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UNIVERSIDADE SÃO JUDAS TADEU (USJT) PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO STRICTO-SENSU MESTRADO EM EDUCAÇÃO FÍSICA EDUCAÇÃO FÍSICA ESCOLAR NO PERÍODO DA DITADURA MILITAR EM JUNDIAÍ- SP (1964-1985) AUTOR: WESLEY BATISTA ARAÚJO ORIENTADORA: PROFa. DRa. SHEILA AP. PEREIRA DOS SANTOS SILVA SÃO PAULO 2011 1

UNIVERSIDADE SO JUDAS TADEU (USJT) · Entre as muitas horas a fio decorando tabuadas e escrevendo em um caderno de caligrafia, exercício justificado inúmeras vezes pela falácia

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UNIVERSIDADE SÃO JUDAS TADEU (USJT)

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO STRICTO-SENSU

MESTRADO EM EDUCAÇÃO FÍSICA

EDUCAÇÃO FÍSICA ESCOLAR NO PERÍODO DA DITADURA MILITAR EM

JUNDIAÍ- SP (1964-1985)

AUTOR: WESLEY BATISTA ARAÚJO

ORIENTADORA: PROFa. DRa. SHEILA AP. PEREIRA DOS SANTOS SILVA

SÃO PAULO

2011

1

WESLEY BATISTA ARAÚJO

EDUCAÇÃO FÍSICA ESCOLAR NO PERÍODO DA DITADURA MILITAR EM

JUNDIAÍ- SP (1964-1985)

Dissertação apresentada à banca examinadora

como exigência parcial para obtenção do título de

Mestre em Educação Física pela Universidade São

Judas Tadeu, sob orientação da Profa. Dra. Sheila

Aparecida Pereira dos Santos Silva.

SÃO PAULO

2011

2

Araújo, Wesley Batista

Educação física escolar no período da ditadura militar em Jundiaí-SP / Wesley Batista Araújo. - São Paulo, 2011.

135 f. ; 30 cm

Orientador: Sheila Aparecida Pereira dos Santos Silva Dissertação (mestrado) – Universidade São Judas Tadeu, São Paulo, 2011.

1. Educação fisica para crianças. 2. Professores. 3. Ditadura e ditadores. I.

Silva, Sheila Aparecida Pereira dos Santos. II. Universidade São Judas Tadeu, Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu em Educação Física. III. Título CDD – 613.7042

Ficha catalográfica: Elizangela L. de Almeida Ribeiro - CRB 8/6878

3

AGRADECIMENTOS

Agradeço aos professores que compartilharam comigo suas experiências

pedagógicas e contribuíram muito para a concepção deste trabalho.

Aos professores da Universidade São Judas que contribuíram para que os meus

horizontes fossem ampliados.

Ao professor Edivaldo que começou comigo esse estudo.

Aos professores e professoras por mim entrevistados, que além do excelente

acolhimento, compartilharam de forma intensa suas experiências do cotidiano

pedagógico.

Aos professores Hugo Lovisolo e Sheila Ap. Pereira dos Santos Silva pelas

imensas contribuições no exame de qualificação.

A minha professora-orientadora Sheila que soube como poucos administrar

minhas angústias no final dessa caminhada e contribuir imensamente na construção

deste trabalho.

Aos meus colegas que estiveram comigo no curso. Sem dúvida as nuances deste

trabalho não seriam possíveis sem as discussões, tensões e conflitos surgidos durante os

estudos.

À Roberta, amiga que fiz no mestrado e companheira de trabalho pedagógico no

serviço público.

À Simone, muito mais que amiga, uma incansável guerreira, que com sua

incandescente sapiência soube partilhar conosco um pouco de suas experiências.

Ao Hugo, meu grande parceiro intelectual. Graças a ele nossas refeições foram

recheadas de muitas questões filosóficas.

À minha querida amiga Carina, parceira incansável de luta por legitimidade da

Educação Física escolar, pelo prazer das nossas discussões.

Ao grande pai que tenho, que mesmo não sabendo ao certo do que se tratavam as

minhas escolhas, apoiou com afinco aquilo que me propus a fazer. Sem dúvida este

trabalho só foi possível graças a ele.

Agradeço a minha amada mãe, sempre atenciosa e preocupada com tudo aquilo

que me afligia, soube com sábias palavras, atitudes de carinho e respeito fazer dessa

dura caminhada algo mais ameno. Tenho orgulho de ser seu filho minha mãe!

Agradeço a minha eterna companheira Mariana, que soube como ninguém ouvir

e confortar-me, mesmo quando discordava das minhas atitudes e pontos de vista ela

4

soube com muita sutileza me indicar os caminhos a serem percorridos. Sou grato por tê-

la conhecido!

E por fim agradeço a minha princesinha Nicole, que em meados de 2010 veio a

abrilhantar a família que tanto amo, e tudo devo.

5

“DEDICO ESSES ESCRITOS AOS

MILHARES DE PROFESSORES DAS

ESCOLAS PÚBLICAS DESTE PAÍS, QUE

LUTAM DENTRO DAQUILO QUE É

POSSÍVEL, PARA MUDAR O CENÁRIO DA

EDUCAÇÃO”

6

RESUMO

Diante das nossas experiências vividas e duma história contada pela literatura

especializada, que concebe a Educação Física (EF) em diferentes momentos históricos

como preponderante nos planos do Estado e da classe dominante na concepção de

sociedade vislumbrada, nos propusemos a investigar as nuances dessa história que

comumente ignora os professores de EF como agente do processo de construção desta

área do conhecimento. A forma determinista como tal literatura aborda o período em

questão, como se o modo de produção fosse capaz de determinar todas as ações

daqueles indivíduos, enquadrando-os num sistema causa-efeito em que o sujeito pouco

pode controlar os rumos de seus atos, nos levou a erigir uma hipótese alicerçada na

vivencia pedagógica dos professores, ou seja, a EF, como área profissional,

aproximava-se, e ao mesmo tempo, afastava-se da visão estatal. Suas posições eram

determinadas não por forças exclusivas de um governo autoritário, mas também pela

perspectiva individual dos professores pela mudança de cenário da Educação Física

escolar (EFE). Diante disso, para alcançarmos o objetivo do estudo nos valemos da

metodologia proposta pelo historiador Paul Thompson, a história oral. Além disso,

também nos propusemos a analisar as leis e decretos promulgados na época, além do

currículo formal da única Faculdade de EF criada no período na cidade de Jundiaí, haja

vista o contexto das nossas investigações e o diálogo continuo que procuramos manter

com a literatura especializada. Sendo assim, apoiamos a análise dos depoimentos no

conceito de experiência de E.P. Thompson, e pudemos perceber o quanto a história é

mais nuançada, e apesar de, o esporte ter sido conteúdo hegemônico dos professores por

nós entrevistados, não podemos confirmar que isso se deu por uma imposição cultural

que tinha a EFE o cerne das aspirações estatais. Isso porque como evidenciamos, os

professores procuraram no fenômeno esportivo uma forma de legitimidade social. Além

disso, as singularidades no trato pedagógico dado pelos professores nos mostraram

como cada sujeito, a seu modo, lida com aquilo que lhe é determinado e às vezes age

sobre a determinação, dentro de certos limites. Por fim, podemos afirmar que a prática

pedagógica desses professores não foi determinada por um governo mancomunado com

a classe dominante a fim de incutir os valores que os interessavam. Apesar de

admitirmos as ações ideológicas no período, pensamos que o professor diante de seus

condicionantes históricos agia perante aquilo que lhe foi proposto e foi ativo no

processo de consolidação da EFE.

Palavras chave: educação física escolar; professores; ditadura militar.

7

ABSTRACT

Given our past experiences and a story told by the specialized literature, which sees the

Physical Education (PE) at different times as prevalent in the plans of state and ruling

class of society envisioned in the design, we decided to investigate the nuances of the

story that often ignores teachers PE as agents of the construction of this knowledge area.

The deterministic manner such as literature deals with the period in question, as if the

mode of production were able to determine all the actions of those individuals, fitting

them into a system of cause and effect in which the little guy can control the direction of

their acts, in led to erect a hypothesis based on teachers' educational experiences, or PE,

as a professional area, approached, and at the same time, distanced himself from the

view state. Their positions were not determined by unique strengths of an authoritarian

government, but also from the viewpoint of individual teachers for the changing

landscape of School Physical education (SPE). Before that, to achieve the goal of the

study we use the methodology proposed by the historian Paul Thompson, oral history.

In addition, we also proposed to examine the laws and decrees issued in the period

beyond the formal curriculum of the School of PE only created in the period in Jundiaí,

given the context of our investigations and we seek to maintain continuous dialogue

with the literature. Therefore, we support the analysis of statements on the concept of

experience of EP Thompson, and we could see how the story is more nuanced, and

although the sport has been hegemonic content of teachers we interviewed, we can not

confirm that this occurred by a cultural imposition that was in the heart of the

aspirations SPE state. That's because as we noted, the professors looked at the

phenomenon of sports a way of seeking social legitimacy. Moreover, the peculiarities in

the pedagogic treatment given by the teachers showed us how each subject in its own

way, deals with what is given him and sometimes acts on the determination, within

certain limits. Finally, we can say that the pedagogical practice of teachers has not been

determined by a government allied with the ruling class in order to instill the values that

interest them. Although we admit the ideological actions in the period, I think the

teacher in front of their historical conditions acted on what it was proposed and was

active in the process of consolidating the SPE.

Keywords: physical education; teachers; military dictatorship.

8

APÊNDICES

APÊNDICE 1- Termo de Consentimento Livre e Esclarecido.....................................146

APÊNDICE 2- Roteiro de Entrevistas...........................................................................148

9

ANEXO

ANEXO I – Transcrição das Entrevistas realizadas......................................................150

10

SUMÁRIO

RESUMO........................................................................................................................07

ABSTRACT....................................................................................................................08

LISTA DE ANEXO.........................................................................................................09

LISTA DE APÊNDICES.................................................................................................10

1-INTRODUÇÃO...........................................................................................................13

2- REVISÃO E ANÁLISE DA LITERATURA.............................................................20

2.1- Sobre a Ditadura militar no Brasil................................................................20

2.2- A Educação no período da Ditadura militar no Brasil: a história que nos é

contada.................................................................................................................23

2.2.1- A Educação no período militar......................................................24

2.2.2- As reformas educacionais no período da Ditadura........................29

2.3- A história da EF no Brasil: o que conta a literatura especializada dos anos

80 e 90..................................................................................................................41

2.4- Crítica a literatura especializada...................................................................54

2.4.1 Para uma visão distante da linearidade...........................................54

3- MÉTODO DA PESQUISA.........................................................................................73

3.1- A natureza da pesquisa.................................................................................73

3.2- As técnicas e instrumentos de pesquisa........................................................74

3.2.1- As análises documentais................................................................74

3.2.2- As análises das entrevistas.............................................................75

3.3 – A seleção de inquérito e dos sujeitos pesquisados......................................78

4. RESULTADOS E DISCUSSÃO.................................................................................83

4.1- Formação acadêmica em EF na cidade de Jundiaí.......................................83

4.2- Os professores de EF como agentes do processo de educar por meio do

esporte..................................................................................................................91

4.2.1- Primeiro fator de análise: O esporte e a formação profissional em

EF.............................................................................................................93

4.2.2- Segundo fator de análise: A prática pedagógica dos professores de

EF na escola.............................................................................................95

11

4.2.3- Terceiro fator de análise: Autonomia em relação ao

governo...................................................................................................114

4.3- A compreensão dos professores sobre a EF do “passado” e do

“presente”......................................................................................................................126

5. CONSIDERAÇÕES FINAIS....................................................................................134

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS..........................................................................138

12

1. INTRODUÇÃO

Entre as muitas horas a fio decorando tabuadas e escrevendo em um caderno de

caligrafia, exercício justificado inúmeras vezes pela falácia de que, fazendo aquilo,

seríamos alguém na vida, em alguns momentos subvertíamos a ordem instituída,

dávamos um jeitinho e corríamos para o campinho, para a rua ou mesmo para qualquer

espaço que pudéssemos desfrutar da nossa prática corporal preferida: o futebol.

Mesmo com os incansáveis cerceamentos feitos era impossível abnegar daqueles

momentos, discussões, brigas, diversão, enfim, aquele era o nosso tempo, o nosso

espaço. Ali a hora “voava”, mal dava tempo de extravasar todo o sentimento de

liberdade, e lá vinha ele, o baixar do sol, que muitas vezes impossibilitava o andamento

do jogo, ou ela, minha mãe, chamando para o jantar ou para verificar a lição.

Com o tempo, a cidade onde residíamos – Jundiaí- SP, foi crescendo, o

campinho de terra batida desapareceu, o asfalto chegou e com isso o movimento de

carros aumentou assustadoramente, entretanto continuávamos lá, esfolando os pés

descalços naquele asfalto, que em dias muito quentes fervia, parando a bola para os

carros passarem e às vezes, correndo da vizinha quando acertávamos a bola no seu

precioso portão de ferro. Bem, lá continuávamos nós! Na verdade tudo isso não

importava, fazíamos o que gostávamos, evidentemente dentro de certos limites, se

expressava ali o agir humano.

Foi trilhando por esses caminhos, entre uma tabuada e outra, ou uma

escapadinha para uma pelada com os amigos, que com o passar dos anos as

responsabilidades foram surgindo, e começamos a construir nossa trajetória

profissional. Enfim, havia chegado o momento de darmos uma resposta social

recorrente à pergunta que permeou nossa infância: O que gostaríamos de ser quando

crescêssemos? Ou: O que seríamos quando fôssemos adultos?

Como dissemos, o futebol sempre esteve presente na nossa vida, assim sendo

boa parte dos nossos amigos ambicionavam ser jogadores profissionais, e nós não

pensávamos diferente, também na infância e parte da nossa adolescência almejamos o

sucesso no e pelo futebol. Entretanto, com o passar dos anos, entre sucessos e fracassos,

notamos que isso não seria possível, dessa forma o que fazer então?

13

Bem, o que mais se aproximava daquilo que realmente gostávamos de fazer era

o curso de Educação Física (EF) por pensarmos que estava ligado diretamente à prática

esportiva. Sendo assim, optamos por ingressar neste curso como uma forma de atender

nossas expectativas.

Como residíamos na cidade de Jundiaí e na época a única faculdade na cidade

era a Escola Superior de Educação Física (ESEFJ), prestamos o vestibular nesta

instituição, fomos aprovados e ingressamos no curso em 2002, sempre tendo como mote

de nossos anseios o esporte.

No início de nossas atividades acadêmicas, como boa parte dos nossos colegas

de turma, mesmo no curso de Graduação em EF, queríamos jogar... “fazer a prática”...

talvez apenas nos divertirmos. Mas como todo ato de aprender exige algum esforço,

logo vimos que o curso era muito mais que isso e muitos daqueles que iniciaram

conosco acabaram “ficando pelo caminho”. Nós, entretanto, nos mantivemos firmes até

o final do curso e, apesar de termos ingressado com a intenção de atuar no meio

esportivo, mais especificamente com o futebol, as oportunidades e as questões

econômicas nos direcionaram para outro caminho: a Educação Física Escolar (EFE).

Se no início não passara pela nossa cabeça a opção de trabalharmos como

professores de EFE, no último ano de curso, surgiu a oportunidade de prestarmos um

concurso público para a rede pública do Estado de São Paulo. Mesmo com as nossas

profundas limitações de conhecimento sobre a bibliografia exigida no concurso,

conseguimos aprovação.

Deste modo, ingressamos no serviço público numa cidade afastada de onde

residíamos, abarrotada de problemas sociais, e, com o passar do tempo, fez com que

percebêssemos que tais problemas colaboravam para agravar a evasão de professores

que ali ingressavam o que culminava na constante falta de professores com uma

consequente defasagem educacional sofrida pelos alunos da região.

Mesmo com inúmeros problemas (indubitavelmente, para nós, a distância era o

maior deles), continuamos nessa unidade escolar por dois anos. Na época em que

cursamos a graduação, como não tínhamos como objetivo atuar como professores de EF

escolar, não nos ativemos tanto às disciplinas de cunho pedagógico, e agora, ao

ingressar como professores de escola, percebemos como isso nos levou, nessa etapa

profissional, a desenvolver um trabalho no qual faltava coerência.

Tendo consciência das nossas diversas limitações atreladas às dificuldades do

espaço escolar, optamos por nos aprofundar um pouco mais na literatura referente às

14

questões educacionais na tentativa de resolver ou, ao menos, esclarecer alguns

problemas que nos afligiam.

Os dias foram passando, alguns problemas foram se resolvendo, outros

apareceram, mais leituras começaram a permear e a nos subsidiar em nossas tarefas

pedagógicas, enfim, começávamos a vislumbrar um caminho coerente com a visão de

mundo que tínhamos na época.

Apesar de termos clareza a respeito de como poderíamos contribuir para a tão

propalada cidadania do aluno que, quiçá, pudesse erigir o que acreditávamos ser uma

verdadeira justiça social, no início de 2008, a Secretaria de Educação do Estado de São

Paulo implantou para toda rede estadual uma proposta pedagógica unificada. Foi a partir

deste episódio que começou a se constituir o cerne do nosso problema de pesquisa.

No início nos causava espanto, porque não dizer inconformismo, observar

professores acatarem a tal proposta sem aparentes objeções. Entretanto, com o passar

dos meses, percebemos que esse processo não acontecia de forma tão serena.

Notávamos que havia, dentro de certos limites, contraposições acerca da proposta que

eram refletidas na prática pedagógica cotidiana do professor.

Tal proposta acendeu a inquietação de especularmos até que ponto o indivíduo,

no caso o professor de EF, pode ser formatado e enquadrado numa proposta

educacional que, em princípio, não teve sua participação durante o processo de

elaboração.

Essa proposta teve como mentores alguns dos principais intelectuais ligados à

EFE do país e foi organizada em forma de “cadernos do professor”. Dessa forma, o

professor recebia um caderno (para cada série com a qual atuava) por bimestre com os

conteúdos a desenvolver, as habilidades e competências a serem adquiridas pelos

alunos, os objetivos gerais e específicos a alcançar e a forma de avaliar e reavaliar as

situações de aprendizagens.

De acordo com Maria Inês Fini (SEE, 2008), coordenadora geral da Proposta

Curricular para o Ensino Fundamental – Ciclo II e Ensino Médio, a proposta se

justificava pela exigência da sociedade acerca das competências e habilidades

específicas que devem ser desenvolvidas pela escola. Segundo a coordenadora, essa

Proposta Curricular tem como princípios centrais: a) a escola que aprende, b) o

currículo como espaço de cultura, c) as competências como eixo de aprendizagem, d) a

prioridade da competência de leitura e escrita, e) a articulação das competências para

aprender, e f) a contextualização no mundo do trabalho.

15

Apesar de a proposta abrir espaço para adaptações de acordo com a realidade de

cada escola, os conteúdos eram ofertados a priori baseados nas competências

formuladas pelo referencial teórico do ENEM (Exame Nacional do Ensino Médio),

entendidas como desdobramentos da competência leitora e escritora.

Sendo as notas do ENEM um pré-requisito para solicitação de bolsa no PROUNI

(Programa Universidade para Todos) de até 100% para alunos de universidades

privadas, podemos considerar este exame de seleção uma espécie de “porta de entrada”

para o Ensino Superior, o que nos leva a crer que os demais níveis de ensino que o

antecedem convirjam no desenvolvimento das mesmas competências exigidas. Pode-se

interpretar que a unificação de objetivos, conteúdos e formas de avaliar colaborem para

enquadrar o professor numa lógica funcionalista de educação. Por esse prisma, o

professor se vê imerso num contexto em que a cultura local, se considerada não

importante para a formação de competências para o mercado de trabalho, não adentre os

espaços escolares, contribuindo para que as vozes dos grupos minoritários sejam

silenciadas, hierarquizando os diferentes saberes.

Esse enquadramento ao qual o professor é submetido pode ocorrer, ainda, por

meio do mecanismo dos ajustes salariais por meio de bônus que dependem do

desempenho dos alunos nos exames promovidos pelo governo para verificação da

assimilação dos conteúdos.

Esses sutis cerceamentos que denominamos de formatação e enquadramento

fizeram com que nos debruçássemos sobre a literatura para compreender um pouco mais

como tem ocorrido a atuação, conformação, resistência, enfim, como os professores de

EF efetivaram suas práticas pedagógicas em períodos históricos nos quais o

autoritarismo foi corrente e explícito.

Diante disso, se por um lado encontramos uma vasta literatura nos contando

como foi concebida a EFE em diferentes períodos históricos, literatura esta composta,

hegemonicamente de leis, decretos e das vozes oficiais, notamos a ínfima quantidade de

obras que desse voz e mostrasse a ação daqueles que estavam na linha de frente do

processo: os professores. Das poucas obras encontradas e que tiveram como foco de

pesquisa a prática pedagógica dos professores, faziam uma releitura das atividades

docentes a partir da própria experiência dos sujeitos. Bem, é a partir do confronto dessas

diferentes leituras sobre a área, coadunados com aquilo que compreendíamos no nosso

cotidiano pedagógico, que erigimos os seguintes questionamentos:

16

Estaríamos vivendo um período de autoritarismo, apesar dos discursos atuais

serem democráticos?

Teria o professor de Educação Física, ao longo do tempo, aprendido e

introjetado posturas imobilistas e acríticas quando se trata de currículo escolar e de

práticas pedagógicas?

Será que o professor de Educação Física com o qual nos deparamos, hoje, nas

escolas, se diferenciam, de alguma forma, daqueles que viveram os períodos mais

autoritários da sociedade brasileira pós-república?

Esses questionamentos aguçaram nossa curiosidade no sentido de conhecer

melhor o período da ditadura militar no Brasil, buscando identificar os mecanismos de

acomodação e de resistência dos professores de Educação Física escolar nesse período.

Além disso, o fato de nos deparamos com uma abundante literatura que aborda o

período da ditadura militar no Brasil (1964-1985) colaborou para acender em nós o

anseio de nos debruçarmos e compreendermos um pouco mais sobre a EFE naquele

momento.

Sendo assim, o problema de pesquisa identificado por nós consistiu em

questionar como os professores de EFE, rodeados por um forte regime opressor,

efetivaram suas práticas pedagógicas durante o período da Ditadura militar no Brasil?

O caminho para identificação desse problema de pesquisa deve-se ao fato de

almejarmos compreender como os indivíduos agem e reagem diante das dificuldades do

cotidiano e das influências estruturais. No caso dos professores, como eles reagiram à

norma legal, mais especificamente a reforma educacional de 1971 (Lei 5.692 e Decreto

69.450), as especificidades que pairavam sobre a área, e os possíveis cerceamentos tão

propalados durante a ditadura no Brasil.

Para tanto, partimos da hipótese que a EF, como área profissional, composta por

diversos atores sociais, aproximava-se, e ao mesmo tempo, afastava-se da visão estatal.

Suas posições eram determinadas não por forças exclusivas de um governo autoritário,

mas também pela perspectiva individual dos professores pela mudança de cenário da

EFE.

Diante do objeto de estudo, do problema, e da hipótese levantada, nos valemos

da metodologia proposta pelo historiador inglês Paul Thompson, a história oral. Essa

opção é pautada na compreensão de que os documentos oficiais e a literatura

17

especializada1 que interpretaram determinado período relatam apenas um lado da

história, ou ainda “partes” de uma história, com isso, pretendemos contar como

efetivamente aconteciam as aulas de EF na cidade de Jundiaí, no que se refere aos

sujeitos entrevistados.

A escolha da cidade de Jundiaí, não é fortuita, deve-se ao fato de termos vivido

nossa infância e adolescência nas escolas públicas da cidade, conhecendo alguns

professores que, mesmo adotando uma concepção tecnicista e excludente de educação,

nos encantaram com sua paixão e entusiasmo pelo que faziam. Sem dúvida, esses

sujeitos contribuíram para que mais à frente escolhêssemos construir uma vida

profissional ligada a EFE.

Sendo assim, optamos por realizar nossa formação acadêmica na Escola

Superior de Educação Física de Jundiaí – ESEFJ- inaugurada em regime de autarquia

municipal no período compreendido por este estudo, fator que também contribuiu para

que optássemos pela cidade de Jundiaí, em nossas investigações.

Visto isso, na primeira parte deste trabalho o leitor encontrará uma revisão de

literatura sobre o campo educacional da época além de um diálogo com a literatura

especializada na história da EF no período militar (1964-1985).

Isso se fez necessário à medida que buscamos expor como a história da EFE

contada pela literatura especializada dos anos de 1980 e início dos anos 90 é erigida de

forma determinista, como se o modo de produção fosse capaz de determinar todas as

ações dos sujeitos pertencentes aquele processo, enquadrando-os num sistema de causa

e efeito em que a pessoa pouco pode controlar os rumos de seus atos.

A esse respeito Thompson (1981) afirma:

O absurdo de Althusser está no modo idealista de suas construções teóricas.

Seu pensamento é filho do determinismo econômico fascinado pelo idealismo

teórico. Postula (mas não procura “provar ou “garantir”) a existência da

realidade material: aceitaremos esse ponto. Postula também a existência de

um mundo (“externo”) material da realidade social, cuja organização

determinada é sempre, em última instância, “econômica” (p.21).

1 Termo cunhado em 2001 por Marcus Aurélio Taborda de Oliveira em sua obra A Revista Brasileira de Educação Física e

Desportos (1968-1984) e a experiência cotidiana de professores da Rede municipal de ensino de Curitiba: entre a adesão e a

resistência. Com isso entendemos por literatura especializada aqueles autores de forte acento crítico (CASTELLANI FILHO, 1988;

GHIRALDELI, 1988; BETTI, 1991; SOARES et al., 1992 ) que se propuseram a estudar profundamente a legislação do período

militar que contemplou a Educação Física. Portanto, adotaremos esse termo a fim de facilitarmos o decorrer da leitura.

18

Com a contextualização do período educacional, na segunda parte deste estudo

nos propusemos a tecer algumas críticas sobre a forma linear e determinista como

costuma ser contada a história da EF, levantando proposições sobre como o processo

histórico pode ser erigido por outras vertentes, enveredando nossas reflexões trilhando

caminhos diferentes daqueles que nos são contados.

Além disso, o leitor também encontrará considerações a respeito do currículo da

única Escola Superior de Educação Física de Jundiaí em funcionamento na época. Isso

se justifica à medida que todos os sujeitos de nossa pesquisa tiveram vínculo direto com

a instituição, e, procuramos desvendar até que ponto os professores seguiram o que era

preconizado pela Faculdade.

Por fim, buscando fazer uma releitura das ações pedagógicas dos professores,

nos propusemos a contar a história pelas próprias vozes daqueles sujeitos que

vivenciaram o cotidiano pedagógico, entretecendo suas falas com os discursos correntes

adotados pela literatura exposta na primeira parte deste estudo junto às críticas

realizadas.

Para fundamentar os nossos posicionamentos nos valemos dos escritos do

historiador inglês Edward Palmer Thompson, especificamente o conceito de experiência

desenvolvido pelo autor em suas investigações sobre A formação da classe operária

inglesa e esmiuçado mais à frente na obra A miséria da teoria ou um planetário de

erros, no que tange análise dos depoimentos coletados.

Acreditamos que com este arcabouço teórico, erigimos um trabalho sobre a

história da EFE construída por sujeitos que sentem, sofrem, experimentam e agem sobre

determinadas situações. Portanto não se trata aqui de contar uma história da área “atrás

de gabinetes” e sim voltar ao passado por meio de nossos depoentes e compreender

como o processo histórico é mais nuançado do que um determinismo econômico, pois

no cerne deste, encontram-se os professores de EF.

Em suma, o objetivo desta pesquisa foi direcionado a questionar como os

professores de EFE efetivaram suas práticas pedagógicas durante o período da Ditadura

militar no Brasil no sentido de identificar se e como a ditadura militar interferiu nelas.

19

2- REVISÃO E ANÁLISE DA LITERATURA

2.1. Sobre a Ditadura militar no Brasil

A ditadura militar no Brasil durou vinte e um anos e ficou marcada na história

recente do Brasil como um período de medo, repressão e ausência do estado de direito.

` Com uma democracia que buscava consolidação pós Estado Novo (1946) e um

governo fragilizado por uma crise econômica que assombrava o país, em 31 de Março

de 1964, o Brasil adentrava, por força do exército nacional, em um regime ditatorial que

permaneceria até 1985 com a eleição do primeiro Presidente civil pós ditadura – 64.

O regime militar veio por meio de um golpe de estado 2 sofrido contra o então

Presidente João Goulart (Jango), que assumiu a Presidência em 1961 após renúncia

repentina de Janio Quadros.

Segundo Toledo (2004), por conta da instabilidade econômica que permeava o

país, o golpe era permanentemente reivindicado por diversos setores da sociedade civil

que apoiaram os militares na sua tomada de poder.

Ghiraldelli (2008) acrescenta que, no entanto, a partir de 1968, o grupo militar

mais conservador do regime cassou os direitos políticos de várias dessas lideranças que

apoiaram o golpe, concentrou-se o poder na Escola Superior de Guerra, extirpando as

ideias (ao menos explicitamente) daqueles que se opunham ao governo.

Uma das causas muito propaladas sobre o golpe vem da análise marxista de

Jacob Gorender (apud Fico, 2004) que afirma que a crise econômica de 1962 e as

propostas de reformulação estrutural do governo vigente poderiam ameaçar a classe

dominante e o imperialismo. O período 1960-1964 marca o ponto mais alto das lutas dos trabalhadores

brasileiros neste século [XX]. O auge da luta de classes, em que se pôs em

xeque a estabilidade institucional da ordem burguesa sob os aspectos do

direito de propriedade e da força coercitiva do Estado. Nos primeiros meses

de 1964, esboçou-se uma situação pré-revolucionária e o golpe direitista se

definiu, por isso mesmo, pelo caráter contra-revolucionário preventivo. A

classe dominante e o imperialismo tinham sobradas razões para agir antes

que o caldo entornasse. (p.66-7 apud Fico, 2004, p.49.)

2 É comum encontrarmos na literatura termos como: revolução, intervenção do exército ou golpe de Estado. No entanto, optamos

por colocar como golpe de estado a intervenção do exército na política do país.

20

Além disso, o fantasma da revolução Cubana na América Latina também fez

com que diversos setores da sociedade brasileira, coadunados com o governo norte-

americano, apressassem a “restauração da ordem”

... a revolução socialista de Cuba afetou o poder e o prestígio dos Estados

Unidos no continente e concorreu decisivamente para o desenvolvimento de

uma ofensiva anticomunista na América Latina, que fez ressurgir os valores

da guerra fria. Na verdade, a experiência cubana fascinou os oprimidos de

vários países e os Estados Unidos empenharam-se em evitar o surgimento de

algo semelhante em outro ponto das Américas. Em conseqüência foi criado

um programa de “cooperação” econômica denominado “Aliança para o

Progresso”, os exércitos continentais foram conclamados a travarem uma

prolongada luta anti-subversiva e, em alguns casos, ocorreu uma

intervenção inequívoca dos Estados Unidos em favor das forças

antidemocráticas e golpistas como se verificou no Brasil, em São Domingos

e no Chile (GERMANO,1994, p. 50-51).

Já Fico (2004) avalia que as causas do golpe foram decorrentes de vários fatores

e não apenas por uma causa econômica.

As transformações estruturais do capitalismo brasileiro, a fragilidade

institucional do país, as incertezas que marcaram o governo de João

Goulart, a propaganda política do Ipes, a índole golpista dos conspiradores,

especialmente dos militares – todas são causas, macroestruturais ou

micrológicas, que devem ser levadas em conta, não havendo nenhuma

fragilidade teórica em considerarmos como razões do golpe tanto os

condicionantes estruturais quanto os processos conjunturais ou os episódios

imediatos. Que uma tal conjunção de fatores adversos – esperamos todos –

jamais se repita (FICO, 2004, p.56).

Diante dessa configuração, em 31 de Março de 1964 o golpe contra a incipiente

democracia no Brasil é consolidado, fazendo com que o governo militar “rompesse”

com o nacionalismo populista (ideologia política que buscava a consolidação da

identidade do povo brasileiro e sua independência) que permeava o país, e optasse pelo

aproveitamento do capital estrangeiro.

Hilsdorf (2003) afirma que

21

Começava o período do governo militar, com seu regime centralizado e

coercitivo e sua política de desenvolvimento associado, isto é, a etapa da

economia embasada na indústria e dependente do capital estrangeiro. Essa

orientação pode ser sintetizada na seguinte frase de um governante da

época: “O povo vai mal, mas a economia brasileira vai bem”, indicando que

em decorrência da política dos militares e empresários em favor do

monopólio econômico, ocorreria o desenvolvimento do país (o chamado

“milagre econômico”), mas com base no crescimento das taxas de

concentração de renda e na contenção dos movimentos sociais populares

que haviam marcado a década anterior (HILSDORF, 2003, p.122, grifo do

autor).

De acordo com Mendes (2010), a ditadura militar, segundo os próprios militares,

seria uma transição rápida e gradual para o retorno à democracia e aos direitos que

haviam sido caçados. Germano (1994) corrobora afirmando que

Castelo Branco não queria implantar uma verdadeira ditadura, mas

“salvar” a ordem constitucional democrática do “comunismo” e da

“demagogia populista”. Esse projeto, contudo, mostrou-se inviável, em

virtude da resistência de uma parte do Congresso e de partidos políticos, das

pressões da “linha dura” militar, da insatisfação popular com o modelo

econômico e político e dos fracassos eleitorais em 1965, etc

(GERMANO,1994, p.53).

Nas análises de Ferreira Jr e Bittar (2006b) dos artigos escritos sobre a ditadura

militar pelo ex ministro Jarbas Passarinho, este afirma que a luta armada dos comunistas

impedia que o governo militar restabelecesse a democracia, pois havia a necessidade de

se manter a ordem. Para o ex-ministro, o regime militar só se tornou ditatorial depois

das intentadas comunistas que levaram o governo a editar o AI-5, período conhecido

como anos de chumbo.

Com isso, se consolidaria a completa supressão da democracia e ficaria aberta a

alavancada econômica do Brasil e sua consequente segmentação social entre aqueles

que tinham e acumulavam, cada vez mais, o capital, e aqueles que possuíam apenas a

força de trabalho.

Sendo amparada por leis, decretos, imposições explícitas (Atos Institucionais) e

veladas, a ditadura militar permaneceria até 1985. Em síntese, nos dizeres de Ferreira Jr

e Bittar (2006a), “o golpe de Estado de 1964 impediu a “revolução comunista” e, ao

22

mesmo tempo, possibilitou ao regime militar “modernizar” o capitalismo

brasileiro”(p.22). Essa motivação economicista do golpe, consubstanciado a outros

fatores citados por Fico (2004), imergiram o país num dos períodos mais autoritários da

contemporaneidade.

Segmentando o período militar, Codato (2005) analisa essa história em cinco

grande fases

Uma primeira fase, de constituição do regime político ditatorial-militar,

corresponde, a grosso modo, aos governos Castello Branco e Costa e Silva

(de março de 1964 a dezembro de 1968); uma segunda fase, de consolidação

do regime ditatorial-militar (que coincide com o governo Medici: 1969-

1974); uma terceira fase, de transformação do regime ditatorial-militar (o

governo Geisel: 1974-1979); uma quarta fase, de desagregação do regime

ditatorial-militar (o governo Figueiredo: 1979-1985); e por último, a fase de

transição do regime ditatorial-militar para um regime liberal-democrático (o

governo Sarney: 1985-1989) (CODATO, 2004, s/p.).

Para fins desse estudo, nos ateremos às quatro primeiras fases - 1964 a 1985-,

tendo em vista que, no campo da educação, grandes reformas foram elaboradas durante

a primeira fase, implantadas na segunda, reiteradas e modificadas através de decretos-

leis na terceira e contestadas na quarta, já com o governo ditatorial-militar bastante

enfraquecido.

Assim sendo, faremos no próximo capítulo desse trabalho, uma incursão na

história da educação no período militar, a fim de contextualizarmos a EF como uma

área de conhecimento que começava a adentrar as escolas públicas brasileiras,

respaldada por uma nova legislação e equiparada a outras disciplinas do currículo.

2.2. A Educação no período da Ditadura militar no Brasil: a história que

nos é contada.

Antes de começarmos discorrer sobre a educação no período compreendido por

este estudo, é importante pontuarmos que a história que nos é contada é um

posicionamento dos autores citados durante o decurso do trabalho. Portanto, por

compactuarmos com as considerações menos deterministas que Edward Palmer

Thompson faz da história, justamente por levar em conta as ações dos sujeitos na

23

construção do processo histórico, tentaremos expor os posicionamentos da literatura,

mas sempre com o distanciamento necessário para não perdermos de vista o mote de

nossa pesquisa, ou seja, os sujeitos como agentes do processo.

2.2.1- A Educação no período militar

Após o golpe militar de 1964, o Brasil optou pelo aproveitamento do capital

estrangeiro em detrimento ao movimento nacional-desenvolvimentista que permeava o

contexto do país até então.

Diante dessa nova visão política, a educação, até então pautada pela LDB 4.024

de 1961, que havia sido construída nas bases de um país em processo de

industrialização, começou a ser alterada de acordo com o ideário militar e em

concomitância com o desabrochamento do sistema capitalista no Brasil.

Segundo Saviani (1982) essas alterações não apareceram explicitamente nos

textos das leis. Não obstante, o autor salienta que, por mais que os objetivos

proclamados com a LDB 4.024 não tenham sido revogados pelas leis 5.540 e 5.692

dando a entender que não houve mudanças, não se pode inferir que essas leis estivessem

impregnadas do mesmo espírito.

Para o autor, com a ruptura da política nacional desenvolvimentista em prol da

continuidade sócio-econômica, houve alteração no espírito das leis, isso porque a

inspiração liberalista da primeira LDB cedeu lugar às tendências tecnicistas das leis

5.540 e 5.692.

Sendo assim, desenhava-se uma educação planejada como instrumento da

racionalidade tecnocrática com o objetivo de se viabilizar o slogan “Brasil Grande

Potência” (Ferreira Jr e Bittar, 2008).

Diante disso, o governo pós 64, que era formado basicamente por militares e

tecnocratas, consubstanciado com a forte influência burguesa e do governo norte-

americano, firmou, entre junho de 1964 e janeiro de 1968, doze acordos entre o

Ministério da Educação e Cultura e a Agency for International Development (MEC-

USAID).

De acordo com Ghiraldelli Jr. (2008), os acordos comprometeram a política

educacional do nosso país às determinações de um grupo específico de técnicos norte-

24

americanos não simpatizantes dos posicionamentos de John Dewey3 e de filósofos da

educação democrata, que os Estados Unidos haviam produzido em larga escala.

Desta forma começava-se a se construir uma proposta educacional concebida

numa tendência tecnicista, cujos pressupostos teóricos podem ser encontrados na

filosofia positivista e na psicologia behaviorista, com a tentativa de aplicar na escola o

modelo empresarial, baseado na “racionalização”, própria do sistema de produção

capitalista.

Aranha (2006) afirma que um dos objetivos dessa linha era adequar a educação

às exigências da sociedade industrial e tecnológica, evidentemente com economia de

tempo, esforços e custos. Vale lembrar que os anos que antecederam o golpe militar

foram de crescente desenvolvimento industrial vindos do exterior. Sendo assim, para

inserir o Brasil no sistema do capitalismo internacional, seria preciso tratar a educação

como capital humano.

Hilsdorf (2003) define o capital humano como uma teoria importada dos Estados

Unidos, desenvolvida pelo norte-americano Theodor W. Schultz, professor de economia

da Universidade de Chicago e que funcionou como diretriz de política social para

países em desenvolvimento. A teoria propõe que o processo de educação escolar seja

considerado como um investimento que redunda em maior produtividade e,

consequentemente, em melhores condições de vida para os trabalhadores e a sociedade

em geral.

A autora afirma que

As habilidades e os conhecimentos obtidos com a escolarização formal

representam o ‘capital humano’ de que cada trabalhador se apropria: a

teoria propõe que basta investir nesse capital para que o desenvolvimento

pessoal e social aconteça (HILSDORF, 2003, p.123, grifos nossos).

A respeito do capital humano, teoria implantada no período ditatorial, Ferreira Jr

e Bittar (2008) afirmam

Durante a ditadura militar, as relações que se estabeleceram entre

planejamento econômico, modernização acelerada das relações capitalistas

3 Dewey foi um dos idealizadores do escolanovismo, movimento com o objetivo de democratizar e de transformar a sociedade por

meio da escola que teve início na década de vinte. Anísio Teixeira foi um dos principais responsáveis pela disseminação da proposta

no Brasil, após uma de suas viagens aos Estados Unidos.

25

de produção, tecnocracia e educação tinham na “teoria do capital humano”

o seu elemento vital, a seiva ideológica que alimentava o projeto societário

materializado no slogan “Brasil Grande Potência” (FERREIRA Jr. e

BITTAR, 2008, p.344).

Navegando nessa esteira, Saviani (2008) afirma que

...configurou-se, a partir daí, a orientação que estou chamando de

concepção produtivista de educação. Essa concepção adquiriu força

impositiva ao ser incorporada à legislação do ensino no período militar, na

forma dos princípios da racionalidade, eficiência e produtividade, com os

corolários do "máximo resultado com o mínimo dispêndio" e "não

duplicação de meios para fins idênticos" (SAVIANI, 2008, s/p)

Mais à frente, os preceitos da teoria do capital humano ficaram mais explícitos

com a reforma educacional dos 1º e 2º graus, com a defesa da terminalidade com

profissionalização. Consubstanciada com essa teoria, a tendência tecnicista de

Educação, respaldada pela legislação passou a ser o ideário educacional de todo o

território nacional.

De acordo com Aranha (2006), essa tendência prejudicou, sobretudo, as escolas

públicas, uma vez que as exigências de pessoal e de infraestrutura impostas foram

contornadas nas escolas particulares. Uma das consequências dessa tendência foi a

excessiva burocratização do ensino uma vez que, para o controle das atividades, havia

inúmeras exigências de preenchimento de papéis.

Aranha (2006) afirma que

evidentemente, essa tendência ignorava que o processo pedagógico tem sua

própria especificidade e jamais permite a rígida separação entre concepção

e execução do trabalho, além do que [...] não tem sentido reduzir o professor

a mero executor de tarefas organizadas pelo setor de planejamento,

tampouco é possível imaginar que a excelência dos meios técnicos possa

tornar a sua função secundária (p.315).

Além disso, muitos autores afirmam que esses acordos MEC-USAID, que

adotaram essa tendência tecnicista de educação, beneficiaram mais aqueles que tinham

como discurso “ajudar” os países em desenvolvimento do que aqueles que careciam de

ajuda.

26

Romanelli (2007), por exemplo, tece considerações afirmando que, para que haja

essa ajuda, considera-se o contexto interno das sociedades beneficiárias, já que a ajuda

quase sempre se faz sentir justamente onde e quando são perceptíveis condições

mínimas de integração das populações na esfera de influência do capitalismo.

A autora continua, afirmando que a estratégia geral da ajuda para o

desenvolvimento da educação segue as seguintes fases: a) em primeiro lugar, quando a ajuda é feita à base de inversão

de capital (construção de escolas), todo o circuito que vai da

elaboração dos estudos, transporte de material, até o

fornecimento de pessoal, favorece o país assistente, porque

apenas uma pequena parte da ajuda aproveita mão-de-obra

local;

b) a ajuda vinculada obriga os países beneficiários a pagarem

preços superiores aos preços mundiais e a se responsabilizarem

por fretes de transporte e seguro junto às empresas dos países

de origem;

c) quanto à manutenção do pessoal de cooperação que

representa 70% da ajuda à educação, os recursos não são

inteiramente gastos localmente. Pelo menos a metade, talvez até

dois terços são conservados no país de origem ou para ele

voltam sob a forma de poupança. Até mesmo as despesas com

consumo do pessoal se fazem sempre com importação de

produtos manufaturados e até alimentares oriundos dos países

industrializados. Assim, apenas uma pequena parte da renda

favorece a economia local (aluguel, serviços domésticos,

alimentação de base);

d) além disso, para o país que recebe um técnico é diferente o

“valor” de sua remuneração paga pelo país que o envia, em

confronto com o custo de um técnico local para o país

beneficiário;

e) na maior parte das vezes, a ajuda exterior acarreta encargos

decorrentes de alojamento, transporte, etc., que podem atingir

ou ultrapassar a despesa que o país beneficiário suportaria, se

ele empregasse técnicos nacionais. (ROMANELLI, 2007, p.

187).

Além disso, havia também a ajuda oferecida na forma de bolsas de estudo, que

promoveu muitas vezes a “evasão de cérebros” para esses países.

27

Como nos indica Romanelli (2007), a ajuda não chegava como filantropia e sim

com interesses mercadológicos e dominadores que permeavam a relação entre aqueles

que necessitavam de melhorias no sistema educacional e aqueles que pretendiam, ora de

forma sutil, ora não, transplantar para o país beneficiário sua cultura de acordo com seus

interesses.

Em síntese, Germano (1994) afirma que a política educacional durante a

ditadura militar se desenvolveu em torno de quatro eixos

1) Controle político e ideológico da educação escolar, em todos os níveis.

Tal controle, no entanto, não ocorre de forma linear, porém é

estabelecido conforme a correlação de forças existentes nas diferentes

conjunturas históricas da época. Em decorrência, o Estado militar e

ditatorial não consegue exercer o controle total e completo da educação.

A perda de controle acontece, sobretudo, em conjunturas em que as

forças oposicionistas conseguem ampliar o seu espaço de atuação

política. Daí os elementos de “restauração” e de “renovação” contidos

nas reformas educacionais; a passagem da centralização das decisões e

do planejamento, com base no saber da tecnocracia, aos apelos

“participacionistas” das classes subalternas;

2) Estabelecimento de uma relação direta e imediata, segundo a “teoria

do capital humano”, entre educação e produção capitalista e que

aparece de forma mais evidente na reforma do ensino do 2º grau,

através da pretensa profissionalização;

3) Incentivo à pesquisa vinculada à acumulação de capital;

4) Descomprometimento com o financiamento da educação pública e

gratuita, negando na prática, o discurso de valorização da educação

escolar e concorrendo decisivamente para a corrupção e privatização

do ensino, transformando em negócio rendoso e subsidiado pelo Estado.

Dessa forma, o regime delega e incentiva a participação do setor

privado na expansão do sistema educacional e desqualifica e a escola

pública de 1º e 2º graus, sobretudo. (GERMANO, 1994, p.106).

Diante desse sustentáculo ideológico, os acordos entre MEC–USAID

culminaram na promulgação da Lei nº 5.540/68 e na Lei 5692/71, ambas visando atrelar

o sistema educacional ao modelo econômico dependente, imposto pela política norte-

americana para a América Latina, como discutiremos a seguir.

28

2.2.2. As reformas educacionais no período da Ditadura

O período da ditadura militar foi marcado por duas grandes e impactantes

reformas educacionais, a Lei nº 5.540/68 e a Lei nº 5.692/71. Essas reformas integraram

as mudanças sociais da época, mas também as feições políticas do regime de governo

que vigorava no período, em sua caracterização militar e ditatorial.

Saviani (1982) tece considerações sobre a ruptura política em prol da

continuidade econômica, o que desencadeou mudanças legislativo-educacionais

consubstanciadas com os interesses do governo e de seu parceiro internacional. De

acordo com Saviani (2008), a Lei nº 5.540, de 28 de novembro de 1968, reorganizou o

funcionamento do ensino superior e sua articulação com a escola média. Já a Lei nº

5.692, de 11 de agosto de 1971, reestruturou os antigos primário e ginásio, criando o

ensino de 1º e 2º graus. Em outras palavras: da junção dos quatro anos do ensino

primário com os quatro do ginásio foi criado um único ciclo de oito anos, o chamado 1º

grau de ensino, que passou a ser obrigatório. Quanto aos três anos do antigo ensino

colegial, passaram a constituir o 2º grau.

Diferentemente do que aconteceu com a LDB de 1961, fruto de um profundo

debate em torno das diretrizes da educação nacional, a Lei nº 5.540, de 28 de novembro

de 1968, conhecida como lei da reforma universitária, foi implementada de forma

centralizada e introduziu diversas modificações na LDB de 1961, sempre em

consonância com os interesses políticos do período.

Um dos fatores desencadeadores da promulgação da reforma universitária foi a

ampliação do mercado de trabalho, fato que começara a ocorrer com o processo de

industrialização nacional a partir da década de 30.

Com a exigência industrial por uma mão-de-obra mais qualificada, a crença que

a via escolar poderia fornecer tais habilidades aumentou assustadoramente a demanda.

A classe média urbana foi a grande alavanca dos movimentos estudantis que advogavam

por reformas educacionais, pois tinha como meta ascender economicamente no seio da

sociedade. Para outros, os mais abastados, as reformas, especificamente as que se

referiam ao ensino superior, representavam a manutenção do status quo.

Diante dessas necessidades, a antiga universidade não tinha mais condições de

atender ao aumento da procura por vagas no ensino superior.

Com isso começam a se instaurar no Brasil, mais incisivamente no início da

década de 60, movimentos estudantis organizados reivindicando reformas educacionais

29

que pudessem suprir as necessidades sociais que emergiam em meio àquele cenário de

efervescência econômica.

A esse respeito, Freitag (1980) pondera

A causa fundamental para o engajamento político do estudante era a sua

insegurança de classe. Não vendo possibilidade de êxito e participação na

estrutura de classe vigente, o estudante se torna o porta-voz ideológico de

uma luta de classes a favor dos oprimidos. Abandona essa ideologia no

momento em que consegue inserir-se, com êxito, no mercado de trabalho e

assegurar seu lugar privilegiado na sociedade estratificada (FREITAG,

1980, p.87).

Não obstante os movimentos estudantis tenham se intensificado pós 64, foram

reprimidos violentamente pelo governo vigente. As contestações tinham como alvo o

direito à liberdade de expressão, além de serem radicalmente contra os acordos entre

MEC- USAID, bem como contra a privatização do ensino. As reivindicações exigiam

mais verba para a educação e a sua expansão, tendo em vista que aqueles que eram

aprovados nos vestibulares não conseguiam o ingresso por falta de vagas, os chamados

excedentes.

Diante disso, configura-se uma situação em que o governo, pressionado pelos

estudantes que ambicionavam o ingresso no ensino superior, “cede” aos anseios

estudantis e cria um Grupo de Trabalho da Reforma Universitária (GTRU), com a

incumbência de amadurecer as reformas educacionais para que atendessem a exigência

social, mas coadunadas com as políticas que vigoravam até então.

Contudo, esse processo não aconteceu com tanta assepsia.

Romanelli (2007) afirma que

... a modernização da universidade ocorreu menos por pressão da rebelião

estudantil do que pela descoberta de que a inovação poderá ser manipulada

sem ameaças à estrutura de poder, ao mesmo tempo em que se ajustaria mais

a um certo padrão de desenvolvimento econômico, apontado este aspecto

pelas forças internas e externas interessadas nessa modernização. Assim,

pois, o Governo não só cedeu às pressões, como assumiu a responsabilidade

da inovação (ROMANELLI, 2007, p.231).

30

Como nos alerta Cunha (2009), com o golpe pós 64 as discussões sobre a

reforma no ensino superior que ocorreram por meio de Seminários promovidos pela

União Nacional dos Estudantes - UNE em 1961, 62 e 63 foram modificadas para que se

adaptassem à política educacional do governo autoritário. Para a autora, com a ascensão

ao poder dos militares “A questão universitária passava a ser encarada como um

problema técnico, não mais como uma questão social, como era considerada antes de

1964” (CUNHA, 2007, p.3).

Entretanto, Germano (1994) diz que é importante relativizarmos até que ponto o

governo militar foi o responsável pela reestruturação do ensino superior no Brasil.

Segundo o autor, mesmo antes do golpe, a UNE propunha diversas modificações no

sistema de ensino superior, algumas delas atrelando a universidade ao mercado de

trabalho. Além disso, grandes universidades como a Universidade de Brasília - UNB, já

tinham em suas estruturas mecanismos de “modernização” muito parecidos com os

quais foram adotados pós reforma.

O autor afirma que

Na verdade, a reforma universitária de 1968 assimilou, em grande parte, a

experiência acumulada no âmbito de instituições do próprio Estado, bem

como as demandas estudantis. Mas a assimilação não significa continuidade

do projeto anterior; na verdade, como vimos, ela representou a sua

liquidação. A reforma incorporou a estrutura e tentou inviabilizar, a todo o

custo, um projeto de universidade crítica e democrática ao reprimir e

despolitizar o espaço acadêmico. Afinal, não se trata de um contexto de

“democracia populista”, mas da implantação de um Estado de Segurança

Nacional de cunho ditatorial (GERMANO, 1994, p.123)

Por esse prisma, a ideia de um processo histórico linear de dominação

arquitetado pelo governo militar é contestada, haja vista que o autor relativiza o papel

estatal na reforma. Mesmo assim não absolve o estado de suas intenções de controle

social por meio da reforma

Nessa mesma esteira, Oliveira (2003) nos provoca construindo a possibilidade

histórica de que as políticas públicas gestadas podem não ser uma imposição autoritária

do governo, mas sim um consórcio entre os diversos segmentos para a organização de

demandas sociais.

31

Veja o que o autor afirma: “procurei (...) mostrar que a dominação, em

qualquer de suas formas, é uma via de mão dupla. Os grupos no poder podem impor,

mas podem propor. Podem ordenar, mas podem acatar. Essa é a dinâmica do conflito”

(p.173).

Sobre a organização de demandas, Saviani (2005) afirma

No ensino superior a lei aprovada resultou de duas demandas

contraditórias: a dos estudantes e professores e aquela dos grupos ligados

ao regime instalado com o golpe militar. Respondendo à primeira pressão, a

lei nº 5.540 proclamou a autonomia universitária e a indissociabilidade entre

ensino e pesquisa, aboliu a cátedra e elegeu a instituição universitária como

forma prioritária de organização do ensino superior. Atendendo à segunda

demanda, institui o regime de crédito, matrícula por disciplina, os cursos

semestrais, os cursos de curta duração e a organização fundacional

(SAVIANI, 2005,p.36).

Desta forma, imbricados por intenções ideológicas, como podemos ver nas

afirmações de Romanelli (2007), coadunado com interesses de outros agentes sociais

com nos afirma Germano (1994) e Oliveira (2003), e atendendo às demandas

emergentes em meio àquele contexto sócio-político como esclarece Saviani (2005) o

governo militar, em 28 de Novembro de 1968, promulga a reforma universitária que,

alguns meses depois, receberia ajustes feitos pelo Decreto nº 464, de 11 de fevereiro de

1969. Lembremos ainda que, em 1965, havia sido promulgado o Parecer CFE nº 977,

que regulamentou a implantação da pós-graduação4 no Brasil seguindo os moldes norte-

americanos5.

Para Veiga (2007) as diretrizes principais dessa reforma definiram para as

instituições de ensino superior

a) regime jurídico e administrativo: autarquia, fundação ou

associação; autonomia universitária particularmente no que se

refere às atividades acadêmicas.

b) Estrutura: unidade de patrimônio e administração; organização

de departamentos e racionalização no uso de equipamentos

4 Todavia o incentivo a pesquisadores formados no Brasil só recebeu apoio significativo a partir da década de 70, por fundamentar

os ideários de desenvolvimento do governo militar. 5 Para maior aprofundamento sobre a pós-graduação no Brasil e a influência norteamericana, ver Santos, C.M. Tradições e

contradições da pós-graduação no Brasil

32

evitando-se duplicação de recursos; normas de nomeação de

reitores, vice-reitores, diretores e vice-diretores; ensino

associado à pesquisa.

c) Corpo docente: extinção da cátedra; plano de carreira docente;

política de capacitação em pós-graduação.

d) Corpo discente: representação estudantil por eleições indiretas;

criação da monitoria; incentivo a atividades de Educação

Física, desportivas e cívicas. Posteriormente foi regulamentada

a obrigatoriedade da disciplina Estudos dos Problemas

Brasileiros (EPB) para todos os cursos e, para os alunos

diurnos, a Educação Física.

e) Outros: unificação do vestibular por universidades e região;

habilitação de curta duração (curso de dois anos); organização

de normas gerais da pós-graduação e avaliação por conceito a

ser efetuado pelo Conselho Federal de Educação;

estabelecimento pelo mesmo órgão dos currículos mínimos dos

cursos superiores; disciplinas semestrais e matrícula pelo

sistema de créditos (VEIGA, 2007, p. 311).

De acordo com as diretrizes principais apontadas pela autora, ressaltamos a

intenção explícita do governo de implantar no sistema educacional a mentalidade

empresarial dentro do âmbito universitário, além de um cerceamento das ações de

docentes e discentes, o que é próprio de um governo ditatorial.

Entretanto, mesmo com a reforma universitária, o problema dos excedentes não

foi resolvido, uma vez que a nova lei apenas usurpou o direito de matrícula dos

estudantes já aprovados no vestibular. De acordo com Ghiraldelli (2008), esse problema

só foi resolvido com a privatização do ensino, iniciada e incentivada pelo governo na

década de 70.

A respeito da privatização, Saviani (2008) afirma que

...o aumento da participação privada na oferta de ensino, principalmente no

ensino superior, foi possível pelo incentivo governamental assumido

deliberadamente como política educacional. O grande instrumento dessa

política foi o Conselho Federal de Educação (CFE), que, mediante

constantes e sucessivas autorizações seguidas de reconhecimento, viabilizou

a consolidação de uma extensa rede de escolas privadas em operação no

país. O Conselho, mediante nomeações dos presidentes da República, por

indicação dos ministros da Educação, nunca deixou de ter representantes

33

das escolas particulares em sua composição. Além disso, o lobby das

instituições privadas sempre foi muito ativo, intenso e agressivo, chegando a

ultrapassar os limites do decoro e da ética, o que conduziu ao fechamento do

CFE pelo ministro Murilio Hingel, em 1994. Em seu lugar foi instituído o

Conselho Nacional de Educação (CNE), regulado pela Lei nº 9.131, de 24 de

novembro de 1995(SAVIANI, 2008, s/p).

Apesar dessas implicações, para Germano (1994), a reforma universitária, com a

implantação da pós-graduação e o incentivo à pesquisa, em grande parte as de cunho

tecnológico, alavancou o segmento científico no país e as intenções estatais, mas,

contraditoriamente, possibilitou o surgimento de críticas ao governo e ao modo de

produção vigente.

Em suma, apesar dos golpes desferidos na educação pelo Regime Militar, a

reforma universitária contém, sem dúvida, elementos de renovação,

sobretudo na pós-graduação. Ao mesmo tempo que o Estado exercia o mais

severo controle político-ideológico da educação, possibilitava,

contraditoriamente, o exercício da crítica social e política, não somente do

regime político vigente no país, mas também do próprio capitalismo no

âmbito universitário. Estamos nos referindo, evidentemente, à pós-

graduação na área das Ciências Humanas. Por sua vez, isso revela que o

aspecto restaurador não elimina a possibilidade de ocorrerem mudanças

efetivas, que se tornam matrizes de novas modificações, segundo Gramsci

(1977:1.767) (GERMANO, 1994, p.148).

Diante disso, com essa primeira grande reforma educacional, o governo

começava a implantar no âmbito escolar uma mentalidade empresarial que tomava

conta do país na forma dos princípios da racionalidade, eficiência e produtividade.

A segunda grande reforma que completaria os planos governamentais para a

educação nacional foi aprovada em 11 de agosto de 1971, com a Lei nº 5.692/71,

unificando o antigo primário com o antigo ginásio, criando o curso de 1º grau com 8

anos e o de 2º grau com três anos, este incumbido, principalmente, de atender as

necessidades de mercado formando mão-de-obra qualificada.

Assim como aconteceu com a reforma universitária, a Lei nº 5.692 foi definida

em tempo bastante curto, tendo em vista que o governo reuniu um grupo de trabalho

para a elaboração do projeto de reforma pouco mais de um ano antes da promulgação

oficial da reforma dos 1º e 2º graus. Entretanto, os acontecimentos que desencadearam

34

tal reforma não vinham de movimentos reivindicatórios de diversos setores da

sociedade como aconteceu com a reforma universitária. Desta vez o Estado se antecipou

a qualquer manifestação social e advogou em prol das massas populares.

No entanto, segundo Germano (1994), isso não aconteceu sem que houvesse

intenções subjacentes que permeassem as ações daqueles governantes. Para o autor, a

estratégia do Estado em promover reformas educacionais voltadas para as massas

populares consistia em um processo de legitimação do Estado perante a sociedade, ou

seja, a busca do apoio e do reconhecimento dos cidadãos.

Para isso, o Estado tinha que se manter neutro e oferecer oportunidades iguais

(ao menos em termos de discurso) para todos os cidadãos. Entretanto, nos dizeres de

Offe (1990),

...as relações de poder e as desigualdades surgidas fora da esfera da

dominação política tendem a permitir que esta condição de igualdade, que é

o fundamento da organização da dominação estatal, apresente-se como

fictícia. (p.47)

Seguindo por essa linha de pensamento, para que essa neutralidade não fosse

desmascarada, e o Estado não fosse combatido como parte da classe dominante, ele agiu

no sentido de conter as evidencias que deflagram as desigualdades de oportunidades,

contudo sem tocar nos mecanismos que as geram. Nessa perspectiva,

(...) a política educacional é, entre todas as outras políticas setoriais, talvez

o exemplo mais patente de como o Estado procura produzir uma aparência

de igualdade de oportunidades e com isso de uma neutralidade em relação

às classes no que concerne às suas próprias funções, quando na verdade o

status social e as oportunidades de vida dos indivíduos estão ligados ao

movimento de uma economia regulada pelo lucro. (GERMANO, 1994.

p.165-166)

Por esse prisma a educação, por meio da reforma de 1º e 2º graus, vinha ao

encontro desses princípios, isso porque promoveu-se uma ampliação da escolaridade

obrigatória já que os antigos 4 anos obrigatórios do antigo ensino primário foram

substituídos pelo ensino de 1º grau, com 8 anos obrigatórios.

Sendo assim a ampliação da escolaridade, associada à modificação do curso

colegial que agora passa a se denominar de 2º grau e, obrigatoriamente, formar o aluno

35

para o mercado de trabalho, satisfaria a massa popular e reiteraria os princípios de

neutralidade e igualdade de oportunidades, proferidos pelo governo.

De fato, para manter a legitimidade, o Estado aparenta manter a igualdade entre

os cidadãos e, ao mesmo tempo, defender-se efetivamente da responsabilidade pelas

exigências de desprivilegiamento e exploração que o sistema capitalista ao qual ele

tende a servir, permanentemente cria.

Navegando pelo conceito de hegemonia de Gramsci, Germano (1994) afirma

que Em síntese, o que está em jogo, na política educacional em apreço, é

primeiramente uma questão de hegemonia, posta por um Estado em que a

função de domínio, conforme foi dito, é claramente predominante em virtude

da forma de ditadura militar que ele assumiu nessa quadra da nossa história

(GERMANO, 1994, p.167).

Por essa vertente o governo militar ditatorial trataria de oprimir, quando

necessário, mas isso não seria suficiente para exercer a hegemonia, haveria, também, a

necessidade do consentimento, ou seja, dentro de certos limites era necessário satisfazer

aos interesses das massas. Portanto, a ampliação da obrigatoriedade escolar e o ensino

de 2º grau incumbido do ensino profissionalizante, consubstanciados com a alavancada

econômica pela qual atravessava o país, foram ferramentas utilizadas para a manutenção

da direção política e ideológica da sociedade.

Sobre o texto da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional de 1971, o

governo tratou de deixar claros os objetivos pretendidos, sendo que vinham ao encontro

dos ideários político e econômico que vigoravam no país, amparando legalmente o norte

ideológico da sociedade pretendida.

De acordo com a Lei,

Art.1º - O ensino de 1º e 2º graus tem por objetivo geral proporcionar ao

educando a formação necessária ao desenvolvimento de suas

potencialidades como elemento de auto-realização, qualificação para o

trabalho e preparo para o exercício consciente da cidadania (LDB- 5692/71,

MEC, s/p.).

Diante de tal objetivo evidencia-se a intenção do governo em atrelar a educação

ao mercado de trabalho, dotando o 2º grau com um caráter terminal, que abasteceria de

36

forma rápida a expansão industrial do país, impulsionada pelo crescimento econômico.

Além disso, municiando a massa popular de um ensino profissionalizante que fizesse

com que esta classe “ascendesse socialmente”, poderia estar aliviando a pressão por

vagas no ensino superior.

Entretanto, sabe-se que a ascensão social prometida pela visão estatal serviu para

dividir ainda mais a sociedade, de um lado aqueles que, por força da situação

econômica, tinham que ingressar precocemente no mercado de trabalho acabavam

encerrando os estudos ao concluir o curso de 2º grau pela terminalidade que conferia e,

de outro lado, aqueles mais abastados economicamente que podiam adiar seu ingresso

no mercado de trabalho e tinham a oportunidade de cursar o ensino superior, e assim,

ocupar postos mais altos na sociedade.

A respeito do ensino profissionalizante, Aranha (2006) considera que

(...) A criação da escola única profissionalizante representou a tentativa de

extinguir a separação entre escola secundária e técnica, uma vez que,

terminado o ensino médio, o aluno teria uma profissão (p.318).

Na verdade, apesar do grande entusiasmo do governo com o ensino de 2º grau

profissionalizante, a falta de recursos destinados ao setor; a discrepância entre o que era

ensinado nas escolas e o que o mercado exigia; a demanda para o ensino superior que

não foi estancada de acordo com as expectativas do governo, entre outros motivos,

desencadearam o fracasso da tão propalada profissionalização. Mais à frente, ainda no

governo militar, a profissionalização do ensino foi revogada em 1982 pela Lei nº7. 044.

Entretanto, como nos elucida Salm (1986),

(...) tal Lei deixou suas sequelas, como colocar na vala comum as velhas e

boas escolas técnicas, ao lado de outras que não tinham condições para tal,

o enfraquecimento da formação do magistério, transformado em mera

habilitação de 2º grau e numa proliferação de escolas técnicas de baixíssimo

nível e desempenho fraquíssimo, criando, assim, muitas ilusões, muitos

problemas (p.74-75).

Junto a isso outro ponto que merece destaque na análise da Lei 5.692/71, foi

uma espécie de extinção da disciplina de Filosofia do currículo de 2º grau, já que a

ideologia tecnocrática implantada colaborou para que essa área perdesse seu prestígio

37

social por não tratar de um conhecimento imediatamente aplicável. Outra modificação

curricular no ensino de 1º grau da época foi a aglutinação das disciplinas de História e

Geografia que passaram a constituir os Estudos Sociais. No preenchimento do currículo

foram incluídas Educação Física, Educação Moral e Cívica, Educação Artística,

Programas de Saúde e Religião (obrigatória para o estabelecimento e optativa para o

aluno).

Ainda que nenhuma legislação tenha sido publicada a respeito da retirada da

disciplina de Filosofia do currículo, podemos inferir que havia uma intenção velada dos

responsáveis pelos currículos no sentido de não incentivar o desenvolvimento do

pensamento crítico e reflexivo, e, indiretamente, colaborar para desmobilizar qualquer

manifestação de consciência política, o que não seria surpreendente, uma vez que o

regime militar, principalmente durante o governo Médici, foi considerado o mais

repressivo da ditadura.

Evocando o conceito de ideologia do filósofo francês marxista Louis Althusser,

podemos inferir que muito mais que uma arquitetada despolitização, o governo

pretendia com esta alteração curricular, transmitir para os alunos que as estruturas

sociais que se configuravam eram boas e desejáveis.

A escola como um Aparelho Ideológico Central6, segundo Althusser (1983),

atua ideologicamente através de seu currículo e das matérias que o compõem. As

ciências humanas atuariam de forma mais direta explicitando ideias e crenças sobre a

desejabilidade das estruturas sociais existentes, enquanto as matérias de cunho técnico

atuariam de forma mais indireta para esta função.

Por essa vertente, a modificação do currículo escolar pensada pelo governo

militar, tinha a incumbência de contribuir para a reprodução da sociedade capitalista, já

que a ideologia atua também de forma discriminatória, fazendo com que a classe

subordinada aprenda a obedecer, e as classes dominantes aprendam a controlar e

mandar. Isso ocorre pelos mecanismos seletivos que fazem com que as crianças das

classes dominadas sejam expurgadas da escola antes que cheguem aos níveis em que se

aprendem os hábitos da classe dominante. Ou seja, a mudança na grade curricular com a

reforma de 1º e 2º graus, mais que uma medida paliativa para atender os anseios

militares de contenção e despolitização, agiu para que o status quo não fosse contestado.

6 A escola é considerada um Aparelho Ideológico Central por atingir toda a população por um longo período. Tal conceito é

desenvolvido em Althusser, L. Aparelhos Ideológicos do Estado (1983).

38

É importante salientarmos que a disciplina de Filosofia não foi proibida7 pela

reforma, ela poderia ser incluída na parte diversificada do currículo de 2º grau,

entretanto isso não aconteceu, talvez porque como nos elucida Silva (1997) “... a

filosofia perdeu seu espaço (...) muito mais em função da ideologia técnico-

desenvolvimentista que conquistou hegemonia entre os educadores, no final da década

de sessenta e durante a de setenta (p.83).

Silva (1997) continua afirmando que “sequer foi necessário um dispositivo legal

que proibisse a permanência da disciplina de Filosofia. A persuasão e a coerção

ideológicas revelaram-se muito mais eficazes e legítimas (p.83).

De forma explícita, com a alteração das teorias e grades curriculares que

sustentavam o âmbito escolar, e implícita, com a transmissão da ideologia que legitima

as estruturas sociais, o fomento legal trilhava caminhos para que o projeto de sociedade

arquitetado pelo governo se consolidasse.

Tanto a valorização esportiva, através da obrigatoriedade da prática de EF nas

escolas, com a clara intenção de alavancar esse segmento no país e fazer dele um

sustentáculo ideológico; quanto a Educação Moral e Cívica voltada para a construção de

uma consciência estudantil que não fugisse dos propósitos econômicos, políticos e

ideológicos da ditadura militar, foram medidas curriculares que permearam a reforma de

1º e 2º graus. Além disso, a Lei 5.692/71 também regulamentou o ensino supletivo, com

o objetivo de criar condições para reposição da escolarização regular.

Com o passar dos anos, o que em princípio parecia positivo na reforma, como o

ensino obrigatório de oito anos, acabou não se concretizando, uma vez que não havia

recursos materiais e humanos que atendessem à demanda.

As implantações preconizadas pela reforma, não levadas a cabo pelo próprio

governo que a concebera, deixaram como legado um enfraquecimento das escolas

públicas, com um currículo profissionalizante que nem preparava para o mercado,

tampouco para o ingresso no ensino superior, e o fortalecimento das escolas privadas,

que assumiram efetivamente a preparação para os vestibulares. Ou seja, diante disso, a

reforma educacional de 1º e 2º graus contribuiu, ainda mais, para acentuar a divisão da

sociedade em classes, entre aqueles que conseguiam atingir o ensino superior que

normalmente conseguiam posições de maior destaque no seio da sociedade e aqueles

7 Entretanto, segundo Chauí (2001) em 1978 a secretaria de Educação do Estado de São Paulo determinou a grade curricular,

extinguindo o ensino da Filosofia no 2º grau.

39

que possuíam uma formação técnica aligeirada que, por sua vez, ocupavam posições

mais servis na sociedade.

Sendo assim, no final dos anos 70 e início dos 80, com o regime militar já se

mostrando enfraquecido, os sinais desastrosos das reformas educacionais começaram a

ganhar notoriedade social.

Desse modo, com a abertura política promovida no governo do general-

presidente Figueiredo, e com a anistia concedida aos exilados políticos, entre eles

importantes intelectuais ligados à educação, inicia-se um debate sobre os novos rumos

da educação nacional.

Em 1982, os primeiros passos começam a ser dados em direção a mudanças na

LDB nº 5.692/71. O primeiro foi a promulgação da Lei nº 7044/82 que, como já

mencionamos, dispensava as escolas da obrigatoriedade da profissionalização,

retomando a ênfase na formação geral, seguido do parecer nº 342/82, que recolocava a

disciplina de Filosofia no currículo, porém como optativa.

Por fim, os últimos anos da ditadura militar e os primeiros do regime

democrático foram de crescente aumento da literatura educacional, destacando-se as

críticas contundentes ao tecnicismo e à ideologia subjacente aos processo de ensino

norteados por essa lógica. Isso, sem dúvida provocou uma maior qualidade nas

discussões posteriores sobre a temática e norteou novos rumos para a educação

nacional, culminando na LDB nº 9.394/96.

Mesmo com a nova LDB norteando a educação nacional, há uma corrente de

autores, entre eles Amarilio Ferreira Jr e Marisa Bittar que delegam ao governo militar

de 1964-1985 parte da responsabilidade pelos sérios problemas educacionais sofridos

atualmente pelo país. Segundo eles,

(...) vários elementos que estrangulam, por exemplo, a qualidade de ensino

da escola pública são remanescentes das reformas educacionais executadas

pelos governos dos generais-presidentes. Destacamos, a título de ilustração,

dois aspectos significativos da condição de ser professor do ensino básico,

na atual realidade brasileira, que deitam liames profundos na política

educacional legada pelo regime militar: o processo aligeirado de formação

científico-pedagógico e a política de arrocho salarial a que são submetidos.

A combinação desses dois elementos constitutivos da vida cotidiana dos

professores brasileiros representa, até hoje, um nó górdio que estrangula a

qualidade de ensino da escola pública brasileira. E esse nó tem uma origem:

40

a política educacional herdada da ditadura militar (FERREIRA Jr e

BITTAR, 2008, p.351).

Por esse prisma, o governo do período buscou e alcançou com relativo sucesso,

adequar a sociedade brasileira para a organização capitalista mundial que buscava

consolidação no cenário nacional. Organização e controle social em prol de uma

dinâmica economicista permearam as grandes reformas educacionais do período, e mais

à frente, trouxeram consigo críticas contundentes sobre as intenções subjacentes que

atravessavam seus princípios.

Assim sendo, seguindo pelas trilhas da literatura que apresentamos, podemos

atribuir ao governo militar um marco na história educacional deste país, já que os

legados dos seus projetos educacionais ainda permeiam a educação nacional. Entretanto,

o grande sustentáculo teórico do período, a teoria do capital humano, se reveste agora de

outras roupagens, e, utilizando as palavras de Dermeval Saviani, o espírito dessas outras

teorias ainda serve, e está engajado para o mesmo fim: educar para o mercado de

trabalho.

Diante do exposto, pensamos ser necessário empreender, futuramente,

investigações a respeito dos governos eleitos nos moldes democráticos, no que tange às

continuidades e rupturas da educação nacional, tendo como norte o olhar cuidadoso para

aqueles governos intitulados de esquerda, que comumente advogam pela mudança de

cenário social. Cabe responder se tais governos realmente erigiram políticas

educacionais divergentes das realizadas pelos governos de direita.

2.3. A história da EF no Brasil: o que conta a literatura especializada dos

anos 80 e 90

Inicialmente, neste capítulo, descreveremos as interpretações da historiografia da

EF nos anos 80 e início dos anos 908 sobre o período estudado. Expor esses

posicionamentos se faz necessário à medida que, mais à frente, nos proporemos a

8 Neste estudo, como já explanado no corpo deste trabalho, procuramos nos ater à literatura de forte acento crítico que se propôs a

tecer considerações sobre a legislação promulgada no período. Contudo, a abrangência de correntes de pensamentos, além das vozes

que podem ter sido silenciadas, nos permitem pensar que havia uma vasta gama de professores que vão além dos autores

compreendidos por este estudo. A esse respeito Betti (1991), em sua obra Educação Física e Sociedade, afirma que as conclusões

expostas no II Congresso Estadual de Educação em 1983, enveredam para uma EF usada historicamente a fim de atender as

ideologias da classe dominante, discurso este convergente com aquele que dialogamos no decorrer deste trabalho.

41

dialogar com alguns conceitos que tal literatura arraigou no imaginário social por meio

da suas fortes investidas acadêmicas.

Com o golpe militar proferido em 31 de Março de 1964, os reflexos de um

governo autoritário, que optara pelo aproveitamento do capital estrangeiro, começam a

repercutir na educação nacional.

O primeiro passo foram os acordos firmados entre MEC e USAID, que

culminaram nas duas grandes reformas educacionais no período militar. Como já

afirmamos no capítulo anterior, ambas as reformas tinham a incumbência de atender aos

ideários governamentais, tanto do Brasil quanto ao do governo norte-americano, ao qual

a AID (Agency for International Development) pertencia.

Diante disso, a EF adentra esse cenário de interesses subjacentes, mais

precisamente com a reforma do ensino superior 5.540 em 1968, isso porque a prática de

atividades desportivas já era estimulada como demonstra o artigo 40 do Decreto-lei nº

464, de 1969 em suas alíneas b e c e c:

Art. 40 As instituições de ensino superior:

b) assegurarão ao corpo discente meios para a realização dos programas

culturais, artísticos, cívicos e desportivos;

c) estimularão as atividades de educação cívica e de desportos, mantendo,

para o cumprimento desta norma, orientação adequada e instalações

especiais;

c) estimularão as atividades de educação física e de desportos, mantendo,

para o cumprimento desta norma, orientação adequada e instalações

especiais. (Redação dada pelo Decreto-lei nº 464, de 1969)

Não obstante, a obrigatoriedade da prática de EF nos cursos de ensino superior

só viria com o Decreto-lei nº 705 de 25 de Julho de 1969, cujo artigo primeiro explicita

que será obrigatória a prática da EF em todos os níveis e ramos de escolarização, com

predominância esportiva no ensino superior”(s/p).

