Vem Brincar Na Rua!

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Vem Brincar Na Rua!

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  • ELAINE DE PAULA

    Entre o Quilombo e a Educao Infantil: capturando expresses,

    experincias e conflitos de crianas quilombolas no entremeio desses

    contextos

    Tese apresentada ao Programa de Ps-

    Graduao em Educao da

    Universidade Federal de Santa

    Catarina, como requisito parcial

    obteno do ttulo de Doutor em

    Educao. Linha de Pesquisa:

    Educao e Formao de Professores.

    Orientador: Prof. Dr. Joo Josu da Silva Filho.

    Florianpolis

    2014

  • s crianas dos quilombos, Morro do

    Fortunato e Aldeia, que me fizeram

    revisitar minha infncia ao me ajudar

    a pular pedras no riacho, a passar sob

    cercas de arame, a entrar na lagoa de

    roupa e sapato, a pisar na lama, a

    subir em arvores, a colher frutas do

    p, a deitar no cho, enfim, a ensinar-

    me a virar o mundo de ponta-cabea e

    se desestabiliza quando aprendemos a

    plantas, as nuvens,

    os ventos, a terra. Obrigada, crianas,

    por me fazerem lembrar que ainda

    existe quintal para brincar!

  • AGRADECIMENTOS ESPECIAIS

    Utilizo este espao para citar os moradores das comunidades

    pesquisadas (crianas e adultos) com seu nome verdadeiro, uma vez que

    no pude nomin-los no corpo do texto por fora do que estabelece o

    Comit de tica da Universidade Federal de Santa Catarina, mas

    entendo que isso no os exime da autoria compartilhada, especialmente

    quando demonstram que so protagonistas de sua histria, produzem

    lugares e um tempo sem pressa!

    De modo particular agradeo s crianas Ana Clara, Mateus

    Renam, Jaisom, Amanda, Victor, Geovana, minhas principais

    interlocutoras. E as demais crianas e adolescentes que foram

    inserindo-se na pesquisa Soninha, Gui, Jos, Vitria, Mari, Ktia,

    Reginaldo.

    Aos adultos Senhor Maurlio, Dona Odete, Cida, Maura, Ana

    Paula, Maria de Lurdes, Dona Quindinha, Senhor Hilrio, Joaquina, Tia

    Chiquinha, Dona Jordina, Senhor Fortunato, Mariazinha, Mercedes,

    Maninho, Luciane, Dona Catarina, Dona Adelaide, Fernanda, que

    muito colaboraram ao longo de toda a pesquisa.

    A todos, muito obrigada pela acolhida, pelo carinho, pelos

    saberes e pela vida partilhada comigo!

    No posso tambm deixar de agradecer de modo especial s

    crianas das escolas pesquisadas, Ana Carolina, Eduardo, Gabriel,

    Jonathas, Letcia, Vitria, Vincius, Alcia, Carlos, Daniel, Eziel, Icaro,

    Joo, Jos, Larissa, Manuella, Nadya, Pedro, Raissa, Rian, Sara, Yago.

    E s queridas professoras dos dois grupos da educao infantil,

    muito obrigada! Certamente nos encontraremos nos tempos e lugares de

    reflexo sobre o fazer pedaggico!

  • AGRADECIMENTOS

    Aos meus pais, por terem me apresentado ao mundo!

    A duas pessoas que ocupam um lugar especial em minha vida:

    Giovani, companheiro inseparvel ao longo de toda minha caminhada, e

    minha filha Gislaine pela sensibilidade e carinho. Aos dois, o meu

    sincero amor!

    Aos meus queridos irmos, cunhadas e sobrinhos, pela

    motivao!

    Ao meu orientador, professor Joo Josu da Silva Filho, por ter

    me acolhido no doutorado, pela disponibilidade e pelos ensinamentos

    oferecidos.

    s professoras do doutorado Claricia Otto, Antonella Tassinari,

    Wladimir Garcia e Reinaldo Fleuri, pelos conhecimentos.

    Raquel Mombelli, Adilson de Angelo, Maurcio Silva e Jos

    Nilton de Almeida pelas sugestes na banca de qualificao.

    Aos professores que compem a banca de avaliao da pesquisa:

    Adilsom de Angelo, Moema Albuquerque, Patrcia de Moraes,

    Maurcio Silva, Rosa Batista, Katia Agostinho, pela disposio para ler

    meu trabalho, na certeza de que traro contribuies para a melhora

    deste.

    amiga Roseli que muitas vezes escutou minhas angstias e

    desabafos e que me fez olhar diferente o que se apresentava a minha

    frente. Valeu, amiga, moras no meu corao!

    s amigas da Diretoria de Educao Infantil pelo apoio e

    palavras de incentivo.

    Ana Regina, Rosinete e Jana, por insistirem a me fazer

    acreditar!

    , Cristina Losso e

    Janete da Silva, pela compreenso e estmulo.

    Ao amigo Altino, pela confiana e respeito!

    Ao Secretrio Municipal de Educao de Florianpolis, professor

    Rodolfo Pinto da Luz, pela concesso de licena de trs anos das

    minhas atividades profissionais.

    Mari, da Secretaria Municipal de Educao de Garopaba e aos

    diretores das escolas, Walter e Silvia, pela acolhida e permisso da

    pesquisa.

    Secretaria de Educao do Estado de Santa Catarina pela

    concesso da Bolsa FUMDES por um perodo de 25 meses.

  • Geraldina Burin, pela competncia na correo do trabalho,

    mas, muito mais do que isso, pela sensibilidade, pela interlocuo e

    sugestes sobre o texto.

  • Fotografias realizadas pelas crianas do Quilombo Aldeia e Quilombo Morro do

    Fortunato.

  • Estrada que leva ao quilombo Morro do Fortunato. Foto feita pela pesquisadora.

    TEMPO DE TRAVESSIA

    No sei se estou perto ou longe demais, sei apenas que sigo em frente,

    vivendo dias iguais de forma diferente.

    Levo comigo cada recordao, cada vivncia, cada lio.

    E mesmo que tudo no ande da forma que eu gostaria, saber que j no

    sou a mesma de ontem me faz perceber que valeu a pena. Aprendi que viver

    ser livre, que ter amigos necessrio, que lutar manter-se vivo (...).

    Aprendi que sonhar no fantasiar, que a beleza no est (s) no que

    vemos e sim no que sentimos!

    Aprendi que um sorriso a maneira mais barata de melhorar a aparncia.

    Que no posso escolher como me sinto, mas posso escolher o que fazer a

    respeito.

    Aprendi que no preciso correr atrs da felicidade, ela est nas

    pequenas coisas, e hoje, sei que posso ser e fazer o que quiser, mas a gente

    aquilo que faz, o que vale a pena e s o que permanece...

    H um tempo em que preciso abandonar as roupas usadas...

    Que j tm a forma do nosso corpo...

    E esquecer os nossos caminhos que nos levam sempre aos mesmos

    lugares...

    o tempo da travessia...

    E se no ousarmos faz-la...

    Teremos ficado...

    para sempre...

    margem de ns mesmos...

    (Fernando Teixeira de Andrade)

  • RESUMO

    Esta investigao teve como motivo central compreender as relaes

    educativas desenvolvidas em dois quilombos e em duas salas de

    Educao Infantil da rede pblica municipal da cidade de Garopaba -

    Santa Catarina, para o que foi selecionado um grupo de sete crianas

    quilombolas (trs meninas e quatro meninos) com idades situadas entre

    quatro e seis anos de idade como sujeitos principais da pesquisa. Ainda

    tomaram parte na pesquisa um grupo de vinte crianas no moradoras

    das comunidades quilombolas, mas integrantes das salas de Educao

    Infantil pesquisadas. Compuseram o corpus de analise da pesquisa: o

    lugar ocupado pelas crianas quilombolas nos dois contextos sociais em

    que transitam (quilombo e Educao Infantil) e suas manifestaes e

    expresses diante das relaes educativas (interaes, normas e regras

    de sociabilidade) que estabelecem entre si e com as outras crianas,

    bem como com os adultos; um conjunto de significaes pelo qual as

    crianas produzem a cultura infantil, em especial as brincadeiras, a

    identidade (autoestima, formao identitria, confronto com

    constrangimentos), a autonomia, a independncia; o pertencimento

    terra (territorialidade) e as relaes sociais que estabelecem com outros

    sujeitos. A fim de apreender os diferentes aspectos que ocorriam nos

    ambientes investigados e obter a mxima compreenso possvel dos

    fenmenos, foi empreendida uma pesquisa de cunho qualitativo e

    etnogrfico, por meio da observao participante e a estada prolongada

    nos campos de pesquisa. Como estratgia para alcanar os objetivos

    propostos, foram utilizados diferentes procedimentos: registro escrito

    com base nas observaes realizadas, entrevistas com os adultos,

    registro fonogrfico e em vdeo, registro fotogrfico, oficinas, moradia

    (da pesquisadora) em um dos quilombos por 40 dias. A perspectiva

    terica principal direcionou-se para a Sociologia da Infncia, cujos

    estudos tomam crianas como sujeitos sociais e competentes para dizer

    de si mesmas, como tambm para a Antropologia que evidencia a

    necessidade de perceber a alteridade das crianas frente a outros

    sujeitos. A investigao reafirmou algumas das hipteses iniciais: h

    especificidades nos discursos, nas expresses e nas prticas educativas

    (institucionalizadas ou no) presentes em diferentes realidades culturais

    que, a depender da raiz de origem, marcam o pertencimento cultural das

    crianas; a dificuldade de lidar com as diferenas culturais no espao

    institucionalizado se deve ao fato de no reconhecermos como legtimo

    tudo aquilo que est alm das fronteiras do projeto hegemnico da

    sociedade contempornea; as crianas quilombolas sofrem

  • constrangimentos na relao com as demais crianas no espao

    educativo. Ao final, a pesquisa evidencia que as crianas moradoras dos

    quilombos revelam um alto grau de cumplicidade entre seu grupo de

    pertena tnica, na formulao de argumentos e estratgias quando em

    confronto com crianas no-quilombolas, no se deixando submeter

    passivamente, especialmente nos contextos institucionalizados de

    Educao Infantil. Reagindo crtica e criativamente s tentativas de

    excluso, demonstram autoestima e pertencimento tnico, ao mesmo

    tempo em que reafirmam suas especificidades e promovem a

    construo de uma cultura infantil quilombola. Finalmente, procura-se

    ressaltar que h infncias que se distinguem por influncia de seus

    contextos culturais e geogrficos de origem. Desse modo, prticas

    educativas institucionalizadas devem fundamentar-se em projetos

    pedaggicos que levem em conta a perspectiva da diferena e da

    diversidade .

