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VIDEOGAME, CINEMA1 E PEDAGOGIAS CULTURAIS: POSSIBILIDADES DE INTERAÇÃO
Prof. Dr. Raimundo Martins – PPG em Arte e Cultura Visual - UFGDoutoranda Jordana Falcão - PPG em Arte e Cultura Visual - UFG
RESUMO
Este artigo é parte da pesquisa de doutorado “Gamificação e educação da cultura visual: jogando com sentidos dados por crianças a advergames2” em desenvolvimento no Programa de Pós-Graduação em Arte e Cultura Visual da Universidade Federal de Goiás. O texto é um recorte da pesquisa e aborda aspectos das pedagogias culturais que podem ser explorados nos games3, especificamente, os dilemas vividos por três personagens de videogames no filme Detona Ralph. Tomando a educação da cultura visual como campo de estudo para fundamentar as discussões, o artigo analisa modos de abordar temas complexos como estereótipos, educação inclusiva e representações de gênero no espaço escolar.Palavras chave: Educação da Cultura Visual, pedagogias culturais, cinema, videogame, Detona Ralph.
ABSTRACT
This article is part of the doctoral research “Gamification and visual culture: playing with meanings from children and advergames, being developed in the Gradute Program in Art and Visual Culture at the Federal University of Goiás. The text is a partial result of the investigation which examines aspects of cultural pedagogies that can be explored in the games, specifically the dilemmas lived by three characters of the videogames included in the film Detona Ralph. Taking visual culture education as field of study to base the discussions, the article analyses different approaches to complex themes such as stereotypes, inclusive education, and gender representations within the school environment.Palavras chave: Visual Culture Education, pedagogias culturais, cinema, game, Detona Ralph.
Da tela da TV para a tela do cinema
Desde os anos 60, quando os primeiros jogos para computador4
passaram a ser comercializados, os games se desenvolveram em uma
sucessão incontável de avanços tecnológicos. Tais avanços favoreceram o
desenvolvimento diversificado de jogos de vários gêneros e a incorporação de
acessórios de controle como instrumentos musicais e simuladores de vôo. Os
consoles agora podem ser individuais e portáteis ou, ainda, podem permitir a
ação de múltiplos jogadores. Além disso, o acesso tornou-se facilitado pela
possibilidade de jogar conectado à internet ou mesmo por meio de celulares.
Nunca antes se jogou tanto quanto nos dias de hoje. Jane McGonigal
(2011) contabilizou que juntos, os jogadores de videogames ao redor do globo,
gastam atualmente 3 bilhões de horas por semana em desafios on line. Apenas
no game World of Warcraft foram investidos coletivamente pelo menos 5,93
milhões de anos jogando. O título do jogo é tema da segunda maior
enciclopédia colaborativa virtual do mundo, perdendo apenas para a Wikipedia.
Atualmente, Grau e Veigl (2011) medem a relevância da produção e do
consumo de jogos informando que a indústria dos games já superou
economicamente a de filmes. Embora os jogadores se distribuam entre todas
as faixas etárias, é nas crianças que a indústria dos games concentra seu foco,
pois cerca de 45% dos jogadores ainda não alcançou os 18 anos (DAHL,
EAGLE E BÁEZ, 2009). Cada vez mais as crianças tem acessado a internet e,
de acordo com Moore (apud DAHL, EAGLE E BÁEZ, 2004), duas em cada três
crianças com idades entre 5 e 14 anos, ficam online exclusivamente para jogar.
Atentos ao interesse que os games tem despertado em crianças, os
produtores de cinema trataram de abordar o tema na animação Detona Ralph.
A estratégia englobou também o lançamento on line5 dos principais jogos
presentes no filme, como o próprio Detona Ralph (figura 1), Corrida Doce e
Missão de Herói, além de uma versão do longa metragem em jogo para o
console Wii.
Figura 1 - Game Detona Ralph
A trama se passa numa realidade paralela à de um fliperama. Depois
que a loja fecha, os personagens dos jogos ganham vida, saem das máquinas
e circulam por uma cidade virtual. O personagem título do game destrói janelas
de prédios para que o herói Felix Jr. as conserte. Mas, ao fim de seu
expediente de trabalho, o “vilão” não consegue socializar com outros habitantes
de seu jogo e passa a ser evitado em outros espaços da cidade. Cansado de
ser excluído, Ralph, então, parte para outros jogos em busca de uma medalha,
artefato que provará seus méritos e permitirá seu ingresso no grupo.