Em relação a isso, Castellani Filho (1988) afirma que

(...) coube a EF o papel de, entrando no ensino superior, por conta do

Decreto-lei nº 705/69, colaborar, através de seu caráter lúdico esportivo,

com o esvaziamento de qualquer tentativa de rearticulação política do

42

movimento estudantil. Evidenciava-se, dessa forma, os traços alienados e

alienantes absorvidos pela “personagem” vivida pela EF (p. 121).

Por esse prisma, a EF tratada no ensino superior agiria como uma espécie de

circo imbuído de entreter a ociosidade das cabeças subversivas e de seus simpatizantes,

fato que foi corroborado pela LDB 5.692/71 em seu Decreto nº 69.450, capítulo III,

artigo 13:

Art . 13. A prática da Educação Física no ensino superior será realizada por

meio de clubes universitários, criados segundo modalidades desportivas ou

atividades físicas afins, na conformidade das instalações disponíveis, os

quais se filiarão à Associação Atlética da respectiva instituição..

Sendo assim, a prática de atividades desportivas nas aulas de EF dentro do

âmbito universitário estaria relacionada à tentativa de auxiliar a desmobilizar

manifestações contra o governo militar. Diante disso é latente, mas não menos

perniciosa, a intenção do governo de conduzir as ações sociais no período militar.

Lembremos ainda que os movimentos estudantis foram preocupações constantes do

governo, portanto é perfeitamente plausível pensarmos, como Castellani Filho (1988),

que o governo militar concebeu uma EF no ensino superior com intenções

domesticadoras.

Apesar da reforma do ensino superior de 1968 ter usado a EF por meio das

atividades desportivas para incutir as ideologias dominantes em concomitância com o

ideário militar, segundo a literatura especializada é com a reforma do ensino de 1º e 2º

graus isso fica mais evidente.

Embora a EF brasileira estivesse prevista na LDB da Educação Nacional de

1961, ratificada sua obrigatoriedade no ensino primário e médio em seu artigo 22,

comumente afirma-se que sua presença no currículo escolar em âmbito nacional só

ocorreu efetivamente a partir da promulgação da LDB nº 5692/71 e do Decreto nº

69.450/71.

A Lei 5.692/71, reserva, em seu artigo 7, um espaço de obrigatoriedade nos

currículos escolares. Essa obrigatoriedade foi regulamentada com o Decreto 69.450/71 e

justificada segundo os pressupostos que a EF, despertaria, desenvolveria e aprimoraria

as forças físicas, morais, cívicas, psíquicas e sociais do educando, constituindo um dos

43

fatores básicos para a conquista das finalidades da educação nacional. Segundo o

documento, a EF se caracterizava como atividade9, e não como uma disciplina escolar.

No Decreto 69.450/71, promulgado em 1º de Novembro, contempla-se a visão

higienista, corrente no final do século XIX e início do século XX10; a visão da

promoção do rendimento físico referente ao período marcado pelo surgimento da

ideologia nacionalista-desenvolvimentista; e a perspectiva desportiva, visto que o

esporte moderno afirmava-se como fenômeno cultural de massa contemporâneo e

universal, podendo vir a ser uma possibilidade educacional privilegiada.

Pelo Decreto 69.450/71, a aptidão física foi definida como referência

fundamental para orientar o planejamento, controle e avaliação da EF, desportiva e

recreativa, no nível dos estabelecimentos de ensino. A partir da 5ª série do 1º grau as

atividades desportivas deveriam ser incluídas no currículo. No 2º grau, no entanto, a

ênfase deveria recair sobre a conservação da saúde, atrelando aos interesses do mercado

de trabalho os conhecimentos que poderiam ser adquiridos através do desporto, como,

por exemplo, a liderança e a competitividade.

Para Castellani Filho (1998), esse Decreto reforçou o plano utilitarista que o

governo militar arquitetava para a EFE. Para ele, o decreto, nas suas entrelinhas,

pressupunha que a EF tinha como função a formação de um corpo produtivo, portanto

forte e saudável, que pudesse suprir as necessidades de uma nação em desenvolvimento.

Segundo o autor, no artigo 6, ao tornar a prática da EF facultativa nas escolas

aos alunos trabalhadores, às mulheres com prole, aos acima de 30 anos e aos deficientes

físicos e clínicos, denotou-se que aqueles que já estavam prontos para se submeter ao

trabalho fabril não havia necessidade de tomarem parte das atividades de EF nas

escolas. Alegava-se, na época, que os alunos trabalhadores já chegavam com suas

energias desgastadas pela jornada de trabalho diária e deles não se poderiam exigir mais

esforços nas aulas de EF.

Nessas duas intervenções legislativo-educacionais do governo, denota-se o

dualismo entre corpo e mente presente nas intenções subjacentes dos militares, visto que

com a reforma do ensino superior a EF é utilizada como ferramenta de entretenimento

para as cabeças subversivas e na reforma do 1º e 2º graus a função da EF passa a ser, 9 Alguns autores afirmam que a não caracterização da Educação Física como disciplina escolar contribuiu para o baixo status que a

disciplina atualmente goza no âmbito escolar. 10 Em um estudo realizado pelo Prof. Dr. Edivaldo Góis Jr. junto com o Prof. Dr. Hugo Lovisolo em 2003 concluiu-se que o

movimento higienista corrente no final do século XIX e início do século XX ainda prossegue com seus ideais heterogêneos até o fim

do século XX.

44

também, a preparação de corpos fortes e saudáveis, tendo em vista que o ensino de 2º

grau profissionalizante inseria os menos abastados no mercado de trabalho

precocemente. Contudo, aqueles que conseguiam alcançar o ensino superior precisavam

ser cerceados de outra forma. O desporto, junto com as atividades de educação moral e

cívica, também “sugeridas” pelo governo, tornaram-se uma saída considerável.

É claro que o desporto no Brasil não aparece apenas a partir da ditadura militar

pós 64. Estudos de Ferreira e Lucena (2009) mostram que o esporte adentra ao cenário

nacional já no final do século XIX, emaranhado com a ginástica, sem, no entanto, estar

amparado pela legislação, medida que só ocorre no início do século XX.

O esporte responderia, portanto, de forma satisfatória aos anseios dos

governantes, pois atuaria como ópio do povo no sentido de anestesiar a consciência e

dissipar a participação popular nos processos reivindicatórios e decisórios, além de

educar fisicamente indivíduos para o mercado de trabalho. Desta forma, a perspectiva

desportiva, contemplada no Decreto 69.450/71, operaria também como uma forma de

controle social.

A esse respeito Ghiraldelli Jr (1988) corrobora:

(...) a Educação Física Competitivista é um aríete das classes dirigentes na

tarefa de desmobilização da organização popular. Tanto o “desporto de alto

nível”, que é o “desporto-espetáculo”, é oferecido em doses exageradas

pelos meios de comunicação à população, como, explicitamente, é

introduzido no meio popular através de ação governamental. O objetivo de

“dirigir e canalizar energias” nem sempre é dissimulado. A Educação Física

Competitivista faz parte, como as outras concepções que precederam esta

exposição, daquilo que podemos chamar de arcabouço da ideologia

dominante (p.20).

Nessa esteira Bracht (1986) endossa:

(...) A socialização através do esporte escolar pode ser considerada uma

forma de controle social, pela adaptação do praticante aos valores e normas

dominantes, como condição alegada para funcionalidade e desenvolvimento

das sociedades. Um dos papéis que cumpre o esporte escolar em nosso País,

então, é o de reproduzir e reforçar a ideologia capitalista, que por sua vez

visa fazer com que os valores e normas nele inseridos se apresentem como

normais e desejáveis. Ou seja, dominação e a exploração devem ser

45

assumidos e consentidos por todos, explorados e exploradores, como

natural (p.64).

Para tal literatura, concomitante ao exposto, o esporte atendia ainda diretamente

aos interesses industriais, pois além preparar o indivíduo fisicamente para produzir mais

e melhor, também atuaria compensando as tensões do trabalho e, consequentemente,

aumentar-se-ia a produção. Desta forma, o esporte corresponderia às expectativas do

empregador que lucrava mais com um trabalhador mais satisfeito, e também do governo

que satisfazia os anseios do povo por mais emprego, renda e entretenimento. Nesse caso

o entretenimento que compensava as exigências do trabalho vinha com o desporto, ora

praticado efetivamente, ora contemplado passivamente por meio dos espetáculos

transmitidos pelos meios de comunicação em massa.

A despeito da possível compensação que o esporte traria para os trabalhadores

do setor industrial, Proni (2002), em sua análise da obra de Jean Marie Brohm,

Sociologie politique du sport, explica que o autor afirma que o fundamental é entender o

motivo do esporte atuar como válvula de segurança e, para isso, Brohm recorre às

teorias freudianas.

Seguindo por esse caminho, o autor afirma que o esporte é um espaço que se

permite, através de regras pré-estabelecidas, que se descarregue a agressividade humana

de maneira controlada. No plano coletivo, o espetáculo esportivo permite que as paixões

e os instintos inibidos se liberem sem perigo e nem remorso. É uma espécie de

terapêutica social ancorada na identificação entre atleta e espectador e que permite que

o último, mesmo sem vivenciar efetivamente as emoções esportivas, consiga

experimentar emoções fortes e elementares proporcionadas pelos atletas com os quais se

identificam.

O grande problema, segundo Brohm, é que o esporte procurado pelos indivíduos

para compensar as atividades industriais segue os princípios da produção capitalista, o

que acaba por não compensar inteiramente as tensões provocadas pelo trabalho. Deste

modo, o espetáculo esportivo induz à regressão emocional da massa de espectadores e

produz uma regressão intelectual, além de induzir ou representar uma intensa sessão de

mimetismo social.

Diante dessa visão, podemos inferir que o desporto apropriado pelo setor

industrial durante o regime militar, podia estar carregado de intenções subjacentes. Não

obstante, o governo legalizou, por meio dos decretos, a prática esportiva no âmbito

46

escolar, e incentivou sua continuidade como atividades de lazer. Talvez essa relação

entre as Leis e Decretos promulgadas pelo governo e os interesses industriais não tenha

acontecido de forma tão asséptica.

Para Castellani Filho (1988), o governo militar, através de decreto, arquitetou

uma EFE esportivizada com o intuito de que os valores implícitos à prática esportiva,

como, por exemplo, a competição, atenderiam as necessidades de um sistema

econômico que buscava consolidação no Brasil - o capitalismo – e, em concomitância

com as políticas educacionais norte-americana, que exerceram forte influência na forma

de concebermos a educação nacional.

Betti (1991) sintetiza bem o que é corrente na literatura especializada a respeito

da apropriação e tentativa de legitimação esportiva pela via estatal. Para ele,

o esporte pareceu também vir ao encontro da ideologia propagada pelos

condutores da revolução de 1964: aptidão física como sustentáculo do

desenvolvimento, espírito de competição, coesão nacional e social,

promoção externa do país, senso moral e cívico, senso de ordem e disciplina

(p.161).

Diante desses interesses explícitos e subjacentes do governo militar e do setor

industrial nas abundantes possibilidades desportivas, tratou-se logo de encomendar, em

1969, ao Departamento de EF do MEC um documento intitulado Diagnóstico da EF e

dos Desportos que veio a ser realizado pelo IPEA (Instituto de Pesquisas Econômicas

Avançadas do Ministério do Planejamento e da Coordenação Geral), onde foram

retratadas as condições da EF e dos Desportos no país.

O diagnóstico encomendado colaborou para que a Divisão de Educação Física

(DEF) fosse substituída pelo Departamento de Educação Física (DED), sendo essa

medida adotada pela conclusão que a DEF era altamente desorganizada. Segundo

Oliveira (2001), não demorou para que fosse criado o Departamento de EF e Desporto

pelo Decreto 66.967 em 27 de julho de 1970, com a incumbência de coordenar o

desenvolvimento da EF, dos desportos estudantis e da recreação no país, em

consonância com as diretrizes para o setor.

47

De acordo com Betti (1991), é nesse período que as políticas nacionais para o

setor começam a ser concebidas dentro de um sistema piramidal11 para a EF no Brasil.

Não obstante, a intenção da massificação esportiva só seria explicitada em 8 de Outubro

de 1975, com a lei 6.251, que definiu os objetivos da Política Nacional de EF e

Desportos e encarregou o MEC de elaborar o Plano Nacional de EF e Desportos

convergindo com a LDB 5.692/71 e Decreto 69.450/71, culminando na comumente

propalada esportivização da EFE brasileira.

A Política Nacional de EF e Desportos foi definida com os seguintes objetivos

básicos: I – Aprimoramento da aptidão física da população;

II- Elevação do nível dos desportos em todas as áreas;

III- Implantação e intensificação da prática dos desportos de massa;

IV- Elevação do nível técnico-esportivo das representações nacionais;.

V- Difusão dos desportos como forma de utilização do tempo de lazer.

(BRASIL, 1975)

Já o Plano Nacional de EF e Desportos (PNED), segundo Pinto et al (2009),

tinha 26 objetivos gerais que deveriam ser cumpridos por três programas: o PRODED

(Programa de Desenvolvimento da EF e Desportos); o PATEF (Programa de

Assistência Técnica e Financeira a Programas de EF); e o PIDIC (Programa de

Intercâmbio e Difusão Cultural).

Mais à frente, o PNED tratou de enaltecer as qualidades provenientes da prática

esportiva, não só relacionadas ao bem estar físico, como também social. A intenção do

governo se estendeu a convencer a sociedade dos benefícios da prática esportiva em

consonância com sua massificação. Desta forma, estar-se-ia descobrindo e preparando

futuros atletas que representariam o Brasil no cenário nacional e elevando o nome do

país internacionalmente através do desporto.

Nessa perspectiva, o eixo da massificação esportiva estaria nas quadras das

escolas, consequentemente nas aulas de EF, isso porque a escola gozava de certo

prestígio social o que colaboraria para que o esporte praticado em suas estruturas se

legitimasse por meio de valores educacionais. Mais que isso, advogou-se pelos valores

11 Segundo Krawczyk et alii, citado por Betti (1991), a origem filosófica do modelo piramidal pode ser encontrada na máxima

atribuída ao Barão de Coubertin, segundo a qual é necessário que 100 pessoas façam exercícios físicos para que 50 cheguem a

praticar esporte e que são necessários 20 especialistas para alcançar 5 recordes.

48

sociais que o esporte poderia trazer em seu bojo, ajudando a legitimar sua presença no

sistema educacional. Isso culminou numa influência do ideário do rendimento esportivo

no âmbito escolar, já que a intenção do governo, segundo a literatura especializada, era,

explicitamente, a descoberta de atletas de alto nível.

Betti (1991) é enfático ao tecer considerações sobre esta política e o plano para

a área decorrente disso: “Na verdade, o principal efeito da Política Nacional de

Educação Física e Desportos e do PNED foi elevar o esporte ao primeiro posto nas

preocupações nacionais, e esportivizar definitivamente a Educação Física Escolar.

Pinto et al. (2009) afirmam que nesse arcabouço de intenções gastou-se 4 bilhões

de cruzeiros, reajustados até 1985, com 11.600 peças gráficas, além da produção de

filmes técnicos, filmetes de divulgação em TV, exposições, frases veiculadas em rádios

e televisão e palestras. No Brasil, não há conhecimento de investimento em uma política

de tal envergadura para a EF e o esporte antes desta.

De acordo com a investigação desses autores, uma das formas bastante efetivas

do DED/MEC convencer a sociedade dos benefícios da prática esportiva foi a criação e

difusão de impressos pedagógicos, como a revista de história em quadrinhos Dedinho,

que induzia alunos de 7 a 14 anos, por meio de estórias infantis, a praticar esportes.

Segundo Pinto et al. (2009), a revista trazia estórias infantis que atrelavam as

brincadeiras tradicionais aos conteúdos esportivos. Os personagens da revista

enalteciam os valores das práticas esportivas e incitavam os leitores às competições

esportivas escolares.

Veja o que Pinto et al. (2009) tecem a respeito da Revista Dedinho:

(...) Tais aspectos são bastante significativos. Primeiro, porque dão mostras

da materialidade da intenção do Governo Federal em atingir o público

infantil, procurando com isso produzir, desde a infância, a pretendida

“mentalidade desportiva” e, com ela, os princípios desejados de ordem e de

disciplina, fundamentos do tão propagado progresso que o governo militar

defendia. Segundo, porque a revista, sendo um potente veículo de circulação

de múltiplas representações de esporte, configurou-se como dispositivo de

prescrição e tentativa de conformação das práticas de esporte na

comunidade em geral e dentro dela a escola (e nela a Educação Física e os

sujeitos com ela envolvidos). É neste sentido, que ela é aqui considerada

central para potencializar o pretendido movimento de escolarização do

esporte, e de esportivização da Educação Física, naquele momento (p. 6-7).

49

Apesar da Revista Dedinho ser direcionada ao público infantil, segundo os

autores, a prática de esportes por esse público também poderia influenciar a prática

desportiva em adultos. Além do mais, a revista também direcionava os professores de

EF que eram orientados a elucidar questões sobre o material distribuído gratuitamente.

Por esse caminho de imposição cultural, através dos mais diferentes

mecanismos, alguns navegando entre a opressão e o consentimento, como é o caso da

promulgação de leis e decretos e a Revista Dedinho, o modelo piramidal de

democratização do esporte, que concebe a EF e o Esporte a partir de um modelo

hierárquico caracterizado pela dependência dos níveis mais altos com relação aos níveis

mais baixos, adentra os espaços da EFE por atender aos anseios dos governantes em ver

o Brasil se tornar uma potência olímpica, além de outros fatores já citados.

Segundo a literatura especializada a política do esporte escolar no Brasil, desde

sua origem, teve como intenções subjacentes atender ao desporto de alto nível, trazendo

prestígio internacional para a nação, e não, propriamente, inserir o desporto como

instrumento de socialização e apropriação desse patrimônio no âmbito escolar.

A esse respeito Betti (1991) é categórico

Embora não haja disponível uma avaliação documentada do PNED, a

observação da realidade evidencia que muito pouco foi feito quanto à

Educação Física escolar, o que será admitido em documentos posteriores do

MEC, elaborados após 1980. Na verdade, o principal efeito da Política

Nacional de EF e Desportos e do PNED foi elevar o esporte ao primeiro

posto nas preocupações nacionais, e esportivizar definitivamente a Educação

Física escolar. (p.111)

Para o autor, a EF no período entre 1969 a 1979 assinalou a ascensão do esporte

à razão de Estado e a inclusão do binômio EF/Esporte na planificação estratégica do

governo. Nesse período ocorreram profundas mudanças na política nacional e na EF,

que se subordinou ao sistema esportivo, bem como ocorreu a expansão e sedimentação

do sistema formador de recursos humanos para a EF e o esporte.

Diante dessa pirotecnia que o governo realizou pelo desporto na escola,

comumente se afirma pela literatura especializada que, com o palco12 montado, os

12 “Palco” é um termo cunhado por nós a fim de caracterizar as possíveis manobras legislativas proferidas pelo governo ditatorial

com a finalidade de impor as suas ideologias.

50

professores de EF transformaram suas práticas pedagógicas em práticas

hegemonicamente desportivas visando ao esporte de alto nível.

Soares et al. (1992) afirma que, no período compreendido por este estudo, o

esporte passou a ser o conteúdo hegemônico nas aulas de EFE e estabeleceu novas

relações entre professor e aluno, passando da relação professor-instrutor e aluno-recruta

à de professor-treinador e aluno-atleta.

Veja o que Darido e Rangel (2005) nos dizem a respeito da hegemonia dos

conteúdos esportivos na EFE

O sucesso da Seleção Brasileira de Futebol em duas copas do mundo (1958

e1962) levou à associação da Educação Física escolar com o esporte,

especialmente o futebol. O terceiro título na copa de 1970 foi o auge da

política “pão e circo”, contribuindo para manter o predomínio dos

conteúdos esportivos nas aulas de Educação Física. Essa política consistia

em prover as necessidades básicas da população, assim como os meios para

seu entretenimento (p.3).

Bracht (1992) relembra que, no Brasil os elementos da cultura

corporal/movimento predominantes na Educação Física foram, num primeiro momento,

a ginástica e, num segundo - e esta é a situação atual - o esporte “(p.57).

Por esse prisma apresentado, o governo militar conseguira incutir nas quadras de

aula seus ideários arquitetados, pois no cerne do desporto praticado na EFE estariam as

pretensões subjacentes que convergiam com os interesses do governo militar, do setor

industrial e de seu parceiro estrangeiro.

Dentro desse processo de esportivização da EFE, os métodos adotados para o

ensino das destrezas esportivas também estavam em consonância com os métodos

adotados por outras disciplinas, ou seja, a EFE “começa13” a ser concebida numa

tendência tecnicista de educação, calcada no cientificismo, que também era parte

integrante da proposta educacional pensada nos princípios da racionalidade, eficiência e

produtividade.

As afirmações de Darido e Rangel (2005) fornecem um panorama do que

comumente a literatura especializada proferiu sobre o modelo tecnicista na EFE 13 “Começa” aparece entre aspas justamente por entendermos que a Educação Física dentro do âmbito escolar pode não ter

acontecido como comumente é difundido pela literatura. Desta forma, não podemos afirmar que a Educação Física escolar a partir

do aparato legislativo começou a ser concebida dentro de uma proposta tecnicista. Portanto apesar dos documentos nos levarem a tal

direção, talvez somente os professores que atuaram no período possam nos desvendar como era sua prática pedagógica.

51

É nessa fase da história que o rendimento, a seleção dos mais habilidosos, o

fim justificando os meios estão mais presentes no contexto da EF na escola.

Os procedimentos empregados são extremamente diretivos, o papel do

professor é bastante centralizador e a prática, uma repetição mecânica dos

movimentos esportivos (p.4).

Segundo a literatura especializada o tecnicismo pautou as práticas pedagógicas

dos professores de EFE no período militar, visto que a reforma tecnicista foi empregada

em todo o sistema educacional, e a EF amparada pela legislação, não ficaria fora dessa

nova forma de conceber a educação no Brasil.

Neira e Nunes (2009) afirmam que

(...) Pela sua peculiaridade de atividade física regrada, com regulamentos,

especialização de papeis, competição, meritocracia e por apresentar

condições de medir, quantificar e comparar resultados, além da crescente

valorização de sua espetacularização fomentada pelos meios de

comunicação, o esporte tornou-se o meio reconhecidamente eficaz de

preparar o homem para um sistema de hierarquização, em que os melhores –

aqueles que alcançam o topo da pirâmide- deveriam comandar as camadas

subsequentes e subalternas, compostas por aqueles que não conseguiam

apresentar resultados similares. A EF, em íntima consonância com a

pedagogia da época funcionou como processo de seleção natural (p.74).

E continuam, O ensino dos esportes, pautado por uma metodologia da divisão e repetição

de fundamentos, prevaleceu no Brasil por um longo tempo. A política

educacional dos anos da ditadura militar contribuiu para tamanha presença

por causa das preocupações com a ocupação útil do tempo livre, com a

educação integral dos alunos e com os valores morais de um mundo em

crise. Em razão disso, fez-se a apologia da técnica e da ciência em nome de

um desenvolvimento aceito como legitimo e desejado ao espírito nacional

(p.75).

Desenhava-se, então, uma EFE esportivizada, pautada nos conceitos do

modernismo, como panacéia para todos os males da humanidade. Ora veladamente, ora

não, atribuía o sucesso ou o fracasso exclusivamente ao indivíduo, isentando o Estado

das suas atribuições e acobertando a dinâmica social presente no contexto educacional,

52

configurando uma prática utilitarista, tendo o conteúdo esportivo hegemônico, como

meio e fim em si mesmo, e o tecnicismo como concepção pedagógica adotada

oficialmente.

Para além desses fatores, os cerceamentos do governo em relação às práticas

pedagógicas viriam também através da publicação da Revista Brasileira de EF e

Desportos14 publicada a partir de 1968. Neste documento oficial, o governo deixava

clara suas pretensões em relação à EFE ao optar pelo esporte numa tendência

pragmática em detrimento de uma tendência dogmática.

Segundo Oliveira (2001), a tendência pragmática se pautava na teoria de que o

homem é de natureza competitiva e isso geraria uma sociedade competitiva, orientada

por um contínuo processo de seleção. Neste caso, o indivíduo é orientado para o

resultado e para a competição. Para muitos teóricos pragmatistas, o esporte era

sinônimo de EF. Já a tendência dogmática pautava-se por uma preocupação com a

humanização da sociedade a partir de práticas corporais, ou seja, a EF contribuiria para

a educação integral dos indivíduos.

É importante abrirmos um parêntese a esse respeito. Oliveira (2001) ao analisar

os 53 volumes da Revista, concluiu que havia um profundo embate entre pragmáticos e

dogmáticos. Segundo o autor, é apenas em meados da década de 70, que a perspectiva

pragmática ganha força e se torna hegemônica dentro do periódico. Isso denota que,

mesmo num documento produzido pelo governo, as concepções sobre qual perspectiva

adotar sobre o fenômeno esportivo dentro dos espaços escolares não eram convergentes.

A Revista Brasileira de EF e Desportos perdurou como posição oficial até 1984,

no entanto já enfraquecida pelo proximidade do fim do governo que a concebera. Além

disso, com o período de redemocratização que adentrava no final da década de 70, a

exemplo do que acontecera com toda a educação, começam a surgir novas concepções

pedagógicas15 para a EFE com o intuito de rescindir com método esportivista e seletivo

adotado até então, o que mais à frente culminaria com a tão propalada crise de

identidade pedagógica da EF, assunto que ainda hoje permeia os nichos acadêmicos da

área.

14 No início a Revista de Educação Física e Desportos denominava-se Boletim Técnico e Informativo de Educação Física. Depois,

seu nome foi alterado para Revista Brasileira de Educação Física e Desportiva (1970), Revista Brasileira de Educação Física (1971)

e, finalmente, Revista Brasileira de Educação Física e Desportos (1975). 15 A psicomotricidade é o primeiro movimento mais articulado surgido a partir da década de 70, em contraposição ao modelo

esportivista adotado até então. O autor que mais influenciou esse pensamento em nosso país foi o francês Jean Le Boulch (Darido e

Rangel, 2005, p.7).

53

Diante dessa história que nos é contada, navegamos por uma EF utilitarista que,

segundo a literatura aqui exposta, tinha a incumbência de satisfazer diretamente aos

interesses do setor industrial, do governo e de seu parceiro estrangeiro por meio do

desporto.

A concepção pedagógica adotada para tal intento foi o tecnicismo, baseado em

conceitos científicos coadunados com uma política e uma concepção filosófica de

massificação esportiva. Dentro dessa arquitetura, a EF era a peça chave na consolidação

da ideologia estatal, pois era por meio dela que o desporto adentraria os espaços

escolares com as finalidades já citadas por este estudo.

Feita essa síntese do que comumente a literatura nos conta, cabe aqui uma

questão: Qual foi o papel do professor de EFE atuante em meio a todo esse processo de

imposição da ideologia estatal?

Ainda sem a resposta para tal questionamento, no capítulo subsequente nos

propusemos a analisar algumas contradições e linearidades históricas proferidas pela

literatura, o que, esperamos, nos ajudará a atingir o propósito deste estudo.

2.4. Crítica à literatura especializada

Antes de começarmos nossa crítica em relação às interpretações da literatura

especializada, é importante ponderarmos que boa parte dessa história contada emergiu

nas décadas de 80 e início da de 90, imersos num período de efervescência política e

acadêmica pelo qual passava o país, e no qual, muito provavelmente, a censura ditatorial

(medida comum no período) tenha fomentado mecanismos de resistência expressados

nas obras estudadas por este trabalho, no período pós-ditadura. Por isso é importante

que façamos tal análise olhando para trás com os olhos de hoje, mas não

desconsiderando o contexto vivido no passado por aqueles autores que, com certeza,

foram e continuam sendo marcos para a análise da EFE brasileira.

2.4.1- Para uma visão distante da linearidade

Diante deste levantamento bibliográfico que fizemos para traçar o decurso

histórico da EF durante o regime militar, notamos que a literatura especializada fez suas

análises baseadas em leis, decretos e periódicos promulgados no período, além de um

referencial teórico de forte acento crítico, no qual os autores concebem seus

posicionamentos.

54

Concordamos com o discurso que concebe a EF no âmbito escolar carregada das

mais diversas intenções, muitas delas em consonância com o ideário estatal. Sem

dúvida, no plano das teorias, o governo contribuiu com as propostas educacionais

elaboradas para a esportivização da EF.

A atenção em diagnosticar como estava a EF no cenário nacional, as referências

ao esporte nas leis educacionais, a criação da política e do plano nacional de EF e

Desportos e a consequente implementação das suas propostas nos levam a crer que a

partir da década de 70 houve um grande alvoroço no cenário nacional com o potencial

esportivo.

Nas duas grandes reformas educacionais e em outros muitos decretos

promulgados durante a ditadura militar, enalteceu-se e procurou-se legitimar

socialmente os valores advindos da EF e do esporte, como pontuamos neste trabalho.

De acordo com as nossas investigações não houve em nenhum outro regime político

brasileiro uma atenção tão minuciosa para com o fenômeno esportivo antes do período

militar. Por um lado, isso denota certa preocupação que havia em torno do desporto

naquele período, porém não quer dizer que não houve uma demanda deflagrada naquele

momento, ocultada pela literatura para a elaboração de legislações e decretos

educacionais esportivos.

Betti (1991) não discorre sobre tal demanda, mas deixa nas entrelinhas o que

acabamos de inferir: “A regulamentação estabelecida pelo Decreto 69.450 foi recebida

com euforia pela categoria dos professores de Educação Física, em especial a

determinação de três aulas semanais no ensino médio” (p.105).

O decreto veio, portanto, satisfazer a uma classe de docentes que passara a

coabitar nos espaços escolares com professores de disciplinas que já tinham

legitimidade social. Assim sendo, podemos pensar que as três aulas por semana não

contentaram os professores apenas por aumentar a quantidade de docentes

contratados16, mas também por estar contemplando por meio disso, uma tradição

histórica, regulamentada por lei, a aptidão física. Por esse prisma a “euforia” citada por

Betti (1991) só aconteceu porque os professores viram contemplados no decreto, suas

expectativas, necessidades e interesses entremeados com as tradições da área.

Endossando o que acabamos de inferir, Oliveira (2003) comenta que

16 Com a efetividade da EF nas escolas em todo o território nacional e com as três aulas atribuídas a área, consequentemente

aumentariam as vagas para professores de EFE no ensino público.

55

(...) políticas públicas para a EF brasileira nos anos da ditadura militar

teriam sido pensadas, gestadas e implementadas, não só a partir dos

interesses, como com a colaboração ativa dos profissionais da área, a partir

de uma acirrada luta de representações – luta cultural se preferirmos (p.172)

Ainda no que tange à força da lei, Betti (1991) ao afirmar que o efeito da Política

Nacional de Educação Física e Desportos foi a definitiva esportivização da EFE, acaba

por colocar sob a égide da ciência positivista as ações de políticas públicas e dos

diversos agentes envolvidos na sua construção, numa relação de causa e efeito que

empobrece a história por não levar em conta a dinâmica social e a luta de representações

que havia no período. É bem verdade que nesse emaranhado de conflitos podem ter

havido, momento sim, momento não, resultados que atendessem mais a um grupo do

que a outro, contudo, não podemos admitir que isso suprima todas as ações dos sujeitos,

que fizeram parte da construção da EFE.

Diante disso, essas proposições nos levam a conjecturar se através de todo esse

aparato legislativo e de seus possíveis cerceamentos, coadunados ou não com diversos

agentes sociais, a EFE se esportivizou apenas a partir da instauração do governo militar

pós 64.

Para esclarecermos um pouco esse questionamento recorremos a um estudo feito

por Ferreira e Lucena (2009) onde apontam que o esporte 17 adentra ao cenário nacional

nas escolas já no final do século XIX emaranhado com a ginástica. Entretanto, foi a

partir do início do século XX que o fenômeno esportivo recebeu um forte respaldo

legislativo e começou a ganhar notoriedade nacional.

As fortes investidas legislativas, que ocorreram principalmente durante o Estado

Novo, aliadas à criação da Escola Nacional de EF e Desportos em 1939 (já a partir daí o

termo desporto era atrelado à EF) e do Conselho Nacional de Desportos, a

industrialização, urbanização e os meios de comunicação, crescentes a partir da segunda

metade do século XX, o crescimento do esporte como espetáculo na esfera global,

apresentam-se como outros fatores que impulsionam o esporte a constituir hegemonia

17 É importante ressaltarmos que quando nos propusemos a analisar alguns discursos correntes propalados pela literatura, o fazemos

sempre tendo como escopo a Educação Física escolar. Sendo assim, quando citamos o Esporte, estamos nos referindo ao esporte

tido como conteúdo da Educação Física escolar e não a outros programas como, por exemplo, o Esporte para Todos, apesar de

termos ciência das suas inter-relações. Para mais a esse respeito ver Esporte para todos: “Popularização” do lazer e da recreação

de Sérgio Teixeira publicado em 2009.

56

na EF, atribuindo a este um símbolo da modernidade, do desenvolvimento (FERREIRA

e LUCENA, 2009, p. 4543).

VAGO (2002), ao analisar a implantação da EF nos recém construídos grupos

escolares de Belo Horizonte no início do século passado, mostra que EF, via ginástica,

coadunavam com o projeto de higienização social e domesticação dos corpos.

Entretanto, revela como os alunos traziam da rua para a escola a prática proibida do

futebol que, aos poucos, passou a ser assumida pela escola como um conteúdo.

De acordo com os estudos desses autores, nota-se que o esporte havia penetrado

na sociedade brasileira desde o fim do século XIX, e, à medida que esse fenômeno foi

ganhando espaço na sociedade também foi adentrando os espaços escolares como um

conteúdo possível.

No trabalho de Oliveira (2001) o autor também questiona sobre a esportivização

da EF imposta pela ação estatal durante o regime militar. Para ele, se a esportivização

ocorreu, e em muitos casos isso aconteceu e atingiu seu ápice na década de 70, isso se

deu por uma tentativa dos professores de EF de legitimar e nortear uma área sem

respaldo social, que antes da LDB 5692/71 não acontecia efetivamente no interior das

escolas. Além disso, os estudos desse autor mostram que o esporte aparecia nas práticas

de aula e na Bíblia - Programas da Prefeitura Municipal de Curitiba para a área de

EF- mesmo antes das leis e decretos terem sido promulgados durante o regime militar.

Além disso, é importante atentarmos à proposição erigida por Oliveira (2004)

(...) o esporte ganhava destaque na preferência dos professores escolares

pela sua fácil didatização. Ou seja, aquilo que viria a ser denominado de

progressão pedagógica, pelo que o esporte é decomposto nos seus elementos

constitutivos, e sequenciado segundo a seriação escolar, teria significado um

grande facilitador do trabalho diário dos professores, uma vez que a

premissa daquele modelo é que existem fases de desenvolvimento físico-

motor consoantes com determinado grau de dificuldade dos elementos

esportivos a serem aprendidos. Daí as progressões pedagógicas poderem

prescrever o que deveria ser ensinado desde as séries iniciais até os últimos

anos da escolarização, sempre partindo do pressuposto da hierarquia do

conhecimento e, consequente, pré-requisito (s/p.)

Pensando por esse prisma, talvez a ditadura militar tenha sido menos

significativa em relação à esportivização do que realmente se propaga pela literatura.

Talvez, independentemente do governo e de suas políticas, o esporte que emergia como

57

um fenômeno mundial, e não local, se tornaria conteúdo hegemônico nas quadras de

aula de qualquer forma. Bem, como demonstram os estudos citados, o esporte sempre

esteve presente na EFE, ainda que não hegemonicamente.

Sendo assim, como nos elucidam Oliveira (2001), Vago (2002), Ferreira e

Lucena (2009), houve uma configuração de fatores que convergiram e alavancaram o

esporte como conteúdo hegemônico. Entre eles podemos destacar uma ufanista pressão

estatal, mas também um pacto entre diversos agentes sociais – no cerne disso os

professores de EF- para que isso ocorresse.

A esse respeito, apesar de certo determinismo exposto por Betti (1991) é

importante levarmos em conta as considerações feitas pelo autor

... A falta de reflexão teórica e de atitude científica que caracterizou a

Educação Física como um todo até um tempo atrás, e ainda é traço marcante

da atuação de seus profissionais, sempre facilitou a rápida e entusiástica

adesão aos discursos oficiais, principalmente porque eles tenderam a

ressaltar as “funções positivas da Educação Física e a dar-lhe uma função

concreta, e assim os profissionais sentem-se reconhecidos e valorizados no

Estado, malgrado queixem-se da existência deste reconhecimento e

valorização nos círculos sociais mais próximos e em outras áreas

profissionais (p.164).

Não podemos admitir a hipótese que tenha havido uma adesão irrefletida pelos

professores de EF ao discurso oficial como nos afirma Betti nessa citação acima, pois

acreditamos num consórcio entre os diversos interesses para que determinada prática

seja efetivada no cotidiano pedagógico. Entretanto é importante que tenhamos claro o

poder do discurso oficial atrelado aos princípios científicos, o que sem dúvida, para uma

classe de docentes que adentrava efetivamente aos espaços escolares foi um dos grandes

sustentáculos para a área. Porém isso não quer dizer que os professores tenham acatado

tal aporte estatal/científico sem uma reflexão teórica, talvez, ao contrário, os professores

só adotaram os princípios científicos por refletirem18 que enveredando sua prática por

determinados caminhos, conseguiriam justificar sua presença no âmbito escolar. Por

18 Por defendermos a capacidade dos professores em refletir sobre suas práticas, independentemente de buscar referências

científicas a todo momento, somos levados a não concordar com Betti (1991, ao afirmar que a falta de reflexão teórica caracterizou

a Educação Física como um todo, pois nos parece que ele acaba por dicotomizar prática e teoria, como se fossem independentes.

58

esse prisma, muito distante de uma falta de reflexão teórica afirmada por Betti (1991)

esses professores souberam com muita destreza se valer da ciência como forma de

legitimação social, e, por mais que os discursos oficiais estivessem coadunados com os

princípios científicos, não podemos afirmar que os professores acataram tais discursos

em sua plenitude, e se adotaram, podemos inferir que estes estavam carregados dos

diversos interesses, inclusive dos professores de EF.

Ainda, a respeito da hegemonia esportiva e a luta por representações, podemos

considerar que os esportes que predominaram e ainda predominam nos espaços

escolares são aqueles advindos do seio da burguesia européia, e sua apropriação pela

classe subalterna pode ter acontecido pela tentativa de imposição cultural. Não

queremos ser simplistas em dizer que isso aconteceu em uma situação verticalizada e

que não houve conflito e resistência nesse processo. Acreditamos que houve conflitos e

resistências e sempre haverá, entretanto, dentro dos espaços escolares, muito do que se é

valorizado e legitimado são práticas corporais euro-estadunidenses, talvez porque, como

nos adverte Oliveira (2001),

(...) parece-me claro que a busca de hegemonia pressupõe a conformação

social. E esta se dá pela conformação cultural. Dentro das tendências em

oposição e luta na história, dentro das possibilidades históricas manifestas

em cada período específico, o grupo (ou grupos) que exercem o poder

político, necessariamente procuram conformar práticas culturais capazes de

contribuir para a manutenção e perpetuação desse poder. A Educação Física

não escapou, historicamente, a essa dinâmica. Porém a luta cultural

pressupõe que uma das tendências em conflito na história se sobreponha às

demais, a partir dos interesses daqueles grupos detentores, naquele momento

preciso, do poder político. Com isso, as tendências que não lograram vingar

são obscurecidas pela própria dinâmica cultural, até que novas condições

apareçam para o seu afloramento. Mas esse é um movimento afeito a todas

as dimensões da cultura, ou se preferirmos, práticas culturais. (p. 206 e

207).

Perante isso, nosso pensamento caracteriza-se imerso a uma situação

ponderativa, pois, por mais que concordemos que no período ditatorial o processo de

esportivização da EFE atingiu seu ápice respaldado pela legislação, coadunado com os

ideários do governo militar pós 64, somos céticos que isso tenha acontecido apenas por

uma imposição maquiavélica e desenfreada impulsionada pela ação estatal. E mesmo

59

que tenha havido diversos cerceamentos, no que tange à efetiva prática pedagógica do

professor atuante, quem garante que este agiria de forma submissa e não criaria, mesmo

desprovido de uma consciência crítica, seus mecanismos de resistência? Ou seja, talvez

as necessidades individuais, as expectativas e os interesses daqueles sujeitos, formados

a partir de uma perspectiva de classe, fossem supridos pela apropriação e ensino da

prática esportiva.

Ainda sem contornos conclusivos, nos parece um tanto açodado atribuir ao

governo militar a responsabilidade por ter esportivizado a EFE. Se, por um lado,

aqueles governantes ancoraram a área com uma enxurrada de leis e decretos, por outro

isso pôde ter acontecido pela exigência das camadas sociais em desfrutar de um

fenômeno social que tomava conta do cenário mundial. Como nos adverte Maia (2006):

Algumas iniciativas encontradas em países da Europa a partir de 1967 vão

também definindo esta tendência da democratização da atividade esportiva

através da aplicação concreta dos novos ideais em torno do esporte. O

primeiro país a implementar uma campanha para massificar o esporte foi a

Noruega, sendo seguido por outros países europeus e na América, como os

EUA e o Canadá. Vale lembrar o paralelo com campanha similar feita na

Suécia em 1912 em relação à Educação Física de mesma denominação:

“Educação Física para Todos”. Ambas tinham a intenção de fazer com que

a população incorporasse como prática cotidiana o exercício físico, seja

através da Educação Física no início do século XX, seja com o esporte a

partir da década de 60 deste mesmo século até o momento atual (p.2).

A criação do Jogos Escolares Brasileiros - JEB’s - em 1969, a campanha

midiática denominada Mexa-se19, o Plano Nacional de EF e Desportos - PNED, o

projeto Esporte para Todos foram ações que advogaram pelo potencial esportivo e

foram tomando conta do cenário nacional no período ditatorial entremeados com a EF

escolar. Entretanto, não podemos inferir que isso seja marca deste governo.

A percepção do “esporte para todos” se dá no âmbito internacional. Pode-se

dizer que o Brasil é influenciado por um movimento que vai se consolidando

internacionalmente. Em 1978, a UNESCO publica a “Carta Internacional de

19 Campanha realizada pela Rede Globo de televisão a fim de alavancar o segmento esportivo no país, advogando pelos benefícios

advindos do esporte.

60

Educação Física e Esporte”, reafirmando o pressuposto do direito de todos

ao esporte já contido na Carta do Conselho da Europa (MAIA, 2006, p.4).

Mesmo quando nos referimos ao programa Esporte para Todos, segundo

Valente e Almeida Filho [200?], a emancipação social pela livre iniciativa explicaria

também o aparecimento de programas recreativos de livre acesso a qualquer pessoa em

época bem anterior às propostas da Carta Européia do Esporte para Todos do início da

década de 1970. A campanha EPT foi um exemplo típico disso.

A ênfase nas iniciativas locais, com suas próprias denominações, dissolveu a

expressão “Esporte para Todos” e consolidou o uso da categorização

“esporte não formal” de sentido mais técnico. Efetivamente, o EPT

brasileiro, enquanto proposta sobreviveu, mas retornou às suas origens,

confundindo-se com a recreação e o lazer. [VALENTE e ALMEIDA

FILHO, 200?, s/p].

Não se trata de absolver o Estado ou condená-lo por isso ou aquilo, e sim

apontar para possíveis exageros quando se delega a responsabilidade ao governo militar

por ter esportivizado a EFE. Talvez seja mais prudente pensarmos que o esporte é um

fenômeno que, por diversos fatores, ganhou notoriedade no cenário mundial e,

independentemente das políticas ou do sistema econômico adotado, se fez muito

presente. Os países socialistas e a consequente Guerra fria são emblemáticos a esse

respeito.

Outro ponto que merece atenção é o poder de controle social que teria o esporte

apropriado pelo governo e incutido na sociedade. Aqui, outra vez, a literatura

especializada faz suas análises pautadas em um verticalismo ideológico imposto pela

visão estatal.

Neste aspecto, mais uma vez, nos posicionamos de forma ponderativa porque

compactuamos com as ideias daqueles que defendem que o esporte, numa perspectiva

pragmática, poderia estar em consonância com os interesses do governo militar na

construção de uma nova sociedade. Contudo, se pensarmos nesse poder alienante do

esporte e que poderia ser arquitetado para anestesiar a consciência do indivíduo

controlando suas ações, também podemos pensar que o esporte, por meio de suas ações

sociabilizantes, poderia atuar como rearticulador de movimentos políticos contrários aos

que vigoravam até então.

61

Desta forma, o esporte atuaria como meio para uma ação transformadora das

políticas ditatoriais, o que iria de encontro com o discurso proferido pela literatura

especializada. Assim sendo, por mais que consideremos a intenção do governo de se

apropriar do fenômeno esportivo para anestesiar a consciência do indivíduo, como nos

adverte Ghiraldelli (1988), na prática pedagógica as coisas podem não ter saído como

comumente se propala, ou seja, o esporte ao invés de exercer controle social estaria

atuando, aí, como revés das intenções do governo. Aqui surge outro questionamento:

Será que os burocratas estatais, que haviam planejado o golpe militar e arquitetado um

modelo de desenvolvimento em consonância com o governo norte-americano, foram tão

ingênuos a ponto de não pensar nesse possível revés do papel exercido pelo esporte? Ou

ainda: Será que a literatura especializada fez uma leitura demasiadamente crítica, a fim

de encontrar a qualquer preço um culpado para a atual situação da EFE? Talvez, como

nos alertam Melo e Nascimento (2010), deveríamos aprofundar o sentido da crítica e

reconhecer que médicos e militares foram importantes por emprestar prestígio e

fundamentação à uma área de conhecimento em construção e pioneiros na defesa e na

consideração de suas possibilidades.

Bracht (1986) nas considerações que tece a respeito dos valores e normas

convergentes entre o esporte e a estrutura social desejável, flexibiliza a ação alienante

desse fenômeno ponderando que o esporte é aquilo que fazemos dele, enfatizando a

ação docente no seu trato pedagógico. Contudo, suas análises são feitas como se o

esporte seguisse certa lógica de inculcação ideológica nas sociedades capitalistas e outra

naquelas tidas como socialistas, ou seja, o esporte adotado pelas políticas públicas no

Brasil seria convergente com o modo de produção vigente, mas o esporte adotado pelos

países socialistas seguiriam por outras diretrizes.

Bem, nos cabe aqui questionar se a busca pelo rendimento (muitas vezes a

qualquer custo), as competições sob a égide de regras e valores universais impostos

verticalmente, o espírito de competição, entre outras normas e valores apontados pelo

autor, contribuíram para fortalecer o sentimento coletivo em detrimento do individual

nos países socialistas, haja vista que o esporte olímpico era disputado com afinco por

ambas às correntes econômicas. Ou será que, independentemente do sistema

econômico, o esporte se fez presente sob os mesmos princípios?

Ao que nos parece, por mais que Bracht (1986) advogue por um esporte

“socialista” nem mesmo os países com esta diretriz econômica o fizeram dessa forma.

As disputas por medalhas olímpicas durante a guerra fria podem nos oferecer um

62

panorama de como o esporte foi apropriado por ambas as vertentes ideológicas,

enveredando por caminhos muitos parecidos, ou seja, a vitória a qualquer preço.

Entremeado ainda pelo propalado controle social através do esporte, Dantas Jr

(2008), apropriando-se do conceito de alienação de Karl Marx, tece as seguintes

considerações

Entendo que o conceito de alienação é larga e proficuamente utilizado na

relação homem-trabalho material, todavia não é tão simples espraiá-lo para

todas as relações e esferas sociais. Tomando por verdade que o ato de

praticar esporte, ensinar esporte ou lidar com qualquer produto cultural de massa, inclusive a educação, reflete nosso grau de alienação, torna-se

impossível reagir à história que nos conduz como autômatos a um destino

que não nos é factível conhecer. Por este raciocínio, acreditar que o esporte

só aliena nas sociedades capitalistas por estar subsumido à sua lógica

predatória é fechar os olhos à direção esportiva promovida nos países do

socialismo existente, ao longo do século passado. De igual modo, se

acreditar que é na prática política, no movimento contestatório e de ação

que não nos alienamos, sobra-nos muito pouco tempo para desfrutarmos de

caracteres culturais que desvelam a imensa criatividade humana, dentre eles

o esporte. Em assim fazendo, alienamo-nos enquanto homens, negando nossa

capacidade de mediação com a cultura (p.225).

Linhales (1996) corrobora tal perspectiva afirmando que o esporte não é uma

prática de anulação das consciências, e a adesão das massas ao esporte não significou

submissão e aceitação das práticas autoritárias que davam sustentação à ditadura. Fato

concreto foi a derrota que o povo impingiu à Aliança Renovadora Nacional - ARENA,

partido oficial, nas eleições de 1974, alçando o Movimento Democrático Brasileiro -

MDB - à imensa maioria das cadeiras do parlamento nacional.

Seguindo nesta direção, podemos inferir que o esporte, nem anestesiava, nem

subvencionava os indivíduos, ele apenas era praticado, contemplado, adorado. Atribuir

tal dimensão a esse fenômeno acaba, portanto, por abrandar a importância do agir

humano, ou melhor, é como não reconhecer a atuação dos sujeitos com um certo grau

de autonomia em relação aos ditames da economia. Ver a história por essa vertente

acaba por engessá-la, minimizá-la, empobrecê-la, enfim, acaba por desdenhar a

experiência do sujeito na sua construção. Lembremos ainda que o esporte nada mais é

que uma prática da cultura corporal construída por indivíduos de carne e osso que

63

sentem, sofrem, experimentam, agem e que procuraram e continuaram a procurar meios

para satisfazer suas necessidades.

Ainda para efeito desta análise, podemos levar em conta as afirmações que

Castellani Filho (1988) fez a respeito do artigo 6 do Decreto 69.450/71 em consideração

à facultatividade nas aulas dos alunos trabalhadores. O primeiro ponto é que isso não foi

exclusividade do regime militar, mesmo depois da nova legislação educacional

promulgada em 1996 (LDB 9394/96) nos moldes democráticos, a EFE continuou sendo

facultativa para os alunos que estudavam no período noturno e que comprovassem o

exercício do trabalho no horário regular das aulas de EF. Outro ponto é que a EF, por ter

historicamente menos status no âmbito escolar em relação a outras disciplinas, poderia

sim, ser perfeitamente dispensável. Não porque ela já houvesse inserido e preparado o

aluno para o mercado de trabalho, mas talvez porque a dicotomia tão presente entre

corpo e mente -como ainda acontece- favorecesse o segundo, ou seja, a EFE

encarregada de educar o corpo (sic) podia ser descartada.

Em relação às mulheres com prole, outra observação se faz necessária. Apesar

de trabalhos recentes, a exemplo de Sarti (2004)20, enfatizarem o papel da mulher em

diversos movimentos sociais, e também as mudanças efetivas na situação da mulher no

Brasil a partir dos anos 1960 propiciadas pela modernização pela qual vinha passando o

país, comumente boa parte da sociedade brasileira semeava a concepção dos papéis

frágil, dócil, do lar e maternal à mulher, que foram historicamente construídos pelas

relações de poder imbricadas entre os gêneros. Assim sendo, as prioridades das

mulheres com prole giravam em torno do zelar pela família e mais incisivamente no

vínculo entre mãe e filho21.

Fazer esse recorte histórico, como propõe Castellani Filho (1988), é não

considerar a história como fruto de relações sociais, enveredados pelos modos de

produção, que geram relações conflituosas entre os indivíduos e que os mesmos se

20 A presença das mulheres na luta armada, no Brasil dos anos 1960 e 1970, implicava não apenas se insurgir contra a ordem política

vigente, mas representou uma profunda transgressão ao que era designado à época como próprio das mulheres. Sem uma proposta

feminista deliberada, as militantes negavam o lugar tradicionalmente atribuído à mulher ao assumirem um comportamento sexual

que punha em questão a virgindade e a instituição do casamento, ‘comportando-se como homens’, pegando em armas e tendo êxito

nesse comportamento, o que, como apontou Garcia, “transformou-se em um instrumento sui generis de emancipação, na medida em

que a igualdade com os homens é reconhecida, pelo menos retoricamente (SARTI, 2004, p.37).

21 Segundo Sarti (2004) no período da ditadura militar as mulheres militantes não sofreram “apenas” tortura física, mas também a

manipulação do vínculo entre mãe e filho, já que, segundo a autora, esse vínculo torna a mulher particularmente vulnerável e

suscetível à dor.

64

encarregam de resolver. Neste caso, não se trata de facultar à mulher com prole o

trabalho fabril e, sim, situá-la em meio às suas prioridades que foram construídas

historicamente.

Já no que diz respeito aos deficientes físicos, é de suma a importância que

consideremos que essas pessoas eram, em boa parte, alijados do sistema normal de

ensino devido às suas necessidades especiais. A EF, por se tratar de uma atividade que

envolve práticas corporais, além da incipiência dos conhecimentos científicos que

sustentavam a área, permitem compreender a facultatividade da frequência às aulas para

os deficientes físicos. A aptidão física tida como referência para os planos de ensino,

vinha ao encontro das raízes históricas que sustentaram a área em diferentes períodos,

mesmo antes do modo de produção vigente. Parece-nos que o que vigorava no artigo 6

do Decreto 69.450/71 é resultado de uma construção histórica que foi posta em forma

de lei pelo governo com o objetivo de organizar a incipiente área e uma cultura corporal

que pululava no cenário internacional, coadunado, obviamente, com os preceitos

científicos. Não se trata, portanto de excluir aqueles que não serviam para o trabalho

fabril excluindo-os das aulas de EFE, e sim de compreender que naquela época havia,

como ainda acontece atualmente, dificuldades no trato pedagógico para com aqueles

indivíduos, mesmo porque os planos pedagógicos tinham como referência a aptidão

física.

Além disso, consideremos ainda, que a EFE pode não ter sido excludente apenas

para os deficientes físicos, haja vista que as competições escolares promovidas pelo

governo poderiam privilegiar, através dos mecanismos de seleção, os mais habilidosos,

excluindo sutilmente ou não, os que tinham menos habilidade na participação das aulas.

Contudo, temos que levar em conta que essa forma excludente de pensar a prática

pedagógica, não foi exclusividade da EFE, pois a escola calcada numa concepção

produtivista de educação, sob os princípios da racionalidade, eficiência e produtividade,

também foi extremamente excludente. Os altos índices de reprovação no período são

emblemáticos a esse respeito22.

Além disso, não podemos admitir a tese de que o esporte é excludente na sua

essência, haja vista que esse fenômeno da cultura corporal é nada mais nada menos do

22 Para mais ver os indicadores fornecidos pela Secretaria de Desenvolvimento e Avaliação Educacional (Sediae), do Ministério da

Educação e do Desporto em: http://portal.mec.gov.br/seb/arquivos/pdf/livro01.pdf.

65

que uma construção humana, erigida para satisfazer as necessidades dos sujeitos, ou

seja, o esporte é aquilo que fazemos e queremos dele, se ele é excludente é porque assim

o queremos. Sendo assim, não negamos a possibilidade de o esporte, sob o discurso da

igualdade de oportunidades, coadunar também com o capitalismo, se tornando

excludente. Porém, os fatores de tal coesão – esporte e capitalismo- fogem ao escopo

deste trabalho, mas podemos inferir que em meio a esse processo histórico nuançado

que envolvem economia, poder, cultura, enfim, estão os sujeitos de diferentes classes

sociais, inclusive aqueles que pelos mecanismos de exclusão acabam sendo silenciados,

entretanto este mesmo silêncio se faz ecoar no discurso dominante, fazendo do esporte,

excludente ou não, uma construção com a participação de diversos agentes sociais.

Dentre as afirmações feitas por Castellani Filho (1988) a que mais nos intriga é a

facultatividade da prática de EF aos alunos maiores de 30 anos. Seguindo pelo caminho

proposto pelo autor, para esses alunos a EF não se justificaria, pois estes já estariam

inseridos no mercado de trabalho (preparados fisicamente ou não). Desta forma, cabe

aqui pontuarmos uma questão: De onde vem a necessidade de facultar a EFE para os

alunos acima de 30 anos? Do fardo histórico, dos princípios científicos ou endossando a

tese inferida por Castellani Filho (1988) sobre a preparação para o mercado de trabalho?

Prontamente podemos refutar a tese do autor, enfatizando que a forma de produção

fordista pouco necessitava de um corpo fisicamente preparado, já que, com o

desenvolvimento da maquinaria no século XIX, até mesmo crianças apresentavam

condição física para a execução das tarefas e eram contratadas para o trabalho fabril.

Contudo, não podemos desconsiderar que, desde os preceitos escolanovistas, a EF não

era vista apenas como uma educação do físico, enfatizava-se também a formação dos

valores morais do indivíduo. Sendo assim, quais eram os valores morais que o governo

pretendia incutir na sociedade vislumbrada?

Pensamos que, nesse ponto, Castellani Filho (1988) tenha razão, ou seja, em

meio às profundas mudanças sociais que permeavam o contexto brasileiro, o governo

não só organizou as demandas mas também tratou de direcioná-las de acordo com a

sociedade que pretendia construir. Não obstante, não creditamos ao governo militar tal

função maquiavélica como levantado por Castellani Filho (1988). Ou seja, havia a

emergência de preparar o sujeito físico/moral para a sociedade urbano-industrial, para

que este pudesse vender sua força de trabalho, e, desse modo, sustentar a si e à sua

família. Mas isso não satisfazia apenas os anseios governamentais e/ou às classes

dominantes, satisfazia também à classe trabalhadora. Não porque fossem alienados e

66

incapazes de perceber as contradições do sistema, mas talvez porque muitos dos que

migraram do campo para a cidade a fim de ascenderem socialmente, encontraram na

vida urbana uma condição de existência que os satisfazia mais, mesmo que se leve em

conta as diferenças sociais e a evidente concentração de renda nas mãos de poucos que

já ocorria nesse período. Por esse prisma, a EFE com as referências nos padrões de

aptidão física e nos valores morais trazidos no cerne do esporte também contentava os

de baixo.

Por fim, as afirmações correntes de que a política do pão e circo teve seu auge

com a vitória da seleção brasileira de futebol em 1970, é questionável. Não que o

presidente General Emílio Garrastazu Médici não tivesse aproveitado o momento

vitorioso atrelando-o às políticas adotadas, mas tal forma de agir não foi exclusividade

do período militar. Vários chefes de estado, mesmo no Brasil gozando de regime

democrático, fizeram e ainda fazem apologia ufanista utilizando as vitórias esportivas e

atrelando-as à melhoria da condição de vida do povo, supostamente consequentes das

conquistas políticas. Ratificando tal assertiva, num estudo realizado por Almeida (2010)

buscou-se compreender como se dá a relação do campo político e esportivo, no que

tange ao financiamento oferecido pelo Ministério dos Esportes ao Comitê Olímpico

Brasileiro - COB entre 2005 e 2008. Baseada no referencial teórico de Pierre Bourdieu,

que afirma que o esporte é um meio potencial de conquista simbólica com possibilidade

de conversão em capital político, Almeida (2010) afirma que, tanto o governo necessita

do COB como meio de promover um sistema político, com investimentos no esporte de

rendimento e em megaeventos, como também o COB precisa do governo, tanto do

subsídio financeiro, quanto apoiando os seus projetos.

Além disso, muito se diz sobre a tendência em atribuir à EF um papel

preponderante durante o regime militar. O estudo de Castellani Filho (1988) nos parece

ser o mais emblemático a esse respeito, porque o autor concebe a Personagem EF

atendendo às necessidades e interesses das classes dominantes em diferentes momentos

históricos.

Mais uma vez recorreremos ao trabalho de Oliveira (2001) para tentarmos

elucidar um pouco mais essa questão. Indaga o autor: Como a EF poderia ser

considerada fundamental nas pretensões de imposição da ideologia estatal sendo que no

periódico publicado pelo próprio governo (Revista Brasileira de EF e Desportos) até

meados da década de 70 não havia consenso sobre qual perspectiva de esporte a EF

deveria seguir?

67

Para fundamentar tal hipótese, Lamartine Pereira da Costa, editor chefe da

Revista, entrevistado por Oliveira (2001), é categórico em afirmar que os profissionais

que compunham o Departamento de EF, responsável pela edição da Revista, eram, em

sua maioria, militares de baixas patentes e pouco comprometidos com os ideários

estatais. Mesmo que consideremos a importância e a influência que esse periódico

exercia na incipiente EFE, quem garante que esse documento chegava de fato à maior

parte dos professores num país com dimensões continentais?

Nesta direção, Ferreira e Lucena (2009) afirmam

Devemos ratificar que a essência do Esporte, na perspectiva de Política

Esportiva, vem do Estado Novo, que a Ditadura Militar acreditando que a

mesma “serviria” poderia então permanecer inalterada pelo menos por mais

ou menos dez anos. E se durante esse tempo não foi revista é porque além de

dar conta do que se pretendia a Educação Física e/ou o Esporte não eram

prioritariamente importantes como comumente é afirmado, pois política por

demais importante logo seria revisada e alterada (p.4544).

Num estudo realizado por Oliveira e Chaves Junior (2009), alguns professores

entrevistados são categóricos em afirmar a falta de espaços disponíveis para o trato

pedagógico esportivo, o que fazia com que eles adaptassem a prática pedagógica e a

realizassem, muitas vezes, fora dos muros escolares, desviando assim das preconizações

legais para o ensino do esporte

(...) Ainda que a escola em questão gozasse de fartura de material, o que é

confirmado pelo depoimento da professora Hermínia, a disponibilidade de

espaço adequado era sofrível. Vários elementos expostos nesse depoimento

nos ajudam a questionar em que medida as postulações oficiais poderiam ser

cumpridas. Primeiramente, é sabido que a prática esportiva, modelo previsto

no ideário oficial e, como mostramos na primeira parte deste trabalho,

prevalecente desde pelos menos os anos 1950, implica disponibilidade de

material e espaço adequados. Pode parecer óbvio, mas não é possível

desenvolver o esporte, seja o voleibol, o basquetebol, a ginástica ou qualquer

outro, sem um local adequado para essa prática. Ao indicar que as aulas se

davam nas ruas, em terrenos baldios etc., a professora Hermínia nos oferece

elementos para afirmar que, no máximo, poderia acontecer nessas aulas uma

aproximação do que seriam os esportes... (p.50).

68

Visto isso, portanto, como é possível afirmar que a EF tinha uma função

preponderante nas concepções estatais se nem ao menos se subsidiava o professor com

espaço adequado para o ensino e a prática com fins esportivos23?

(...) A falta do espaço adequado ao desenvolvimento de uma determinada

prática é um indicativo poderoso de que ela não poderia ter se desenvolvido

como era desejável pelo formulador da política pública. Ou seja, ao

professor restaria a improvisação. E a improvisação, além de ter sido

denunciada desde os primeiros anos do Programa, é justamente um dos

elementos que a tecnologia educacional tenta combater, o que mostra como

a realidade é rebelde à lógica tecnocrática propugnada pelos militares e

seus seguidores. Neste sentido, aquilo que estava expresso na lei e nos

programas simplesmente não podia ser desenvolvido na realidade daquela

escola, uma vez que havia um abismo entre a formulação legal e a condição

real da escola (p.50).

Por mais que levemos em conta que a pesquisa realizada se deu num

determinado contexto, não cabendo generalizações, também não podemos dizer que

esse desleixo com a EFE e seus preceitos esportivistas não tenham acontecido em outras

esferas educacionais. Sendo assim, por mais que houvesse todo um aparato legislativo

para a área, na prática pedagógica as coisas não saíram como o predeterminado pelo

Estado. Desta forma, por mais autoritário que tenha sido o período, parece-nos, com

base nesses estudos, que a EFE não estava no cerne dos planos governamentais a fim de

que a área pudesse ser um dos mais importantes veículos para que fossem alcançadas as

aspirações estatais.

Mesmo podendo não ser o principal veículo para o alcance de metas dos planos

governamentais, os investimentos feitos com a EF no período ditatorial nos levam a crer

que não houve total desdém com a evolução da EF. De acordo com dados coletados por

Betti (1991), as verbas destinadas ao setor aumentaram verticalmente a partir de 1975,

ultrapassando os recursos destinados a todo o ensino superior.

Analisando o contexto, os investimentos na área vieram depois do governo criar

a Política e o Plano Nacional para a EF e Desportos, provavelmente como forma de

implementá-los. Bem, apesar de tardia, como afirmam Ferreira e Lucena (2009), as

políticas foram alteradas e com elas incisivos investimentos foram feitos para trilhar os 23 De acordo com o Decreto 69.450/71 os espaços destinados às atividades de educação física deveriam compreender dois metros

quadrados de área por aluno, no ensino primário, e três metros quadrados por aluno, no ensino secundário e no superior.

69

caminhos marcados pela política destinada ao setor. Ora, se não havia a preocupação

com a EF e o Desporto, quais seriam os motivos de tanto investimento em tão curto

espaço de tempo?

Se pensarmos a partir da hipótese de uma EF esportivizada e no potencial

alienante desse fenômeno, como comumente se propala, os dados referentes aos

investimentos feitos com a área ratificam que havia, principalmente após a promulgação

do PNED, uma atenção mais incisiva para com a EFE. O curioso é que, como apontam

os dados coletados por Betti (1991), apenas a partir da década de 80, com o regime

militar já enfraquecido, é que os investimentos ganharam níveis significativos. Assim

sendo, podemos erigir duas hipóteses: A primeira é que o governo enfraquecido tentaria,

por meio do desporto, justificar algumas de suas ações nefastas durante o regime, pois

com a abertura política e as inevitáveis críticas à gestão, o esporte não continuaria sendo

apenas uma forma de controle social, mas também poderia ser uma forma de

argumentar em prol das políticas públicas adotadas, e defendidas, quiçá, pelos atletas de

alto rendimento descobertos na época. Por esse prisma, o legado esportivo para a EFE

seria atribuído ao governo militar pós 64 que, analisado de forma crítica ou não, mostra

por meio da quase unanimidade na literatura que a esportivização da EFE atingiu seu

ápice na década de 70. Contudo, pensar desta forma talvez seja dar uma dimensão um

tanto exagerada para o fenômeno esportivo.

Outra hipótese é a da existência de um conflito de interesses dentro do próprio

governo, ou seja, aqueles que acreditavam que a EF, através da via esportiva, resolveria

boa parte das aspirações estatais e, consequentemente, requeria atenção e investimentos

significativos e, por outro lado, aqueles que tratavam a área apenas como mais um

segmento educacional; além de uma provável terceira posição retratada por aqueles que

tinham um apreço pela área devido aos seus enraizamentos históricos. Talvez o governo

não tenha sido tão habilidoso ou cuidadoso ao empreender suas ações voltadas à

implantação de um modelo esportivizado na EFE, exemplos dessa inabilidade e

ineficácia podem ser atribuídos a fatos como a Revista de EF e Desportos ter sido

composta por militares (boa parte de baixas patentes) que não compactuavam

plenamente com os ideários do governo; que o PNDE só foi proposto depois de mais

dez anos do golpe militar; que os espaços destinados para as práticas corporais eram

precários, e que os investimentos só chegaram já com o governo em decadência.

70

Essas idas e vindas do que deveria ser ou não ser, deixaram estruturas

educacionais deficientes para o desporto, que não atendem nem ao esporte como

pseudo-controle social, e tampouco à sua possibilidade educacional plena.

Diante dessas ponderações sobre a história contada da EFE brasileira durante a

ditadura militar, nos cabe aqui retomar a questão que justifica este estudo: Qual o papel

e a atuação do professor de EFE naquele cenário de mudanças (pelo menos no que tange

à legislação) educacionais?

Por meio deste levantamento bibliográfico, percebemos que a literatura

especializada levou em consideração apenas as formulações teóricas concebidas pelo

governo e as analisou num contexto economicista e, a partir disso, não considerou os

professores de EF como agentes participantes daquele processo. Inferimos que, com

isso, ignorou-se uma parte fundamental da história da EF no Brasil.

Seguramente, a literatura especializada nos permite pensar que deixou de

considerar o professor como um ser capaz de fazer opções, entendendo-se que ele foi

refém das mais diversas formas de dominação e controle, ou mesmo devido à sua

própria herança histórica e cultural.

O discurso da literatura especializada que expusemos deixa latente que os

professores de EF eram passivos, perante os ditames do governo militar, que havia uma

verticalização no processo de consolidação da EF nas escolas brasileiras, e que as leis e

decretos eram imposições seguida à risca24. Por este prisma, o governo ditava as ordens

e os professores, passivos e sem força de reação, acatavam.

Por essa perspectiva, os professores de EF não teriam qualquer possibilidade de

mover-se com autonomia diante das rígidas estruturas ideológicas determinadas pelo

Estado, ou seja, advoga-se por uma vitimização dos professores de EF pertencentes

àquele processo.

Assim sendo, pensamos que o Estado, com suas políticas educacionais pautadas

no sistema econômico vigente, contribuiu para o direcionamento das ações dos

professores, porém isso não significa dizer que o Estado tivesse ou tem a capacidade de

engessar os indivíduos de forma a conseguir controlar todas as suas ações cotidianas.

Talvez as necessidades, expectativas e os interesses vividos pelos professores que

24 Vale a pena ressaltarmos que Betti (1991) ao contar a história da EF levando essencialmente leis e decretos em suas

considerações, pondera no final de sua obra que apesar de os professores terem sua liberdade diminuída, muitas decisões cabem

ainda ao próprio docente, ou seja, ele pode ou não acatar as sinalizações dos níveis superiores.

71

atuaram naquele período, não possam ser simplificados numa dada definição de base

que determina a superestrutura. Enredo

Pensamos que, embora as determinações estruturais sejam ferrenhas na tentativa

de imposições ideológicas, não podemos afirmar que isso seja capaz de suprimir as

contradições do próprio sistema, levando a uma ação transformadora.

Desta forma, acreditamos que os sujeitos – no nosso caso os professores de EF-

são providos de certa autonomia, pelo menos no que tange às suas efetivas práticas

pedagógicas. Pensando assim, a EF dentro das escolas pode ter acontecido de forma

diferente daquilo que preconizavam os documentos oficiais, ou mesmo, que comumente

se afirma na literatura especializada.

Por isso, refutamos o discurso da literatura que atribui aos professores de EF

uma posição de vítima perante os ditames de um governo autoritário. Não considerar as

subjetividades dos sujeitos em questão, nos forneceu uma visão unilateral da história da

EFE no Brasil.

Deste modo, para que se tenha uma visão mais abrangente do que foi a EF

durante o regime militar, se faz necessário olhar para dentro dos muros escolares a fim

de desvendar como foram concebidas as aulas de EF na ditadura, não com o intuito de

absolver ou condenar os professores pertencentes aquele processo, mas sim situá-los no

contexto e compreender o papel que exerceram na história.

Objetiva-se, portanto, recontar as ações da prática pedagógica dos professores de

EFE, sujeitos desta pesquisa, que fizeram parte daquele momento histórico no Brasil

proporcionando uma releitura da história até então contada a partir de leis e decretos de

uma forma determinista. Talvez, as experiências individuais desses professores possam

contribuir para desmistificar a relação causa-efeito – leis e decretos = ações coerentes

dos professores - tão propalada pela literatura especializada.

Olhando para esses sujeitos pretendemos compreender como os professores

rodeados de influências autoritárias conceberam suas práticas pedagógicas, e quais as

razões que os levaram a optar por rebelar-se ou, pelo contrário, trabalhar em prol das

políticas públicas que vigoravam.

No próximo capítulo expusemos os caminhos trilhados em busca do objetivo

deste trabalho.

72

3. MÉTODO DA PESQUISA

3.1 A natureza da pesquisa

A nossa opção pela história oral se deu por entendermos que os documentos

oficiais promulgados no governo militar abarcados pelo nosso estudo relatam apenas

um lado da história. Além disso, como já nos referimos anteriormente, habitualmente a

literatura especializada que interpretou as políticas públicas do período, não levou em

conta o professor como um ser capaz de fazer opções, por conseguinte, fez uma leitura

determinista da EFE na ditadura militar.

Sendo assim, acreditamos que, por meio da história oral, ouvindo os agentes

daquele processo educacional, conseguimos conceber um cenário singular e, por que

não, diferente do que comumente se propala para a EFE na ditadura militar.

Thompson (1992) afirma que

A história oral possibilita novas versões da história ao dar voz a múltiplos e

diferentes narradores. Esse tipo de projeto propicia sobretudo fazer da

história uma atividade mais democrática, a cargo das próprias comunidades,

já que permite construir a história a partir das próprias palavras daqueles

que vivenciaram e participaram de um determinado período, mediante suas

referências e também seu imaginário. O método da história oral

possibilidade o registro de reminiscências das memórias individuais; enfim,

a reinterpretação do passado, pois, segundo Walter Benjamim, qualquer um

de nós é uma personagem histórica (p.19).

Ao darmos voz àqueles sujeitos procuramos desvendar uma EFE que também foi

construída pelas experiências dos professores, por suas decisões cotidianas em fazer isso

e não aquilo, enfim, por suas necessidades, expectativas e interesses construídos durante

sua história de vida.

Procuramos, por meio da história oral, ouvir aqueles que não se fizeram

presentes nos escritos acadêmicos da literatura analisada por este trabalho. Diante dos

diferentes diálogos que nos foram oferecidos, pudemos perceber a multiplicidade de

pontos de vista sobre o mesmo assunto, assim como as convergências.

73

A esse respeito, Thompson (1992) considera que “... nessa tarefa, a história oral

desempenhará papel fundamental. A evidência que utiliza associa intrinsecamente o

objetivo com o subjetivo, e nos conduz por entre os mundos público e privado” (p. 333).

Sendo assim, apesar de nossa preocupação em expor as singularidades dos

indivíduos, temos que considerar na condução do nosso processo de pesquisa a

articulação entre o particular e o geral, entre aquilo que é próprio do sujeito e aquilo que

faz parte do contexto sócio-histórico no qual está inserido.

Portanto, seguindo as palavras de Thompson (1992) na obra A Voz do Passado, a

idéia é a História Oral democratize a própria história, num processo de devolvê-la ao

povo. No nosso caso devolvê-la aos professores de EFE.

3.2 As técnicas e instrumentos da pesquisa

3.2.1. As análises documentais

Para atender ao objetivo deste trabalho analisamos os seguintes documentos: as

leis sobre EFE promulgadas em âmbito nacional no período; as leis municipais que

justificaram a criação da Escola Superior de Educação Física de Jundiaí e o seu

referencial curricular.

Emergiu a necessidade de analisarmos as leis à medida que buscamos

compreender como foram engendradas as políticas públicas para a EFE no período

abarcado por este estudo, e, posteriormente, verificar como essas preconizações legais

foram ou não levadas a cabo pelos professores.

Com a análise do projeto de lei e sua promulgação para a criação da ESEFJ,

procuramos compreender quais foram os motivos explícitos e subjacentes na concepção

deste curso na cidade, haja vista que a faculdade foi inaugurada no período em que

houve grande incentivo estatal em prol da privatização do ensino superior. Desse modo

buscamos compreender em que medida a faculdade foi criada a fim de disseminar o que

era apregoado pelo governo militar, ou se sua construção foi fruto de vários fatores,

inclusive de uma demanda que emergia.

Já a escolha do referencial curricular da ESEFJ se deu por dois motivos: o

primeiro diz respeito ao critério de seleção dos sujeitos, ou seja, todos tiveram vínculo

direto com a instituição; e o segundo motivo se deu por buscarmos compreender como

os professores levaram para o trato pedagógico os conteúdos aprendidos na Faculdade.

74

3.2.2. As análises das entrevistas

As entrevistas foram individuais, contando apenas com a presença do

pesquisador e do entrevistado, realizadas em lugar, dia e horário determinados por eles,

variando entre o local de trabalho e a residência dos mesmos.

Antes das entrevistas, que foram gravadas em áudio por meio de um aparelho

digital, disponibilizamos aos depoentes um Termo de Consentimento Livre e

Esclarecido (Apêndice I), aprovado pelo Comitê de Ética e Pesquisa da Universidade

São Judas Tadeu (número 087/2009 aprovado em 10/02/2010) para que eles pudessem

conhecer o objetivo e procedimentos da pesquisa e nos autorizando a expor suas falas

para fins acadêmicos. Além disso, a fim de preservar ao máximo a identidade dos

sujeitos de nossa pesquisa, optamos por identificá-los com as letras do alfabeto,

sequenciais, de acordo com a data da entrevista.

Tivemos a preocupação adicional de evitar ao máximo o clima formal de uma

entrevista para trabalho acadêmico, o que poderia vir a inibir a espontaneidade do

depoimento dos sujeitos entrevistados. Para isso, procuramos, num primeiro momento,

sem o uso do gravador, entabular uma conversa informal e conhecer um pouco sobre a

vida dos professores e junto a isso fomos inserindo os objetivos da pesquisa em questão.

Toda a coleta do material foi executada por nós, entretanto a transcrição das

entrevistas na íntegra, (Anexo I, em CD), devido ao grande dispêndio de tempo que uma

tarefa dessas exige, optamos pela contratação de um transcritor profissional. Apesar

disso, conferimos minuciosamente a transcrição das quase 8 (oito) horas de

depoimentos gravadas.

No que tange ao conteúdo e roteiro das entrevistas semi-estruturadas (Apêndice

II), optamos por dividir em quatro momentos: contexto familiar; formação intelectual;

aspectos ligados a políticas públicas; e, por fim, questões sobre EFE. Levamos em

consideração para a formulação das questões as afirmações de Thompson (1992) no

sentido de que as perguntas deveriam ser simples, diretas e em linguagem comum.