    Palavras-chave: Educao Infantil. Educao e diversidade. Crianas

    Quilombolas. Diferena. Brincadeira.

  • ABSTRACT

    This investigation have as its principal motive to comprehend the

    educational relations developed in two quilombos and two Childhood

    Garopaba Santa Catarina, in order to do so, a group of seven

    quilombola children (three girls and four boys) with ages between four

    Besides, a group of twenty children that do not inhabit the quilombola

    communities, but study in the same researched classes, took part of the

    corpus was composed by: the place

    occupied by the quilombola children in both social contexts where they

    transit (quilombo and Childhood Education) and their manifestations

    and expressions in front of the educational relations (interactions,

    principles and rules of sociability) which they establish between

    themselves and with the other children, as well as the adults; a whole

    complex of significations through which the children produce the infant

    -

    formation, confront against constraint), the autonomy, the

    independence; the belonging towards the land (territoriality) and the

    social relations they establish with other individuals. In order to

    apprehend the different aspects that occurred in the investigated

    ambiences and obtain the maximal phenomenal comprehensions, a

    ethnographical and qualitative research was undertaken, through

    participant observation and a long stay on the research fields. As an

    strategy to achieve the proposed objectives, different procedures were

    employed: written register based on the observations, interviewing with

    adults, phonographic and video recordings, photographic recording,

    workshops, inhabitance (of the researcher) in one of the quilombos for

    40 days. The main theoretical perspective was directed to the Childhood

    Sociology, whose studies take children as social and competent

    individuals to tell about themselves, likewise the Anthropology that

    individuals. The investigation reassured some of the initial hypothesis:

    there are specificities in the speechs, expressions and educative practices

    (institutionalized or not) that are present in different cultural realities

    belonging; the difficulty to deal with the cultural differences on the

    institutionalized space is due to the fact that we do not recognize as

    legitimate anything beyond the frontiers of the contemporary society

    hegemonic project; the quilombola children suffer constraints in the

  • relation with other children in the educational space. In the end, the

    research evidences that children who inhabit quilombos reveal a high

    formulation and strategies when there is a confront with non-quilombola

    children, not letting themselves to passively submit, especially in

    institutionalized contexts of Childhood Education. Reacting critic and

    creatively to exclusion attempts, they demonstrate self-steam and

    ethnical belonging, but at the same time they reassure their specificities

    and promote the construction of a quilombola infant culture. Finally, we

    try to highlight that there are childhoods which distinguish themselves

    by the influence of their original geographic and cultural contexts. Thus,

    institutionalized educational practices must found themselves on

    pedagogical projects that take on account the diversity and difference

    perspective.

    Key-words: Childhood Education. Education and diversity. Quilombola

  • LISTA DE FIGURAS

    Figura 1 - Desenho feito por criana do Quilombo Aldeia ................... 43 Figura 2 - Crianas tomando caf e contando histrias ......................... 91 Figura 3 - Crianas refazem a histria ................................................... 92 Figura 4 - Colheita de Caf ................................................................. 125 Figura 5 - Cultivo da Horta ................................................................. 125 Figura 6 - Corte dos cachos de banana ................................................ 126 Figura 7 - Trato aos animais ................................................................ 126 Figura 8 - Trato aos animais ................................................................ 127 Figura 9 - Lavao de roupa, corte de lenha e colheita de gravetos .... 127 Figura 10 - Preparo do caf na casa da senhora mais antiga da

    comunidade ...................................................................... 128 Figura 11 - Sala Multiuso .................................................................... 128 Figura 12 - Produo de geleia: banana e morango ............................ 129 Figura 13 - Aula de teclado e violo para adolescentes ...................... 129 Figura 14 - Oficina Abayomi .............................................................. 137 Figura 15 - Oficina Abayomi .............................................................. 138 Figura 16 - Contao de histrias ........................................................ 140 Figura 17 - Pintura em tela .................................................................. 143 Figura 18 - Oficina de fotografia Primeiro momento ....................... 143 Figura 19 - Oficina de fotografias Segundo momento ..................... 146 Figura 20 - Oficina de brinquedos e brincadeiras ............................... 150 Figura 21 - Desenho feito por crianas do Quilombo Aldeia .............. 153 Figura 22 - Comunidades Quilombolas Certificadas por Municpio .. 165 Figura 23 - Imagem area do Quilombo Morro do Fortunato ............. 174 Figura 24 - Imagem area do Quilombo Aldeia .................................. 175 Figura 25 - Desenho do Quilombo Aldeia .......................................... 176 Figura 26 - Desenho do Quilombo Morro do Fortunato ..................... 176 Figura 27 - Desenho feito por crianas do Quilombo Aldeia .............. 211 Figura 28 - Bola de gude no parque .................................................... 224 Figura 29 - Arco e Flecha .................................................................... 225 Figura 30 - Criao da mquina no parque ......................................... 226 Figura 31 - Brincadeira com o pio ..................................................... 228 Figura 32 - Ana ensina a mim e ao primo ........................................... 228 Figura 33 - Brincadeira com bambu oco ............................................. 229 Figura 34 - Brincadeiras no parque ..................................................... 231 Figura 35 - Tentativa de conserto no parque ....................................... 231 Figura 36 - Reorganizao do parque .................................................. 232 Figura 37 - Imagens dos cabelos das meninas..................................... 237 Figura 38 - Quilombo Aldeia .............................................................. 237

  • Figura 39 - Duas crianas africanas em uma sala de Educao Infantil

    Norte da Espanha ............................................................. 238 Figura 40 - Auxlio para passar sob uma cerca de arame .................... 241 Figura 41 - Auxilio .............................................................................. 242 Figura 42 - Crianas nas pedras do riacho .......................................... 243 Figura 43 - Desenho feito por criana do Quilombo Aldeia ............... 251 Figura 44 - Crianas do Quilombo Aldeia na Escola .......................... 275 Figura 45 - Crianas brincam com a boneca negra ............................. 279 Figura 46 - Crianas brincando ........................................................... 280

  • LISTA DE QUADROS

    Quadro 1 - Escola Municipal Ary Manoel dos Santos .......................... 87 Quadro 2 - Escola de Educao Bsica Maria Correa Saad -

    Garopaba/SC ...................................................................... 88 Quadro 3 - Comunidades de Santa Catarina com processos de

    Regularizao de territrios quilombolas ......................... 166 Quadro 4 - Localizao de Garopaba .................................................. 173

  • LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS

    ABA Associao Brasileira de Antropologia

    ACAA

    ACRQMF

    Associao Cultural Amigos do Quilombo Aldeia

    Associao Comunidade Remanescente do Quilombo

    Morro do Fortunato

    ADCT Ato das Disposies Constitucionais Transitrias

    CRQ Comunidade Remanescente de Quilombo

    CONAQ Coordenao Nacional de Articulao das Comunidades

    Negras Rurais Quilombolas

    CF Constituio Federal

    DCNEI Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educao

    Infantil

    DCNRERE Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educao das

    Relaes tnico-Raciais e para o Ensino de Histria e

    Cultura Afro-Brasileira e Africana

    DCNEEQ Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educao

    Escolar Quilombola

    ECA Estatuto dos Direitos das Crianas e dos Adolescentes

    FCP Fundao Quilombo dos Palmares

    LBD Lei de Diretrizes e Bases da Educao Nacional

    IBGE Instituto Brasileiro de Geografia e Estatstica

    INCRA Instituto Nacional de Colonizao e Reforma Agrria

    MDS Ministrio do Desenvolvimento Social

    MNU Movimento Negro Unificado

    NUPEIN Ncleo de Estudos e Pesquisas da Educao na Pequena

    Infncia

    PBQ Programa Brasil Quilombola

    PNAD Pesquisa Nacional por Amostra de Domiclios

    SECAD Secretaria da Educao Continuada, Alfabetizao e

    Diversidade

    SEPPIR Secretaria Especial de Polticas de Promoo da

    Igualdade Racial

  • SUMRIO

    1 INTRODU O: PARTINDO... NEM SEMPRE DO PRINCPIO ............................................................................ 27

    TRECHO I

    2 O ROTEIRO DA INVESTIGAO: PERCURSOS E PERCALOS AO LONGO DOS CAMINHOS ................. 45

    2.1 ESCOLHAS TERICAS ........................................................ 48 2.1.1 Antropologia da Criana e Sociologia da Infncia: auxlio na

    compreenso das diferentes infncias nos espaos

    institucionais de educao infantil ........................................ 52 2.2 A ETNOGRAFIA COMO UMA OPO METODOLGICA

    PARA A PESQUISA EMPRICA ........................................... 64 2.2.1 Reencontrando caminhos: cruzamento de aes, olhares,

    imagens e cores na pesquisa de campo ................................ 65 2.2.2 Algumas trilhas metodolgicas: entrada nos campos de

    pesquisa ................................................................................... 77 2.2.2.1 Aproximao aos sujeitos da pesquisa: adultos e crianas ....... 85 2.2.3 A tica na pesquisa com as crianas ..................................... 89 2.2.4 Metodologias de pesquisa com as crianas e entrevistas

    com os adultos ........................................................................ 99

    TRECHO II

    3 ENTRE O QUILOMBO E A EDUCAO INFANTIL: A

    (IN) VISIBILIDADES DAS CRIANAS QUILOMBOLAS

    ............................................................................................... 155 3.1 QUILOMBO: BUSCANDO A EMANCIPAO,

    REINVENTANDO A LIBERDADE .................................... 155 3.1.1

    pelas crianas....................................................................... 164 3.2

    : ............................... 178

    3.2.1 Criana, negra e escrava no Brasil ................................... 178 3.2.2

    ..................................................................... 191 3.3 OS (DES) ENCONTROS DE PRTICAS EDUCATIVAS NA

