão’: “Quantas vezes na sua sala, ao organizar trabalhos em grupo, a

menina gordinha ou o garoto negro foram isolados pelos colegas? E na aula de

Educação Física, quantos foram ignorados por não serem jogadores exímios?”

(CAVALCANTE, 2005). Nesse sentido, a tentativa deve ter como foco uma

abordagem pedagógica com ênfase na promoção da igualdade de cidadania e

no exercício de alteridade.

A personagem da Sargento Calhoun, por sua vez, nos ajudaria a

dialogar e questionar com as crianças a representação da mulher. Em sua

pesquisa sobre imagens que aparecem em sala de aula, Nunes (2010)

questionou meninos e meninas sobre as escolhas dos desenhos em seus

materiais escolares. A autora constatou que as crianças buscam explicitar por

meio dessas escolhas suas identificações com papeis de gênero. As meninas

preferem personagens doces, tímidas e recatadas, enquanto os meninos

optam por personagens dinâmicos, fortes e superpoderosos: “as crianças

ressaltam a docilidade das personagens femininas e a agressividade dos

personagens masculinos” (NUNES, 2010, p. 75).

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Calhoun tem os cabelos curtos, está sempre num uniforme militar preto,

é resoluta, destemida e ágil, além de chefiar os soldados em seu jogo. Ela

foge do que determinam os padrões para o gênero feminino, pois, conforme

Goffman (apud Jhaly, 2009), eles pressupõem dependência, submissão

(geralmente ao homem) e disponibilidade sexual. O comportamento e o visual

pouco femininos da personagem são, no entanto, justificados no filme pela

lembrança de um trauma. No dia de seu casamento, Calhoun não fez sua usual

“ronda no perímetro” e, por esta razão, ela e o noivo foram atacados no altar

por um insetrônico. O rapaz acabou morrendo e desde então ela persegue

incessantemente esses seres que considera inimigos.

A culpa pela morte do companheiro e a ausência dele são, portanto,

determinantes para programar (no game) uma mulher independente, porém

temida; forte, porém irritadiça. No entanto, o vídeo recorre a outro recurso

citado por Goffman (apud Jhaly, 2009) e muito usado por mulheres poderosas

para evitar sua associação ao gênero masculino: seus corpos estão sempre

delineados por meio de roupas justas, coladas ao corpo, evidenciando curvas

femininas, ressaltando os seios e os glúteos. Por fim, a personagem encontra

seu final feliz ao aceitar os flertes de Felix Jr.

Na trama, o papel feminino de Calhoun é recuperado por meio do

casamento. Ao casar, ela torna-se mais dócil e, desse modo, supera a

experiência negativa que marca seu comportamento. Essas construções e

restrições impostas às mulheres e, valorizadas no filme, servem como ponto de

partida para diálogos e discussões sobre papeis de gênero. São espaço

pedagógico propício para abordar deslocamento de conceitos e percepções

como, por exemplo, a ideia de casamento como uma necessidade, a felicidade

na maternidade ou, ainda, a incapacidade/impossibilidade de desempenhar

certas tarefas, consideradas como sendo femininas ou masculinas. Desse

modo, podemos dar aos alunos - meninas e meninos - a oportunidade de

questionar e refletir sobre a forma como gostariam de, ou como poderiam, se

relacionar com, o mundo, com a sociedade em que vivem e consigo mesmos.

A escola deve ser vista como território propício ao exercício da crítica

onde, gradativamente, ao exercitá-la, os alunos podem compreender que

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perspectivas de mundo, de sociedade e de relações com o ‘outro’ são

dispositivos culturais resultantes de processos de construção social do

significado. De acordo com Brea, (2007, p. 1) “não é tarefa da crítica propagar

a fé nos objetos que analisa: ao contrário, [ela] deve colocar em evidência as

armadilhas sobre as quais essa fé se institui”.

Nesse sentido, podemos dizer que o exercício da crítica no trabalho

pedagógico com imagens, no contexto escolar, ajuda a visualizar alternativas

em relação ao pensamento hegemônico, a ampliar horizontes transformando-

os em territórios conceituais e imagéticos fecundos para a interpretação de

sentidos, significados e visualidades. Ajuda, também, a criar condições para

abalar convicções rígidas, sedimentadas, que omitem aos alunos a

possibilidade de compreender que o mundo da cultura, das imagens e artefatos

visuais, ou seja, o mundo simbólico é frágil e dinâmico e, portanto, vulnerável

às investidas daqueles que tem a pretensão de prescrever receituários

educacionais para salvaguardar a escola dos demônios que rondam e/ou se

manifestam como agentes indesejáveis na cena cultural contemporânea.