Perguntas complexas e de duplo sentido conduzem a meias respostas ou a respostas

inadequadas; deve-se evitar perguntas com caráter assertivo que expressam as próprias

opiniões do pesquisador/entrevistador e influenciando as respostas do entrevistado. As

perguntas devem ser elaboradas com cuidado, de tal forma que se evite sugerir

respostas; devem também ser evitadas perguntas que levem o narrador/entrevistado a

pensar do mesmo modo que o pesquisador/entrevistador pensa, e não do modo deles.

75

Enveredados por esse caminho buscamos, nos primeiro e segundo momentos,

adentrar ao contexto familiar vivido pelo professor, abarcando questões mais

abrangentes que permitissem e facilitassem ao entrevistado voltar ao passado e se sentir

à vontade diante do entrevistador ao relatar suas memórias, seus sentimentos, enfim, nos

permitir enveredar pelo caminho que foi percorrido do seu ingresso até a conclusão do

curso superior em EF.

Ainda nessa parte da entrevista procuramos por questões que pudessem deflagrar

o decurso histórico que fez com que o professor chegasse ao ensino público. Essa

abrangência se fez muito importante à medida que, nos depoimentos coletados,

pudemos entremear o contexto sócio-histórico vivido pelo sujeito e seus condicionantes

sociais com o conceito de experiência proposto por Edward Palmer Thompson,

explicitado mais abaixo.

Já nos terceiro e quarto momentos da entrevista, as perguntas foram mais ligadas

às práticas pedagógicas dos professores, sem perder de vista o período abarcado por

esse estudo e as políticas públicas que subsidiaram o ensino na época. Sendo assim,

subdividimos esses momentos em: conhecimento sobre as políticas públicas e questões

sobre a EFE.

É importante pontuarmos que, como nos propõe Thompson (1992), e pode-se

verificar nas entrevistas anexas, interferimos pouco nas entrevistas, pois segundo o

autor, o entrevistador vai à entrevista para aprender. Com isso, volta e meia os

entrevistados rompiam com a estrutura que previamente estabelecemos avançando e

retrocedendo naquilo que lhes era mais importante. Mesmo assim, procuramos ao

máximo nos atermos ao mote da pesquisa, sem perder de vista a subjetividade que

estava sendo exposta dos sujeitos, pois, de acordo com o método que adotamos, a

insistência ou mesmo o silêncio num determinado assunto, podem nos indicar caminhos

para análise e interpretação do material coletado.

A partir dos depoimentos coletados, construímos as categorias de análise de

acordo com o objetivo e o problema de pesquisa investigado. Sendo assim erigimos

quatro categorias:

1- os professores de EF como agentes do processo de educar por meio do

esporte;

2- a prática pedagógica dos professores de EF;

3- a autonomia em relação ao governo;

4- a compreensão dos professores sobre a EF do “passado” e do “presente.

76

A análise dos depoimentos se ancorou no aporte teórico oferecido pelo

historiador britânico marxista Edward Palmer Thompson, especificamente no conceito

de experiência desenvolvido pelo autor em seus estudos sobre A formação da classe

operária inglesa no final do século de XVIII e início do século XIX.

Nos três volumes dessa obra, Thompson analisa o processo de formação da

classe operária inglesa em meio à Revolução Industrial. Para isso, se vale dos costumes,

das tradições, dos modos de vida dos sujeitos, entremeados com o modo de produção

que se erigia na época.

Estudando o contexto social dos trabalhadores ingleses e as tradições que nele

emergem, Thompson compreende que a história dos sujeitos pertencentes àquele

processo não poderia ser contada apenas a partir da Revolução Industrial que se

instaurava, mas deveria estar consubstanciada a fatores que antecediam aquele novo

modo de produção. Fatores ligados diretamente à forma como sujeitos agem e reagem

diante daquilo que lhes é imposto, e como seus condicionantes históricos construídos

durante um longo decurso se fazem presentes, construídos a partir de suas expectativas,

necessidades e interesses, mesmo diante de um modo de produção fabril que buscava

coibir antigos costumes, tradições e modos de vida do povo inglês.

Enveredado por esse caminho, Thompson enriquece a história, fazendo valer as

vozes daqueles sujeitos que, comumente, são tratados como produtos de uma história

contada a partir de um modo de produção capaz de engessar todas as ações humanas.

Tendo como mote de seus estudos as experiências de gente comum, adquiridas a partir

de objetivos comuns e das singularidades dos sujeitos, Thompson coloca-os como

protagonistas de sua história, uma história marcada por conflitos, tensões e negociações,

entre as classes que pertencem.

A partir dessas considerações, Thompson (1981) dá “vida” ao conceito de

experiência, que mais à frente foi esmiuçado em seu debate epistemológico com Louis

Althusser em A miséria da teoria ou um planetário de erros. Nessa obra, Thompson

afirma que: a experiência (...) compreende uma resposta mental e emocional, seja de

um indivíduo ou de um grupo social, a muitos acontecimentos inter-relacionados ou a

muitas repetições do mesmo tipo de acontecimento (p. 15). E com base nesse conceito

elaborado, pretendemos explanar, aqui, como os sujeitos não são involuntariamente

produzidos pelas circunstâncias sociais, mas são agentes do processo histórico, por meio

da experiência.

77

Por esse caminho, Thompson (1981) afirma que a experiência surge

espontaneamente no ser social, gerada pela vida material, sob pressão determinante do

modo de produção sobre a consciência dos indivíduos, mas não surge sem pensamento.

Surge porque homens e mulheres são racionais e refletem sobre o que acontece a eles e

a seu mundo. Aqui se instaura o aporte teórico sobre o qual pretendemos ancorar nossas

proposições, o diálogo entre o ser social e a consciência social, ou seja, os

acontecimentos experimentados, tratados, vividos por esses professores na sua relação

pedagógica diária, lançados à consciência social existente, pressionando e, às vezes,

agindo sobre ela.

3.3. A seleção da região de inquérito e dos sujeitos pesquisados

A escolha do regime militar para o nosso estudo não é fortuita. Isso ocorreu já

que comumente se afirma que o governo militar no Brasil (1964 – 1985) marcou a

história recente do país como um período repressivo, cerceador e autoritário. Além

disso, nesse período aconteceram grandes reformas educacionais que afetaram a forma

de conceber a educação e a EF no país, e, mais à frente, contribuiu para ascender nos

nichos acadêmicos fortes críticas sobre os possíveis vieses ideológicos entremeados na

EFE.

Diante dessas reformas e da efetiva obrigatoriedade da EFE em todo território

nacional, a necessidade de profissionais que pudessem atender a demanda das escolas

públicas aumentaria, o que contribuiu para impulsionar a privatização do ensino

superior, além de outros motivos mencionados no capítulo 4.3.

Nos diversos incentivos e nas muitas intenções existentes, os legisladores da

cidade de Jundiaí, localizada entre São Paulo e Campinas, elaboraram um projeto para a

construção de um curso superior de EF em regime de autarquia. As justificativas para

tal intento, advinham justamente do aumento da demanda pós lei n. 5.692/71 e Decreto

n. 69.450/71. Sendo assim em 05 de julho de 1972 foi a promulgada a lei municipal nº

1913, criando a primeira Faculdade de Educação Física de Jundiaí - ESEFJ.

Por esta Faculdade ter sido inaugurada no período compreendido por este

estudo, por se tratar de uma autarquia municipal, e, ainda, por residirmos no município,

nos propusemos a considerar, para efeito dessa pesquisa, os sujeitos que tiveram sua

formação realizada nessa instituição. O fator principal, no entanto, foi consideramos que

uma Faculdade em regime de autarquia municipal, que precisava de um reconhecimento

78

federal para seu funcionamento, seria um bom exemplo de estudo porque,

provavelmente, procuraria seguir as diretrizes que eram oferecidas pelo governo da

época, pelo menos no que diz respeito aos planos curriculares, podendo vir a ser um

aparelho de inculcação ideológica.

Desse modo, apesar de não ser o objetivo principal deste trabalho, analisamos o

currículo formal da ESEFJ a fim de compreendermos como era elaborada a formação

profissional do professor durante a ditadura militar.

Pensamos que essa fonte representou importância quando nos ocupamos de

esmiuçar como os sujeitos entrevistados pensavam, agiam e se lançavam sobre aquilo

que lhes era proposto. Se houve ações carregadas ideologicamente erigidas pelo

governo e pela Faculdade, não podemos dizer que os professores absorveram

inteiramente essas ideologias e as reproduziram na prática pedagógica. Ao invés disso

podemos pensar que eles muitas vezes agiram no seu dia-a-dia, muitas vezes

contrapondo os preconizações legais, isso porque pretendiam “apenas” satisfazer suas

necessidades cotidianas. Além disso, como veremos, muito do que se procurava ensinar

naquele espaço formal de ensino vinha ao encontro de uma demanda que vinha se

construindo muito antes do governo militar, uma demanda ligada ao esporte.

Assim sendo, optamos por entrevistar sujeitos que tiveram sua formação na

ESEFJ, atuaram no ensino público no período e na cidade compreendidos por este

estudo.

A escolha de docentes do ensino público advém do fato da literatura que

comumente aborda tal temática enfatizar que o cerceamento das ações foi mais incisivo

com esse segmento educacional, e da proposta deste estudo em demonstrar como os

sujeitos agiram e reagiram diante daquilo que lhes foi imposto.

O critério de seleção do grupo pesquisado foi qualitativo e baseou-se na

experiência de vida dos sujeitos. Nossa preocupação foi mostrar, diante de uma

legislação promulgada em nível nacional e de uma formação profissional na mesma

esfera educacional, as singularidades dos sujeitos em conceber sua prática pedagógica

diária, num período em que a EFE começava a acontecer efetivamente nas escolas.

Essas singularidades nos ofereceram caminhos para compreender um pouco mais que

entre aquilo que é determinado e aquilo que é executado existe a possibilidade da

deliberação humana.

Portanto, as conclusões tiradas a partir dos seis depoimentos dos professores

entrevistados, não servem como generalizações, tampouco para dizer que a EFE em

79

Jundiaí efetuada por todos os professores formados pela ESEFJ aconteceu de uma

forma e não de outra. Mas servem para mostrar como se efetivou a prática da EFE dos

sujeitos pesquisados formados numa mesma época e contexto.

Para isso começamos nosso processo de coleta com um dos professores mais

antigos da cidade e que foi um dos mentores do curso da ESEFJ. Nas nuances desse

depoimento fomos tomando conhecimento de outros professores que fizeram parte

daquele momento histórico, e a partir daí, fomos contatando os demais sujeitos da nossa

pesquisa.

Dos oito professores que conseguimos identificar e que atenderiam aos critérios

de seleção da amostra, sete se dispuseram a nos contar como foram aqueles anos de

práticas pedagógicas. Contudo, um deles pediu para que seu depoimento não fosse

gravado, nos levando a optar por descartar esse material. Entretanto, as seis entrevistas

que coletamos, expuseram materiais e singularidades suficientes para que realizássemos

nossas análises.

Dos seis entrevistados, (quatro homens e duas mulheres), metade continua

atuando no ensino público do Estado de São Paulo, dois deles na mesma escola desde a

ditadura militar, e estão em vias de se aposentar. Dois são professores já aposentados e

um atua como administrador de um parque do município da cidade, contudo atuou no

ensino público estadual por mais de seis anos durante a ditadura.

Adentrando a vida social desses sujeitos pudemos compreender o quanto suas

experiências culturais, muitas delas ligadas ao fenômeno esportivo, contribuíram para o

seu trato pedagógico cotidiano, e que tais experiências foram estruturadas a partir de

interesses comuns da classe pertencente entremeado com as perspectivas individuais.

O Professor A formado no início da década de 50 atuou como docente no ensino

público até 1989 e continuou sua carreira como professor universitário até 2009. Além

disso, contribuiu efetivamente na criação da Escola Superior de Educação Física de

Jundiaí, (ESEFJ) instituição investigada por este estudo.

Além disso, o professor teve uma formação acadêmica eclética e abrangente

cursando além do curso de Educação Física, pedagogia e também Direito. O gosto pelo

estudo e pela profissão fizeram com que esse sujeito atuasse por quase sessenta anos

como docente das escolas públicas e privadas da região.

Já a Professora B cursou sua educação básica navegando pelo ensino público e

privado, ingressando na faculdade de Educação Física em 1977 muito por conta do seu

apreço pelo esporte.

80

Destacamos ainda a formação abrangente dessa professora, haja vista que além

do curso em Educação Física, cursou ainda pedagogia e história, além de uma pós-

graduação Stricto Sensu em Educação Física.

Todo esse subsídio acadêmico fez com que a professora atuasse como docente

além da EFE, em história num conceituado colégio privado da cidade.

Por fim a professora encerrou sua carreira profissional com diretora de uma

escola estadual, pela qual ela tem muito apreço e acredita que podemos de fato

contribuir para o exercício crítico da cidadania.

A Professora C apesar de ter como grande objetivo cursar uma faculdade de

Psicologia, as questões sociais a enveredaram por outro caminho. Sendo assim, diante

das múltiplas possibilidades que lhes foram ofertadas, a que mais se enquadrou naquilo

que ela gostava de fazer era um curso de Educação Física, justamente também por ter

tido uma vida ligada ao esporte, além da influencia recebida por uma professora de EF

que teve durante sua escolarização.

Essa professora ainda atua como docente no ensino público e tem grande

respeito dos seus colegas de profissão pelos seus trabalhos desenvolvidos com o

handebol escolar, além de ministrar palestras alertando pais e alunos sobre os riscos dos

entorpecentes.

O Professor D foi colega de turma da professora referida acima e a exemplo dela

sua primeira opção não foi o curso em EF. Antes disso o professor cursou por uma ano

a faculdade de Agronomia em Botucatu, contudo por não se identificar com o curso

procurou aquilo que estava mais próxima daquilo que gostava de fazer e permeou sua

vida: o esporte. Desta forma nada mais coerente em buscar aquilo que mais se

aproximava desse fenômeno, ou seja, a faculdade de EF.

O que destoa na vida desse professor é que ele mesmo depois de formado

continuou a trabalhar numa indústria, e apenas se dedicou exclusivamente a docência

após o fechamento desta, precisamente em 1979. Entretanto segundo o professor por

conta da baixa remuneração oferecida pelo Estado essa exclusividade permaneceu por

pouco tempo, haja vista a necessidade de aumentar seus rendimentos.

Esse professor ainda atua na mesma escola em que começou o seu trabalho há

trinta e dois anos atrás e está em vias de se aposentar. Contudo, por ser apaixonado pelo

que faz, voluntariamente tem um grupo de iniciação esportiva fora dos âmbitos formais

de ensino.

81

O Professor E, colega de trabalho do professor referido acima, navegou entre o

ensino público e privado durante sua educação básica, inclusive estudando na escola em

que exerce sua profissão atualmente.

Segundo ele, seu gosto por diferentes esportes fez com que se aproximasse do

curso em EF, além de sua admiração pela parte administrativa do esporte.

Esses fatores contribuíram para que o Professor E acumulasse o cargo de

docente no ensino público do Estado, além de outro, mais ligado a administração

esportiva, no município, ambos ainda exercidos com afinco.

O Professor E a exemplo do Professor D está em vias de se aposentar, depois de

mais de 30 anos de exercício docente.

Por fim temos o Professor F que teve sua formação na escola básica ligada

primeiramente a um colégio religioso e posteriormente a um colégio técnico, onde

adquiriu grande apreço pela área de Desenho mecânico.

A partir disso, o professor nos conta que alguns amigos que havia conquistado

no colégio levantaram a hipótese de eles terminarem o curso técnico e ingressarem num

curso de EF, haja vista que gostavam muito de jogar futebol. Sendo assim, é por esse

caminho que quatro amigos ingressam na Faculdade no ano de 1977, mas apenas dois

chegaram a concluir o curso.

Em 1979, mesmo antes de ter sua formação acadêmica completada, o Professor

F ingressa no ensino público atuando nesse segmento em toda década de oitenta.

Entretanto diante as possibilidades que emergiram, esse professor foi convidado a

ocupar um cargo de destaque na Secretaria de Educação de Jundiaí, ligado ao esporte.

Após o fim de sua gestão esse professor foi remanejado a um trabalho relacionado a

administração de um parque público da cidade, levando-o a mais uma vez procurar a

ESEFJ e ingressar num curso de pós-graduação Latu-Sensu ligado a qualidade de vida.

Atualmente o Professor F por acreditar que uma educação de qualidade pode

mudar o mundo, atua voluntariamente com pessoas da terceira idade em uma escola

estadual da cidade, abarcando práticas corporais ligadas ao bem-estar e a qualidade de

vida.

82

4. RESULTADOS E DISCUSSÃO

4.1. Formação acadêmica em EF na cidade de Jundiaí

Diante da proposta deste estudo em recontar as ações pedagógicas a partir da

visão dos próprios professores que atuaram no período em Jundiaí, acreditamos por bem

fazermos uma contextualização de como era pensada a formação acadêmica em EF na

cidade. Isso se justifica à medida que, com isso, poderemos desvelar os caminhos

trilhados para a formação do professor e, a partir daí, compreender como este mediava

seus conhecimentos histórico culturais com os adquiridos na instituição acadêmica. Para

isso nos ativemos à ESEF de Jundiaí, que iniciou suas atividades em 1974 com a

abertura feita pelo governo federal em prol da privatização do ensino superior.

Com as mudanças legislativo-educacionais em curso desde 1968 e com a

alavancada econômica pela qual atravessava o país, em regime de autarquia municipal,

em 05 de julho de 1972 é promulgada a lei municipal nº 1913, pelo então prefeito

Walmor Barbosa Martins, criando a primeira Faculdade de EF de Jundiaí. Mais tarde, o

curso foi reconhecido pelo Decreto Federal nº 80.213 de 28/08/77.

O professor Vicente Genovez, que atuou como docente na referida faculdade, o

professor Hélio José Maffia e o então prefeito Walmor Barbosa Martins, foram os

mentores do projeto para a criação da ESEF de Jundiaí.

Segundo o projeto de lei nº 2652 encaminhado para a Câmara Municipal e que

mais à frente se tornaria a lei nº1913/72, justificava a criação de uma Faculdade de EF

para a cidade advogando que, com a obrigatoriedade e expansão da EF para todos os

níveis de ensino após o decreto federal n. 705/69, haveria maior demanda para a área,

havendo a necessidade de habilitar os interessados para suprir tal carência.

O mercado de trabalho já era muito favorável aos formados em EF,

absorvendo-os principalmente no magistério específico. A absorção se

tornou muito maior, depois do advento do Decreto-lei 705, de 25 de julho de

1969, que tornou obrigatória a prática de EF em todos os níveis e ramos de

escolarização, com predominância esportiva no ensino superior.

Está o Governo federal, seriamente empenhado em imprimir à personalidade

brasileira, a consciência da necessidade de se preservar o físico, a par do

constante aprimoramento cultural (JUNDIAÍ. Lei Municipal nº1913/72 s/p).

83

O curso se justificava atendendo a um projeto educacional de nível federal, que

tinha a aptidão física como referência para a área. Sendo assim, para que o curso fosse

reconhecido pelo governo federal, teria que estar em consonância com os princípios do

governo ditatorial.

Endossando isso, também podemos ver no projeto de lei seu direcionamento ao

esporte. Já que entre as bases estruturais para a Faculdade são citados espaços que

denotam a preocupação com o esporte:

(...) para a implantação de uma faculdade de EF, há necessidade de um

investimento vultoso, especialmente naquilo que diz respeito às instalações

imóveis. É a praça de esportes necessária, a piscina, as quadras para as

diversas modalidades, um verdadeiro conjunto, enfim, cuja existência

demandaria um dispêndio realmente alto. Mas, Jundiaí conta com tudo isso,

instalações verdadeiramente magníficas e que podem, sem gasto algum,

abrigar os alunos da Faculdade de EF: Praça de Esportes – Dr. Nicolino de

Luca”, Centro Esportivo “José Pedro Raimundo”, Centro Esportivo da Vila

Rami, em construção, e Centro Esportivo da Vila Hortolândia, em fase de

concorrência pública (JUNDIAÍ, Lei municipal nº1913/72 s/p).

Diante dessa citação, percebemos que havia preocupação com as atividades

esportivas que comporiam o currículo da faculdade, entretanto, nota-se que mesmo

antes da criação da instituição o esporte já permeava os espaços públicos da cidade25, o

que nos leva a crer que a curso de EF também vinha ao encontro dos interesses públicos

locais, muito provavelmente fortemente influenciado pelo fenômeno esportivo que

tomava conta do cenário mundial.

A grade curricular que compunha o curso, iniciado em 1974 e que tinha duração

de três anos, era composta das seguintes disciplinas: Anatomia, Atletismo I,

Basquetebol I, Biologia, Estudo de Problemas Brasileiros, Fisiologia, Ginástica I,

Handebol I, História da EF, Psicologia Geral, Volibol no primeiro ano. Atletismo II,

Basquetebol II, Cinesiologia, Didática Geral I, Ginástica II, Handebol II, Judô, Natação

I, Psicologia da Educação, Socorros Urgentes, Volibol II no segundo ano. E, Biometria,

Didática Especial, Didática Geral II, Estrutura e Funcionamento do Ensino de 1º e 2º 25 Segundo Valente e Almeida Filho [200?], com a publicação, pelo Ministério da Educação e Cultura, do primeiro censo de clubes

esportivos em escala nacional, descobriu-se um elevado índice de associações esportivas em relação à população total. Ou seja:

contaram-se cerca de 40 mil clubes formais (com sede, estatutos, bens, etc.) e foi possível estimar, por projeções, a existência de

aproximadamente 100 mil clubes informais, improvisados e com pequeno número de participantes, para uma população de 90

milhões de habitantes.

84

graus, Ginástica III, Higiene, Natação II, Prática de Ensino (aula), Prática de Ensino

(estágio), Recreação, Rítmica e Sociologia no terceiro.

Se compararmos o currículo da mesma instituição construído após a

promulgação da LDB 9394/96, especificamente no ano de 2002, constatamos que das

43 disciplinas obrigatórias para a conclusão do curso em 4 anos, 9 são estritamente

esportivas, ou seja, aproximadamente 20% do currículo era composto por disciplinas

esportivas, enquanto na composição do currículo de 1974 as disciplinas esportivas

ocuparam, aproximadamente, 32% da grade curricular, ou seja, praticamente 1/3 do

currículo do curso denotava a preocupação em pedagogizar o esporte para, quiçá,

atender a uma demanda que se erigia.

Apesar disso, uma ponderação se faz necessária antes que, precipitadamente,

achemos os culpados para a possível esportivização da EFE. Ora, diante de uma

incipiente área de conhecimento, que buscava legitimação social, qual deveria ser o

conjunto de disciplinas que a sustentaria? As de cunho médico? As de raízes militares?

O esporte que aparecia como uma possibilidade educacional? As disciplinas de caráter

crítico como gostariam alguns intelectuais da área? Talvez um pouco disso tudo tenha

permeado o currículo daquela instituição, não obstante, era o esporte que na época

emergia naquele(s) cenário(s), era o esporte que oferecia a porta de entrada para a EF se

legitimar socialmente, e, como nos adverte Oliveira (2001), alguns professores no seu

cotidiano pedagógico se apropriaram e gostaram disso.

Deixar de enfatizar o fenômeno esportivo na composição da grade curricular nos

pareceria um tanto ousado para o contexto, para não dizer incoerente, se levarmos em

conta que a concepção de mundo corrente na época via no esporte um símbolo da

modernidade e uma ferramenta educacional privilegiada.

Outro ponto sobre o qual vale a pena nos atermos diz respeito à Lei municipal

nº1913/72, onde afirma em seus objetivos que a Faculdade tinha como finalidade

formar pessoal especializado em EF, Recreação e Desporto, além de realizar pesquisas

de caráter educacional, científico e técnico sobre as temáticas, não obstante, como se

explicitou na justificativa da referida Lei, as estruturas destinadas ao curso eram

predominantemente esportivas.

Por mais que os objetivos enfatizassem a formação do caráter científico, à

exceção da presença de uma biblioteca, em nenhum outro momento se fez menção à

construção de laboratórios para a pesquisa ou do estabelecimento de convênios para tal

fim. Entretanto é importante ponderarmos até que ponto, na época, havia clareza a

85

respeito de uma disciplina que historicamente sempre esteve coadunada com um fazer

funcionalista, sem uma reflexão sobre o ato, requerer laboratórios que pudessem

produzir conhecimento científico. Além do mais, se pensarmos que o primeiro curso de

pós-graduação em EF no Brasil iniciou-se em 1977 na Universidade de São Paulo, qual

seria a justificativa de uma instituição que apenas começava as suas atividades e se

situava a menos de 100 km da USP pleitear formar pesquisadores naquela época?

Essa incipiência no que tange a uma mentalidade científica para a área pode ser

confirmada pela fundação da primeira entidade nesse segmento no Brasil, o CBCE

(Colégio Brasileiro de Ciências do Esporte) em 17 de setembro de 1978, tardiamente

fundado comparado a outras áreas do conhecimento, além de estar sob a égide de um

paradigma biologista. Algo que, como nos elucida Silva (1994), foi refutado alguns

anos depois por outras concepções de pensamento que inflamaram discussões sobre o

que, para quem e como, deveríamos conceber a EF, o que colaborou com a tão

propalada crise de identidade pedagógica para a área.

Sendo assim, talvez, o que ali naquele contexto particular fosse urgente, como

justificam os mentores do curso, fosse formar profissionais que pudessem suprir com as

necessidades que pululavam na sociedade, especificamente naquele momento, o ensino

do esporte, e não pesquisadores. Afinal, não me parece que havia uma mentalidade

cientifica sólida para a EF que pudesse justificar qualquer investimento nesse ramo,

ainda mais em um curso que começava suas atividades.

De acordo com as disciplinas que compunham o currículo, percebemos, também,

que além do esporte ocupar grande parte da grade curricular, as disciplinas da área das

ciências humanas, de cunho crítico, ocupavam uma pequena parte do currículo iniciado

em 1974, o que em princípio já denota alguma preocupação com a formação

humanística das pessoas que, ao menos em teoria, provavelmente eram despolitizadas

quando se considera o contexto sócio-político por qual passava o país. Pode-se

considerar que a ESEF de Jundiaí apresentou uma postura ousada para a época ao

propor a inclusão destas disciplinas naquele contexto, já que, legalmente, disciplinas de

natureza humanística só foram incluídas nas diretrizes oficiais para a composição

curricular na área da EF em 1987 com a publicação do Parecer CFE nº 03/87, no

entanto, fica em suspenso a dúvida do caráter com que a disciplina História foi incluída

no currículo e trabalhada com os alunos já que, se por um lado poderia cumprir um

possível papel de desenvolvimento de senso crítico, por outro, existe a possibilidade

86

dela ter entrado de mãos dadas com E.P.B. e exercido o papel de reforçar a visão oficial

sobre a área.

Dúvidas também pairam sobre os estudos de Psicologia da época, já que podem

ter transmitido conteúdos a respeito do desenvolvimento infantil, portanto, de forma

descontextualizada da sociedade brasileira e sem prestar qualquer contribuição para o

desenvolvimento do senso crítico social dos alunos.

Além disso, devemos considerar o esporte como um fenômeno multifacetado

que pode ser trabalhado pedagogicamente de muitas formas, inclusive pautado nas

teorias críticas que emergiam naquele período, desvelando relações de poder que

imputam a esse fenômeno a condição de panacéia.

Ainda a respeito das disciplinas que compunham o currículo na década de 70,

podemos analisar o conteúdo programático da disciplina de Estudos de Problemas

Brasileiros oferecida no primeiro ano do curso e obrigatória desde a reforma

universitária, comumente rotulada como veiculadora das ideologias estatais não nos

leva a trilhar por esses caminhos. Veja:

*Programa

- o bem-estar do brasileiro e da nação.

` - Política nacional e poder nacional.

- Desenvolvimento integral e Segurança Nacional.

* Elementos básicos da nacionalidade: a terra, o homem e as instituições:

-Aspirações dos brasileiros e interesses nacionais;

-A constituição - bases filosóficas e consequências;

- Os direitos e garantias individuais;

* Objetivos nacionais;

- Fundamentos e fatores psicossociais do Poder Nacional;

-O caráter Nacional.

* As tradições nacionais:

-Valores permanentes e valores transitórios;

-Visão da sociedade brasileira e inter-relação dos aspectos psicossociais, econômicos e

políticos;

- Comportamentos sociais, peculiaridades urbanas e rurais;

-O espírito religioso no complexo cultural brasileiro;

-Constituição dos grupos étnico-formadores, no folclore brasileiro;

-Visão global da cultura brasileira;

-A formação política nacional;

-Deveres e direitos do cidadão;

87

-A representação popular, processo eleitoral;

-A estrutura política, judiciária, administrativa do Brasil;

-Defesa civil e proteção comunitária;

-A economia brasileira, estrutura e funcionamento;

-O desenvolvimento econômico;

-Soberania, integridade e unidades nacionais

(PLANO DE ENSINO DE 1974, s/p)

Pelo caráter abrangente desses conteúdos oferecidos não é possível avaliar em

que medida houve imposição ideológica, aceitação, contestação ou mesmo um

desconhecimento por parte dos professores que ministravam esta disciplina do potencial

ideológico que compõem um currículo.

Todavia ao analisarmos o contexto da época, período que ficou conhecido como

anos de chumbo, com a implantação do Ato Institucional 5, juntamente com a

necessidade de reconhecimento federal do curso, inferimos que os cerceamentos feitos

para um curso em regime de autarquia municipal que estava começando as suas

atividades pairava sobre os alicerces daquela instituição. Além disso, em que medida

podemos afirmar que os cerceamentos foram prerrogativas dos regimes autoritários

vividos no Brasil? O “modelo” de trabalhador exigido pelo mercado trabalho, num

regime democrático consubstanciado com a política neoliberal, não é uma forma

“maquiada” de cerceamento?

Sendo assim, é mais sensato reconhecer que, por mais que estivessem explícitas

certas imposições ideológicas do governo ditatorial incutidas no currículo, e houvesse

cerceamentos feitos com relação ao reconhecimento como curso superior, mesmo assim

na prática pedagógica, aqueles professores universitários poderiam, porque não,

subverter a ordem e empregar as suas experiências adquiridas no contexto vivido

naquele trato pedagógico.

Diante disso não é possível afirmar como efetivamente se deu a formação dos

professores da época pela Escola Superior de EF de Jundiaí sem combinar a análise

documental com os depoimentos de quem viveu a época e o local estudados, entretanto

nos indicam caminhos para refletir como, ao menos em tese, era pensada a formação

daqueles professores.

O esporte, como já enfatizado em leis federais aparecia como conteúdo

hegemônico e as disciplinas críticas, quando não suprimidas, tinham pouco espaço no

currículo formal daquela instituição, isto está evidente. Não obstante não podemos

88

afirmar que ela tenha se abstido em seus objetivos da dinâmica social presente naquele

momento histórico. Tomemos como exemplo os conteúdos oferecidos na disciplina de

Sociologia no terceiro ano:

*Sociologia – conceito;

* Escolas sociológicas;

* Métodos sociológicos;

* Princípios sociológicos;

* O social – causas do social- Durkheim;

* Interação Social;

* Normas e Instituições Sociais;

* Agrupamentos sociais;

* Sociedade urbana e rural;

* “Status” e Papel Social;

* Classes sociais;

* Estratificação social;

* Cultura;

* Assistência social;

* Nível sócio-educativo educacional do operário brasileiro.

(PLANO DE ENSINO, 1974, s/p.)

Bem, como é possível notar, nos conteúdos oferecidos pela disciplina, alguns

conceitos de caráter crítico são abordados, propiciando ao menos em teoria, uma visão

mais abrangente de sociedade, que poderia ir contra as ideologias estatais. A esse

respeito também podemos citar a disciplina de Didática Especial, ministrada pelo

professor João Paulo Subirá Medina26, que no início da década de 80 teceu fortes

críticas sobre como era comumente pensada a EF no período.

Sendo assim, podemos inferir que existe uma possibilidade de terem sido

constituídos espaços de resistência à inculcação ideológica ‘de direita’ durante a

formação do professor daquele período, naquela instituição, mesmo que tenha sido

pensada dentro de uma perspectiva educacional voltada para o ensino do esporte e tendo

26 No início da década de 80, Medina lança um livro Educação Física cuida do corpo e mente que viria a contribuir para o que

comumente se denomina de crise de identidade pedagógica da área. O impacto dessa obra pode ser percebido pelo lançamento de

sua vigésima quinta edição em 2010. Neste ensaio a obra foi revista, ampliada e teve a colaboração de outros autores.

89

como referência a aptidão física. No entanto, a concepção tecnicista também se faz

presente quando se nota pela análise das disciplinas esportivas do currículo que parece

não ter havido uma condução didática no sentido de se buscar compreender o esporte

como patrimônio da cultura corporal, apropriado por diversos setores da sociedade, e

sim, compreender qual a melhor forma de ensinar o esporte. Ou seja, como era corrente

no período não se procurava questionar os porquês de se aprender aqueles conteúdos e

não outros, mas sim qual a maneira mais eficiente de aprendê-los. Exemplo dessa

vertente tecnicista na formação do profissional de EF pode ser identificada nos objetivos

da disciplina de Volibol:

Dar ao futuro professor conhecimento da história, fundamentos, técnicas e

táticas, para que este consiga dominar o essencial para transmitir a seu

futuro educando, a prática desse desporto tanto no campo esportivo quanto

no psico-social (PLANO DE ENSINO, 1974, s/p).

Podemos, ainda, levar em conta que a disciplinas de Psicologia Geral no

primeiro ano trazia uma visão abrangente e eclética das correntes psicológicas, para

mais à frente, no segundo ano, Psicologia da Educação trazer em boa parte dos seus

conteúdos as fases de desenvolvimento do indivíduo, o que nos leva a pensar que a

psicologia vinha ao encontro das necessidades do ensino do esporte eficiente, através

dos degraus de desenvolvimento oferecidos por algumas correntes psicológicas 27.

Essa pequena contextualização que fizemos nos oferece um importante caminho

para efeito de nossa análise no tópico seguinte: um currículo hegemonicamente

esportivo a fim de atender as demandas existentes que tomavam conta do cenário

nacional. Contudo, como se deu essa influência curricular na prática, ou melhor, como

os professores de EF atuaram no seu cotidiano pedagógico, apenas os agentes daquele

processo educacional poderão nos dizer.

Neste próximo capítulo buscaremos explanar os posicionamentos desses

sujeitos.

27 Atualmente no Brasil surgem com força teorias que criticam os conteúdos do currículo e a hegemonia da psicologia na educação

como uma forma de dominação e manutenção do status quo, entretanto não é objetivo deste estudo abordar tal temática. Para saber

mais a esse respeito ver Tomaz Tadeu da Silva (1993) e Ozerina Victor de Oliveira (2006).

90

4.2.- Os professores de EF como agentes do processo de educar por meio do

esporte.

Nesse tópico, nos valeremos do conceito de experiência que, para o historiador

Edwar Palmer Thompson, compreende uma resposta mental e emocional, seja de um

indivíduo ou de um grupo social, a muitos acontecimentos inter-relacionados ou a

muitas repetições do mesmo tipo de acontecimento (THOMPSON, 1981, p.15). Esse

conceito foi elaborado nos estudos de Thompson sobre A formação da classe operária

inglesa no final do século de XVIII e início do século XIX e detalhado em seu debate

epistemológico com Louis Althusser em A miséria da teoria ou um planetário de erros.

Com base nele, pretendemos explanar como os sujeitos não são produtos de

circunstâncias sociais e sim agentes do processo histórico, por meio da experiência.

Por esse caminho, Thompson (1981) afirma que a experiência surge

espontaneamente no ser social, gerada pela vida material, sob pressão determinante do

modo de produção sobre a consciência dos indivíduos, mas não surge sem pensamento.

Surge porque homens e mulheres são racionais e refletem sobre o que acontece a eles e

a seu mundo. Aqui se instaura o aporte teórico sobre o qual pretendemos ancorar nossas

proposições, o diálogo entre o ser social e a consciência social, ou seja, os

acontecimentos experimentados, tratados, vividos por esses professores na sua relação

pedagógica diária, lançados à consciência social existente, pressionando e, às vezes,

agindo sobre ela. Se tivemos de empregar a (difícil) noção de que o ser social determina a

consciência social, como iremos supor que isso se dá? Certamente não

iremos supor que o “ser” está aqui, como uma materialidade grosseira da

qual toda idealidade foi abstraída, e que a “consciência” (como idealidade

abstrata) está ali. Pois não podemos perceber nenhuma forma de ser social

independentemente de seus conceitos e expectativas organizadoras, nem

poderia o ser social reproduzir-se por um único dia sem o pensamento. O

que queremos dizer é que ocorrem mudanças no ser social que dão origem a

experiência modificada; e essa experiência é determinante, no sentido de

que exerce pressões sobre a consciência social existente, propõe novas

questões e proporciona grande parte do material sobre o qual se

desenvolvem os exercícios intelectuais mais elaborados (THOMPSON,1981

p. 181, grifos nossos).

91

Diante disso, cabe-nos agora analisar as histórias narradas pelos professores

entrevistados a fim de identificarmos como foram suas experiências pedagógicas, como

foram tratadas, aprendidas, vividas por pessoas de carne e osso e agitadas em suas

consciências. Portanto não se trata de fazer generalizações, pois, seguindo pelos dizeres

de Thompson (1981), as generalizações são tolas, tolas porque perdem de vista a

experiência dos sujeitos e como estes a tratam na cultura na qual estão inseridos, tolas

porque, nelas, inclui-se uma grande massa indiferenciada, não havendo espaços para

conflitos e contradições.

Sendo assim, veremos que os quatro professores e as duas professoras

entrevistadas, apesar das experiências singulares construídas nas suas vidas social e

cultural, adotaram ações semelhantes em várias situações pedagógicas. Se alguns

tiveram uma formação mais abrangente e eclética, o que oferecia um subsídio teórico

mais profícuo nas suas práticas pedagógicas, tivemos outros que passaram por uma

formação acadêmica mais aligeirada, iniciando suas atividades docentes sem nem ao

menos terem terminado a faculdade de EF. Apesar disso, veremos que todos eles

seguiram pelos mesmos caminhos na concepção de suas práticas pedagógicas

cotidianas.

Alguns, além de professores de EF, foram metalúrgicos, outros burocratas, e

todos sonhadores em busca de satisfazer suas necessidades, expectativas e interesses

formados a partir de uma perspectiva de classe, esta é a síntese dos professores

entrevistados. A vida desses sujeitos foi recheada de particularidades, a maioria delas

impossível de relatar num estudo como este, mas com certeza possíveis de serem

imaginadas devido à incrível possibilidade humana de criar e recriar ações, mesmo que,

de certo modo, estejam determinadas pelo modo de produção vigente. A forma como

esses sujeitos trataram sua experiência em seus diferentes ramos culturais, nos dá a clara

noção de como as ações dos nossos professores não poderiam ser previstas e tampouco

conhecidas a partir da estrita leitura e interpretação de leis e decretos.

Desse modo, temos como base para nossas análises o discurso corrente da

literatura especializada, onde deixa claro que o governo ditatorial pós 64 esportivizou a

EFE, como se, num passe de mágica, o que era tratado pedagogicamente de uma forma,

fosse alterado por meio de leis e decretos carregados ideologicamente com as intenções

do governo e da classe dominante, e começasse a ser tratado de outra, neste caso de

forma esportivizada.

92

Voltando-nos, no entanto, a uma literatura menos influenciada por teorias

marxistas mecanicistas que emergem atualmente (OLIVEIRA 2001, 2002, 2003;

OLIVEIRA E CHAVES JUNIOR, 2009; PINTO; VAGO; FARIA FILHO, 2007),

percebemos o quanto a história é cheia de nuanças, já que o esporte esteve presente com

muita força no cenário nacional muito antes de leis e decretos que o respaldassem, e

consubstanciado com outros fatores, podemos considerar que este atingiu seu ápice

durante o governo militar pós 64, como inferimos no capítulo 3.4.1.

4.2.1. Primeiro fator de análise = O Esporte e a formação profissional em

EF.

O que nos importa, agora, é enfatizar que a via de entrada dos professores de EF

entrevistados neste estudo foi o esporte. Todos os sujeitos foram categóricos em afirmar

que se interessaram por cursar uma Faculdade de EF por entenderem que lá

encontrariam o esporte como um conteúdo privilegiado. Por exemplo:

Professor A

Não procurava ser professor de EF (...) Mas como eu sempre gostei de esporte... Eu comecei a jogar

basquete em 1939, era garotinho, da equipe mirim. Mas era um esporte diferente. Competi em

campeonatos paulistas: natação, no mirim, infantil. Depois joguei futebol na cidade, nos campeonatos da

cidade, nos campeonatos brasileiros[?]. Joguei basquete também, tinha uma equipe de basquete, assim

como jogos... Fiz, inclusive... ‘Tinha’ cavalos de corrida, fui jóquei também...

Professor B

É. Eu queria ser professora de EF, então eu estudava tudo o que tinha relacionado à EF, aos esportes

que ‘tavam’ acontecendo: olimpíadas, futebol, tudo o que ‘tava’ acontecendo eu queria saber. Então eu

seguia tanto livros como jornais.

Professor C

E a minha escola foi muito atuante em Jundiaí, e lá eu entrei em contato com o esporte (...) E tudo que

fazia parte da parte esportiva da escola os meus pais não deixavam participar. Então, por exemplo, a

professora que era a minha [professora] de EF era técnica da categoria mirim do Voleibol de Jundiaí.

Então ela me chamou pra treinar. Como eu treinava no Bolão... E os meus pais não deixaram eu ir.

Professor D

(...) e em [19]75 eu fui fazer EF. Como eu sempre gostava de futebol, de esporte, fui fazer EF.

93

Professor E

(...) Mas nisso daí eu já estava me aproximando muito do esporte, ‘né’? Eu gosto de futsal, gosto um

pouco de voleibol, de atletismo, e o curso de EF começou a aparecer muito. Então, isso me chamou a

atenção.

Professor F

‘Pô’, tem uma tal de faculdade lá que é de EF, que é pra jogar bola” [risos]

‘Né’? Aí, todo mundo achou gozado: “Poxa, mas, como assim jogar bola, ‘né’?” / “Não, é faculdade de

EF, mas tem só esporte, tal...” E a gente era fanático por esporte, a gente jogava bola direto nesse

grupo, ‘né’

Apesar de o esporte ter levado esses professores a se interessarem por cursar

uma faculdade de EF, o caminho trilhado por cada um, se fez distinto; cada um a seu

modo procurou satisfazer suas necessidades individuais, e, para isso, procuraram aquilo

que mais os atendesse na época: o aprofundamento sobre o fenômeno esportivo.

Entretanto, ao ingressar na faculdade, alguns deles viram suas expectativas em

praticar esportes um pouco abaladas pela proposta pedagógica da instituição.

Professor B

(...) Tanto é que, quando eu entrei na faculdade, eu quase fiquei, assim, meio chocada, porque, a

princípio, teve bastante aula teórica, ‘né’?(...)

(...) Eram poucas as aulas práticas, eram mais teóricas. Mas eu tive muitos bons professores(...) Aí,

depois, aquela falta da aula prática, ela ficou suprida porque as aulas teóricas ficaram ‘interessante’.

Professor F

Por exemplo, uma das matérias que deixou a gente, assim, impressionado era anatomia, que anatomia,

era da faculdade de medicina, e a gente mexia nos cadáveres, entendeu? A gente ficou... uma coisa que

ninguém imaginava que ia acontecer, ‘né’? Dentro da EF... o que que tem a EF a ver com cadáver, ‘né’?

E aí, até, a gente levava meio na brincadeira essa disciplina, porque a gente achou que não tinha nada a

ver com a gente. E aí, quando você começa a, realmente, ver a importância, ‘né’? Da anatomia dentro da

EF, e aí a gente começou a ter aula, ‘né’? Lá dentro, mexendo na musculatura, vendo, realmente, o que

era o corpo humano de uma forma maior, ‘né’? Então foi uma experiência marcante, assim, na vida da

gente, lá.

Percebemos aqui como estava arraigado nesses professores que o cursar uma

Faculdade de EF estava diretamente ligado à prática de determinadas atividades

esportivas, e que o currículo da faculdade viria ao encontro de suas expectativas. Por

94

esse prisma, a prática de atividades esportivas poderia ensiná-los a ensinar os conteúdos

propostos.

Sendo assim podemos pensar que o esporte estava entremeado na vida desses

professores muito antes de ingressarem num curso de EF, e estes já carregavam consigo

uma expectativa do que encontrar neste curso, expectativa advinda das experiências

individuais desses professores vivenciadas na vida social e cultural, ligadas ao

fenômeno esportivo.

Consideremos ainda, como parte dessas experiências vividas, as tradições que

estão no cerne da EF, e que foram construídas historicamente por militares, médicos,

entre outros tantos sujeitos, que contribuíram, de alguma forma, para as pré-concepções

sobre o que os professores pensavam sobre o curso.

Diante disso podemos repensar a hipótese de que a ESEFJ, tendo em seu

currículo formal 1/3 de disciplinas esportivas, direcionou o trato pedagógico

esportivizado para os professores entrevistados por nós, a fim de inculcar por meio do

esporte as ideologias estatais. Por mais que consideremos que isso pudesse acontecer

com certa frequencia, acreditamos que o curso veio a satisfazer uma demanda existente

para aprender a ensinar o esporte, criada nas diferentes e múltiplas influências sofridas

pelos sujeitos durante sua vida.

Se houve investidas estatais sobre a ESEFJ, com a intenção de que esta

instituição inculcasse em seus alunos as ideologias da classe dominante por meio do

esporte, e acreditamos que isso possa ter acontecido realmente, não podemos admitir

que o sujeito absorva toda a carga ideológica imposta como um ser passivo e sem força

de reação. Ao contrário, podemos pensar que o esporte só adquiriu tanta notoriedade

social sendo contemplado de forma hegemônica no currículo por nós estudado, por ter

tido a anuência dos sujeitos que com ele se identificavam e uma provável “negociação”

com a classe dominante sobre o que seria de fato legitimado.

Mas com essa vivência e formação acadêmica hegemonicamente esportiva,

quais foram as influências na prática pedagógica posterior à formação acadêmica?

4.2.2. Segundo fator de análise - A prática pedagógica dos professores de EF

na escola.

Tendo sido identificado que esses professores tiveram uma vida permeada pelo

fenômeno esportivo, não obstante nenhum tenha chegado a ser atleta, e que sua

95

formação acadêmica se valeu hegemonicamente do conteúdo esportivo, a prática

pedagógica cotidiana desses professores seguiu por esse caminho: o ensino do esporte.

Entretanto, seguindo pelos dizeres de Thompson (1981), devemos entender

como estrutura (não apenas econômica, mas como os diferentes elementos que

organizados permitem a vida em sociedade) e processo se articulam na história. Se

Thompson concebe que a estrutura determina a ação e a consciência humana, por outro

lado ele também propõe que a história não é predeterminada e que é a ação criativa dos

homens e mulheres que fazem a história, ou seja, que, em última instância, o que

importa ao historiador é entender o processo histórico.

Para nós, o que importa agora é compreender que, mesmo que todos os sujeitos

entrevistados tenham afirmado que o esporte era conteúdo hegemônico, a forma de

ensiná-lo não foi homogênea, ela se deu por meio de vários contextos particulares,

diante de estruturas que lhes eram oferecidas, além dos condicionantes históricos que

sustentavam algumas práticas, ou seja, mesmo com os conhecimentos adquiridos pelo

professores durante sua vida pessoal e profissional, a realidade cotidiana lançava-se

contra ele e este por sua vez, tratava disso em sua consciência e lançava sua experiência

modificada à consciência social.

Para ilustrarmos as proposições acima, tomemos como exemplo o Professor A

que se valia do Método Francês, muito difundido na década de 30.

Professor A

(...) Então, quando você prepara a EF, ela... Esse é o conceito: o conceito bio-psico-‘sócio’ da

EF, dado pelo método francês. O método francês, na minha opinião, foi um método espetacular, embora

criticado... Mas quem critica conhece somente o esquema ‘duma’ aula, mas não conhece a filosofia do

método.

Além disso, este professor valia-se também do método desportivo generalizado,

referência no início da década de 50. Entretanto o que nos chama a atenção no relato das

práticas pedagógicas adotadas é que em nenhum momento mencionou-se a concepção

pedagógica oficial daquele período, o tecnicismo, apesar de ter sido corrente nos

discursos de alguns de outros professores o ensino da técnica esportiva.

Ora, mas se a ditadura impôs de uma forma verticalizada uma nova concepção

educacional que direcionava o trabalho do professor, por que nenhum dos professores

mencionou que a concepção pedagógica oficial era o tecnicismo? Por desconhecerem o

fato de serem “marionetes” do Estado e absorverem toda a carga ideológica que lhes era

96

imposta, ou seja, nem ao menos sabiam o que estavam fazendo e por que faziam? Ou

talvez por que o governo tenha dado assessoria insuficiente a esses professores a ponto

de eles sequer mencionarem um termo tão em voga atualmente que é o tecnicismo? Em

contrapartida se perguntarmos hoje em dia para qualquer professor qual a concepção

pedagógica adotada oficialmente, acreditamos que poucos titubearão nas respostas.

Com isso pretendemos aqui levantar ponderações sobre o real peso e importância da

EFE para aquele governo, e desse governo para com a EFE, assunto que será

aprofundado mais adiante.

Entre os ignorantes e alienados, preferimos pensar que o sujeito, enveredado por

muitos condicionantes históricos, entre eles a forma prática instrumental de conceber a

EF, pensava aquilo que lhe era imposto, negociava, para enfim optar por esse ou por

aquele método. Pois, por mais que a escolha sobre os métodos pairassem a favor da

classe dominante, podemos inferir que essa escolha se deu também pelos costumes,

tradições, enfim, que o Professor A achava pertinente difundir, algumas delas

convergentes com o seu próprio modo de vida.

Ainda sobre a prática pedagógica do Professor A, ele se refere à EF como uma

importante ferramenta no ensino de outras disciplinas. Veja

Professor A

(...) Falava assim: “’Vamo’ brincar, vamos brincar com a matemática. Vamos brincar com a aritmética.

Vamos brincar...” Qual a coisa mais difícil foi encontrada...? O que ‘que’ os alunos não tão

entendendo...?” / “Olha, professor, fração é uma coisa difícil ‘deles’ entenderem...” / “Então vou fazer

uma aula... Hoje eu vou trabalhar com vocês. Nós vamos fazer, então... Aqui eu tenho um grupo

completo. Eu vou dividir: metade pra cá, metade pra lá. Quanto eu tenho aqui? Meio aqui e um meio

aqui. Se eu juntar os dois, fica uma unidade. Se eu dividir esse meio em duas partes, e esse [outro] em

duas partes, quanto ‘vão’ ficar? Vão ficar um, dois, três quartos. Um quarto representa a fração de

vocês. Se juntar todos, quatro quartos é um inteiro. Porque mostrar pro aluno que 2/4 é igual a 4/8 é

esquisito!

Adentrando ao contexto dessa escola o Professor A afirma que a unidade escolar

era experimental e os professores tinham a liberdade de adotar métodos alternativos

para o ensino dos conteúdos aos alunos. Portanto é perfeitamente plausível pensarmos

que o professor adequou os seus interesses, adquiridos e vividos na sua vida pessoal

com as estruturas que lhes eram oferecidas, não impostas de uma forma vertical sem

97

espaço para resistência e contestação, mas sim num diálogo entre o ser social e a

consciência social.

Outro professor afirma que seu método enquadrava-se no que Elenor Kunz

chamou de EF recreacionista, ou seja, os alunos escolhiam o esporte a ser praticado e o

professor limitava-se em, às vezes, apitar os jogos

Professor F

Olha, vou ser sincero pra você, ela foi um meio termo. Alguns momentos, eu achei que era importante

soltar a bola pra eles só, realmente, porque não tinha perspectivas ‘diferente’ disso. Nós não

encontrávamos um caminho, entendeu? Nós buscávamos... Não sei se, até, eu buscava, na época, isso.

Mas chegou alguns momentos que eu, várias vezes, fiz isso; muitas vezes fiz isso. E: “Pessoal, a bola ‘tá’

aqui, ‘vamo’ dividir as turmas aí, tal”. Mas, em contrapartida, nós éramos o destaque da escola. ‘Era’

nós que organizávamos a festa junina, ‘era’ nós que fazíamos ‘toda’ as atividades ligadas à parte

cultural, à parte musical: era a EF que incorporava todo esse trabalho de envolvimento com os jovens.

Então: “Poxa, professor, ah, não gosto de EF...” / “Não? Mas ‘cê’ gosta de teatro? Então nós vamos

começar uma turma de teatro.” A gente começou... Nós ‘tivemo’ um grupo de teatro. ‘Fomo’ fazer

apresentação em Campinas, e tal, entendeu? De quem era isso aí? Da Cultura? Eu encarava como uma

atividade da EF, mesmo não sendo, ‘né’P? Porque não tinha consumo de adrenalina, não tinha nada;

não tinha nada relacionado ao físico deles. Mas ‘a’ nível de relacionamento... Quer dizer, o pessoal do

teatro ia assistir o jogo e o pessoal do jogo ia assistir o teatro: havia uma integração, ‘né’? Então

acontecia muito disso. Que eu fiz isso. Até, não acho – uma avaliação bem crítica, assim –, não acho que

fiz errado. E também não acho que, muitos, fizeram errado de fazer isso, de soltar a bola.

Percebe-se que, a exemplo do Professor A, o Professor F nos dá um importante

caminho a ser seguido, ou seja, ambos justificam o seu trabalho não a partir de um

corpo de conhecimento próprio da área, mas a partir de afazeres na esfera educacional

que lhes conferiam algum status. Nem mesmo o esporte que emergia no cenário

internacional como panacéia social, justificava-se como conteúdo sine qua non. Outras

tarefas, muitas sem qualquer vínculo28 com as práticas da cultura corporal de

movimento, se faziam presentes no cotidiano deste professor

Professor F

(...) no Gandra, quando encerrou as atividades técnicas, eu era professor, e foi desativada a marcenaria.

A marcenaria da escola, que ocupava um galpão que seria um ginásio coberto, vai. Um galpão de

indústria – imagina um galpão de indústria...

28 Não pretendemos aqui, advogar que a festa junina, desfiles cívicos, entre outras atividades sejam de incumbência exclusiva do

professor de EF. Não obstante, estas, ao menos, têm um processo histórico que as justificam dentro da esfera educacional.

98

Sim.

E eu entrei ali e falei assim: “Puxa vida, isso aqui dá uma quadra!” E cheio de rato, de madeira. E meu

time de voleibol era bom, ‘né’? E eu falei: “Puxa vida, o que ‘que’ eu vou fazer aqui?” Ah, cheguei na

diretora, falei: “Diretora, o que nós ‘podemo’ fazer aqui, pra...” / Ela falou: “Eu não tenho a solução” /

Eu falei pra ela: “Eu tenho. Eu vou parar minha aula e eu meus ‘aluno’ ‘vamo’ limpar esse salão. Eu só

preciso que ‘cê’ arrume uma empresa que venha buscar toda essa madeira e troque por algum material,

‘né’? Não dá de graça porque...” Tudo quebrado, coisa estragada, já sem uso, mas que tinha um valor

agregado. E aí ela conseguiu uma olaria que iam usar aquilo pra queimar. E aí a gente fez um acordo: o

cara trazia uma carga de tijolo e levava uma carga de madeira, por exemplo, entendeu? Então muitas

obrinhas lá foram ‘feito’ com tijolo desse espaço, e eu ganhei uma sala, um ginásio coberto – que não

tinha um pé direito alto como um ginásio, ‘né’? Era um pé-direito, sei lá, de quatro metros, que dava

pra... Então, sabe? Conclusão da história: era importante aquele espaço pra mim, porque chovia, eu

quebrava o meu treinamento. Então, mesmo que não fosse pra ter bola, mas ter a parte física, a gente...

P... (palavra inapropriada para transcrição) foi fantástico, a diretora gostou do trabalho. Tanto é que,

depois disso, eu virei meio auxiliar da direção da escola, entendeu? Eu mandava mais que a diretora,

‘né’? Porque há uma carência de... Hoje, eu não sei como é que ‘tá’, mas, na época, faltava muito

dirigente de escola. Subia, ‘né’? Fulana subia pra vice-diretora, e a diretora era indicada. Então

acontecia de você ter pessoas inexperientes na vice-direção da escola. Então a EF era o suporte, era eu

que organizava os eventos, que fazia esse trabalho mais forte, ‘né’? Por ser eu, ‘né’? Por ser eu, homem.

Então assumia algumas coisas... Que não tinha homem na direção de escola, era tudo mulher. Então elas

não tinham a força de trabalho, e eu capturava isso. Então a professora... Nós éramos em dois

professores de EF. Então, a professora Silvia, que trabalhava comigo na época, a gente: “Silvia, toma

conta dos meninos aqui, que eu vou lá ajudar na direção”. Então a gente fazia essa permuta de função,

‘né’? Mais pra colaborar. Por isso que muitas coisas do papel, ‘né’? Porque a gente levava no peito,

‘né’? Desafiava...

A extensão dessa citação justifica-se à medida que enfatiza, em como o

professor tratava suas expectativas individuais de ensinar determinados conteúdos, ao

mesmo tempo em que procurava satisfazer suas necessidades e interesses em busca de

um maior status na escola, ou ainda como lidava com as estruturas físicas e como agia

sobre ela.

Não se trata, portanto de um sujeito passivo, que diante das dificuldades ou

imposições estruturais, se acomoda e conforma-se com aquilo que lhe é oferecido. Por

esse prisma Thompson afirma:

A “experiência” (descobrimos) foi, em última instância, gerada na “vida

material”, foi estruturada em termos de classe, e, consequentemente o “ser

social” determinou a “consciência social”. La Structure ainda domina a

99

experiência, mas dessa perspectiva sua influência determinada é pequena.

As maneiras pelas quais qualquer geração viva, em qualquer

“agora”, ”manipula” a experiência desafiam a previsão e fogem a qualquer

definição estreita de determinação (THOMPSON, 234, grifos nossos).

Diante disso, percebe-se como as estruturas (no sentido macro) determinam até

certo ponto, o que os sujeitos tendem a fazer, como mostramos com o depoimento do

professor citado acima, esses reagem contra essas estruturas e lançam sobre elas suas

expectativas, interesses e necessidades.

No depoimento fica claro como as atividades “fora” do campo de atuação da EF

exercidas no trato pedagógico do professor estavam entremeadas com as tradições que a

área traz em seu cerne. Ou seja, as atividades tinham um cunho biológico, de preparação

do físico, ou seja, práticas preponderantemente corporais. Assim sendo, podemos inferir

o quanto os condicionantes históricos determinavam a prática desse professor, mesmo

que esse as adequasse em consonância com seus interesses.

No que diz respeito aos conteúdos e a forma como eram definidos, o Professor E

teceu algumas considerações que demonstram as peculiaridades do contexto que

pertencia:

‘Quem’ definia ‘era’ as condições da escola. Se nós tínhamos uma quadra polivalente e nós tínhamos a

tabela de basquete e os postes de voleibol, então nós íamos ministrar o voleibol e o basquetebol. Eu dei

aula durante quase dez anos, na escola Rafael Mauro, que era um chão batido. Então ali não dava pra

dar basquete. Primeiro, porque não tinha tabela, ‘né’? Mas o voleibol dava pra dar, porque nós

improvisamos dois postes, e a gente amarrava a rede, lá, pra dar. E dava pra dar o futsal e o handebol.

E, que nem eu falei, o atletismo sempre... a ginástica corporal, sempre. Então [era de acordo com] as

condições da escola. Eu dei aula durante um ano numa escola, João Mendes de Campos, que eu dava

aula num terreno baldio. Quer dizer, ali eu só dava queimada e futebol, não dava pra dar outra coisa,

‘né’? E um pouquinho de handebol, pouca coisa, porque como eles não conheciam, ‘né’? Às vezes, a

gente vai passando, vai tentando. Então, as condições da época, da própria escola que norteavam a

nossa prática.

Como nos afirma o Professor E, as condições de trabalho é que, em boa parte,

definiam o que devia ser trabalhado durante o ano, ou seja, diante das dificuldades

apresentadas nem sempre era possível trabalhar o futebol, handebol, vôlei, basquete,

como era preconizado pelo governo por meio dos campeonatos promovidos. Outras

100

práticas corporais como o atletismo, ginástica corporal e também a queimada eram

comumente de trato pedagógico do professor.

Sendo assim, por mais que consideremos a estrutura como determinante no

planejamento deste professor, que dentro de certos limites impostos por esta, erigiu seu

planejamento pautado também naquilo que julgava relevante ser tratado dentro do

âmbito escolar naquele contexto social. Ele não foi, como nos insinua a literatura

especializada, uma “marionete” controlada por uma estrutura que determinava o seu

trabalho, ao contrário, como podemos notar esse sujeito foi ativo no seu trato

pedagógico. Dentro de alguns limites impostos e as tradições, costumes, valores, modos

de vida, enfim, este professor mediou tais interesses, muitas vezes antagônicos, e foi o

protagonista no seu cotidiano pedagógico. Por mais que consideremos as lamentações

subjacentes no depoimento do professor em não conseguir trabalhar o esporte com suas

regras universais, não podemos considerar o caráter alienante disso. Isso porque o

esporte é um fenômeno multifacetado, e, como evidenciamos no capítulo 3.4.1 ele foi

sendo construído por vários atores sociais, inclusive os menos abastados, e ganhando

legitimidade ao longo de século XX.

Sendo assim, não podemos afirmar que o trato sobre o fenômeno esportivo como

era preconizado pelo governo faria do professor massa de manobra estatal por meio da

provável coloração ideológica imputada ao esporte. Trilhar por esse caminho é

desconsiderar a ação humana na criação e recriação das práticas sociais. Práticas que

são construídas por meio de conflitos e tensões entre as classes, nem sempre claros à luz

da teoria, mas vividos no dia a dia por sujeitos de carne e osso. É colocarmos a

ideologia como uma “teia” que captura a “mosca” e essa, sem força de reação, espera

pelo golpe final de seu predador.

Apesar dessa singularidade do professor citado acima, outros professores

tiveram o handebol, basquete, futebol e vôlei como práticas hegemônicas, oferecidas

bimestralmente, discurso este abundante numa vasta literatura dos anos 80 e 90.

Entretanto, a visão de esporte que esses professores tiveram e a forma de trato

pedagógico com esses conteúdos chocavam-se em alguns pontos, convergiam em

outros, isso porque cada um ao seu modo tratava em sua consciência aquilo que lhe era

oferecido. Se por um lado havia homogeneidades, pelo menos no que tange à seleção de

conteúdos, por outro a visão sobre o fenômeno esportivo e a EF tinha suas

peculiaridades. Veja:

101

Professora C Primeiro bimestre: a gente tinha que trabalhar voleibol. Então tinha lá uma bola ou duas, você tinha que

trabalhar toque por cima, toque por baixo, jogo, primeiro trio, depois... Assim, era isso que você tinha

que trabalhar. Segundo bimestre: basquetebol. Aquela coisa, aquela fila. Entendeu? Uma bola ou duas

bolas, aquela fila...

Olha, eu acho assim, a EFE, ela... eu acho que é preparar essas crianças aí para fazer um bom uso do

seu corpo, das suas horas de lazer, focando bastante respeito, de você ter uma vida salutar, sabe?

Porque, não adianta... Eles todos aqui: eu adoro jogar futebol com todos esses meninos. Daqui a dez

anos, eles não têm na cabeça deles... Dez vão jogar futebol, mas eles não conseguem entender o

benefício. Hoje em dia, você já consegue trabalhar isso com eles, sabe? Com os conteúdos que tem,

mostrando pra eles que isso, a atividade física... A atividade física, ela tem que ser desde que nasceu,

porque é o movimento, o seu movimentar, até ficar velhinha. Então, o que ‘que’ eu vejo: que é esse

respeito, essa... isso tudo tem que ser ensinado dentro da EF: tudo, tudo. Não tem um segundo pra você

deixar de educar, um segundo.

Nota-se como o esporte, apesar de ser trabalhado de forma fragmentada e

justificado pelos aspectos biológicos, não se restringia a estes aspectos. Segundo a

professora, a EF com seus conteúdos esportivos deveria ensinar “tudo”. Mesmo com a

Revista Brasileira de EF e Desportos advogando pelo esporte dentro de uma perspectiva

pragmática pós-75, a professora lançava mão de uma perspectiva que navegava entre as

duas perspectivas, dogmática e pragmática, como notamos acima.

Professor D (...) dividia em bimestre: quatro ‘bimestre’. Basquete, vôlei, handebol e futebol no fim, eu ficava dois

meses trabalhando com modalidade. Porque eu não tinha tênis de mesa, hoje eu tenho. Antigamente eu

não tinha mesa de tênis de mesa. Ginástica: a gente fazia alguma coisinha. Como a gente era só

professor masculino, na época, que eu fazia esses ‘esporte’ com eles... A gente tinha as ‘equipe’ de

competição no famoso campeonato Colegial que existia antigamente. Então eu já sabia, e eu, por vários

anos, eu fiz isso: eu mudava no bimestre a modalidade. Eu podia começar com futebol, com basquete, um

ano, mas sempre naquela linha. E como eu fiquei muito tempo numa escola só, eu já sabia que a gente

começava com o handebol. Sempre na sequência: handebol. Handebol leva o basquete. Depois, no

terceiro bimestre, a gente fazia voleibol, e, por fim, o futebol. Que, no último bimestre, acabava o futebol

virando o voleibol, que eles gostavam muito de voleibol na época, tava começando a crescer o voleibol

no Brasil. Mas era isso que eu fazia, não fazia nada de diferente.

(...) Dividia por bimestre e por modalidade. Então eu doutrinei os alunos lá, eles já sabiam que todo ano

ia ser aquilo. E era muito gostoso, prazeroso. Era feito um exame médico nos meninos, um exame

biométrico – o médico acompanhava, entendeu? O professor fazia o exame biométrico. Hoje não existe

mais nada disso. Se tiver algum ‘poblema’ com o aluno aí, ele cai, ‘cê’ chama o resgate.

102

A respeito da importância da EFE (...) muito importante, [por]que você forma cidadão...

Mais uma vez deflagra-se o professor navegando pelas duas perspectivas,

entretanto faz-se um adendo aos aspectos biológicos que emergiam como sustentáculo

para a área. Para esse professor, submeter os alunos a esses exames médicos validados

pelo paradigma científico hegemônico trazia algum status para a área e,

consequentemente, para o seu trabalho pedagógico.

Professor E Olha, nós fazíamos o nosso planejamento bimestral. E dentro do bimestre era explorado um esporte,

‘né?’ Que nem eu falei: muita Ordem[?] Unida[?], muita performance, corridas, coordenação motora. O

atletismo era bastante trabalhado como a forma globalizada, e a gente trabalhava os esportes bimestrais.

Então o futsal num bimestre, o voleibol outro bimestre. O basquetebol, outro bimestre. O handebol,

outro. Sendo que sempre havia uma flexibilidade: nós estávamos dando o handebol, mas, de vez em

quando, precisava dar o futsal. Nós estávamos jogando o voleibol? Mas, de vez em quando o futsal...

Porque o futsal, o futebol como um todo, ‘né’? Ele é muito requisitado, né? Ele é muito... Ele

monopoliza...

(...) e eu acho que o objetivo maior da EF é trabalhar o aluno como um todo – como um todo, que eu

digo, com uma formação globalizada, e procurando levá-lo a uma coordenação motora mais apurada,

‘né’?

As peculiaridades deste depoimento ficam por conta da ênfase à coordenação

motora, sendo esta um fim para a EFE, que, a nosso ver, contrapõe a uma formação

globalizada. É possível perceber como o professor navega do macro – formação

globalizada - para o micro - coordenação motora -, entremeando os dois conceitos, que,

à primeira vista, são antagônicos.

Contudo, compreendendo o processo social que engendrou a experiência desse

professor, levemos em conta que o modo de produção vigente apregoava valores e

modos de vida que contemplassem a formação da sociedade vislumbrada (formação

globalizada), da mesma forma que a EF tinha alguns condicionamentos construídos

historicamente (habilidades motoras) que antecediam a este modo de produção, ambos

coabitando no mesmo espaço: a escola. O que surgiu desses conflitos, ou seja, o que era

ou não objeto de trabalho da EF, refletiu a prática pedagógica diária desse professor.

103

Professora B (...), por exemplo, dar handebol agora e depois basquete. Podia mudar. E, se por um acaso, eu tinha

estipulado no planejamento: “Vamos lá: handebol, vôlei basquete e atletismo”, se eu quisesse mudar, eu

mudava o meu planejamento. Eu podia mudar, eu podia. Porque, às vezes... Como eu falei pra você: às

vezes, a gente tinha a Inter-Escola, ‘né’? Então eu cheguei a levar, [durante] muito tempo, o pessoal meu

lá pra Louveira, porque eu também dei aula lá em Louveira, ‘né’?

Veja que esta professora, diante das necessidades que emergiam, alterava o seu

planejamento. Isso se contrapõe ao discurso do professor D quando afirma que

“doutrinava” seus alunos com um planejamento inflexível. Além disso, para esta

professora o esporte não se restringia ao gesto técnico

É, porque, veja só, o que ‘cê’... Não ficou dentro só do esporte: esporte, esporte, esporte. Você explicava

um monte de coisa: por quê? Por que ‘que’ você faz isso? O que ‘que’ você tem que fazer? [A]o que

‘que’ o esporte te leva? Então eu sempre brincava assim: “Ó, o esporte te leva ao pensamento, porque

você não fica só naquele quadradinho, ‘né’?”

Professor A É. Eu sempre fiz meus programas levando sempre o aspecto cognitivo, psicomotor e o afetivo. Sempre,

nunca desprezei. Isso, eu acho que o aluno tinha que sair da escola com conhecimento de regras, e ter

conhecimento dos valores e das vantagens que a EF propiciava. Então, eu colocava sempre como

objetivo, ‘né’? Fazer com que o aluno pudesse, sem a observação do professor, exercer a atividade física

de uma maneira prazerosa. Então, quantas e quantas vezes você ‘tá’ numa praia, e: “’Vamo’ jogar um

futebolzinho, ‘vamo’ ‘bater’ um voleibol” E alguém é convidado: “Sabe, ‘cê’ me desculpe, mas eu não

vou”

Quer, mas não vai, não é?

É. E por quê? Não vai porque não sabe, porque não tem aquela habilidade. Então o segundo aspecto é o

aspecto psicomotor, de habilidades. Um é o de conhecimento, que é o cognitivo. O psicomotor, que é as

habilidades. E o afetivo, que é o afetivo, o relacionamento, a maneira de saber e reconhecer. Eu acho

que a EF na escola, principalmente eu encarava assim: a EF é o veículo pra formar cidadãos.

O veículo para a cidadania.

É pra cidadania. O garoto tem que aprender a respeitar a vitória e a derrota, ter como consequência de

uma atividade. E se você prepara... Porque na vida ele vai ter muitas adversidades, não vai ser tudo cor-

de-rosa. Então, ele tem que saber encarar isso, e, pra saber encarar, ele tem que ter aprendido isso.

Muito bem.

104

Não é dando uma medalha pra todos os atletas que participam de uma competição... Não, ‘cê’ tem que

valorizar aqueles que são melhores, mas não desvalorizar aqueles que não chegaram. Porque é muito

mais difícil saber perder do que saber ganhar.

Apesar do Decreto 69.450/71 sublinhar que a EF desperta e desenvolve

qualidades ligadas aos aspectos cognitivo, psicomotor e afetivo, em nenhum momento

há a recomendação dos conceitos adotados, e aqui nos referimos aos conceitos

incomuns que são utilizados pelo professor, ou a possível divisão do programa de

ensino como o professor nos oferece. Podemos pensar que essa divisão, que se tornou

hegemônica após a elaboração dos Parâmetros Curriculares Nacionais na década de 90,

tenha influenciado as considerações deste professor sobre o ensino da EF no período

abordado por este estudo, tendo em vista que o professor atuou até o ano de 2009 no

ensino superior. Não obstante, este professor atuando numa escola experimental,

poderia, por que não, lançar mão de uma forma incomum para a época na elaboração do

programa de EF, haja vista ainda que o método francês permeou boa parte da atuação

pedagógica deste professor, mesmo depois desse método ter deixado de ser

hegemônico.

Professor F (...) Então, o que a gente fazia? Por exemplo, o futebol de salão, ele sempre terminava o nosso

planejamento anual: se eram quatro bimestres, o futebol de salão era o último, porque era o que eles

mais gostavam. Então, ‘cê’ tem que ter um tempo de adaptação pra isso. Mas chegou uma hora que eles

não queriam mais jogar futebol de salão, eles queriam jogar handebol, ‘né’? Por um estímulo meu, e

porque saía vinte gols, ‘né’? Num jogo que era 20 gols, no futebol de salão saía 1, 2 gols. Então tinha o

agente motivador disso, ‘né’? E o gordinho jogava. O baixinho jogava no handebol. Aquele ruinzinho,

que não tinha coordenação, ele jogava no handebol (...)

Então, o que ‘que’ acontece? Esse planejamento era difícil de fazer, de executar. Não de fazer: fazer era

fácil; fazer no papel era rapidinho. Mas executar era difícil. Voleibol: “Ah, professor, ‘pô’, o voleibol é

coisa de “bicha”, não ‘vamo’ ficar jogando essa p... (palavra inapropriada para transcrição) de vôlei”,

entendeu? / E aí eu falava: “Não, pessoal, são fundamentos diferentes, tem que passar por todas as

etapas”. Então muitas vezes do planejamento, fazia parte inicial da aula com futebol de salão, depois

fazia o voleibol, depois encerrava futebol de salão, pra você poder chegar naquilo. Que é o que eu falei

que eu consegui chegar. E acho que qualquer professor de cada modalidade consegue, ‘né’? Eu fiz com o

handebol(...)

Na citação acima fica claro que este professor tem um apreço grande pelo

handebol, o que fez, como afirmado acima, que ele estimulasse seus alunos à prática

105

desse esporte. Diante de alguns professores que optavam muitas vezes pelo futebol, esse

sujeito adotava com mais ênfase aquilo que julgava ser mais importante e que mais o

conviesse naquele momento.

Ora, mas se levarmos em consideração o professor como um sujeito alienado,

como apregoam algumas correntes de pensamento, incumbido de promover os valores

que interessavam à classe dominante por meio do esporte competitivo, da seleção dos

mais habilidosos, enfim, perguntamo-nos: onde é possível perceber isso no depoimento

citado? Ao que nos parece, fazer os alunos participarem das atividades,

independentemente da habilidade exigida, era o que satisfazia pedagogicamente esse

professor, mesmo que isso fosse de encontro com as preconizações subjacentes do

Estado.

Assim sendo, percebemos nos trechos citados as peculiaridades de cada

concepção de esporte vislumbrada, muitas navegando pelo pragmatismo, outras pelo

dogmatismo. Não se tratava deles optarem, deliberadamente, por se enquadrar nessa ou

naquela concepção, mas, simplesmente, agiam dessa ou daquela forma,

espontaneamente, e um leitor “de fora” é que acabaria por classificá-los como

praticantes de alguma delas. A divisão dos conteúdos por bimestre, aspecto comum

entre os entrevistados, nos dá a noção de que, dentro de certos limites, o professor fazia

aquilo que mais o apetecia, mas também seguia certas normas que eram veiculadas no

contexto vivido. Fato é que, para esses depoentes, a EF se fazia importante dentro da

esfera escolar, e isso se dava por aquilo que o esporte, como conteúdo hegemônico,

poderia trazer em seu cerne: benefícios físicos, morais, cognitivos. Como foi discurso

corrente à época, o esporte era tido como panacéia para todos os reveses sociais. Para

esses professores, o esporte contribuía para a formação do cidadão.

Como já apontamos no corpo deste trabalho, o esporte vinha ganhando

notoriedade social desde o final do século XIX, e ao que nos afirmam os depoentes

citados, foi conteúdo hegemônico no período abordado por este estudo. Apesar disso,

quando questionamos um de nossos sujeitos por que o esporte foi adotado com tanto

afinco ele afirma:

Professor F (...) a EF, na época, precisava de uma sustentação, precisava se valorizar, ter a sua valorização perante

o professor de português, matemática, de química, física... ele tinha... nós tínhamos que ter essa

valorização. E o esporte foi o vilão e foi o beneficiador disso. O vilão por quê? Porque aquele professor

106

que queria encostar o corpo, ele teve a oportunidade dele: soltava a bola na quadra, dividia três times, e

não tinha a parte inicial, a parte [palavra ininteligível] final da aula – não tinha, só tinha a parte inicial,

principal e final da aula, que nós chamávamos de volta a calma, aqueles nossos ‘termo’ da época. Parte

inicial da aula, que era o aquecimento, parte principal da aula, que era formação global, e depois a

gente chamava de parte final da aula, que era o volta a calma (...)

(...) se fortaleceu. Porque aquele profissional que gostava do esporte tratou aquilo como uma coisa

principal da sua profissão: então se aperfeiçoou, fez curso, atualizado, ‘né’? Pra poder ter uma

performance melhor. E, ao mesmo tempo, ela criou essas barreiras, e o professor que queria encostar

achou o caminho, ‘né’? Entendeu?

Isso vem ao encontro do que afirmamos no capítulo 3.4.1, ou seja, o esporte se

fez presente não por uma imposição cultural desenfreada dos países desenvolvidos a fim

de disseminar suas ideologias, mas sim pela necessidade dos professores em legitimar o

seu fazer pedagógico no ambiente escolar.