    EDUCAO INSTITUCIONALIZADA ............................. 199

  • TRECHO III

    4 O LUGAR QUE A GENTE

    BRINCADEIRAS E EXPERINCIAS DAS CRIANAS

    NOS QUILOMBOS ............................................................. 213 4.1 TERRITRIOS TRAADOS PELAS CRIANAS NO

    QUILOMBO ONDE MORAM ............................................. 213 4.1.1 Bambu, borracha e pedrinha: reinventando brincadeiras

    no parque .............................................................................. 220 4.1.2 Tranas, cachinhos, birotes e missangas: entrelaando cores

    e saberes ................................................................................ 233 4.2 INFNCIA COMO UMA CONSTRUO SOCIAL

    COTIDIANA: AS CRIANAS QUILOMBOLAS COMO

    ........................................................... 239 4.2.1 Constituio de grupo de dentro para fora da comunidade

    quilombola: formao de sua identidade com base na alteridade .............................................................................. 246

    TRECHO IV ...................................................................................... 253

    5 AS EXPERINCIAS DAS CRIANAS QUILOMBOLAS NA EDUCAO INFANTIL ............................................. 253

    5.1 ELA NO TEM A COR DA MINHA PELE! O QUE AS

    PROFESSORAS FAZEM COM AS DIFERENAS

    EXISTENTES ENTRE AS CRIANAS NA EDUCAO

    INFANTIL? ........................................................................... 254 5.2 A RESISTNCIA

    DAS CRIANAS S TENTATIVAS DE EXCLUSO

    PELAS OUTRAS CRIANAS ............................................. 270 6 PONTOS QUASE FINAIS: ENSAIANDO IDAS E VINDAS

    ............................................................................................... 281 REFERNCIAS ................................................................................ 295 APNDICE A - Entrevista com as professoras .............................. 315 APNDICE B - Entrevistas com alguns moradores do Quilombo

    Morro do Fortunato ............................................................ 317 APNDICE C - Busca Capes de Teses e Dissertaes ................... 337

  • 27

    1 INTRODUO: PARTINDO ... NEM SEMPRE DO PRINCPIO

    hora do recreio! As crianas da educao

    infantil esto sentadas lado a lado em uma grande

    mesa no ptio coberto da escola. A professora e

    uma das auxiliares de limpeza distribuem, para as

    oferece: cereal de milho, leite e laranja. Neste dia,

    cinco crianas no solicitam a merenda porque

    trazem lanche de casa. As demais comem o que

    foi entregue pelos adultos. Ayana senta-se ao lado

    de Hanna e Keli, que esto em frente a Tutu. Em

    volta de Tutu esto outros dois meninos. Ayana

    no trouxe, neste dia, lanche de casa e tambm

    no solicita a merenda, mas come junto com a

    bolacha recheada que a colega trouxe. Tutu, em

    , que

    traz dentro de um pequeno pote. Keli e outros

    meninos comem o salgado que Tutu trouxe,

    enquanto este conversa e ri com eles. Ayana, que

    at ento comera a bolacha com Keli, estica o

    brao e faz meno de pegar um salgado do pote

    de Tutu. Este, rapidamente, puxa o pote para sua

    frente, pe as mos sobre o utenslio e diz: No!

    Ayana recua. Eu, intempestivamente, pergunto a

    Tutu por que Ayana no pode pegar. Ele olha para

    mim e, em seguida, olha para Ayana, e responde:

    Ela no da cor da minha pele. Enquanto eu

    processo o que ele diz, Ayana rapidamente fala:

    Eu sabia, eu sabia que era isso! No tem nada a

    v, a Keli tambm no da tua cor! (Keli,

    autorizada a comer o salgadinho, uma menina da

    regio norte do Brasil e tem a pele morena). Tutu

    fala: Mas ela branca! Ayana no se constrange e

    fala de forma determinada: Tu tambm no igual

    a ela! E continua: Tutu, quando eu tiv uma coisa

    eu tambm no vou te d, mas no porque tu

    no tem a minha cor da pele. Tutu coloca um

    salgado na boca e no responde. Ayana vira-se

    para sua amiga Keli e come uma de suas bolachas.

    Com a passagem do impacto que a frase me

    provoca, peo que as crianas coloquem seus

    braos sobre a mesa e as desafio a encontrar a

    mesma cor. As crianas arregaam as mangas e se

    olham. keli responde: No sei! Tem um pouco

  • 28

    parecido! Mas no igualzinho, igualzinho,

    insiste Ayana. Bate o sinal e Tutu o primeiro a

    sair correndo para a sala!

    (Registro do Dirio de Campo de 15 de junho de

    2011)

    Cenas como esta1, que representa uma situao de conflito

    2 entre

    crianas de diferentes grupos tnicos, no foi, a princpio, o que

    despertou meu interesse de realizar uma pesquisa com crianas de

    comunidades quilombolas3. Tinha, como ideia central, compreender o

    significado de ser criana moradora de um quilombo e o lugar ocupado

    por elas nas instituies de educao infantil e, posteriormente, nas

    comunidades em que elas se inserem, contextos esses considerados

    perifricos na viso da modernidade ocidental4 5

    na

    1 O excerto acima transcrito registra uma situao ocorrida em uma escola

    estadual do municpio de Garopaba-SC. Essa escola atende, alm do ensino

    fundamental e mdio, a trs grupos de educao infantil. Os sujeitos referidos

    nesse registro so crianas entre quatro e seis anos de idade, frequentadoras

    dessa escola e moradoras tanto da comunidade Quilombo Aldeia, quanto de

    outras comunidades prximas da escola. 2 ntender que

    h nesta um aspecto que tanto pode ser negativo, como tambm positivo. Se,

    por um lado, h divergncia entre pessoas ou grupos, gerando tenso entre elas,

    por outro, esses conflitos podero fazer com que as crianas criem estratgias de

    resistncia, subverso e transformao daquilo que a elas se apresenta. No livro

    os de Freire no aparea na superfcie textual,

    subjaz aos pensamentos, obra e vida desse autor. Para Romo, Paulo Freire

    era dialtico, mesmo que no se proclamasse como tal, revolucionrio do

    conhecimento e da prxis ao conseguir perceber os polos opostos de uma

    mesma realidade. 3 Anuncio previamente que as crianas, centro das reflexes e indagaes ao

    longo deste trabalho,interlocutoras principais, so crianas quilombolas,

    negras, moradoras de dois quilombos localizados no municpio de Garopaba/

    Santa Catarina: Quilombo Morro do Fortunato e Quilombo Aldeia. As crianas

    so pertencentes a famlias com ascendncia africana e com uma histria

    marcada por uma trajetria de luta contra a explorao do escravismo e do

    racismo. 4 Para Boaventura Santos, a modernidade ocidental caracterizada como um

    paradigma fundado na tenso entre regulao e emancipao social. No entanto,

    subjacente a essa distino existe outra: a sociedade metropolitana e os

  • 29

    teorizao de Boaventura de Sousa Santos. Esse autor denuncia a

    supresso de saberes e prticas pela norma epistemolgica dominante,

    reconhece os saberes que resistem e prope um dilogo horizontal entre

    diferentes conhecimentos (SANTOS, 2010).

    Destaco, assim, que meu foco direcionado crianas moradoras

    dos quilombos no teve, como preocupao inicial, a inteno de

    ressaltar a existncia de racismo individual ou institucional. Sabia sim

    da importncia social e poltica de denunciar uma possvel indiferena

    da sociedade em relao a esses grupos sociais e diversidade desigual6

    nos espaos educativos. Assim, pretendia me ater muito mais s relaes

    educativas, s experincias, s narrativas, enfim, s possveis

    peculiaridades de ser criana nesses diferentes espaos - educao

    infantil e comunidade. Nesse af, no percebi, antes de entrar em

    campo, que o ser criana quilombola no estava descolado de todos os aspectos acima mencionados. Snia Kramer me auxilia nesse alerta:

    Com frequncia, falo desta minha perplexidade e

    assombro diante da excluso, da discriminao e

    da eliminao. Pois, apesar do avano e aparente

    progresso tecnolgico, a humanidade no

    conseguiu superar o problema que est na origem

    dos grandes crimes cometidos contra a vida -

    sejam eles de ordem poltica, tnica, religiosa,

    social ou sexual - na origem dos genocdios: a

    territrios coloniais. A dicotomia regulao/emancipao apenas se aplica s

    sociedades metropolitanas; j nos territrios coloniais se aplica outra dicotomia:

    apropriao/violncia. (SANTOS, 2010, p. 32) 5

    epistmicos, estes procuram superar os danos e impactos causados pelo

    capitalismo ao longo da histria, na sua relao de colonizao com o mundo.

    (SANTOS, 2010) 6 Nilma Lino Gomes, aborda a diversidade como o encontro de costumes, de

    raas/etnias, de comportamentos, de expresses, de gostos, de cultura, de

    crenas. No entanto, nos diz tambm que o desafio nas instituies educativas

    o de construir prticas que contemplem de forma tica, a diversidade, sem

    folcloriz-la ou omiti-la, e que, ao mesmo tempo, no se silencie sobre ela. A

    autora ainda nos fala que o debate sobre diversidade confronta-se com as

    desigualdades sociais e raciais no Brasil. H necessidade de se entender o que

    a pobreza e como ela afeta de maneira trgica grande parcela da populao e,

    fazendo um recorte tnico racial, ver-se- que a populao negra e pobre a

    que sofre mais preconceitos e mais enfrenta dificuldades em nosso pas.

    (2006).

  • 30

    dificuldade de aceitar que somos feitos de

    pluralidade, que somos constitudos na diferena.

    (KRAMER, 2003, p. 92-93)

    Assim, a no aceitao pacfica, por parte das crianas, de um 7, e suas

    aes de resistncia diante dos processos de discriminao, ou os

    preconceitos engendrados por outros sujeitos - adultos ou crianas -

    tambm passaram a ser meu foco de observao e anlise. Compreendi

    a subverso enrustida nessas aes das crianas quilombolas diante das

    sujeies e constrangimentos impostos em especial no contexto

    educativo e que as tornavam diferentes8.