Da sala de estar para a sala de aula
Participando do cotidiano de crianças e jovens, os games e o cinema
são parte de uma cultura visual contemporânea midiatizada. São capazes de
articular significados e habitar o imaginário de tal forma que já não é possível
desconsiderar essas mídias como centrais nesse momento da experiência
humana (SILVESTONE, 2005). De acordo com Martins e Tourinho (2011) as
mídias difundem informações, valores e opiniões e, os usos e sentidos
conferidos às suas imagens merecem, por esta razão, a atenção que a cultura
visual lhes tem dispensado:
Convivemos com mídias conhecidas (fotografia, televisão e filme);
mídias tradicionais (pintura, escultura e design) e, ainda, novas
mídias artísticas e multimídias, como a web e o processamento
digital. Juntas, essas mídias veiculam imagens de informação, de
arte, ciência, ficção, publicidade e cultura popular, enfatizando o papel
e a importância das visualidades e das mídias visuais no nosso
cotidiano e na disseminação de ideias nas esferas pública e privada.
Como campo de estudo transdisciplinar, a cultura visual, além do
interesse de pesquisa pela produção artística do passado, concentra
atenção especial nos fenômenos visuais que estão acontecendo hoje,
no uso social, afetivo e político-ideológico das imagens e nas práticas
culturais que emergem dos usos dessas imagens. (TOURINHO e
MARTINS, 2011, p. 53)
Como já posto, a cultura visual se vale de conhecimentos
transdiciplinares para abordar criticamente as potencialidades de vários tipos
de imagem para consolidar, desconstruir ou questionar processos
interpretativos (NASCIMENTO, 2011). Hernandéz (2011, p. 34) complementa
esse argumento afirmando que o campo “permite indagar sobre maneiras
culturais de olhar e os efeitos sobre cada um de nós”. Assim, a cultura visual se
aproxima da educação ao investigar a construção de sentidos e significados
advindos de experiências com imagens. Nascimento (2010, p. 213), ao analisar
os objetivos da Educação da Cultura Visual afirma que:
É possível presumir que o interesse principal é tentar confrontar diferentes modos de ver, dizer, pensar e fazer veiculados pelas imagens. Questionar as interpretações existentes, atentando para as condições históricas que contribuíram para tornar uma determinada afirmação aceitável, e criar possibilidades para que outras possam surgir, são as provocações fundamentais da Educação da Cultura Visual.
Por meio da Educação da Cultura Visual é possível estudar imagens de
arte, do cotidiano e das novas mídias, especialmente. Isso por que o campo
reconhece a existência do que Kincheloe e Steinberg (apud AGUIRRE, 2009)
chamam de “pedagogias culturais”, ou seja, “um conjunto de conteúdos
formativos que não são administrados pelas vias tradicionais de educação
formal, mas sim pelos meios de comunicação de massa, basicamente”
(AGUIRRE, 2009, p. 165).
Fernando Hernandez (2007, p. 81) também defende a inclusão de
objetos/assuntos familiares aos estudantes, embora alheios aos currículos,
como, por exemplo, filmes e jogos eletrônicos, nas problematizações sobre
educação e escola. Para o autor, quando estabelecem relações entre o que
aprendem na escola e as experiências externas a ela, os alunos se sentem
mais motivados a aprender. A partir desse argumento, Hernandez explica que
o “objetivo dos educadores (...) deveria ser o de considerar os interesses e os
prazeres da cultura visual dos alunos e alunas como possibilitadores de
reflexão crítica”.
Tourinho e Martins (2011) concordam com Hernández ao caracterizar o
espaço da escola e os professores, especificamente os professores de arte,
como mediadores das discussões sobre as imagens do cotidiano e, em
decorrência, as produções simbólicas daí depreendidas. Para os autores
Essas condições e circunstâncias [emergência da imagem digital e
seu uso pelas indústrias de entretenimento] apontam para a
necessidade de formar professores de arte preparados não apenas
para analisar e interpretar imagens, artefatos artísticos e tecnológicos,
mas, especialmente, para ajudar os alunos a compreender e
desenvolver uma atitude crítica em relação à indústria da imagem e
do entretenimento. (TOURINHO E MARTINS, p. 56)
Incluindo as pedagogias culturais em seus debates, a Educação da
Cultura Visual ressalta a importância ao mesmo tempo em que reconhece a
força das imagens do cotidiano como detonadoras de diálogos capazes de
promover reflexão e criticidade acerca de tais artefatos. Diante disso,
proporemos, a seguir, um breve debate sobre diferenças que consideramos
importante destacar e refletir com crianças a partir do filme Detona Ralph
(figura 2).