Concluindo

As imagens de cinema e videogame já se consolidaram como

expressões culturais do nosso tempo. Pensando sobre a relevância dessas

mídias nos contextos educacionais, podemos identificar e observar temas e

dilemas contemporâneos presentes nessas visualidades tão caras a crianças e

jovens. Esses assuntos são capazes de desencadear debates sobre questões

que, apesar de não fazerem parte do currículo, atraem e mobilizam o cotidiano

dos alunos. Questões tais como gênero, inclusão e estereótipos, são assuntos

que constituem a rotina dos processos educativos, como discutimos através da

análise de episódios dos personagens Ralph, Vanellope e Calhoun, do filme

Detona Ralph.

Prazer, diversão e humor muitas vezes são deixados de lado ou,

dizendo melhor, com frequência ficam fora das salas de aula. No entanto,

esses elementos, quando bem vindos aos espaços educativos, podem

convocar alunos e alunas a participar de diálogos que suscitam interesse por

outras formas de aprender.

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(...) O riso pode favorecer a aprendizagem, a crítica e a reflexão. A compreensão desse código pressupõe uma cultura afim e, a partir dessa compreensão comum, é que o pensamento se agiliza quando solicitado a “rir” junto, em comunidade (LULKIN, 2011, p. 12)

Educadores podem e devem apropriar-se de conteúdos midiáticos,

especialmente aqueles que provocam envolvimento positivo nas crianças

gerando motivação, interesse e aprendizados sobre os papeis socioculturais

das mídias na atualidade. Giroux (2004), ao fazer uma análise sobre filmes da

Disney, afirma que tais produções possuem tanta legitimidade e autoridade

quanto espaços tradicionais de educação para ensinar valores e ideais às

crianças.

Temos a expectativa de que essa pesquisa cresça para além deste

artigo transformando-se em inspiração ou desafio para a prática educativa de

outros educadores. O campo da Educação da Cultura Visual vem

desenvolvendo estudos que buscam incluir artefatos culturais externos aos

currículos escolares como capazes de depreender sentidos e significados

educacionais. Desse modo, esse campo se apresenta como potencial

norteador teórico e prático para proporcionar diálogos construtivos entre

professores e alunos sobre imagens midiáticas, seu consumo, usos e efeitos.

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1 Título original: Wreck it Ralph, lançado pelos estúdios Disney em 2012. 2 O termo advergame surge da junção das palavras advertising e videogame e se refere a um jogo criado com a finalidade de divulgar determinado produto ou marca. 3 Neste texto, o termo game será usado para designar jogos eletrônicos.4 Spacewar, jogo em que duas naves espaciais tentavam se destruir, foi desenvolvido por estudantes do Masschusetts Institute of Technology no início dos anos 60 e logo passou a ser instalado em computadores pessoais para comercialização (MATOS, 2012). 5 Jogos disponíveis em <http://clickjogos.uol.com.br/jogos-do-detona-ralph/>6 Insetos robôs que estão dominando a Terra.7Em tradução literal seria inclinação, mas a palavra transformou-se numa expressão comum entre jogadores para designar travamentos ou falhas no sistema do jogo.

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7Raimundo MartinsDoutor em Educação/Artes pela Universidade de Southern Illinois (EUA), pós-doutor pela Universidade de Londres (Inglaterra) e pela Universidade de Barcelona (Espanha), onde também foi professor visitante. É Professor Titular, Diretor da Faculdade de Artes Visuais e docente do Programa de Pós-Graduação em Arte e Cultura Visual – Mestrado/Doutorado da Faculdade de Artes Visuais da Universidade Federal de Goiás.

Jordana Falcão TavaresGraduada pela Universidade de Fortaleza em Publicidade e Propaganda. Especialista em Teorias da Comunicação e da Imagem pela Universidade Federal do Ceará. Mestre em Cultura Visual pela Universidade Federal de Goiás e cursando doutorado no mesmo programa. Atualmente ministra aulas no curso de Publicidade da Faculdade Sul Americana em Goiânia.