Talvez pela sua fácil didatização, como apontado por Oliveira (2004), tenha

contribuído efetivamente para os professores se apropriarem do fenômeno esportivo e o

pedagogizassem nos moldes da concepção pedagógica oficial. Por esses e tantos outros

fatores, o esporte, que vinha sendo veiculado como uma possível ferramenta educativa e

como símbolo de modernidade, satisfez os interesses, expectativas e necessidades dos

professores, que por sua vez, procuravam algo para sustentar sua presença como

professores. Os preceitos científicos, boa parte ligados aos aspectos biológicos,

consubstanciados com o ensino do esporte vieram a atender essa necessidade pululante.

Com isso não estamos querendo absolver o Estado de suas intenções para com o

fenômeno esportivo, é claro que havia, como nos adverte Oliveira (2001), uma luta

cultural pertencente ao que seria validado e legitimado ou não dentro do âmbito escolar.

Não obstante esses professores não foram meros coadjuvantes nesse processo, entre as

escolhas que faziam no seu dia-a-dia, eles escolheram o esporte, cada um ao seu modo,

como semelhanças e particularidades apontadas acima.

A esse respeito, Thompson (1981) tece as seguintes considerações

Essa imposição será sempre tentada, com maior ou menor êxito, mas não

pode alcançar nenhum êxito, a menos que exista uma certa ‘congruência’

entre as regras e visão-de-vida impostas e a questão necessária de viver um

determinado modo de produção. Além disso, os valores, tanto quanto as

necessidades materiais, serão sempre um terreno de ‘contradição’, de luta

entre valores e visões-de-vida alternativos. Se dizemos que os valores são

107

aprendidos na experiência vivida e estão sujeitos às suas determinações, não

precisamos, por isso, render-nos a um relativismo moral ou cultural. Nem

precisamos supor alguma barreira intransponível entre valor e razão.

Homens e mulheres discutem sobre valores, escolhem entre valores, e em sua

escolha alegam evidências racionais e interrogam seus próprios valores por

meio racionais. Isso equivale a dizer que essas pessoas são tão determinadas

(e não mais) em seus valores quanto o são em suas ideias e ações, são tão

“sujeitos” (e não mais) de sua própria consciência efetiva e moral quanto de

sua história geral. Conflitos de valor, e escolhas de valor, ocorrem sempre.

Quando uma pessoa se junta ou atravessa um piquete grevista, está fazendo

uma escolha de valores, mesmo que o os termos da escolha e parte daquilo

que a pessoa escolhe sejam social e culturalmente determinados (pg.240,

grifos do autor).

Para esses professores, o ápice da esportivizacão da EFE era algo a ser

contemplado, valorizado, pois o esporte era um conteúdo possível que ganhava

legitimidade social. Contrapondo o discurso daqueles que ficam em seus gabinetes

pesquisando por meio de leis e decretos como foram as práticas pedagógicas daqueles

professores e levantando a tese sobre uma pseudo imposição cultural via esportivização,

nossos depoentes tecem as seguintes considerações a respeito

Professora B Foi. Nossa! Foi muito bom esse período pra eles (...) É, porque, veja só, o que ‘cê’... Não ficou dentro só

do esporte: esporte, esporte, esporte. Você explicava um monte de coisa: por quê? Por que ‘que’ você faz

isso? O que ‘que’ você tem que fazer? [A]o que ‘que’ o esporte te leva? Então eu sempre brincava assim:

“Ó, o esporte te leva ao pensamento, porque você não fica só naquele quadradinho, ‘né’?”

Professora E Isso. Eu acredito que foi bom. Por quê? Eu converso, hoje, com meus ex-alunos, e eles chegam a

comentar que eles ficaram com um legado que foi passado na época. Eles sabem a importância da

atividade física, ele sabe efetuar uma corrida; ele tem noções gerais de vários esportes, ‘né’? Ele sabe

utilizar as horas de lazer sabiamente; ele sabe das coisas nocivas à saúde. E eles comentam, alguns, que

hoje, na escola, nós ‘tamo’ muito longe disso. Então, o que acontece [é] que eu acho que essa

performance que nós trabalhávamos na época, eu acho que ficou um legado aí de bom, porque se eles

tão lembrando disso é porque (...)Deu resultado na época. Porque eu acho que o professor tem

obrigação de passar, ele tem que acrescentar ao conteúdo [para o] que o aluno vem pra escola (...)

108

Além disso, como citamos anteriormente o Professor F também viu aspectos

bastante positivos na esportivização da EFE no período da ditadura militar. Ao que nos

parece, esses professores não foram coagidos a abandonar seus conteúdos, e, a partir da

instauração de uma nova diretriz educacional, começarem a adotar outros,

hegemonicamente esportivos. Seria possível o esporte se tornar um conteúdo

privilegiado nas aulas de EFE sem que para isso não houvesse a anuência dos

professores? Uma investida estatal contra os antigos costumes que permeavam a área

permaneceria sem contestação dos professores? Até que ponto os valores, tradições,

modos de vida, enfim, que são trazidos por aqueles sujeitos podem ser corrompidos por

meio de leis, decretos e de um possível cerceamento, sem resistência? Seguir por essa

esteira é ignorar a presença de um sujeito que pensa e às vezes age perante aquilo que

lhe é oferecido, e que essa ação lança-se diante daquilo que lhe é proposto, emaranha-

se, e segue por caminhos não maquiavelicamente planejados.

Outro ponto que merece destaque no que diz respeito ao trato pedagógico diário

dos professores entrevistados por nós, refere-se à forma de avaliar os alunos. No que

tange à norma legal preconizava-se levar em conta, para efeito de avaliação, a aptidão

física. Apesar disso quando questionamos esses professores sobre a forma de avaliação

que comumente faziam no período, mais uma vez os depoimentos mostraram

semelhanças e rupturas.

Professor A Sim, sim, sim. A avaliação nós fazíamos. No começo de cada ano, sempre – não sei se semestre –

tinha[?] o exame médico biométrico. E no fim do ano também. Então se fazia uma avaliação física dos

alunos. Isso havia, sim. Não havia, como hoje, nota – se não me engano, eles exigem nota, e era dividido

por conceitos.

Professora B Número, número. Depois que passou a ser conceito. Mas era assim, eu dava uma... Porque lembra que

eu tinha dito? Quando chovia, você dava aula em sala de aula, ‘né’? Porque, normalmente, a gente

usava... Como era aqui na Vila Rio Branco, um ficava na quadra da Avenida Rio Branco e o outro ia lá

pro Pedro Raimundo (...) então, um ficava aqui e o outro ficava lá. Ou os dois pra lá – cada um num

lugar, ‘né’? E a gente, além da prática que eles tinham que fazer, ‘né’? A teórica também a gente dava.

Então a avaliação era basicamente a aula prática...?

E teórica.

109

No caso da aula prática, a senhora avaliava a qualidade do jogo? Como era?

É, porque você não pode analisar aquele que tem dificuldade, ‘né’? O que tem dificuldade, ele tem

dificuldade, mas ele deu o máximo que ele pode dar naquele momento.

Professor C (...) eu avaliava era ‘atividades’, participação.

Professor D Olha, ‘cê’... Eu ‘tô’ acostumado, ‘né’? Eu ‘tô’ com... Vai pra 32 anos de Estado. Eu aprendi em

faculdade, com o professor, sempre marcando na caderneta quem fazia – sempre tem aquele que se

sobressai, ‘né’? Então, eu aprendi com um professor chamado Milton, que ele sempre marcava. Um dia

eu perguntei pra ele por que ‘que’ ele fazia aqueles três pontinhos. Ele tinha símbolos. Eu, até hoje eu

faço isso. O símbolo do bom menino, do que não valia nada, o que sabia tudo, o que tinha coordenação

motora, o que não tinha. E ele me explicou o símbolo. Ele falou: “Olha, esse aqui é o seu símbolo”. Eu

tenho os meus até hoje. Eu criei. Não tanto que nem o professor, ‘né’? Porque ele era de faculdade, ele

tinha vários símbolos. Na escola não precisa de tantos. Então tem o pessoal que participa, o pessoal que observa, o pessoal que vem conversar com você, o

pessoal que vem te enganar, entendeu? Vem conversar com você ‘pá’ passar batido, como eles falam.

Mas a avaliação era isso aí. Mas era uma avaliação quase que unânime, porque todos participavam.

Naquele tempo existia ainda a aula: fazia chamada, eles ficavam perfilado, como se fosse um quartel.

Descansar, sentido. Ensinava marcha, entendeu? Aí, tinha a parte de aquecimento, tinha uma parte

principal. Era tudo como eu aprendia na faculdade. Professor E Olha, eu fazia avaliações práticas, ‘tá’? Eu passava noções de regras, ‘né’? Mas nunca fiz uma prova

escrita, ‘né’? Fazia os testes práticos que tinha na época, ‘né’? De flexibilidade...

(...) aptidão física. Puramente, ‘tá’? E fazia alguns testes ‘a’ nível do esporte que nós estamos

desenvolvendo, ‘né’? Então o basquetebol: fazia uma avaliação de bandeja. Não o número de acertos,

mas a prática pedagógica. No voleibol: a manchete, o levantamento, o saque. O arremesso do handebol,

uma defesa do handebol com o pé. Então é uma atividade prática, nós temos uma avaliação prática nesse

sentido. E eu sempre avaliei, também, os alunos por frequência, ‘né’? Já que eles iam e faziam aula

mesmo. Então a atividade contava muito aí, eu acho.

Professor F Não, não tinha avaliação nenhuma.

Diante dessas citações, podemos afirmar como o ato de participar da aula era um

critério importante para avaliação dos alunos em alguns dos depoimentos explicitados.

Podemos inferir que essa semelhança obtida nos depoimentos tenha relação direta com

o tipo de EF preconizada na LDB 5.692/71 e no Decreto 69.450/71, ou seja, tida como

110

atividade, onde a prática se sobrepõe aos estudos teóricos. Sendo atividade, respaldada

pela lei e diante de um longo trajeto histórico de atividades de cunho prático, como

esses professores poderiam avaliar seus alunos sem utilizar o critério da participação,

ainda que essa participação pudesse estar voltada à formação de atitudes? Não estamos

querendo dizer que a lei, enquadrou o professor em um sistema de avaliação que tinha

como referência a prática, ao contrário, pensamos que a lei só veio contemplar uma

demanda que já havia desde os primórdios da EF. Portanto, podemos dizer que essa

semelhança nos depoimentos é fruto de um construto histórico, em que o sujeito se

apropria e lida com isso na sua consciência e contexto que está inserido, lançando mão,

dentro de certos limites, daquilo que mais lhe convém.

É interessante notarmos que havia professores trabalhando em uma mesma

região, formados na mesma instituição e trabalhando no ensino público ministrado pelas

mesmas normas e leis, e que agiam de forma distinta quando avaliavam seus alunos. O

discurso acadêmico que inundou a área advogando por um determinismo econômico,

capaz de suprimir todas as deliberações humanas, torna-se insatisfatório perante a

realidade que emergia. Esses professores trataram a experiência na sua consciência e

cultura das mais complexas maneiras e, em seguida, mas nem sempre, agiam sobre

situações determinadas.

O Professor E, por exemplo, levava em conta os padrões de aptidão física

preconizados na lei para fins de avaliação, já a Professora B adotava como instrumentos

de avaliação as provas teóricas, medida incomum para a época, tendo em vista que as

aulas eram ministradas no contra turno escolar. Adentrando ao contexto social em que

cada professor citado viveu, percebemos que o Professor E teve uma vida ligada ao

esporte de rendimento, fez cursos e pós-graduações ligadas ao esporte, privilegiando a

técnica e o rendimento esportivos. Já a Professora B, além do curso de EF, fez

Pedagogia e História, Mestrado em EF no auxílio à alfabetização. Veja que as distintas

trajetórias acadêmicas desses professores, determinou a forma de avaliação no seu

trabalho, não porque a academia teve um papel exclusivo, mas porque esses sujeitos

lidaram em suas consciências com as situações que surgiam, muitas vezes de forma

distinta, e procuraram nos nichos acadêmicos os meios para que pudessem satisfazer as

suas necessidades. Podemos destacar ainda as condições estruturais nas quais a

Professora B desenvolvia o seu trabalho como determinantes na formulação de

instrumentos de avaliação que passavam distante do que preconizava a lei, ou mesmo, o

que nos afirma a literatura especializada.

111

Outra forma de avaliação que nos chama atenção por suas peculiaridades, se

refere aos instrumentos utilizados pelo Professor D. Segundo ele, os meios de avaliação

que se valia foram ensinados na Faculdade de EF por um professor que ele muito

estimava. Ora, se temos cinco entre seis (um deles foi um dos mentores da instalação do

curso de EF na cidade de Jundiaí) professores entrevistados por nós formados na mesma

instituição, dentro de um período bem próximo de tempo, por que esses outros sujeitos

se valeram de métodos distintos de avaliação?

Bem, podemos pensar esse problema pela concepção de avaliação que foi

discurso comum em praticamente todos os depoimentos coletados, ou seja, a avaliação

como um produto final, que muitas vezes atribuía um conceito que promovia ou não o

aluno. Lembremos que essa concepção foi medida comum nas escolas em todas as

disciplinas e a EF, que acabara de receber um decreto próprio, não ficaria fora das

formas correntes de avaliar o aluno, mesmo a área sendo tida como atividade e não

disciplina. Pensamos que avaliar o aluno nos mesmos moldes de outras disciplinas

poderia conferir algum status de igualdade entre as áreas, o que poderia contribuir para

satisfazer os interesses dos professores da época.

Sendo assim, cada professor lançou mão de formas de avaliação que mais se

adequassem às suas necessidades pessoais levando em conta as características da área,

as tradições e costumes que foram sendo construídas ao longo do decurso histórico da

EF. Por esse prisma, o decreto promulgado, no que tange à avaliação, só veio a vingar

como hegemônico (quatro dos seis professores afinaram seu depoimento com as

preconizações legais) porque levou em conta as tradições, normas, valores, costumes,

enfim, construídos historicamente pelos professores pertencentes à área. Com isso não

queremos dizer que não havia um interesse ideológico na promulgação do decreto, mas

sim que houve um consórcio entre professores e governo para que muito daquilo que

estava na lei pudesse efetivamente ser aplicado na prática pedagógica.

Entretanto, mesmo se considerarmos que uma parte das aspirações dos

professores estavam sendo contempladas pela lei naquele momento histórico, a

legitimidade da área, algo que não poderia ser erigido num “passe de mágica”, precisava

ser construído diante da necessidade que a obrigatoriedade da EF pós-71 exigia. Se

antes, não havia essa necessidade de respaldo social no âmbito escolar, pois de fato a EF

pouco acontecia nas escolas brasileiras, com o decreto 69.450/71 as necessidades que

emergiam para aquela classe de profissionais começaram a ser outras. Se o esporte

consubstanciado com os preceitos científicos foi hegemônico, sustentou a área e satisfez

112

boa parte das aspirações daqueles professores, ainda faltava um corpo de conhecimento

que pudesse equiparar a área com as outras disciplinas e conferir um maior status social

aos professores que ministravam aula de EF. A esse respeito, a Professora B considera:

É, é. Eu trabalhei... Como eu falei pra você, eu tinha trabalhado naquele programa do Profic, então eu

me dei, e trabalhei também... Fiz o mestrado em cima da... a EF auxiliando a alfabetização, porque eu

comecei [a] dar aula só de 1ª a 4ª, com as crianças de 1ª a 4ª , ‘né’?

Aula de EF?

De EF. Então a gente trabalhava muito com... eu trabalhava muito com joguinhos. Então eu me

interessava [pelo] o que o professor ‘tava’ dando na sala de aula, ‘né’? E eu aprofundava na EF, pra

não ficar, assim, muito maçante, ‘né’? Então, por exemplo, quando era português, eu fazia um monte de

letrinhas e jogava no chão, e fazia com que eles formassem frase... ou palavras difíceis, às vezes algumas

palavras difíceis eu ditava e eles tinham que fazer. Aí, eu fazia em grupo, ‘né’? Pra eles fazerem como

uma competição. E, a cada erro, ia sendo eliminado – que é uma coisa que eu não gosto, eliminar

criança, ‘né’? Porque ela fica frustrada. Mas na época foi o que eu fiz.

Percebe-se que, a exemplo dos professores A e F citados anteriormente, a

Professora B também procura por conteúdos que fogem das diretrizes curriculares para

a área. Veja que mesmo diante de um decreto exclusivo promulgado na época e o

esporte que surgia como “grande” possibilidade educacional enaltecido pelos meios de

comunicação, a professora citada acima procurava seu “lugar ao sol” também por outros

meios, não apenas aqueles promulgados pela via estatal - como o esporte dentro de

visão dogmática ou pragmática, como era intencionado pela Revista Brasileira de EF e

Desportos, mas sim por meios que melhor atendessem as suas necessidades. Além

disso, como percebemos, o esporte não se fazia presente em todos os momentos, por

mais que uma vasta literatura insista nisso. Por outro lado sua essência, a competição, se

fazia valer mesmo quando a professora citada acima propõe outros conteúdos.

A esse respeito afirma-se que, como não havia competições planejadas pelo

Estado, os próprios professores tratavam de arrumar meios para que as competições

acontecessem. Veja:

Então, você arrumava o transporte, você levava com seu carro. Às vezes, as ‘criançada’ ia de ônibus,

sabe? Mas você que financiava. Então a gente fazia isso. Eu não me lembro desses jogos que tem agora,

não lembro se a gente tinha naquela época, ‘né’? A gente que fazia esses jogos.

113

Percebe-se que, como a realidade local desta professora lança-se contra o que

comumente nos afirma a literatura, ou seja, o próprio professor e não o Estado que por

meio do esporte procurava impor suas ideologias, planejava as competições escolares a

fim de satisfazer seus interesses.

Por esse prisma cabe-nos questionar : até que ponto as competições escolares,

que invariavelmente aconteciam, eram uma imposição ideológica ou uma demanda

existente, uma demanda de professores a fim de confrontar o seu trabalho com de outros

colegas? A luta pelo mérito, por um lugar de destaque no espaço escolar podia vir com a

conquista de campeonatos, troféus, enfim. E isso atendia a quais interesses? De um

governo militar consubstanciado com a classe dominante a fim de inculcar suas

ideologias, ou do próprio professor que procurava, por seus meios, destacar-se em meio

a uma incipiente área que procurava legitimidade social? E, ainda que consideremos que

os valores e normas das competições estão coadunados com o modo de produção

vigente, e que isso fica latente no depoimento citado, não podemos admitir que o

professor tenha absorvido tal inculcação ideológica sem que para isso tenha havido um

pacto entre os diversos envolvidos. Talvez, mesmo que de forma subjacente, o modo de

produção vigente agradasse a professora, pensamos que isso ocorria, não porque ela

fosse alienada e incapaz de perceber as contradições do sistema, mas porque o

capitalismo e suas ideologias maquiavelicamente planejadas não corromperam em sua

plenitude suas tradições, costumes, modos de vida, que foram construídos ao longo da

história e que fizeram parte da vida e práticas pedagógicas dessa professora.

Sendo assim, naquele momento histórico, a competição escolar pareceu-nos uma

via possível e muito valorizada por vários agentes sociais, justamente porque através

dela contemplaram-se vários interesses.

4.2.3. Terceiro fator de análise - Autonomia em relação ao governo

Como podemos perceber na prática pedagógica dos professores entrevistados

havia semelhanças e divergências de acordo com suas necessidades, expectativas e

interesses e, por isso, algumas dessas práticas se consolidaram no cotidiano escolar.

Contudo, o período abarcado por este estudo é habitualmente conhecido como uma

época em que houve grande cerceamento das ações dos professores e, como a EF

poderia incutir valores da classe dominante pela via esportiva, ela foi tida com grande

apreço e preponderância pelo governo militar pós-64.

114

Diante desse leque de possibilidades nada mais coerente que os professores que

ministravam aulas de EF nas escolas fossem vigiados nas suas ações e direcionados a

fazer aquilo que era de agrado do Estado e da classe dominante. Por esse prisma, era

inconcebível pensar a EFE sem uma atuação direta de vigia, suporte, cerceamento da

parte do governo vigente, pois, afinal de contas, seria através dela que o governo

construiria a sociedade vislumbrada, uma sociedade a fim de manter o status quo. Mas

será que houve realmente esse cerceamento como nos insinua a literatura dos anos 80 e

90, ou será que, dentro de certos limites, os professores agiam como bem queriam

segundo seus interesses?

Diante disso exporemos alguns posicionamentos dos professores entrevistados:

Professor A O Departamento Estadual da EF mantinha os seus delegados em algumas cidades. Então, em Jundiaí

tinha um delegado de EF. E esse delegado visitava as ‘escola’, visitava os professores, dava visto na

caderneta... no diário de classe. Às vezes, orientava alguma coisa, quando tinha alguma para realizar,

então ele procurava.

Apesar da citação do professor vir a confirmar a tese defendida pela literatura

especializada, quando perguntamos ao professor se havia algum suporte teórico que

subsidiasse a prática ele considera:

Nós tínhamos, nós tínhamos liberdade. Acontece o seguinte: não havia, não. Infelizmente, na

rede comum, não havia. O que havia, na verdade, ‘era’ esses campeonatos colegiais, ‘né’?

Isso era comum?

Era comum. Então, o campeonato colegial, as escolas se preparavam para o campeonato

colegial. Tinha basquete, vôlei e atletismo. Então você[?] tinha[?] as[?] temporadas, ‘né’? Fazia

temporadas. E no programa que a gente tinha, a gente colocava o que ia desenvolver naquela

temporada. Não havia, assim, um...

Como seguir não tinha? Não havia uma cartilha: “tem que fazer isso”?

Não, não tinha uma cartilha que era endereçada a todos. Então, às vezes, o aluno saía de uma

escola e ia pra outra, e falava: “Bom, eu não aprendi, isso eu nunca fiz, nunca joguei basquete, não

tenho noção de basquete, não tenho noção de futebol”. Então, realmente a EF é de muita liberdade. E

essa liberdade, pra uns, foi tomada, assim, de maneira espetacular, e, pra outros, foi simplesmente jogar

uma bola e ponto final.

115

Desta forma pensamos em quais seriam as ferramentas de inculcação ideológica

utilizadas pelo Estado a fim de incutir seus valores planejados se nem ao menos oferecia

um material pedagógico que sustentasse a prática pedagógica deste professor? Por mais

que ele afirme que havia delegados em algumas cidades, o que na verdade esses

delegados iriam conferir sendo que não havia nenhum material a ser seguido? A lei em

vigência? A Revista Brasileira de EF e Desportos? Bem em nenhum momento o

professor disse que tinha algo a ser seguido pari passu. Além disso, o professor também

não menciona que foi visitado por algum delegado. Pensamos que se um fato como esse

tivesse ocorrido com este professor e este tivesse se sentido coagido dentro de seu

espaço pedagógico, isso seria pontualmente enaltecido, e como não foi, nos resta

dúvida se isso realmente não aconteceu com ele ou, caso tenha acontecido, parece não

ter tido tanta importância, talvez porque de fato esse professor não tenha sentido sua

autonomia ameaçada pela presença de um delegado.

Ao que nos parece, apenas o ensino do esporte era “cobrado” para atender as

competições escolares, entretanto pensamos que isso não pode se caracterizar como um

cerceamento que impedia todas as ações cotidianas daqueles professores, haja vista que,

entre aquilo que é determinado e aquilo que é apropriado pelo sujeito, existe a

experiência. Além disso, como dissemos no capítulo anterior, a competição não nos

pareceu algo que atendia apenas as necessidades do Estado.

A Professora B também tece algumas considerações sobre esse possível

cerceamento

É, naquela época, para que você, por exemplo... Eu: como eu podia dar aula também de OSPB e

Educação Moral, a gente só podia dar aula desde que o quartel permitisse, ‘né’? Quer dizer, a parte

militarista, principalmente o quartel, ‘né’?, seria aprovada por eles.

Então tinha que ter um aval?

Tinha. ‘Cê’ tinha que... Se você tivesse uma ficha mais ou menos conturbada, você não daria aula de

jeito nenhum.

Então tinha isso?

É, eu não cheguei a pegar isso, mas eu soube, naquela época, que muitos professores... O quartel, o

pessoal aí do exército ia assistir aula.

Isso por conta da ditadura?

116

Por conta da ditadura. E eu não cheguei a pegar isso. Na minha classe nunca chegou a acontecer isso,

mas eu soube de gente [com] que[m] aconteceu.

Mais uma vez vale a pena ressaltar que em nenhum momento da nossa entrevista

a professora mencionou que o fato tinha ocorrido com ela, e sim que ouviu falar dos

acontecidos, o que também pode ser interpretado como ideias que circulam com a

finalidade de exercer controle sobre o comportamento das pessoas, típica ferramenta de

domínio ideológico.

Divergindo do Professor A, a professora afirma que o Estado subsidiava a

prática pedagógica do professor com materiais pedagógicos de cunho teórico:

(...) a gente tinha uma apostila, que eu vou lembrar o apelido que nós demos dele: tijolão (...)Um

calhamaço. Então, ali tinha praticamente todas as disciplinas, e então você seguia mais ou menos aquilo

que ‘tava’ ali.

Apesar disso a professora afirma que esse material tinha um cunho de orientação

e não de “doutrina pedagógica” que deveria ser levado a cabo pelos professores:

Uma orientação. ‘Vamo’ lá: uma orientação. Mas você era mais ou menos livre.

Podemos inferir que a expressão “era mais ou menos livre” é exatamente um

exemplo do que trazemos como hipótese central, ou seja, dentro de certos limites, o

professor teve liberdade para conceber e executar o seu trabalho pedagógico. As

estruturas físicas, as leis que subsidiavam o contexto educacional, as tradições

construídas historicamente, entre outros aspectos, delimitavam até que ponto era

possível agir, ou seja, apesar de tudo, isso não “engessava” a prática pedagógica desses

professores, eles elaboravam em suas consciências aquilo que lhes era oferecido e

lançavam sobre a consciência social existente uma experiência modificada. Esta mesma

professora lançou mão de ferramentas incomuns para a avaliação dos seus alunos.

A esse respeito, Thompson refuta a tese de que a experiência só pode produzir o

mais grosseiro “senso comum” e que está ideologicamente contaminada. Para ele

“a verdade é mais nuançada: a experiência é válida e efetiva, mas dentro de

certos limites: o agricultor ‘conhece’ suas estações, o marinheiro ‘conhece’

seus mares, mas ambos permanecem mistificados em relação à monarquia e

à cosmologia (1981, p.15).

117

Já a Professora C, em nenhum momento fez referência a aspectos do governo

militar quando se refere à autonomia que tinha no seu trabalho pedagógico.

Não, tanto que naquela época não existia coordenadora; não havia isso. Tinha o diretor, ou o diretor e o

vice-diretor. Entendeu? E aí tinha o Plano de Ensino, o Plano de Curso. Você pegava lá, copiava, e fazia

o que você quisesse (...) (...)Tinha um livrão verde lá, que, se ‘cê’ quisesse, ‘cê’ usava, que tinha o conteúdo lá pra você dar,

certo?(...)

Inferimos que o “livrão verde29”, ao qual a professora se refere, é o mesmo

citado anteriormente chamado de “tijolão” e que ambos tinham o caráter de orientação

do trabalho pedagógico. No entanto, para esta professora não havia ninguém que

fiscalizasse o que estava sendo feito no seu dia-a-dia

(...) Antigamente: “Faça o que você quiser”

É?

“... desde que você não encha o saco”.

E problemas?

“Não me traga problemas”.

Percebe-se que, para a realidade desta professora, lhe era conferida liberdade no

seu trabalho desde que ela não perturbasse os gestores da unidade escolar. Ao que se

evidencia, não havia preocupação se a professora seguia o “livrão verde” ou fazia

incitação a sistemas econômicos contrários aos que vigoravam até então, a preocupação

daquela realidade é muito menos conspiratória do que nos foi contado, ali o que era

relevante é se o que era de fato feito atendia as necessidades emergentes, necessidades

que podiam ou não estar consubstanciadas com aquelas requeridas pelo governo militar,

mas com certeza estavam no ideário desta professora.

Destoando sobre os subsídios oferecidos pelo Estado na época o Professor D

afirma

29 No período abordado por este estudo era muito comum chamar o “livrão verde” de “Verdão”. Segundo Martins (1998) o apelido

dado ao guia devia-se muito mais à identificação dele com o governo militar - uma vez que fora feito após a reforma educacional de

1971 - do que pela capa verde que revestia o material impresso. Na prática, o guia curricular para o Estado de São Paulo servia de

norteador para a elaboração dos planejamentos escolares. E como uma das características mais fortes do guia era a definição dos

conteúdos que deveriam ser trabalhados em cada matéria, a maioria dos livros didáticos usados na rede pública espelhavam esse

conteúdo.

118

Isso aí eu não queria falar ‘procê’. Como eu cheguei lá, a moça falou: “Você começa a trabalhar

amanhã”. No outro dia, eu cheguei, me deram uma chave de um quartinho, que era sempre embaixo de

escada – tinha bola, tinha rede, tinha de tudo pra EF; tinha bastante material –, e me deram uma lista de

chamada das ‘classe’ que eu tinha, um horário e as ‘caderneta’. E comecei [a] trabalhar. Trabalhei 28

anos assim, sem nunca ninguém saber o que eu fiz, deixei de fazer.

(...) É que nem eu te falei: eu fiquei 28 ‘ano’ jogado aí, fazendo o que eu queria o que não queria. Eu só

entregava a caderneta no final de ano porque eu entregava, senão, ‘taria’ amontoado aí ‘caderneta’ de

28 anos. Nunca pediram...

(...) Nunca um diretor deu um visto numa caderneta minha.

Para este professor, que atuava numa escola central da cidade, nem ao menos lhe

era oferecida uma orientação, como foi para os outros professores citados acima. Neste

caso, o que havia não era “apenas” uma liberdade conferida, mas um total descaso com

o que deveria ser trabalhado pedagogicamente com os alunos. Desta forma, é difícil

pensar numa disciplina que, por meio da via esportiva, inculcaria na sociedade valores

da classe dominante, tratada com tanto desleixo nessa unidade escolar. Lembremos que

não se trata de um professor que atuou como substituto ou por um curto período de

tempo na escola, ao contrário, há quase trinta anos o professor atua na mesma escola

localizada numa região central da cidade e com admirável estrutura. Ao que parece, a

utilização das aulas de EF como veículo de inculcação ideológica não era vista como

uma ferramenta tão importante ao sistema como tem sido veiculado pela literatura

especializada.

Na mesma esteira de outros professores citados, o Professor E também recebia

um subsídio teórico do Estado que norteava sua prática pedagógica. Segundo ele não

havia uma fiscalização do que era feito e do que não, o que havia era uma orientação da

gestão para algumas atividades de ordem cívica

(...) A direção passava muito... algumas orientações, ‘que’ eu acho que eles recebiam, porque o diretor

sempre foi convocado pras reuniões. Era a nível de Diretoria de Ensino, a nível de São Paulo, ‘né’?

Então vinha muita orientação pra se trabalhar: Ordem Unida, ‘né’? Foi muito sentido, assim. Mas,

supervisionado, nenhum, ‘tá’? Nunca recebi a visita de nenhum membro da Diretoria de Ensino, nada.

Militar... Nenhum.

É interessante notarmos que apesar de haver uma orientação sobre atividades

ligadas diretamente ao exército (a prática da ordem unida, por exemplo), não havia

ninguém que vigiasse se aquilo estava sendo seguido. Desta forma, se o professor

119

trabalhou dentro de uma perspectiva que contemplasse algumas atividades militares, o

fez porque quis consubstanciado com os condicionantes históricos que fundam a área, e

não porque havia algo ou alguém que lhe impusesse o que deveria ser feito. Talvez o

tenha feito pela tradição, pelo fato dos primeiros professores de EF do país terem sido

formados em instituições militares e terem criado uma cultura que associou as práticas

militares à prática da EFE.

Este mesmo professor afirma que não conhecia as leis e decretos que

sustentaram legalmente a EF no período, fato que ocorreu com todos os professores

entrevistados. Entretanto, na sua descrição do planejamento e de sua prática pedagógica,

ele leva em conta essencialmente a aptidão física, que era referência do Planejamento da

EF no Decreto 69.450/71. Voltamos, mais uma vez, a um ponto que estamos dialogando

desde o começo deste trabalho: até que ponto essa nova legislação foi uma investida

ideológica do Estado ou uma reivindicação de algo que já estava acontecendo, mas

precisava (talvez por conta da legitimidade) respaldo da lei? Ou teria sido um pouco das

duas coisas?

Declarado, no entanto, é que este professor sabia o que estava fazendo sem ter

conhecimento das leis, sabia que a aptidão física, a performance, a formação de equipes

para os campeonatos era de sua incumbência e isso não aconteceu por imposição de

uma lei ou de alguém, mas aconteceu porque ao longo de sua trajetória pessoal ele foi

formando conceitos, valores, ideias a partir da classe onde estava inserido e lançando-as

nesse contexto social, consubstanciado com as tradições que constituem a EFE.

O Professor F não se recorda se havia ou não um subsídio que norteasse o seu

trabalho pedagógico, ele o realizava da forma que mais lhe convinha:

Então, o que ‘que’ é o mimeógrafo, ‘né’? Eu lembro, assim... Eu ‘tô’ brincando, mas era mais ou menos

isso. Anualmente, a gente pegava o planejamento anual das atividades do ano anterior, mudava a data e

rodava no mimeógrafo, ‘cê’ entendeu? Porque a direção da escola não tinha competência... Não, não é

competência: não tinha conhecimento pra poder falar desse planejamento, falar: “Pô, isso aqui ‘tá’ uma

porcaria”, entendeu? Então, o que fazia: eu peguei de professor que eu substituí e eu fui renovando, ano

a ano, um planejamento...

(...) Era pra inglês ver. Era um documento que tinha que ser feito, e nós fazíamos, mas não tinha uma

fiscalização...

(...) Não, a diretora rubricava, lá, porque era a parte dela: carimbava e rubricava pra arquivar. Mas não

tinha um acompanhamento na prática, ‘né’? Assim: “Poxa vida, houve uma melhora...” Não, não (...)

120

Como podemos ver, o professor tinha liberdade para fazer o que bem entendia,

não havia uma preocupação com as atividades que eram desenvolvidas em aula, mas

sim com a parte burocrática a ser cumprida, e como não havia fiscalização, o professor

poderia cumprir a parte burocrática de um jeito e a prática pedagógica de outro. Ao que

nos parece, isso foi medida muito comum no período, e provavelmente continua sendo.

É interessante pontuarmos aqui que, quando questionamos o professor sobre um

possível controle do Estado sobre sua prática, ele afirma:

É, não é que havia... Veja só, o controle era repassado... Esse controle era repassado pra direção da

escola, que tinha a visão que a EF era uma coisa não tão importante, ‘tá’ entendendo? Então ela

considerava... a direção da escola considerava muito mais o trabalho de apoio pra direção da escola –

de apoio, de melhoria pra escola. O Desfile de Sete de Setembro, cantar o hino nacional, essas coisas

eram a maior cobrança que ela recebia.

Veja que quando se refere a controle o professor menciona aspectos ligados a

datas cívicas e não à sua prática pedagógica, ao contrário, segundo suas considerações, a

EF não era algo tão importante que merecesse maior atenção. Entretanto, mesmo que

consideremos que, para muitos dos nossos professores, houvesse a “obrigação” de

participar desses eventos patrióticos, havia a anuência de todos os envolvidos na

realização e participação dos eventos. Isso parece indicar que, na época, certa

mentalidade ufanista caracterizava o sentimento de patriotismo dos educadores e que se

manifestava nos eventos cívicos.

Um ponto bastante divergente entre os nossos entrevistados foi em relação aos

cursos que eram ou não oferecidos pelo Estado. Alguns lembram que foram oferecidos

cursos ligados ao rendimento esportivo, outros afirmam que o Estado não oferecia

nenhuma formação, já outros não lembram a respeito. Fato é que a CENP

(Coordenadoria de Estudos e Normas Pedagógicas), órgão da Secretaria de Educação do

Estado de São Paulo criada em 1976, promoveu a partir da década de 80 uma

reorganização dos currículos escolares a fim de erigir a construção de uma nova escola.

Para isso, a CENP tinha ainda a incumbência permanente de qualificar e requalificar os

professores. Martins (1998) afirma:

Até meados dos anos 80, a CENP era o órgão da SEE que mantinha o maior

contato com os professores da rede pública estadual de ensino. Esses

121

contatos existiam em função do projeto dos "cursos de capacitação"

desenvolvidos por ela, em convênio com as universidades USP, UNICAMP e

UNESP, visando a capacitação permanente dos professores no ensino de 1°

e 2° graus. A partir de 1987, parte de suas atribuições, principalmente as

referentes à qualificação e requalificação profissional na área educacional,

ficou sob responsabilidade da Fundação para o Desenvolvimento da

Educação (FDE), criada pelo governador Orestes Quércia. As questões

referentes aos currículos, entretanto, continuaram sob responsabilidade da

CENP (MARTINS,1998, s/p).

Pelo que nos afirma a autora, a CENP era responsável por oferecer cursos de

capacitação/aperfeiçoamento para os professores da rede estadual no período

compreendido por este estudo. Mas mesmo que consideremos que os cursos chegaram a

contemplar todos os professores entrevistados e que neles havia a intenção de inculcar

as ideologias estatais, na prática pedagógica, como verificamos, esses professores

faziam aquilo que lhes era possibilitado dentro do que acreditavam que era possível.

Não nos cabe concluir se havia um descaso com a área ou se era conferida uma

liberdade em demasia no contexto pesquisado, fato é que, com esses depoimentos, fica

difícil advogar que a EF tinha um papel preponderante a ponto de ser tida como

sustentáculo ideológico do Estado. Por essa esteira levemos em conta que todos os

professores entrevistados atuaram depois da promulgação da Política Nacional de EF e

Desportos e dos altos investimentos destinados para a área no início dos anos 80, o que

em princípio nos leva a pensar que os objetivos expostos por aquele documento

deveriam ser alcançados. Contudo, isso não foi sentido na prática pedagógica. Para

alguns desses professores, descobrir talentos que pudessem representar o Brasil no

cenário nacional foi um sonho, tolhido por aquilo que o próprio governo oferecia; para

outros existiam aspectos mais importantes trabalhar no cotidiano. Aqui nos cabe pensar

que, talvez um dos motivos que fizeram com que os objetivos e planos pós-75 não se

concretizassem em sua plenitude no cotidiano escolar, tenha sido a ausência de um

pacto entre os diversos interesses ali envolvidos.

Mesmo assim, no que se refere ao ambiente escolar, esses professores foram

enfáticos em dizer que eram valorizados pelos colegas docentes e alunos, além da

comunidade que via a EF como uma disciplina que preparava para a cidadania através,

também, do controle disciplinar. Se considerarmos que, perante os gestores e docentes

de outras disciplinas, os professores de EF eram menos valorizados, para a comunidade,

122

para os alunos, ali naquele ambiente formal de ensino todos eram professores e todos

mereciam ser tratados da mesma forma, por mais que pairasse por ali uma

hierarquização das disciplinas. Como já afirmamos anteriormente, a busca “por um

lugar ao sol” fez com que cada um se valesse de diversas estratégias de legitimação no

seu ambiente de trabalho.

Sendo assim, podemos afirmar que o superficial suporte teórico, a ausência de

alguém que fiscalizasse se o trabalho estava sendo feito segundo interesses estatais, a

falta de uma estrutura física que atendesse as exigências legais (dois metros quadrados

de área por aluno, no ensino primário, e três metros quadrados por aluno, no ensino

secundário e superior), o descaso de alguns gestores perante a área, todos esses são

fatores que refutam a tese daqueles que defendem a EF como protagonista naquela

sociedade que se pretendia construir. Na melhor das hipóteses podemos considerar a

afirmação do Professor D

(...) o Militar gostava muito da EF, ‘né’? Então eles mandavam muito material: o plinto. Tinha tudo isso.

Tinha banco sueco, a gente tinha muito material, muito material (...) Por o Governo ser Militar, naquele

tempo, eles davam muita ênfase, assim, pra EF, ‘né’? Pra saúde, pra qualidade de vida do pessoal do

quartel. E era por aí. Era o que a gente seguiu, isso aí.

Talvez um apreço, como nos afirma o professor, devido aos enraizamentos

históricos da EFE, vez ou outra o governo militar tenha olhado para a EF com maior ou

menor atenção, justamente como os professores fizeram quando ensinavam com mais

afinco o esporte que mais os agradasse. Contudo, não podemos afirmar que isso

aconteceu e muito menos que a EF foi a “menina dos olhos” do governo. Fato é que

essa liberdade conferida, propositalmente ou não, fez com que cada professor atuasse,

dentro de certos limites, atendendo aos seus interesses, expectativas e necessidades.

Para finalizarmos este tópico, vale a pena ressaltarmos algo que nos chamou

bastante atenção entre os depoimentos coletados de dois dos três professores que ainda

atuam como docentes. Vimos o que eles disseram sobre a liberdade que lhes era

conferida na época da ditadura militar, mas vejamos o que eles pensam agora sobre o

que vem sendo “proposto” pela Secretaria de Educação do Estado de São Paulo:

Professor D (...) Hoje é diferente. Hoje existe as ‘cartilha’, Já vem pronto pra você fazer o planejamento anual, tem

bimestral, tem por série, entendeu? Antigamente, não, você fazia por turma: era uma turma I, turma II,

123

turma III, e assim ia. Porque o professor dava aula pros ‘menino’, e a professora, pras ‘menina’. Hoje,

‘cê’ dá aula ‘pá’ classe. Então, se juntava, aí, numa escola de quatro classes, ‘cê’ tinha três ‘aulinha’.

‘Cê’ juntava todos ‘menino’ da 5ª, da 6ª, da 7ª, da 8ª, ‘cê’ atingia – eu não lembro se era 31 ou 35

alunos, ‘cê’ formava uma turma. Então, o professor dava aula pros ‘menino’, e as ‘menina’ dessas

quatro séries, a professora que dava aula. Então era completamente diferente. Quer dizer, ‘as’

professora que trabalhava comigo era assim: era jogada lá, e ‘ocê’ fazia o que ‘cê’ queria. E a gente

procurava fazer o melhor, porque a gente gostava, entendeu? E até que eu fiquei muito contente de ter

trabalhado essa época aí. Mas nunca ninguém falou: “Faz isso” ou “Faça aquilo” ou “Deixa de fazer

isso” (...) Agora, é que nem eu falei: é [em] fim de carreira que eu ‘tô’ sendo cobrado (...)

Agora mais do que antigamente?

Agora mais do que antigamente.

O controle, hoje, é maior?

Maior, em tudo: frequência do professor, o que faz, o que não faz. Caderneta de professor... Essas

‘apostila’ que vieram: gostei muito da do Ensino Fundamental, que é de 5ª a 8ª. Do Ensino Médio, não

gostei, entendeu? Tem coisas boas e coisas ruins que vieram agora. Ruim, assim, ‘né’? Como a gente é

da antiga, eu ‘costumei’ de fazer o que eu queria, não o que se pedia – porque nunca pediram nada,

sempre nós ‘fomo’ jogado. Eu não sei quantas ‘entrevista’ você fez aí com professor da época, eu não sei

se chegaram a falar a mesma coisa, mas comigo aconteceu isso. Ou eu fui o premiado, sei lá o que, de

fazer isso, mas eu acho que algumas ‘professora’ que trabalhou comigo foi assim também. Até elas

vinham perguntar: “Que ‘que’ eu faço?” / Eu falei: “Eu faço isso”. E eles faziam. Só que a gente fazia,

‘né’? Fazia muito mais do que hoje! Muito mais do que hoje.

Veja que o professor faz referência aos seus costumes que não se enquadraram

nas propostas elaboradas pelo governo, e este por sua vez, continuará fazendo aquilo

que sempre fez, não controlado por uma nova legislação, uma proposta mais adequada a

alguns interesses, mas por aquilo que ele, como sujeito com seus condicionantes

históricos, foi construindo ao longo de sua vida. Mais uma citação que vem a confirmar

aquilo que estamos erigindo ao longo deste estudo, ou seja, o professor dentro de certos

limites segue seus interesses, expectativas e necessidades que são concebidos na sua

experiência de classe, na forma como as vivencia, num diálogo entre o ser social e

consciência social.

Professor E O Governo, lógico que vai... ele tenta soluções, não é? Esse Governo atual, ele implantou os livretos que

nós temos que seguir. Então tem o livreto de EF, tem o de português... tem o conteúdo que nós temos que

dar ‘pros’ alunos. Ele é flexível, ‘tá’? Então, eu acho que isso aí é um subsídio a mais pro professor dar.

124

‘A’ nível de trabalho, eu acho que agora a cobrança é um pouquinho maior, porque nós temos a

coordenadora pedagógica. A coordenadora pedagógica tem o grupo de gestores da Diretoria de Ensino,

que faz uma cobrança sobre ela, e ela reflete no professor. Então, em termos de cobrança, eu acho que

agora é maior. O subsídio passado também é maior, só que agora nós temos um “contra” muito grande,

que é o aluno desinteressado. Antigamente nós tínhamos o aluno interessado e o material menor. Mas a

gente conseguia passar mais. E agora nós temos esse subsídio, nós temos a orientação, nós temos a

cobrança, só que o aluno [está] totalmente desinteressado. Hoje eu ouço os professores, os colegas

falarem que a maioria dos alunos ‘ficam’ de costa para o professor, fazendo outras coisas. Quer dizer, o

professor precisa circular, ‘se’ interagir mais com os alunos para tentar uma nova forma de se aprender,

de se passar um conteúdo ‘pros’ alunos.

O senhor falou em cobrança. Foi dito que na época da ditadura não havia essa cobrança, e que hoje

há. O senhor vê isso como positivo ou negativo? Conte-me um pouco sobre isso.

Eu vejo como positivo. Por quê? Eu sempre trabalhei também na entidade privada, e a entidade privada

também te faz essa cobrança. Então eu acho que só... se nós recebermos pelo que nós fazemos, tem que

haver uma cobrança. Então eu acho salutar, mas desde que seja fundamentada; essa cobrança tem que

ser fundamentada, tem que ‘vim’ com diretrizes, com normas, pra gente poder seguir. Então eu não acho

ruim que ela aconteça, ‘né’? Eu acho interessante.

Nos depoimentos citados fica claro que os dois professores conferem ao período,

comumente rotulado como cerceador, repressivo e autoritário, um maior poder de

decisão deles sobre o que deveriam trabalhar pedagogicamente com seus alunos. Como

já mencionado, não havia gestores ou pessoas ligadas ao governo que fiscalizassem o

que era feito, curiosamente o que tem ocorrido na atualidade num regime democrático,

como nos afirma o Professor E.

Diante dessas citações, podemos pensar que atualmente a EF tem muito mais

importância para o governo do que no período da ditadura militar, e que, com esses

subsídios teóricos e didáticos, o cerceamento é muito maior do que outrora. Além disso,

como constatamos, os professores são mais cobrados por aquilo que fazem ou deixam

de fazer, atualmente. Por este prisma, onde estão as especificidades do governo militar

levantadas pela literatura especializada? Não poremos em discussão se essa alavancada

nos projetos educacionais, como um todo, está consubstanciada com a nova ordem

neoliberal. No entanto, diante dessas proposições, podemos pensar que, talvez com uma

roupagem democrática, os professores estejam sob um controle muito mais autoritário e

passando por um momento de luta por aquilo que será validado ou não como uma nova

forma de conceber a EF dentro do ambiente escolar. Se para alguns dos professores

125

entrevistados a nova proposta curricular é aceita de bom grado, para outros ela se choca

com os enraizamentos sócio-culturais destes sujeitos.

Entretanto não nos cabe aqui absolver o governo militar de suas intenções, pois

qual o sistema de governo que não tem intenções próprias para a nova sociedade que

pretende construir? Mas essas intenções, no que tange ao objeto do nosso estudo, não

constituíram uma imposição vertical de grande eficácia, mas uma luta que entremeou

diversos interesses, inclusive, dos professores de EF, e que, por isso, algumas das leis e

diretrizes pedagógicas se efetivaram no cotidiano dos professores, e outras nem sequer

chegaram perto de se concretizar. Ainda assim, havia algo a ser seguido, e esses

professores seguiam, cumpriam as normas que eram estabelecidas, como a entrega por

escrito dos controles de ensino, por exemplo, contudo, isso não significa que levaram

todas as orientações dos guias curriculares a cabo, eles sabiam que dentro de certos

limites podiam agir, além de saber que a prática pedagógica nem sempre estava em

consonância com aquilo que era entregue à direção da escola a título de cumprimento de

obrigações burocráticas.

4.3 A compreensão dos professores sobre a EF do “passado” e do

“presente”

Até agora discorremos sobre um longo trajeto para compreendermos como foi a

atuação dos professores de EFE naquele período, tendo em vista a hipótese central deste

estudo que levou em conta que esta área profissional, composta por diversos atores

sociais, aproximou-se, e ao mesmo tempo, afastou-se da visão estatal. Suas posições

foram determinadas não por forças exclusivas de um governo autoritário, mas também

pela perspectiva individual dos professores e pela mudança de cenário da EFE.

O diálogo entre a hipótese levantada e os depoimentos coletados nos levaram a

pensar e questionar sobre como aqueles professores que viveram naquele período e

atuaram empregando muito daquilo que atendia aos seus interesses, compreenderam o

período sócio-político que estavam vivendo, necessariamente naquilo que se refere à sua

atuação profissional.

Este questionamento emergiu à medida que constatou-se que é corrente no

discurso da literatura especializada descrever o Estado como “perverso” para com os

sujeitos pertencentes à classe social desprivilegiada. No nosso caso, foi comum a

126

literatura tratar os professores como sujeitos passivos e sem força de reação contra as

ações “inflexíveis” deste governo militar.

Contudo, de acordo com que vimos até agora, os professores não foram tão

passivos às investidas estatais, ao contrário, agiram dentro de certos limites e de acordo

com seus interesses consubstanciados aos condicionantes históricos. O Estado por sua

vez não nos pareceu, tão perverso, ao contrário, como ilustramos por meio dos

depoimentos dos entrevistados, muitas de suas ações vinham ao encontro das

necessidades dos professores, o que, obviamente, não o isenta das suas intenções

ideológicas, mas também não permite rotulá-lo como um vilão inexpugnável. No

entanto, mesmo sabendo que esses professores agem e reagem perante aquilo que lhes é

imposto, exporemos agora a visão desses sujeitos no que tange a compreensão que

tinham sobre suas ações pedagógicas naquele momento e quais as impressões que têm

da área atualmente. Com isso, queremos afirmar que, para aquela época, naquele

período de efervescência política e de afirmação de uma incipiente área que começava a

fazer parte dos âmbitos formais de ensino, com as práticas corporais hegemonicamente

esportivas, satisfez as necessidades desses sujeitos. Para eles, aquele momento não foi

turbulento, não perceberam uma crise de identidade pedagógica que abalasse os

alicerces de suas práticas, ao contrário, pelo que nos demonstraram os depoimentos

coletados, a grande maioria sabia muito bem o que estava fazendo, para quem o faziam

e os motivos que os levava a agir dessa maneira. Os “problemas” de cunho ideológico

que muito incomodaram a literatura dos anos 80 e 90, para esses professores, ao que nos

parece, não foram problemas, uma vez que muito pouco ou nada sentidos na prática

pedagógica.

Professora C Eu acho assim: com certeza houve uma modificação muito grande, ‘né’? Hoje em dia a EF é a parte

integrante total do currículo escolar, com os mesmos valores de outras, ‘tá’? O enfoque não é um

enfoque esportivo, não é mais um enfoque esportivo, é um enfoque mesmo de desenvolver as habilidades

dessas crianças, as capacidades dessas crianças. Então eu acho que o crescimento da EF dentro do

Governo do Estado é fantástico (...)

Do caderninho?

É, porque eu acho que é um avanço dentro da EF, eu acho que é um avanço. E esse avanço vai levar a

gente muito longe, sabe? Vai levar. Vai ter um crescimento. Nós vamos preparar melhor esses meninos:

eles entenderem que a EF não é jogar bola, é muito mais, ‘né’? É muito mais.

127

A senhora vê um avanço entre o que era e o que é hoje?

‘Má’ muito grande, muito grande! Eu vejo... Olha, eu não sei se eu ‘tô’... Porque o pessoal... Eu não sei

se é ingenuidade ou é excesso de amor que eu tenho ‘pelo’ aquilo que eu faço, mas eu vejo: essa moçada,

se pegar, pegar firme... ‘Óia’, é ‘pa’ não ganhar dinheiro, mas satisfação vai ganhar muito. Dinheiro

não vai ganhar, mas em amor, em carinho, em atenção, em... Sabe? E o seu respeito, que você tem?

Gente, hoje em dia, o professor, ele senta numa bancada, num conselho participativo... Eu falei: “Mãe, o

aluno apresenta esse problema assim, assim e assim dentro da quadra” / A mãe falou: “É, ele realmente

é assim em casa”. Então, sabe? Hoje em dia é muito importante, é muito importante. Sempre foi, só que

hoje a gente tem esse respaldo.

É importante salientarmos que a visão da professora citada acima, exemplifica o

ponto de vista de quem continua ministrando aulas de EF. Como fica deflagrado, o

subsídio teórico que vem sendo oferecido pelo Estado é algo a ser valorizado e

contemplado, e não tido como um material de cerceamento pedagógico.

Além disso, cabe-nos pontuar que, em nenhum momento, a professora faz

referência ao governo militar como algo a ser rejeitado devido às suas ações. Bem

menos que isso, ela nem sequer cita as ações daquele governo, o que nos leva a

questionar se a “perversidade” do governo realmente foi sentida por esta professora. E

se foi, será que isso não seria um ponto relevante em sua trajetória profissional que

mereceria ser relatado?

Professora B (...) Mas a única coisa que eu acho... Assim, o grande problema de você dar esporte específico

na escola é que só um grupo participa, os outros alunos, eles ficam mais ou menos ali, ‘tá’? Do ladinho.

(...)É. Embora [com] a Marlizinha, e mesmo a Mara também, eu via isso. Ela fazia um rodízio.

Certo? Porque aqui, se você não fizer rodízio, os alunos escapam (...) Não, eu acho que agora... é

melhor!

É melhor?

É melhor, é melhor, porque agora você define o aluno pra [o] que ele quer. Agora é melhor. Eu

acho que agora é bem... muito melhor. Porque naquela época, como você não tinha muito espaço pra

eles irem pra cá e pra lá, nem [tinham] clubes que se fizesse isso... Hoje os clubes ‘arrebanha’ esses

bons alunos. A gente não tinha...

Você tem para onde direcionar...

É, você não tinha esse espaço. Hoje é melhor. Hoje a EF... Nossa! Um bom professor ‘tá’ aí, é

um prato cheio.

128

Tem bastante ferramenta?

Tem, tem. Hoje tem. Porque hoje tem diversos ‘clube’, e os ‘clube’ que estão pegando esses

alunos. Porque, veja... Eu vou voltar a falar da Vila Marlene. Lá nós temos muitos alunos lá que é

futebol, e ‘tá’ aqui no paulista. Tem meninos treinando no São Paulo, lá em São Paulo, no Palmeiras...

Nós temos alunos. Porque o que nós fizemos lá? Um grupo de alunos que gosta de jogar futebol, eles têm

um time. Formado por quem? Por alunos de lá. Hoje eu já tenho alunos que já eram ex-alunos, ‘né’? Já

foram alunos de lá. Mas ‘tão’ com um time. Eu me lembro bem uma primeira vez que apareceu aquela

escola ali na Vila Hortolândia, não sei como é que chama... Bate Bola! Bate Bola, não.

Show Ball.

Show Ball. Isso. Os primeiros tempos, não é? Ele ia nas escolas fazer a divulgação do futebol, e

se pagava uma taxa. Eu me lembro bem a primeira vez que foi a minha filha que pagou, pra eles poderem

jogar. Nós ‘arrumamo’ camiseta. Sabe? A Marli emprestou camiseta do handebol. Então foi... Então hoje

eu acho que é melhor

Fica claro no depoimento da professora que o esporte ainda está muito arraigado

nos conceitos que tem sobre a área. Por mais que ela advogue que hoje em dia a EF está

bem melhor, o faz isso a partir dos esportes, que podem oferecer fora das estruturas

formais de ensino, algum benefício para o aluno. Ora, mas se já dissemos aqui que o

esporte pode ter tido seu ápice durante o governo militar a qual período devemos

atribuir esse legado? Com isso não me parece que os ideários de um Estado “perverso”,

se fossem tão perversos assim e construídos sem a anuência dos professores,

continuariam em voga até o presente momento, como nos afirma a professora.

Professor F

Não, não... É, eu não tenho a vivência... Vivência hoje, ‘né’? O que eu fico muito triste, que eu ouço, não

só do professor de EF, mas de vários professores, é que não tem mais jeito, ‘né’? Que não dá pra

recuperar mais. E eu não acredito nisso, eu acredito no resgate. Talvez de forma diferente, ‘né’?

Diferente disso. Mas alguns princípios são básicos. Quer dizer, o menino que não podia fumar maconha

na década de [19]80, ele continua não podendo fumar maconha agora. Eu não posso achar que fumar a

maconha seja uma coisa tão... um termo tão simplista assim, como hoje ele se caracteriza. Então, as

mudanças, elas estão ligadas... diferenciadas, até – ‘vamo’ falar “diferenciadas” –, daquela época pra

essa, num intervalo chamado qualidade de vida. Hoje nós temos um parâmetro de que a qualidade de

vida ‘tá’ diretamente ligada à educação do físico, ‘né’? Que, na época, nós não tínhamos isso. Na época,

nós não ‘távamos’ preocupados em ter um físico bom pra ter uma vida mais longa...

129

Essa questão da qualidade de vida não emergia[?]?

Não, não tinha nem... Qualidade de vida era você ter um bom emprego, você fazer uma viagem, você...

Não ‘tava’ relacionado a você ter uma boa saúde. E hoje não tá completamente focado nisso. Você não

pode abrir mão, por exemplo, da atividade física mínima. Por exemplo, como é que o professor, hoje,

fala que ele não vai dar um condicionamento físico global? Ele tem que fazer um trabalho, uma coisa

que era... poderia não ser feita aqui. Por exemplo, soltar a bola, na década de [19]80, não era tão ruim

como soltar hoje, entendeu? Hoje não dá. A tecnologia que nós ‘tamo’ vivendo, ‘né’? Com a estatística

da fisiologia do movimento, das paradas cardíacas que acontecem em atletas, você visualiza que,

realmente, a culpa ‘tá’ aqui atrás: o soltar a bola aqui é que tá ocasionando essas situações agora.

Então, falando da metade pra frente, não dá mais pra você ter um professor meia boca hoje. Porque,

‘vamo’ supor, então vou falar, assim, de... daquele equipamento de medir a pressão, a pulsação lá – eu

não sei nem o nome, pra você ver como eu não tenho conhecimento pra isso. Mas o professor que ‘tá’,

hoje, dando aula no Estado tem que saber, é imprescindível saber sobre a pressão arterial, saber sobre a

pulsação média, sobre desnutrição, sobre alimentação balanceada. Hoje o gordinho tem que ser olhado

de uma outra forma. Ele era um empecilho na época, e hoje ele precisa da orientação. É, mudou, mudou

muito... Seja em escola estadual... Eu ‘tô’ falando duma forma global. Mas, visualizando a estadual, você

pode manter, hoje, numa atividade física educacional com um menino gordinho, mas nós, como

educadores, mesmo que você seja gordo, você tem que mostrar pra ele a importância ‘duma’ comida

balanceada, o acompanhamento dele, se ele não ‘tá’ chegando na fase do diabete; tentar orientá-lo para

que ele regularmente faça o exame do diabete; o mal que a diabetes causa pra ele, da hipertensão... Nós

‘temo’ um papel muito maior hoje, ‘né’? (...) A minha visão é assim: eu era muito mais importante na

escola como agente mobilizador do que como uma pessoa ligada à qualidade de vida dele. O meu papel

não era melhorar a qualidade de vida dele, o meu papel era fazer a integração dele com o ambiente

escolar. E hoje eu vejo... Hoje o nosso... ‘Vamo’ fazer assim: um teste de resistência que a gente fazia,

alguma coisa que tinha – isso, na minha época, não sei se hoje ‘chamaria’ esse termo –, a gente fazia os

meninos correr cem metros em tantos minutos, e ‘pápápá’, pra avaliar se o menino tava com

condicionamento físico ou não, na época a gente fazia por fazer, e hoje os resultados impressionam a

gente. Se o menino sentiu falta de ar aqui, é nosso dever encaminhar para o médico.

(...) Então hoje a gente tá muito mais capacitado, qualificado – não sei bem o termo pra isso, mas o

nosso papel é de muito maior responsabilidade do que na época.

Veja que o professor faz referência a uma EF com seus preceitos biológicos,

tanto antes como atualmente. Não obstante, o papel do professor atualmente é visto

como muito mais abrangente do que foi outrora, mesmo que se oriente das mesmas

diretrizes para a área, ou seja, uma EF biológica alicerçada nos princípios científicos.

Entretanto, o que nos chama atenção no depoimento do professor é quando

afirma que a culpa dos reveses de hoje está nas ações pedagógicas que foram

empregadas no período em que atuava como docente na escola. Contudo ele não atribui

isso ao Estado, ao contrário, quando afirma que “soltava a bola” e que, para a época,

130

isso não soava tão ruim quanto acontece hoje, nos indica que essa era uma ação própria,

que satisfazia aos seus interesses e chocava-se com as preconizações legais. Não

obstante isso não absolve o Estado, pois a formação acadêmica reconhecida por este, as

estruturas físicas disponibilizadas para o trato pedagógico, o processo de seleção feito

para a contratação dos profissionais que eram de incumbência do governo, também

contribuíram para este “soltar a bola” mencionado pelo professor. Mesmo assim, o

Estado não planejou isso, ao contrário, pelo que nos conta a literatura especializada, os

propósitos para a EF eram muito mais planificados, passavam muito longe de “soltar a

bola”. Também não queremos condenar o professor por suas ações, como já afirmamos,

ele satisfazia suas necessidades dentro de certos limites, o que queremos é apenas

atribuir o peso necessário a cada ator daquele contexto social.

Contrapondo o discurso dos sujeitos citados até agora, os professores A e D

tecem as seguintes considerações

Professor A É muito difícil, é muito difícil. Nós tivemos um período... Não, acontece o seguinte, eu não posso

‘tá’ opinando muito, porque eu saí... Em [19]89 eu deixei o Estado e fui trabalhar somente nas

faculdades: Faculdade (X) – e, mais teórico – a Faculdade de EF, com prática de ensino e... E conheci a

EF até dois mil e pouco, ‘né’?, anos dois mil, através dos relatos que os alunos tinham quando faziam o

estágio obrigatório. Muita crítica, assim, em relação aos professores, em relação à situação de algumas

escolas, principalmente daquelas escolas de periferia, onde não tem material, onde os alunos não

respeitam as escolas, não respeitam autoridades. Então, realmente eu vi muita crítica em relação ao

funcionamento da EF e das escolas, de um modo geral. Anterior esse tempo, em função, talvez, da

própria obrigatoriedade, da própria... Porque a maioria dos professores usavam um método francês, que

era um método mais rígido, onde exigia mais do aluno. E é difícil, honestamente, fazer uma comparação,

porque se eu pudesse voltar, eu voltaria aí nos moldes que eu trabalhei.

Professor D Aí eu acho que eu peguei um período bom, de tudo: professor, colega, de trabalho, aluno, funcionário.

Por a gente ter que fazer tudo aquilo... Porque você... Eu fiquei tanto tempo fazendo o que eu tinha que

fazer, o que eu aprendi na faculdade com esse professor. Eu sempre tentei passar o melhor, ‘né’? Sempre

me esforçava. Quando tinha dúvida, eu procurava a faculdade (...)

(...) Nós ‘temo’ bastante fruto daquele tempo. Nós ‘temo’ atleta nosso por aí que passou pela mão da

gente. Não foi a gente que lapidou, mas passou, teve uma formação aí. Tem gente que agradece a gente

até hoje, mas era muito melhor do que hoje (...)

(...) É, eu não sei se a gente acostumou de ter autonomia pra fazer aquilo, ‘né’? Pode ser que o pessoal

que tá vindo agora, que pegue isso aqui pra frente, ‘acha beleza’, que vai ficar bom – espero que fique

131

bom, porque tem que melhorar, pior não pode ficar. Mas eu acho que aquele tempo foi muito melhor.

Muito melhor. Ele deixou saudade, mas... Eu não sei te explicar, não sei te explicar se tem alguma coisa

por trás daquilo que fazia acontecer. Quando se fala em Ditadura, não sei se tinha por trás, porque eu

nunca me envolvi com política, nunca procurei saber se tinha alguém por trás fazendo ou se tinha

alguém me observando. Nunca. Nunca fiquei sabendo de nada. Se tinha alguém fazendo por trás, foi bem

feito, porque eu nunca vi nada.

Notamos que ambos se referem ao período do governo militar com saudosismo,

relembrando os aspectos marcantes que ficaram em suas memórias. Para eles, o

cerceamento, a repressão, o autoritarismo nem ao menos foram citados como fatores

acentuados no período. Mais do que isso, para esses sujeitos que viveram suas ações

pedagógicas naquela época, o que foi feito pelo Estado ou que se deixou de fazer

contemplou mais as suas necessidades do que hoje em dia. Para eles, longe de

“perversidade” e dos “problemas” de cunho ideológico levantados pela literatura

especializada, a ditadura militar se fez muito presente pela sua ausência.

Com isso talvez tenhamos que voltar mais e mais vezes ao passado e

compreender um pouco melhor como aqueles professores que trabalharam, por meio de

uma incipiente área que começava a ganhar espaço dentro do âmbito formal de ensino,

satisfaziam suas necessidades como sujeitos. Olhar para trás e encontrar culpados por

isso e por aquilo, e não considerar as continuidades e rupturas que ocorreram naquele

momento histórico, muitas delas com a participação ativa dos professores, é ignorar a

história como um processo, é tê-la como um objeto de estudo inflexível aos ditames da

economia.

As práticas pedagógicas adotadas pelos sujeitos de nossa pesquisa, mais que

uma imposição ideológica, vieram a satisfazer uma demanda existente, uma demanda

que contemplava vários atores sociais, inclusive os professores de EF. Esses sujeitos

não foram peça de uma grande engrenagem que tinha como objetivo inculcar na

sociedade as ideologias do Estado, mas foram a própria engrenagem, com seus ranços e

avanços, mas que, naquele momento histórico, fizeram valer os seus interesses,

expectativas e necessidades. Talvez até com mais esclarecimento do que acontece

atualmente, esses professores sabiam o que faziam ou deixavam de fazer, para quem

faziam e os propósitos deste fazer.

Olhar para o passado e encontrar os problemas que ocorreram, foi e continua

sendo uma prática corrente entre os estudiosos da área. Não desconsiderando a suma

importância desses estudos, pensamos que, para que se possa aprender mais e mais com

132

o passado, devemos mudar o foco de análise e olhar para trás investigando as soluções

encontradas por aqueles sujeitos que fizeram parte da história da EF no Brasil pois,

como vimos, mais do que caracterizar problemas em atuar naquele contexto histórico,

os professores encontraram soluções.

133

5. CONSIDERAÇÕES FINAIS

Diante das nossas experiências vividas e duma história contada pela literatura

especializada, que concebe a EF em diferentes momentos como preponderante nos

planos do Estado e da classe dominante na concepção de sociedade vislumbrada, nos

propusemos a investigar as nuances dessa história que comumente ignora os professores

de EF como agentes do processo de construção desta área do conhecimento.

A forma determinista como tal literatura aborda o período em questão,

como se o modo de produção fosse capaz de determinar todas as ações daqueles

indivíduos, enquadrando-os num sistema causa-efeito em que o sujeito pouco pode

controlar dos rumos de seus atos, nos levou a erigir uma hipótese alicerçada na vivencia

pedagógica dos professores, ou seja, a EF, como área profissional, composta por

diversos atores sociais, aproximava-se, e ao mesmo tempo, afastava-se da visão estatal.

Suas posições eram determinadas não por forças exclusivas de um governo autoritário,

mas também pela perspectiva individual dos professores pela mudança de cenário da

EFE.

Tendo a realidade contada pela literatura especializada como contraponto àquilo

que pretendíamos evidenciar, nos propusemos a dialogar com alguns conceitos

atribuídos a EFE no período compreendido por este estudo.

Sendo assim, procuramos mostrar, ao longo desse trabalho, que a esportivização

da área, impulsionada por leis e decretos no período, não é um fenômeno cuja causa

geradora possa ser atribuída exclusivamente ao governo militar, já que o esporte havia

adentrado com força na sociedade bem mesmo antes das políticas do governo em

questão, e, consubstanciado com outros fatores e interesses, acabou se tornando o

conteúdo hegemônico das práticas pedagógicas dos professores. Contudo, essa

esportivização não veio a atender os interesses de um governo que tinha na EF, via

esporte, o cerne das suas investidas ideológicas, mas veio contemplar uma necessidade

dos professores, necessidade emergente naquele período histórico. Mesmo as leis e

decretos promulgados no período, se concretizaram devido à anuência dos professores,

muitas vezes sem que mesmo eles se dessem conta disso. O que os depoimentos nos

pareceram indicar é que ocorreu uma construção histórica que teve os professores no

cerne do processo, ora negociando com uma pseudo-imposição verticalizada do

governo, ora efetivando uma prática pedagógica na qual coincidiam, por diversas

razões, os interesses do governo com os próprios interesses dos professores de EFE.

134

Assim sendo, pelos depoimentos coletados, somos levados a concordar que o

esporte foi o conteúdo hegemônico do período, contudo refutamos a tese de uma

possível imposição cultural, pois como ficou claro, o esporte veio a atender uma classe

de docentes que buscava legitimação profissional dentro do âmbito escolar.

Além disso, a maneira como cada professor tratou de enaltecer ou minimizar o

fenômeno esportivo em suas diferentes facetas, mostrou como cada sujeito, a seu modo,

lida com aquilo que lhe é determinado e age sobre a determinação, dentro de certos

limites. Se alguns professores seguiam o esporte dentro de uma visão que compactuava

com as preconizações legais, outros, diante daquilo que lhes era oferecido, resistiam,

contestavam e lançavam mão de estratégias e métodos incomuns para a época. Isso

acontecia não porque tivessem consciência de que o que faziam estava ou não indo de

encontro com as preconizações legais, pois muitos desconheciam as diretrizes

educacionais oficiais que vigoravam, mas porque agindo como agiam, satisfaziam mais

as suas necessidades, expectativas e interesses, construídas de acordo com suas

experiências vividas no contexto escolar a partir de uma perspectiva de classe.

As práticas pedagógicas desses professores não foram determinadas por um

governo mancomunado com a classe dominante, a fim de manter o status quo, mas

pelas próprias expectativas desses sujeitos, além das estruturas que eram destinadas às

práticas de aula, que como vimos nem sempre atendiam as preconizações legais. Isso

nos levou a outro aspecto: o papel preponderante da EF no período e a liberdade que era

concedida aos professores no governo militar.

Como vimos, a literatura nos conta por meio de leis e decretos como a EFE foi

enveredada a fim de atender os anseios do governo. Contudo essa forma determinista de

contar a história, como se tudo que fosse engendrado pelo Estado fosse levado a cabo

pelos professores, empobrece a história e deixa de levar em conta o processo de luta

pelo que seria ou não validado no âmbito escolar. E, de acordo com o que

demonstramos, os professores foram muito mais ativos nesse processo do que

comumente se conta. Mesmo assim, esse fato não isenta o Estado de suas intenções de

dominação e de controle, e, para tanto, a EFE por meio do potencial esportivo poderia

ter um papel preponderante durante aquele governo. Porém, dentro do contexto cultural

investigado por nós, o Estado autoritário daquele período se fez muito menos presente

do que a literatura dos anos 80 e 90 nos descrevem.

Segundo os depoimentos dos professores entrevistados, havia um total descaso

para com o que estava sendo de trato pedagógico dos professores. A falta de uma infra-

135

estrutura adequada para o trabalho em consonância com as aspirações legais, um

subsídio teórico superficial, a falta de cursos que realmente satisfizessem as

necessidades dos professores, todos esses são indícios de que a EFE tinha muito menos

importância do que comumente se afirma. Notamos que os professores relataram ter a

liberdade para fazer o que queriam, como queriam e com os propósitos ideológicos que

mais os apetecesse, até mesmo contra as políticas estatais, já que nenhum membro do

governo ou mesmo da direção da escolar conferia o que estava sendo feito ou deixava-

se de fazer.

Diante desses argumentos, podemos dizer que os professores tiveram a liberdade

para enveredar pelos caminhos que eles mesmos criaram no período da ditadura militar,

um pouco diferente do que vem acontecendo atualmente num regime de governo dito

democrático.

Para aqueles professores não houve sentimento de repressão, cerceamento e nem

mesmo autoritarismo em suas práticas de aula cotidianas. Pelo contrário, esses

professores se sentiam livres para conceber o que deveria ou não ser feito. Longe de um

papel preponderante, a EF era tida com grande descaso por boa parte daqueles que

compunham o universo escolar e/ou faziam parte dele. Na melhor das hipóteses,

podemos considerar que devido aos enraizamentos históricos, a EF era vista com apreço

pelos militares, contudo afirmar a tese de inculcação ideológica é imputar ao período

uma dimensão para com a área que de fato não houve, dentro do contexto estudado.

Portanto, podemos afirmar que os professores, dentro de certos limites, faziam

aquilo que bem queriam em suas aulas. Longe de serem coagidos a fazer aquilo que o

Estado poderia ter planejado, esses sujeitos lançaram mão de métodos, estratégias,

avaliações, enfim, medidas que naquele contexto poderiam ser realizadas a fim de

satisfazer as suas necessidades. E, como ressaltamos, muitas dessas necessidades

vinham ao encontro da legitimidade que procuravam, ou melhor, a busca por um “lugar

ao sol”.

Por fim, pensamos que nessa volta ao passado, fizemos valer as vozes dos

professores que atuaram naquela época. Mais do que confirmar a hipótese central desse

estudo, a análise a que nos propusemos pôde nos levar a compreender como aqueles

sujeitos, atuando em meio a um regime ditatorial e numa área que buscava consolidação

nos âmbitos formais de ensino, encontraram, mais do que problemas, soluções para

satisfazer suas necessidades. Olhar para trás e encontrar culpados por isso ou aquilo, é

desconsiderar o nuançado processo por legitimação de determinadas práticas, é

136

desconsiderar os professores como seres capazes de fazer opções. Portanto, mesmo

dentro de certos limites, esses professores escolheram, e para aquele momento, suas

preferências mais do que algumas opções oferecidas pelo Estado, foram erigidas por um

sinuoso processo histórico do qual esses sujeitos foram agentes. Sem dúvida, os

professores que fizeram parte deste estudo, fizeram escolhas.

Diante de tais considerações, talvez devêssemos em novos estudos de cunho

histórico, resgatar o passado, não mais apenas com o intuito de denúncia, mas

principalmente, a fim de aprendermos como aqueles indivíduos agiam e reagiam diante

do que lhes era determinado, verificando como fizeram-se satisfeitos com aquilo que

conseguiam. Pensamos que essas soluções encontradas sejam o mote daquilo que

devemos investigar como mais assiduidade, a fim de construirmos diretrizes

educacionais que contemplem as necessidades de todos os atores sociais envolvidos e

possamos, de fato, contribuir para uma verdadeira justiça social por meio da educação.

137

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145

APÊNDICE 1

TERMO DE CONSENTIMENTO LIVRE E ESCLARECIDO

USJT – Universidade São Judas Tadeu

TÍTULO DA PESQUISA: Educação Física escolar no período da ditadura militar

em Jundiaí (1964-1985)

Eu, _______________________________________________________________ e-

mail,____________________________, Tel.____________________ abaixo assinado,

dou meu consentimento livre e esclarecido para participar como voluntário do referente

projeto de pesquisa, sob a responsabilidade dos pesquisadores Wesley B. Araújo e Prof.

Dr. Edivaldo Góis Jr. (orientador), do curso de Mestrado em Educação Física, do

Programa de Pós-graduação da Universidade São Judas Tadeu.

Assinando este Termo, estou ciente que:

1. O objetivo desta pesquisa é analisar as práticas pedagógicas dos

professores de Educação Física escolar no período da ditadura militar, e através

disso, recontar a história a partir da visão dos professores que atuaram no período;

2. A minha atuação na pesquisa envolve exclusivamente: o preenchimento do

Termo de Consentimento Livre e Esclarecido, a participação como informante nas

entrevistas com dias e horários previamente combinados entre os interessados;

3. Não haverá prejuízos físicos e morais para minha pessoa, nem gastos de

ordem financeira;

4. Em relação aos riscos proporcionados pela pesquisa, estou ciente que posso

me sentir constrangido ao relatar minhas memórias ao pesquisador;

5. Em relação aos benefícios proporcionados pela pesquisa, estou ciente que ao

término da mesma, poderei ter acesso ao trabalho produzido, possibilitando a mim, num

lugar e tempo determinados, um lugar na história da Educação Física escolar brasileira;

6. Estou livre para não aceitar participar desta pesquisa, assim como estou livre

para interromper a qualquer momento a minha participação no projeto;

146

7. Meus dados pessoais serão mantidos em sigilo e os resultados gerais obtidos

através da pesquisa serão utilizados apenas para alcançar os objetivos do referente

estudo, incluindo a publicação em literatura especializada;

8. Estou ciente que as entrevistas serão interpretadas pelo pesquisador;

10. Se julgar necessário, poderei entrar em contato com o (COEP) Comitê de

Ética e Pesquisa da Universidade São Judas Tadeu pelo telefone 2799-1732 ou poderei

contactar o responsável pela pesquisa, Profº Wesley Batista Araújo pelo telefone (11)

91400775 ou e-mail: [email protected];

11. Obtive todas as informações necessárias para poder decidir consciente e

livremente sobre minha participação na referida pesquisa;

12. Este Termo de Consentimento Livre e Esclarecido é feito em duas vias,

sendo que uma permanecerá em meu poder e outra com o pesquisador responsável.