Figura 2 - Poster do filme e o personagem título.
Ralph, Vanellope e Calhoun: espaços de ensino das pedagogias culturais
Detona Ralph é um faz-de-conta infantil que dá vida, personalidade e
sentimentos a personagens virtuais de jogos de um fliperama. O filme
mostra/aborda situações e dilemas da vida real quando a loja fecha e
funcionários dos games saem de seus postos de trabalho para bares, reuniões
de grupo de apoio (Vilões Anônimos) e encontros românticos, por exemplo.
Ralph trabalha como vilão e sua função é destruir janelas para que Felix
Jr. possa consertá-las. O papel de “bad guy” que desempenha no serviço
acaba atrapalhando e até mesmo comprometendo sua vida social, pois os
outros personagens o consideram grosseiro, descuidado e mau. Em uma
discussão sobre porque Felix Jr. é homenageado nos 30 anos do jogo e ele,
excluído da festa, Ralph ouve comentários depreciativos acerca do seu
comportamento enquanto as qualidades de Felix Jr. são enaltecidas e, como
exemplo, mencionam a medalha que ele ganha ao fim de cada partida. Assim,
Ralph acredita que ao conquistar sua própria medalha, conseguirá demonstrar
que é bom e poderá integrar-se aos outros.
Em busca do prêmio, Ralph entra no jogo Missão de Herói, toma o lugar
de um dos soldados para combater “insetrônicos”6 e, enfim, recebe a
recompensa. Na volta para seu jogo, acaba indo parar em Corrida Doce (uma
corrida de karts feitos de balas, chocolates e sorvete dirigidos somente por
meninas igualmente vestidas por doces) onde conhece Vanellope von
Schweetz (figura 3). Vanellope, por sua vez, também se sente isolada pelos
demais, pois, embora se sinta igual às outras corredoras, ela é considerada um
tilt7 e, por isso, não tem permissão para pilotar.
Figura 3 - Vanellope von Schweetz
Sem se dar conta, Ralph acaba transportando um insetrônico para a
Corrida Doce. Com o mundo doce em risco, a Sargento Calhoun – uma militar
brava e enérgica que lidera os soldados em Missão de Héroi – precisa conter a
ameaça. Em paralelo, Felix Jr. – com seu martelo mágico que conserta tudo -
está a procura de Ralph, pois, sem ele, “Detona” não funciona e será
desligado. Em busca de seus objetivos, Sargento Calhoun e Felix Jr. (figura 4)
seguem juntos para Corrida Doce.
Ralph não entende a ideia de mau que seus colegas tem sobre vilões.
Vanellope é excluída por ser um tilt e Calhoun, porque não é delicada e
sensível como se espera que uma mulher seja.
A história divertida que os envolve pode ser usada como espaço de
ensino nas pedagogias culturais, espaço estratégico para construir com os
alunos/crianças uma reflexão crítica sobre estereótipos, educação inclusiva e
representações de gênero, como veremos a seguir.
Figura 4 - Sargento Calhoun e Felix Jr.
Ralph, em certa altura do filme, finalmente aceita o convite para
participar do grupo “Vilões Anônimos”, momento quando antagonistas de todo
o fliperama se encontram para partilhar conflitos sobre suas maldades. Ralph
assume que não quer mais ser um bad guy, decisão que causa uma reação
péssima nos personagens que já entenderam sua importância como vilões e,
por isso mesmo, afirmam que não podem mudar de atitude, ou seja, não
podem mudar o modo como são vistos e como agem. Ainda nessa cena um
zumbi lhe diz: “Rótulos não o fazem feliz. Bom, mau. Você deve se amar”.