    Propus-me, para compreender essas questes, investigar as

    prticas educativas estabelecidas em dois espaos institucionalizados de

    educao e em duas comunidades quilombolas. Prticas estabelecidas

    entre e pelas prprias crianas (relaes entre pares) Destaco a relao

    entre as crianas moradoras dos quilombos e as que moram em outras

    comunidades no quilombolas, geralmente crianas no negras, como

    tambm as estabelecidas entre as crianas e os adultos, procurando, em

    especial, destacar as reaes das crianas quilombolas diante das

    informaes, normas e regras que a sociedade lhes impe e como

    resistem aos constrangimentos impostos pelo outro adulto ou criana.

    Para alcanar meus intentos, tomo ainda como indispensvel a

    7 -me em

    Anete Abramowicz. A autora conceitua raa com base no Movimento Negro

    como uma maneira, ao mesmo tempo, de resistncia e reposta ao processo de

    subalternizao no qual negros foram e so colocados nas hierarquias sociais e

    de trabalho e tambm como uma categoria sociolgica e analtica de

    8 Reconhecer as diferenas e combater as desigualdades sociais premissa de

    todo projeto educacional (KRAMER; BAZLIO, 2003).

    Ainda destacando a discusso sobre diferena, Valter Silvrio faz um alerta

    quanto ao significado dessa expresso. O autor nos fala que a diferena

    utilizada muitas vezes como forma de inferiorizar grupos sociais, em especial os

    grupos tnico raci

    tem sido a base de enfrentamento poltico de sua condio de subalternidade.

    Assim, a politizao da diferena o meio pelo qual a denncia de tratamento

    desigual ganha visibilidade e, ao mesmo tempo, o caminho para o

    reconhecimento social das formas distorcidas e inadequadas a que determinados

    08)

  • 31

    construo de caminhos metodolgicos em que as crianas estejam

    includas como sujeitos influentes e no meros coadjuvantes da

    pesquisa.

    Ao falar de prticas educativas ou de educao, pressuponho, de

    acordo com Carlos Brando, que esta pode ser considerada como um

    processo que faz parte de nossa humanizao; portanto, a educao

    ocorre em diferentes espaos: famlia, escola, comunidade (BRANDO,

    1981). Fundamento-me tambm nas reflexes desse autor para afirmar

    que as prticas educativas englobam uma relao muito mais ampla do

    que a realizada entre professor e aluno. Entendo haver diferentes

    prtica. Privilegio, dessa maneira e neste trabalho, a educao que

    ocorre na escola9, mas igualmente nas comunidades em que as crianas

    vivem seus outros momentos de vida.

    Assumo, como perspectiva educacional e poltica, assim como

    Vera Vasconcellos, o profundo reconhecimento e o

    [...] respeito s diferentes formas de expresso e

    fala das crianas, que lhes do marca de

    pertencimento s culturas e aos mundos plenos de

    valores e de sentidos, historicamente produzidos e

    socialmente marcados, e que elas, ao simples

    nascer, integram, ao mesmo tempo que os

    modificam. (SARMENTO; VASCONCELLOS,

    2007, p.09)

    Saliento que este trabalho, em sua caminhada, tambm se

    ancora nos estudos realizados nas disciplinas que cursei no mestrado e

    no doutorado promovido pela UFSC, como tambm em um movimento

    9 As crianas, sujeitos da pesquisa, esto situadas numa faixa etria entre quatro

    e seis anos de idade, e o nvel de ensino a que fao referncia a educao

    infantil. que funciona em escolas bsicas (uma delas inclui os trs nveis de

    ensino), prximas as comunidades quilombolas logo, haver momentos que

    utilizarei

    gostaria de enfatizar que reconheo que a educao infantil, como espao

    educativo, possui especificidades que no podem ser diludas em

    generalizaes pelas quais se tenta nivel-la escola de ensino fundamental ou

    se coaduna com o reconhecimento das crianas como sujeitos do processo

    educativo. Ainda assim, reitero que utilizarei o termo Escola apenas porque os

    grupos de educao infantil sobre os quais fao referncia esto inseridos em

    escolas bsicas, portanto, esses grupos no possuem uma instituio prpria.

  • 32

    de pesquisa desenvolvido pelo Ncleo de Estudos e Pesquisas da

    Educao na Pequena Infncia - Nupein. As discusses e reflexes

    presentes nesse ncleo tm, como uma de suas propostas, conhecer as

    crianas a partir delas mesmas e de suas manifestaes, assim como

    investir nas reflexes sobre metodologias de pesquisas com a

    participao das prprias crianas. Logo, tenho, com uma das

    referncias10

    para essa discusso, os aportes tericos da professora

    Natlia Soares:

    Considerar a participao das crianas na

    investigao mais um passo para a construo de

    um espao de cidadania da infncia, um espao

    onde a criana est presente ou faz parte da

    mesma, mas para alm do mais, um espao onde a

    sua aco tida em conta e indispensvel para o

    desenvolvimento da investigao.

    (SOARES, 2006, p. 28-29)

    Investigar as relaes que se estabelecem entre as crianas de um

    espao longnquo em relao aos espaos culturais hegemnicos (e at

    mesmo do iderio acadmico) foi uma escolha que representa um marco

    crucial, pois existem a algumas lacunas, tais como os pontos de vista

    das crianas; seus discursos e suas prticas e a legitimidade das culturas

    de pertencimento frente globalizao hegemnica. A tentativa de

    alterar tal quadro , certamente, um dos maiores desafios da luta contra-

    hegemnica no campo da educao e, por conseguinte, da luta por

    estabelecer um processo de transio para outro (ou outros) modelo(s)

    de sociedade.

    Entendo, ainda, que reconhecer a inteligibilidade das crianas e

    a heterogeneidade da infncia pode significar um avano na superao

    de nosso desconhecimento sobre suas expresses e estratgias sociais

    que transcendem os moldes habituais consolidados pela pensamento

    ocidental e a cincia moderna. Especialmente em contextos sociais

    marcados pela desigualdade, como no Brasil, as restries num campo

    objetivas vividas pelas crianas brasileiras, desvinculando-se de um

    compromisso poltico contra a excluso social (SILVA FILHO;

    PAULA, 2012).

    10

    H vrios pesquisadores no NUPEIN que tecem excelentes reflexes sobre

    as pesquisas com a participao das crianas: Coutinho (2002); Arenhart

    (2003); Oliveira (2008).

  • 33

    Recorro novamente a Boaventura Santos para explicar a ideia

    acima. Segundo esse autor, o pensamento ocidental moderno um

    -se por um sistema de distines,

    tanto visveis quanto invisveis, pelo qual efetua-se profunda diviso

    entre a cincia que se julga detentora do saber e outros saberes. Detendo

    o monoplio da distino universal entre o verdadeiro e o falso em

    detrimento de outros saberes, a cincia ignora os conhecimentos que

    transitam entre as diversas camadas sociais historicamente excludas. O

    carter exclusivo desse monoplio est no cerne da disputa

    epistemolgica moderna entre as formas cientficas e no cientficas de

    verdade. (SANTOS, 2010).

    Defender uma pesquisa que busque desvelar o lugar que as

    crianas ocupam e compreender os seus jeitos de se expressar exige,

    como princpio bsico, partir dos prprios pontos de vista das crianas.

    Partir dos seus modos de pensar, de falar, de agir, enfim, de significar

    seus mundos sociais. Para tanto, acredito ser necessria uma permisso

    e partilhar suas experincias.

    Partilhar minha exclusividade de adulto que fala, escreve e pe um

    ponto final na histria. As crianas, provavelmente, tm outras performances. Pois reconheo,

    assim como Kramer, que o qu

    (2003, p. 91). Por isso, olh-las e escut-

    las, principalmente em contextos to pouco conhecidos e valorizados

    como os contextos quilombolas e sua relao com outras crianas,

    poder ampliar a minha, certamente, e, qui, a nossa percepo sobre a

    diversidade humana e sobre o mundo. Assim, estudar as crianas tem

    como perspectiva,

    [...] descobrir mais. Descobrir sempre

    mais,porque, se o no fizermos, algum acabar

    por inventar. De facto,provavelmente j algum

    comeou a inventar, e o que inventado afecta a

    vida das crianas; afecta o modo como as crianas

    so vistas e as decises que se tomam a seu

    respeito. O que decoberto desafia as imgens

    dominantes. O que inventado perpetua-as.

    (KRAMER, 2003, p.12)

    Valorizar as diferentes crianas e as expresses que utilizam nas

    relaes que estabelecem com o outro social e com o outro lugar pode

    fazer com que os adultos percebam o mundo com base em outras

  • 34

    referncias e, portanto, em outras formas de aprender e de fazer

    educao.

    Definida a proposta, a estada nas comunidades ser tambm um

    meio de compreender o que especfico a estas infncias quilombolas,

    o que s possvel inserindo-se em seus mundos culturais, mergulhar

    em suas experincias, e acompanhar como so estabelecidas as prticas

    sociais e sua participao nesse espao. Somente a partir desses

    contextos poder ser possvel ressaltar as singularidades das

    comunidades a que pertencem e pensar formas de qualificar as relaes

    (entre as crianas e destas, com os adultos), empreendidas nos espaos

    educativos de educao institucionalizada (Educao Infantil: pr-

    escolas e creches).

    Essa ideia originou-se das inquietaes que fui construindo ao

    longo do trabalho que realizo, h mais de 25 anos, como profissional da

    educao infantil. Os estudos que venho fazendo me tm levado a

    considerar que quanto menores so as crianas e quanto mais vivam elas

    em comunidades longnquas dos centros determinantes da hegemonia

    econmica, cultural, social e poltica, mais as desconhecemos e,

    portanto, mais desconsideradas elas so nos aspectos referentes s

    capacidades de falar de si mesmas e no reconhecimento das suas

    especificidades nos processos macrossociais que as determinam. Tais

    consideraes me levam a entender que o avano da compreenso sobre

    as relaes sociais estabelecidas nesses contextos, conduz,

    necessariamente, a diversificar o olhar, incluindo espaos, pontos de

    vista, prticas e temporalidades que possibilitem novas concepes

    novas percepes sobre as especificidades deste recorte geracional.

    A perspectiva com base na qual me aproximo do contexto

    minha

    atuao como professora da educao infantil, especialmente de uma

    educao institucionalizada em espaos coletivos que atendem crianas

    de pouca idade (de zero a seis anos). dos sujeitos inseridos nesse

    espao social que tm brotado os problemas, as necessidades e as

    exigncias de reflexo que me movem e do sentido s minhas buscas.