São Paulo, ____ de ______________ de 2009.

Assinatura do Voluntário: ________________________________________

_______________________________________

Profº. Wesley Batista Araújo

Aluno do Mestrado em Educação Física da USJT

______________________________________

Prof. Dr. Edivaldo Góis Jr

Orientador da Pesquisa do Curso de Mestrado e

Professor do Programa de Mestrado em Educação Física da USJT

147

APÊNDICE II ROTEIRO DE ENTREVISTAS

CONTEXTO FAMILIAR

1- Como foi o seu processo de escolarização antes de ingressar na faculdade de

Educação Física?

FORMAÇÃO INTELECTUAL E PROFISSIONAL:

1- O que você costuma(va) ler?

2- O que essa leitura contribuiu ou não para a sua formação?

3- Por que você escolheu ser professor (a) de Educação Física escolar?

4- Como e por que chegou ao ensino público?

5- Além da Licenciatura em Educação Física o que mais você fez para contribuir

com a sua formação profissional?

SOBRE AS POLÍTICAS PÚBLICAS

1- Você conhecia as políticas públicas que permeavam a Educação Física escolar no

período?

2- Na escola em que você atuava havia uma diretriz pedagógica que subsidiava o seu

trabalho?

3- Era disponibilizado a você algum tipo de material pedagógico (teórico) no auxilio à

sua prática pedagógica?

4- Você se lembra se o governo oferecia cursos de especialização? Fala-me um pouco

disso.

5 – Havia um controle do governo sobre as suas práticas pedagógicas?

SOBRE A EDUCAÇÃO FÍSICA

1- O que é Educação Física escolar?

2- Você acredita que a Educação Física foi (é) importante dentro do âmbito

escolar?

3- Conte um pouco sobre como era a sua prática pedagógica.

4- Fale um pouco sobre a tão propalada esportivização da Educação Física escolar

no período.

5- Quem e como se definiam os conteúdos, as estratégias e as avaliações?

148

6- Como os alunos se manifestavam a respeito da Educação Física na escola?

7- Em relação à Educação Física escolar no período, como ela era vista pela

comunidade escolar?

8- Como você compreende a Educação Física escolar da década de 70 e 80 e a de

hoje em dia?

9- Uma última palavra...

149

ENTREVISTA COM PROFESSOR “A”

Professor, eu vou fazer algumas perguntas para o senhor, a fim de que

conte a mim como foram suas práticas pedagógicas no período abordado por esse

estudo ok.

Tudo bem.

Professor primeiramente eu gostaria que o senhor contasse um pouco sobre

o processo de escolarização antes de entrar na faculdade. Como é que o senhor

escolheu [o curso]? Por que a Educação Física? Foi uma coisa que o senhor disse:

“Ah, eu quero ser professor de Educação Física...” Queria que o senhor contasse

um pouco sobre isso para nós, para iniciarmos o nosso trabalho.

Eu praticamente nunca esperava ser um professor de Educação Física. A ideia

surgiu quando foi criada uma faculdade de Educação Física na cidade [em] que eu

morava, em São Carlos. Foi a segunda faculdade de Educação Física do Estado – tinha

uma de Bauru e foi criada uma em São Carlos. Havia uma – perdão – em Campinas

também. Mas no interior foi [trecho ininteligível] E ali foi... Mas como eu sempre

gostei de esporte... Eu comecei a jogar basquete em 1939, era garotinho, da equipe

mirim. Mas era um esporte diferente. Competi em campeonatos paulistas: natação, no

mirim, infantil. Depois joguei futebol na cidade, nos campeonatos da cidade, nos

campeonatos brasileiros[?]. Joguei basquete também, tinha uma equipe de basquete,

assim como jogos... Fiz, inclusive... ‘Tinha’ cavalos de corrida, fui em jóquei também...

[riso]

Bem eclético... [riso]

Brincava bastante. E tudo isso fez com que eu visse a faculdade como algo

interessante. De início, a gente, procurava na[?] faculdade[?] de Educação Física, o

esporte, na verdade não era bem isso [riso] que eu encontrei. Mas gostei da faculdade.

Embora tenha sido feito somente em dois anos, mas era período integral: de manhã, à

tarde e à noite. [risos] Uma faculdade gostosa, aonde eu me saí relativamente bem. Ali

comecei a desenvolver outros esportes que eu não conhecia, como boxe, como judô,

esgrima.

Tinha esgrima lá na faculdade então?

150

Tinha, sim. Nós tivemos esgrima, tivemos judô, tivemos golfe, tivemos

ginástica olímpica. Em dois anos de curso – mas era um curso bem intenso, bem

intensivo. E isso aí fez com que eu realmente despertasse. Saí da faculdade, já, e fui

convidado pra trabalhar em escolas – à época, lá, escolas ‘particular’. Mas a minha

primeira escola foi uma... Escola de Comércio São Carlos, isso em 1952. Quer dizer,

pouquinho antes: [19]51, perdão. Então vai fazer agora 61 anos que eu comecei nessa

vida aqui. [risos]

[risos] Nossa, sessenta anos de docência. Então o senhor atribui ao esporte

essa...?

Ah, sem dúvida...

...essa entrada...

A entrada foi a visualização de fazer aula. Depois que eu entrei, então... Eu já

pensei em ser técnico de futebol – fui convidado, inclusive, pra ser preparador físico de

equipe em São Paulo, quando eu trabalhei em São Paulo, mas nunca quis tirar o pé do

chão, ‘a’ ‘minha’ negócio era a Educação Física. E a grande vantagem, na época, é

[que] o salário era compensador. Nós ganhávamos tanto quanto ganham[?] juízes[?].

‘Era’ os mesmos direitos que tinham os juízes de[?] direito.

Olha, que maravilha.

Era um salário compensador, então valia a pena a gente fazer, e independente de

se você tivesse fazendo aquilo que realmente você estivesse gostando[?], tá certo? Mas

você nem sempre faz aquilo que gosta. Mas, obrigatoriamente, você tem que gostar de

tudo aquilo que faz. Quando você vai fazer aquilo que gosta... Então, pra gente...

É uma maravilha.

É uma maravilha.

Professor, agora no que diz respeito à sua formação na faculdade: na época,

qual era o cunho das disciplinas? Sobre o que se costumava ler na sua época de

faculdade?

Na época da faculdade a gente estudava bem os métodos, ‘né’? Métodos de

Educação Física, isso ‘cê' estudava bastante. Na parte de Biologia: anatomia, também

151

nós tivemos, assim... [trecho ininteligível] médicos que trabalhavam com a gente,

diferente um pouco da faculdade, do currículo de hoje. Hoje, o currículo, ele é bem

mais, vamos dizer assim, voltado pra formação teórica do que prática, e nós

trabalhávamos mais com teórico-prático. Então a aplicabilidade era total...

Impressionante: nós tínhamos aula de voleibol, era voleibol; aula de futebol, era futebol;

aula de ginástica, [era] ginástica; atletismo, [era] atletismo. Não se estudava história[?]

nem, digamos... A metodologia, sim. Mas, por exemplo, a fisiologia era fisiologia

aplicada à Educação Física – apesar de que, naquela época, nós tínhamos a anatomia

aplicada em Educação Física. Então o Professor, o doutor Perdiguel, por exemplo, ele

mandava... dava aula de anatomia: “Então, ‘vamo’ fazer o seguinte:’Tira a camisa’.

Botava o menino na frente e falava assim: “’Vamo’ ver, ‘vamo’ analisar esse osso

aqui...”. Por exemplo, ‘né’? Na parte de osseologia: “Esse osso aqui, ‘cês’ ‘tão’ vendo?

Que osso é esse? O omoplata”. Naquela época era omoplata; hoje, não, hoje tem... é

escápula, ‘né’?

Escápula.

“Então, se vocês tão vendo esse osso... Olha que beleza esse osso. Esse osso é

um osso triangular, não é? Porque se ele é triangular, ele tem três bordas, certo? Se ele é

chato, ele tem duas faces”. Então nós encontramos na crista da coisa, e ficava dando

aula mostrando... Espetacular! Quer dizer, uma coisa que eu aprendi há sessenta anos

atrás, eu sou capaz de responder agora.

Foi muito significativo, não é?

Nós tivemos aula com o Professor Mauro Soares Teixeira – famoso Mauro

Soares Teixeira, que tem livros editados com o Júlio Mazzei. O Júlio Mazzei é o que foi

preparador físico do Santos muitos anos, foi o preparador do Pelé. E eu fiquei muito

amigo desses dois. O Mauro Soares – dele e do Julio Mazzei. O Julio Mazzei acabou

casando com uma colega nossa, dessa classe. Então eram pessoas, assim, muito

dinâmicas e [que] gostavam da Educação Física. O Mauro fez até a letra e música da

Escola de Educação Física de São Carlos.

Interessante.

E nós vivíamos. Ali era... A Educação Física era uma aula, assim, que elucidava

toda a população.

152

Era grande essa turma, professor?

Nós começamos, eu lembro até hoje, 67 alunos, na primeira turma, no primeiro

ano. Depois, nos anos seguintes, foram sessenta alunos por classe, parece que foram

dois períodos... Depois que eu me formei, eu fiquei em São Carlos por um tempo.

Depois eu me afastei da escola, fui trabalhar ‘noutro’ setor, e em outros lugares, ‘né’?

Não acompanhei mais a evolução da escola. Mas nós começamos com 67 alunos – isso

eu lembro bem. E tinha na nossa turma jogadores de futebol, ‘ficava’ jogadores de

basquete...

Muitos alunos ligados ao esporte, não é?

Todos, todos. A grande maioria foi ligada... Aliás, quem me levou pra dar

Educação Física foi até um jogador de basquete, o Ricardão. Na época, chamava

Ricardão, era o pivô da seleção de São Carlos. “Espanador da lua”, assim. Um metro e

oitenta e dois; um metro e oitenta e quatro. [risos] Era o mais alto do... E não era alto,

‘pô’! E no basquete não tinha pessoas... eram todos baixinhos [risos]. Baixinhos? Tudo

da mediana. Hoje nós encontramos jogadores que têm dois metros e doze. O Leandro,

que foi aluno nosso aqui, parece que tinha dois metros e dezoito, ‘né’?

Eu lembro. Eu lembro, enorme não é?

É. [risos] Eu até dizia, quando montei o coral aqui, ‘de’ que ele cantava no coral

e era baixo. Então eu falava: “Você é o maior baixo do mundo”. ([risos]) “Não tem um

coral que...”

Não tem, com certeza, não. [risos]

E é isso aí. Então tínhamos... Era uma faculdade, assim, gostosa.

Professor, trazendo um pouco mais para a nossa realidade aqui. O senhor

falou que trabalhou no instituto durante muito tempo, como o senhor já disse.

Como é que o senhor escolheu ser professor de educação física escolar? Como é

que o senhor chega nesse ensino público? Fale-me sobre isso.

Ah, acontece o seguinte, o objetivo de todo o professor de educação física

daquela época era entrar no serviço público: dava mais garantia e tinha mais recursos,

porque a escola pública, na época, era a elite. A escola particular não era a elite. A

153

escola particular era, digamos assim, o local que abrigava os alunos que não iam bem na

escola pública. Um ensino mais fraco, e tudo mais...

Ao contrário do que acontece hoje?

Ao contrário. Mas eu não acredito que a escola pública tenha melhorado seu

nível, ou melhor, que a escola privada tenha melhorado. Ela continua no mesmo estado.

Acontece que o [ensino] público desceu tanto que ficou distanciado.

Entendi. Professor, além da licenciatura, da faculdade de Educação Física,

teve algum curso que o senhor tenha feito, alguma outra faculdade? Eu gostaria

que o senhor contasse um pouquinho disso.

Sim. É, dentro da Educação Física nós tínhamos aqueles cursos de

aperfeiçoamento pedagógico que ‘era’ realizados em Santos. Você normalmente trazia

os professores do exterior pra ministrar cursos. Então nós tínhamos cursos [de]

‘praticamente’ de quinze dias, um mês, em Santos – era em Santos, até –, aonde o DEF,

o Departamento de Educação Física do Estado de São Paulo, organizava. Então dentro

da Educação Física a gente ia buscar... por exemplo, eu aprendi handebol com o

Listello.

Isso em que época, professor?

É, o curso era de...

O senhor já ministrava aula no ensino público nessa época?

Já, já.

E era o Estado que...?

Era o Estado que mantinha esses cursos. Esses cursos eram... chamavam-se

“curso de aperfeiçoamento pedagógico”. E fora da Educação Física, eu fiz: eu fiz,

depois, Direito; fiz magistério; eu fiz Pedagogia... Enfim... “Af” também, a própria

faculdade, ‘né’? Curso Superior, ‘né’? Própria faculdade, ‘né’? Curso Superior.

São várias formações aí...? [riso]

É...

154

Contribuiu muito? [riso]

É, mas nenhuma delas desviou do principal, que é a minha primeira, o pé no

chão: a Educação Física.

Educação Física.

Tive a oportunidade, fui convidado pra trabalhar no Conselho de São Paulo de

Educação, como... Antigamente eles tinham... Não eram fiscais, eram indivíduos

ligados ao Conselho, que visitavam escolas. Não lembro o nome que davam, mas eu fui

convidado pra trabalhar lá, tudo, mas não quis sair do... ensino público.

Não quis desviar o foco?

Não. E fui convidado quando nós estávamos montando a faculdade de Educação

Física em Jundiaí. Que eu comecei a ir constantemente, tinha alguns amigos, inclusive;

tinha um grande amigo, que era conselheiro, que me ajudou bastante na formação da

escola, o Professor Erasmo Nuzzi, que foi, inclusive, secretário... não, coordenador de

Ensino Normal e Industrial do Estado de São Paulo. Ele me levou no Conselho, me

apresentou, então ali eu fiquei conhecendo os conselheiros da época. Que eles

organizaram, inclusive, aqui em Jundiaí, uma reunião do PLENO[?]. Acho que foi a

única vez que eles saíram de São Paulo pra fazer uma... Houve uma festa aqui,

convidamos os conselheiros, e eles fizeram uma reunião do PLENO. PLENO, reunião

do PLENO é quando todos os conselheiros se reúnem numa quarta-feira pra aprovar

aquilo que os membros do conselho tão estudando. Então você faz um pedido, por

exemplo, e esse pedido é entregue no protocolo, e o protocolo vem de acordo o pedido,

eles entregam pra um coordena... pra um conselheiro. Então, o Conselho, tinha o do

Ensino Primário, o Secundário e Superior – primeiro, segundo e terceiro grau. Então, na

reunião do PLENO todos os estudos e os pareceres eram discutidos em plenário, e nós

conseguíamos [trecho ininteligível] Foi... Nós fizemos aqui... Tá certo que não vieram

todos os conselheiros, mas nós tivemos aqui mais ou menos uns doze conselheiros. Não

teve a validade do PLENO de lá, mas eles se reuniram aqui, discutiram aqui.

Vieram.

155

Veio o Professor Paixão, veio o Erasmo Nuzzi, que era o coordenador, veio

esse... o Padre Corbeil, veio o Paixão... Eu não lembro bem que todos esses professores

fossem. Faz quarenta anos...

Isso na década de [19]70?

Setenta, na década de [19]70.

Na década de [19]70, que era mais forte, não é?

Só que, pra montar uma faculdade, era a coisa mais difícil que tem.

Então, eu imagino, porque essa é a parte, talvez, principal aí.

Professor, a gente sabe que na época teve os decretos – e foi, inclusive, um

deles que ajudou [com] que as faculdades abrissem, que inaugurassem mais

faculdades de Educação Física, e em [19]71 que isso começou a acontecer no Brasil,

né? A respeito das políticas públicas – principalmente a partir da 5ª Série, que a

Educação Física começou a ser obrigatória, e isso começou a acontecer

efetivamente a partir de [19]71 –, como é que o senhor via isso lá? Os professores:

eles conheciam as políticas públicas sobre a Educação Física ou sobre a Educação

mesmo, na escola em que o senhor trabalhava? Como é que era essa situação, essa

questão, realmente, dos militares?

É, tem uma coisa, eu não posso dizer em relação às outras escolas. (Sim, sim) A

minha escola era uma escola experimental. E, como experimental, nós tínhamos a

liberdade de fazer um currículo diferenciado. Eu falei há pouco pra você que nós

tínhamos... O aluno ingressava no 1º Ano Primário e ia até a 4ª Série numa sequência

só, não era dividido, não tinha aquela divisão estanque de Primário e Secundário. O

aluno, já na 4ª Série, ele já tinha dois professores.

De classe, mesmo?

De classe. Então, um dava matemática, [o outro] dava português. Não era um

auxiliar, não era um assistente: não, era um professor! E o experimental, aqui, ele

funcionava de uma maneira espetacular, haja vista que o Estado adotou muita coisa do

que nós fizemos aqui, porque, quando terminava o ano, nós mandávamos os relatórios

pro conselho – relatórios, que são calhamaços –, dizendo o que nós ‘távamos’ fazendo e

qual era o resultado. Então, de [19]70... Ou melhor, desde quando eu entrei até a

156

mudança do sistema, quando entrou aquela redistribuição da rede pública, setorização,

todos os alunos, quase todos – eu digo, quase sem exceção nenhuma – saíam do 3º

Colegial para as maiores, melhores faculdades do Brasil sem cursinho. Tivemos alunos

aqui que entraram na Medicina da USP estando no 2º Colegial, e reprovados no 2º

Colegial [riso].

Que coisa!

Então...

Era fortíssimo...

Fortíssimo. Mas essa coisa... Era um ensino onde o aluno praticamente se

interava com a escola. Havia um processo de interação maravilhoso. Então eu não posso

afirmar como era a rede pública de um modo geral. Nós tínhamos... Os nossos

professores, [nos] reuníamos pra dar aula pra 5ª Série, por exemplo. Quinta Série: 5ª

Série, nós vamos tomar o quê? Como ponto de partida era a cidade de Jundiaí. Então, o

professor de português: ia trabalhar, sempre, toda a redação em cima da cidade de

Jundiaí: informação histórica e tudo o mais. O professor de história trabalhava com

história envolvendo a cidade de Jundiaí. O professor de geografia falava envolvendo a

cidade de Jundiaí. O professor de educação física trabalhava... E todo mundo trabalhava

em cima de uma unidade. Você falava: matemática? Tudo bem, ‘vamo’ pôr matemática.

Tudo bem. “Qual é a população de Jundiaí?” Quer dizer, os exemplos citando sempre a

cidade. Eu comecei a dar aula no Primário, nessa época, aqui. Nós saímos[?] de[?] lá[?],

da[?] educação física, no curso Primário.

Isso, teoricamente, não existia no Brasil, não é?

Não, mas, então, o que nós fazíamos? Fazíamos, com os professores...

“Professor, deixe-me...” Falava assim: “’Vamo’ brincar, vamos brincar com a

matemática. Vamos brincar com a aritmética. Vamos brincar...” Qual a coisa mais

difícil foi encontrada...? O que ‘que’ os alunos não tão entendendo...?” / “Olha,

professor, fração é uma coisa difícil ‘deles’ entenderem...” / “Então vou fazer uma

aula... Hoje eu vou trabalhar com vocês. Nós vamos fazer, então... Aqui eu tenho um

grupo completo. Eu vou dividir: metade pra cá, metade pra lá. Quanto eu tenho aqui?

Meio aqui e um meio aqui. Se eu juntar os dois, fica uma unidade. Se eu dividir esse

meio em duas partes, e esse [outro] em duas partes, quanto ‘vão’ ficar? Vão ficar um,

157

dois, três quartos. Um quarto representa a fração de vocês. Se juntar todos, quatro

quartos é um inteiro. Porque mostrar pro aluno que 2/4 é igual a 4/8 é esquisito!

É, é esquisito. [riso]

E é fácil você brincar com eles com isso aí.

Ele vê, não é? Está mais claro.

“Vamos fazer o jogo da matemática! O Jogo da Tabuada! ‘Vamo’ lá, gente! Eu

tenho duas fileiras aqui. Se eu vou fazer uma determinada operação, se o número for

par, vocês, se ‘cês’ tão ‘de’ direita, ‘deve’ correr, bater palma com o outro e voltar. Se

for ímpar, então...” / “Ah, 5 X 5? Vinte e cinco. Vinte e cinco é par ou ímpar?” Então

isso começava a exigir da gente a tabuada do 7, do 8. Porque: “Olha, na próxima aula o

senhor dá a tabuada do 8?”

[risos] É engraçado, não é?

[risos] E os alunos começavam a exigir dos ‘professor’... [risos] “’Má’ que ‘que’

é isso que ‘cê’ tá fazendo? Escreve um livro aí [trecho ininteligível]...” E eu fiquei tão

entusiasmado. Depois, quando eu comecei a dar história na faculdade, eu vi que teve um

padre, François Fénellon, que escreveu um livro que dizia: tudo pode se ensinar através

da brincadeira. O jogo pode ser... Com o jogo você pode ensinar muita coisa, mas não

pode fazer dedicação ao jogo...

Interessante.

Então você começa a trabalhar, a viver a Educação Física. E a coisa mais

gostosa que tem é quando você pode sentir que um aluno começa a querer te imitar. Ele

quer ser seu espelho.

Querer aprender. É muito gostoso ele querer...

E eles... Tinha aluno que se vestia igualzinho à gente. Botava, tocava o apito, e

ia pra escola, no começo do ano...

E, mais tarde, ver esses professores formados em Educação Física, eu acho

que é uma coisa que... [riso]

É, então... Então a gente tem essa vivência maravilhosa.

158

Deixa eu perguntar uma coisa, professor: nas aulas de Educação, o

Governo, ele dava alguma diretriz pedagógica para vocês seguirem? O senhor

falou que vocês tinham essa liberdade de montar o currículo, conte-me a respeito.

Nós tínhamos, nós tínhamos liberdade. Acontece o seguinte: não havia, não.

Infelizmente, na rede comum, não havia. O que havia, na verdade, ‘era’ esses

campeonatos colegiais, ‘né’?

Isso era comum?

Era comum. Então, o campeonato colegial, as escolas se preparavam para o

campeonato colegial. Tinha basquete, vôlei e atletismo. Então você[?] tinha[?] as[?]

temporadas, ‘né’? Fazia temporadas. E no programa que a gente tinha, a gente colocava

o que ia desenvolver naquela temporada. Não havia, assim, um..

Como seguir não tinha? Não havia uma cartilha: “tem que fazer isso”?

Não, não tinha uma cartilha que era endereçada a todos. Então, às vezes, o aluno

saía de uma escola e ia pra outra, e falava: “Bom, eu não aprendi, isso eu nunca fiz,

nunca joguei basquete, não tenho noção de basquete, não tenho noção de futebol”.

Então, realmente a educação física é de muita liberdade. E essa liberdade, pra uns, foi

tomada, assim, de maneira espetacular, e, pra outros, foi simplesmente jogar uma bola e

ponto final.

Mas havia um controle do Governo sobre as suas aulas? Um cerceamento,

alguma coisa assim?

O Departamento Estadual da Educação Física mantinha os seus delegados em

algumas cidades. Então, em Jundiaí tinha um delegado de Educação Física. E esse

delegado visitava as ‘escola’, visitava os professores, dava visto na caderneta... no

diário de classe. Às vezes, orientava alguma coisa, quando tinha alguma para realizar,

então ele procurava.

Ele era especialista em Educação Física?

Era um professor de Educação Física. Geralmente era um professor de Educação

Física. Aqui em Jundiaí foi em 1951... 1963, [19]64. Foi um professor chamado Daniel

Cardoso. E depois veio o Maurício, e aí foi uma... Mas sempre teve, sim. Atualmente...

159

Aqui em Jundiaí tinha um delegado?

Tinha, tinha.

Aqui tinha?

Sim. Quando eu vim pra cá, tinha. E o delegado, quando veio pra cá, era...

chamava-se Daniel Real Cardoso, ele era professor de Educação Física do Divino

Salvador, professor concursado, aprovado em concurso, professor concursado na rede

estadual.

Professor, esse último tema é sobre a Educação Física. Então, são temas

mais contemporâneos, mais de acordo com a vivência que o senhor teve sobre a

área. Então eu gostaria que o senhor explicasse – e eu sei que não é algo simples de

se dizer: para o senhor, o que é, hoje, a educação física escolar e o que foi a

educação física escolar na época em que o senhor atuou? Como o senhor enxerga

essa área?

Bem, eu... ‘Cê’ tá perguntando...

Bem é algo bem abrangente mesmo.

É. Eu sempre fiz meus programas levando sempre o aspecto cognitivo,

psicomotor e o afetivo. Sempre, nunca desprezei. Isso, eu acho que o aluno tinha que

sair da escola com conhecimento de regras, e ter conhecimento dos valores e das

vantagens que a educação física propiciava. Então, eu colocava sempre como objetivo,

‘né’? Fazer com que o aluno pudesse, sem a observação do professor, exercer a

atividade física de uma maneira prazerosa. Então, quantas e quantas vezes você ‘tá’

numa praia, e: “’Vamo’ jogar um futebolzinho, ‘vamo’ ‘bater’ um voleibol” E alguém é

convidado: “Sabe, ‘cê’ me desculpe, mas eu não vou”

Quer, mas não vai, não é?

É. E por quê? Não vai porque não sabe, porque não tem aquela habilidade. Então

o segundo aspecto é o aspecto psicomotor, de habilidades. Um é o de conhecimento,

que é o cognitivo. O psicomotor, que é as habilidades. E o afetivo, que é o afetivo, o

relacionamento, a maneira de saber e reconhecer. Eu acho que a educação física na

160

escola, principalmente eu encarava assim: a educação física é o veículo pra formar

cidadãos.

O veículo para a cidadania.

É pra cidadania. O garoto tem que aprender a respeitar a vitória e a derrota, ter

como conseqüência de uma atividade. E se você prepara... Porque na vida ele vai ter

muitas adversidades, não vai ser tudo cor-de-rosa. Então, ele tem que saber encarar isso,

e, pra saber encarar, ele tem que ter aprendido isso.

Muito bem.

Não é dando uma medalha pra todos os atletas que participam de uma

competição... Não, ‘cê’ tem que valorizar aqueles que são melhores, mas não

desvalorizar aqueles que não chegaram. Porque é muito mais difícil saber perder do que

saber ganhar.

Muito mais.

Então, quando você prepara a Educação Física, ela... Esse é o conceito: o

conceito bio-psico-‘sócio’ da Educação Física, dado pelo método francês. O método

francês, na minha opinião, foi um método espetacular, embora criticado... Mas quem

critica conhece somente o esquema ‘duma’ aula, mas não conhece a filosofia do

método.

E também não foi falar com os professores da época para saber como aquilo

era feito, não é? Normalmente, é a partir dos livros, você faz uma crítica a partir

dos escritos, o que não tem a mesma...

É, não tem o mesmo sentido de elaboração.

Não, não tem, é bem diferente.

Então eu, se eu pudesse voltar no tempo, eu voltaria a ser professor de Educação

Física; passaria por tudo aquilo que eu passei.

Interessante [riso]

161

E fico feliz... Ontem, por exemplo, eu fui ao médico – disse a você, ‘né’? E

encontrei o Pedro. O Pedro é um dos médicos, pediatra: “Ô, professor, tudo bem?” / Aí,

veio o outro, o Gui: “Ô, professor, tudo bem?...” / Os dois médicos trabalhando lá, que

foram meus alunos, ‘né’? E às vezes eu encontro com alunos: “Pô, o senhor lembra? Era

meu professor de ginástica, e tudo mais?”

Nós fazíamos demonstração de ginástica. É coisa de cinema. Não havia luz

negra aqui, eu consegui luz negra. Nuvem: “Essa nuvem. Como é que você faz essa

nuvem?” Nós fomos lá no laboratório e descobrimos que tinha nuvem, essa nuvem

artificial, ela é feita com o gás carbônico numa temperatura de 78 graus abaixo de zero,

que é o chamado gelo seco. Fomos em São Paulo e compramos quinhentos quilos de

gelo seco, pra fazer uma demonstração de ginástica. Quando eu falava demonstração, as

portas se abriam, porque lotava o ginásio pra ver ginástica. Aqui tem uma indústria, a

Astra...

Sim.

...ela fabrica plásticos. Fabricava-se plásticos. Você acredita que a Astra

forneceu caixas de plástico pra ficar em torno de todinho ‘do’ ginásio, na parte do

ginásio? E nós ‘colocamo’ gelo seco, e, com... [risos] Loucura, ‘né’? E, com chuveiros

instalados de quatro em quatro metros, mais ou menos, acionamos, na hora da

apoteose... Então, a apoteose, com luz negra estroboscópica e gelo seco. Aquela nuvem,

e todos os alunos caracterizados com roupas acrílicas, com sinais acrílicos. Era coisa de

cinema. Era tão de cinema, que nós fomos fazer demonstração de ginástica no Jardim

Lupe...

Em vários lugares. [riso]

Em vários lugares.

Que coisa.

Abertura de jogos aqui... Teve jogo de futebol, final Unidos e Palmeiras: o

pessoal veio: “‘Cê’ não quer fazer na abertura do jogo?”...

E os meninos participavam também? Ou era só pras meninas? Tinha

alguma distinção?

162

Não, não! Eram todos os alunos, todos os alunos, não tinha ninguém que ficava

de fora.

Mas mesmo entre eles, não tinha preconceito?

Não, não, não, não, não! Eu lembro bem que tinha um aluno que tinha um

‘poblema’ no braço. Então, os ‘exercício’ que fazia de... Então ele jogava o braço aqui,

fazia, ele[?] quase[?] colocava[?] no meio. Eu tenho alguns jornais da época – eu nem

sei se tem por aqui ou não... Mas era um negócio. O Marcel, que joga basquete....

Sim.

... ele era um atleta que fazia ginástica rítmica, ginástica rícula[?]. Movimento.

Primeira vez que eu fui fazer, falou assim: “Ô, professor, isso é coisa de menina!

Fazer...” ([riso]) Depois que fizeram, eles começaram a procurar. O Marcelo fazia

ginástica disso, e fazia ginástica de solo. Nós usávamos o plinto como parede. E era

feito com luz estroboscópica, então aquela luz dava a impressão de câmara lenta. Aonde

que um professor tinha condições disso? Não tinha. O diretor viu o meu trabalho, falou:

“O senhor tem liberdade de ‘cê’ fazer o que ‘cê’ quiser”. Então, me pediram: “Você

faz?” / “Faço. Desde que você me compre cinco reatores e cinco lâmpadas [palavra

ininteligível]” / “Ah, pode deixar que eu...” Eu fiquei com mais de vinte conjuntos de

luz negra.

Era a escola que comprava esses materiais?

Não, não! A escola não comprava nada, é que eu ganhava.

Ganhava? [riso]

É o que os jovens[?] ‘mandava’. Sabia que eu ia fazer, eles ‘pedia’, eu fazia.

Tem um dentista, aqui, o Airton, que ele foi... Ele era ex-aluno. Então: “O que ‘que’

‘cês’ precisam?” / “Tem isso aqui, eu vou fazer pro senhor”.

[Intervenção de um terceiro – Oi.

Entrevistado a terceiro – Eu vou dar uma saída, ‘cê’ vai querer alguma coisa da

rua?

163

Entrevistado a terceiro – Não.

Terceiro – Não?

Entrevistado a terceiro – Não.]

Então realizamos, uma vez, uma demonstração de ginástica, não no... no ginásio

de esportes, com 480 crianças. Puxa! Quatrocentos e oitenta crianças? Por que 480

crianças? Porque cada turma tinha 24, num múltiplo de 24 chegava a 480. Então, se

fazia a demonstração... Não sei se você chegou a ver a demonstração?

Nunca vi, porque... É engraçado pensar nessas conversas, porque eu tinha

uma outra visão... Por isso que a entrevista, ela é muito significativa, não é?

Porque eu já pensava que fosse uma ginástica de outro jeito, que privilegiava três,

quatro...

Não, não, não! Tinha que ser todo mundo, senão, não sai. ([riso]) A única... O

privilégio havia para alguns garotos na ginástica de solo, porque tinha saltos. O Cealli,

que foi seu professor, ele era um dos mais entusiastas; ele era guia da minha turma; ele

era aluno-guia. Então a gente colocava num tablado aqui na frente o aluno, e aqui tinha

980 alunos – não, perdão: 480... Não. Novecentos e sessenta alunos no campo de

atletismo. E nós fomos copiando, copiando, no ritmo quaternário você terminava os

movimentos. Só ritmo quaternário. Mas deixa eu ver se eu tenho algumas fotos,

algumas coisas aqui. E isso, praticamente era um negócio, um entusiasmo. O que é isso

aqui? Não. Isso daqui é... Não, não é isso aqui. Isso aqui é uma exposição de telas que

eu fiz na... Eu faço telas também. Isso aqui, ó [trecho ininteligível] Deixa eu ver se tem

alguma coisa. São telas, tá vendo? Essa aqui foi [de] uma exposição que eu fiz. Cadê a

[trecho ininteligível] Ah, essa aqui... poucas... Campeonato colegial. Nós fomos

campões colegiais do Estado de São Paulo... Ó, essa aqui [trecho ininteligível], tá

vendo? [trecho ininteligível]

Isso aqui é no ginásio da escola?

Isso é no ginásio da escola.

164

Que coisa! Isso aqui é uma demonstração, professor?

Uma demonstração. Não, aqui eles ‘tão’ fazendo um... fizeram um exercício, e,

“pá”, o fotógrafo bateu a hora que eles ‘tavam’ na exposição. Veja a perfeição que

‘tava’ aí.

Isso aqui é um artigo[?], isso aqui precisa ser publicado! [riso] As pessoas

precisam conhecer isso aqui, professor.

É, quer ver uma coisa? Aqui... Ah, nós também realizamos... Nessa época eu fui

convidado pra ser coordenador do CCES[?], aqui na Sociedade do Esporte. E ali nós

organizamos os chamados Jogos da Primavera. Teve um apoio, também, com a

participação de todos os alunos. Foram muito bons esses jogos aqui, deixa eu ver se tem

mais alguma coisa aqui em relação a... Uma vez eu fui candidato a vice prefeito [risos].

([riso]) Eu tive uma vida bastante ativa aqui, graças a Deus.

Fez bastante coisa?

Fiz bastante coisa. Eu devo ter... ‘Ói’: isso aqui é o diploma do... Tá vendo? Da

época da ESEF, foi...

Em [19]89.

Em [19]89. Foi quando eu ‘tava’... saí. Eu... um monte de fotos e tudo, eu tenho

que organizar isso aqui. Nesse ponto eu sou meio relaxado, eu não organizo nada.

‘Deixa’ eu ver o que tem aqui: ESEF... As demonstrações de ginástica... ‘Deixa’ eu ver

se tem alguma coisa. ‘Deixa’ eu ver se tem. Não. Aqui não é. Nós[?] realizávamos tudo,

‘né’? Maratona... A escola era uma escola super, assim... ‘Ó’, ‘ó’ uma demonstração.

Dá uma espiada. Isso aí é uma apoteose: treinamento e uma apoteose.

Isso aqui é no Bolão, professor?

É. Isso é um treinamento. Olha quantas pessoas que iam assistir o treinamento!

Aqui é a apoteose.

Quem auxiliava o senhor pra fazer esse trabalho? Porque eu imagino que

era muito difícil fazer um trabalho desses sozinho. Tinha alguém, ou não?

Não.

165

Era sozinho?

Sozinho.

Que coisa!

Aí, nós ‘távamos’ formando. Aqui, ‘cê’ tem esse exemplo: a bandeira do Brasil,

‘né’? O mapa do Brasil. E a gente fazia molduras, tudo mais. Agora ‘cê’ imagina isso

daqui, tudo com roupas acrílicas, no escuro, quando eles faziam um movimento,

apresentava as cores brilhando. Então era um... Pouca gente conseguiu ver aula assim,

viu? Infelizmente...

É algo que eu desconhecia. Apesar de eu estar me apropriando da história

da Educação Física agora, de Jundiaí...

Infelizmente! Infelizmente não houve continuação. Olha, eu tenho... [trecho

ininteligível] didáticos, viu? (Incrível!) Tá vendo? Isso aqui, é quase tudo didático:

Psicologia, Pedagogia.

É das várias faculdades aí? [riso]

Várias faculdades. Inclusive, [palavra ininteligível] também a professora

[palavra ininteligível] foi diretora da faculdade de Pedagogia Padre Anchieta. Então vou

perguntar: isso tudo foi feito na época dos militares... Quem critica, é aqueles que foram

vagabundo, não quis fazer.

Porque tinha também, não é? Tinham alguns professores que não se

adequavam ali, não é?

Sim, mas em todo lugar.

Em todo lugar, como tem hoje. Independente do período político...

É, exato. Tem gente que adora o Lula. Eu não gosto, o que vai fazer? Mas não é

por causa disso que eu vou deixar de gostar do meu país e de não respeitar a figura

máxima presente. Eu posso não gostar mesmo, mas eu sou obrigado a respeitar, porque

ele é a...

É o maior, não é?

É.

166

Professor, o senhor já falou bastante sobre isso, mas eu gostaria que o

senhor pontuasse assim. A gente sabe que principalmente antes do decreto de

[19]71, muito se diz que a Educação Física ou não acontecia ou o esporte, talvez,

não tivesse tanta força, e que isso passou a acontecer pós década de 70 com a

legislação. Como o senhor vê essa esportivização? Gostaria de saber se o senhor

acredita que houve essa esportivização da Educação Física, se o senhor enxerga

que era só esporte? Como é que era? Eram só os quatro esportes? Já tinha gente

que fazia outras coisas, mas só para...

É, acontece o seguinte: primeiro que, no início, você, para ser professor de

Educação Física, pra fazer uma faculdade de Educação Física, você não precisava ter o

Segundo Grau Completo, era preciso só o Ginásio. Então a Educação Física, no início,

era tida como um curso “Médio”, não curso Superior. Eu, quando vim pra cá, e quando

comecei a trabalhar em [19]60... Aliás, eu prestei concurso e fui trabalhar em Tupi

Paulista, do Barranca do Rio Panamá. Eu escolhi lá, que era... Na verdade, o seguinte,

deixa eu voltar um pouquinho no tempo. Quando eu prestei concurso pro ingresso, nós

tínhamos... eram oitocentos candidatos disputando seis vagas. Havia poucas vagas,

poucas escolas públicas. E quando eu escolhi... Eu fui aprovado no concurso, entre os

seis, mas não fui o primeiro colocado, porque ‘tinha’ professores que tinham sido

aprovados no ano anterior, no concurso anterior, e que optaram pelo chamado Artigo

Sexto. Então sobraram algumas vagas, e a vaga que eu achei mais interessante foi a [de]

Tupi paulista. Fui pra lá, fiquei seis meses lá. Depois que teve o concurso, a remoção, e

de lá... Fiquei um ano em São Paulo, e de São Paulo eu vim pra cá. Desde o começo,

quando eu ingressei, sempre, na minha opinião, tinha esse objetivo: fazer da educação

física algo diferente, algo que pudesse inteirar o aluno em relação à escola, e graças a

Deus...

Mesmo antes, professor, o esporte era corrente? Acontecia? Fale-me a

respeito.

É, acontecia. Teve aí umas coisas... Resolveram, nessa época, um pouquinho

antes de eu sair, resolveram diminuir o número de aula: ficaram três aulas, depois

passaram pra duas. E o Secretário do Estado mandou o... Ou melhor, o Coordenador do

Estado mandou o Paulo Flamé[?] Buarque, que era, na época, secretário da Educação, ir

ao Japão. E lá no Japão ele percebeu que a Educação Física era um negócio espetacular,

167

que dava ao povo japonês condição de vida melhor. Então veio pra cá e fez um trabalho,

e fez com que o Governo voltasse a atribuir as três aulas semanais para o professor.

Passados dois anos, nós não tivemos bons resultados holísticos, [risos] parece que

voltou...

Voltaram.

[risos]

Às duas?

Às duas, como se a gente pudesse formar atletas em dois anos. E era um

conceito, ‘né’? Por causa que os atletas só podem ser formados na escola.

Tinha esse conceito?

Tinha.

Isso era corrente na escola? Então a educação física, ela também visava

formar...?

Ah, tinha. Era o celeiro, era o celeiro.

Era o celeiro mesmo?

É. Mas, na verdade, até hoje ainda é, porque se você, o aluno, ele começa... os

talentos, você pode descobrir dentro da escola. Agora, você não pode trabalhar com os

talentos exclusivamente, eles têm que ser encaminhados para outros...

Lugares específicos?

Específicos, pra poder haver desenvolvimento. Agora, o básico, você tem que

dar: aquela cultura básica, aquela formação básica. Então eu achava que isso era

fundamental. Na equipe paulista, por exemplo, tinha um... Os meninos jogavam

voleibol, eles foram o sexto colocado no Campeonato Colegial; eram o 5º ou 6º

colocado no Estado, era um negócio maravilhoso. Então: “Mas o senhor vai treinar a

gente?” / “Tudo bem, vou lá fazer uns treinos”. Mas não era isso. Aqui no instituto,

nossa! Todos os anos nós íamos pras finais na região, nós ficamos campeões do Estado:

basquete... No Interior, perdão. E perdemos na final, pro Objetivo de São Paulo. Nós

fomos pro campeonato, ‘onde’ tinham dezesseis equipes... É, dezesseis equipes, sendo

168

que quatorze eram representantes do Objetivo, de diversas cidades do Interior. E só

duas. Mas nós classificamos, pra, [na] final, ir disputar com o Objetivo de São Paulo.

Instituto da Educação Objetivo de São Paulo. Tivemos um problema, porque nosso

melhor jogador foi jogar no Cive[?], né? Era o Mauri. O Mauri foi jogar no Cive[?],

então nós...

Perderam o jogador, não é? [riso]

Perdemos o melhor jogador, mas jogamos contra uma equipe que tinha sido

campeã sul-americana no Campeonato Sul-Americano Juvenil. O Objetivo pegou todos

os alunos que participaram: o Cadum[?], Vilas-Boas... (Nossa... [riso]) Todo o time foi

lá, e jogamos contra eles. Perdemos o jogo, sim, perdemos de... Me lembro até hoje, foi

97 a 93... [risos] Pau a pau!

Nossa, foi um jogo excelente, então!

É! Então, terminou o jogo, todos os alunos foram convidados para ir pra... [risos]

Então, perdemos, o time inteiro. [riso] Mas isso era natural, ‘cê’ tinha que fazer a

base[?] do...

O que viesse, não é?

É. Então eu acho que eu não posso falar pelos outros, eu falo por mim. A minha

formação foi essa. Não tinha... Tive, sim. Em [19]66, 67, eu realizei os Primeiros Jogos

da Primavera, aqui em Jundiaí. Isso foi em [19]67, [19]68. Depois eu saí em [19]69, o

outro professor, parece que foi o Professor Maccia[?] que assumiu. E esses campeonatos

da Primavera, os Primeiros Jogos da Primavera, não sei se você viu no jornal – tava

mostrando no jornal...

Sim, sim.

Todas as escolas participaram em Jundiaí. Mas foi um trabalho feito com os

diretores, eu fui falar com todos os diretores. E, praticamente, nós fizemos isso em uma

semana, e nessa semana as aulas foram suspensas em todas as escolas. A pedido do

Secretário de Educação, mostrando a importância. Então o ginásio dos esportes ficava

lotado, com as escolas torcendo por seus alunos.

169

Bem valorizado.

Puxa vida!

Essa já é uma outra questão, professor. Como o senhor via a valorização da

educação física nessa época? Era valorizada pelos professores? Mesmo pela

comunidade local? Tinha valor?

Olha, quando eu vim pra cá, não tinha. Honestamente, não tinha. Eles achavam

que era mais um que ia dar bola ‘pros’ alunos pra eles ‘jogar’ futebol. E nós

conseguimos mudar um pouco esse conceito. Inclusive, dentro da mesa dos professores,

um professor de educação física era praticamente marginalizado, era comum isso. Mas

eu acho que eu consegui mudar o conceito. Consegui sim. Eu acho que passaram a me

respeitar, e os alunos também, ‘né’?

Que é o que mais importa, na verdade.

É, que é o que mais importa.

Já entrando numa outra questão: como os alunos se manifestavam a

respeito da educação física na escola? Eles participavam?

‘Putz’, eu tinha... Era horrível, até. Horrível, não, perdão. Mas era gratificante.

Nós fizemos uma demonstração de ginástica – para você ter uma ideia – e o diretor – foi

numa quarta-feira – falou assim: “Você pode falar pros seus alunos que eles estão

dispensados até segunda-feira da semana que vem. Você pode ficar em casa, os seus

alunos [podem ficar] em casa” / “Tudo bem”. Nós tínhamos aula aqui às seis horas da

manhã – começava a primeira aula. / “Tá bom”. Na quinta-feira, eu ‘tava’ dormindo,

tocaram a campainha: “O senhor não vai dar aula?” / “Escuta, espera...” / Eu morava em

frente à escola. “Mas o diretor não disse que vocês podiam ficar em casa?” / “Ele disse

que podia ficar em casa. Poder é uma coisa, professor. Mas nós não quisemos ficar em

casa.” [risos]

Nossa senhora! [riso]

[riso] Tá bom? (Meu Deus!) Então eles procuravam a gente. Não tinha dispensa.

Poucos procuravam, somente aqueles que [tivessem] muito problema...

Isso é muito gratificante, não é?

170

Fazia a chamada, chamada ‘cê’... Mas também tem uma coisa... [trecho

ininteligível]... “O senhor pode fazer [trecho ininteligível]?” Nunca tive essa

preocupação. Boletim... Tinha que ter disciplina. Respeito. Isso, sim.

Disciplina e respeito era uma coisa que permeava a aula do senhor?

E os pais vinham cumprimentar a gente e davam toda a liberdade pra gente agir

com as crianças. Só uma vez, um pai veio reclamar. Por quê? Ele disse: “O meu filho

‘tá’ aqui pra estudar, não é pra lavar banheiro” Porque eu fazia o pessoal lavar o

vestiário, não sei o quê. Eu tô[?] abusando[?]?

Falei: “Eu ‘tô’ ensinando [a]o seu filho a cidadania. O seu filho passa a respeitar

aquilo que usa” “Não, não, não... [riso] Como[?] ele[?] acompanhava todos os exames

médicos... Então eu acho que... É saturado essa coisa aqui, porque eu acho que eu não

sou parâmetro pra isso aí.

Mas é que a história é muito diversa, não é? Isso que é que o mais

gratificante...

É, eu não tenho...

Porque se eu pegasse em livros, ia ser um ‘repeteco’, eu ia escrever o que já

escreveram. E isso que é o interessante para a pesquisa, é a gente realmente tentar

contar outra história, porque pegar um apanhado de coisas que já escreveram, ou

pegar as leis, decretos, e fazer um trabalho a partir disso, vão sair as mesmas

coisas, não é?

É, eu acho que leis e decretos, elas não modificam, ‘praticamente’, o indivíduo.

Elas podem modificar o direcionamento que o[?] cara[?] tem[?], mas o educador tem

que ter o tempo dele. Não são leis, não são decretos que ‘vai’ mudar a sua forma de

agir. Se você é íntegro, se você tem conhecimento do que faz não há necessidade de

nenhum direcionamento. ‘Cê’ tem que trabalhar conforme a formação do caráter do

indivíduo. E, às vezes, a gente passa até por situações difíceis.

Eu imagino.

O pai desse general que morreu, ele me procurou um dia e ele falou assim... Que

eu acabei, aqui no Instituto, foi no primeiro ano, eu não sabia que[?] ele[?] era[?]

universitário[?]. Eu dei um pescoção num moleque: “Quero que seu pai venha buscá-lo

171

segunda-feira às duas horas. Não cinco pras duas nem duas e cinco. Duas horas” ([riso])

“Que que seu pai faz?” / Eu disse: “É coronel”. Major, que ele era major. Chamava

Major. Aí, falou, falou: “Esse moleque vai cair do cavalo, ‘né’?” Um homem chegou e

falou assim: “Professor [nome initeligível], tem dois moleques aqui e eles são três

capetas. Se o senhor tiver que descer a mão, pode descer, o senhor tem a minha

autorização” / Capitão militar. Os alunos ficaram sabendo disso, que ele falou na frente

de todo mundo. O respeito que os visitantes faziam... “Não, esse [palavra ininteligível].

Enfrenta”.

Isso também vem da postura que o senhor tinha como professor, não é?

Exato, exato.

Se fosse outra, talvez não houvesse esse respeito por parte da comunidade

local.

Exatamente. Teve um pai que quis se meter em horário, eu falei: “Mas, ‘péra’

um pouquinho, meu horário quem faz...” / “Não, não é em relação ao senhor, é em

relação ao horário de um outro professor que tá aí, que tá causando[?], que não

entra[?]...” / Eu falei: “O outro não me interessa, eu sou... O meu departamento, o meu

trabalho...”. Consegui fazer muita coisa. Aqui, esse instituto... Você conhece a escola

aqui, ‘né’?

Sim.

Esse ginásio que tem aí era um galpãozinho pequeno. Quando foi fazer a planta,

eu sentei lá com a Matilde, com o diretor, e falei: “’Vamo’ mudar essa planta aqui.

‘Vamo’ fazer esse galpão aqui de trinta, trinta e dois, trinta e cinco por vinte e dois,

porque aí fica uma quadra de basquete”. Então nós fizemos lá no projeto. E a altura,

acho que ‘tava’ quatro metros: “’Vamo’ fazer essa altura aí com nove metros, doze

metros, pra uma bola de vôlei.... Aqui, por exemplo, ele disse: “Olha, casa[?]”...

‘Conversamo’ lá, fui a São Paulo, fomo no SESC, lá: levei o projeto, discuti com o

pessoal, construí.

Interessante

‘Vamo’ fazer o campo de futebol... Tem aí, esse campinho de futebol que tem aí.

Resolveram construir. Eu falei: “Tudo bem, ‘má’ ‘vamo’ fazer um campo, então, aqui”.

172

Fui na prefeitura. Eu preciso de uma moto[?] naquela... uma retroescavadora pra nivelar

o terreno lá, porque eu não quero que quando chova ‘empoça’ água no meio”. / “É, ‘má’

não tem jeito, tem que fazer drenagem...” / “Falei: ‘Não, e se a gente fizesse meio metro

a mais no meio?’” Você levava a idéia e como se fosse a idéia dos caras. “Pô, a nossa

idéia” Fizemos o campinho. Aí, eu fui lá no Corpo de Bombeiros... / “‘Vamo’ fazer a

pista em volta? Precisa de duzentos e cinqüenta metros.” / “Cê tem gente aí?” / “Não, eu

arrumo”. Então os bombeiros começaram a sentar tijolo lá. Foi lá o David Morelli.

Peguei raspa de fuligem, de carvão, pra pôr na pista de atletismo. ‘Fizemo’ duzentos e

cinquenta metros num campo de futebol, aí, de sessenta por trinta e cinco. Mini campo.

/ “Ah, não, ‘vamo’ fazer um campo completo” / “Não, ‘vamo’ fazer um campo

pequeno, porque nós ‘fizemo’ perto da...”

É esse mesmo campo que tem aí?

É esse aí. Agora entraram lá, fizeram umas ‘palhaçada’.

Eu trabalhei nessa escola da prefeitura, nessa parte debaixo.

É, esse campinho fui eu que eu fiz. Tinha dois ‘degrau’ na arquibancada, aí tinha

o podium, e eu fiz, aí coloquei os mastros...

Tem. Acho que os mastros tem até hoje.

Quer dizer, aquela estrada fui eu que fiz...

Certo. Professor, mais duas questões ok. O senhor falou de como era o

trabalho do senhor, os conteúdos. Falou que o método desportivo generalizado era

muito comum, e que o senhor gostava, não é? E como é que os alunos eram

avaliados? Havia algum tipo de avaliação? Quais eram as referências?

Sim, sim, sim. A avaliação nós fazíamos. No começo de cada ano, sempre – não

sei se semestre – tinha[?] o exame médico biométrico. E no fim do ano também. Então

se fazia uma avaliação física dos alunos. Isso havia, sim. Não havia, como hoje, nota –

se não me engano, eles exigem nota, e era dividido por conceitos.

Nota, conceitos.

Mas nós, como era um ensino experimental, nós praticamente estávamos

dentro... Ou o indivíduo era bom ou era fraco ou era regular. Mas o conceito nosso era

173

levantado. Então aqueles alunos que não apresentassem (aquelas crianças) uma

evolução satisfatória, aí eu chamava os pais, conversava com os pais e, às vezes, o

médico também avaliava, ‘né’? ‘Poblema’ de fimose, essas coisas. Mas a avaliação era

mais uma avaliação física, e avaliação de habilidades. Então, você, no fim do semestre,

você deveria ser capaz de realizar determinadas coisas – aquele... o psicomotor. Então

você conseguia mudar, praticamente, o comportamento deles através disso.

Era uma forma de avaliar?

Sim, havia uma avaliação: quem conseguia e quem não conseguia... Mas isso

não reprovava, não retinha o aluno.

Entendi. Mas essa escola para a qual o senhor trabalhou, havia reprovação?

Reprovação?

Sim. Ou não havia? Como era isso?

Você diz, no...?

Em todas as disciplinas, no geral.

Ah, sim, sim. Mas era muito difícil. Muito difícil, porque os professores

trabalhavam com conceitos. Havia reprovação, sim. Como eu falei pra você: teve um

aluno que foi reprovado no Segundo Colegial e conseguiu, praticamente, a aprovação na

Faculdade de Medicina da USP. Havia reprovação, mas acontece que nós

trabalhávamos com sistema diferente. O conceito – isso, já nas diversas disciplinas –

era: fraco, regular, bom e ótimo. Se o aluno fosse fraco, mas, se no último, ele

demonstrasse condições de seguir a série seguinte, independente daquilo que ele tinha

realizado, ele podia ser promovido. Se chegasse um ponto onde ele não tem condições

de seguir, ele era retido. Mas a retenção, o pai era consciente. Às vezes ele falava: “Eu

acho melhor segurar meu filho, porque não vai ter condições”

Entendi.

Não havia aquele negócio: “Você precisa promover meu filho!”. Muito pelo

contrário.

Ao contrário do que acontece hoje, não é? [riso]

174

Mas, por quê? Porque era uma escola aberta, ‘né’? Nós tivemos... Então, vou

falar: os militares: os militares, praticamente, eles adoravam isso aqui. Vinham aqui,

[em] toda festividade ‘tavam’ aí. Por quê? Porque era uma escola que dava... que

ajudava, praticamente, na formação cívica do aluno. Cívica também. Nós tínhamos,

todas as semanas, um dia por semana, o hasteamento da bandeira: uma classe vestia,

cantava o hino nacional, via... O hino nacional era cantado e respeitado. Nós tínhamos

um professor, Miele[?], que era um...

Essa questão patriótica era muito forte nessa escola?

Ah, sem dúvida! Mas não era por imposição. Era por algo que estava dentro da

própria escola. Foi uma pena que esse experimental deixasse de existir, ‘né’?

Até [19]89 era experimental ainda, professor?

Sim.

Até [19]89?

Não, não, não, não, não. Experimental foi até [19]78, [19]79. Quando aquele

Secretário, Luís Fernando Martins, assumiu a... Não, perdão. Eu fui em [19]86, no fim

de [19]86... É, no fim da década de [19]70, que passou [trecho ininteligível], então a

escola deixou de receber as lideranças. Ela começou a receber alunos que vinham pra

cá. Antigamente ela era disputada por causa disso. Então, havia uma luta pra conseguir

botar aqui. Inclusive, havia o vestibulinho pro Colegial; nós organizávamos o

vestibulinho pro Colegial.

Isso para quem vinha de outra escola...?

E os daqui também.

Da escola também?

Aqui era ensino da 1ª a 8ª série.

Até aí não tinha nenhum problema?

Não. Mas acontece que quase todos entravam, porque o ensino experimental

dava condições de eles serem praticamente mais bem alfabetizados, e mais bem...

175

Então era mais forte?

Mais forte.

Bom, professor, uma última questão: como o senhor vê a educação física da

década de [19]70, [19]80 e a educação física que o senhor vê hoje – no caso, a

educação física escolar de hoje? O senhor vê alguma diferença entre elas? Ou

alguma desvantagem de lá, alguma vantagem daqui? Gostaria que o senhor fizesse

uma comparação entre os períodos. Eu sei que é algo bem abrangente, mas

gostaria que o senhor procurasse esboçar alguma coisa.

É muito difícil, é muito difícil. Nós tivemos um período... Não, acontece o

seguinte, eu não posso ‘tá’ opinando muito, porque eu saí... Em [19]89 eu deixei o

Estado e fui trabalhar somente nas faculdades: Faculdade Anchieta – e, mais teórico – a

Faculdade de Educação Física, com prática de ensino e... E conheci a Educação Física

até dois mil e pouco, ‘né’?, anos dois mil, através dos relatos que os alunos tinham

quando faziam o estágio obrigatório. Muita crítica, assim, em relação aos professores,

em relação à situação de algumas escolas, principalmente daquelas escolas de periferia,

onde não tem material, onde os alunos não respeitam as escolas, não respeitam

autoridades. Então, realmente eu vi muita crítica em relação ao funcionamento da

educação física e das escolas, de um modo geral. Anterior esse tempo, em função,

talvez, da própria obrigatoriedade, da própria... Porque a maioria dos professores

usavam um método francês, que era um método mais rígido, onde exigia mais do aluno.

E é difícil, honestamente, fazer uma comparação, porque se eu pudesse voltar, eu

voltaria aí nos moldes que eu trabalhei.

E que foi muito significativo na época do senhor, não é?

Foi, foi, foi.

Bom, professor, a entrevista é essa. Não sei se o senhor gostaria de deixar

alguma última palavra, para a gente estar encerrando. Já, de antemão,

agradecendo muito, porque realmente são dados que nós não encontramos nos

livros; são coisas a que se tem acesso só entrevistando, realmente, pessoas que

fizeram parte da Educação Física e que tem uma visão de mundo diferenciada,

como é o caso do senhor, a gente consegue coletar, não é? Então, agradeço, e

gostaria que o senhor deixasse uma última palavra sobre essa educação física que é

176

amada por nós, mas que, com tantos problemas, tantas dificuldades... Pensando na

Educação como um todo: ser educador é muito difícil, não é?

É, ser educador é muito difícil, principalmente nesse mundo que nós vivemos:

um mundo de drogas, um mundo de violência. Mundo aonde o traficante passa a ser

exemplo de alguns jovens, principalmente crianças da periferia, quando se apresentam

bem vestidos, com grandes carros, e tudo mais. E, quando o aluno pergunta ao professor

quanto ele ganha, onde ele mora, entendeu? Ele não tem, assim, o professor como um

ídolo...

Um modelo, não é?

... o professor como um modelo a ser seguido. Mas eu espero ainda que isso

venha sofrer modificações e que possa voltar a ser ‘respeitada’ como deveria ser.se nós

conseguíssemos, nós, professores, ainda, mudar um pouco a nossa forma. Porque você

só pode mudar algo quando você se modifica. Então, a modificação tem que começar

dentro de cada um. Eu espero que isso aconteça por uma necessidade natural das coisas.

E eu espero que eu tenha te[?] dito[?] alguma coisa, entendeu?

Ah, foi muito gratificante, muito bom mesmo. Obrigado professor!

FIM DA ENTREVISTA

177

ENTREVISTA COM PROFESORA “B”

Bom, eu vou fazer algumas perguntas para a senhora, Professora (B). E

essas perguntas são de caráter aberto, a senhora pode se aprofundar ou ser mais

sucinta, e isso vai depender da nossa conversa. Depois eu vou estar transcrevendo

essas entrevistas ok.

Os trechos mais importantes...

Sim, os mais importantes, senão a minha dissertação teria umas mil

páginas... [riso] E essa gravação é muito importante para que eu possa, depois,

analisar a entrevista que nós faremos.

Tudo bem.

Tudo bem, professora?

Tudo bem.

Então, a primeira pergunta: eu gostaria de saber como foi o processo de

escolarização da senhora antes de entrar na faculdade de Educação Física. Conte-

me a respeito.

Bom, eu fiz o primário numa escola de freira, ‘né’? Eu fiz na Escola Paroquial.

Aí, depois eu fiz o Ginásio no Conde do Parnaíba, ‘né’? Não, minto, no Instituto de

Educação. E o Segundo Grau, que é o Ensino Médio, eu fiz no Colégio Rosa.

Em Jundiaí?

Aqui, tudo aqui em Jundiaí, ‘né’? Aí eu parei por um bom tempo, porque eu

tinha um bom emprego, ‘né’? Eu tinha um bom emprego, então eu não precisava

continuar. Mas eu prestei concurso no Estado como escrituraria, e, na minha época, o

delegado de ensino era o Professor Bonilha[?], e ele sempre dizia assim pra mim: “Ô,

“Professora B”, volta a estudar, volta a estudar, porque se um dia tiver concurso você

perde a sua vaga”. Aí, eu voltei, não fiz na primeira turma, não fiz no início do ano, eu

fiz na segunda leva – porque na minha época ‘teve’ dois ‘vestibular’, ‘né’? Teve um em

dezembro e outro foi em janeiro, e eu fiz nesse de janeiro. Tinha umas vagas

remanescentes, e teve o segundo vestibular. Então eu entrei nesse período, no segundo

vestibular.

178

Na faculdade de Educação Física?

Na faculdade de Educação Física, que foi a minha primeira faculdade.

Isso no ano de [19]77?

Isso... Não! No ano de...

Desculpa, [19]75.

No ano de [19]75. [19]75. Eu me formei em [19]77.

A formação foi em [19]77. E nessa época, professora, o que a senhora

costumava ler? Quais eram as expectativas que a senhora tinha com a faculdade de

Educação Física?

É, naquela época...

Porque a gente sempre tem uma expectativa, não é?

É, é... Naquela época eu me aprofundei bastante, viu? Porque aí eu queria ser

professora de Educação Física.

É. Eu queria ser professora de educação física, então eu estudava tudo o que

tinha relacionado à Educação Física, aos esportes que ‘tavam’ acontecendo: olimpíadas,

futebol, tudo o que ‘tava’ acontecendo eu queria saber. Então eu seguia tanto livros

como jornais.

O que levou a senhora a querer estudar foi o esporte? Ou o esporte era o

que mais agradava? Fale-me um pouco sobre.

Era o que mais agradava.

Era o esporte?

É, era o esporte, era o esporte. Tanto é que, quando eu entrei na faculdade, eu

quase fiquei, assim, meio chocada, porque, a princípio, teve bastante aula teórica, ‘né’?

Teórica, é...

...e muito pouco ‘prática’, ‘né’?

179

[riso] Frustra.

Eram poucas as aulas práticas, eram mais teóricas. Mas eu tive muitos bons

professores: Nossa, o professor Vicente, o Renato Nalini, que, hoje, é desembargador, a

Professora Maria Tereza. Eu tive professores excelentes: o Jurandir, o Bisolli, ahn...

quem mais?...

O próprio Afonso, não é?...

O próprio Afonso... Muitos bons professores... A Maria Teresa... a Mara.

Então... Aí, depois, aquela falta da aula prática, ela ficou suprida porque as aulas

teóricas ficaram ‘interessante’.

Entendi.

Então...

E a senhora disse que escolheu ser professora de educação física...

Pelo esporte.

Pelo esporte?

É. A princípio, eu queria ser professora só de voleibol.

E aí o esporte é, então, o que lhe agradava mais, não é? [riso]

É, o voleibol [riso]. É. Depois, pelo fato de eu ter feito [durante] muito tempo

dança, ‘né’? Que eu fui professora... Eu fiz balé, ‘né’? Então eu achava que eu ia ser,

assim, exímia professora de GRD. E, no fim, não fui, ‘né’? Não tinha... não foi feito

isso. Porque eu dei muito pouco tempo aula, ‘né’? Dei muito pouco tempo aula. Porque

logo depois...

A senhora pegou o projeto, não é?

É, é. Eu trabalhei... Como eu falei pra você, eu tinha trabalhado naquele

programa do Profic, então eu me dei, e trabalhei também... Fiz o mestrado em cima da...

a educação física auxiliando a alfabetização, porque eu comecei [a] dar aula só de 1ª a

4ª, com as crianças de 1ª a 4ª , ‘né’?

Aula de educação física?

180

De educação física. Então a gente trabalhava muito com... eu trabalhava muito

com joguinhos. Então eu me interessava [pelo] o que o professor ‘tava’ dando na sala

de aula, ‘né’? E eu aprofundava na Educação Física, pra não ficar, assim, muito

maçante, ‘né’? Então, por exemplo, quando era português, eu fazia um monte de

letrinhas e jogava no chão, e fazia com que eles formassem frase... ou palavras difíceis,

às vezes algumas palavras difíceis eu ditava e eles tinham que fazer. Aí, eu fazia em

grupo, ‘né’? Pra eles fazerem como uma competição. E, a cada erro, ia sendo eliminado

– que é uma coisa que eu não gosto, eliminar criança, ‘né’? Porque ela fica frustrada.

Mas na época foi o que eu fiz.

É, a gente vai aprendendo, mudando algumas concepções... Acho que todos

somos assim, não é?

É. Hoje eu já não faria isso. ([risos]) Não faria, de maneira nenhuma, ‘né’?

Depois a senhora foi fazer um mestrado em Educação Física?

Em Educação Física, fiz lá na Unicamp.

A senhora foi atrás de um mestrado porque percebia uma relação entre a

educação física e alfabetização?

É, porque como eu já ‘tava’ dando aula de 1ª a 4ª, então, pra mim, era o mais

importante. Então eu precisava saber alguma coisa diferente para que não ficasse, assim,

só com bola, só com arco, só com corda, ‘né’? (Entendi) Só com corrida. Então eu

precisava saber alguma coisa... como é que eu tinha que trabalhar com essas crianças

pra que eu pudesse ajudar na sala de aula.

E havia essa parceria?

Havia. Naquela época havia. (Interessante) Não só comigo, mas com os outros

professores que também davam aula – também teve. E o mais interessante... ‘Cê’ vê,

nós brigamos porque foi assim... O que ‘que’ era a Educação Física? Quando eu entrei,

a Educação Física, ela era separada: masculina e feminina. Só que você tem aquele

problema: alguns arrumam atestado, ele é liberado. Alguns tinham problema mesmo:

porque fazia-se o exame médico (eles tinha problema mesmo), então já eram liberados.

Outros, arrumavam atestado de trabalho – porque arrumando um atestado [que

comprovasse] que trabalhasse seis horas, ele era dispensado também. Então, conclusão:

181

uma classe era mista já, já não era mais masculina e feminina; a classe era mista. Então

você tinha que trabalhar com três, quatro classes pra formar uma turma. (Entendi.)

‘Tá’? ‘Cê’ tinha limite – que nem: ‘era’ 35.

Professora, e essas classes mistas eram uma imposição da escola, do

Governo, ou era...?

Não, era o Governo, era o Governo. Porque antes, as ‘classe’ era masculina e

classes ‘feminina’. E depois, não, ela passou a ser mista, pra não ter problema, ‘né’?

Então ficaram classes ‘mista’, como é hoje, ‘né’? As classes são mistas. Então, para que

você formasse uma turma feminina, ‘cê’ precisava de três, quatro ‘classe’.

Então a Educação Física continuava sendo separada aí?

Separada, separada. Era masculina e feminina. Então, para você fazer uma

turma, você tinha problema muito sério. Então, quer dizer, naquela escola, você, no

lugar de ter, por exemplo, nove turmas, você tinha seis. ‘Tá’? Diminuía muito, muito,

por causa disso, ‘né’? Se algumas ‘tivesse’ filho, ou que estudasse à noite, tinha sérios

problemas, que elas eram ‘dispensada’.

Eram dispensadas, não precisavam fazer?

Não precisavam fazer educação física. Então as turmas era o problema. E

quando eu comecei com a educação física para criança, nós, professores, é que tínhamos

brigado pra que essas turmas viessem pra nós. Porque quem dava educação física para o

Primário era a PEB I. Então nós fizemos um movimento – quer dizer, o Estado inteiro –

para que essas aulas viessem pra nós. Mas, ‘cê’ vê, do mesmo modo que nós fizemos

esse movimento para que as aulas viessem para nós, nós ‘mesmo’ não soubemos

trabalhar pra continuar com essas aulas.

É verdade.

Porque, aí, ninguém queria pegar as aulas de educação física de 1ª a 4ª.

Os menores...

‘Cê’ entendeu? Aí nós tivemos um problema muito sério, porque aí não tinha

professor. ([riso]) Certo?

182

Foi um “tiro no próprio pé”? [risos]

É.

Professora, e aí, além da licenciatura em Educação Física, a senhora cursou

outra faculdade?

Educação... Eu tenho História e tenho Pedagogia.

A senhora fez Pedagogia também?

Fiz, fiz. Pedagogia. Porque aí, depois, é aquele negócio, uma outra coisa minha:

não gosto muito de sol.

Ah, ‘tá’. [riso]

E na minha época não tinha quadra coberta.

Não tinha essa “moleza”? [riso]

Era: todas quadras eram ‘descoberta’. Um sol danado. Então eu ficava atrás do

poste. E não gostava do sol. E então...

Então eu falei assim: “Bom eu vou ter que sair daqui, eu vou ter que fazer outra

coisa”. Aí eu fiz a Pedagogia. Aí eu peguei a direção. Primeiro peguei a vice, ‘né’?

Depois direção.

‘Tá’ certo.

E a história, eu dei aula muito em escola particular. E, no final, eu dava aula no

Estado também.

A senhora dava aula no Estado também?

É, é. Tanto que eu me aposentei agora, há dois anos atrás, com História. Embora

eu estivesse na direção... Mas a minha formação era História.

Na época a senhora se formou e, depois, que atuou, quais eram os

conhecimentos nas políticas públicas que subsidiavam, que pautavam a Educação

Física? A senhora já disse que os alunos eram separados, ‘né’? O que mais, conte-

me mais a respeito.

183

Separado.

E que havia uma série de condições para que eles pudessem ou não cursar,

não é isso? Fazer a disciplina...

Isso, a Educação...

E tem mais algum outro fato político que a senhora lembre que acontecia na

época?

É, naquela época, para que você, por exemplo... Eu: como eu podia dar aula

também do SPB e Educação Moral, a gente só podia dar aula desde que o quartel

permitisse, ‘né’? Quer dizer, a parte militarista, principalmente o quartel, ‘né’?, seria

aprovada por eles.

Então tinha que ter um aval?

Tinha. ‘Cê’ tinha que... Se você tivesse uma ficha mais ou menos conturbada,

você não daria aula de jeito nenhum.

Então tinha isso?

É, eu não cheguei a pegar isso, mas eu soube, naquela época, que muitos

professores... O quartel, o pessoal aí do exército ia assistir aula.

Isso por conta da ditadura?

Por conta da ditadura. E eu não cheguei a pegar isso. Na minha classe nunca

chegou a acontecer isso, mas eu soube de gente [com] que[m] aconteceu.

Falando um pouquinho da escola em que a senhora trabalhou: havia algum

plano, uma diretriz pedagógica? Pensando assim: “Professor, siga por esse

caminho, vá por esse caminho”? Ou não? Como funcionava isso? Fale-me a

respeito.

É, geralmente você tinha o subsídio do Estado.

Do Estado?

É, o Estado, ele dava o seu subsídio. Aí você sempre trabalhava com o subsídio

dele. Quando a gente fazia o planejamento, você tinha, assim, em comum com os outros

184

professores. Mas sempre diretoria dava a orientação para o diretor e o diretor, para os

professores.

Então tinha uma orientação?

Ah, tinha, sempre teve.

E material pedagógico? Além do prático, assim? Tinha alguma coisa teórica

que subsidiasse o trabalho, ou não?

Não, não, a gente tinha uma apostila, que eu vou lembrar o apelido que nós

demos dele: tijolão. [risos]

Tijolão?

É. [risos] Era uma apostila que foi dada pra gente, ‘né’? E a gente ia por aquele

tijolão lá, ‘né’? Ele tem um outro nome, mas eu não ‘tô’ lembrada. Mas a gente falava

tijolão, tijolão, e a gente ficava..

Por quê? Ele era grande?

É.

[risos] Era pesado?

Um calhamaço. Então, ali tinha praticamente todas as disciplinas, e então você

seguia mais ou menos aquilo que ‘tava’ ali.

Ah, entendi.

Certo? E, agora, como eu trabalhei no programa do Profic, a gente tinha uma

apostila... Porque logo que eu ingressei... A primeira escola que eu trabalhei, além

dessas que eu falei pra você, que foi depois... Mas anteriormente eu trabalhava no

Profic, no Programa de Formação e Integração da Criança. Essa aí, ela era específica,

porque eram poucas as escolas no Estado que tinham esse programa.

Quem fazia esse programa?

Esse programa era um trabalho entre o Estado e o Município. Entre os dois:

entre o Estado e o Município. Então, ali, a parte da limitaçãozinha do município, ‘né’? E

os professores eram do Estado... Quer dizer, como, mais ou menos, trabalha-se hoje, é

185

mais ou menos da mesma forma naquela época. A gente tinha um convênio, Estado e

Município.

Eram vinculados, não é?

É. Nessa época, o traba... o material didático era muito bom. Hoje existe uma

falha, ‘né’? Hoje é difícil. Embora ‘parece-me’ que agora vem vindo umas verbas

melhor, ‘né’?

É, está sendo apostilado agora, ‘né’?

É.

Estão vindo apostilas, para que talvez elas possam ajudar o professor, não

é?

É, é. Naquela época não era essa... Você tinha... Praticamente você era livre pra

fazer o que você queria, ‘né’? Você era meio livre. ‘Cê’ tinha que seguir mais ou menos

aquilo.

Eles davam uma idéia?

Uma orientação. ‘Vamo’ lá: uma orientação. Mas você era mais ou menos livre.

Então, por exemplo, se eu quisesse trabalhar... E, geralmente, nessa época você

trabalhava as quatro ‘modalidade’, ‘né’? Basquete, vôlei, handebol e...

Futebol de salão?

Não, atletismo.

Atletismo?

Atletismo. Atletismo. Ahn... O futebol, muito pouco. Não se dava... Os meninos

tinham, as meninas, não, ‘né’?

É engraçado, porque até no currículo não tem futebol. A senhora não teve

futebol, não é?

Não, não tive. Não, eu não tive futebol.

Atletismo: tem dois módulos de atletismo, mas de futebol não tem nenhum.

186

É, atletismo nós fizemos, ‘né’? Mas futebol, não. Os meninos só foram ter

futebol acho que no último ano nosso. Acho que no último, com a Alaércio, que hoje

‘tá’ na Prefeitura, ‘né’? Então, os meninos, ‘parece-me’ que ‘teve’ no último ano. As

‘menina’, não; as ‘menina’ não‘teve’.

Interessante, bem interessante.

É, o nosso curso só funcionava à noite, nós não tínhamos aula... só de sábado

que era durante o dia. Inclusive a natação, era no Colégio Divino Salvador, à noite.

Nossa!

Nessa época aqui era horrível o frio! Horrível!

Eu imagino...

[riso]

Professora, então havia uma certa diretriz do Governo, mas havia uma

autonomia também? Fale-me a respeito.

Ah, autonomia, total. Total.

Havia um certo controle estatal?

Não, não. Não.

Não pode se dizer isso?

Não. Não.

Apesar de estarmos, ali, num período permeado pela ditadura, não havia

isso?

Não, não, não. Não tinha, não. Hoje já tem, ‘né’?

Hoje já está mais complicado [riso]...

Hoje já tem, por causa daquela apostila lá, que...

Pode-se dizer que é um outro tipo de cerceamento?

É. Mas na minha época não tinha não.

187

E o Governo oferecia algum curso de especialização, alguma formação?

Não.

Subsidiada pelo Governo, não que o professor tivesse que pagar por isso...

Não, hoje, eu acho que tem muito mais do que antes. A única coisa que eu vou

voltar a repetir é esse programa que a gente tinha alguns cursos em São Paulo, mas só

nesse Profic.

Só no Profic?

Só no Profic. Que eu me lembre, nos outros, não.

Nada?

Não. Nem quando a gente dava aula de 1ª à 4ª?

Nada, nada, nada?

Não, não. Eu não lembro disso. Pode ser até ser que tenha [tido], mas [que] na

minha memória eu não registrei isso ainda.

É, porque cada professor viveu num contexto, não é?

É, eu não lembro. Mas no Profic tinha. Eu fiz diversos cursos em São Paulo,

‘né’? Inclusive na USP.

Aí o Governo é que pagava?

É, é, o Governo é que pagava, é. Você ia com a perua da diretoria. ‘Ia’ todos os

professores, porque nós éramos em cinco, ‘né’? Então iam todos os professores... Aí,

enfim...

Agora, falando bem especificamente sobre a educação física escolar: pra

senhora, o que é educação física escolar?

Olha, pra mim ela é uma das matérias mais ‘importante’ que se possa imaginar.

Eu acho que nós, professores, deveríamos dar mais valor à nossa área porque ela é

extremamente importante. Eu acho assim: aonde o aluno, ele tem um contato mais

direto com o professor? Na educação física. Porque aí ele pode conversar, aí ele traz os

188

seus problemas, você consegue um diálogo bem maior junto com ele, ‘né’? O

relacionamento seu com o aluno é muito grande. As dificuldades que essas crianças

encontram, às vezes, no lar ou mesmo com outros professores, eles levam para o

professor de Educação Física. Ele leva pro professor de Educação Física. Então eles

esperam do professor uma solução. Eu acho que isso é...

Vai além do simples fato de estar ali, não é?

Vai além daquilo que... ‘Cê’ pensa que ele vai só na prática, ‘né’? Não. É mais

no emocional, no sentimental. Eu acho que é muito importante a Educação Física pra

eles. Nossa, pra mim é uma das matérias... Tudo bem que os outros é coisas... Mas [é] a

socialização dentro da Educação Física.