A frase sobre rótulos é um convite para uma discussão sobre
estereótipos, sobre identidades, pondo em perspectiva o caráter cambiante e o
modo como elas nos formam e transformam. Stuart Hall (2003) apresenta três
modos de entender o conceito de identidade, a saber: sujeito do iluminismo,
sujeito sociológico e sujeito pós-moderno. Expondo brevemente, podemos
dizer que o primeiro conceito de identidade concebe o sujeito como um ser
centrado, racional e auto-consciente, cuja identidade é imutável desde o
nascimento até o fim da vida. Esse conceito é sobreposto pelo segundo, que
emerge durante a modernidade e reflete a complexidade desse novo arranjo:
embora guarde uma essência, a identidade do sujeito é reconfigurada em suas
associações a grupos e relações com pessoas, valores, símbolos e ambientes
pelos quais transita. Esse entendimento de identidade costura os sujeitos à
estruturas tornando uns e outra, porém, unificados e previsíveis. Há ainda o
sujeito pós-moderno, que
assume identidades diferentes em diferentes momentos, identidades que não são unificadas ao redor de um ‘eu’ coerente. Dentro de nós há identidades contraditórias, empurrando em diferentes direções, de tal modo que nossas identificações estão sendo continuamente deslocadas (HALL, 2003, p. 13)
Apoiados nos conceitos de Hall (idem), podemos supor que Ralph é um
“sujeito sociológico em conflito”, pois, nesse caso, assumir esse tipo de
identidade pressupõe uma orientação em relação a lugares que pode ocupar –
ou não, como o apartamento de Felix Jr. - e papeis que deve desempenhar,
como por exemplo, detonar coisas. Ao mesmo tempo, os outros personagens
em seu entorno foram programados de forma específica para lidar com um
vilão – evitando-o, revistando-o ou eliminando-o. A discrepância que emerge
desse conflito tem como foco a sua essência ou característica que não é de
vilania como se esperava, mas de solidariedade e conciliação. Nesse contexto,
algumas questões podem ser propostas para discussão com as crianças: o que
elas pensam dos rótulos que recebem e dos rótulos que atribuem a colegas?
Esses rótulos, de fato, dizem delas ou, as definem? É possível desvencilhar-se
dos rótulos?
Vanellope aparentemente está integrada ao universo de Corrida Doce.
Sabe como funcionam os mecanismos do jogo e o que precisa para participar
da disputa. Mas, logo fica claro que algo está errado, pois, para ser bem
sucedida, é necessário subverter as regras ao construir seu próprio kart. Além
disso, ela terá que usar a medalha de Ralph para se inscrever na prova.
Quando é surpreendida ou desafiada, Vanellope fica momentaneamente azul e
pixelada (figura 5) a ponto de perder o controle de suas ações. A princípio,
essa reação parece desimportante, mas, no decorrer da corrida, esse tipo de
tilt leva a menina a viver isolada numa caverna – situação que sugere uma
falha estrutural do jogo – sendo rechaçada pelas outras corredoras e impedida
de competir.
Figura 5 - Vanellope em tilt
Há uma cena da animação em que o rei de Corrida Doce promete
devolver a medalha de Ralph desde que ele não permita que Vanellope dispute
a corrida. O rei afirma que quer apenas protegê-la, pois, se ela ganhar, vai
entrar na lista de avatares que os jogadores podem escolher, mas, se for
escolhida e der o tilt, o jogo será desativado provocando o desemprego de
todos na Corrida Doce. E o mais grave: ter/ser um tilt não permite que o
personagem possa sair do jogo e, nesse caso, Vanellope seria desligada junto
com a máquina.
O isolamento disfarçado de cuidado que é imposto a Vanellope remete à
inclusão de alunos com necessidades educacionais especiais em turmas
regulares da escola. O direito ao acesso de estudantes especiais na educação
regular está assegurado pela constituição, mas, esbarra em problemas como
inadequação estrutural, despreparo da equipe pedagógica e, sobretudo,
atitudes discriminatórias (GRANEMMAN, 2007).
Se por um lado, os professores reivindicam a necessidade de uma
formação adequada para lidar pedagogicamente com questões envolvendo
uma educação inclusiva, por outro, há aqueles que utilizam com sucesso o
pouco que aprenderam. Cavalcante (2005) relata uma experiência ocorrida na
rede municipal de educação em Florianópolis. Lá os professores dispõem de
salas adaptadas e equipadas, além da ajuda de profissionais como
fisioterapeutas e psicológos, condição que permite o desenvolvimento de um
trabalho de qualidade. No entanto, eles destacam como determinante a
participação dos demais alunos para a manutenção do estudante com
necessidades educacionais especiais na escola:
As crianças também percebem o quanto é necessário observar e respeitar as necessidades dos amigos. ‘A Taila não consegue ver e o único jeito de ela prestar atenção na aula é ouvindo. Por isso a gente faz silêncio’, conta Jéssica Silva, de 10 anos (CAVALCANTE, 2005)
Levar este tema para a sala de aula é importante para colocar em pauta
exclusões que se estendem também para alunos considerados ‘fora do
padrão’: “Quantas vezes na sua sala, ao organizar trabalhos em grupo, a
menina gordinha ou o garoto negro foram isolados pelos colegas? E na aula de
Educação Física, quantos foram ignorados por não serem jogadores exímios?”