    Entendo que a preocupao em compreender melhor as relaes

    estabelecidas nos contextos escolhidos se justifica porque, ao longo do

    processo de instituio e consolidao do projeto cultural e social da

    modernidade (SANTOS, 2005)11

    , tem-se acumulado prticas e relaes

    11

    O socilogo portugus Boaventura de Souza Santos (2005) entende que o

    advento da Era Moderna, marco instaurador de uma nova viso de mundo, fez

  • 35

    que subordinam a participao das crianas ao imperativo da proteo e

    do cuidado. Presas nas teias dessas concepes e prticas, torna-se

    muito mais difcil, a elas, um exerccio de emancipao que no seja,

    quase que totalmente, outorgado pelos adultos.

    No caso especfico das crianas das comunidades quilombolas em

    pauta, acredito pesar sobre elas, ainda, um agravo de excluso12

    , por

    serem crianas, pobres, em geral com o peso da discriminao da

    herana negra, seja cultural, social, poltica ou econmica (alm disso,

    culturais hegemnicos), reafirmo, marcadas por um preconceito

    histrico que as associa escravido no Brasil13

    .

    As crianas historicamente foram excludas da

    histria e suas vidas sempre foram contadas pelos

    adultos; no entanto, conhecemos a histria do

    nascimento de uma determinada infncia branca

    apresentada pelo historiador francs Phillipe

    surgir o Projeto Social e Cultural da Modernidade. Toma como marco a

    revoluo copernicana (Sc. XVI), desencadeada no mbito da Europa

    ocidental, de onde se expandiu para todo o planeta, exercendo, at hoje, uma

    poderosa influncia sobre o mundo contemporneo. 12

    No foi foco direto das minhas anlises a relao entre classe social e questo

    tnico- racial, ainda que ao longo do texto traga alguns dados relacionados a

    essa temtica para embasar minhas reflexes. Poderia incluir nessa discusso o

    que afirmam Valter Silvrio e Karina de So

    subsumir a questo tnico-racial condio socioeconmica, concluindo que

    bastaria atuar sobre os fatores econmicos das desigualdades (distribuio

    regional, qualificao educacional e estrutura de empregos) para que os

    indicadores dos diferenciais entre negros e brancos tendessem convergncia.

    Dito de outra forma, com a universalizao e garantia de educao bsica de

    qualidade, a clivagem tnico-racial no teria qualquer impacto na realidade

    p.108) Tambm a antroploga Nilma Lino

    [...] nas sociedades em que a questo

    racial um dos aspectos estruturantes das relaes de poder, o cabelo e a cor da

    pele sendo os sinais mais visveis da diferena e possuidores de uma forte

    2002a, p.49). Isso me leva a considerar que as desigualdade de classe so

    distintas das desigualdades raciais. No Brasil, as diferenas simblicas,

    consequncia dos sinais diacrticos que as crianas negras apresentam, as afeta

    ainda mais, tanto social como subjetivamente. A criana negra no s

    discriminada, mas tambm coisificada. 13

    Destaco aqui que no considero as crianas como vtimas passivas, mas

    vitimizadas por um sistema opressor e excludente.

  • 36

    Aris. A criana negra encontra-se em um

    mutismo maior em relao criana branca que

    de alguma forma sempre foi tratada.

    (ABRAMOWICZ; OLIVEIRA; RODRIGUES,

    2010, p. 82)

    Portanto, tornar visvel a existncia das crianas e as

    experincias que elas constroem em seu cotidiano poder nos levar a

    questionar normas e caractersticas que tm como referncia uma

    criana idealizada e normatizada pela modernidade ocidental.

    A pouca relevncia seno a excluso social das crianas em

    geral e, em especial, s do contexto desta investigao, reflete-se no

    campo da produo terica sobre elas e suas infncias. Tal referncia ,

    amide, subordinada a outras instituies sociais, consideradas mais

    relevantes como, por exemplo, a famlia e a escola, ou ainda confinada

    a reas de estudo como as da psicologia, da medicina ou da nutrio14

    .

    Esse processo de valorao que no reconhece no outro

    competncias para dizer de si mesmo, expor suas dvidas e problemas e

    propor solues , na minha opinio, um dos mais fortes traos do

    projeto da modernidade, que acabou por contaminar todas as relaes

    estabelecidas entre os seres humanos solidamente enredados nas teias da

    globalizao contempornea. E contamina no apenas as relaes

    sociais, mas tambm a conscincia que se constri, nos sujeitos, acerca

    deles prprios e das crianas socialmente discriminadas.

    Entendo que conhecer melhor as relaes estabelecidas entre os

    adultos e as crianas e entre as prprias crianas em seus contextos de

    vida, incluindo o interior das instituies educativas e comunidades,

    poder contribuir para a organizao de prticas educativas que

    assim, promover uma educao que, na crtica a certos cnones

    excludentes, ainda fortemente marcados na contemporaneidade, leve em

    conta o que esse outro tem a dizer, favorecendo assim uma educao

    feita com as crianas e no apenas para as crianas.

    Aps essas breves consideraes, exponho, a seguir, a definio

    do problema da pesquisa, a construo do objeto de investigao e os

    objetivos, delineados gradativamente com base nos estudos tericos que

    14

    De acordo com Abramowicz (2010), Souza (2001) e Cavalleiro (2000), as

    produes sobre as crianas negras e a educao no Brasil ainda so bastante

    incipientes.

  • 37

    realizei e na imerso na realidade emprica, conforme enunciei na

    trajetria e justificativa do problema de pesquisa em pginas anteriores.

    Procuro, desde o incio da pesquisa, estar aberta s diferentes

    possibilidades que a realidade em que me inseri me possa apresentar. A

    ideia procurar estabelecer um liame entre os universos micro e macro e

    tentar afastar-me de polarizaes e determinismos que pretendem

    simplificar o que no simplificvel (SANTOS, 2005), para de fato

    chegar ao u -los, e, quem

    sabe, propor novas possibilidades ao olhar dos adultos para esse

    universo das crianas. Nessa construo, apresentaram-se questes que

    fazem parte do contexto da pesquisa em torno das quais delineei a

    seguinte pergunta-problema: Como so as representaes15

    , prticas e

    experincias 16

    cotidianos e quais as relaes educativas que se estabelecem no espao

    institucionalizado da educao e no espao da comunidade quilombola?

    Desse enunciado, emerge o seguinte objetivo geral da pesquisa:

    compreender e analisar o lugar que as crianas ocupam, como so

    educativas que se estabelecem no espao institucionalizado da

    educao e no espao da comunidade quilombola onde moram.

    Para a consecuo desse objetivo ao longo de todo o percurso da

    investigao, tornou-se necessrio desdobr-lo em objetivos mais

    voltados realidade do contexto da pesquisa e propiciassem, assim,

    analisar suas especificidades:

    a) conhecer os modos de vida das crianas quilombolas com base em suas representaes sociais, levando em considerao

    15

    base em Moscovici. Entendo,

    assim como o autor, que no h dicotomia entre o universo interno e o externo

    dos sujeitos, ou seja, no h reproduo passiva daquilo que ao sujeito se

    assim

    est em constante transformao e sua constituio depende das relaes e do

    sentido que ele atribui as experincias sociais que vai estabelecendo ao longo da

    vida. Para Maria Ceclia Minayo, as representaes sociais so imagens

    construdas sobre o real (MINAYO, 1994, p. 108) 16

    Atribuo ao termo expresso um sentido similar ao que Neusa Gusmo

    diferentes formas e meios, por diferentes linguagens: da fala ao

    corpo, da ao representao, da escrita oralidade, dos gestos, da dana aos

    55-56)

  • 38

    o que pensam, dizem e fazem a partir delas mesmas, de seus

    prprios pontos de vista;

    b) analisar as relaes que se estabelecem entre as crianas moradoras dos quilombos pesquisados e entre elas e as outras

    crianas no espao da educao infantil;

    c) analisar o que as crianas quilombolas expressam sobre as relaes educativas;

    d) analisar as formas de participao das crianas no confronto com diferentes constrangimentos, como elas se instituem e

    com quais limites essa participao tem de lidar;

    e) compreender as peculiaridades existentes na interao entre diferentes identidades e culturas no espao institucionalizado

    de educao.

    Como forma e necessidade de delimitar a pesquisa, a fim de

    poder definir-me por alguns caminhos, na tentativa de compreender o

    lugar que as crianas ocupam nos diferentes espaos pelos quais

    transitam, em especial, embora no exclusivamente, no quilombo onde

    moram, delimitei como corpus de anlise suas formas de expresso

    diante das relaes educativas (interaes, regras e normas de

    sociabilidade que estabelecem com outras crianas e adultos). E ainda,

    as expresses e experincias que se referem produo da cultura

    infantil, em especial as brincadeiras; a identidade17

    ( autoestima,

    formao identitria, confronto com constrangimentos); a autonomia; a

    independncia; o pertencimento terra (territorialidade); as relaes

    sociais que estabelecem com outros sujeitos.

    Por fim, sintetizei o foco da pesquisa definindo, da forma mais

    clara possvel, algumas questes da pesquisa e, para sua melhor

    exposio, formulei diversas hipteses. Na verdade, as hipteses

    refletem minha caminhada como professora ao longo de muitos anos de

    profisso e meus muitos questionamentos, os quais procuro

    compreender com o presente trabalho - pois traduzem minhas reflexes

    sobre a constituio e as relaes entre as diferentes infncias em

    contextos educacionais. As questes podem caber, em sua essncia, nas

    seguintes formulaes:

    17

    O conceito de identidade bastante complexo. Se os sujeitos j foram vistos

    como unificados porque se ancoravam em um mundo estvel, na atualidade os

    sujeitos se constituem de diferentes identidades a depender dos sistemas sociais

    e culturais das quais fazem parte. Conforme Hall (2011), as identidades so

    definidas

  • 39

    a) O que significa ser criana moradora de uma comunidade quilombola no interior do espao de educao infantil

    institucionalizado?

    b) Quais so os impactos dessa presena nas prticas pedaggicas do cotidiano institucional?

    c) Como essas mesmas crianas experienciam os processos de socializao (regras, normas, rotinas, constrangimentos,

    processos educativos) estabelecidos com as outras crianas

    quilombolas e no-quilombolas e com os adultos no interior

    da instituio educativa?