Deixa eu formular duas em uma, já que a senhora aprofundou um

pouquinho: como é que era a prática pedagógica no ano? Como era dividido? A

senhora até disse que havia uma divisão...

Eu faria, eu faria... Eu fazia a divisão. Porque eu achava que a criança, ela teria

que saber qual das modalidades... Porque eu sempre dizia: “Aqui a gente dá o

fundamento, mas, se você quer se especializar, é no CUMP[?], porque a gente não tinha

oportunidade de levar essas crianças para outras coisas. Porque hoje tem os jogos

escolares. Na minha época não tinha esses jogos. A gente fazia entre a escola. Então eu

vou dar um exemplo: eu tinha uma turminha de vôlei muito boa, então eu, por exemplo,

eu jogava com a turma lá do Ana Paes.

A senhora que marcava isso?

A gente que marcava.

Entendi.

Então, você arrumava o transporte, você levava com seu carro. Às vezes, as

‘criançada’ ia de ônibus, sabe? Mas você que financiava. Então a gente fazia isso. Eu

não me lembro desses jogos que tem agora, não lembro se a gente tinha naquela época,

‘né’? A gente que fazia esses jogos.

Era promovido pelo próprio professor?

Pelo próprio professor.

189

Então a prática pedagógica da senhora... Descrevendo um pouquinho da

prática: a senhora falou que os fundamentos eram uma coisa que acontecia?

Acontecia. Isso que você tinha que dar.

Os fundamentos?

Ah, sim. Inclusive, na época de chuva, como as quadras eram ‘descoberta’, a

gente praticamente colocava as regras, aquelas principais, na lousa.

As regras dos esportes?

Dos esportes. O tamanho da quadra, o tamanho da bola, o tamanho da área, o

tamanho não sei do quê... Isso a gente punha na lousa, para que eles viessem a saber

também, que não era, assim, jogado, ‘né’? Porque não pisa, por que pisa... Sabe aquelas

coisa?

Para não ficar sem sentido, não é?

Por que ‘cê’ tem que dar em três minuto, três ‘segundo’. Por que isso? Sabe

aquelas ‘coisa’? Isso a gente dava.

Isso a senhora teve na faculdade com bastante profundidade?

Bastante. Nossa, foi muito, muito bom.

Essas regras?

Nossa... Nós tivemos... Muito. E essas regras, assim, mais sucintas, assim...

Mais, assim... Em contexto[?] bem, assim, levinho[?], pra você poder passar pra aluno.

Pra poder jogar, ‘né’?

É, é.

Regra pra poder jogar, ‘né’?

Isso, isso.

Pra ter o “mínimo” de jogo ali, ‘né’? [riso]

Isso. Isso a gente tinha.

190

E isso foi aprendido na faculdade?

Foi na faculdade. Opa! Aliás, essa parte que eu falo, assim, da divisão foi na aula

da faculdade também. Eles achavam que a gente tinha que dar aula todas as disciplinas,

pra ver ‘o’ qual modalidade que ‘nóis’... que ia seguir depois. Isso eles faziam pra gente.

Professora, muito se fala sobre, a partir da Ditadura Militar, o Governo ter

feito o esporte adentrar de vez nos espaços escolares – e ele acabou tomando conta,

realmente foi um conteúdo hegemônico, como acontece ainda hoje, não é? Ele é o

conteúdo que passa na TV... Enfim, por ter uma grande notoriedade social. E isso,

se diz que foi a partir da Ditadura Militar. Como a senhora vê essa esportivização

da educação física a partir da Ditadura Militar: positiva, negativa...? Houve

realmente? Conte-me um pouquinho sobre.

Positivo, positivo.

A senhora acha que foi importante?

Foi. Nossa! Foi muito bom esse período pra eles.

A senhora acredita, então, que o esporte é uma grande ferramenta

educacional?

É, porque, veja só, o que ‘cê’... Não ficou dentro só do esporte: esporte, esporte,

esporte. Você explicava um monte de coisa: por quê? Por que ‘que’ você faz isso? O

que ‘que’ você tem que fazer? [A]o que ‘que’ o esporte te leva? Então eu sempre

brincava assim: “Ó, o esporte te leva ao pensamento, porque você não fica só naquele

quadradinho, ‘né’?”

Claro, claro.

Então nesse período se fazia muito ‘pá nada’[?], ‘né’? Qualquer festividade,

tinha disparada[?]. Então você tinha que ensinar as ‘criançada’ a marchar...

Isso era comum?

Ah, era. Qualquer atividade, assim, qualquer data cívica você tinha que fazer. E

isso era uma coisa, uma pompa, ‘né’?, dentro do período militar. Era uma coisa que eles

queriam, ‘né’?

191

É, era bastante propalado, não é? [riso]

[riso] É, porque fica bonito, porque aí eles também saíam, ‘né’? Não eram só

nós, mas eles também. Então os desfiles, antigamente, ‘era’, assim, astronômico. Todas

as escolas...

[entrevistada se dirige à terceiro – Solange, põe a Natasha pra lá, porque ela fica

cheirando aqui a gente, vai?]

E então... Precisava a gente ter isso daí, ‘né’? Eles precisavam.

Na época era muito importante...

Era, é. Eles precisavam disso.

E a senhora vê importância nesse período dessas comemorações cívicas

dentro da escola...?

Você quer ver uma coisa que ‘foi-se’ tirado e que eu acho que naquele período

tinha, e ‘foi-se’ tirado... É o hino nacional. Ninguém canta mais o hino nacional.

Ninguém mais sabe nem as cores da bandeira e nem quantas ‘estrela’ tem aquela

bandeira. Ninguém sabe mais que aquela estrelinha que ‘tá’ ali em cima não é o Distrito

Federal, não é o estado do Pará. E ninguém sabe disso, ‘né’? Quantas ‘estrelinha’ tem a

bandeira. Então, e isso era importante. E naquela época a gente... em fileira, tudo

bonitinho. Era meio militar mesmo. Mas eu achei muito importante esse período. Pode

ser que muita gente não tenha gostado, mas ele foi importante nessa época. Porque hoje

as nossas crianças não têm esse ‘brasileirismos’ aqui, total, ‘né’? Não tem. E quando

que nós vamos ter? Quando tem jogos da Copa do Mundo...

E só. Infelizmente talvez, não é?

E olha lá.

E olha lá. [riso]

E olha lá. Certo? Eu acho que foi um período bom, uma pena que tenha

terminado [riso] – embora eu não quero que o [período] militar ‘volta’.

192

É, é que algumas coisas foram positivas. Não adianta a gente jogar tudo no

mesmo saco ali, e falar: “Nada daquilo prestou...”

Não, foi um período muito bom. Eu acho que foi um período muito bom.

Para a Educação Física, que pontos positivos a senhora atribui a esse

período?

Ah, muito bom, porque foi um período que as crianças foram ‘valorizada’. Foi

um período que as crianças, eles tiveram, assim, uma oportunidade maior.

E os professores de Educação Física? A senhora acredita que foram mais

valorizados neste período – por conta do esporte, alguma coisa...?

Ah, sim. Ah, sim. Tanto é que é o que ‘tá’ dando agora, ‘né’? Não foi no nosso

tempo, mas foi o que cresceu agora. Não foi no nosso tempo. Mas nós plantamos para o

pessoal de agora.

Sim.

Certo? E esses profissionais que ‘tão’ aí agora, mesmo a nossa Prefeitura, que

não tinha todo esse empenho grande dentro do esporte, hoje ‘tá’ aí. Então, quer dizer:

quer, queria, quer, não, a nossa geração, esse período militar, esse período aí, deu esse

curso[?] grandão que ‘tá’ aí.

Foi o início?

Opa! Opa!

Professora, e como é que era, as suas aulas diárias... Era bimestral, à época?

É, é bimestral.

Quem definia, e como se definia o que ia ser dado? Também: como, na

época, vocês avaliavam o aluno? Tinha algum tipo de avaliação?

Tinha, sempre teve. Sempre teve avaliação.

E quem definia o que ia ser dado? “Esse bimestre vai ser isso, no outro vai

ser isso...”

Não, isso era a gente.

193

Era o próprio professor? Conte-me a respeito.

É, era o próprio professor. Eu poderia jogar... Por exemplo, dar handebol agora e

depois basquete. Podia mudar. E, se por um acaso, eu tinha estipulado no planejamento:

“Vamos lá: handebol, vôlei basquete e atletismo”, se eu quisesse mudar, eu mudava o

meu planejamento. Eu podia mudar, eu podia. Porque, às vezes... Como eu falei pra

você: às vezes, a gente tinha a Inter-Escola, ‘né’? Então eu cheguei a levar, [durante]

muito tempo, o pessoal meu lá pra Louveira, porque eu também dei aula lá em

Louveira, ‘né’? No tempo do Tadeu, que hoje ‘tá’ nos Estados Unidos com o futebol.

Ele foi o professor da minha época, ‘né’? Ele se formou depois de mim, mas eu

consegui levar ele comigo lá pra Louveira. Então ele foi comigo lá pra Louveira. Então

a gente fazia um intercâmbio entre nós, sempre teve esse intercâmbio. Mesmo o Bissoli:

o Bissoli era daqui do Conde. Ele foi professor daí.

Eu não sabia.

Opa, o Bissoli[?] foi professor do Conde. Opa!

Ele é formado pela ESEF também?

Não, PUC. Ele é pela PUC. Interessante, o Bissoli[?], eu trabalhei junto com ele

no fórum, ‘né’? Nós trabalhamos no fórum. Aí, ele, o Edvar, o Batista foram pra PUC, e

eu continuei no fórum. Aí, depois, a Educação Física veio pra cá... Porque aí eu já era

casada – eu casei muito cedo, ‘né’? Então eu já era casada, eu já tinha a minha filha –

tanto é que eu tenho o apelido na faculdade de mãe.

[riso]

É. Então eu fui bem depois na faculdade. Certo? Eu fui com... ‘meia’ velhinha

já. Tanto é que a minha filha jogava vôlei.

É?

É, minha filha jogava vôlei.

Talvez influência, não é?

É, ‘cê’ vê?

194

Na época que a senhora trabalhava como professora de Educação Física,

como os alunos se manifestavam a respeito dela? Como era?

Ah, gostavam...

Eles gostavam?

Nossa, não falte, porque, senão, você vai ter um... eles crucificavam você no dia

seguinte! [risos]

É? [riso]

Crucificavam. Porque a educação física era aquela aula gostosa. Mesmo ele

tendo... “Vamos lá! Quinze minutos de... Cinco voltas na quadra pra aquecer! ‘Vamo’

lá, ‘vamo’ lá! Aqui! Vai” Eles faziam.

Eles gostavam?

Gostavam! Opa!

Então participavam?

Participavam.

Não ficavam no cantinho?

Não, no cantinho, aquele “INPS” que a gente chamava, ‘né’? ([riso]) Que foi lá

da faculdade também [o termo]. Os “INPS” era quando as meninas estavam muito

doente, ou menstruada, aquelas ‘coisa’ toda, aí elas ficavam ‘encostada’... Mas era

assim – na minha época era assim: tinha que anotar o que ‘tava’ sendo dado.

Os alunos?

Ô! Porque, senão, ele tinha que ter uma participação, ele ficava sentado ali, mas

não ficava conversando lá. Ele ficava na quadra vendo a aula, e ele tinha que anotar:

tanto da aula, não sei que, corrida, patati, patótó. Depois, no final da aula, eu ia e

passava visto.

E como a senhora avaliava esses alunos? Não somente esses, mas todos.

Tinha algum conceito: A, B, C...? Como era?

Tinha, tinha. No início eram nota, nota mesmo.

195

Número?

Número, número. Depois que passou a ser conceito. Mas era assim, eu dava

uma... Porque lembra que eu tinha dito? Quando chovia, você dava aula em sala de aula,

‘né’? Porque, normalmente, a gente usava... Como era aqui na Vila Rio Branco, um

ficava na quadra da Avenida Rio Branco e o outro ia lá pro Pedro Raimundo.

O ginásio ali, ‘né’?

É, lá. Então, um ficava aqui e o outro ficava lá. Ou os dois pra lá – cada um num

lugar, ‘né’? E a gente, além da prática que eles tinham que fazer, ‘né’?, a teórica

também a gente dava.

Então a avaliação era basicamente a aula prática...?

E teórica.

No caso da aula prática, a senhora avaliava a qualidade do jogo? Como

era?

É, porque você não pode analisar aquele que tem dificuldade, ‘né’? O que tem

dificuldade, ele tem dificuldade, mas ele deu o máximo que ele pode dar naquele

momento.

Era a melhoria, então? Se o aluno melhorava com relação ao começo do

ano...?

É, é.

Era assim?

Era.

E a teórica, era como se costuma fazer mesmo?

É, teórica é teórica mesmo.

Teórica é teórica mesmo?

É, teórica mesmo.

196

‘Tá’ certo. E a comunidade, professora? Como ela via a educação física? A

comunidade, que eu digo, o entorno da escola. Como a educação física era vista

pelos pertencentes ao âmbito escolar? Fale um pouco sobre isso por favor.

Olha, eu nunca tive problema. Como eu só fiquei com Educação Física no

Bertola Quaker e aqui, no Cecília, a comunidade aqui da Vila Rio Branco é excelente,

‘né’? Não sei como é que ‘tá’ agora, mas na minha época ela era excelente, excelente

mesmo. Porque tinha...

Apoiavam a senhora?

Nossa... Olha, nós tínhamos uns pais que: “Olha, nós precisamos pintar a

quadra”... Você tinha: no sábado e no domingo, a gente pintava a quadra. “Olha, nós

vamos fazer um mutirão de limpeza na escola”: [era feito] um mutirão de limpeza na

escola. E geralmente era o professor de Educação Física, porque ele ‘que’ tinha, assim,

mais liberdade com os alunos, ‘né’? Então ele que ia. Opa!

Ia na frente?

Opa! O! O professor ia sim. Ô! Os pais também. Aí, depois nós tínhamos um

diretor que fazia churrasco. [risos]

Olha, que beleza!

Ô, meu Deus, o Seu... O Juca. Ô, meu Deus, que beleza! Juca, a Maria Helena,

que foram os meus diretores aqui, ‘né’? Nossa!... Seu Paulo Mongeli. Eram excelentes

diretores que eu tive aqui na Vila Rio Branco.

Nas escolas públicas?

É.

Professora, e como a senhora compreende a Educação Física...? Se a gente

for fazer uma comparação, eu sei que é meio difícil de falar, mas eu gostaria de

algumas palavras a respeito: como ela foi, na década de 1970, 1980, e hoje,

atualmente, no ano de 2010. Dá para fazer uma comparação? Como a senhora via

a Educação Física de lá das décadas de 1970, 1980 e como a senhora vê agora, em

2010?

197

Olha, eu vou falar pela última escola que eu trabalhei: ‘comé’ que eu dava aula

antes e ‘comé’ que eu vejo agora. É aquilo que eu acho que eu já falei no início e não

‘tava’ gravado. Aqui na Vila Rio Branco e na Vila Marlene nós temos dois professores,

um no Benedito Arruda, aquela na Agapeama, que é a Mara, de atletismo, que é

excelente. E aqui na Vila Marlene, a Marlizinha, de handebol, e que é excelente. Mas a

única coisa que eu acho... Assim, o grande problema de você dar esporte específico na

escola é que só um grupo participa, os outros alunos, eles ficam mais ou menos ali, ‘tá’?

Do ladinho.

Acaba excluindo, não é?

É. Embora [com] a Marlizinha, e mesmo a Mara também, eu via isso. Ela fazia

um rodízio. Certo? Porque aqui, se você não fizer rodízio, os alunos escapam. ([riso])

Na Vila Marlene, se você não fizer rodízio, eles escapam. Eles somem dentro da quadra.

Então, era aquele inferno: aprontar eles tudo na quadra, de novo... Porque hoje a quadra

é fechada, e a quadra tem portão. O Almário, já, não; o Almário já é um... O Almário já

tem, já tinha mais domínio, porque ele dava na rua... Uma das ruas lá da escola não tem

muito movimento; ele dava na rua, e os alunos não escapavam.

Atletismo, por exemplo: ele dava na rua?

Na rua. E os alunos não escapavam.

E hoje em dia, como a senhora vê? Uma visão de quem não está mais

atuando, mas...

Sabe?, faz tempo que eu não vejo mais... Aliás, há dois anos, ‘né’? Eu não sei

como é que ‘tá’ agora. Agora eu não sei. Eu, pra mim, acho que ela continua do jeito

que eu tinha visto há dois anos atrás.

Mas pior, melhor...?

Não, eu acho que agora... é melhor!

É melhor?

É melhor, é melhor, porque agora você define o aluno pra [o] que ele quer.

Agora é melhor. Eu acho que agora é bem... muito melhor. Porque naquela época, como

198

você não tinha muito espaço pra eles irem pra cá e pra lá, nem [tinham] clubes que se

fizesse isso... Hoje os clubes ‘arrebanha’ esses bons alunos. A gente não tinha...

Você tem para onde direcionar...

É, você não tinha esse espaço. Hoje é melhor. Hoje a Educação Física... Nossa!

Um bom professor ‘tá’ aí, é um prato cheio.

Tem bastante ferramenta?

Tem, tem. Hoje tem. Porque hoje tem diversos ‘clube’, e os ‘clube’ que estão

pegando esses alunos. Porque, veja... Eu vou voltar a falar da Vila Marlene. Lá nós

temos muitos alunos lá que é futebol, e ‘tá’ aqui no paulista. Tem meninos treinando no

São Paulo, lá em São Paulo, no Palmeiras... Nós temos alunos. Porque o que nós

fizemos lá? Um grupo de alunos que gosta de jogar futebol, eles têm um time. Formado

por quem? Por alunos de lá. Hoje eu já tenho alunos que já eram ex-alunos, ‘né’? Já

foram alunos de lá. Mas ‘tão’ com um time. Eu me lembro bem uma primeira vez que

apareceu aquela escola ali na Vila Hortolândia, não sei como é que chama... Bate Bola!

Bate Bola, não.

Show Ball.

Show Ball. Isso. Os primeiros tempos, não é? Ele ia nas escolas fazer a

divulgação do futebol, e se pagava uma taxa. Eu me lembro bem a primeira vez que foi

a minha filha que pagou, pra eles poderem jogar. Nós ‘arrumamo’ camiseta. Sabe? A

Marli emprestou camiseta do handebol. Então foi... Então hoje eu acho que é melhor.

Tem mais oportunidade?

Muito mais. Muito mais.

Professora, então é isso. Acho que a gente... Eu tentei sintetizar assim. Acho

que foi bem proveitoso mesmo. Não sei se a senhora gostaria de deixar uma última

palavra sobre a Educação Física no geral, sobre a importância...? Apesar de a

senhora já ter enfatizado o quanto ela é importante não só no aspecto motor, ali,

das atividades, não é? Ela é mais abrangente...

199

É... Social, político, econômico. A Educação Física, pra mim, é tudo. É aquilo

que eu falei no início: se eu tivesse que escolher novamente uma faculdade, embora eu

tenha três, eu voltaria a fazer Educação Física.

Voltaria a fazer Educação Física?

Voltaria. Mas aí, eu faria de uma outra forma. Aí eu faria nesse mundo de hoje,

que é onde você vai pegar esse aluno, vai levar só pra aquele esporte, sabe? Hoje eu

faria no que é hoje, não no que é naquela época. Naquela época a gente dava formação.

Hoje, não. Hoje a gente dá coisa completamente diferente. Espero que você tenha...

Acho que foi muito importante. Só mais uma coisinha: isso aqui é uma

curiosidade, ‘né’? Eu gostaria que a senhora comentasse um pouco... Quando a

senhora falou sobre como os alunos se manifestavam a respeito das aulas, a

senhora disse que eles gostavam bastante, não é?

É. [riso]

E o respeito? Havia disciplina?

Muita. Muita. Mas existe hoje também. Eles respeitam bem o professor. Eu acho

que nós não temos, assim, aqueles alunos ‘rebelde’. Eu não sei se é porque eu trabalhei

em uma escola que nunca nós tivemos... Porque eu acho que também ali vem um pouco

de direção, sabe? Um pouco de direção. Eu vou falar nas duas escolas que eu fiquei

mais: o Cecília – [em] que eu comecei, que eu achava espetacular –, e na última que eu

fiquei, na Vila Marlene. A diretora da [escola da] Vila Marlene eu acho, assim, muito

boa, mas nós temos, assim, um grupo de professores preocupado com a formação dessas

‘criança’; preocupados. Então eu vejo, assim, as maratonas de matemática – imagina!

Nós temos aluno de maratona de matemática que ‘tá’ em primeiro lugar. Certo? Nós

fizemos um trabalho dentro do Programa da Água... Eu acho que agora os nossos alunos

respeitam, sim. Se o professor, ele ‘tá’ disposto a dar aula mesmo...

Trabalhar?

... ‘cê’ pode ter certeza que eles ‘respeita’.

Vai ter uma devolutiva boa?

200

Muito boa. Porque eles querem aprender. Porque é a mesma coisa que filho. Se

você deixa, o filho não obedece. Se você é rígido, o filho obedece. Não é assim? O filho

é de acordo... ele dança conforme a música do pai. Se o pai é mole, o filho é... Toma

conta do espaço.

Vai indo, não é? [riso]

É. Mas se o pai tem pulso, o filho vai indo direitinho. A mesma coisa a escola.

Eu acho que a escola não é só professor de Educação Física, a escola é um todo: é

direção, funcionários... Todos ‘comprometido’ com o mesmo problema, que é a

formação de crianças. Porque nós temos que formar essa criança para uma vida melhor.

Eles têm que saber que ele tem que trabalhar.

Quando eu dava aula, principalmente de história, eu lembro, uma vez, um aluno

falou assim pra mim – foi numa escola particular: “A senhora tem que dar porque eu

pago a senhora”. ([riso]) Mas naquele dia, eu tava, acho que, meio azeda, eu falei:

“Olha, meu filho, eu posso te falar uma coisa? Você sabe que você ‘tá’ me pagando de

burro? Porque você ‘tá’ me pagando duas vezes. A primeira vez é o seu pai me paga

com todos os impostos que ele tem que pagar – ele me paga. E a segunda vez é essa.

Então você é que tem que dar satisfação pro seu pai pra ele não ter gastos extras sem

você querer”. Concorda?

Plenamente.

“Uai, você trata de estudar, porque essa é a sua função. ‘Cê’ não faz outra coisa,

é só estudar. Qual é a sua profissão quando você vai tirar um documento? Estudante.

Então você vai estudar. ‘Cê’ não vai falar: ‘Eu sou mecânico’, ‘cê’ vai falar: ‘Eu sou

estudante’. Então ‘cê’ vai estudar”. Não é isso?

É isso.

Então pronto.

Professora, muito obrigado.

De nada.

Nós estamos encerrando aqui a entrevista com a professora “B”, e, já

agradecendo e encerrando aqui a gravação, formalmente.

201

FIM DA ENTREVISTA

202

ENTREVISTA COM A PROFESSORA C

Bem, vamos lá, então. Boa tarde, estaremos aqui entrevistando a Professora

(C), que é professora de Educação Física, formada na segunda turma da ESEF[?],

em 1977.

Professora, como eu disse em nosso primeiro contato, essa é uma conversa, que eu

tenho um roteiro de perguntas de caráter aberto, que a gente vai passando. É um

bate-papo mesmo, para eu conhecer um pouquinho sobre a carreira profissional,

principalmente o começo da atuação da senhora, como foi esse período, esse

processo de transição da faculdade, do período militar e do ensino público

também. Então eu gostaria de saber um pouco, antes de entrar na faculdade, como

foi o processo de escolarização da senhora.

Boa tarde. Eu estudava na [nome ininteligível], na escola lá da Vila Progresso. E a

minha escola foi muito atuante em Jundiaí, e lá eu entrei em contato com o esporte.

Porém eu era muito pobre, [minha] família era muito pobre, morava na Vila Arens. E

tudo que fazia parte da parte esportiva da escola os meus pais não deixavam participar.

Então, por exemplo, a professora que era a minha [professora] de Educação Física era

técnica da categoria mirim do Voleibol de Jundiaí. Então ela me chamou pra treinar.

Como eu treinava no Bolão... E os meus pais não deixaram eu ir. Porque naquela época

não era assim, ônibus, ‘né’? Nada disso, era complicado. Depois também teve um

negocio de judô no Bolão e meus pais falaram [que] também não. Nisso eu já ‘tava’ na

6ª série, 7ª série. Aí, o que ‘que’ eu fiz, eu desencanei, eu falei: “Não, eu vou trabalhar”.

E fui trabalhar. Aí, chegando ‘no’ meu trabalho, eu fui estudar à noite e aí eu esqueci,

esqueci a vida de Educação Física. Quando chegou no período do vestibular, eu...

realmente eu queria ser psicóloga, e eu queria trabalhar com essa... com adolescência.

Aí eu passei no vestibular de Psicologia, só que a faculdade era integral. E como aquela

música, ‘né’? Faculdade era integral, era particular, tinha que pagar, e a gente não tinha

dinheiro. Então eu tive que fazer uma escolha, e eu escolhi não sacrificar a vida do meu

pai, da minha mãe, que ‘tavam’ comprando a casinha deles pelo BNH – a gente era

muito pobre mesmo. E aí eu me abdiquei do meu sonho, que seria, naquela época, a

psicologia.

Aí, eu cheguei na... pra fazer vestibular. Fiz psicologia, passei, que seria a primeira

universidade na família. Meu pai chegou pra mim e falou: “Filha, a gente se sacrifica”.

Eu trabalhava em São Paulo, na Rede Ferroviária Federal, meus pais precisavam do

203

dinheiro. Então, pra eu poder estudar eu tinha que largar o serviço. E eu chorei uma

noite inteira e pedi a Deus que me desse um caminho. De manhã eu falei pro meu pai:

“Não, pai, eu não vou fazer Psicologia. Eu não vou fazer, não vou fazer esse sacrifício”.

E fui tocando a vida. Aí fui prestar Unicamp, Assistência Social – não sei nem por que

‘que’ eu pus Assistência Social. Passei. Quando eu fui ver o que era Assistência Social,

eu falei: “Não tem nada a ver comigo”. Também não fui. A ESEF tinha feito o

vestibular dela e tinha vagas remanescentes. Aí tava lá no jornal, ‘né’? Da Educação

Física. Eu falei: “Ah, eu vou lá fazer”. Fiz vestibular, passei em primeiro lugar – no que

tava sobrando as vagas lá. E comecei a fazer a faculdade de Educação Física. E aí eu me

encontrei, porque dentro da faculdade de Educação Física tem a Psicologia, ‘né’? Tem o

trabalho com o adolescente. E daí eu fiz a faculdade, me diverti pra valer, foram três

anos de divertimento e de muito estudo, mas a gente era uma turma, assim, bem... era

uma turma maravilhosa, assim.

Entrevistada se dirige ao aluno – Obrigada.

E aí, lá tinha, assim... Não tinha um curso que tinha, assim, muito...

[Intervenção de terceiro]

Dá licença. Pois não?... É... Vou precisar falar com eles.

Vai lá, vai lá.

Entrevistada se dirige aos alunos – Ô, pessoal! [Interrupção na gravação]

[Áudio 17]

Ok.

Então, o... Posso falar?

Pode.

Então, a clientela da ESEF era uma clientela, assim... não era com dezessete, dezoito

anos, sabe? Era, assim, um pessoal um pouquinho mais velho, tanto que tinha a Maria

204

Inês, que era a nossa companheira de aula. E era um pessoal que trabalhava. Então,

assim, foram três anos, assim, maravilhosos. E como [era] a segunda turma da

faculdade, é tudo muita experiência. Eu queria ’tá’ estudando na ESEF hoje, porque o

que virou a ESEF, ‘né’? Um ponto de referência mesmo, de estudo: essas pós-

‘graduação’, tudo o que eles oferecem, eu queria ‘tá’ lá até hoje. E eu me decepcionei

um pouquinho... Depois que eu me formei, eu me decepcionei muito na hora que teve

escolha de aula, porque eram poucas aulas, e eram, assim... era uma briga de foice.

Então aqueles ‘mesmo’ ‘companheiro’ que ‘era’ tão legal, e chegava na aula, também[?]

era[?] sobrevivência, lei da selva. Porque ‘tinha’ poucas aulas.

Estava começando, não é?

‘Tava’ começando. O trabalho na escola, ele era assim... E eu prefiro hoje. Por quê?

Tem gente que fala assim que eu sou doida, ‘né’? Porque eu falo que eu sou fã do que o

Governo ‘tá’ fazendo em relação à Educação Física. Porque a gente não tinha norte,

‘né’? Tinha lá um caderninho verde lá, que era um currículo que tinha lá, e esse

currículo, você seguia ou não. Se você fosse ser um professor...

Isso, no começo da década de [19]80, é isso?

[19]82... ‘Tá’?

Quando a senhora começou efetivamente, não é?

É. Aí, em [19]86 eu me efetivei. Então, o que acontece? Dependia muito de você. E aí

os bons profissionais trabalhavam direitinho. Os bons profissionais, como sempre, ‘né’?

Em todo lugar, não é? [riso]

Aí, o que ‘que’ aconteceu? Foi assim: cada dia era um aprendizado. Por quê? Você não

aprendia a lidar com isso, como o outro também.

Isso não tinha na faculdade, então?

Não, não tinha, não tinha. A prática, a gente só ia entender mesmo na

convivência, e aí, existia assim: naquela época, o professor de Educação Física, ele era...

Sabe? Nem atenção [a] direção dava muito. Os outros professores... Tinha, assim, uma

megalomania de professor de português e de matemática. E todo professor de educação

física, ele teve que, sabe? Ficar dando murro em ponta de faca pra ter o seu...

205

Se quisesse trabalhar, tinha que ser assim... Para ser valorizado.

E também pra ter o seu valor dentro da própria escola. E como eu sempre gostei muito

dos alunos e a gente sempre teve um relacionamento muito bom, eu consegui o meu

espaço em todas as escolas. Hoje em dia, o que ‘que’ acontece? O Governo dá um norte:

aqueles ‘bendito’ ‘caderninho’ lá, que todo mundo critica os ‘caderninho’. Só que nós

nunca tivemos um material didático. Não tivemos. O Governo, certo ou errado, ele ‘tá’

num caminho que ele vai melhorar, ele vai melhorar. Todo esse conteúdo aí que ‘tá’

sendo dado e que, às vezes, a gente não concorda é coisa muito nova. Daqui a

pouquinho, ele vai chegar num eixo. Mas a gente não tinha nada. Nada, nada, nada. Ou

você pesquisava ou você dava... ou você ficava assim, ‘ó’. Por que ‘que’ hoje eles ‘tão’

aqui? Ontem nós tivemos aula teórica, já. Passei a atividade pra eles, tudo, ‘né’? E hoje

eles tão aqui. A gente brinca, eles escolhem o que tão querendo fazer. Me atrapalhou um

pouquinho em termos de handebol, ‘né’? Porque aquela outra época, ‘né’? Era uma

coisa mais... Até treinamento, mais militar, tal. Então atrapalhou um pouquinho nesses

termos. Mas, em compensação, a Educação Física, hoje, ela não é vista como futebol de

salão.

Eu gosto muito do caminho que o Governo ’tá’ se encaminhando. Pelo norte que ’tá’

dando. Futuramente, vocês, estudiosos da Educação Física, vocês vão usar esse

caderninho, mas vai ter um caderninho. Então, hoje o professor de português, ele recebe

esse material, e o professor de educação física também? E o de inglês também? E o de

artes também? O que falta? Falta, na realidade, o pessoal ter o reconhecimento de que é

uma escola do Estado, de que é uma escola de periferia... Relativamente[?] os jovens...

O que essas crianças fazem [trecho ininteligível]... Família desestruturada em todos os

níveis. E aí, aonde eles mostram o que eles são? Aqui. É uma menina que, daqui a

pouquinho, ‘tá’ dando porrada em todo mundo, porque se deixar... Olha, é esse aqui.

Esse menino nasceu em 1998. Em [19]98.

Olha o tamanho.

‘Óia’ o tamanho. Ele é precoce em todos os níveis, a conversa dele é extremamente

sexual, sabe? Ele se prevalece, ele é, assim, ele ‘tá’... ele deixa de viver uma série de

coisas, ‘né’? Fala uma série de besteiras, [mas] não responde. Mas é um menino que ‘tá’

faltando. Tem que levar no psicólogo, a mãe tem que levar. ‘Tá’ muito aguçado,

hormônio extrapolando, não pode, ‘né’? Vai vivenciar coisas que ele não ‘tá’ na hora de

206

vivenciar. O outro nasceu em [19]98, ali, aquele outro também, mas é o oposto – o

maiorzão lá. Mas é o oposto, sabe? Esse outro grandão. Em tranqüilidade, tal. Só

cresceu demais. Esse, não: esse ’tá’ crescendo em safadeza também. Pulando etapa.

Tá pulando etapa. [riso]

‘Tá’ pulando etapa. Então a [palavra ininteligível] que está sendo formada, a clientela

que pega[?] lá em cima é biqueira. Nós ‘temo’ todo um aluno de 7ª Série, 8ª Série, que...

Tem um de 7ª Série que acabou de sair que ’tá’ internado por causa de droga. [Há um

aluno] Na 8ª Série, de manhã, que trabalha em biqueira. Então, ‘ó’ essa realidade...

Falta.

Falta. Faltando.

Professora, agora falando um pouquinho... A senhora falou que a primeira opção

era a Psicologia, depois foi lá fazer Assistência Social e depois... Educação Física

não é?

O que a senhora costumava ler na formação? Ou antes da formação, e mesmo

depois: qual era leitura que permeava o cotidiano da senhora?

Em termos de estudo, você está falando?

É, de estudo e também fora do estudo. A senhora tinha o hábito de ler, ou isso foi

na Educação Física? E, se foi na Educação Física, como foi? Conte-me um pouco.

Então, veja só, como eu me formei, e quando eu comecei a atuar, eu comecei a atuar em

prefeitura e estado. Então, o que aconteceu? Eu passei a viver uma vida de ser técnica,

porque eu era técnica das categorias menores da Prefeitura de Jundiaí, de handebol.

A senhora consegue dizer que o esporte é que levou a senhora para a Educação

Física? Ou não? Antes a senhora já gostava de esporte? Como é que era? Fale

sobre isso professora.

Gostava, gostava, mas os meus pais não deixaram eu...

Não teve essa oportunidade?

Não tive essa oportunidade. Então eu sempre gostei de esporte. Por que handebol eu

tinha um professor de vôlei – porque a gente teve vôlei na ESEF. E ele foi, assim, ele

207

era, para mim, o símbolo de educador, a postura de educador. Então, pra mim, o esporte,

ele fez, ele faz parte da minha vida, mas sempre focado ao educacional.

Educacional?

Educacional, não é resultado. E, por trabalhar na Prefeitura, então o que aconteceu? Em

termos de qualquer estudo específico dentro da minha área, que viria a ser o quê?

Treinamento... Entendeu? Se eu tinha que ir ver algum vídeo, eu não ia ver de

Educação, mas eu ia ver de esporte...

Pra treinar?

Pra treinar. E, com isso... Por exemplo, eu fiquei mal acostumada, porque hoje em dia é

muito importante, muito importante o estudo dentro da nossa área, ‘né’? Muito

importante. É o que eu falei: eu gostaria muito de estar fazendo ESEF agora, porque eu

seria, assim, uma pessoa mais estudiosa dentro da minha área, e eu não fui não. Eu fui

uma pessoa que me preparei melhor em termos de ser técnica, não em ser educadora. Só

que eu acho que educador não se faz, ele já nasce feito. Então, não tem um momento,

um momento dentro do esporte ou dentro da aula que eu não utilize a parte de educação

mesmo; de educação, que, às vezes, não vem de casa, sabe? Uma situação de eles

pensarem o que hoje eles sabem de bullying – eu[?] já[?] falava[?] isso[?] aqui[?],

entendeu? Da sensibilidade, assim, que eles têm que ter, no respeito de um com ‘po’

outro, no pensar no futuro. E eu falo pros meninos, mais gentileza com as meninas, que

não têm... Tem meninas que se põe em situação de igualdade. Então é o que acho. Eu

falhei, em termos de estudo profissional dentro da área de Educação. Tanto que eu agora

fui estudar pro concurso que teve aí, de... pra ganhar mais, tal, tal. Eu fiquei tão surpresa

com os textos, eu aprendi tantos com os textos! Falei: “Nossa!” Sabe?

[riso] Hã, hã.

Mas não tenho vergonha disso, não. Eu acho que... É o que eu falo pra todo mundo: tem

que crescer.

Claro.

Tem que crescer. Independente... Agora eu vou me aposentar – que daqui uns dois anos

eu me aposento, eu acho que essas crianças precisam de pessoas... Digamos que eles

precisam das pessoas mais velhas, ‘precisa’ das pessoas mais novas, porque é

208

paciência... Me preocupo... Aquilo que eu falei, da falta de preparo... Mas é assim: a

gente não ficava lendo Piaget, os novos, agora, que tem os nomes ‘difícil’, aí, de

estudiosos...

Isso não era uma prática?

Não, não.

E aí, professora, como a senhora chega ao ensino público? Por que e como a

senhora chega a esse ensino público? Fale sobre essa fase da sua carreira

professora.

Então, olha, eu precisava trabalhar. Eu tinha acabado de voltar de um casamento, ‘né’?

Eu me casei, fui morar em Campo Grade, depois fui morar em Cuiabá. Voltei, precisava

trabalhar. Aí, me inscrevi nessa escola, lá na escola Ranieri Mazzili... Essa daí também

vai comigo, ‘ó’, essa pequeninha aí; Amanda[?], essa aqui, ‘ó’. Aí eu precisava dar aula.

Aí eu me inscrevi pra ser professora eventual. E aí eu comecei. E me identifiquei, me

apaixonei: “Ah, ‘ó’, a escola tal ’tá’ precisando de professor”. Não troco, não troco. Não

troco a escola pública. Nunca troquei. Eu gosto mesmo... Aqui, ‘ó’: Joiciane, aquela

menininha que ‘tá’ lá, ‘tá’ indo pegar a bola lá. Aquilo que eu gosto. Não tem

perspectiva nenhuma, nenhuma, nenhuma, nenhuma...

Aquela morena, ali?

É, pequeninha lá.

De manga comprida, azul?

É. Você não faz ideia, não faz ideia do que é a vida dessa menina, sabe? Às vezes vem

fedida. A mãe tem – acho que – oito, dez filhos, cada um de um pai. Vende na rua –

como é que chama? – pano de prato.

Então, mas é isso que eu gosto. Eu gosto da unidade escolar, gosto dessa

criançada, gosto de saber que daqui trinta anos... Eu encontro meninos e meninas, assim

[trecho ininteligível] sinal de vida, alguns até pra [trecho ininteligível], como o outro...

Então, e eu não me interesso por outra coisa, gente.

Foi um público que realmente cativou a senhora, não é? Desde a ...?

209

Não, ‘ó’. Eu dei aula na escola Ranieri Mazzilli, na Vila Esperança; de, Maurino[?]

Ferromito[?] e aqui. Sempre gostei de rabo de foguete.

[risos] Não tem jeito?

Agora, assim, eu ‘tô’ me especializando... agora eu ‘tô’ estudando sobre dependência

química, porque assim que eu me aposentar, eu quero começar a dar palestra pros pais,

sabe? Pros pais, porque os pais, eles estão muito perdidos, eles não sabem como agir,

eles não sabem como detectar e quando detectar e o que fazer. Então eu vou dar palestra

gratuita nas escolas para pais. Não são crianças... Não vou falar de drogas com crianças,

vou falar de drogas pro pai – mostrar a responsabilidade que os pais têm em cima disso,

o que é a dependência química, que doença é essa. Então eu vou me especializar... Por

quê? Porque são os pais que vão... são eles que vão tentar salvar essa geração aí.

Sem dúvida.

Então eu vou... Já ‘tô’ estudando, já tenho uma palestra pronta, sabe? Mas vai ser como

aqui: um bate-papo.

É, tem que ser uma coisa, assim, mais informal, ainda mais com pessoas mais

carentes, não é?

É. Sim, mas a dependência química não é mais carente.

Nós, que temos formação universitária já temos dificuldades para lidar com isso,

imagina as pessoas que não têm formação nenhuma? É complicado.

Olha, há uns dois meses atrás, aqui, à tarde, tinha lança-perfume. E um menino ensinava

o outro como ele cheirar e segurava o outro.

Difícil.

‘Né’? Difícil,difícil, difícil.

Professora, além da Educação Física, depois de ter terminado o curso: a senhora

fez algum outro curso?

Só voltado ao handebol. E os cursos que a Diretoria de Ensino oferecia.

Então a diretoria de ensino oferecia cursos? O Estado?

210

Oferecia alguns cursos, sim.

É?

É, alguns cursos de... Ainda hoje, ‘né’? Oferece. Agora tem muita coisa on-line... tá

melhorando o negócio.

Está melhorando então?

Tá, nossa!

Mas no começo, quando a senhora começou, tinha cursos?

Não, foi só há um tempo atrás que começou.

Professora, bem no comecinho da década... É difícil, porque essa é uma

pergunta que volta muito. Como é um contexto histórico, a gente sempre vai

ter em vista o presente, que é o que a gente tenta modificar, e ele é o...

digamos o resultado de tudo que aconteceu. Mas a senhora teria[?]

conhecimento[?] das políticas públicas do Governo Militar na escola pública

naquele período?

Então, não, não. Agora, sim. Eu não...

Mas na época, ali.

Não... Então, era assim: tudo era de cima pra baixo. Tudo era... E não diferencia muito,

não. As mudanças que tem, também vêm, não é questionado. O que tem de diferente é

[que tem] grupos[?] de estudo.

Hoje?

Hoje, hoje. Tem grupos[?] de estudo. Mas eles não argumentam.

A senhora diz que da mesma forma que era continua sendo?

A diferença: hoje tem mais estudos, então tem pessoas que estudam a Educação Física,

tem a Coordenadoria de Estudo de Normas Pedagógicas, entendeu? Mas também é de

encosto[?].

211

E na escola? Quando a senhora começou, a senhora atuava em que escola?

Ranieri Mazzilli, Jardim Esperança.

E havia ali, nessa escola, algum plano, uma diretriz pedagógica que a orientasse:

“Olha, professor, faça dessa forma, desse jeito”? Fale-me um sobre isso.

Não, tanto que naquela época não existia coordenadora; não havia isso. Tinha o diretor,

ou o diretor e o vice-diretor. Entendeu? E aí tinha o Plano de Ensino, o Plano de Curso.

Você pegava lá, copiava, e fazia o que você quisesse. Hoje, não. Hoje existe

coordenadora pedagógica, existe todo um estudo, ‘né’? De habilidades, de competências

que você tem que... a criança tem que atingir num todo, ‘né’? É dividido por área: não é

só educação artística, português, matemática. Então mudou bastante, mudou bastante.

Mas na época, então, não tinha? O professor recebia um plano e podia seguir esse

plano ou não?

Não. Não tinha cobrança.

Não tinha cobrança?

Imagina... Imagina...

E o material, professora? Tinha algum material prático e/ou teórico na época, para

trabalhar?

Não. Tinha um livrão verde lá, que, se ‘cê’ quisesse, ‘cê’ usava, que tinha o conteúdo lá

pra você dar, certo? Hoje em dia, material de atividade prática... Também é assim: o que

‘que’ ‘tá’ acontecendo: o governo, esse ano, já mandou material – não é o

suficiente,’tá’? Não é o suficiente, mas ‘tá’ vindo. Do mesmo jeito que ‘tá’ vindo

material didático pra gente e ‘pros’ alunos. Hoje, sim. Hoje, tem.

Antigamente não tinha nem um suporte?

Não, não. Nos últimos dez anos é que a coisa foi mexendo, foi melhorando, entendeu?

Nos últimos dez anos e nesses últimos três anos que houve essa reforma de mandar

caderninho de aluno. Você já viu o caderninho de aluno, já?

212

Já. Eu já fui professor do Estado também. Quando iniciou o caderno do professor,

junto com o jornalzinho, eu ainda era professor do Estado. Aí eu trabalhei em

Francisco Morato.

[riso]

É, então.

Senhor amado!

É, por causa do estudo. Aí eu saí, porque como eu dava aula em Francisco Morato

e em Cajamar, aí eu fiquei só com o município. Aí, hoje eu dou aula aqui em

Várzea Paulista.

No Estado?

Na Prefeitura. Eu sou da Prefeitura agora; agora eu exonerei o Estado. Porque eu

também não consegui a remoção, é difícil...

O que você faz lá?

Eu sou professor de Educação Física.

Não, mas lá você... Não do esporte, da...

Da escola: de 1ª a 4ª Série. Eu dou aula pra Educação Infantil.

Tinha a Edileide. Sabe quem é a Edileide, que trabalhava em Várzea? De 1ª a 4ª Série?

Não conheço.

Ela passou no concurso, mas ano passado ela passou em Jundiaí, ela...

Ah, então foi isso. Eu não a conheci. Porque eu comecei em Várzea ano passado, eu

trabalhava no Estado.

É, então vai ver que ela saiu e você entrou no lugar dela.

Exatamente.

A Edileide foi atleta, deu... Uma atleta do... Nossa, fez faculdade na ESEF. Hoje é

funcionária da Prefeitura de Jundiaí e do Governo do Estado. Também ama o Estado.

213

Não larga? [riso]

Não larga.

Eu tinha, assim, bastante problema de locomoção, porque eu não tinha carro na

época, e eu tinha que levantar muito cedo...

Bem, professora a senhora já comentou um pouco a respeito disso, mas eu vou

voltar a perguntar porque é uma coisa fundamental dentro do que a gente está

pesquisando: havia um controle do Governo sobre a sua prática, no dia-a-dia?

Diga-me as suas impressões professora.

Não...

Realmente a senhora fazia o que...

Não, nada. Não tinha isso, nada. O professor fazia o que queria – dentro da escola,

dentro de... Não tinha. Hoje, não, hoje tem. A coordenadora: tem as PCOP’s[?], que são

específicas da... trabalham na Oficina Pedagógica, [e que é] específica da área, que

‘orienta’, [e através de] que[m ] vem material novo, passa as coisas pra gente, passa as

coisas por e-mail, entendeu?

Antigamente não tinha isso, então?

Antigamente: “Faça o que você quiser”

É?

“... desde que você não encha o saco”.

E problemas?

“Não me traga problemas”.

E pra senhora, o que é a Educação Física Escolar? É uma pergunta abrangente,

não é? Mas o que a senhora pensa a respeito?

Olha, eu acho assim, a Educação Física escolar, ela... eu acho que é preparar essas

crianças aí para fazer um bom uso do seu corpo, das suas horas de lazer, focando

bastante respeito, de você ter uma vida salutar, sabe? Porque, não adianta... Eles todos

aqui: eu adoro jogar futebol com todos esses meninos. Daqui a dez anos, eles não têm

214

na cabeça deles... Dez vão jogar futebol, mas eles não conseguem entender o benefício.

Hoje em dia, você já consegue trabalhar isso com eles, sabe? Com os conteúdos que

tem, mostrando pra eles que isso, a atividade física... A atividade física, ela tem que ser

desde que nasceu, porque é o movimento, o seu movimentar, até ficar velhinha. Então, o

que ‘que’ eu vejo: que é esse respeito, essa... isso tudo tem que ser ensinado dentro da

Educação Física: tudo, tudo. Não tem um segundo pra você deixar de educar, um

segundo.

Então a Educação Física está diretamente ligada à Educação, pra senhora? À

Educação como um todo?

À preparação; à preparação dessas crianças pra fazer uso dessa, do seu corpo, ‘né’? Para

economizar movimento, para ele ter uma... Porque hoje em dia a expectativa de vida do

brasileiro é de oitenta anos. De que jeito ele quer chegar aos oitenta anos? Dependente

dos outros? Se ele vai querer ter uma autonomia física, sabe? Então eu vejo que [ela] é

um todo.

Para a senhora ela é importante dentro do âmbito escolar?

Importantíssima. Eu falo que a Educação Física é o sol da escola, por quê? Porque as

crianças, elas não conseguem enxergar o professor [de Educação Física] como enxerga

o professor de português e de matemática. Por quê? Por causa dessa liberdade. E aqui é

o que ele mostra que ele é: as tristezas... Por exemplo, nenhum professor falou na

reunião de pais, que essa menina, a Adriele, tem problema de relacionamento na classe.

Eu falei. Não percebe, não se liga. Eu não sou ligada... Eu sou ligada é no individual. Eu

sei quando eles ‘tão’ bem, eu sei quando eles não ‘tão’. Por exemplo, esse aqui começa

a mudar de comportamento: “O que ‘tá’ acontecendo?” / “Ah, eu vou perguntar”. / E

eles conseguem falar. Porque o fato de a gente sair de lá, nós somos diferentes...

Liberta, não é?

Então o que eu falo hoje dentro de um conselho de escola é ouvido. Aqui é ouvido.

Quando eles estão falando, eu falo: “Ah, é aquele aluno [que é] assim, assim e assim?

Gente, ‘cês’ sabiam o pai dele ’tá’ preso? ‘Cês’ sabiam que ele mudou mesmo de

comportamento porque os pais tão se separando?” / Porque muitas vezes eles vêm aqui

chorar pra mim. “O que ‘cê’ tem?” / “Por que, professora?” / “Porque ‘cê’ não ’tá’

legal, eu ‘tô’ vendo em você que você não tá legal”

215

Entendeu? Então, eu acho assim: eu consegui meu lugar ao sol. E nunca reclamei do

meu salário. Porque não é bom? Eu achar que ele não é bom e eu for trabalhar pelo que

eu ganho, eu largo. Mas a satisfação que a gente tem é inacreditável. Esse menininho

aqui, ‘ó’, ele é um espetáculo! Ele é um espetáculo! Aquela menininha loirinha, lá, ela,

na 5ª Série, ela faltava da aula. Aí eu fui falar com a mãe: “Mãe, por que ‘que’ ela falta

tanto?” / “Ah, não sei, ela fala que ela não quer ir.” / Eu falei: “Mãe, mas a

responsabilidade é sua, mãe, ‘né’? Tem que... Tá na 5ª Série. E na hora que ela tiver na

8ª, o que ela vai fazer, mãe, com você?” Um outro professor não fala. O menininho que

eu peguei, que falaram que ele é que ‘tava’ vendendo lança-perfume aqui, eu cheguei

pra mãe, e eu falei pra mãe: “Mãe, dá uma olhadinha” / Ela falou assim: “Você ‘tá’

julgando o meu filho?” / Eu falei: “Mãe, eu fiz o mesmo erro que você. Meu filho usava

droga e eu olhava só o tamanho dele. Você vai cometer o mesmo erro que eu, mãe?”

Então eu não tenho, assim, freio de... “Ah, não vou falar...” [Não] tenho medo...

Desses[?] problemas...

Não. Eu falo, eu mostro, com muita educação, com muito amor. Porque na hora que eu

deixar de ter amor por aquilo que eu faço, eu tenho que parar.

Tem que parar. Concordo plenamente.

Eu amo o que eu faço. Mesmo durante as ‘briguinha’...

Professora, já que a senhora falou tanto nesse gostar do que faz, no começo,

quando a senhora começou a dar aula, como era a sua prática pedagógica no dia-a-

dia?

Então, ‘né’? Errada. Você quer ver uma coisa? Eu aprendo com meus próprios erros.

Nós...

Todos nós, não é?

Eu fui dar aula, e tinha... [eu era] jovem, ‘né’? Eu fumava na época, cigarro Charme. Aí,

no intervalo de uma aula ‘pa’ outra, eu fui substituir um mês – eu era estudante ainda.

Eu acendia o cigarro lá no Berdran[?], que tem aquela escadaria. Eu acendi o cigarro,

estiquei as ‘perna’ e fumei. Achei que eu tava abafando: “Nossa, professorinha

moderna, fumando! Nossa!” Não passou uma semana... Aí, passou nem duas semanas,

eu peguei ela fumando no banheiro.

216

A sua aluna?

E aí, eu fui falar alguma coisa pra ela. E eu fui aprendendo as posturas certas, as

posturas erradas. Eu fui aprendendo, eu aprendi a dar aula. É lógico que eu errei muito.

Aquela coisa de falar... às vezes, usar palavras na hora errada ainda. Ainda erro. Há dois

anos atrás eu errei com um menino. O menino, ele gostava de se vestir de preto, de

pintar o olho, essas coisas. E ele chegou, e eu, na sala de aula, olhei pra ele, ele tava

com a unha pintada de preto, e eu falei pra ele: “Nossa, que horror, menino! Você com a

unha pintada de preto, já não chega teu olho?” / Ele me pegou fora: “Professora, você

me desrespeitou”. Aí eu falei pra ele... nem me liguei: “Te desrespeitei? Em que

momento que eu te desrespeitei? Fala pra mim” / “Na hora que você fez isso”. / Falei:

“Desculpa. Realmente, eu não devia ter feito isso. É que eu... Eu vou só fazer uma

pergunta pra você: você sabe a tribo em que você ‘tá’ entrando, como é, o que acontece?

Você ‘tá’ ligado nessa turma, preocupado [com o] é que é essa turma, esses amigos?

Primeiro, que você é bonito e você quer ser feio, ‘né’? Eu acho isso um horror, de você

passar [isso]. E, segundo, tem tanta coisa que falam ‘ruim’ dessa turma: vai ‘pá’

cemitério... Falam que tem troca de casais, é homem com homem, ‘muié’ com ‘muié’ e

depois troca tudo. É isso mesmo? Você já viu? / “Não, professora, não é isso. Você ‘tá’

enganada” / “Então ‘tá’ bom. Você me desculpe. Qualquer coisa, você vai me falando

dessa sua turma, mas fica de olho. Fica de olho, porque eu vejo eles bebendo muito, eu

vejo eles com esse ar de tristeza, total...” Mas não errei? Isso aqui há dois anos atrás.

Vai aprendendo, não é?

Vai aprendendo, vai aprendendo.

E na aula, propriamente dita. Além dessas questões morais... Porque isso é pra

vida inteira, não é? Mas a aula da senhora: como era dividida? O que a senhora

trabalhava num semestre ou num ano?

Ah, era assim: primeiro semestre...

Como era o dia-a-dia?

Primeiro bimestre: a gente tinha que trabalhar voleibol. Então tinha lá uma bola ou

duas, você tinha que trabalhar toque por cima, toque por baixo, jogo, primeiro trio,

217

depois... Assim, era isso que você tinha que trabalhar. Segundo bimestre: basquetebol.

Aquela coisa, aquela fila. Entendeu? Uma bola ou duas bolas, aquela fila...

Trabalhava o gesto?

Só.

E era um conteúdo basicamente esportivo? A senhora trabalhava o esporte no

ano?

Só esportivo.

Dividia os esportes?

Sim.

Dividia?

Dividia. Era vôlei, handebol, futsal e basquete.

Eram os quatro?

Eram os quatro.

Trabalhava durante o ano?

É. Ah, é uma pena! Não ‘tá’ aí. Eu tinha um plano de ensino de bem no comecinho da

carreira aqui.

É, não tem mais? [riso]

Eu vou procurar, talvez eu ‘tenho’. E eu tenho – acho que – aqui. E eu vou procurar. Eu

vou te dar.

Seria bem interessante.

Ah, seria bem interessante.

Eu tiro cópia, depois eu te devolvo. [riso]

Não, pode ficar ‘pro’cê’. Eu acho que eu tenho. Eu acho que eu tenho alguma coisa aí.

De como era a prática pedagógica, como...?

218

Não, tinha o plano de ensino, que tinha que entregar.

E isso a senhora entregava? No dia-a-dia era, basicamente, o esporte?

Só o esporte.

E o que a senhora acha do esporte, dessa esportivização? Porque muito se fala que,

a partir da ditadura, por questões econômicas, o esporte tomou conta da Educação

Física. O que a senhora acha dessa...?

Ela era... Ela era...

Isso aconteceu realmente? O esporte fez parte, realmente, das aulas da senhora?

Era só [esporte].

Só esporte?

Só esporte.

Mas foi por alguma imposição do Governo ou nem se tinha essa devida noção? Se

fazia por outros motivos? Às vezes, pela própria formação...? Conte-me a respeito.

Pela formação, pelo que... pelo que a gente tinha de conteúdo, era só isso.

Era o esporte?

Era o esporte. Era isso que a gente aprendia. Não tinha isso aqui que, [como] hoje, eu

não trabalho esporte, mas começo trabalhando com atividades com bola; não tinha.

Não tinha? Era o esporte?

Era o esporte, o esporte. E o esporte, ele é elitista mesmo...

Não tem jeito? [riso]

Não tem jeito. Só os fortes e acabou.

Professora, e quem definia esses conteúdos a serem trabalhados?

O Governo.

O Governo definia?

219

O Governo. O Governo. Tinha um livrão verde assim, ‘ó’, que tinha tudo.

E aí ele mandava para os professores trabalharem?

Mandava.

E aí ele mandava esses conteúdos, que era o conteúdo esportivo, mas ele mandava

as estratégias, como é feito hoje, por exemplo?

Não. O professor, se ele quisesse... Ele era o dono da aula: ele ia dar, se ele queria; se

ele não queria...

E a avaliação? Havia avaliação na época? Vocês avaliavam os alunos?

Não. Não. Eu avaliava era atividades, participação. Hoje em dia, você... É assim, ‘né’?

Estragou muito... A escola, em geral, a escola pública: essa história de progressão

continuada, isso acabou com a escola pública, ‘né’? Porque tudo é fácil, tudo é fácil.

Uma hora vai parar com isso, porque ela é boa no papel, ‘né’? Porque tantas crianças

‘tão’ na escola, ‘né’? Só.

Pra números?

Pra números ela é diferente, mas pra aprendizado...

E o Governo, ele fazia alguma fiscalização sobre as aulas da senhora? O

Governo Militar?

Não. Cara, eu não posso falar pra você se tinha isso. Dentro da minha escola nunca teve.

Nunca teve?

Da minha escola, não.

Era tranqüilo?

Mas, por exemplo, eu tive um primo que foi fazer um exame – aqueles ‘exame’ de

madureza – e escreveu uma redação e foi procurado. No[?] exame[?], entendeu? Então

essas ‘coisa’ tinha muito. Essas coisas, tinha muito. A gente sabia que existia isso aí,

mas dentro da minha prática esportiva, dentro da escola, escola de periferia...

220

E como os alunos se manifestavam dentro das aulas, professora?

Amavam! Sempre amaram.

É?

Sempre amaram! Sempre amaram a aula de educação física. Sempre. É bola, é a

descontração... ‘Perdemo’ muito, ‘né’? Porque eram três aulas, passaram a duas.

‘Perdemo’ muito, veio um conteúdo legal agora, e que precisaria muito ter três aulas,

muito. Que agora que daria pra fazer um trabalho que as faculdades ‘tão’... sabe? O

enfoque do ser humano, da tecnologia, ‘tá’ muito legal. Então tinha que aumentar o

número de aulas de Educação Física. Muito legal.

Professora, e a comunidade? Como ela via a senhora, as suas aulas? Como era

vista a Educação Física naquela comunidade?

Então, como eu sempre trabalhei com esporte...

Hum, hum.

Certo? E através deles eu criei muitas meninas que poderiam ‘tá’ na... Sabe? Tanto na

prostituição como na criminalidade, e, graças ao esporte, elas saíram desse ambiente:

[nome de colégio ininteligível], Ranieri Mazzilli e aqui, eu sempre tive assim... A

comunidade em si gosta muito do meu trabalho – pais... O respeito, entendeu? Gosta

muito, mas por quê? Por causa do esporte[?]. Por causa do esporte[?]. Então aqui, hoje

em dia, essa molecada: tem um grupo já que treina handebol feminino e masculino.

Porque eles querem ir ‘pá’ competição; porque eles querem jogar por Jundiaí; eles

querem ir pros regionais; eles querem se espelhar naquela menina... como é que chama?

Na Patrícia, que deu entrevista ontem na televisão...

Nossa que interessante

Entendeu? A menina que eles tão vendo aqui no bairro. São meninos que ‘tão’ fazendo

teste pra seleção brasileira, pra seleção paulista, entendeu? Então... E o que é isso?

Esporte.

O esporte ajudou a senhora também no convívio com essa comunidade, nessa

relação, é o que me parece?

221

Sim. Tanto que, quando eu falo que eu vou viajar com essas meninas, que eu vou ficar

dez dias fora, Presidente Prudente...

Não tem problema? Que legal.

Por quê? Porque eles sabem. Sabem que a minha linha educacional ‘tá’ em[?] cima[?].

O esporte é um meio, não um fim.

Professora, a senhora já falou isso para mim, mas mais para um caráter de

linearidade mesmo...

Professora, como a senhora compreende a Educação Física das décadas de

[19]70, [19]80, quando a senhora começou, e também a Educação Física de hoje?

Dá para fazer uma comparação? Eu sei que é abrangente, mas como é que a

senhora poderia sintetizar isso para nós?

Eu acho assim: com certeza houve uma modificação muito grande, ‘né’? Hoje em dia a

Educação Física é a parte integrante total do currículo escolar, com os mesmos valores

de outras, ‘tá’? O enfoque não é um enfoque esportivo, não é mais um enfoque

esportivo, é um enfoque mesmo de desenvolver as habilidades dessas crianças, as

capacidades dessas crianças. Então eu acho que o crescimento da Educação Física

dentro do Governo do Estado é fantástico. Eu falo pra todo mundo que, quando eu

morrer, pra eles colocarem um caderninho no meu peito. E eu já incumbi uma

professora de colocar. Eu falei que eu quero... Eu falei que eu quero que todo mundo

que chegar no meu caixão “casque” o bico de dar risada. Mas eu acho bom isso.

Do caderninho?

É, porque eu acho que é um avanço dentro da Educação Física, eu acho que é um

avanço. E esse avanço vai levar a gente muito longe, sabe? Vai levar. Vai ter um

crescimento. Nós vamos preparar melhor esses meninos: eles entenderem que a

Educação Física não é jogar bola, é muito mais, ‘né’? É muito mais.

A senhora vê um avanço entre o que era e o que é hoje?

‘Má’ muito grande, muito grande! Eu vejo... Olha, eu não sei se eu ‘tô’... Porque o

pessoal... Eu não sei se é ingenuidade ou é excesso de amor que eu tenho ‘pelo’ aquilo

que eu faço, mas eu vejo: essa moçada, se pegar, pegar firme... ‘Óia’, é ‘pa’ não ganhar

dinheiro, mas satisfação vai ganhar muito. Dinheiro não vai ganhar, mas em amor, em

222

carinho, em atenção, em... Sabe? E o seu respeito, que você tem? Gente, hoje em dia, o

professor, ele senta numa bancada, num conselho participativo... Eu falei: “Mãe, o aluno

apresenta esse problema assim, assim e assim dentro da quadra” / A mãe falou: “É, ele

realmente é assim em casa”. Então, sabe? Hoje em dia é muito importante, é muito

importante. Sempre foi, só que hoje a gente tem esse respaldo.

Está mais valorizado, a senhora quer dizer?

Muito, muito, muito, muito.

E, para finalizar, eu queria que a senhora deixasse uma última palavra sobre a

Educação Física, essa profissão que a senhora escolheu para trabalhar e pra ter

como ideal de vida, não é?

Então, eu sempre conto uma historinha, e eu vou contar essa historinha porque eu

também, por causa desse meu amor pela Educação Física, a ESEF me chama todo o ano

para pra eu falar com os ‘primeirosanistas’.

Olha, que bacana!

Todo ano eu dou palestra na ESEF. E aí, eu falo assim pra eles, eu conto uma

historinha. Estávamos todos nós no Céu... [Toca um celular] Isso aqui não pode, viu? E

eu não vou atender, que eu não sei quem é. Estávamos todos nós no Céu, e aí chegou lá

São Pedro e falou assim: “Ô, gente, é o seguinte, eu quero que vocês escolham...” Já era

tudo anjinho. “Eu quero que vocês escolham as suas profissões. Quem quer ensinar as

crianças a ler, a escrever, a ser um estudioso? Quem quer?” Aí, levantou a mão lá uma

‘par’ de... / “‘Ó’, vocês vão ser professor de português”. / Aí: “Quem quer ensinar às

crianças os números, as contas...?” Aí levantou [a mão] mais umas ‘par’ lá: “Eu, eu,

eu!” / “Ah, vão ser professor de matemática” / “Quem quer estudar os rios...?” Vai ser

professor de Geografia. / “E quem quer ensinar história?” Professor de história. / Aí, ele

pegou e falou assim: “Quem quer ser feliz?” Eu levantei a mão. Eu! Ele falou: “Então

vai ser professor de Educação Física”

[riso] Muito bom, muito bom professora.

E é isso aí que eu... E é verdade.

Muito bom, muito bom.

223

Encerramos aqui, então, a nossa entrevista com a professora (c)

Obrigado.

FIM DA ENTREVISTA

224

ENTREVISTA COM PROFESSOR (D)

Bom dia, professor.

Bom dia.

Vamos aí começar um trabalho, um roteiro de entrevista com uma conversa bem

informal, para que nós possamos compreender como foi aquele período de

trabalho do senhor. Então, para começar, eu gostaria de saber como foi o processo

de escolarização do senhor, antes da faculdade de Educação Física.

Todo o processo desde 5ª Série, ‘né’?

Sim, como se desenrolou a fase escolar. Fale sobre esse período da vida do senhor.

Eu tive o melhor estudo possível na época. Eu estudei em década de [19]70, ‘né’? Aí eu

estudei sempre em escola pública, ensino muito bom. Tudo de bom, no meu tempo não

tinha esse Colegial, ‘né’? O Ensino Médio, era... Existia o Científico, o Clássico e o

Normal. E eu fiz Científico. Então, ‘cê’ terminava de fazer a... Ia pra 5ª, ‘né’? Que era o

Ginásio, e a outra parte, que seria o Ensino Médio [de] agora, seria o Científico... Você

escolhia: Científico, Clássico e o Normal. E eu fiz o Científico. E não consegui entrar

em algumas ‘faculdade’ na época, que era o CEFEM[?], CEFEA[?] – ‘cê’ não vai

lembrar dessas ‘coisa’. [riso]

Não. [riso]

Hoje é os FUVEST, VUNESP da vida. Eu fazia o CEFEA[?], que era na parte de

Agronomia. E cheguei a entrar em Agronomia lá em Botucatu, que, hoje, é a Unesp, não

é? E fiz um ano e não era aquilo que eu queria. Parei – isso em Botucatu –, vim pra

Jundiaí, comecei a trabalhar, e em [19]75 eu fui fazer Educação Física. Como eu sempre

gostava de futebol, de esporte, fui fazer Educação Física.

Isso em [19]75?

Setenta e cinco. Me formei em [19]78.

E a partir disso, professor, desse ingresso na faculdade de Educação Física, o que o

senhor, já na faculdade, costumava ler? Havia alguma leitura específica que o

senhor gostava de ler?

225

Olha, eu fui trabalhar em São Paulo, e só vinha à noite pra cá, eu vinha direto pra

faculdade. Dificilmente, nunca fui um bom leitor, nunca li muita coisa, entendeu? Via

alguma coisa que a faculdade pedia, mas sempre em grupo, participando. Mas eu,

particularmente, assim, solo, nunca. Nunca fui de ler muito, não sou... até hoje não sou

de ler.

E por que o senhor escolheu ser professor de educação física? Ou escolheu a

faculdade de Educação Física pra cursar depois de Agronomia?

Olha, por gostar de esporte: jogo futebol até hoje, sempre joguei futebol; joguei futebol

profissional, parei... Naquele tempo não era o que é hoje, ‘né’? Não era rentável.

Sempre gostei e sempre gostei de criança. Então foi o que me levou a fazer Educação

Física. E por Jundiaí ser uma cidade industrial, não tinha ‘muito’ opção. A minha

condição era, por gostar de Educação Física, e a condição de ter a faculdade próxima

aqui, ‘né’? Mas eu não tinha... Se eu não fizesse Educação Física, eu não faria outra.

Sempre gostei de Educação Física.

Então o senhor atribui ao esporte...?

O esporte que me levou a fazer isso.

O esporte que o levou à Educação Física? Principalmente o futebol, no seu caso?

Principalmente o futebol.

E o ensino público? Como ele apareceu na vida do professor? [riso]. Fale um pouco

sobre isso.

Ah, eu saí da faculdade em [19]78, fui fazer especialização naquele tempo, ‘né’? Eu fiz

natação, que gosto bastante, e fiz futebol, fiz na PUC, em [19]79. E eu trabalhava na

VIGORELI, e a firma fechou. Porque não compensava sair da faculdade e ir trabalhar

com ensino público. O salário que eu exercia lá, que eu era comprador, era muito

melhor do que [o de] professor. Só que começou a época difícil: fechando empresas,

falta de serviço, e eu tinha o diploma, eu parti. Um dia, assim, na rua, um amigo meu

que tinha feito faculdade, um amigo comum, passou, falou: “’Ó’, ‘tá’ precisando de

professor em tal escola” Eu fui lá, me apresentei e comecei [a] dar aula.

Já começou. [riso]

226

Era assim, era assim. Faltava professor. Hoje sobra, hoje sai briga, sai até tapa numa

atribuição de aula, porque existe uma escala, tem que contar os ‘ponto’ certinho, ‘né’?

Hoje é tudo muito melhor, assim. Mas eu fui lá, me apresentei pra professora, ela pediu

o diploma, a documentação necessária: “Amanha você começa”.

Então além da licenciatura em Educação Física o senhor procurou uma

especialização em Natação – na PUC, foi isso?

É, porque eu queria trabalhar com natação, mas não consegui em clube nenhum

trabalhar com natação.

Então a natação fazia parte da gama de atividades que o senhor gostava, não é?

Ah, sim. Eu gostava, eu gostava.

Agora, mudando um pouquinho: sobre as políticas públicas da época. Havia

conhecimento das políticas públicas que a Ditadura Militar engendrou pra

Educação Física na época? Havia esse conhecimento por parte dos professores?

Eu?

O senhor, no caso.

Eu, não. Não. A Educação Física, não, porque... Não sei, eu pouco freqüentava a sala de

professor, ‘né’? Então, ‘cê’ tem mais que ter contato com professor de história,

geografia, esse povo que tá envolvido. Educação Física sempre foi separado, sempre foi

abandonado num canto da quadra lá da escola, então eu tinha pouco contato. E

antigamente a Educação Física era o contrário. O menino que estudava de manhã fazia

Educação Física à tarde, e vice-versa. Então eu tinha contato com professores... Como

eu dava aula pro famoso Colegial, eles iam fazer Educação Física à tarde. E à tarde

tinha o [ensino de] 1º à 4ª Série, que era o Fundamental. Então, o meu contato com os

professores era diferente, entendeu? Não tinha o contato com o pessoal que eu tenho

hoje, do Ensino Médio, eu tinha contato com o pessoal do Fundamental. E era as

‘famosa’ Professora p1, ‘né’? Então era diferente. Até o papo nosso. Eu pouco ficava

sabendo das ‘coisa’, porque a gente fazia o horário trocado. Então eu pouco sabia do

que acontecia.

Então, sobre as políticas da Educação Física, não havia esse conhecimento?

227

Não, de minha parte nunca houve.

E na escola que o senhor atuava? Havia uma diretriz pedagógica para subsidiar o

trabalho? Alguma coisa que norteava o trabalho do senhor?

Isso aí eu não queria falar ‘procê’. Como eu cheguei lá, a moça falou: “Você começa a

trabalhar amanhã”. No outro dia, eu cheguei, me deram uma chave de um quartinho,

que era sempre embaixo de escada – tinha bola, tinha rede, tinha de tudo pra educação

física; tinha bastante material –, e me deram uma lista de chamada das ‘classe’ que eu

tinha, um horário e as ‘caderneta’. E comecei [a] trabalhar. Trabalhei 28 anos assim,

sem nunca ninguém saber o que eu fiz, deixei de fazer.

Não havia nada?

Nada, nada.

Então o senhor tinha uma autonomia total para trabalhar, do jeito que...?

Eu não sei se eles não ligavam pra gente ou [se] eles deixavam pra gente. Eu sei que eu

fazia o meu planejamento anual, fazia em cima daquilo que eu achava que tinha que ser

feito, com todos os ‘esporte’ que eu aprendi na faculdade. E fui desenvolvendo, e foi

passando de escola por escola. Tanto é que meu planejamento – acho que – durou uns

dez anos. Eu só trocava o ano. Todo ano tirava cópia, trocava o ano, entregava o mesmo

pra diretora.

Era a mesma coisa?

A mesma coisa. Hoje é diferente. Hoje existe as ‘cartilha’, Já vem pronto pra você fazer

o planejamento anual, tem bimestral, tem por série, entendeu? Antigamente, não, você

fazia por turma: era uma turma I, turma II, turma III, e assim ia. Porque o professor

dava aula pros ‘menino’, e a professora, pras ‘menina’. Hoje, ‘cê’ dá aula ‘pá’ classe.

Então, se juntava, aí, numa escola de quatro classes, ‘cê’ tinha três ‘aulinha’. ‘Cê’

juntava todos ‘menino’ da 5ª, da 6ª, da 7ª, da 8ª, ‘cê’ atingia – eu não lembro se era 31

ou 35 alunos, ‘cê’ formava uma turma. Então, o professor dava aula pros ‘menino’, e as

‘menina’ dessas quatro séries, a professora que dava aula. Então era completamente

diferente. Quer dizer, ‘as’ professora que trabalhava comigo era assim: era jogada lá, e

‘ocê’ fazia o que ‘cê’ queria. E a gente procurava fazer o melhor, porque a gente

228

gostava, entendeu? E até que eu fiquei muito contente de ter trabalhado essa época aí.

Mas nunca ninguém falou: “Faz isso” ou “Faça aquilo” ou “Deixa de fazer isso”.

Não tinha.

Eu, ‘tando’ lá, o pessoal fazendo, só me chamava em época de... na época do sorvete,

festa junina, Sete de Setembro...

Você era chamado?

Aí o professor era lembrado. Caso contrário, ninguém lembrava do professor de

Educação Física.

Que coisa, não é? [riso]

O professor até já falou um pouco sobre, mas só para dar uma maior ênfase: era

disponibilizado algum material pedagógico, de cunho teórico e/ou prático, que o

auxiliasse no dia-a-dia?

Nada, nada. A gente até... Alguma coisa, ‘cê’ tinha que... Na hora, ‘cê’ tinha que bolar

alguma coisa.

Material prático: tinha?

Nada.

Bola, essas coisas?

Esse material, tinha. Ah, didático... Confundi: didático, nada que viesse, assim: um

livro, alguma coisa. Nada.

Mas material prático?

Mandava. O Estado sempre mandou material pra escola, ‘pras’ ‘aula’ de educação

física. A gente tinha rede, tinha corda, tinha massa, tinha os ‘aro’, que era ‘aqueles’

‘bambolê’. Muita bola, pra todos os ‘esporte’.

Isso não faltava?

Isso nunca faltou. Começou faltar agora, por incrível que pareça. Quando melhorou uma

coisa, acabou outra.

229

[risos] Agora tem a parte didática teórica e não tem a parte de material, não é?

Não tem, não tem. Eu tenho uma bola hoje, pra ‘cê’ ter ideia: uma bola de futsal, uma

bola de vôlei, uma de basquete e uma de handebol. Antes eu tinha bastante, bastante.

Corda, eu não tenho, não tenho corda. Corda pra fazer cabo de guerra, corda pra fazer

salto com corda. As ‘massa’: não tem mais ‘pras’ ‘menina’ fazer as ‘ginástica’. Os

colchões: não tem mais. Aqueles colchões de ginástica. Não tem.

Isso, antigamente, tinha?

Antigamente tinha, e bastante. A gente tinha até espaldar. ‘Cê’ lembra o que é espaldar,

‘né’?

Não.

‘A’ que parece uma escada.

Ah, sim, sei.

Parece... Tem um monte de... Parece um cabide, ‘cê’ vai fazendo exercício, pegando[?]

altura, ‘cê’ vai pegando aquilo lá. Tinha espaldar, tinha plinto. Hoje, ‘cê’ fala em plinto,

ninguém sabe o que ‘que’ é. Tinha tudo: tudo, tudo, tudo. Material era muito bom.

Porque aquele tempo... Pelo Militar, o Militar gostava muito da Educação Física, ‘né’?

Então eles mandavam muito material: o plinto. Tinha tudo isso. Tinha banco sueco, a

gente tinha muito material, muito material. E com o tempo foi acabando. Não havia

‘muito’ manutenção, e acabou. Hoje não tem nada disso. Se você perguntar pra um

professor hoje, sei lá se ele aprende na faculdade o que é um banco sueco, um plinto,

um espaldar: acaba nem sabendo o que ‘que’ é isso. Por o Governo ser Militar, naquele

tempo, eles davam muita ênfase, assim, pra Educação Física, ‘né’? Pra saúde, pra

qualidade de vida do pessoal do quartel. E era por aí. Era o que a gente seguiu, isso aí.

Professor, o governo, naquela época, oferecia algum curso de especialização,

alguma formação específica, assim? Conte-me a respeito.

Nenhuma, nenhuma.

Não tinha?

230

É que nem eu te falei: eu fiquei 28 ‘ano’ jogado aí, fazendo o que eu queria o que não

queria. Eu só entregava a caderneta no final de ano porque eu entregava, senão, ‘taria’

amontoado aí ‘caderneta’ de 28 anos. Nunca pediram...

Nada? [riso]

Nunca um diretor deu um visto numa caderneta minha.

Assistir uma aula?