(CAVALCANTE, 2005). Nesse sentido, a tentativa deve ter como foco uma
abordagem pedagógica com ênfase na promoção da igualdade de cidadania e
no exercício de alteridade.
A personagem da Sargento Calhoun, por sua vez, nos ajudaria a
dialogar e questionar com as crianças a representação da mulher. Em sua
pesquisa sobre imagens que aparecem em sala de aula, Nunes (2010)
questionou meninos e meninas sobre as escolhas dos desenhos em seus
materiais escolares. A autora constatou que as crianças buscam explicitar por
meio dessas escolhas suas identificações com papeis de gênero. As meninas
preferem personagens doces, tímidas e recatadas, enquanto os meninos
optam por personagens dinâmicos, fortes e superpoderosos: “as crianças
ressaltam a docilidade das personagens femininas e a agressividade dos
personagens masculinos” (NUNES, 2010, p. 75).
Calhoun tem os cabelos curtos, está sempre num uniforme militar preto,
é resoluta, destemida e ágil, além de chefiar os soldados em seu jogo. Ela
foge do que determinam os padrões para o gênero feminino, pois, conforme
Goffman (apud Jhaly, 2009), eles pressupõem dependência, submissão
(geralmente ao homem) e disponibilidade sexual. O comportamento e o visual
pouco femininos da personagem são, no entanto, justificados no filme pela
lembrança de um trauma. No dia de seu casamento, Calhoun não fez sua usual
“ronda no perímetro” e, por esta razão, ela e o noivo foram atacados no altar
por um insetrônico. O rapaz acabou morrendo e desde então ela persegue
incessantemente esses seres que considera inimigos.
A culpa pela morte do companheiro e a ausência dele são, portanto,
determinantes para programar (no game) uma mulher independente, porém
temida; forte, porém irritadiça. No entanto, o vídeo recorre a outro recurso
citado por Goffman (apud Jhaly, 2009) e muito usado por mulheres poderosas
para evitar sua associação ao gênero masculino: seus corpos estão sempre
delineados por meio de roupas justas, coladas ao corpo, evidenciando curvas
femininas, ressaltando os seios e os glúteos. Por fim, a personagem encontra
seu final feliz ao aceitar os flertes de Felix Jr.
Na trama, o papel feminino de Calhoun é recuperado por meio do
casamento. Ao casar, ela torna-se mais dócil e, desse modo, supera a
experiência negativa que marca seu comportamento. Essas construções e
restrições impostas às mulheres e, valorizadas no filme, servem como ponto de
partida para diálogos e discussões sobre papeis de gênero. São espaço
pedagógico propício para abordar deslocamento de conceitos e percepções
como, por exemplo, a ideia de casamento como uma necessidade, a felicidade
na maternidade ou, ainda, a incapacidade/impossibilidade de desempenhar
certas tarefas, consideradas como sendo femininas ou masculinas. Desse
modo, podemos dar aos alunos - meninas e meninos - a oportunidade de
questionar e refletir sobre a forma como gostariam de, ou como poderiam, se
relacionar com, o mundo, com a sociedade em que vivem e consigo mesmos.
A escola deve ser vista como território propício ao exercício da crítica
onde, gradativamente, ao exercitá-la, os alunos podem compreender que
perspectivas de mundo, de sociedade e de relações com o ‘outro’ são
dispositivos culturais resultantes de processos de construção social do
significado. De acordo com Brea, (2007, p. 1) “não é tarefa da crítica propagar
a fé nos objetos que analisa: ao contrário, [ela] deve colocar em evidência as
armadilhas sobre as quais essa fé se institui”.