    Com base nas questes acima, levanto as seguintes hipteses:

    a) h especificidades nos discursos, nas expresses e nas prticas educativas (institucionalizadas ou no) presentes em

    diferentes realidades culturais que, a depender da raiz de

    origem, marcam o pertencimento cultural das crianas,

    podendo-se inferir que elas tanto podem se agregar ao meio

    em que vivem, como alter-lo, ou seja, elas tanto podem ser

    afetadas pela tradio, como tambm podem modificar o meio

    em que vivem;

    b) a dificuldade de lidar com as diferenas culturais no espao institucionalizado se deve ao fato de no reconhecermos

    como legtimo tudo aquilo que est alm das fronteiras do

    projeto hegemnico da sociedade contempornea;

    c) no existe uma nica cultura quilombola; pode-se, ento, falar de culturas quilombolas;

    d) as escolas influenciam as comunidades quilombolas que esto em sua proximidade e so por elas influenciadas;

    e) as formas de expresso ou de sociabilidade das crianas das comunidades podem suscitar outras maneiras de pensar a

    educao institucionalizada das crianas em contextos

    urbanos;

    f) a multiplicidade de perspectivas e modos de ser o que potencializa diferentes aprendizagens;

    g) as crianas quilombolas sofrem constrangimentos na relao com as demais crianas no espao educativo.

    A despeito de construir minhas hipteses tendo como referncia

    tambm as comunidades, deixo claro que o lugar de onde parto para

    construir a pesquisa o campo da educao; ali coloco meu centro de

  • 40

    referncia e de atuao profissional e para onde convergem minhas

    reflexes.

    Comprometida, em todos os aspectos, com as mltiplas e

    diferentes questes com as quais convivo ao longo de minha carreira

    como professora da educao infantil, tentarei responder

    especificamente s levantadas nesta pesquisa, embora tema no o

    conseguir na abrangncia e profundidade com que desejaria.

    Por fim, procurei sintetizar nesta introduo o que tenho

    construdo na pesquisa e na elaborao da escrita da tese. Embora tenha

    traado tais caminhos de uma forma ampla, procurarei, a seguir, detalh-

    los e especific-los, de acordo com sua apresentao sequencial:

    No trecho I efetuo uma abordagem dos referenciais tericos que

    do suporte construo da pesquisa, articulando-os ao objeto da tese.

    Na segunda parte deste trecho apresento os campos de pesquisa e os

    procedimentos metodolgicos utilizados, destacando a Etnografia

    como um dos meios mais adequados para a aproximao aos sujeitos da

    pesquisa. Enfatizo a necessidade de um procedimento tico ao ter como

    principais sujeitos crianas entre quatro e seis anos de idade. Por fim,

    apresento as entrevistas com os adultos e, de forma extensa, a

    construo de metodologias com as crianas.

    No trecho II apresento e aprofundo o conceito de quilombo.

    Contextualizo a presena das comunidades quilombolas no Estado

    brasileiro e, especialmente, em Santa Catarina. Na sequncia discorro

    produes tericas. Por fim abordo diferentes prticas na educao

    institucionalizada.

    No trecho III me atenho, na primeira parte, aos contextos

    socioculturais das crianas quilombolas. Fao referncia a duas das

    a criao de brincadeiras e de brinquedos pelas crianas e alguns dos

    sinais de diferena nessa criao, dada a forte dimenso simblica ali

    expressa. Abordo a questo do lugar, para alm de um espao

    geogrfico, mas como territrio criado e vivido pelas crianas. Na

    segunda parte deste trecho trato da constituio das infncias

    quilombolas no cotidiano social e da formao de uma identidade

    fortemente marcada pelo grupo de pertena, conferindo a elas uma

    alteridade diante de outras crianas.

    No trecho IV, apresento, na primeira parte, a abordagem de

    algumas pesquisas sobre as diferenas tnico-raciais entre as crianas

    na educao infantil. Na segunda parte discuto sobre os

    constrangimentos vividos pelas crianas quilombolas e provocados

  • 41

    por outras crianas no contexto institucionalizado da pesquisa e

    evidencio a agncia crtica e criativa das crianas para lidar com tais

    constrangimentos.

    No espao reservado s consideraes finais fao uma breve

    sntese das principais questes da pesquisa e reitero sua relevncia,

    especialmente com relao identidade e alteridade das crianas

    quilombolas. Enfatizo que as diferenas no so abstratas, mas partem

    de sujeitos reais e, portanto, no bastam ser reconhecidas, necessrio se

    faz lev-las em considerao nas prticas pedaggicas.

  • 42

  • 43

    Figura 1 Desenho feito por criana do Quilombo Aldeia

    Fonte: Autoria do desenho: Hanna.

  • 44

  • 45

    " S UM INSTANTE... " MAS O TRAJETO TEM QUE

    COMEAR

    TRECHO I

    2 O ROTEIRO DA INVESTI GAO: PERCURSOS E

    PERCALOS AO LONGO DOS CAMINHOS

    Os caminhos da pesquisa tiveram, como compromisso inicial,

    suscitar questes que pudessem contribuir com a rea da educao

    infantil, ainda que o arcabouo terico pesquisado e os meios utilizados

    durante a pesquisa emprica tenham transitado por diferentes reas do

    conhecimento.

    A escolha do pblico-alvo - criana quilombolas - restringia-se

    inicialmente s crianas de uma sala de educao infantil de frequncia

    diria. Foi com o andamento da pesquisa que se revelou necessrio faz-

    la tambm com as crianas na comunidade em que moram.

    Ante os mltiplos conceitos de comunidade, percebo a

    necessidade de trazer aquele que mais adequadamente conceitue o grupo

    humano ao qual me volto nesta pesquisa. Patrcia Ramiro (2006) ao

    referir-se s comunidades com caractersticas semelhantes s aqui em

    pauta, entende-as como grupos que resistem ao ritmo urbano de vida

    das grandes cidades decorrente do processo de industrializao e da

    diviso social do trabalho. Segundo essa autora, os grupos da

    comunidade podem ser regidos por laos de parentesco, de lugar comum

    ou de afinidade resultante de semelhanas no trabalho ou na forma de

    pensar. A autora ressalta a importncia de delimitar esse conceito

    [...] para que confuses semnticas no ocorram,

    como o caso da viso freqente de que estudos

    de bairro, por exemplo, so, necessariamente,

    estudos de comunidade. Um bairro ou qualquer

    outro agrupamento humano s ter o carter de

    uma comunidade se os indivduos que o compem

    tiverem suas aes guiadas por valores j

    incorporados e regidos pela comunidade e para a

    coletividade como um todo orgnico. (RAMIRO,

    2006, p. 23-24)

    Voltando pesquisa, ressalto que a necessidade de recorrer a

    duas comunidades, e no a apenas uma, foi se explicitando tambm no

    percurso da pesquisa emprica. Percebi a necessidade de ir alm das

  • 46

    relaes entre as crianas num espao institucionalizado. Os modos de

    ser, falar e agir das crianas diferenciavam-se consideravelmente a

    depender de como se encontravam nas salas de educao infantil, ou

    seja, de quando uma criana quilombola estava sozinha (nos dias em

    que as demais crianas quilombolas faltavam) e quando havia mais

    crianas e portanto estavam em grupo (refiro-me ao grupo de crianas

    moradoras da comunidade quilombola). Essa constatao me fez sentir

    a necessidade de extrapolar o espao de educao institucional e

    compreender como se davam as relaes educativas nas comunidades,

    para isso, tornava-se necessrio tambm extrapolar a rea de

    conhecimento da educao e abordar outros campos de conhecimento ,

    em especial, o da Antropologia e o da Etnografia. Ainda sobre a

    instituio de educao infantil, a incluso de duas unidades em vez de

    apenas uma, como inicialmente pensava, foi por compreender que a

    complexidade das relaes educativas exigia um campo mais vasto de

    investigao, a estudar em sua origem e local, o que se tornou vivel

    pela possibilidade de acompanhar um nmero maior de crianas

    moradoras de quilombos prximos. A ideia era pesquisar como as

    crianas lidavam com normas e regras construdas nas instituies; quais

    eram suas reaes diante do que lhes impunha o contexto

    institucionalizado. Em uma das instituies havia trs crianas

    moradoras da comunidade quilombola e, na segunda, quatro crianas.

    Com relao s comunidades, a ideia foi compreender o lugar

    nelas ocupado pelas crianas, a maneira como elas transitam nos

    espaos comunitrios, como os "experienciam" e como participam nas

    comunidades, como interagiam com os adultos e outras crianas

    maiores. Aqui tambm fao uma ressalva. Como as famlias das

    crianas tiveram um papel importante no percurso da pesquisa e como

    tambm recorri a elas para entender aquele contexto, saliento que as

    identifiquei como elas se autoidentificaram, portanto, opto, neste texto, e 18

    rir a adultos ou

    18

    [...] a utilizao dos termos preto e negro diz

    respeito a uma distino entre cor (preto-fentipo, aparncia) e pertencimento

    racial (negro - que tem a ver com ascendncia, origem familiar e ancestral),

    numa associao com as caractersticas culturais socialmente atribudas ao

    grupo com o qual o indivduo identificado. A cor um dado fsico, mas a raa

    no determinada pela cor. A pessoa poder ser mestia, de cor clara, parda, etc.,

    mas se identificar racialmente como negra pela sua origem. Da a necessidade

    -128).

  • 47

    mesmo s crianas moradoras dos quilombos pesquisados, pois,

    segundo Almeida (2002, p. 68),

    O importante aqui no tanto como as agncias

    definem, ou como uma ONG define, ou como um

    partido poltico define, e sim como os prprios

    sujeitos se auto-representam e quais os critrios

    poltico-organizativos que norteiam suas

    mobilizaes e forjam a coeso em torno de uma

    certa identidade.