Nem pensar. Sempre mandava chamar. Sempre: “Chama o professor aqui”. Não ia na

quadra. Por quê? Hoje tem quadra coberta, hoje tem quadra coberta, ‘má’ antigamente

era sol. Sol, chuva... Na chuva, logicamente, não tinha: a gente ia pro pátio ou o

professor ficava sentado, lá, conversando. Porque antes as ‘quadra’ era tudo

‘descoberta’, naquele cimento... Hoje tem uma quadra coberta aqui, ‘né’? Só que o

interesse dos ‘aluno’ da época era muito maior do que é hoje, ‘né’?

Era diferente, não é?

Era diferente. Era ‘uniformizado’ as ‘escola’. Era o tempo do Militar – quer queira, quer

não, tem o lado bom e o ruim da coisa. Não existia o que acontece na escola hoje, ‘né’?

O desrespeito com o professor, droga, violência, bebida. Existia um uniforme, ‘cê’ sabia

quem era aluno da escola. Hoje, ‘cê’ entra na escola, ‘cê’ não sabe quem é aluno. Nem

todo mundo vem de uniforme, entendeu? Era muito uniformizado, inclusive na

educação física. Só fazia educação física quem tivesse uniformizado. Isso aí já era uma

coisa que a gente nem cobrava, o aluno já sabia, entendeu? Na quadra, tinha uma

obrigação deles, fazer isso aí. Então nunca me preocupei com uniforme, porque eu

chegava, já tava todo mundo uniformizado.

Já estava tudo certo, não é?

Então não ficava cobrando. Hoje tem que ficar cobrando. Hoje tem gente que vem jogar

descalça, de chinelo, de bota, de tamanco. Complicou, mudou.

E sobre o governo, professor? Havia um controle do Governo sobre as suas

práticas?

Nenhuma, nenhuma. Se houve, [foi] através de direção, mas nunca chegou a mim.

231

Nunca chegou?

Nunca fiquei sabendo. Agora, é que nem eu falei: é [em] fim de carreira que eu ‘tô’

sendo cobrado.

Agora mais do que antigamente?

Agora mais do que antigamente.

O controle, hoje, é maior?

Maior, em tudo: freqüência do professor, o que faz, o que não faz. Caderneta de

professor... Essas ‘apostila’ que vieram: gostei muito da do Ensino Fundamental, que é

de 5ª a 8ª. Do Ensino Médio, não gostei, entendeu? Tem coisas boas e coisas ruins que

vieram agora. Ruim, assim, ‘né’? Como a gente é da antiga, eu ‘costumei’ de fazer o

que eu queria, não o que se pedia – porque nunca pediram nada, sempre nós ‘fomo’

jogado. Eu não sei quantas ‘entrevista’ você fez aí com professor da época, eu não sei se

chegaram a falar a mesma coisa, mas comigo aconteceu isso. Ou eu fui o premiado, sei

lá o que, de fazer isso, mas eu acho que algumas ‘professora’ que trabalhou comigo foi

assim também. Até elas vinham perguntar: “Que ‘que’ eu faço?” / Eu falei: “Eu faço

isso”. E eles faziam. Só que a gente fazia, ‘né’? Fazia muito mais do que hoje! Muito

mais do que hoje.

Professor, sobre a educação física, especificamente: pro senhor, o que é a educação

física escolar?

Hoje?

De uma forma geral mesmo. O que o senhor entende por educação física escolar?

E, já aproveitando o gancho: ela é importante dentro do âmbito escolar?

Importante, sim. Se você consegue segurar o aluno na escola, hoje, que ele venha fazer

alguma coisa... [Por]Que eles detestam as outras matéria, eles adoram a educação física.

Você sabe disso. Quer dizer, não ‘é’ 100%, mas 80%... Tem aluno que vem por causa

da educação física. Por quê? Hoje, eles só gostam de futebol. Se você fizer outra coisa,

eles não fazem. Não fazem. Antigamente, futebol era o que menos tinha, o que menos

aparecia era futebol, [de] esporte de quadra. Mas era importante, muito importante,

[por]que você forma cidadão...

232

Por que será que antigamente não aparecia o futebol?

Eu acho que a mídia, ‘né’? A mídia, hoje, divulgou muito. Antigamente ‘cê’ ouvia falar

muito em basquete, voleibol, handebol. Aí, hoje, o futebol! Não tinha futebol! Incrível!

Hoje, as ‘menina’ querem futebol; os ‘menino’ também. Outras ‘modalidade’, ‘cê’ não

consegue. Mas ela é muito boa, ela é formadora de opinião, de homens, ‘né’? Ela é a

saúde, que, antigamente, sempre foi pregado pelos militares a saúde, do corpo perfeito

do menino. Então, a Educação Física, além de ter a parte... a parte civil, também, ‘né’?

‘Cê’ mostrar o que ‘que’ era o civismo – porque a parte principal do... Tinha Sete de

Setembro, tinha tudo isso. É muito importante a educação física. Não só na parte

esportiva, como na parte física também. Mas hoje eles vêem só a parte de esporte, eles

não fazem outra coisa que não for futebol.

Professor, eu queria saber: naquela época, como era a sua prática pedagógica

diária? O que o senhor trabalhava no dia-a-dia? Com era professor?

Olha, hoje é diferente, porque vem as ‘cartilhinha’ pra gente, mas, antigamente,

‘cê’ tinha que fazer a sua aula, entendeu? Dividia em bimestre: quatro ‘bimestre’.

Basquete, vôlei, handebol e futebol no fim, eu ficava dois meses trabalhando com

modalidade. Porque eu não tinha tênis de mesa, hoje eu tenho. Antigamente eu não

tinha mesa de tênis de mesa. Ginástica: a gente fazia alguma coisinha. Como a gente era

só professor masculino, na época, que eu fazia esses ‘esporte’ com eles... A gente tinha

as ‘equipe’ de competição no famoso campeonato Colegial que existia antigamente.

Então eu já sabia, e eu, por vários anos, eu fiz isso: eu mudava no bimestre a

modalidade. Eu podia começar com futebol, com basquete, um ano, mas sempre

naquela linha. E como eu fiquei muito tempo numa escola só, eu já sabia que a gente

começava com o handebol. Sempre na sequência: handebol. Handebol leva o basquete.

Depois, no terceiro bimestre, a gente fazia voleibol, e, por fim, o futebol. Que, no

último bimestre, acabava o futebol virando o voleibol, que eles gostavam muito de

voleibol na época, tava começando a crescer o voleibol no Brasil. Mas era isso que eu

fazia, não fazia nada de diferente.

Dividia por bimestre?

Dividia por bimestre e por modalidade. Então eu doutrinei os alunos lá, eles já sabiam

que todo ano ia ser aquilo. E era muito gostoso, prazeroso. Era feito um exame médico

nos meninos, um exame biométrico – o médico acompanhava, entendeu? O professor

233

fazia o exame biométrico. Hoje não existe mais nada disso. Se tiver algum ‘poblema’

com o aluno aí, ele cai, ‘cê’ chama o resgate.

Era exigência de quem isso? Da própria escola ou do...?

Da escola, da escola. A escola já era... Eu não sei se era da escola, porque eu nunca

tive... Reunião de Educação Física? Nunca tive. Hoje eu tenho. Tenho os HPTC, tem o

pessoal da... ‘Pá’ cada matéria tem um coordenador de matéria, na diretoria, que faz a

reunião só de Educação Física – é uma professora de Educação Física, assim como o de

Geografia tem o de Geografia. Mas era assim, a gente sabia que não se começava a

educação física sem ter o exame médico e o exame biométrico. Não se começava a aula.

E o aluno que era reprovado no exame por algum motivo, o médico chamava o pai,

explicava o que tinha e ia fazer o tratamento. E sempre foi feito isso. Então, quando eu

entrei, a diretora já falou: “Não se começa...” O primeiro dia que eu...: “Aqui, tudo o

que você vai fazer... Mas não começa sem o exame médico e biométrico. ‘Cê’ tem que

fazer”. Isso aí fazia numa folha separada, que tinha atrás da caderneta, levava pra

diretora, ela assinava, e o médico também. E daí ‘cê’ desenvolvia normalmente. Mas

essa parte era boa, era... a gente acostumou, era uma rotina. Começou o ano, tinha que

fazer, os alunos já procuravam. Hoje não tem isso, e por isso que dá problema em

quadra hoje.

Professor, o senhor fala sobre o esporte, que o que o levou à Educação Física foi o

esporte, e que lá o senhor aprendeu algumas coisas relacionadas ao esporte, e que

mais à frente foi aplicado a sua rotina de aula. Então eu gostaria que o senhor

falasse sobre a esportivização da Educação Física escolar: como é que o senhor vê

o esporte, assim, como o conteúdo privilegiado, ou mesmo um conteúdo único pra

educação física escolar naquela época? Era uma coisa positiva, negativa?

Como é que o senhor analisa essa esportivização? Ou, se o senhor acha que não

houve essa esportivização...? Fale sobre isso professor.

Foi, foi. Na época, era o seguinte... Não sei se eu vou conseguir explicar isso aí... Eles

tinham uma aula de educação física como tinham uma aula de matemática, geografia,

história. Era uma matéria, você era respeitado. Então, ele tinha uma nota, que se dava –

simbólica, mas era. A gente dava pela participação – [por]que todos participavam; hoje,

50% participa. Era muito boa, porque eles ‘tratava’ a educação física como uma

matéria, igual às ‘outra’, diferentemente de hoje. Hoje eles vêm no esporte por quê?

234

Porque eles não têm um clube pra freqüentar. Falta isso pra eles, o poder aquisitivo

deles é menor. Antigamente não existia o monte de centro esportivo que tem numa

cidade como de Jundiaí. Nem todo mundo tinha – por ser, Jundiaí, uma cidade industrial

– condição de ser sócio de um clube. Então eles usavam a educação física para ter um

lazer... tipo de um lazer deles. Só que eles levavam a sério, como se fosse uma matéria

normal, de aula. Hoje, não. Hoje a educação física, pra eles, é uma coisa. Tanto é que

eles perguntam pra mim: “Professor, pra fazer Educação Física tem que fazer o quê? É

só saber esporte?” Eles não sabem que tem uma faculdade. Eles ‘faz’ essas ‘pergunta’

pra gente hoje. Eles acham que o professor de educação física, qualquer um pode pegar:

vem aí, toma conta deles. Eles não ‘sabe’ tudo que foi feito numa faculdade, o que ‘cê’

estudou. Nós não ‘temo’... eles perderam a essência da coisa, ‘vamo’ dizer assim.

Então o senhor acha que essa esportivização dentro da Educação Física foi

positiva?

Na época foi muito.

Nesse sentido?

Foi muito, foi muito. Hoje é que não tá sendo muito não. Hoje eu ‘tô’ meio

decepcionado com a educação física.

E na prática pedagógica, o senhor disse que era o senhor mesmo que definia os

conteúdos, as estratégias. E a avaliação, como acontecia? Como o senhor fazia a

avaliação desses alunos?

Olha, ‘cê’... Eu ‘tô’ acostumado, ‘né’? Eu ‘tô’ com... Vai pra 32 anos de Estado. Eu

aprendi em faculdade, com o professor, sempre marcando na caderneta quem fazia –

sempre tem aquele que se sobressai, ‘né’? Então, eu aprendi com um professor chamado

Milton, que ele sempre marcava. Um dia eu perguntei pra ele por que ‘que’ ele fazia

aqueles três pontinhos. Ele tinha símbolos. Eu, até hoje eu faço isso. O símbolo do bom

menino, do que não valia nada, o que sabia tudo, o que tinha coordenação motora, o que

não tinha. E ele me explicou o símbolo. Ele falou: “Olha, esse aqui é o seu símbolo”. Eu

tenho os meus até hoje. Eu criei. Não tanto que nem o professor, ‘né’? Porque ele era de

faculdade, ele tinha vários símbolos. Na escola não precisa de tantos.

Então tem o pessoal que participa, o pessoal que observa, o pessoal que vem conversar

com você, o pessoal que vem te enganar, entendeu? Vem conversar com você ‘pá’

235

passar batido, como eles falam. Mas a avaliação era isso aí. Mas era uma avaliação

quase que unânime, porque todos participavam. Naquele tempo existia ainda a aula:

fazia chamada, eles ficavam perfilado, como se fosse um quartel. Descansar, sentido.

Ensinava marcha, entendeu? Aí, tinha a parte de aquecimento, tinha uma parte principal.

Era tudo como eu aprendia na faculdade.

O senhor conseguia aplicar isso?

Conseguia aplicar. A hora que acaba a aula, dava aquela volta calma, entendeu? Fazia

uma piadinha, fazia uma brincadeira. Aí, eles ‘dava’ aquele grito de guerra pra ir

embora. Cada classe minha tinha um grito. Tinha uns que falavam besteira, mas tinha o

grito deles. Acabava a aula... É que nem hoje: “Oba!” Nego vai [assistir] começar um

jogo do Brasil: “Brasil!” Tinha o grito de guerra pra acabar a aula. Tudo eu puxei da

faculdade, porque eu tive bons professores; eu aprendi com eles isso daí. E usei muito

isso. Então, se é uma classe que participa, como que eu posso dar uma nota, fazer uma

avaliação diferente de um aluno do outro. Porque é diferente: você tá numa faculdade,

você vai aprender pra você ensinar. Agora, aqui ‘cê’ tem que ensinar o aluno. Só que

tem uns que não tem coordenação. Só que ‘cê’ percebia a vontade dele participar, tudo

que ele queria fazer, ele participava. Só que tem os ‘limitado’, e tem aqueles que era

acima da média. Mas eu procurava agradar todo mundo, sabe? Fazer uma avaliação em

nota, que ‘cê’ ‘tá’ falando, ‘né’? Fazer uma avaliação pra agradar os ‘menino’, porque

todos participavam. Então era muito, muito gratificante. Até hoje eu sou chamado... Os

‘menino’ que são formado em [19]82, foi uma 8ª Série, eles fazem churrasco de vinte

ou trinta ‘ano’, se não me engano, de formado... Vinte ‘ano’ de formado; agora já ‘tá’

com vinte e poucos ano. Teve chão ‘pá’... Até hoje.

Gratificante, não é?

É. Um desses ‘menino’, ele é jornalista, e um dia ele fez uma matéria, eu tenho

guardado em casa, assim: “Minha escola inesquecível e professores chamado Saudade”

E meu nome tá lá. Então eu fiquei muito contente quando eu li o jornal e vi o meu

nome. Não só o meu, como o de vários, ‘né’? E nós ‘fomo’ chamados pra essa turma de

8ª Série: churrasco... Hoje são gerente, são dono de empresa, tem gente que mora fora

do país. Então eles ‘agradece’ muito à gente, que a gente deu uma linha pra eles

seguirem, e uma educação muito boa, em todos os ‘aspecto’, todos os professores. A

236

Educação Física participava muito disso, porque é o que fazia unir toda essa classe. E

hoje não existe mais.

É meio desanimador, hoje?

É, hoje ‘tá’. Hoje nós somos babá. Nós somos babá.

Professor, o senhor chegou a dizer que os alunos se empolgavam. Como eles se

manifestavam a respeito da Educação Física no dia-a-dia? Como esses alunos

faziam? Participavam efetivamente...? Como era a manifestação desses alunos? E,

já aproveitando: como a comunidade via a educação física naquela época?

É que nem eu falei para você, a educação física sempre foi uma matéria importante,

‘né’? O pessoal fala que sem a educação física, sem professor de Educação Física a

escola não anda. É o dito da turma aí, ‘né’? Mas é aquilo que eu falei, era uma matéria

comum, tanto pro aluno como pro pai do aluno. Ele sabia que ele ia de manhã e [que] à

tarde ele tinha que fazer educação física. Porque fazia parte, entendeu? Como o aluno

tem matemática, física, química, biologia, ele tinha educação física. Então fazia parte. O

pai obrigava, ele ‘vim’ fazer.

Responsabilidade?

Responsabilidade. ‘Cê’ fez a palavra certa agora. Eu não consegui usar essa palavra.

Então era isso. Mas além disso – de gostar, ‘né’? – era um sinal ‘dum’ menino saudável,

tudo isso. Fazer um esporte... Naquele tempo o esporte não era, assim... Era contagiante;

sempre foi, o esporte, contagiante. Só que não era gratificante que nem é hoje –

gratificante, em ‘termo’ de dinheiro. Hoje o aluno quer fazer um esporte ‘pá’ ser um

profissional e ganhar dinheiro.

Ganhar dinheiro, ‘né’?

Hoje o pensamento de todo menino é isso aí, jogador futebol. Agora, aquele tempo,

não, não tinha tanto essa mídia em cima. Só aparecia futebol, muito pouco, quando

começou a aparecer as ‘Olimpíada’, quando começou as televisões mostrar ao vivo isso,

‘né’? Mas era normal e era bem aceito, era bem aceito pela família. Era uma obrigação,

uma responsabilidade.

E os professores? Como eles viam a educação física?

237

Os professores de educação física ou os outros?

Não, os que trabalhavam com o senhor... Não só os professores, a comunidade

escolar: os funcionários, de uma forma geral. A direção...? Que visão eles tinham

da educação física?

Ah, eles sempre... Tudo diferente de hoje. Era tudo. É que nem eu falei ‘procê’, tudo era

uma sequência: assim como tinha um professor de educação física, o de geografia era

importante, a merendeira era importante... Um inspetor de aluno era respeitado na

escola – todos eram respeitados. Assim como eu via o trabalho dele bem feito, eles ‘via’

o nosso também, entendeu? Da merendeira, do dono da cantina. Todo o pessoal da

escola era responsável, era. Até o pipoqueiro da frente. Hoje não existe mais essas

‘coisa’. Todo mundo era respeitado e sabia qual era o seu papel. Hoje, não. Hoje

ninguém mais sabe qual é o papel dele. Por isso que o pessoal não tem mais respeito,

porque sempre o aluno tinha respeito por todo esse povo, inclusive inspetor de aluno,

servente. Hoje não tem mais essas ‘coisa’. Então era muito bom, era visto com bons

olhos pela direção. Era até mais fácil a direção trabalhar naquele tempo. A direção era

enérgica, mas até certo ponto. Hoje ela tem que ser muito mais enérgica. Antigamente

‘cê’ não via uma polícia numa escola, ‘cê’ não via uma diretora chamar uma polícia.

Hoje tem escola [que] todo dia tem polícia na porta. Difícil, os tempos mudaram, ‘né’?

Mas...

Professor, traçando um panorama, fazendo uma comparação mesmo – apesar de a

gente já estar fazendo isso desde o início, mas, para dar uma ênfase maior – como

o senhor entende a educação física das décadas de 1970, 1980 e a de hoje? É uma

coisa meio complicada, mas para a gente fazer uma comparação... A educação

física na década de 1970 e 1980 e a educação física de hoje em dia: como o senhor

compreende essas fases?

Bom, década de [19]70... Eu só fiz a faculdade, ‘né’? Eu trabalhei pouco, ‘né’? Eu

comecei mesmo em [19]80. Terminei a faculdade em [19]78, comecei a trabalhar em

[19]80. Aí eu acho que eu peguei um período bom, de tudo: professor, colega, de

trabalho, aluno, funcionário. Por a gente ter que fazer tudo aquilo... Porque você... Eu

fiquei tanto tempo fazendo o que eu tinha que fazer, o que eu aprendi na faculdade com

esse professor. Eu sempre tentei passar o melhor, ‘né’? Sempre me esforçava. Quando

238

tinha dúvida, eu procurava a faculdade, principalmente o Afonso, o Difu– não sei se

você conhece ‘esses’ professor..

Conheço

Sempre eles deram... Até hoje eu converso com ele. E eles ‘fala’: tem bastante fruto... O

professor Alaércio[?]... Nós ‘temo’ bastante fruto daquele tempo. Nós ‘temo’ atleta

nosso por aí que passou pela mão da gente. Não foi a gente que lapidou, mas passou,

teve uma formação aí. Tem gente que agradece a gente até hoje, mas era muito melhor

do que hoje. Hoje, o que eu posso falar ‘procê’? Não tem mais respeito por nada, eles

não têm mais medo de nada, nós ‘viramo’ babá deles. Eles não consideram mais

professor, nada. ‘Tô’ falando aqui da minha realidade, dessa escola, as ‘outra’ eu não

posso dizer. Mas eu sinto isso. Entrei com muita motivação, e, com o passar do tempo,

foi perdendo. Hoje eu ‘tô’ há um ano pra aposentar, bem desmotivado, bem

desmotivado. Não vejo a hora de acabar e passar uma borracha nisso. Vai ficar só na

lembrança as ‘coisa’ ‘boa’, porque as ‘ruim’, não quero mais lembrar.

O senhor considera aquela época – pra Educação Física, principalmente, que é a

área de atuação do senhor – melhor que hoje em dia? Comente suas impressões

professor.

Muito melhor, muito melhor.

Não só com relação aos alunos, mas ao próprio jeito de trabalhar?

É, eu não sei se a gente acostumou de ter autonomia pra fazer aquilo, ‘né’? Pode ser que

o pessoal que tá vindo agora, que pegue isso aqui pra frente, ‘acha beleza, que vai ficar

bom – espero que fique bom, porque tem que melhorar, pior não pode ficar. Mas eu

acho que aquele tempo foi muito melhor. Muito melhor. Ele deixou saudade, mas... Eu

não sei te explicar, não sei te explicar se tem alguma coisa por trás daquilo que fazia

acontecer. Quando se fala em Ditadura, não sei se tinha por trás, porque eu nunca me

envolvi com política, nunca procurei saber se tinha alguém por trás fazendo ou se tinha

alguém me observando. Nunca. Nunca fiquei sabendo de nada. Se tinha alguém fazendo

por trás, foi bem feito, porque eu nunca vi nada.

Ok, professor. Só uma última palavra sobre o trabalho do senhor dentro da

Educação Física e a gente vai encerrando a entrevista. O senhor já está no final de

239

sua carreira, já aposentando – descanso merecido aí. Eu gostaria de uma palavra

sobre o que significa a Educação Física, pro senhor, para a gente encerrar o nossa

entrevista de hoje.

Bom, pra mim tem que ser tudo, ‘né’? Porque [são] 32 anos fazendo isso. Correndo

atrás, fazendo e tentando conseguir... Tive mais alegria do que tristeza com a Educação

Física – em Pitanga, nos campeonatinho que eu participei com essas ‘criançada’. E a

alegria de ver os meninos aí trilhando e ganhando dinheiro no ‘esporte’. Passou pela

gente, quer queria, quer, não. Consegui muita coisa, em termos de aluno: melhorar o ser

humano em todas as partes, inclusive droga. Consegui ajudar muito menino. E isso aí

me satisfaz muito. É as ‘lembrança’ ‘boa’ que eu falei pra você, que o que vai ficar

comigo é isso aí. Pelo menos uns três, quatro eu consegui salvar. E sei que salvei

mesmo, não é só falar. Porque eu tenho contato até hoje. Porque eu cobro deles. Então

isso aí me satisfaz muito, mas... E me deu tudo, ‘né’? Eu tenho minha família, tenho

meu filho na Educação Física. Tudo o que eu tenho, ‘desd’a’ roupa do corpo à minha

caneta, eu consegui tudo com a Educação Física. Eu tenho que gostar, eu só lamento

que ‘tá’ do jeito que tá. Mas, pra mim, foi muito gratificante, o ano todo. Eu acho que

todo professor de educação física... Porque se ‘cê’ não gostar daquilo que você faz, que

‘cê’ está fazendo, eu não ia ficar 32 anos fazendo, ‘né’? É que agora a gente vai

cansando, a idade vai chegando, mas ainda tenho bastante motivação pra isso, não nessa

escola, numa outra que eu ‘tô’, que é... Eu sempre acreditei que professor de educação

física tinha que ser remanejado [a] cada três anos, pra você não criar vínculo, raiz com

essa escola eu. Aqui eu ‘tô’ há 25 anos, não era pra tá tanto tempo.

Nessa escola?

Nessa escola. Na outra escola, eu chego... Que nem, hoje eu tenho aula das 5h às 7h. Eu

chego lá, você não me conhece: parece que eu tenho 25 ‘ano’ de idade. O que eu faço

com aqueles ‘menino’. E é nascido em [19]98, [19]99, é 5ª e 6ª Série. ‘Tô’ preparando

esses ‘menino’ ‘prum’ campeonato que vai ter em novembro.

Aqui em Jundiaí mesmo?

Aqui em Jundiaí. É um campeonato escolar deles. É o Pré-Mirim que chama. E eu tenho

também... Amanhã, sexta-feira, eu tenho a das ‘menina’, que nós também tem uma

turma, a ACD, que chama hoje, as ‘turma’ de treinamento. Nove, oito; nove, nove. É

feminino, é menina. Elas não faltam. Sentam[?], ouve[?]. Então ‘cê’ seleciona, ‘né’?

240

Que essa turma é selecionado quem sabe jogar e quem quer aprender. Então a minha

motivação é muito grande. Porque, hoje, se fosse pra ‘mim’ dar aula das 5 às 7 da noite,

eu não daria. Como é pra eles, eu vou. Eu vou, inclusive, de segunda-feira, fora do meu

horário, trabalhar com eles pra aprimorar mais. Porque eu ‘tô’ em outra escola, são

outros ares, outros alunos... São menos ‘favorecido’ que os daqui dessa escola. Então

tem coisa que te motiva ainda. E como eu trabalho com futsal e com basquete, então eu

tenho aquilo específico, eu não tenho que seguir a cartilha deles, entendeu? Esse ACD é

um projeto... Eu começo no ano fazendo futebol com as ‘menininha’ ou basquete com

os ‘menino’, e vou até o campeonato. Durante o ano ‘tá’ tendo campeonato. Só que eu

sou obrigado a participar, ‘né’? Ela não é uma aula normal, de uma classe: eu pego

meninos de várias ‘classe’ e monto minha equipe.

Por idade, é isso?

É, tudo por idade, tudo faixa etária. E eu monto, e me motiva muito. Isso dá muita

atuação, porque eu tenho sessenta: seis, ponto, zero. Acho que eu ‘tô’ bem ainda, pela

minha idade, e eu chegar lá, e eu achar que eu tenho 25 lá, é [por]que eu ‘tô’ bem, tenho

motivação ainda. Porque já era pra ta andando de bengala, abaixar a guarda e falar:

“Agora seja o que Deus quiser, espera acabar” Pra ‘mim’ chegar lá nesse ponto... E a

diretora falou: “ ‘Cê’ é doido? ‘Cê’ vem de segunda-feira? ‘Cê’ não tem aula” Eu falei:

“Má eu gosto, ‘pô’!”.

Eu gosto deles porque me satisfaz, senão não iria. Eu cheguei a comprar bola, porque a

bola da categoria deles é uma bola menor. E a escola que eu tenho é bola grande. Eu

comprei uma bola e vou lá com eles pra treinar. Então gosto muito da educação física,

me satisfaz, por isso que eu acho que não devia ficar muito tempo um professor numa

escola – pra ‘cê’ não desmotivar eles, porque vai acabando a motivação. E você vai

ficando muito tempo aqui, ‘cê’ acaba se achando um pouco dono das ‘coisa’, ‘né’? E

isso eu não quero, não. Eu quero acabar bem, e vou acabar bem. Porque eu falei

anteriormente aí que eu tava meio desmotivado na aula, mas nessa turma que eu tenho,

na outra escola, tem 25 anos de idade.

Maravilha. Bom, professor... Encerramos aqui a nossa entrevista com o professor

D. Muito obrigado, professor. Foi muito gratificante ouvir aquilo que os

professores da época falam, que é muito diferente do que a gente encontra em

livros – porque é a história vivida, como ela realmente aconteceu. Então eu

241

agradeço o tempo que o senhor disponibilizou a mim. E encerramos aqui a nossa

entrevista.

FIM DA ENTREVISTA

242

ENTREVISTA COM PROFESSOR “E”

Bom dia, professor (E). Vamos começar a nossa entrevista sobre a

Educação Física na época da Ditadura.

Bom, professor, eu gostaria de saber como foi o processo de escolarização

do senhor antes de entrar na faculdade. Como foi a escola mesmo, como foi esse

processo? Conte-me um pouco.

Eu fiz o Ensino Fundamental dividido em duas partes: uma no particular, que é a

Escola das Irmãs, aqui na Vila Arens, anexa ao Colégio Divino Salvador, e depois, a 3ª

Série em diante, eu fui pro público, na escola – inclusive, o Siqueira Moraes, ‘né’ –, a

escola que eu estou hoje. E naquele tempo ela funcionava em frente à Câmara

Municipal [onde se localiza] hoje; era lá no Centro, que a gente chamava. Aí, quando eu

concluí o Ensino Fundamental – repeti o 1º Ano –, aí eu fui para o Paulo Mendes Silva,

que funcionava na antiga Rua da Estação, lá concluí a 5ª Série. Depois ele foi para um

prédio novo aí na Fernando Arens, 6ª Série. E depois, por conveniência dos meus pais,

eu precisei ir trabalhar durante o dia e passei a estudar à noite. Aí eu fui fazer a Escola

Anchieta. Meu irmão já estava estudando na Anchieta. Aí, concluí lá o Fundamental, fiz

o Ensino Médio no Anchieta – eu fiz o técnico em contabilidade. Mas nisso daí eu já

estava me aproximando muito do esporte, ‘né’? Eu gosto de futsal, gosto um pouco de

voleibol, de atletismo, e o curso de Educação Física começou a aparecer muito. Então,

isso me chamou à atenção. Um colega meu, que era formado um ano antes, né? Colegas

de saídas, ‘né’? De equipe – que nós tínhamos uma equipe na época –, [ele] falava

muito da Educação Física. E isso foi me aproximando. Aí, fiz o vestibular, passei e

cursei a faculdade durante quatro anos. Porque eu levei a dependência da 1º para o 2º

ano, de três disciplinas, ‘né’? E levei do 2º para o 3º de uma. E no terceiro não consegui

me livrar dela, que foi Anatomia, e que acabei concluindo um ano depois.

Professor, o que se comumente se lia no curso de Educação Física? E

Mesmo no dia-a-dia, no cotidiano...?

Ah, a gente lia os ‘esporte’, os jornais da época, ‘né’? E a gente se ‘atia’ [ateia]

a, principalmente, na parte esportiva, ‘né’? Na faculdade, alguns livros, ‘né’? Eu fiz um

curso de voleibol em [19]77, depois eu fiz uma... Aquele tempo não era a pós-

graduação, né? Era um curso de especialização esportiva. Então eu fiz um curso de

especialização esportiva em Campinas, depois fiz um outro em Jundiaí; depois, em

243

[19]81, eu voltei a fazer outros, ‘né’? E a gente lia a matéria da época, ‘né’? Que a gente

tinha... não tinha um grande acervo, ‘né’? Mas alguma coisa tinha, então a gente

procurava recorrer a isso.

E isso contribuía pro dia-a-dia? Essas leituras que o senhor fazia?

Contribuía, sim. Porque, o que acontecia? Eu comecei a trabalhar dentro do

Estado, já em [19]77, e havia sempre os planejamentos, como tem agora, ‘né’? Só que

não com tanto material, mas, assim, um material [de] que a gente poderia lançar mão

pra nos orientar na nossas atividades.

E por que o senhor escolheu ser professor de Educação Física? Conte-me a

respeito.

Olha, a gente faz escolha muito cedo, ‘né’? Lógico que tem gente que se casa

com dezoito anos, e tem gente que se casa com quarenta. E tem aquele que não se casa.

Mesma coisa de uma faculdade: tem gente que se forma, não exerce, porque ele

descobriu que, mais tarde, não era aquilo que ele queria. Então, as ‘escolha’ são [feitas]

muito cedo. E, felizmente, eu estava ligado ao esporte da cidade, praticante. Me

envolvia já com uma participação de nível jundiaiense de futsal, ‘a’ nível de auxílio, e

isso aí foi me aproximando da educação física, e eu escolhi porque eu achei que eu ia

me dar bem, ‘né’? Na parte... Eu gosto da administração esportiva. Hoje eu tenho uma

carga bem maior dentro da administração esportiva, não mais como professor, mas

ainda tenho uma carga pequena como professor. Então, isso aí acho que me aproximou,

e eu posso me sentir feliz dentro da minha área. Eu acho que deu pra... Há 33 anos eu

sou formado, ‘né’? E deu pra trilhar um bom caminho aí.

E como e por que o senhor chegou ao ensino público? Fale um pouco sobre

isso.

É que, na época, a gente fazia a Educação Física, e nós tínhamos... o grande

leque era o ensino: ou você iria para o ensino particular ou para o ensino público. Não

tinha o número de academias que tem hoje. Os clubes, a grande maioria não tinha o seu

preparador físico, muito difícil; só os grandes clubes que tinham. Então o campo de

trabalho era restrito às entidades educacionais. Então tinha até algumas entidades

particulares que não tinham professor de educação física regular: ele tinha aquele

professor de educação física que ia dar aula aos sábados ‘prum’ grupo de alunos porque

244

dizia-se na época que não era turma... Nós tínhamos que constituir turma pra ministrar a

Educação Física. Então a administração das escolas ‘faziam’ alguma coisa que não

constituía as várias turmas – cinco, seis turmas –, constituía uma só. Então isso aí

diminuía muito o nosso campo de trabalho. E só tinha quase particularmente quase a

parte educacional.

O ensino público era o grande meio, não é?

Era o grande leque. Pagava-se bem, ‘tá’? Eu comecei a trabalhar no ensino

público em [19]77. Nós ganhávamos bem. Nós, que eu digo, o funcionalismo público,

os professores em si, ‘né’? Então isso aí chamava muito a atenção, entendeu? Pagava-se

bem melhor do que paga o particular hoje. O particular ‘tá’ pagando bem melhor do que

o Estado hoje, mas, naquela época, nós ganhávamos melhor que o particular.

Professor, além da licenciatura em Educação Física, o que o senhor fez

posteriormente pra contribuir com a formação profissional?

Eu sempre tive dois empregos, no mínimo. ([risos]) Tive mais, inclusive, ‘tá’?

[risos]

E eu atuei em clubes da cidade, ‘né’? Atuei por dez anos na Esportiva; quatro

anos no São João; um ano no Grêmio[?] e um ano no Clube de Jundiaí. Então além da

licenciatura eu fiz os cursos técnicos. Então eu tenho o curso técnico de futebol, de

futsal, de natação, de voleibol. Então eu desenvolvia paralelamente às atividades

educacionais na escola essas atividades nos clubes. E dentro do meu emprego público,

dentro da Prefeitura, a Prefeitura sempre disponibilizava oficinas, ‘né’? Pra gente se

especializar nos mais diversos segmentos. Trabalhei uma temporada no SESI também,

um ano e meio. O SESI também fazia capacitações.

Mais direcionado ao esporte?

O SESI, sim. Na parte educacional, a escola. A Prefeitura tinha um pouquinho

de cunho educacional.

No SESI era mais o esporte?

No SESI era mais o esporte. Houve aquele pool da ginástica corporal, em

[19]77, [19]78, ‘né’? E antigamente a mídia não era tão forte assim, então não era tão

245

cobrado. Então começou o SESI, acho que em Santo André, se não me engano, em

[19]73, [19]74, começou a fazer umas turmas de ginástica corporal. E eu cheguei a

trabalhar aqui no SESI em Jundiaí. Pra você ter uma idéia, a [trecho ininteligível]

quando inaugurou, em [19]77, à noite tinha trezentos alunos, toda noite, lá, fazendo

aulas com três ou quatro professores.

Professor, a partir de agora a gente vai falar um pouco sobre as políticas

públicas daquela época. Havia conhecimento da parte do senhor, na época, das

políticas públicas educacionais que permeavam ali a Educação Física no contexto

escolar?

Não, tinha... O conhecimento que a gente tinha mais é pedagógico, ‘né’? Mais

‘a’ nível de planejamento. Mas ‘a’ nível de políticas públicas...

Para a Educação Física escolar?

Não tinha...

E havia alguma diretriz pedagógica? Algo a ser seguido para a Educação

Física, na época?

Era muito baseado em termos de performance, ‘né’? De aptidão física. As aulas

praticamente eram exploradas nesse sentido, ‘né’? E tinham um cunho nem muito

pedagógico e nem muito didático. Era mais a aptidão física em si.

Mas tinha um livro ou alguma coisa para ser seguido?

Não, isso tinha. Isso tinha, um livro. As escolas tinham algumas revistas, que

era... se não me engano, já tinha CENP naquela época e já fornecia... CENP era o

Centro de Estudos e Normas Pedagógicas do Estado. Isso aí já desde, acho que, da

década... final da década de [19]70, acho que já tinha. Então ela emitia alguns anexos

que vinham com as várias disciplinas, ‘né’? Então era baseado naquela lá, pra você

fazer o seu planejamento.

Para a Educação Física não tinha?

Tinha. Isso tinha. Tinha lá uns livrão vermelho que a gente consultava, tá? Tinha

lá Plano de Aula, tinha lá algumas coisas assim.

246

E material pedagógico? Eles disponibilizavam algum material pedagógico –

no sentido teórico e prático? O senhor disse que havia um subsídio no sentido de

uma diretriz. Mas, assim como existe essa apostila hoje, naquela época havia

algum material pedagógico teórico e um prático – se é que a gente pode dizer assim

– que subsidiasse o senhor no dia-a-dia?

Teórico, nenhum. Nós tínhamos alguma coisa pra confecção do planejamento

em si. Depois disso, as aulas eram contra-turno, e a gente recebia os alunos, formava-se

as turmas, e era eminentemente prática, ‘tá’? O que acontecia? A escola tinha oito

classes. Então funcionava oito de manhã e oito à tarde, e a educação física, fora do

período. Às vezes, a escola não tinha nem quadra: fazia numa quadra do Município,

numa quadra de um clube, ou numa praça de jardim. Eu cheguei a ministrar aula em

praça de jardim, ‘né’? Então, o que acontecia, as aulas eram totalmente práticas, e,

quando chovia, no caso, os alunos nem iam, porque eram só prática. Nós não tínhamos

nenhum espaço na escola pra gente levar os alunos na escola pra fazer a parte prática,

tá? Isso foi um bom tempo, ‘né’? Isso aí foi durante uns quinze anos.

Era do mesmo jeito?

Isso, do mesmo jeito. Eu acho que, se não me falha a memória, acho que em

[19]96 que ela passou a fazer parte do currículo. Então a educação física [era] no

mesmo período. Porque antigamente era em contra-turno. Noventa e seis, não, acho que

foi antes. Acho que em noventa e quatro.

É, a lei é a partir de 1996, não é? Agora, antes disso já tivera se iniciado um

movimento para definir a educação física como disciplina, para não tê-la só como

prática...

Isso, é. Uma disciplina, isso.

Não é? Havia um movimento já. Em 1996 é que isso foi regulamentado pela

nova legislação educacional.

É.

Professor, nesse dia-a-dia da prática pedagógica a gente pode dizer que

havia uma autonomia para o senhor trabalhar? Conte-me a respeito.

247

Autonomia, sim. As escolas procuravam disponibilizar os materiais básicos da

educação física, ‘né’? Que são as bolas, ‘né’? E bastões, as cordas. Algumas, com um

pouquinho mais de infra-estrutura, nós chegamos a ter colchonetes, plintos, ‘né’? Mas,

basicamente, a aula era tocada com uma bola, até, ‘né’? Então autonomia total. O

professor tinha muita força na época, né? De qualquer disciplina.

De qualquer disciplina?

De qualquer disciplina. Nós éramos muito valorizados.

Professor, o senhor lembra de o governo estadual oferecer algum curso de

especialização, algo a respeito?

Eu acho que a partir da implantação das oficinas pedagógicas nas Diretorias de

Ensino – [que], se não me engano, foi entre [19]89, [19]90 –, a partir daí que começou a

aparecer.

Alguns cursos?

É, alguns cursos. Por quê? O que aconteceu? O Governo do Estado, ele tem a

CENP... Não, tem a CENP, não. Ele tem a COGESP, que ‘são’ as escolas da Grande

São Paulo. E depois, eles têm – agora me fugiu o nome –, que são de todas as... de todo

o estado, o restante, menos São Paulo. Então nós tínhamos as diretorias de ensino, que

congregavam vários municípios – que a nossa, aqui, ‘é’ oito municípios, ‘né’? Então

cada diretoria começou a criar a sua oficina pedagógica. Criou-se a CENP, ‘né’? E

depois a CENP foi criando, em cada diretoria, as oficinas pedagógicas. Então as

oficinas, no início, tinha dois, três professores, um de cada disciplina, depois foi

ampliando, ‘né’? Não teve professor... Geralmente, no início é português e matemática,

‘né’? Isso nem falta...

Não tem jeito, ‘né’? [riso]

Aí, depois começou a ‘vim’ o de história, o de ciências, educação física, artes.

Então foi contemplado?

Foi contemplado.

Isso, no final da década de [19]80, [19]90...

248

Não, eu acho que fim de [19]90. Mil novecentos e noventa, ‘tá’? Inclusive, eu

cheguei a trabalhar na Oficina Pedagógica de Jundiaí, por um período... Eu trabalhei de

[19]96 a 2000.

Professor, fazendo um recorte, nos atendo até mais ou menos 1985, que foi o

fim da Ditadura Militar: havia um controle do governo sobre a sua prática

pedagógica?

Nenhum.

Alguém que viesse, fiscalizasse? Algum militar, alguma coisa...? O que o

senhor diz a respeito.

Nada, nada.

Havia autonomia para trabalhar?

Autonomia total. A direção passava muito... algumas orientações, ‘que’ eu acho

que eles recebiam, porque o diretor sempre foi convocado pras reuniões. Era a nível de

Diretoria de Ensino, a nível de São Paulo, ‘né’? Então vinha muita orientação pra se

trabalhar: Ordem Unida, ‘né’? Foi muito sentido, assim. Mas, supervisionado, nenhum,

‘tá’? Nunca recebi a visita de nenhum membro da Diretoria de Ensino, nada. Militar...

Nenhum.

Professor, sobre a Educação Física: para o senhor, o que é a Educação

Física escolar?

O que acontece hoje... Eu vejo assim: as informações ‘tão’ muito... tão em tempo

real. Até mais forte, até, que isso. Então o aluno, ele vem pra escola quase que

desinteressado pelo que o professor ta ministrando lá, porque fora da escola, ele tem a

[trecho ininteligível]. Então ele se desinteressa na sala de aula, de ficar com a sua

atenção voltada para o professor. Mas ele fica lá durante cinqüenta minutos. Ou, às

vezes, fica até [durante] uma hora e quarenta, que são duas aulas; às vezes chega isso,

‘né’? Então, na hora da educação física, ele sai para a recreação, porque ele vai fazer

alguma coisa diferente, ele sai daquele... ele tem cinco aulas, ou quatro, lá, e depois tem

uma de educação física. Então, lá na educação física, como, hoje, a grande maioria [das

escolas] tem o espaço coberto...

249

Porque na nossa época, na época que nós ‘tamos’ abordando, ‘né’? De [19]80 a

[19]89, nós não tínhamos, às vezes nem quadra, ‘né’? Mas agora nós temos uma

possibilidade bem maior, e eu acho que o objetivo maior da educação física é trabalhar

o aluno como um todo – como um todo, que eu digo, com uma formação globalizada, e

procurando levá-lo a uma coordenação motora mais apurada, ‘né’? Trabalhar alguns

aspectos de... Hoje a gente sente muita dificuldade na cumplicidade, ‘né’? Porque

antigamente nós não tínhamos tantos muros, nós não tínhamos tantos carros na rua.

Então a gente tinha uma coordenação mais natural. Hoje, não. Hoje, com todos os

problemas que nós temos, os alunos ‘tão’ ficando cada vez mais dentro de casa...

Mais cercados, não é?

Mais cercados, e aí a gente tem que... Antes a gente trabalhava, mas a gente

recebia o aluno... inclusive, bem melhor. A gente só polia um pouco. Hoje, não: hoje

vem mais o bruto pra você tentar trabalhar isso.

E dentro da escola? O senhor acredita que a educação física foi e ainda

continua sendo importante?

Pra mim, ela é a mais importante das disciplinas, ‘né’? Mas eu não vejo isso dos

legisladores internos[?]. Não vejo isso dos diretores. São alguns diretores que acham

realmente, que acreditam que a educação física tem o mesmo valor que tem o português

e a matemática, essas duas disciplinas chaves, ‘né’? Eu acho que ela é... Não digo que

ela seja mais valorizada, mas ela tem um respaldo maior, ela tem um valor maior de

peso. Tanto é que nós somos atividade, ‘né’? Nós [trecho ininteligível], nós somos

atividade. Mas eu acho que mesmo dentro da atividade, não é? O respeito teria que ser

um pouquinho maior.

Comparando a época em que o senhor começou a atuar com a nossa, de

agora: o senhor acha que a valorização é diferente...?

O que acontece é que na época passada o professor era valorizado, independente

se era português, ‘né’? Da disciplina, que eu ‘tô’ falando. E agora, não. Agora, hoje, o

professor não está mais valorizado, não tem mais o respeito dos alunos, dos pais de

alunos, ‘né’? Antigamente era assim: a balança era dez contra e noventa a favor. Hoje

inverteu: hoje é dez a favor e noventa contra, ‘né’? Então, se o aluno vai mal, o pai acha

que o problema é o professor. Não é o problema o aluno. Isso é notório, só conversar

250

com os colegas aí, que [eles] falam. E o que acontece? E a educação física caiu um

pouquinho mais ainda. Então, dos 10%, eu acho que nós estamos com 5%, então –

digamos assim, sabe? Principalmente no ensino público. Eu acho que o particular, ele é

encarado de uma outra forma, ‘né’? O material tem sempre, as condições... Eu acho que

o particular... Nunca trabalhei no particular, também tem isso. Mas eu acho mais

adequado – pelos comentários que a gente tem de colegas, ‘né’?, [que] trabalham.

Professor, no dia-a-dia, na prática pedagógica da época: como se dava essa

prática pedagógica? O que o senhor trabalhava no dia-a-dia de aula? Conte-me a

repeito.

Olha, nós fazíamos o nosso planejamento bimestral. E dentro do bimestre era

explorado um esporte, ‘né?’ Que nem eu falei: muita Ordem[?] Unida[?], muita

performance, corridas, coordenação motora. O atletismo era bastante trabalhado como a

forma globalizada, e a gente trabalhava os esportes bimestrais. Então o futsal num

bimestre, o voleibol outro bimestre. O basquetebol, outro bimestre. O handebol, outro.

Sendo que sempre havia uma flexibilidade: nós estávamos dando o handebol, mas, de

vez em quando, precisava dar o futsal. Nós estávamos jogando o voleibol? Mas, de vez

em quando o futsal... Porque o futsal, o futebol como um todo, ‘né’? Ele é muito

requisitado, né? Ele é muito... Ele monopoliza...

Os alunos pediam futebol naquela época?

Pediam. Não tanto quanto pedem hoje, mas pediam, ‘né’? Mas eles aceitavam

numa boa quando você ministrasse outro esporte, não reclamavam. Nossa, a gente não

tinha rejeição. A turma de 30 alunos, na classe, 29 participavam. Hoje, de três alunos,

nós temos que, às vezes... 50% que participa, não é? E desses 50, 12... ‘Vamo’ supor:

desses 50%,, ‘vamo’ chutar aí, uns 60% querem futebol. E se você oferece uma outra

modalidade, tem alunos que não fazem, mesmo

Diminui ainda mais, não é?

É, mesmo você falando: “Não, depois nós vamos fazer um pouco”. Não, eles não

vão fazer. “Não, não quero”.

O senhor falou que trabalhava um esporte em cada bimestre, não é?

Isso.

251

O que o senhor tem a dizer sobre essa esportivização da educação física?

Qual o panorama que o senhor traça? Houve, não houve, foi bom, não foi? Fale

um pouco sobre isso.

Antigamente nós tínhamos muitas atividades esportivas: a diretoria, em conjunto

com a Prefeitura., nós tínhamos alguns torneios, que ‘era’ ‘chamado’ Torneio da

Primavera... Jogos da Primavera – e ‘tinha’ uns outros jogos que agora me fugiu. Então

a gente se preparava pra esses torneios. Hoje nós temos a Olimpíada Colegial, ‘né’? E

hoje a dificuldade é um pouquinho maior, porque envolve transporte, uma série de

coisas. E, na época, nem tanto, porque era muito mais fácil o deslocamento: não tinha

tanto carro na rua, coisa e tal, e o aluno, você falava pra ele que ia jogar... Só pra ter

uma base, assim: nós íamos jogar no Bispo, o aluno sabia onde ‘que’ era o Bispo, e ou o

pai levava ou ele ia a pé, sabe? Aluno de 5ª a 8ª Série, tranqüilamente. Hoje em dia, o

aluno da 8ª... Uma, que ele fala que não sabe onde ‘era’ o Bispo, e, outra, que ele, às

vezes, fala que não tem condições de ir, alguma coisa assim. Mas eu acho que essa

‘esportividade’ que se deu nas aulas de educação física, isso aí veio ‘a’ nível... Num

nível que nós não podemos dizer federal, né? Porque nós não tínhamos essa orientação

de... federal, mas ‘a’ nível estadual. [Por]Que tinha a Secretaria de Esportes do Estado,

que ela realizava os jogos regionais, jogos abertos. E o grande alimentador dessas

equipes de competição era o aluno do Estado.

Da escola?

Da escola do Estado. Tá? Então, o Ensino Médio ia até os seus 16 anos. E

depois disso ele ia pra seleção da cidade, tinha, geralmente, duas categorias, que era o

juvenil ou... Não, acho que era o infantil e o juvenil, e depois a categoria adulto. Então

saía muito aluno do Ensino Médio pra defender a seleção da cidade. Então, nesse

sentido.

Então essa esportivização da área... Na época, o senhor trabalhava

bimestralmente um esporte, era mais ou menos isso?

Isso.

Para a época, isso foi algo bom, ruim? O que o senhor tem a dizer?

Olha, eu...

252

Com relação ao senhor e aos alunos.

Isso. Eu acredito que foi bom. Por quê? Eu converso, hoje, com meus ex-alunos,

e eles chegam a comentar que eles ficaram com um legado que foi passado na época.

Eles sabem a importância da atividade física, ele sabe efetuar uma corrida; ele tem

noções gerais de vários esportes, ‘né’? Ele sabe utilizar as horas de lazer sabiamente; ele

sabe das coisas nocivas à saúde. E eles comentam, alguns, que hoje, na escola, nós

‘tamo’ muito longe disso. Então, o que acontece [é] que eu acho que essa performance

que nós trabalhávamos na época, eu acho que ficou um legado aí de bom, porque se eles

tão lembrando disso é porque...

Porque deu resultado, não é?

Deu resultado na época. Porque eu acho que o professor tem obrigação de

passar, ele tem que acrescentar ao conteúdo [para o] que o aluno vem pra escola. Agora,

às vezes, o que a gente nota também é que o aluno não quer mais nenhum conteúdo,

‘né’? Ele acha que [com] o que ele tem já ‘tá’ 100%. Então você vai corrigir um aluno

hoje, ‘cê’ arruma briga. ‘Que’ eles acham que o que eles ‘sabe’ já ‘tá’ bom. Diferente da

nossa época, que você corrigia e o aluno falava “obrigado”. Hoje, não, ele... [riso] Além

de você tentar corrigir e não conseguir, eles te mandam tomar no... (palavra

inapropriada) com uma facilidade, assim, enorme, viu? ‘Procê’ ter uma idéia.

Eu imagino.

Não sei se você ‘tá’ longe da prática, ‘né’?...

Não, eu dou aula ainda.

Ah, ‘cê’ dá aula ainda?

Só que eu dou para os pequenininhos, não é? Trabalho na Prefeitura de

Várzea, aqui. Mas eu fui professor do Estado, eu dei aula em Francisco Morato,

então eu sei como é. [riso]

Sabe qual é a realidade, ‘né’? Então é...

Sei, sei. Que é diferente de tudo que a gente lê, muitas vezes, não é? Você

vem para a prática e se depara com uma situação que... É desanimador, não é?

253

É.

Totalmente desanimador. Mas...

Professor, quem e como se definiam os conteúdos com os quais o senhor

trabalhava? Era o senhor mesmo quem fazia? O senhor disse que existia um plano

para que vocês fizessem os planejamentos. Mas esses conteúdos bimestrais, quem

definia isso?

‘Quem’ definia ‘era’ as condições da escola. Se nós tínhamos uma quadra

polivalente e nós tínhamos a tabela de basquete e os postes de voleibol, então nós íamos

ministrar o voleibol e o basquetebol. Eu dei aula durante quase dez anos, na escola

Rafael Mauro, que era um chão batido. Então ali não dava pra dar basquete. Primeiro,

porque não tinha tabela, ‘né’? Mas o voleibol dava pra dar, porque nós improvisamos

dois postes, e a gente amarrava a rede, lá, pra dar. E dava pra dar o futsal e o handebol.

E, que nem eu falei, o atletismo sempre... a ginástica corporal, sempre. Então [era de

acordo com] as condições da escola. Eu dei aula durante um ano numa escola, João

Mendes de Campos, que eu dava aula num terreno baldio. Quer dizer, ali eu só dava

queimada e futebol, não dava pra dar outra coisa, ‘né’? E um pouquinho de handebol,

pouca coisa, porque como eles não conheciam, ‘né’? Às vezes, a gente vai passando, vai

tentando. Então, as condições da época, da própria escola que norteavam a nossa.

E o “como fazer”? Se o senhor propõe o basquete num lugar que é possível

o basquete, a metodologia, o “como fazer”, quem é que propunha, quem

planejava?

Aí, o professor tinha que ir à luta, ‘né’? Eu sempre tive uma biblioteca com

todos os esportes, ‘né’? Eu ‘tava’ sempre consultando os livros: o voleibol, o

basquetebol, o handebol, o atletismo.

Então era o senhor mesmo quem planejava isso?

Isso. Às vezes, na escola, até tinha. Eu cheguei a [trabalhar em] escola de ter um

ou dois exemplares, mas algumas não tinham nada. Então o professor tinha que ter. E o

que facilitava é que... Como eu trabalhei em vários locais, ‘né’? Trabalhava na

Prefeitura, que tinha um certo acervo, trabalhei no SESC, que também tinha outro

acervo... Então isso aí possibilitava ‘d’a’ gente ‘tá’ sempre interagindo com os colegas e

procurando diversificar a aula e sempre alimentando com mais opções, ‘né’?

254

E as avaliações, professor? Havia avaliação nessa época? Se havia, como

eram feitas?

Olha, eu fazia avaliações práticas, ‘tá’? Eu passava noções de regras, ‘né’? Mas

nunca fiz uma prova escrita, ‘né’? Fazia os testes práticos que tinha na época, ‘né’? De

flexibilidade...

Aptidão física.

Aptidão física. Puramente, ‘tá’? E fazia alguns testes ‘a’ nível do esporte que nós

estamos desenvolvendo, ‘né’? Então o basquetebol: fazia uma avaliação de bandeja.

Não o número de acertos, mas a prática pedagógica. No voleibol: a manchete, o

levantamento, o saque. O arremesso do handebol, uma defesa do handebol com o pé.

Então é uma atividade prática, nós temos uma avaliação prática nesse sentido. E eu

sempre avaliei, também, os alunos por freqüência, ‘né’? Já que eles iam e faziam aula

mesmo. Então a atividade contava muito aí, eu acho.

E o senhor atribuía alguma nota?

Deixa eu tentar puxar pela memória aqui.

[riso]

Eu acho que não tinha. Eu desconfio que não. Até essa década, essa parte aí não

tinha. Eu acho que foi, isso aí, depois da implantação, em [19]93, [19]94, que aí que

começou a ter.

Começou a ter?

Ter uma nota aí. O que a gente tinha que passar era a freqüência dos alunos. Se

ele estava ausente ou freqüente.

A chamada sempre houve?

A chamada sempre existiu. Mas a menção não tinha não. Porque nós passamos

já [por] várias épocas de letras, ‘né’?

Números, não é?

Números.

255

Tem de tudo. Letra, número... [risos]

É, tinha o conceito A, B, C e D e tinha um outro tipo de conceito também, que...

Agora me fugiu um pouquinho, mas eu lembro que tinha um outro também, ‘tá’?

E os alunos, professor? Como eles se manifestavam a respeito da Educação

Física, na época?

Olha, eu tinha alunos... que ele era da terceira turma e ele vinha na primeira. Ele

vinha na primeira por quê? Porque às vezes nós estávamos com um número... ‘Vamo’

supor, 29... ‘Vamo’ supor, agora: então, fazia parte de ginástica, de atletismo, e depois

nós íamos fazer o basquete ou o futsal, que era ‘divididos’ em equipes de cinco. Aí,

faltava um. Aí, ele participava, aquele que ‘tava’ de fora. E a participação era muito

grande, muito grande. E a satisfação também. Porque nós tínhamos uma rejeição muito

pequena, muito pequena.

Eles gostavam?

Gostavam, gostavam.

Então, a educação física, para eles, era aparentemente muito boa?

É, porque não tinha tanto o lazer, ‘né’? As opções de lazer eram pequenas, não

é? Eles se restringiam mais a uma quadra, a uma bola, à aula de educação física, ‘né’?

Não tinha essa gama que tem hoje de clubes, com toda essa infra-estrutura, não

tínhamos o SESI[?], os parques, ‘né’? Não tinha o vídeo-game. Era quintal de casa e

escola, aula de educação física.

E os professores, a direção? A comunidade, no geral? Como eles viam a

educação física? Fale um pouco sobre.

Olha, os pais, eu acho que viam com bons olhos, ‘né’? A direção, a grande

maioria. Mesmo aqueles que não davam tanta importância, mas eles viam... eles tinham

um certo, um bom conceito. A grande maioria, eu acho que viam com bons olhos.

E os professores?

Os professores de outras disciplinas, não é?

256

Sim.

O que acontecia é que porque a gente trabalhava no contra-turno, então nós não

tínhamos o HTPC – que hoje nós temos, essa integração, ‘né’? Então às vezes a gente

encontrava com os professores na escolha de aula, em fevereiro, e depois, no final do

ano, no encerramento.

Não tinha muito contato?

É, nós tínhamos contato com os professores das outras salas, ‘né’? Porque

funcionava assim: de 1ª a 4ª, um período, e de 5ª a 8ª, outro período. Então, se eu dava

aula à tarde numa escola é porque o período da manhã funcionava de 5ª à 8ª, e dava aula

à tarde, e vice-versa. Então o contato era pequeno.

Professor, fazendo uma comparação: como o senhor compreende a

educação física escolar do final da década de 1970 e 1980 com a de hoje em dia –

uma vez que o senhor atuou e ainda atua? Dá para estabelecer uma comparação

entre o que era e o que é?

Olha, eu acho que tudo é uma questão de formação. Antigamente o aluno era

diferente, ele era participativo. Qualquer disciplina que você fosse ministrar pra ele –

português, matemática, história, geografia, artes, educação física... E dentro da educação

física, no nosso caso: se fosse ministrar handebol, basquete, voleibol, atletismo, ele

participava e participava com vontade. Hoje... E por que isso aí? Desculpa. Nós

tínhamos uma formação de respeito à família muito grande. Os nossos pais foram

bastante rígidos, então a gente guardava isso daí... E os alunos vinham desses pais, ‘né’?

Agora nós estamos com uns alunos de 15 anos com pais que, alguns, não foram nem

nossos alunos, então foi uma outra formação que veio com a democracia, com a

abertura, com o fim da Ditadura. Os pais foram mais flexíveis. Hoje nós ouvimos de

pais que não conseguem mais ter autonomia sobre o filho, não [conseguem] ter mais

autoridade sobre o filho. E na época nós tínhamos total autoridade sobre os alunos –

imagine, então, de um pai para um aluno: muito maior. Então a grande diferença, eu

acho que está nisso daí, ‘tá’ na família: a família, hoje em dia, ‘tá’ muito longe do filho,

[e], consequentemente, longe da escola. E não ajudam mais o professor na escolaridade

do filho. Hoje, particularmente, a escola é quase que um depósito de criança, ‘né’? O

pai vem, deixa o filho, e, chega no final do ano, nem sabe se o filho passou. O ano

passado eu tive um... recebi um pai, veio pra reunião da filha de 8ª Série, eu era o

257

coordenador da sala: “Mas a sua filha não está comigo” / “Não, está. Ela falou”. O ano

passado ela estava na 7ª e ela tinha repetido de ano. E o pai não ‘tava’ sabendo que ela

tinha repetido de ano. Então eu acho que a grande mudança é, realmente, a família

muito longe, ‘né’? E essa democracia muito aberta, que foi passada, que... E aí, agora,

nós ‘tamos’ colhendo os frutos, e nós ‘temo’ que correr atrás.

E a mudança na educação, ela não ocorre de um dia pra noite, ‘né’? As coisas

estão ficando cada vez piores. Eu acho que nós precisamos rever os nossos conceitos

pra tentar reverter o quadro, mas à longa data – não é pro ano que vem, não é 2012. Eu

acho que é alguma coisa de 2015 pra 2020 pra ter alguma modificação nesse sentido. Eu

acho que o que contribuiu também, muito, pra que se tornasse isso foi a implantação,

pelo Governo do Estado, dessa não repetência. Então, essa promoção automática... O

que acontecia? O professor tinha um trunfo na mão, que era a repetência. Alguns

usavam isso excessivamente, ‘né’? Outros, não. E agora, ele veio, e abriu geral. Então

isso daí eu acho que contribuiu muito. O aluno, vindo na escola, ele passa de ano, não

precisa ter mais os conceitos. E há questão de três anos só que mudou, que agora, na 8ª

Série, ele tem que ter conceito e freqüência, mas até a 8ª Série, ele não precisa ter. Então

o aluno, ele fica sete anos na escola passando automaticamente, não é na 8ª Série que

ele vai estudar. Ele não aprendeu a estudar na 1ª, na 3ª, na 5ª, na 7ª, ele não vai aprender

na 8ª. Então a família tem que ‘tá’ bem perto disso. Então, acho que o Governo precisa

mudar algumas normas... Inclusive, tem um candidato do PT apregoando essa mudança,

‘né’? O fim da repetência. Não é o meu partido, ‘né’? Mas é interessante essa proposta

dele. Eu acho que isso seria um dos caminhos pra gente tentar reverter o quadro, tentar

recuperar um pouquinho a Educação.

Professor, se a gente fizer uma comparação entre a época da Ditadura – que

o senhor falou que tinha autonomia pra trabalhar – e agora: ainda há essa

autonomia? Como é que o Governo de agora trata essa questão especificamente da

Educação Física? A autonomia é a mesma? É menor, é maior? Como o senhor vê,

se a gente fizer uma comparação entre esses dois períodos?

O Governo, lógico que vai... ele tenta soluções, não é? Esse Governo atual, ele

implantou os livretos que nós temos que seguir. Então tem o livreto de educação física,

tem o de português... tem o conteúdo que nós temos que dar ‘pros’ alunos. Ele é

flexível, ‘tá’? Então, eu acho que isso aí é um subsídio a mais pro professor dar. ‘A’

nível de trabalho, eu acho que agora a cobrança é um pouquinho maior, porque nós

258

temos a coordenadora pedagógica. A coordenadora pedagógica tem o grupo de gestores

da Diretoria de Ensino, que faz uma cobrança sobre ela, e ela reflete no professor.

Então, em termos de cobrança, eu acho que agora é maior. O subsídio passado também

é maior, só que agora nós temos um “contra” muito grande, que é o aluno

desinteressado. Antigamente nós tínhamos o aluno interessado e o material menor. Mas

a gente conseguia passar mais. E agora nós temos esse subsídio, nós temos a orientação,

nós temos a cobrança, só que o aluno [está] totalmente desinteressado. Hoje eu ouço os

professores, os colegas falarem que a maioria dos alunos ‘ficam’ de costa para o

professor, fazendo outras coisas. Quer dizer, o professor precisa circular, ‘se’ interagir

mais com os alunos para tentar uma nova forma de se aprender, de se passar um

conteúdo ‘pros’ alunos.

O senhor falou em cobrança. É dito que na época da ditadura não havia

essa cobrança, e que hoje há. O senhor vê isso como positivo ou negativo? Conte-

me um pouco sobre isso.

Eu vejo como positivo. Por quê? Eu sempre trabalhei também na entidade

privada, e a entidade privada também te faz essa cobrança. Então eu acho que só... se

nós recebermos pelo que nós fazemos, tem que haver uma cobrança. Então eu acho

salutar, mas desde que seja fundamentada; essa cobrança tem que ser fundamentada,

tem que ‘vim’ com diretrizes, com normas, pra gente poder seguir. Então eu não acho

ruim que ela aconteça, ‘né’? Eu acho interessante.

Professor, para encerrar a nossa entrevista de hoje, eu gostaria que o

senhor dissesse algumas palavras sobre o panorama da educação física, essa área

que escolhemos pra trabalhar e que nos dá o ganha-pão. Apesar dos pesares, há

coisas que são muito gratificantes nessa área, e que acho que são específicas da

Educação Física. Então eu gostaria que o senhor deixasse as últimas palavras para

nós encerrarmos nossa entrevista de hoje.

Olha, eu acho que o campo da Educação Física abriu muito. Hoje nós temos

várias academias. Hoje, se você vai ‘no’ médico com uma dor de cabeça, ele fala pra

você fazer atividade física. Se você vai lá com uma dor nas ‘costa’, idem. E assim

sucessivamente. A mídia, ela cobra muito – apesar ‘que’ ela enaltece muito a beleza.

Ela não enaltece a saúde do indivíduo, do ser humano, ela enaltece a beleza. Então isso

aí ainda ‘tá’ um pouquinho errado. Mas tudo com o cunho de plástica, de performance,

259

de atividade física, de saúde, ‘né’? Aquele slogan de que o esporte é a saúde, a gente

sabe que o esporte no rendimento não é a saúde nunca, ‘né’? Ele até é quase um crime

pra saúde. Mas eu acho que o legado que fica é muito importante, ‘né’? O espaço entre

o professor e o aluno, principalmente na nossa área, é muito pequeno. Então nós temos

essa facilidade. Nosso aluno, aonde ele te vê na rua, a grande maioria te reconhece, vem

falar um “oi”, te dá um abraço. Quando você... Antigamente era maior ainda, mas

quando você chegava numa classe: “Educação Física”... Os alunos pulavam! Hoje já

não pulam tanto, mas ainda pulam. [riso]

[risos]

É diferente de uma outra disciplina, que eles torcem a orelha, torcem o nariz

quando fala que é outro professor. Quando você falta... Aluno, se falta um professor de

uma outra disciplina, ele não ‘tá’ nem aí, no outro dia, tudo bem. Se você faltar, quando

você chega o aluno vai perguntar: “Por que ‘que’ você faltou?”, “Como que você

faltou?” Então eu acho que essa proximidade com o aluno é muito gratificante. E é bom

também, depois, você ouvir alguns ex-alunos, ‘né’? Às vezes eles são os seus ex-alunos

e são seus atuais colegas, ‘né’? Que: “Puxa, foi muito gratificante os momentos que

passamos, os conhecimentos que adquirimos”, tal. Então isso é o que mais fica na nossa

memória.

Muito obrigado, professor. Encerramos aqui a nossa entrevista com o

professor (E).

FIM DA ENTREVISTA

260

ENTREVISTA COM PROFESSOR F

Fica tranquilo.

Boa tarde. Estamos aqui com o professor Júlio pra iniciar mais uma entrevista que

compreende nosso objeto de estudo, que pretende investigar como foram as

práticas pedagógicas dos professores de educação física durante o Regime Militar.

[...] Um minuto para a presença do professor, por favor. [...]

‘Vamo’ lá.

Tudo bem, professor?

‘Vamo’ lá.

Então, vamos lá. Professor, pra iniciar nosso bate-papo, nosso trabalho de

pesquisa, eu gostaria de saber sobre como foi o processo de escolarização do

senhor. Como foi essa jornada escolar do senhor, antes da faculdade?

É, eu saí ‘dum’ colégio técnico, ‘né’? Fui trabalhar... Eu estudava numa escola de... de

freira, ‘né’? No São José dos Campos, fiz o Segundo Grau lá. E aí vim pra Jundiaí

terminar o Segundo Grau. Fiz o 1º Ano lá, vim fazer o 2º e 3º aqui. Aí, chegou aqui, eu

tive uma dificuldade de carga de disciplinas, então eu só pude ir ‘prum’ colégio técnico.

E aí eu fui ‘po’ Gandra fazer Desenho Mecânico. Daí eu fiquei dois anos lá fazendo

Desenho Mecânico, e aí, no último ano, que surgiu essa oportunidade d’eu ir fazer

Educação Física.

Isso por volta de que ano, professor?

[19]78.

Setenta e oito?

Mil novecentos e setenta e oito.

E a partir disso, então, o senhor ingressou na faculdade de Educação Física?

É, aí, como é que foi a história, ‘né’? Nós estávamos no último ano. Nós éramos um

grupo de cinco, seis amigos, bem ‘próximo’, ‘né’? E aí, todo mundo ficou: “Poxa, o que

‘que’ nós vamos fazer? Nós vamos fazer o 4º Ano técnico?” – que, daí, você saía com o

diploma de técnico...

261

Técnico em quê?

Em Mecânica, em Desenho Mecânico.

Em Desenho Mecânico, ok.

O curso, tinha Desenho Mecânico, Mecânico e tinha mais um outro lá: Nutrição, tal... E

aí a gente começou: “Poxa, por que ‘que’ nós vamos fazer um 4º Ano? Pra que ‘que’

serve um 4º Ano Colegial, ‘né’? O[?] legal[?] é entrar pra faculdade. E aí, nesse bate-

papo, um dos meninos falou assim: “‘Pô, tem uma tal de faculdade lá que é de Educação

Física, que é pra jogar bola”

[risos]

Né? Aí, todo mundo achou gozado: “Poxa, mas, como assim jogar bola, ‘né’?” / “Não, é

faculdade de Educação Física, mas tem só esporte, tal...” E a gente era fanático por

esporte, a gente jogava bola direto nesse grupo, ‘né’? Aí, eu falei: “Ah, então eu vou lá

pegar as informações, depois a gente conversa”. Aí, chegamos lá, nós ficamos sabendo

que havia mais vagas do que inscritos: na época eram 120 vagas e eu fui... O meu

número da inscrição era o número 72. Então os quatro, ‘né’? Os quatro amigos que

estavam fazendo curso técnico, fomos fazer o vestibular de Educação Física, porque a

gente sabia que a gente não podia zerar. Se a gente zerasse, a gente... ‘Né’? Então nós

arriscamos uma única faculdade. Se a gente não entrasse, desse algum problema, nós

retornaríamos pro 4º Ano Técnico, teríamos feito um curso técnico, completo, de 4 anos

– que na época era, assim, muito bom: você conseguia um emprego em empresa, e tal. E

aí nós fizemos... chegamos lá, nós fizemos um vestibular, os quatro entramos, ‘né’?

Nenhum dos quatro tirou zero, não sei o quê. E nós conseguimos a média pra entrar e

nós começamos a faculdade juntos, os quatro. Mas logo no primeiro ano a gente já se

perdeu, ‘né’? Esse vínculo: que aí, um começou a trabalhar num lugar, outro, no outro, e

aí a gente não... Dos quatro, realmente quem se formou foram dois, eu e o Hélvio, que

era um outro amigo da gente... Que a gente se formou em Educação Física. O restante já

abandonou a faculdade porque arrumou um emprego melhor ou já ‘tava’ num emprego

melhor. Então... e aí que começou toda a história, ‘né’? Da Educação Física.

262

E, já dentro dessa faculdade de Educação Física escolhida pelo senhor, o que o

senhor costumava ler? Qual era a leitura que permeava o contexto da faculdade?

Ela contribuiu de alguma forma para a formação acadêmica do senhor?

É, veja só, quando nós... Nós tínhamos essa idéia, realmente, de que nós íamos fazer

esporte, que a gente ia jogar bola o dia inteiro.

Assim como eu, também. [risos]

É, a gente imaginou que era isso, que era a farra do boi, ‘né’? E quando você começa a

ver a grade, ‘né’? Então a gente começou... então a gente começou... Por exemplo, uma

das matérias que deixou a gente, assim, impressionado era anatomia, que anatomia, era

da faculdade de medicina, e a gente mexia nos cadáveres, entendeu? A gente ficou...

uma coisa que ninguém imaginava que ia acontecer, ‘né’? Dentro da Educação Física...

o que que tem a Educação Física a ver com cadáver, ‘né’? E aí, até, a gente levava meio

na brincadeira essa disciplina, porque a gente achou que não tinha nada a ver com a

gente. E aí, quando você começa a, realmente, ver a importância, ‘né’? Da anatomia

dentro da educação física, e aí a gente começou a ter aula, ‘né’? Lá dentro, mexendo na

musculatura, vendo, realmente, o que era o corpo humano de uma forma maior, ‘né’?

Então foi uma experiência marcante, assim, na vida da gente, lá.

Contribuiu, então?

Contribuiu muito, ‘né’? Porque você começa a ter um... uma visão, ‘né’? Do que é jogar

bola, do que é fazer atividade física e, depois, o que é realmente o esporte, ‘né’? Porque

na época a Educação Física realmente ‘tava’ focada em preparar profissionais pras

escolas estaduais e particulares – esse era o foco da ESEF, ‘né’? Quer dizer, esse era o

foco, talvez, da... [talvez] a própria instituição não tivesse essa visão. Mas nós, como

alunos, nós víamos esses campos de trabalho: técnico de modalidade, e escola estadual.

Essa era a visão. A visão de academia, na época, era muito pequena, muito restrita. Os

esportes não formais, como... Eu, por exemplo, fiz um curso de squash, então cheguei

com o squash aqui em Jundiaí, e ninguém sabia o que era o squash, e aí se perdeu no

tempo, ‘né’? Eu fui o primeiro professor de squash de Jundiaí – ninguém jogava, não

sabia nem o que era squash. Eu fui pra São Paulo, me aperfeiçoei no squash, tal,

cheguei, quase, a ter uma academia em Jundiaí, na época, na época de [19]82 mais ou

menos... [19]81. Mas depois não deu certo, tal, e... Acho que o momento não era do

squash, o squash não era um esporte visto da qualidade que é... “Ah, quem não gosta de

263

tênis, joga squash, ‘né’? E não é, são dois esportes completamente ‘diferente’, ‘né’?

Quer dizer, vinte minutos de squash corresponde a três horas de tênis. Quer dizer...

Então, tanto é que, num SPA aqui em Cabreúva[?], eles têm o squash, porque o

consumo de caloria é excelente, ‘né’? Eles forçam[?], porque, realmente, o cara, ao

invés de caminhar 10 km, ele joga vinte minutos de squash, ‘né’? Então tem esse lado.

E aí começou, realmente, uma outra visão de Educação Física, ‘né’?

A partir do momento que o senhor começou a cursar, então...?

Exatamente.

...as leituras que eram exigidas, no próprio curso, contribuíram, então, de certa

forma...?

Sim. E Jundiaí tava no ápice, ‘né’? Na época do basquete feminino, ‘né’? Com Paula,

Hortência. Então Jundiaí[?] era, assim... Diariamente ‘cê’ cruzava com elas no Bolão,

entendeu? Então o esporte de alto rendimento, que a gente chama de alto rendimento, na

época... Mauri, Marcel... Quer dizer, nós tínhamos, assim, uma nata do esporte, além

das modalidades individuais, ‘né’? O atletismo, por exemplo, nosso, era muito forte.

Então realmente a gente tinha essa perspectiva de que haveria um campo de trabalho,

‘né’? Principalmente nas escolas estaduais, que era o maior número de escolas – as

escolas do município eram muito pequenas... pequenas, não, era um número reduzido –

e não tinha Educação Física na grade curricular do Ensino Básico, ‘né’? E hoje tem a

educação do movimento – na época não tinha nada, ‘né’? Então a gente não visualizava

como campo de trabalho, a visualização veio, realmente, nas escolas estaduais, que era,

na época, o ápice, ‘né’? Quer dizer, o professor... Por exemplo, o Professor Hélio

Macia[?] veio de escola estadual, do Vicente Genovês[?] . Aí, depois, Bisolli[?]... Todo

mundo passou: Batista, Bisolli[?], Bagigia[?]. Todos os grandes professores da época,

eles vieram de escola do Estado, ‘né’?

Sim.

Que aí começou a desenvolver um departamento de esportes – não sei se você chegou a

ver isso: a Inspetoria Regional do Esporte.

Não.

264

Então campeonatos: o Estado dividiu os municípios em oito regiões. Eu não lembro se

na época ‘era’ oito, ‘né’? Dividiu em regiões. Então, por exemplo: Jundiaí, Itatiba,

Louveira, Campo Limpo, Várzea é a região 10. Então, pra essa região, tem um inspetor,

tem um... Então o que o Estado fazia? Tirava o professor de Educação Física da quadra

de uma escola e colocava na Inspetoria, e colocava um substituto na... Por exemplo: eu

era efetivo... Não é o meu caso. O Bisolli[?] era efetivo do Conde de Paranaíba. Então o

Bisolli[?] foi pra Inspetoria e o Estado colocou o César, que era o professor que tinha

maior numero de pontos, escolheu, enfim, o seu substituto. Então era assim que

funcionava. Então foi um momento muito forte, que a gente tinha muito local pra fazer

estágio, a gente apitava jogo, a gente acompanhava a recreação... A Prefeitura, nesse

momento, ela era pequena proporcionalmente; hoje o Estado não tem ação nenhuma

mais, ‘né’? Virou uma panelinha de profissionais que a Inspetoria, realmente, não tem

força nenhuma, hoje. Mas, na época, os campeonatos colegiais e...

Não tem comparação mais...

É. Nossa, a gente ia pro Bolão apitar jogo. Então... Bom, foi um dos momentos

especiais aí, realmente, onde a gente participava como professor, depois que eu entrei,

‘né’? Em [19]80, que... final de [19]79 que eu fui pra escola do Estado. Que aí

começou, realmente, a eu ter maior contato com o pessoal da Inspetoria, de jogos,

‘campeonato’ colegiais – foi muito legal, foi uma coisa...