Nesse sentido, podemos dizer que o exercício da crítica no trabalho
pedagógico com imagens, no contexto escolar, ajuda a visualizar alternativas
em relação ao pensamento hegemônico, a ampliar horizontes transformando-
os em territórios conceituais e imagéticos fecundos para a interpretação de
sentidos, significados e visualidades. Ajuda, também, a criar condições para
abalar convicções rígidas, sedimentadas, que omitem aos alunos a
possibilidade de compreender que o mundo da cultura, das imagens e artefatos
visuais, ou seja, o mundo simbólico é frágil e dinâmico e, portanto, vulnerável
às investidas daqueles que tem a pretensão de prescrever receituários
educacionais para salvaguardar a escola dos demônios que rondam e/ou se
manifestam como agentes indesejáveis na cena cultural contemporânea.
Concluindo
As imagens de cinema e videogame já se consolidaram como
expressões culturais do nosso tempo. Pensando sobre a relevância dessas
mídias nos contextos educacionais, podemos identificar e observar temas e
dilemas contemporâneos presentes nessas visualidades tão caras a crianças e
jovens. Esses assuntos são capazes de desencadear debates sobre questões
que, apesar de não fazerem parte do currículo, atraem e mobilizam o cotidiano
dos alunos. Questões tais como gênero, inclusão e estereótipos, são assuntos
que constituem a rotina dos processos educativos, como discutimos através da
análise de episódios dos personagens Ralph, Vanellope e Calhoun, do filme
Detona Ralph.
Prazer, diversão e humor muitas vezes são deixados de lado ou,
dizendo melhor, com frequência ficam fora das salas de aula. No entanto,
esses elementos, quando bem vindos aos espaços educativos, podem
convocar alunos e alunas a participar de diálogos que suscitam interesse por
outras formas de aprender.
(...) O riso pode favorecer a aprendizagem, a crítica e a reflexão. A compreensão desse código pressupõe uma cultura afim e, a partir dessa compreensão comum, é que o pensamento se agiliza quando solicitado a “rir” junto, em comunidade (LULKIN, 2011, p. 12)
Educadores podem e devem apropriar-se de conteúdos midiáticos,
especialmente aqueles que provocam envolvimento positivo nas crianças
gerando motivação, interesse e aprendizados sobre os papeis socioculturais
das mídias na atualidade. Giroux (2004), ao fazer uma análise sobre filmes da
Disney, afirma que tais produções possuem tanta legitimidade e autoridade
quanto espaços tradicionais de educação para ensinar valores e ideais às
crianças.
Temos a expectativa de que essa pesquisa cresça para além deste
artigo transformando-se em inspiração ou desafio para a prática educativa de
outros educadores. O campo da Educação da Cultura Visual vem
desenvolvendo estudos que buscam incluir artefatos culturais externos aos
currículos escolares como capazes de depreender sentidos e significados
educacionais. Desse modo, esse campo se apresenta como potencial
norteador teórico e prático para proporcionar diálogos construtivos entre
professores e alunos sobre imagens midiáticas, seu consumo, usos e efeitos.
1 Título original: Wreck it Ralph, lançado pelos estúdios Disney em 2012. 2 O termo advergame surge da junção das palavras advertising e videogame e se refere a um jogo criado com a finalidade de divulgar determinado produto ou marca. 3 Neste texto, o termo game será usado para designar jogos eletrônicos.4 Spacewar, jogo em que duas naves espaciais tentavam se destruir, foi desenvolvido por estudantes do Masschusetts Institute of Technology no início dos anos 60 e logo passou a ser instalado em computadores pessoais para comercialização (MATOS, 2012). 5 Jogos disponíveis em <http://clickjogos.uol.com.br/jogos-do-detona-ralph/>6 Insetos robôs que estão dominando a Terra.7Em tradução literal seria inclinação, mas a palavra transformou-se numa expressão comum entre jogadores para designar travamentos ou falhas no sistema do jogo.
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6
7Raimundo MartinsDoutor em Educação/Artes pela Universidade de Southern Illinois (EUA), pós-doutor pela Universidade de Londres (Inglaterra) e pela Universidade de Barcelona (Espanha), onde também foi professor visitante. É Professor Titular, Diretor da Faculdade de Artes Visuais e docente do Programa de Pós-Graduação em Arte e Cultura Visual – Mestrado/Doutorado da Faculdade de Artes Visuais da Universidade Federal de Goiás.
Jordana Falcão TavaresGraduada pela Universidade de Fortaleza em Publicidade e Propaganda. Especialista em Teorias da Comunicação e da Imagem pela Universidade Federal do Ceará. Mestre em Cultura Visual pela Universidade Federal de Goiás e cursando doutorado no mesmo programa. Atualmente ministra aulas no curso de Publicidade da Faculdade Sul Americana em Goiânia.