    Mesmo sem pretender desconsiderar o alerta que estudiosos,

    como Paulino Cardoso e Ilka Leite fazem sobre a subjetividade da

    -descendncia, ao contrrio de negritude, no remete a

    uma identidade de natureza racialista e totalitria, entendo ser necessrio

    empregar o termo que as pessoas moradoras dos quilombos utilizam

    para se identificar -

    Dando sequncia ao texto, outra preocupao foi como realizar

    um cotejamento entre as duas comunidades para entender as formas de

    organizao social e cultural (j que eu desconhecia completamente sua

    organizao) e verificar se havia uma cultura universal relativamente a

    quilombos ou se especfica a cada contexto. A inteno, portanto, era

    investigar tanto as semelhanas como as diferenas entre as duas

    comunidades, disposta a aprender com elas e abrir novas possibilidades

    de dilogo. A proximidade escola/educao infantil e comunidade

    tambm foi determinante para minha escolha.

    A opo pelos sujeitos da pesquisa - crianas moradoras dos

    quilombos - foi determinada pelo quase total desconhecimento sobre as

    experincias das infncias ali existentes e pelo desafio de conhecer um

    grupo social que , insistentemente, invisibilizado no cenrio nacional.

    Aqui levanto uma observao que considero importante estar

    presente nas reflexes ao longo do texto. Ancorada em Azanha (1992),

    afirmo que os fatos desta pesquisa esto situados em um processo de

    determinao histrica, falo tanto de situaes como de sujeitos

    concretos e reais, portanto, marcados por contradies e polissemias no

    que diz respeito a interpretaes e significados . Desse modo, ainda

    no seriam suficientes para dar conta das situaes focalizadas.

  • 48

    Por fim, saliento que a escassez de produes acadmicas tem

    oferecido dificuldades na busca de referncias e representou um

    desafio, felizmente no intransponvel ante a possibilidade, de "quebra

    de silncio", ouvindo o que as crianas poderiam dizer e oferecer. Alis,

    foi no percurso da pesquisa que compreendi o que elas representam para

    essas comunidades, seu passado, presente e futuro.19

    Procurei seguir as indicaes do professor Maurcio Silva (2005),

    segundo o qual o projeto de investigao se faz num cruzamento entre

    pesquisa e epistemologia, partindo do princpio sob o qual cincia se

    constri com teoria e mtodo. Ainda segundo esse autor, os modos de

    abordar a realidade (observao, entrevistas e outros) no so apenas

    2.1 ESCOLHAS TERICAS

    o se trata apenas de deixar as crianas

    falarem ou expressarem seus pontos de vista e,

    sim, de explorar a contribuio nica que as suas

    perspectivas providenciam.

    (NUNES; CARVALHO, 2007, p. 23)

    Assim como a epgrafe alerta, dar voz significa ultrapassar o

    direito de falar apenas, mas, como faz-lo? Como escutar as vozes, os

    movimentos, os olhares e os silncios das crianas? Como saber o que

    quer uma criana? (tomando emprestado e alterando a clebre frase de

    ais interrogaes os campos

    cientficos tm feito com relao aos grupos geracionais de pouca idade?

    19

    As crianas quilombolas so citadas no Estatuto da Criana e do Adolescente,

    ECA ,Lei n 8.069/90 atualizado com a Lei n 12.010 de 2009, no artigo 28 ,

    alnea 6, quando trata de Famlias Substituta. No h na Seo da Educao

    especificidades para esse grupo social. A LBD/9394/96, no disserta

    especificamente sobre a educao para comunidades quilombolas, no entanto, a

    Lei 10639 de 2003 que altera a LDB institui a incluso nos currculos da

    Educao B

    Curriculares Nacionais para a Educao infantil de 2009, faz-se referncia a

    propostas pedaggicas para as infncias do campo, dentre essas, as crianas

    quilombolas.

  • 49

    Quem so as crianas moradoras dos quilombos e em que se aproximam

    ou se distanciam das crianas moradoras de outros contextos?

    Estas e tantas outras questes fazem parte das pesquisas que tm

    como mote de anlise as crianas. O campo da educao e, em especial,

    a infncia, t pesquisas.

    Tm-se dado especial ateno s investigaes com e sobre as

    crianas20

    , que resulta na discusso em torno de novos aportes tericos

    e metodolgicos necessrios reconstruo de caminhos que levem em

    conta o que as crianas tm a dizer sobre o universo que as rodeia.

    Tais pesquisas, numa perspectiva interdisciplinar, utilizam

    estudos da Sociologia, Antropologia, Pedagogia, Histria, Psicologia,

    Geografia, entre outras, dando uma nova configurao ao que temos

    renovam o conceito de infncia, entendendo-a como uma categoria

    social do tipo geracional, e as crianas, como membros ativos da

    sociedade (SARMENTO, 2008).

    Mas, a despeito dos estudos com o intuito de compreender a

    constituio da infncia, suas competncias e formas de participao

    social, ainda h muitas dvidas e desafios a enfrentar, tais como: o qu

    e quem determina a capacidade das crianas? Em que momentos sua

    agncia se materializa e o que h de criativo nesses momentos? Como

    encontrar um equilbrio entre a necessria proteo das crianas e a

    defesa de sua participao na vida social? Que impactos ter a produo

    de conhecimento sobre e com as crianas (seus pontos de vista, suas

    vozes, sua participao, sua criao) no cotidiano das instituies de

    educao infantil e nas relaes e prticas educativas que as envolvem?

    De que maneira as particularidades encontradas nos contextos em que as

    crianas se inserem podero influenciar uma conjuntura mais ampla

    (como a composio de polticas pblicas que as favoream)?

    Portanto, o que tento levantar no presente trabalho so algumas

    discusses em torno de aspectos tericos e metodolgicos de diferentes

    cincias, necessrios, sob o meu ponto de vista, para nortear os estudos

    da infncia. No pretendo, porm, perder de vista o foco do campo

    educacional, que de onde eu parto para tentar avanar em definies

    que levem a ampliar os conhecimentos a respeito das crianas, ao

    considerar que essa compreenso pode ajudar a organizar ambientes

    20

    questes epistemolgicas e metodolgicas na investigao com crianas.

  • 50

    educativos e projetos pedaggicos mais condizentes com a

    emancipao e a incluso dos sujeitos - crianas e adultos.

    crianas, recorro a uma perspectiva terica especfica, alicerada

    sobretudo nos estudos da Sociologia da Infncia21

    e da Antropologia da

    Criana22

    ; porm, o que me situa, em termos ticos, mesmo uma

    perspectiva poltica, delineada pelo reconhecimento e pelo respeito s

    diferentes infncias, guiada pelo desejo de tornar visvel e pblico esse

    contexto social e cultural que, embora ainda pouco conhecido, um

    lugar de vida, de aprendizado, de dinamicidade, no qual as crianas

    imprimem suas marcas culturais, compem novas territorialidades com

    base em seu pertencimento espacial e constroem histrias singulares

    dentro de uma complexa pluralidade.

    Todo o movimento da pesquisa seguiu ento uma perspectiva

    terica, que tanto serviu de ponto de partida ( alm dos campos de

    estudos j citados, aqueles oriundos da rea da Educao, da

    Antropologia, da Geografia da Infncia e da Nova Histria), como foi

    sendo ampliada ou mesmo reconsiderada medida que as atividades

    empricas assim o foram exigindo. Entendo que a compreenso das

    relaes educativas estabelecidas no cotidiano da educao infantil e da

    comunidade necessita ser ativada teoricamente. Este exerccio no se

    esgota na descrio das situaes observadas nesses cotidianos, por mais

    adensadas que sejam as descries; portanto, a reviso terica

    indispensvel.

    No decorrer da pesquisa, ao tentar conduzir as reflexes sobre as

    prticas educativas para alm do campo terico da Pedagogia e buscar a

    contribuio de outras reas de conhecimento que ajudasse a

    compreender os diferentes dados de realidade, procurei entrecruzar

    experincias, interpretaes e anlises, antigas e atuais, para construir

    21

    -se a construir a infncia como objeto

    sociolgico, resgatando-a das perspectivas biologistas, que a reduzem a um

    estado intermdio de maturao e desenvolvimento humano, e psicologizantes,

    que tendem a interpretar as crianas como indivduos que se desenvolvem

    independentemente da construo social das suas condies de existncia e das

    (SARMENTO, 2005, p. 363). 22

    que permite entend-las por si mesmas; a de permitir escapar daquela imagem

    em negativo, pela qual falamos menos das crianas e mais de outras coisas,

    como a

    (COHN, 2005, p. 9).

  • 51

    novos caminhos a fim de compreender as expresses e as experincias

    das crianas.

    Encontrei, nessa busca, tanto no Portal da Capes, em peridicos,

    quanto em livros impressos, alguns estudos da Antropologia, tais como:

    (MUNANGA, 2008, 1996; GUSMO, 1997, 2003; COHN 2005;

    NUNES, 2002; 02;

    LEITE, 2000; FONSECA, 2006); da Sociologia da Infncia (PROUT,

    2003; SIROTA, 2001; SARMENTO, 2005, 2007, 2008; FERREIRA,

    2002, QVORTRUP, 2011, 2009; CORSARO, 2002, 2005); da Educao

    (KRAMER, 2002; CAVALLEIRO, 2001; ABRAMOWICZ, 2010); As

    discusses levantadas nessas reas auxiliaram a conduo das reflexes

    que fiz para compor o texto da tese.

    Na reviso, a busca se deu em torno destas palavras-chave:

    educao infantil, infncia, criana, crianas quilombola, comunidade

    quilombola, quilombo.

    As pesquisas encontradas em torno das palavras-chave crianas

    quilombolas e educao infantil, educao e infncia quilombola foram

    nfimas23

    .

    Foram encontrados, ainda, nessa busca, trabalhos em que as

    crianas so entendidas como agentes, ou seja, como atores sociais que

    no simplesmente reproduzem a cultura dos adultos, mas tambm a

    23

    O Banco de Teses da CAPES disponibiliza teses e dissertaes defendidas a

    partir de 1987. No entanto, devido a um perodo de manuteno no banco de

    dados, com o objetivo de melhorar o sistema de busca do banco de teses, a

    CAPES informou em seu portal que a nova verso do sistema disponibiliza

    apenas as teses e dissertaes defendidas entre os perodos de 2005 a 2012. Os

    outros perodos sero includos no decorrer das atualizaes. Deste modo, com

    o intuito de abranger publicaes referentes aos anos de 1990 a 2004, recorri a

    Biblioteca Digital Brasileira de Teses e Dissertaes (BDTD) do Instituto

    Brasileiro de Informao e Tecnologia (IBICT) que, assim como o sistema de

    busca da CAPES, tambm disponibiliza teses e dissertaes das instituies de

    ensino e pesquisa brasileiras. Entretanto, o BDTD/IBICT um sistema menos

    robusto que o da CAPES, cuja as atualizaes das publicaes no

    inteiramente assegurada. Os resultados da busca sistemtica no BDTD/IBICT

    foi com relao a mesma composio de palavras-chave utilizadas no Banco de

    Teses da CAPES, mas com o refinamento para os anos de 1990 a 2004,

    retornou com zero publicaes para esta pesquisa. Utilizei as seguintes palavras

    chaves para as buscas: Quilombola; Comunidade Quilombola; Infncia;

    Crianas; Criana Quilombola na Educao Infantil. A relao das publicaes

    com suas respectivas caractersticas encontram-se nos anexos da tese. Acesso:

    novembro de 2013.

  • 52

    reinterpretam (CORSARO, 2002, 2005), demonstrando uma maneira

    particular de ser, agir e reagir, que as diferenciam do modo adulto de

    ser.

    Ao que as crianas agem e reagem no contexto social, entendo-

    as como sujeitos de sua socializao na medida em que esto

    imbricadas em mltiplos processos de socializao, nos quais o adulto

    deixa de ser o nico agente e a socializao passa a ser de mo dupla.

    Nessa perspectiva, as crianas no vivenciam somente as

    situaes desencadeadas pelos adultos, pois tais situaes representam

    apenas parte das experincias vividas por elas. H que considerar

    tambm a multiplicidade de relaes, que travam com o meio, com a

    sociedade e com as culturas. Entre essas relaes gostaria de salientar

    aquelas que so travadas com as outras crianas. Com base nesse

    direcionamento terico compreende-se tambm que em todas as

    situaes que enfrentam, as crianas contrapem suas subjetividades

    ativas de sujeitos que conhecem a realidade social s de seus pares

    (SCHAFF,1978), subjetividades estas, especialmente marcadas pelo

    aspecto ldico e imaginativo que conferem novos tons e ritmos a tudo

    aquilo que lhes apresentado (PAULA, 2007).

    Portanto, do ponto de vista aqui assumido, as crianas, ao mesmo

    tempo em que so vistas em sua inteireza, em sua completude, em sua

    constroem e constantemente se modificam por meio das mltiplas

    DaMATTA, 1987, p.

    150).

    Destaco que, para a composio da base terica, a interseco das

    diferentes reas de conhecimento foi indispensvel. Esclareo, ainda,

    que esta pesquisa, de carter qualitativo, fundamenta-se em reas de

    conhecimento que seguem a orientao histrico-cultural. Porm,

    entendo que essa metodologia no anula dados quantitativos

    necessrios para auxiliar as reflexes e anlises que tenho feito.

    2.1.1 Antropologia da Criana e Sociologia da Infncia: auxlio na

    compreenso das diferentes infncias nos espaos

    institucionais de educao infantil

    A inteno desta seo estimular reflexes sobre as possveis

    contribuies de diferentes reas de conhecimento na prtica pedaggica

    comumente efetivada no interior de instituies de educao infantil. Na

    busca de novos olhares, tento mergulhar, ainda que no to

  • 53

    profundamente, no campo sociolgico e antropolgico com o

    compromisso de utilizar os subsdios que possam ser teis ao campo

    institucionalizado em que as crianas vivenciam experincias coletivas.

    Nessa perspectiva parece fundamental pesquisar se seria possvel

    oferecer alter

    professor e crianas nesses contextos, e em outros, particularmente os

    socioculturais, e, ainda, de que maneira o conhecimento e a anlise de

    outras realidades poderiam contribuir para modificar o cotidiano das

    crianas.

    Dada a complexidade que envolve as questes da educao

    institucionalizada insisto na necessidade de uma abordagem

    interdisciplinar, o que exige, portanto, produzir reflexes que

    extrapolem o campo terico da Pedagogia e do espao fsico das

    instituies. Por isso, continuo considerando necessrio articular um

    dilogo permanente com outros campos de estudos.

    Recorro a algumas das contribuies da Sociologia da Infncia e

    da Antropologia da Criana, a fim de alargar o olhar para alm do

    contexto educativo institucionalizado, cruzando experincias,

    interpretaes e anlises que auxiliem na busca de alternativas aos

    processos educativos das crianas pequenas.

    I Antropologia da Criana: algumas aproximaes entre a criana

    indgena e a quilombola

    Um dos grandes contributos da Antropologia da Criana para o

    campo da educao o reconhecimento que a rea traz sobre a condio

    ativa das crianas na constituio das relaes que estabelecem com o

    meio em que se inserem. As crianas so consideradas, segundo o

    pensamento da antroploga Clarice Cohn (2005), como seres ativos na

    definio de sua proporia condio.

    Os estudiosos da rea, nos ltimos anos, tm procurado alargar os

    horizontes dessa cincia, incluindo em suas pesquisas crianas das mais

    variadas procedncias e culturas. Interessa-me, aqui, especificamente, os

    estudos voltados s crianas indgenas, cujos povos, no Brasil,

    historicamente marginalizados e estigmatizados, demonstram alguma

    semelhana, em sua organizao sociocultural, com as comunidades

    quilombolas, objeto deste estudo, especialmente quando nos referimos

    s crianas.

    Dessa forma, tecerei algumas reflexes sobre a infncia nas

    sociedades indgenas, fundamentando-me em Clarice Cohn (2002, 2005)

    e ngela Nunes (2002). A primeira delas, estudando-as analisou o papel

  • 54

    e a importncia da infncia na vida social dessa sociedade. Sua tese

    aborda a participao das crianas no cotidiano e nos rituais da

    comunidade e finaliza mostrando o que necessrio para que tenham

    condies de aprender e crescer.

    Segundo a autora, as crianas Xikrin tm uma vivncia e

    experincia que lhes so prprias, e os Xikrin respeitam muito suas

    diferenas, no duvidando jamais de sua existncia. A criana tudo v e

    os Xikrin acham isso muito importante (2002).

    A sociedade xikrin certamente alerta, entre outros aspectos, para

    a necessidade de compreender que as relaes estabelecidas entre as

    crianas e entre estas e os adultos devem ser gestadas por meio da

    partilha de experincias, aes, sentidos e de significados sobre a

    realidade circundante. Dessa forma, admitir o princpio de que a criana

    no apenas incorpora passivamente as aes e ideias na relao

    intergeracional, tambm admitir que, num constante movimento de

    participao, ela elabora novas composies, nas quais imprime sua

    marca e inscreve uma histria em que tanto atriz como autora. Nessa

    ac

    Ainda segundo essa autora,

    [...] a partir da dcada de 1960, os antroplogos

    engajaram-se em um grande esforo de avaliar e

    rever seus conceitos. Novas formulaes para

    conceitos centrais de debate antropolgico

    surgem, permitindo que se estude a criana de

    maneiras inovadoras. Dentre eles, o conceito de

    cultura, sociedade e de agncia, ou de ao social

    (COHN, 2005, p. 18-19).

    Para a autora, a cultura considerada um sistema simblico

    acionado pelos atores sociais; logo, aquilo que os conforma uma

    lgica particular que d sentido s suas experincias. Quanto ao

    conceito de sociedade, este se abre, no se trata mais de pensar uma

    totalidade a ser reproduzida, mas um conjunto estruturado em constante

    produo de relaes e interaes. Essa reviso faz com que pensemos

    tambm o papel do indivduo no interior da sociedade, que deixa de ter

    uma atuao passiva espera de papis a serem executados, para passar

    a atuar na sociedade, recriando-a.

  • 55

    A Antropologia da Criana parece ainda trabalhar com

    pressupostos que levam compreenso da autonomia do mundo infantil

    (ainda que de forma relativa), de um universo infantil que no mero

    resultado ou reflexo do mundo adulto, mas qualitativamente diferente.

    Recorro a outra antroploga para falar da condio de autonomia

    das infncias indgenas: referindo-se especificamente s crianas da

    existe liberdade entre as crianas. Uma liberdade que elas experimentam

    diferentes pessoas, s vrias atividades domsticas, educacionais e

    p.71). Essa participao parece levar as crianas a transcender o

    ; conforme expresso de

    DaMatta (1987).

    A liberdade dos contextos em que se insere a populao indgena

    e sobre a qual a Antropologia faz referncia existe tambm nos

    contextos quilombolas. Porm, aqui fao uma ressalva contundente,

    seguindo o alerta que o prprio campo da Antropologia faz, quando

    refere-se ao cuidado com a construo de concepes equivocadas sobre

    os diferentes universos da pesquisa, principalmente no que se refere

    generalizaes, isolamentos ou comparaes entre as diferentes

    comunidades. Evidencio esse alerta entre as duas comunidades por mim

    investigadas, j que so contextos que apresentam diferenas em sua

    organizao, especialmente no que tange a liberdade das crianas.

    Durante o perodo em que permaneci nos dois quilombos campos

    de pesquisa era difcil ver as crianas no interior das casas, em especial

    no quilombo Morro do Fortunato24

    . Elas estavam constantemente

    brincando na rua ou participando, de alguma forma, daquilo que os

    adultos estavam realizando, contudo no era uma participao imposta

    pelos adultos e sim construda pelas crianas, em especial entre pares.

    Assim, elas podiam estar em todos os lugares da comunidade junto com

    os adultos, mas no em relao direta. Observavam, caminhavam junto,

    conversavam, ouviam os adultos, mas, rapidamente, poderiam estar em

    outros lugares se assim desejassem.

    Portanto, com base em minhas observaes, posso afirmar que as

    crianas nos quilombos tm liberdade e autonomia e, mesmo com uma

    autonomia relativa, no esto encapsuladas o tempo todo entre paredes

    24

    O quilombo Morro do Fortunato localizado em uma rea afastada e com

    menor fluxo virio em seu entorno.

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    de tijolos, como muitas vezes ocorre n