Professor, vou fazer uma pergunta...

‘Cê’ pode perguntar o que ‘cê’ quiser, não tem problema, não.

Não, é que é uma pergunta complexa e simples ao mesmo tempo, não é? Como é

que o senhor escolheu ser professor de Educação Física Escolar?

É, eu não escolhi, aconteceu isso, entendeu? Acho que algumas coisas acontecem na

vida da gente que a gente não tem... não é a gente que escolhe. Depois que você sentiu

que você avalia se aquilo te serve ou não. Então, por exemplo, eu fui técnico da Seleção

de Jundiaí de Handebol: eu não quero isso pra mim ‘má’ nem de graça, ‘né’? Porque

hoje eu tenho uma visão diferenciada daquela época. O que ‘que’ é diferenciada? Por

exemplo, graças a Deus nunca capotou nenhuma perua com os ‘filho’ dos outros sob

minha responsabilidade. Nós nunca tivemos uma briga feia que tivéssemos que dar tapa,

265

‘né’? Aluno seu machucado, atleta ferido em competição. Não que o esporte seja isso.

Mas o professor que tem na sua bagagem a parte pedagógica, a parte educacional, ele,

chega um momento que ele não quer mais competir, entendeu? Não que a competição

não faça parte do nosso dia, a gente vive em competição diariamente, mas a competição

de performance, ela ultrapassa os limites da educação, ultrapassa os limites da índole,

‘né’? ‘Vamo’ falar... Ele ultrapassa os limites, porque você... Quando ‘cê’ agride um

árbitro, você passou dos limites, ‘né’? O caso do Neymar, por exemplo. O que o

Neymar fez, independente de ele ‘tá’ certo, errado, ‘tá’ sob pressão ou não, ficou uma

imagem muito ruim, ‘né’? E o técnico também teve uma imagem ruim quando reagiu,

‘né’? Aquela... aquele bate-boca no campo, que ele saiu, e aparece o técnico xingando

ele, apesar de ele ter sido xingado o capitão da equipe.

Então, quando você ‘tá’ buscando performance, resultado, você perde. Mas é depois de

você vivenciar isso que você decide. Não tem como você falar assim: “Não, eu vou ser

técnico” Não, não nasce na gente ser técnico, nasce a experiência, a oportunidade que

‘cê’ teve de vivenciar. Algumas vezes eu me perguntei: O que ‘que’ eu ‘tô’ fazendo

aqui? Em Pirassununga, por exemplo: eu levei... Nós ‘ficamo’ campeão regional. O

Nelson, o Professor Nelson[?] ficou campeão regional com o time de handebol da

escola. E ele não podia ir. Não lembro, na época, se ele ‘tava’ doente, tal, e a gente

trabalhava tudo junto. E ele falou: “Julio, ‘cê’ precisa levar o time pra Pirassununga...” /

Eu falei: ‘Pô’, Nelson, mas eu vou sozinho pra Pirassununga, com os meninos – tudo

moleque de 16 anos, 17. P... (palavra inapropriada para trascrição) responsabilidade”,

tal, tal, e tal. / “Não, ‘cê’ tem que ir, tal” E eu fui. Foi uma experiência muito boa:

‘ficamo’ vice-campeão estadual, uma coisa fantástica. Mas é uma coisa que eu não

quero mais pra mim. Eu não conseguia dormir de preocupação, se os meninos ‘tavam’

lá, entendeu? Aí, quando eu fui ser secretário de esportes, aí, ‘né’? – passando um

pouco pra frente –, aí que eu tive que mostrar realmente que aquilo lá é...

Então, por exemplo, tinha um menino do atletismo... Só citando... Nós fomos ‘pa’

Sorocaba, Jogos Regionais de Sorocaba – [ou seriam] jogos abertos?... Regionais. E nós

ficamos em uma escola em frente de uma festa junina. E o pessoal do atletismo – os

‘negão’, tudo forte, tal: “Ô, ‘vamo’ lá na festa”. A gente, como dirigente, libera. O atleta

que tem que saber se pode beber ou não, ‘né’? Agora, eu beber um litro e você beber um

copo, os efeitos ‘pode’ ser diferentes. Às vezes ‘cê’ pode ficar pior do que eu, certo? E

aconteceu isso: um menino de 16 anos foi lá e tomou um copo de vinho porque os

outros forçarem ele tomar – isso é coisa de molecada, ‘né’? E aí, o moleque vomitou.

266

Chegou no alojamento e vomitou, pápápá. E eu só sabendo... Daí, nosso enfermeiro foi

lá.na, deu lá um sossega leão pra ele, pápápá, ele dormiu. No outro dia, ele tinha uma

prova: garantido pra Jundiaí duas medalhas de ouro, garantido pelos resultados, ‘né’?

Que ele teria que fazer. Ele não competiu: ele pegou a mala dele e eu mandei ele

embora, entendeu? Então, você, como dirigente... Mudou o meu lado.

Sim.

Eu não podia... Todo mundo ficou sabendo que ele tava bêbado, que ele ficou bêbado –

com um copo de ou com um litro, não faz diferença. Mas eu tive que chegar e falar

assim: “Não. Não vai, não dá. Eu perco as duas medalhas, mas você não compete. Daí,

peguei uma perua, mandei ele de volta com a família dele pra cá. Não sei se isso serviu

como lição pra ele ou não. Mas ele era muito jovem também. Depois eu fiquei um

pouco arrependido, porque ‘cê’ via que não tinha maldade, mas é que, ‘cê’ vai numa

festa junina: vinho quente, vinho quente... Só que, às vezes, um litro, pra mim, não faz

efeito, e pra você, ‘né’?...

Sim.

Mas isso eu aprendi muito, ‘né’? De disciplina, de organização, de preocupação. Uma

vez nós ‘távamos’ num outro município que eu não lembro qual é que era o nome, o

moleque, ele sumiu: arrumou uma namoradinha, e o moleque sumiu.

[riso]

E a gente atrás dele, atrás dele, ‘tátátá. De repente ele surge, lá, dez e meia da noite,

contando prosa: “Porque isso[?] aqui[?], ‘tátátá’” Contando pra todo mundo. E eu só,

como chefe da delegação, ouvindo, ‘né’? Que é Jogos da Juventude [riso]. O moleque

não pode sair do... Sem... Não pode sair. Não comunicou, não comunicou ninguém.

Comunicou os ‘amigo’, que que deram uma segurada, ‘né’? Aí, quando ele chegou, dez

e meia, eu peguei a mala dele, onze ‘hora’ o motorista trouxe ele embora pra Jundiaí.

Ele não acreditou, ‘né’? Ele achou que não era... Entendeu? Mas ou você é ou você não

é, entendeu? Não dá pra ser meio termo, ‘né’?

Você[?] entra[?] com[?] o[?] esporte educacional, não é?

Isso. Se eu não faço isso, no próximo jogo ele também vai sair, ‘né’? Aí ‘cê’ não tem

como, ‘né’?... É que nem aquele parque, eu falo... Sempre[?] fui[?] de[?] lá[?]... Se

267

alguém parar na sombra... Ali é proibido parar. Se o cara parar, o outro vai se ver no

direito de parar também. Então ninguém para, entendeu? Todo mundo é chamado à

atenção se para num lugar proibido. Semana retrasada aconteceu isso. Eu, organizando

um estacionamento, organizando o estacionamento, tal, terminei de organizar... Porque

a gente lota[?] um local e, depois, abre o outro, ‘vamo’ fazendo por etapas. Aí, eu

terminei tudo, diminuí o movimento, daí, eu saio pra dar uma volta no parque, vejo um

lugar que [em] que não era pra ninguém ‘tá’ ali: um Megane na sombra. Ah, já passei o

rádio, já ‘ligamo’... ‘Começamo’ a passar no som interno: “Senhor proprietário,

comparecer urgente ao veículo, comparecer urgente ao veículo” / Aí, vem o cara de

bermudão, tranquilo: “Ah, ‘má’ que que ‘tá’ acontecendo?” / “O que que ‘tá’

acontecendo? Como é que eu explico pra uma comunidade que uma pessoa que tem um

Megane ‘tá’ parado na sombra e que o fusquinha, que ‘tá’ a vinte metros seu, aqui, ‘tá’

no sol? Porque você pode ficar na sombra, num Megane, e um menino que tem um

fusca tem que ficar no sol? O senhor faz favor: tire o seu carro e para no sol igual os

outros. Até aqui é o limite, o senhor ultrapassou vinte metros...”

Ele ‘tava’ perto do estacionamento, mas é que é muito folgado! E aí fica difícil num

parque público você explicar por que ‘que’ um pode, por que ‘que’ outro não pode. É

mesma coisa que nem cachorro. A mulher... outro dia chegou com um cachorro... Ó,

‘ma’ sobrava espaço na mão dela, desse tamanho, daí ela falou assim: “Uai, mas o

senhor não vai me deixar entrar aqui com esse cachorrinho?” / Falei: “Não, o senhor não

vai entrar nem com esse nem com um pit bull, porque não tem diferença entre um pit

bull e um cachorro pequinês. Se a senhora traz um pequinês, por que eu que não posso

trazer um pit bull? Se você vem com uma iguana, por que ‘que’ eu não posso vim com

uma cobra? Então não pode animal nenhum”. Outro dia, a mulher trouxe um canário na

gaiola e pendurou na árvore: tirou o canário, entendeu? Já pensou se um animal silvestre

ataca esse canário, eu vou ter que pagar o canário pra ela? Então não pode. O canário,

deixa na casa dela. Primeiro que o canário tem que ficar solto, não preso.

[riso]

Mas isso acontece no dia-a-dia, quando ‘cê’ ‘tá’ fazendo... Quando ‘cê’ tem que

decidir, ‘cê’ tem que ter uma única linha, senão fica difícil você justificar, ‘né’? Então,

eu, aqui, sou meio chato - até, ‘cê’ já deve ter percebido que eu sou meio chato.

Realmente, pra mim, não tem... Meu irmão, meu pai, não tem ninguém...

268

Não tem privilégios, não é?

Nunca... Não é nem privilégios, é a diferença. Deficiente físico: por que que deficiente

pode parar na sombra? Nós temos vaga pra deficiente. Nós temos três vagas para

deficiente no estacionamento. Não é porque ele é deficiente que ele tem direito de parar

lá na sombra, ele vai parar onde todo mundo para. No sol. Todo mundo para, não não

tem sombra no parque; infelizmente, o parque não tem sombra, assim, suficiente, pra

atender todo mundo. Então não é justo porque o cara tem deficiência que o cara...

Porque ele tem deficiência, ele tem o direito de parar perto da ciclovia, pra facilitar o

acesso dele, de cadeirante, tal, mas ele não tem direito de parar na sombra, ‘né’? Lógico

que, se tiver vaga e tiver sombra, perfeito. Mas não criar uma sombra porque ele é

deficiente.

Uma vez um cara falou assim: “Não, mas eu sou amigo do Benassi”, na época que o

Benassi era prefeito. Eu falei: “O senhor é amigo do Benassi? Então liga pra ele, faça

favor. Se ele deixar o senhor parar aqui, eu deixo” O Benassi é deficiente também, ‘né’?

Na época ele tinha deficiência, hoje ele nem tem mais, que ele colocou lesarovi[?], e ele

já diminuiu a diferença na perna dele. Na época ele usava um salto desse tamanho. Aí,

eu falei: “O senhor liga pra ele. Se ele falar que pode, eu autorizo o senhor” Pergunta se

o cara ligou. Entendeu? Não ligou, porque o Benassi não é louco de fazer isso, porque

ele sabe das ‘responsabilidade’ que ele, como prefeito, tem que ter etc.

Então, essas coisas, talvez você não aprenda na escola e nem na faculdade, mas a sua

vivência vai dando esse norte pra você, ‘né’? Vai te avaliando. Então, entre a

competição e a escola estadual, eu fui pelo caminho da escola estadual. Eu não tinha

uma noção pra ser técnico de seleção. Como a Rita, por exemplo, já caminhou pra um

esquema de competição, ‘né’? Ela já buscou um caminho diferenciado, entendeu? E eu

já busquei um caminho um pouquinho mais voltado, realmente, à parte de educação.

[toca um telefone, entrevistado se afasta] [...]

Agora, eu estudei em escola particular e estudei em escola estadual, ‘né’? Então eu

também fui aluno do Gandra. Então eu... Muitas coisas eu tinha o entendimento, ‘né’?

Das dificuldades, dos porquês das coisas. Então talvez isso tenha me ajudado a fazer a

opção de voltar pro Estado, entendeu? Algumas coisas que eu... Não que eu via errado,

[mas] que eram deixadas de fazer, e que eu acreditava que eu ia fazer, entendeu?

Em que ano foi isso?

269

Década de [19]80.

Como o professor chega nesse ensino público?

Na década de [19]80.

No início da década?

É, eu... Em [19]80, praticamente, foi que eu fui pra escola do Estado.

E como é que foi isso, de ter chegado ao ensino público?

Foi uma surpresa e uma insegurança...

Como o senhor viu a oportunidade?

Foi uma insegurança porque eu ainda ‘tava’ na faculdade, ‘né’? Então eu, em alguns

momentos eu até me questionei, realmente, [sobre] se eu ‘tava’ preparado pra aquilo,

‘né’? Assim, se... a responsabilidade daquilo, porque... Eu não comecei com três

‘aulinha’ no Estado, entendeu? Pra você pegar uma bagagem. Eu já comecei com 43

aulas, que era a carga completa de um professor – da época, ‘né’? Porque agora parece

que reduziu pra 32, ‘né’?

O máximo.

O máximo pra 32, ‘né’? Na minha época parece que era 43. Então era de manhã de

tarde, de manhã e de tarde todos os dias, não tinha descanso. Então muitas coisas eu fui

aprendendo também, ‘né’? A dificuldade de material esportivo naquela época era

muito... Não era difícil... não era a quantidade, era a qualidade, por exemplo. No

Governo Maluf foi o governo que mais mandou material esportivo, ‘né’? Mas foi o que

mandou o pior material esportivo, ‘né’? A bola vinha carimbada: Governo Paulo Maluf.

E eram bolas muito ruins, que não duravam nada, mas... Eu não me recordo bem, mas

eu acho que elas vinham do projeto que eram os presidiários que faziam a bola, então

não tinha uma qualidade, entendeu? Coisa de qualidade. Eu não sei te informar direito,

porque isso eu já não lembro, mas eu lembro que, realmente, não faltava material

básico, ‘né’? O que faltava, realmente, era qualidade. Se usava numa aula, a bola já

‘tava’ num desgaste maior. Mas não era empecilho, entendeu? A gente criou um monte

de coisas, de atividades fora da escola; a gente fazia jogo contra outra escola pra dar

uma mexida. O Gandra tinha uma quadra boa, era descoberta, mas era boa. Então, todo

270

mundo gostava de ‘vim’ jogar contra o Gandra. Então realmente... E eu dava aula de 5ª

a Colegial, entendeu? Eu pegava o menino que ‘tava’ chegando na escola até os alunos

do Ensino Médio, que eu tinha acabado de sair. Então, hoje é uma coisa até gozada, eu

cruzo com eles, entendeu? [riso] tem hora que eu olho na carinha deles: “Ô, professor,

não lembra de mim? Lá do Gandra...”, e tal. Porque eu olho na cara deles, eles têm o

quê? Cinco, seis anos mais que eu, entendeu? E não é que eles ‘tavam’ atrasado, é que a

gente... Eu ‘tava’ muito novo, ‘né’? Eu terminei a minha faculdade com 23, e os ‘cara’

‘tavam’ com 18, 17, ‘tavam’ entrando na faculdade, então era diferença de cinco anos,

‘né’? Então foi uma diferença muito rica, foi uma coisa... Dei sorte, ‘né’? Entre aspas,

assim. De ser escolas centrais, escolas estruturadas, grande. De grande número de

alunos, ‘né’?

Em que escolas o senhor atuou, professor?

João Luís de Campos, Elói de Miranda Chave, Pedro de Oliveira, Gandra, Getúlio

Nogueira de Sá. Deixa eu ver o que mais... Acho que é só. Foram cinco ou seis escolas.

Professor, depois da licenciatura, depois de terminar a faculdade, o que o senhor

fez para contribuir com a sua formação profissional?

Isso foi o maior erro da minha vida, ‘né’? Eu fiquei 25 anos sem entrar de novo numa

sala de aula. Eu voltei em 2008... [Em] 2005? Agora não me recordo... [...] Em 2007.

[Em] 2007 que eu fui fazer uma pós aqui na ESEF, de Qualidade de Vida, e aí que caiu

a ficha mesmo, ‘né’? Que eu levei tanto tempo pra me aperfeiçoar. A gente fazia muitos

cursinhos, assim, de... Tinha um termo, não é capacitação...

Extensão?

Não, não, era... Por exemplo, ‘saía’ as normas novas. Que nem ‘tá’ saindo agora, que

‘cê’ ‘tá’ falando que tem.

Sim.

Então tinha uma capacitação pra isso.

Ah, ‘tá’.

‘Cê’ entendeu? Atualização. Cursos de ‘atualizações’, ‘né’? Como é que chama...?

Planos Curriculares Nacionais, ‘né’? Tem um... ‘Né’? Fugiu. Parâmetros... Não, é...

271

Planos... Eu não lembro... Curriculares Nacionais... Tem umas siglas nisso aí. Que a

gente fazia na oficina pedagógica do Estado. Era um curso...

Era o Estado que subsidiava?

Era. Tudo o Estado, tudo o Estado, é. É, porque, senão, não tinha valor pra você, ‘né’?

Entendeu? Pra aumento de salário, tal, isso tinha que ser coisa que o Estado

homologasse.

Sim, sim.

Então eu fiz muitos cursos. E aí, entrou alguns cursos, assim... Eu fui no Fórum

Nacional de Cardiologia... Ah, eu não sei, eu não lembro. A gente foi em Brasília,

Ribeirão Preto... Aí tem esses ENADE da vida. Não é ENADE que fala?

Sim, sim.

‘Né’? A gente participou também muito disso, mas era muito mais festivo do que sério,

‘né’?

Do que educacional, ‘né’? [risos]

Não, a gente ia lá pra brincar, ‘né’? Eram momentos especiais, porque te davam um

diploma, um certificado, ‘né’? Mas, de conteúdo mesmo, eu não me recordo...

Bem pouco?

Não, não me recordo de nada que eu aprendi nesses cursos. Nada que pudesse falar que

foi relevante. Diferente da pós-graduação, ‘né’? A pós-graduação, realmente... Tem um

professor aí da Unicamp, Agnaldo não sei o quê... Pô, pelo amor de Deus, aquele

homem é uma cabeça pensante, entendeu? Eu saí de lá... Nossa, eu saí de lá babando. O

que o cara falou é... E nós ficamos quatro horas, aula em seguida, e ninguém queria ir

embora de [tanto querer] ir falar com o homem, entendeu? Uma cabeça, o cara viaja!

Fala umas ‘coisa’ que ‘cê’... ‘tá’ no seu dia-a-dia e ‘cê’ não enxerga, ‘né’? Então, as

pós-graduações, eu acho que eu... Os cursos de extensão – ‘vamo’ falar de curso de

extensão, porque a pós, também, é um diploma a mais, só, pra você ter no seu currículo.

A extensão, ‘né?’ Que é o curso propriamente dito. A pós é... Pelo menos foi o que eu

entendi: a pós é o TCC que você faz em cima da especialização, não é? Por isso que eu

não fiz a pós, eu fiz a especialização e depois eu não fiz o TCC, porque eu não consegui

272

chegar no TCC, entendeu? Até por... Sei lá, por inexperiência, por não acreditar – sei lá,

eu não consegui fazer o meu TCC, ‘né’? Não consegui. Não... Parei. Até o Balbino me

encheu o saco: “ ‘Cê’ tem que fazer, tem que fazer...” Eu falei: “Balbino, para! Eu vim

aqui pra aprender, já aprendi. Pronto. Vou passar esse conhecimento pros outros e

acabou, não preciso do diploma. Mas é lógico que eu queria ter o diploma de pós. Mas

eu me senti incapaz de fazer, entendeu? Uma...

Eu comecei [a] fazer sobre a Terceira Idade, pro[?] trabalho, como voluntário. E aí, as

‘exigência’ pra você fazer uma coisa científica, você tem que usar as pessoas. E eu não

consegui fazer isso, entendeu? Eu sou voluntário, eu não posso exigir que ela vá no

Bolão e ande 1600 metros pra ‘mim’ ter um resultado dela. Ela vai... Eu fui com ela no

Bolão: “ ‘Cê’ quer andar duas voltas e andar...? ‘Cê’ quer dar meia volta e volta pelo

mesmo caminho que ‘cê’ veio...?” Entendeu? Porque é uma visão de voluntariado.

Então eu não fiz o TCC em cima disso. E muita gente me ajudou, fico até triste de...

Muita gente queria fazer comigo: “Não, mas eu vou com você”. Até aquele professor,

como é que chama? Da ESEF, aí, o baixinho... Não lembro o nome dele. P... (palavra

inapropriada para transcrição) de educação! A Graciele: Os dois que me ajudaram. P...

(palavra inapropriada para transcrição), gente finíssima. E eles tentando mostrar pra

mim: “É assim, assim...” / “Para. Para, que eu não quero fazer. Eu não quero fazer isso”.

Entendeu? Eu queria me avaliar, eu queria ser avaliado, ‘pelo’ aquilo que eu aprendi, e

não eu ter que trazer uma estatística de uma avaliação que eu fiz com as minhas alunas,

em janeiro e dezembro, novamente, entendeu? Porque a aula que eu sou voluntário é

assim: eu dou aula de costa pra elas, eu não fico de frente pra elas. Eu só faço... Eu faço

aula junto e fico de costa pra elas. Por quê? Porque elas não tem que fazer exatamente

do jeito que eu ‘tô’ fazendo, na quantidade que eu to fazendo. Se eu to fazendo vinte e

elas querem fazer cinqüenta, elas fazem. Se eu to fazendo trinta e elas querem fazer

dois, elas fazem.

Cada uma tem um ritmo?

Então, se eu tiver olhando pra elas, eu to cobrando, ‘né’? Elas vão ficar sem jeito, vão

passar do limite. E não é isso, então, eu faço o primeiro movimento de frente, pra elas

verem a postura, a parte postural, e vou, viro de costa. E vou contando, vou cadenciando

na música, e tal, e oito, sete, seis, cinco, quatro, três, dois, um: parei, e mudei o

exercício. Viro de frente, faço um novo exercício e volto, ‘tá’ entendendo? Então eu

achei que eu, cobrar um resultado de performance ‘prum’ TCC meu, seria um... Sabe?

273

Umas ‘coisa’ que... E ia me acrescentar no que, ‘né’? [toca um telefone – entrevistado

se afasta para atendê-lo]

Mas isso é coisa minha. A gente já mudou um pouco. ‘Vamo’ voltar pra escola.

Então foi a pós graduação que o senhor fez...?

Depois de 25 anos...

Tá certo. Professor, e sobre as políticas públicas que permeavam a Educação

Física naquele período? O senhor conhecia?

Política pública do quê? Estadual ou municipal?

À época, não é? Da escola estadual. Em 1971, a Educação Física passa a ser

obrigatória por lei, não é?

Certo.

Isso, em âmbito nacional; surge a primeira lei em âmbito nacional – a segunda, na

verdade, mas a primeira a partir da qual a Educação Física realmente é

contemplada com um decreto próprio. O senhor tinha conhecimento sobre as

políticas públicas para a Educação Física, à época?

Não.

Não havia esse...?

Não, não havia essa busca de informação, ‘né’? Quer dizer, porque ela é um campo de

trabalho novo nessa época. Em [19]71 pra [19]79 eram oito anos de implantação...

Enfim... O que a gente observava, realmente, era a... não era a indignação, ‘vamo’ falar

de um termo mais... não tão pejorativo, ‘né’? A discriminação que as outras disciplinas

tinham da Educação Física. Nesses oito anos, você conseguia observar que a Educação

Física é lá, ó! Entendeu? Ela não fazia parte da formação global do aluno. Ela ‘tava’

inserida no currículo, ela ‘tava’ inserida como uma disciplina obrigatória, mas ela...

‘Cê’ não precisava da nota, assim, não é? Você não precisava controlar falta, ‘cê’ não

tinha nenhuma... Como é que eu vou dizer, assim? Não é preocupação... Você não

precisava se preocupar com nada, o seu trabalho era ficar com os alunos duas aulas,

‘né’?

274

Ela se limitava a isso?

Normalmente era isso. Duas aulas num dia e uma no outro, ‘né’? Sempre eram três

horas semanais, no que eu me recordo. Então a turma A e B ‘fazia’ duas e duas e a

Turma C fazia uma. No outro dia, a Turma A e B ‘fazia’ uma, e a turma C fazia duas,

‘né’? Terça e quinta... O meu era bem redondinho, porque era segunda, quarta e sexta,

terça e quinta, entendeu? Então o meu era redondinho mesmo. Tinha um dia que eu

tinha que sair de uma escola e ir pra outra pra completar a carga da outra. Era o mesmo

professor que era efetivo em três escolas, então ele acertou o ‘horarinho’ dele [em] terça

e quinta numa escola, pra não ter que ir e voltar. E na segunda, quarta e sexta, ele tinha

a segunda-feira num lugar; quarta-feira ele rachava no meio e sexta-feira num outro

lugar, ‘né’? Ele dividia pra poder... Até pra ele não ficar se locomovendo, porque na

época não era tão fácil, ‘né’? Ter carro, tal. A gente tinha muito essa dificuldade de

transporte, ‘né’? Não é nem dificuldade, é custo, ‘né’?

Sim, como hoje também, não é? [riso]

Não, hoje é pior ainda, porque você tem escola afastada...

Mas não é tanto... [riso]

Não é afastada. Como é que chama? É afastada, não?

Eles têm umas nomenclaturas...

É, eu não me lembro o nome...

Um termo certo: “de difícil acesso”, não é?

É.

Pro Estado, agora, você recebe um valor – são poucas escolas que têm isso, não é?

São as chamadas áreas de difícil acesso. Aí tem um valor que o Estado paga...

Agregado, tal. É, daí, até que é...

É pouco. Não dá, não. [riso] Se for de carro, não dá.

É, isso aí é...

275

Professor, nas escolas em que o senhor atuava, havia uma diretriz pedagógica que

subsidiasse o trabalho do senhor? Diretriz pedagógica no sentido de um material

teórico pra prática. Havia alguma coisa sobre o que o senhor pudesse dizer: “Ah,

hoje eu tenho isso pra me auxiliar”? Alguma coisa que subsidiasse ou mesmo que

pautasse o trabalho do senhor? Ou é...?

Então, na época que eu comecei, ‘né’? O forte era o mimeógrafo. Você lembra disso,

não?

Sim, sim. Passei por isso. [riso]

Então, o que ‘que’ é o mimeógrafo, ‘né’? Eu lembro, assim... Eu ‘tô’ brincando, mas era

mais ou menos isso. Anualmente, a gente pegava o planejamento anual das atividades

do ano anterior, mudava a data e rodava no mimeógrafo, ‘cê’ entendeu? Porque a

direção da escola não tinha competência... Não, não é competência: não tinha

conhecimento pra poder falar desse planejamento, falar: “Pô, isso aqui ‘tá’ uma

porcaria”, entendeu? Então, o que fazia: eu peguei de professor que eu substituí e eu fui

renovando, ano a ano, um planejamento...

Mas foi algum professor que fez ou já vinha do governo, pronto?

É, eu acho que vinha um norte.

Já vinha um norte pronto?

É, daí você adequava o número das turmas ao número de alunos, a faixa etária de

alunos, você... Mas era babaquice, ‘né’? Assim. Era [riso] voleibol no primeiro

semestre; basquete, no segundo; futebol, no terceiro; e outra coisa no quarto, entendeu?

Sim.

Era pra inglês ver. Era um documento que tinha que ser feito, e nós fazíamos, mas não

tinha uma fiscalização...

Nenhuma?

Não, a diretora rubricava, lá, porque era a parte dela: carimbava e rubricava pra

arquivar. Mas não tinha um acompanhamento na prática, ‘né’? Assim: “Poxa vida,

houve uma melhora...” Não, não. Então, por exemplo, no Gandra, quando encerrou as

276

atividades técnicas, eu era professor, e foi desativada a marcenaria. A marcenaria da

escola, que ocupava um galpão que seria um ginásio coberto, vai. Um galpão de

indústria – imagina um galpão de indústria...

Sim.

E eu entrei ali e falei assim: “Puxa vida, isso aqui dá uma quadra!” E cheio de rato, de

madeira. E meu time de voleibol era bom, ‘né’? E eu falei: “Puxa vida, o que ‘que’ eu

vou fazer aqui?” Ah, cheguei na diretora, falei: “Diretora, o que nós ‘podemo’ fazer

aqui, pra...” / Ela falou: “Eu não tenho a solução” / Eu falei pra ela: “Eu tenho. Eu vou

parar minha aula e eu meus ‘aluno’ ‘vamo’ limpar esse salão. Eu só preciso que ‘cê’

arrume uma empresa que venha buscar toda essa madeira e troque por algum material,

‘né’? Não dá de graça porque...” Tudo quebrado, coisa estragada, já sem uso, mas que

tinha um valor agregado. E aí ela conseguiu uma olaria que iam usar aquilo pra

queimar. E aí a gente fez um acordo: o cara trazia uma carga de tijolo e levava uma

carga de madeira, por exemplo, entendeu? Então muitas obrinhas lá foram ‘feito’ com

tijolo desse espaço, e eu ganhei uma sala, um ginásio coberto – que não tinha um pé

direito alto como um ginásio, ‘né’? Era um pé-direito, sei lá, de quatro metros, que dava

pra...

Então, sabe? Conclusão da história: era importante aquele espaço pra mim, porque

chovia, eu quebrava o meu treinamento. Então, mesmo que não fosse pra ter bola, mas

ter a parte física, a gente... P... (palavra inapropriada para transcrição) foi fantástico, a

diretora gostou do trabalho. Tanto é que, depois disso, eu virei meio auxiliar da direção

da escola, entendeu? Eu mandava mais que a diretora, ‘né’? Porque há uma carência

de... Hoje, eu não sei como é que ‘tá’, mas, na época, faltava muito dirigente de escola.

Subia, ‘né’? Fulana subia pra vice-diretora, e a diretora era indicada. Então acontecia de

você ter pessoas inexperientes na vice-direção da escola. Então a Educação Física era o

suporte, era eu que organizava os eventos, que fazia esse trabalho mais forte, ‘né’? Por

ser eu, ‘né’? Por ser eu, homem. Então assumia algumas coisas... Que não tinha homem

na direção de escola, era tudo mulher. Então elas não tinham a força de trabalho, e eu

capturava isso. Então a professora... Nós éramos em dois professores de Educação

Física. Então, a professora Silvia, que trabalhava comigo na época, a gente: “Silvia,

toma conta dos meninos aqui, que eu vou lá ajudar na direção”. Então a gente fazia essa

permuta de função, ‘né’? Mais pra colaborar. Por isso que muitas coisas do papel, ‘né’?

Porque a gente levava no peito, ‘né’? Desafiava...

277

Iniciativa?

É, senão, não sai, ‘né’?

Professor, e material pedagógico teórico: livro, apostila? O governo dava?

Olha... Que eu me recordo, não.

[Entrevistado parece conversar com terceiro por rádio]

Então, veja só. Que o Estado mandava livros, mandava. Mas nós não tínhamos uma...

Como é que eu ia dizer, assim? A nossa hora-atividade, ‘né’? Não sei se ainda chama

isso, hora-atividade do professor?

Hora-aula.

Hora-aula?

Sim. [riso]

Então, essa hora-atividade nossa, nós fazíamos planejamento da escola, entendeu? Nós

não ‘dava’ ‘muito’ bola pro livro que vinha do Estado. Porque vinha uma coisa pronta

do Estado, ‘né’? Então, o que ‘que’ é que vinha pronto? “Ah, ‘cê’’ tem que fazer isso,

isso e isso” Daí: “Ah, ‘cê’’ tem que incorporar ginástica”. Não tinha lugar pra fazer

ginástica, não tinha colchonete. Então a fazia... em cima do que vinha, a gente

incorporava um projeto nosso, da nossa realidade, ‘né’? Nós, que eu digo, da realidade

individual daquela escola. Por exemplo, a gente nunca teve aula de natação, mas meus

alunos do outro colégio, tal, eles nadavam no rio, entendeu? Eu fazia caminhada com

eles. Daí eles me contaram do riacho que tinha lá embaixo, e aí a gente... pulavam da

corda e caíam dentro do riacho, entendeu? Aí, seu sempre orientando: “Pessoal, ‘cês’

não vêem sozinho aqui, traga um adulto junto, porque não é fundo, não é nada, mas

pode bater a cabeça, pode acontecer um acidente”. E era perto da escola, não era um

negócio muito longe da escola. Então eu vivenciava a realidade da escola: a realidade

era aquela. Pra que ‘que’ eu vou mudar, vou vim com uma coisa pronta do Governo? Se

o que eles gostam é entrar em contato com o mato, com a água natural, ‘né’? Era o rio

límpido, ‘né’? Não tinha poluição na época. Então... E eu, também, morei em sítio

278

durante muito tempo, então eu tinha essa coisa de sítio, de... Então a gente fez muito

esse tipo de trabalho lá, entendeu?

E, dentro disso, professor: havia um controle do governo sobre a sua prática? Ou o

senhor tinha autonomia pra trabalhar?

É, não é que havia... Veja só, o controle era repassado... Esse controle era repassado pra

direção da escola, que tinha a visão que a educação física era uma coisa não tão

importante, ‘tá’ entendendo? Então ela considerava... a direção da escola considerava

muito mais o trabalho de apoio pra direção da escola – de apoio, de melhoria pra escola.

O Desfile de Sete de Setembro, cantar o hino nacional, essas coisas eram a maior

cobrança que ela recebia.

Isso havia, então?

Com a direção da escola.

Com datas cívicas?

É, não conosco. Havia cobrança com a escola, e ela repassava isso pra gente, então, se a

gente cumprisse todos os requisitos, que eram... Então, o Gandra era muito forte, tinha

fanfarra... Mas fanfarras ‘da’ ‘boa’ mesmo. Então a gente tinha um equilíbrio nas

cobranças. Então ela nunca desceu 75 degraus pra assistir uma aula minha, entendeu?

Porque ela sabia... confiava no trabalho que ‘tá’ sendo executado, e eu fazia o equilíbrio

com as ações com a escola, ‘né’?

E dirigentes do governo? Iam assistir aulas do senhor?

Nunca.

Nunca aconteceu?

Eu acho que não era nem de competência, por isso que não acontecia, entendeu? A

competência era a direção da escola. Era a direção da escola que tinha a

responsabilidade de fazer o acompanhamento pedagógico das atividades. Mas como é

que funciona...? No dia-a-dia nosso. Não da escola estadual, no dia-a-dia nosso. Como é

que eu resolvo o problema do parque se eu não fico sabendo? Ou se ele não acontece,

‘né’? Então a diretora virava muito mais curativa do que preventiva. “Ah, o aluno

reclamou que o professor ultrapassou os limites numa atividade física”, então, ela me

279

chamava e questionava, ‘né’? Se houvesse... Nunca ocorreu isso, mas ‘vamo’ supor que

um menino se machucou. Então havia um acompanhamento curativo, não preventivo. O

preventivo, o quê é? É ela ir numa aula minha, normal, assistir e dar a opinião dela.

Porque... Ou até questionar por que eu ‘tô’ fazendo isso, por que eu ‘tô’ fazendo aquilo.

Então não havia esse trabalho de acompanhamento. Não existia, existia muito mais uma

confiança entre as duas partes daqueles profissionais que também mereciam isso, tem

esse outro lado também.

Claro.

Nós tínhamos muitos professores com problemas na escola. O professor era ruim,

entendeu? Eu ‘tô’ falando de outras disciplinas, ‘né’? A Educação Física eram só dois,

mas as outras ‘disciplina’, nós tínhamos ‘muito’ dificuldades com professores da época

– ou por inexperiência, ou por envolvimento político: alguns cabeça de ‘bragre’ que

realmente não tinham nada a ver com aquilo, e, em contrapartida, nós tínhamos a parte

competente, ‘né’? Tirando a educação física, que não tinha importância, nós tínhamos

professores que, na época, eles eram mestres, mas não mestres de... mestres de oficina,

mestre de fundição, mestre de marcenaria, ‘né’? Eles eram ‘considerado’ como mestres

mesmo. Era a nata da cidade, de solda, fundição. O Gandra tinha isso: solda, fundição,

marcenaria, torno, fresa. Era um SENAI, o Gandra era um SENAI de competência,

entendeu? Muitos professores de lá também eram do SENAI. Então nós tínhamos a nata

da cidade. Fundição, por exemplo, era só o Gandra que tinha. Era uma delícia trabalhar

com a fundição, nossa! Os fornos, que derretiam chumbo, ferro! Puxa! Era uma coisa...

Nós fazíamos o canhãozinho, sabe? De ferro. Não sei se ‘cê’ já viu o canhãozinho de

ferro?

Não.

Era o troféu de cada aluno. ‘Cê’ tinha o ano todo pra trabalhar, no final do ano ‘cê’

levava o seu trofeuzinho, que era um canhãozinho de ferro que você torneou, que você

passou na fresa. Era seu, sabe? Uma coisa... Não servia pra nada, era um peso pra papel,

sabe?

[riso]

Mas era uma coisa que você guardava, era seu... Olha, eu joguei o meu fora acho que

faz uns dois, três anos. Realmente, porque eu mudei de casa, realmente não tinha onde

280

pôr, mas era uma coisa que eu guardei com muito carinho, durante muitos anos aí,

muitos anos mesmo. Que era uma coisa muito legal.

Professor, e sobre a educação física? Para o senhor, o que é a educação física

escolar?

Bom, eu dividiria ela em algumas faixas etárias, ‘né’? Quer dizer, você... Não dá pra

pensar em Educação Física de uma forma global, ‘cê’ tem que trabalhar um pouco mais

específica, que seria mudar uma palavrinha na Educação Física, que seria educação do

físico, não da física. É que física é de fisicamente. Então, mas eu falo de educação do

físico, que envolve desde a coordenação motora até a coordenação postural, até a

lateralidade, até o relacionamento, e envolveria uma... Vou chamar de categoria, mas

não seria categoria: ritmo. Então a dança e a música têm que fazer parte da educação do

físico, não é? Que a parte cultural ficou pra educação artística, não é? Então, educação

artística, educação musical.

Então ela fugiu um pouco da gente, mas ela ‘tá’ muito mais próxima da gente do que,

propriamente... Por exemplo, um teatro: ‘tá’ completamente ligado à educação física,

que é a expressão corporal, a expressão do movimento, a expressão de ritmo, ‘né’? ‘Cê’

tem que ter cadência na fala, ‘né’? ‘Tô’ falando de conversar. Então a educação tem que

ser global, do físico. Mas não tem essa visão, infelizmente não tem. Porque a educação

física virou esporte na escola, virou... como é que fala? Quadrilha, ‘né’? Quer uma coisa

mais gostosa e mais voltada a equilíbrio do que a quadrilha? Coordenação motora. Se

‘cê’ não tiver coordenação motora, ‘cê’’ não consegue dançar quadrilha. O povo vai

prum lado ‘cê’’ vai pro outro, ‘né’? Os passos, cadenciados: ‘cê’’ faz a dança, ‘né’? Cê

faz a dança, ‘cê’’ faz o balancê, ‘cê’ faz com uma outra pessoa que tem uma outra

coordenação.

Então, quando eu falo que eu dou aula pra terceira idade lá e [que] eu não olho pra elas

[é] porque eu tenho uma aluninha lá no fundo que tem 78 e tem uma que tem aqui, na

minha frente, com 45, que é a mais nova e a [a outra] a mais velha. Se eu tô olhando pra

essa aqui, eu tô cobrando dela uma coisa, que aquela de 78 dificilmente vai fazer. Então

eu tenho que fugir do olhar, tenho que fugir do olhar. E elas têm que fazer o movimento

que o corpo delas permite. Então nós temos uma baixinha barriguda, nós temos uma

magra. Tem uma moça, uma senhora, parece que ela tem 68 anos: a elasticidade dela é

brincadeira! Entendeu? Porque foi jogadora de voleibol. Então, nossa, os movimentos

de braço que ela faz, secção[?] de perna, extensão de perna, porra! É de uma menina!

281

Tem um repertório motor bom?

Mas foi uma coisa que você vê que foi trabalhado: teve um técnico, teve um objetivo.

Então, falando da Educação Física: hoje nós ‘temo’ que trabalhar vários momentos,

várias faixas etárias com várias atividades, ‘né’? Assim, diferenciadas. Mas a Educação

Física, ela permite uma coisa que nenhuma outra disciplina permite, que é a

proximidade com as pessoas. A liberdade de expressão, a liberdade da fala, ‘né’? Você

manda, ‘cê’ fala um nome feio na quadra não é ruim como falar um nome feio na sala é

uma expressão. A expressão sua, um desabafo, até, às vezes: “Porra, meu!”. Se você

falar “Porra, meu!” numa sala de aula, ‘né’? / “Porra meu, passa a bola!” / Se você falar

assim: “Porra, meu, passa a borracha!”, ah, o professor vai mandar você para fora da

aula. Então um “porra, meu!” na quadra é diferente de um “porra, meu!” na sala de aula.

Então a postura do profissional... Não que você não ‘tem’ que manter a disciplina; não

que você não ‘tem’ que manter a organização, ‘né’? Não que você não tenha que abafar,

apagar os incêndios de relacionamento, ‘né’? Muito acontece isso. Principalmente

quando você ‘tá’ trabalhando com esporte: “Pô, ‘cê’ é um fominha, ‘cê’ não passa a

bola” / Daí, um menino vai pra cima do outro. Então, o que eu fazia: “ ‘Cês’ querem

brigar? ‘Pera’ aí!” / Fazia uma rodinha, ‘né’? Todo mundo senta ao redor deles: “Agora

‘cês’ podem brigar. Só que antes ‘cês’ tem que justificar porque que ‘cês’ não brigando,

‘né’? A partir do momento que ‘cês’ definirem...” Então, veja só, eu ‘tô’ fora da escola

estadual há muito tempo, mas eu... sabe? Eu fico vidrado por essa possibilidade de

voltar pro Estado e buscar soluções, ‘né’? Agora a gente ouve falar muito de reação, de

agressão de professor, tal, eu fico numa dúvida muito grade, entendeu? Em 1996, eu

tive no Projeto da Mangueira lá no Rio de Janeiro. Não sei se ‘cê’ já ouviu falar?

Não.

O Projeto da Mangueira é assim: tem um juiz, lá, que é f... (palavra inapropriada para

transcrição) – um juiz da Infância e da Juventude. Então o menino: pegou ele vendendo

droga? Ele não vai pra nenhum lugar, ele vai Projeto da Mangueira. O que é o Projeto

da Mangueira? É assim: quebrou aquela torneira, quem que ‘tava’ perto? Ah, era o time

de handebol, o time inteiro de handebol que vai arrumar. Ah, picharam o banheiro? Que

horas foi? Às duas horas. Ah, então os ‘menino’ do vôlei: “Todo mundo, pessoal. Tá

aqui o balde, ‘tá’ aqui”. Não interessa quem foi, vai todo mundo limpar, entendeu?

282

Então eles entram num sistema de organização, de disciplina, de orientação, com

psicólogo... É um negócio maior, ‘tô’ só simplificando.

Sim.

Mas aí o coordenador geral falou isso aí pra mim, falou assim: “ Professor, é o seguinte:

aqui a gente só recupera menino que tem índole boa. Quem tem índole ruim, a gente

não consegue recuperar. O juiz manda pra gente sabendo que não vamos conseguir

resolver o problema. Que são os meninos que vão ser os traficantes, sabe? Então ‘vamo’

pôr assim, meia dúzia entrou pro tráfico, ‘né’? Como aviãozinho. Desses seis, um vai

ser líder. Esse líder, você... o Projeto da Mangueira não recupera. E aí, a média de vida é

25 anos. Não tem traficante com 40 anos. Ou eles... o próprio sistema elimina ou a

polícia mata. Então é muito ‘claro’ a visão deles lá. Então, o que ‘tá’ faltando hoje é,

realmente, o professor se envolver um pouco mais e transportar pra realidade dele. Se a

sua escola é perto de uma favela, ‘cê’ tem que entender que o tráfico ‘tá’ lá diariamente,

que o tráfico... Você não é conivente, mas você pode, junto, colocar algumas regras,

‘né’? Que é uma postura ideal do educador: não é ser a favor, nem abaixar a orelha pro

traficante, e também não é contra isso. Porque o traficante ele é um comerciante. Ele

não ‘tá’ mandando ‘cê’ comprar droga, você ‘tá’ indo lá comprar droga, certo? É uma

demanda que existe: se não tivesse gente querendo comprar droga não ‘existia’

traficante.

Não tem por que existir.

Não tem por quê. Então existe porque tem demanda – e, ainda, demanda de gente que

tem dinheiro. Eu sei porque eu moro na frente de um ponto de droga – que não era, é

uma praça, e hoje é um ponto de drogas. Então eu vejo os carros que param lá... Então

ontem eu tive que abordar, porque eu olhei pra caminhonete que ‘tava’ lá, e tinha duas

meninas ‘menor’ de idade. Aí eu fui lá. Eu falei: “Pessoal, o que ‘cês’ tão fazendo

aqui?” / “Não, a gente só parou pra brincar...” / “Então pega a sua caminhonete e vai

embora. Aqui não é lugar de ‘cês’ ficarem, ‘cês’ tão com menor de idade aqui. Aqui é a

frente da minha casa. ‘Cês’ vão na frente da casa de vocês” Entendeu? Porque eu vejo o

tráfico acontecer, e culpo o meu vigilante, porque quando eu mudei lá, não tinha. Então

ele podia ter evitado. Então hoje eu fico controlando, entendeu? Porque se uma menina

for ‘estrupada’ lá, a minha rua que vai ser ‘insegura’... Porque a minha rua é sem saída.

Eu moro na última casa de uma rua. Então vai sair no jornal: “Na Rua Ancelmo[?]

283

Mazolla, aconteceu um ‘estrupo’ de uma menor de idade”. Então, quando é maior, tal,

eu nem... passo reto, que aí é um problema de polícia. Mas quando ‘cê’’ começa a ver

um outro movimento, ‘cê’ começa a se preocupar. Então as escolas estaduais, essas três

fases, que eu acredito que é... É 6º Ano que é, ‘né’? Não é mais 5ª Série, ‘né’?

Agora é de 1º ao 5º, de 6º ao 9º, e depois o Ensino Médio.

Mas falando da realidade nossa de Jundiaí, até o 5º é escola municipal. E depois, pra

frente, é que municipalizou... que é o estadual, ‘né’? Então eu percebo até um equilíbrio

nisso, acho que é uma coisa boa a municipalização. Já acho que ‘tá’ atrasado, já acho

que tinha que municipalizar também do 6º ao 9º, porque é uma faixa etária... Como é

que eu vou dizer, assim? Determinante. É nessa faixa que surge o aviãozinho, não é lá

no Ensino Médio, é nessa faixa, do 6º ao 9º Ano, que é onde o menino tem mais

ociosidade ‘do que fazer’, ‘né?’ A solução é muito fácil: é a ociosidade que cria esse

problema. Por que ‘que’... Como é que chama aquele? Marcelo D2 veio cantar na Festa

de Uva 11h30m da noite? Porque o Marcelo D2 não veio 2h30m da tarde? Isso que eu

pergunto. Perguntei pra o secretário de Cultura isso: “Por que ‘que’ o Marcelo D2 não

vem cantar 2h da tarde? Vai ser o mesmo público. Só que seis ‘hora’ acabou, seis ‘hora’

acabou. Aí, o que ‘que’ vai acontecer comigo? Já tomei, já bebi, já assisti, já vi: vou pra

casa. Porque eu já bebi tudo que tinha que beber, ‘né’? E se é a música que ‘tá’

propiciando isso... Agora, se começa às 11h30m da noite, eu começo beber 7h da noite,

que eu saí de casa. Aí, quando termina o show, meia-noite e meia, não tem ônibus pra

‘mim’ ir embora, ou o dinheiro acabou, porque eu comprei bala, ‘né’? Aí eu volto de a

pé ‘pá’ casa, quebrando orelhão, riscando carro, mijando na casa dos outros. Então por

que Ivete Sangalo não pode cantar 2h da tarde, tem que cantar 9h30m da noite? Eu

queria assistir a Ivete, mas não dá[?] pra[?] ir. Desse jeito, eu vou lá 9h30m noite?

Pisar... gente pisar em cima de mim?

Não dá.

‘Pô’, 2h da tarde. Não, não, entendeu? Então falta a nossa visão disso. Por que ‘que’ nós

não fazemos isso? Por que a juventude não pode ouvir o Marcelo D2? Eu adoro as

‘música’ do Marcelo D2, entendeu? Mas não posso ir num show dele, não tem nada a

ver comigo: é droga, bebida, maconha, sexo, tem tudo, ‘né’? Camisinha pra todo lado.

Então hoje em dia também tem que ter essa visão.

284

Visão ampla, não é?

Mais... Maior. Porque eu fazia isso. Meu pai me levava na Feira da Amizade,

antigamente, ‘né’? Que hoje é a Festa da Uva, mas, antigamente, o bom era a Feira da

Amizade. Meu pai levava a família pra jantar na Feira da Amizade. Jantar: a gente

jantava, comia comida alemã, francesa, tinha de tudo. Hoje ninguém mais vai ‘na’ Festa

da Festa da Uva, porque a molecada começa a chegar na hora da janta. Começa a beber,

começa a mexer com os outros, é briga... Pra assistir o show que vai começar 9h e meia,

que começa 11h e meia. Mas é não é tão fácil, não dá pra inverter esse processo? Das

114h30m às 18h é os shows, todos os shows. Seis horas, se a molecada quiser ficar lá

bebendo, fica, mas começa aí começa a chegar a família, que vai na festa pra jantar, pra

comprar uva, pra ir no parquinho, lá... sei lá como é que chama.

Então falta essa visão nossa, como um todo. Por quê? Eu me baseio muito nisso,

porque minha filha gostava muito de rave. Então fui levar ela na rave. Minha filha tem

21 anos. Com 16 anos, eu ‘tava’ na rave com ela. E não acho nada de errado na rave.

Acho a rave super legal, um negócio super bacana. O erro ‘tá’ na droga, ‘tá’ no excesso

da droga, a madrugada. Pô, eu saí aqui de Jundiaí 9h30m da noite. Nós fomo numa rave

em São Bernardo do Campo. ‘Chegamo’ lá 15 pras onze da noite, na rave. Aí, 2h30 da

manhã, ela veio: “Pai, ‘vamo’ embora” / “Por quê?” / “Ah, só tem coisa pra beber, nós

‘tamo’ com fome, nós não ‘comemo’ nada. Não tem nada pra comer numa rave.”

Entendeu? A minha filha veio falar isso pra mim. E eu tava dormindo no carro. Eu parei

no estacionamento, paguei, e fiquei dormindo dentro do carro, ‘né’? Vi como é que era

o ambiente, tava ela e amiga dela, foram junto comigo. E 2h30m da manhã, elas

queriam ‘vim’ embora, porque ‘tavam’ com fome na rave, porque só tinha bebida, não

tinha comida. Então já ‘tá’ premeditado que é pra dar bebedeira, que é pro cara passar

mal, porque não tem nada pra comer [riso], ‘né’? Quem tem estômago fraco vai passar

mal...

Então essas ‘coisa’ de rave, que passa mal: passa mal. Tudo bem, tirando a coisa da

droga, ‘vamo’ tirar a droga. Mas a bebida, se você bebe e come, bebe e come, quem ‘tá’

acostumado, não sobe, não faz mal, ‘né’? ‘Cê’ não vai tomar um caminhão de pinga.

Mas se tomou um... Como é que eles chamam lá? Jurupinga. ‘Cê’ tomou uma

Jurupinga, depois ‘cê’ comeu um ‘hambúrgue’, o efeito cai 50%. Agora, porra, numa

rave que só tem bebida, só tem bebida – bebida free, lá, que eles falam... ‘Cê’ pode

beber o que ‘cê’ quiser e não tem nada pra comer, nem pra ‘cê’ comprar. Nem pra

comprar tinha! Então falta a visão nossa, de adulto, de homem, de como fazer isso,

285

como mudar esse processo. Por que ‘que’ eu não faço show de rock aqui, 4h da tarde,

‘né’? Eu tenho que buscar essas soluções. Então as faixas etárias tem que ser

‘trabalhada’ de forma diferente, com visão diferente, um trabalho conjunto com

educação artística, educação musical... Educação Musical, educação física e educação

cultural, não, como é que chama? São três ‘educação’ que eles deixam em segundo

plano, ‘né’? Artística, ‘né’? Musical e física: essas três, elas têm que ter um trabalho

integrado. Ah, ‘cês’ podem sentar lá e falar de português e matemática, aqui nós ‘vamo’

falar de atividades. Como interagir, os três professores de áreas... ‘Né’? Que a gente

chama de esportes não formais. Mas de atividades formais numa escola, pra manter a

motivação e, ao mesmo tempo, poder contribuir com os resultados de português e

matemática.

Professor, o senhor acredita que a educação física tem a sua importância dentro da

escola. A partir disso, como o senhor realizava a sua prática pedagógica no dia-a-

dia? São duas perguntas complementares: qual a importância dela? O senhor

pensa que ela tem ou teve importância dentro da escola...?

É, ela é super importante, mas não como físico. Ela não é... Ela é muito maior de

integração do que de... como é que eu vou dizer? De melhora física. O aluno gordinho

vai sair gordinho; o magrinho vai sair magrinho; o baixinho vai sair baixinho; o

grandinho vai sair grandinho. Não tem influência nisso, tem uma melhora muito

pequena no condicionamento físico global. Muito pequena. Por quê? Porque ‘cê’ tem...

Eu não sei como é que ‘tá’ hoje, mas na nossa época era: [um dia tem] duas aulas; [no

outro dia] não tem aula; [no seguinte,] mais uma aula. Quer dizer, então terça-feira,

quinta. Segunda não tem nada, quarta não tem nada, sexta não tem nada, sábado não

tem nada, domingo não tem nada, segunda não tem nada. Volta na terça de novo.

Os intervalos.

Intervalos muito grandes, então você não consegue uma performance. E agora, pior:

nesse dia que tinha duas aulas, choveu, então reduziu a sua intensidade – porque ou

você vira uma... Se você tiver espaço, ‘cê’ faz num lugar coberto, em menor

intensidade. Ou, se você não tem lugar, ‘cê’ põe um filme... ‘Né’? Então, daí ‘cê’ volta:

‘cê’ teve aula quinta, daí não teve sexta, sábado, domingo, segunda, terça, vai ter na

outra quinta de novo. Então, às vezes, chegava intervalo de nove dias, pra você voltar a

ter atividade física. Então, a atividade física ‘tá’ muito mais relacionada a resultado

286

desde que você tenha uma coisa constante. Se você pega um menino que além da

educação física ele ainda treina outra modalidade, a performance dele vai ser maior, vai

ser melhor, ‘né’? Maior e melhor, ‘né’? Então tem essa coisa. Ela é super importante,

mas não fisicamente. Ela é muito mais abrangente: que é de relacionamento, que é de...

Uma coisa que se perdeu no tempo, por exemplo: “Eu estudo no Gandra. Eu estudo no

Instituto”. Hoje não tem mais isso: “Ah, eu estudo lá na escola lá, no Horto Florestal”.

Se perguntar, o menino não sabe nem como chama a escola. E lá a gente tinha orgulho

de usar o uniforme, porque a escola tinha um nome a zelar, tinha uma qualidade de

ensino. Não que não tenha hoje – eu tô generalizando. Tô dizendo que a questão... e

talvez a falta da educação física tenha sido a culpada. Porque quando você vai, por

exemplo, numa maratona de matemática, você não tem... você não leva o nome do

Gandra, é o Julio que vai lá ser campeão da maratona. E [antes] era o time do Gandra

que ganhou, que ficou campeão, entendeu? Então vira uma coisa...

Isso se perdeu?

Se perdeu. Se perdeu, e não é nem por causa de alguma escola. Não tem mais o

Campeonato Colegial... Não tem mais o Campeonato Colegial mesmo, ‘né’? Que a

gente chamava Campeonato Colegial, mas eram todas as idades, ‘né’? Mas o forte, a

disputa era no Colegial, que era... Era o Gandra versus o Instituto. Siqueira... Nossa, o

Siqueira ficou um tempo aí que ninguém ganhava do Siqueira. Conde de Paranaíba: era

Gandra, Instituto, Conde e Siqueira. Aí vinha a Maria de Lourdes [nome ininteligível]

Silveira, que é bairro do Jardim Pacaembu. Aí já ia pra escola de bairro: Ana Paes, Ana

Pinto Duarte Paes, que é na Ponte São João, e Paulo Mendes Silva. Então nós

tínhamos... O bicho-papão era sete, oito escolas que tinha o Ensino Médio, ‘né’? O

Ensino Colegial da época. Esses meninos: “Eu estudo no Paulo Mendes” / “Eu estudo

no Ana Paes.” Mas isso era o esporte que fazia. Foi o esporte que fez essa valorização,

do moleque... O moleque não mudava de escola, ele começava na quinta, ele ia até o

Colegial numa mesma escola. Porque ele era aluno do Gandra. E quando ele ia, mudava

de escola, ele era rejeitado na outra escola. Entendeu? Ele tinha que ser um menino

muito bom de cintura pra poder se enturmar de novo, porque ele já teve competição

contra, entendeu? Então criava essa... Não falo nem ‘rincha’ entre um e outro, criava

uma perspectiva: “Puxa, ano que vem a gente vai ganhar; ano que vem a gente vai

perder” Entendeu?

287

Uma expectativa...?

Uma expectativa, isso. Criava. Que hoje não tem mais. Até tem, ‘né’? Até tem. Quem

faz isso muito bem, hoje – parece que se aposentou também – é o Amario Barbarini, na

escola Gloria Genovese, que é lá na Agapeama. O Amario Barbarini mora do lado, ali

naqueles predinhos na Agapeama, não sei se ‘cê’ conhece.

Eu não conheço.

Então, lá na Agapeama, no bairro da Agapeama, quando você vai pra Várzea, no

baixadão, assim...

Sei.

...do lado esquerdo tem uma escola que chama Glória Genovese, e tem um prédio de

apartamento, onde... o Amario mora ali. Então o Amario conseguiu, durante o tempo de

carreira dele, conseguiu ir pra lá – perto da casa dele... Não, e ele se envolveu com a

escola: ele fazia corrida em volta da escola, ele... Atletismo é o coração dele. Então ele

ainda tem isso. Tanto é que os atletas que despontam no atletismo de Jundiaí saem da

escola dele, ele dá essa esquentada, daí o moleque: Puft! Vai embora, entendeu?

Professor, o senhor falou do esporte, não é? Estamos entrando numa área aí...

Muito se diz que a partir principalmente da Ditadura Militar, o período que é

estudado por nós, houve uma esportivização da Educação Física; que ela teria sido

mesmo esportivizada...

Hum, hum, foi mesmo.

O que o senhor teria a dizer a respeito disso? E aproveitando, já, como é que era a

prática pedagógica do senhor na época?

Então, veja só, por que ‘que’ aconteceu essa esportivização aí, ‘né’? Que esse tema é

novo pra mim, mas até entendi o porquê. Ele... A Educação Física, na época, precisava

de uma sustentação, precisava se valorizar, ter a sua valorização perante o professor de

português, matemática, de química, física... ele tinha... nós tínhamos que ter essa

valorização. E o esporte foi o vilão e foi o beneficiador disso. O vilão por quê? Porque

aquele professor que queria encostar o corpo, ele teve a oportunidade dele: soltava a

bola na quadra, dividia três times, e não tinha a parte inicial, a parte [palavra

ininteligível] final da aula – não tinha, só tinha a parte inicial, principal e final da aula,

288

que nós chamávamos de volta calma, aqueles nossos ‘termo’ da época. Parte inicial da

aula, que era o aquecimento, parte principal da aula, que era formação global, e depois a

gente chamava de parte final da aula, que era o volta calma. Que a gente precisava

baixar a adrenalina dos meninos, porque eles iam voltar pra sala de aula, entendeu? O

moleque não podia chegar lá em cima com a adrenalina no último, tinha que diminuir

essa adrenalina dele, que era o quê? Relaxa, deita aí na quadra, pensa, conta até dez, tal,

pra poder diminuir a adrenalina. Então, isso foram os dois lados: ela conseguiu o

espaço...

Se valorizar.

Se fortaleceu. Porque aquele profissional que gostava do esporte tratou aquilo como

uma coisa principal da sua profissão: então se aperfeiçoou, fez curso, atualizado, ‘né’?

Pra poder ter uma performance melhor. E, ao mesmo tempo, ela criou essas barreiras, e

o professor que queria encostar achou o caminho, ‘né’? Entendeu?

E a prática do senhor, como era na época?

Olha, vou ser sincero pra você, ela foi um meio termo. Alguns momentos, eu achei que

era importante soltar a bola pra eles só, realmente, porque não tinha perspectivas

‘diferente’ disso. Nós não encontrávamos um caminho, entendeu? Nós buscávamos...

Não sei se, até, eu buscava, na época, isso. Mas chegou alguns momentos que eu, várias

vezes, fiz isso; muitas vezes fiz isso. E: “Pessoal, a bola ‘tá’ aqui, ‘vamo’ dividir as

turmas aí, tal”. Mas, em contrapartida, nós éramos o destaque da escola. ‘Era’ nós que

organizávamos a festa junina, ‘era’ nós que fazíamos ‘toda’ as atividades ligadas à parte

cultural, à parte musical: era a Educação Física que incorporava todo esse trabalho de

envolvimento com os jovens. Então: “Poxa, professor, ah, não gosto de Educação

Física...” / “Não? Mas ‘cê’ gosta de teatro? Então nós vamos começar uma turma de

teatro.” A gente começou... Nós ‘tivemo’ um grupo de teatro. ‘Fomo’ fazer

apresentação em Campinas, e tal, entendeu? De quem era isso aí? Da Cultura? Eu

encarava como uma atividade da Educação Física, mesmo não sendo, ‘né’? Porque não

tinha consumo de adrenalina, não tinha nada; não tinha nada relacionado ao físico deles.

Mas ‘a’ nível de relacionamento... Quer dizer, o pessoal do teatro ia assistir o jogo e o

pessoal do jogo ia assistir o teatro: havia uma integração, ‘né’? Então acontecia muito

disso. Que eu fiz isso. Até, não acho – uma avaliação bem crítica, assim –, não acho que

289

fiz errado. E também não acho que, muitos, fizeram errado de fazer isso, de soltar a

bola.

Por exemplo, vamo falar lá de um professor de uma escola... Como é que fala? De uma

escola afastada? Não, não é afastada. Tem um termo. Escola...

Rural?

Isolada... É, rural. ‘Vamo’ falar de escola rural. O que ‘cê’ vai fazer com o menino lá da

escola rural? O que ‘que’ ‘cê’ quer dele na área de Educação Física? Que ele

desenvolva uma atividade física, regular, que vai ser duas e uma; que eles tenham um

bom relacionamento entre eles; que eles ‘seja’... não tenha nenhum problema de saúde;

que eles não se ‘machuque’. Que mais ‘cê’ pode esperar do menino que mora, que ‘tá’

numa região isolada, ‘né’? Não sei se ter uma bola... Ah, uma escola que só tem uma

bola. Como é que você vai imaginar um treinamento? Qual é a sua criatividade pra fazer

alguma coisa mais do que... dividir dois, três pinos e fazer um rachão e interagir, ‘né’?

Então, como eu trabalhei muito com o handebol... O futebol de salão e handebol. Então

eu achava jogar handebol uma coisa maravilhosa pra eles: “Ah, puxa, mas não tinha

regras?” / “Não, não tinha regras. O handebol é solto, é pra isso mesmo. É uma bola na

mão. Você vai pegar, você vai testar[?] a parte muscular das mãos, não é? Que o salão

não propicia isso, tal. Então eu não sei, eu não faço muitas críticas como eu ouço. Eu

ouço muitas críticas de professor que solta a bola, ‘né’? E vira as costas. Nem apitar o

jogo, às vezes, apita, ‘né’? Então isso aí eu fiz muitas vezes isso.

Professor, o senhor disse que entregava um planejamento que era mimeografado, e

que só havia a alteração da data. Mas e no dia-a-dia? Na parte técnica,

burocrática, a gente observa que era obrigatória a entrega desses materiais.

Sim, sim.

Mas no dia-a-dia, quem definia: o que ia dar, o que fazer e como fazer? E as

avaliações? Havia avaliações?

Não, não tinha avaliação nenhuma. O planejamento, ele era até gozado, num bom

sentido. Ele era assim: segundo bimestre, modalidade voleibol. Aí, você discriminava o

que é o voleibol: “O que ‘cê’’ vai fazer no voleibol?” / “Ah, nós vamos trabalhar os

aspectos cognitivos”, ‘né’?” Você usava os termos que, tecnicamente, você sabe que

pegar a bola de voleibol e bater ela no chão, ‘cê’’ ‘tá’ fazendo trabalho cognitivo, de

290

lateralidade, de flexibilidade, de agilidade. Os termos que você ouve, lê em qualquer

livro, ‘né’? Então era uma coisa meio mecanizada. Talvez, até pela influência do

exército.

E quem definia isso?

O próprio professor.

O senhor que definia, então? Essa ordem dos esportes, no caso, e do...?

Exatamente.

...e como ia fazer...?

Dos esportes. Então, o que a gente fazia? Por exemplo, o futebol de salão, ele sempre

terminava o nosso planejamento anual: se eram quatro bimestres, o futebol de salão era

o último, porque era o que eles mais gostavam. Então, ‘cê’ tem que ter um tempo de

adaptação pra isso. Mas chegou uma hora que eles não queriam mais jogar futebol de

salão, eles queriam jogar handebol, ‘né’? Por um estímulo meu, e porque saía vinte

gols, ‘né’? Num jogo que era 20 gols, no futebol de salão saía 1, 2 gols. Então tinha o

agente motivador disso, ‘né’? E o gordinho jogava. O baixinho jogava no handebol.

Aquele ruinzinho, que não tinha coordenação, ele jogava no handebol. Tanto é que, uma

vez, eu quase... coitado do menino. O menino completamente sem coordenação motora,

e eu explicando a marcação, que ele tinha que fazer assim com os braços. E o menino

veio, dando as passadas, ele e pegou e fez assim com o braço e enroscou o pescoço do

menino aqui no braço dele. E ele estragou o braço, porque era a[?] ordem[?]... e ele era

a barreira. Ele fez o que a gente tinha conversado com ele, ‘né’? Um menino

completamente sem coordenação, quase machucou, realmente, o outro, pela... Porque,

normalmente, quando você [palavra ininteligível] o braço, você solta o braço, e ele

trancou o braço, entendeu? Virou uma barreira mesmo. Mas isso, só...

Então, o que ‘que’ acontece? Esse planejamento era difícil de fazer, de executar. Não de

fazer: fazer era fácil; fazer no papel era rapidinho. Mas executar era difícil. Voleibol:

“Ah, professor, ‘pô’, o voleibol é coisa de bicha, não ‘vamo’ ficar jogando essa p...

(palavra inapropriada para transcrição) de vôlei”, entendeu? / E aí eu falava: “Não,

pessoal, são fundamentos diferentes, tem que passar por todas as etapas”. Então muitas

vezes do planejamento, fazia parte inicial da aula com futebol de salão, depois fazia o

voleibol, depois encerrava futebol de salão, pra você poder chegar naquilo. Que é o que

291

eu falei que eu consegui chegar. E acho que qualquer professor de cada modalidade

consegue, ‘né’? Eu fiz com o handebol. O professor Afonso vai fazer com o voleibol. A

professora Rita vai fazer com o handebol. A Marli, com o handebol, entendeu? ‘Cê’

consegue vender o seu peixe pra eles. Num primeiro momento você vai ter dificuldade,

você vai ter que negociar num bom sentido. Mas o planejamento que você punha no

papel, ele era difícil de executar.

E aí o senhor falou que os alunos... Como esses alunos se manifestavam na

educação física dessa época? Como era o trato diário?

Olha, eu vou ser sincero, eu não tinha muita dificuldade com isso, entendeu? Eu nunca

tive esse tipo de dificuldade, porque eu sou... eu me considero um agente motivador,

‘né’? Hoje eu trabalho pro meio-ambiente... Eu me considero muito mais um agente

motivador do que um educador ou do que um pedagogo. Por exemplo, ‘cê’ pergunta pra

mim: “Professor, qual é o pH da água de Jundiaí?” / Eu viro ‘procê’ e falo assim: “Não

sei”, ‘tá’ certo? Mas da onde a água vem? Pra onde ela vai? Qual o curso... qual é o

nível, a classe dela? Que ‘que’ é classe 1 de água, ‘né’? Que ‘que’ é um ciclo biológico?

Que ‘que’ é uma barragem? Que ‘que’ é um extravasor?” / Porque é o que interessa

dessa informação. Que ‘que’ vai adiantar eu falar pra você que o pH é sete, dessa água

aqui, não é? Que adianta eu falar ‘procê’ que aqui tem um milhão e duzentos metros

quadrados de espelho d’água? Um milhão e duzentos mil metros quadrados é o mesmo

tamanho de cinqüenta campos de futebol. Então, por que ‘que’ eu vou falar um milhão e

duzentos metros quadrados se eu posso falar: “Pessoal, essa represa tem o tamanho de

cinqüenta campos de futebol.” Matou. Ele não precisa saber que é duzentos mil metros

quadrados. Ele já conseguiu visualizar cinqüenta campos de futebol. Então é uma visão

que eu tinha como professor de escola estadual. Mostrando pra eles a realidade...

Eles gostavam, então, da aula? Da Educação Física, no geral?

Muito, muito. Não, eu tinha um problema, eu morava a quatro quarteirões da escola.

Então, pô, amanhecia garoando, eu vinha de bicicleta, eu demorava pra chegar na

escola, porque eu não ia dar aula. Tinha um risco de escorregar, ‘né’? Piso descoberto.

Então eles já sabiam que não tinha aula – eles iam na minha casa, eles iam tocar na

minha casa. [entrevistado se dirige a terceiro]

‘Cê’ entendeu? Então, o mais importante... Isso é uma visão minha, pelo amor de Deus.

A maior função do professor de educação física numa escola estadual é ser o agente

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motivador. É o professor de educação física que tem o poder de ser o agente

mobilizador – tô falando agente mobilizador: “Pessoal, nós ‘vamo’ limpar a escola [

parece bater a mão numa mesa], ‘somo’ nós que ‘vamo’ limpar. Nós ‘vamo’ cuidar da

escola, somos nós”. Ele que tem que fazer essa função. Porque o diretor, ele ‘tá’ lá pra

punir, ele não ‘tá’ lá... Ele ‘tá’ lá pra comandar, mas, quando você comanda, você não é

agente motivador nem mobilizador, você é um cobrador, você que cobra, entendeu?

Então o professor de educação física – eu falo educação física, mas é educação

musical... As educações são os ‘agente’ motivador. Então o professor de educação

física, ele tem um papel muito importante, que é ser um agente de interligação da

direção da escola e a educação do físico. Se ele não tiver esse poder – que isso é nato de

cada um, nasce em cada um – ele não consegue resultado significativo, ele vai ser mais

um professor, entendeu?

Então, por exemplo, chegava no Conselho de Classe – que eu nem sei se tem hoje

Conselho de Classe –, daí: “Porque aquele moleque é zero de matemática, zero de

português”. Aí eu falava: “Não, mas em educação física ele é dez, ele é o melhor

jogador de futebol de salão”. O moleque era craque de bola, mas uma praga na sala de

aula. Aí eu questionava: “Qual a importância desse dez aqui em relação a vocês?” / “Pô,

mas ele enche o saco, ele atrapalha, ele não estuda” / “Mas ele tem o potencial dele.

‘Precisamo’ avaliar isso também” / “Ah, ele é indisciplinado” / “Não ‘tá’ faltando

motivação? Porque lá ele é disciplinado, ele chega antes do horário, ele vai embora

depois do horário. Quer ajudar: colabora, enche bola, carrega o saco”. Entendeu? Agora,

era muito difícil de ele escrever café com acento, ‘né’? [riso de ironia] Entendeu? Fazer

uma regra de três, não: fazer uma fórmula de química... Então, como é que ‘cê’ acha

esse equilíbrio no menino? Realmente como agente mobilizador, como agente

motivador. Que são poucos os professores das outras ‘diciplina’ que têm esse poder. Eu

conheço um professor de matemática que o cara é fantástico, entendeu? Tem[?]

filhos[?] gêmeos[?] ainda. O cara é cabeça pensante, ele... A molecada adorava ele.

Então não é a matemática, não é o português, é o agente mobilizador.

É a pessoa.

A pessoa que ‘tá’ ali. E o professor de educação física, se ele for o agente mobilizador,

ou motivador, ele consegue resultado significativo, ele consegue se impor perante os

outros, mas desde que, também, você... Então, voltando ao Conselho de Classe: teve um

menino japonês que soltou uma bomba dentro do banheiro. E ‘tava’ entrando um

293

menino de 5ª Série na época. E o menino estourou o tímpano dele com a bomba. E eu

fui chamado, porque esse problema era eu que resolvia, ‘pápá’. E todo mundo

escondendo o menino, escondendo o menino. Descobri quem era, levei pra direção da

escola, chamei o Conselho, e propus a votação que era a expulsão da escola, entendeu?

Independente de ele ser meu amigo: a postura foi única. É mudança de escola, não tem

outra coisa. Conclusão da história, conclusão de tudo isso: hoje o menino é dono de uma

floricultura. Ele ‘me’ passa, perto de mim, e me respeita como professor que fui dele,

entendeu? Mas ele sabe que fui eu que votei. Porque ele achou que eu ia segurar isso

dele, ‘né’? Porque era a visão que todo mundo tinha, que a Educação Física fica

acobertando os problemas. Mas aí, no Conselho que você mostra o seu poder, ‘né’?

Porque se eu voto contra a expulsão dele, nossa, todo mundo... “Ah, na hora de você

pedir pra mexer na nota...” ‘Né’? Porque o meu trabalho no Conselho era oportunizar o

menino... Como é que eu vou dizer, assim? Que ele não repetisse direto. A minha briga

era essa. Então, por exemplo, ele ficou de recuperação de três... Não, ele ficou de

quatro, só podia ficar de três. A minha briga lá era mostrar o potencial que ele tinha lá

pra que desse uma oportunidade pra ele ir pro Segundo Turno, ‘né’? Entendeu? Que ele

fosse pra recuperação...

Tivesse uma chance.

...e não reprovar direto, entendeu? Mesmo ele tendo, sabendo das dificuldades. Porque

também é assim: quando a água bate na sua bunda, é que ‘cê’, realmente, acorda, ‘né’?

Então, de repente o menino tinha um potencial de estudar. Foi levando de barriga, foi

levando de barriga... Se ‘cê’ fala: “Não, ficou em três, ‘vamo’ abrir mão aqui...” O

professor de, sei lá, de música, dá nota pra ele, pra ele...” / “Ah, ele não fez esse

trabalho...” / “Dá um trabalho pra ele, pra ele fazer amanhã, e deixa de recuperação”.

Então eu sempre achei que o meu papel no conselho era esse: oportunizar os meninos de

evitar uma reprovação direta. Lógico que ‘cê’ tinha os casos que não tinha jeito, ‘né’?

Se é um caso que ficou em seis, de recuperação, como é que eu ia reverter? Mas eu ia

sempre nos quatro, ‘né’? Podia ficar em três? Então esse quatro, eu brigava lá, pra

poder: “Pô, dá uma oportunidade pra ele. Olha aqui, nunca teve falta em Educação

Física, ‘né’?” Então, a minha... Como é que fala? O meu fichário... Não é fichário, como

é que chamava aquilo? Controle de faltas, sei lá como é que chama aquele negócio...

Diário.

294

Diário de classe, é. Então o meu diário tinha as informações importantes pra isso, ‘né’?

Então o papel da educação física, realmente, é maior do que do físico. Se o professor for

fechado pra isso, esquece, ‘né’? Não consegue resultado significativo.

Professor, essa comunidade de que o senhor fala, os professores valorizavam,

então, a presença da educação... Quer dizer, a gente pode dizer que eles

valorizavam a presença da educação física como um todo? Ou isso se dava

dependendo... pela sua pessoa? Ou a educação física, ela era, de certa forma,

valorizada?

Não, ela era valorizada pelo profissional.

Pelo profissional? Não tinha a ver com a disciplina, então? Com a atividade ou

disciplina?

Não, a educação física era uma atividade descartada, ‘né’? Era descartável. Quem fazia

essas mudanças eram os professores. Que nem, eu ‘tô’ falando de mim, mas, por

exemplo, a Silvia, que trabalhava comigo, ela também é pé de boi pra trabalhar,

entendeu? Apesar que ela, hoje, é diretora de escola, ela se envolveu, ficou o tempo

todo no Estado... Então, a atual Educação Física, ela atinge seus objetivos pelo

profissional, não pela disciplina.

Nessas escolas em que o senhor trabalhava, então, como esses profissionais o viam?

Como era vista a educação física? O senhor pode ver desta forma?

Então, se o profissional não for um agente...

[trecho ininteligível] senhor?

Não, no meu caso?

Sim.

Sim, porque eu fazia questão de ‘tá’ no conselho, eu fazia isso com a minha disciplina,

eu dava valor ‘pá’ minha disciplina ‘pá’ ela ser valorizada, ‘cê’ entendeu?

Entendi.

295

Então, a mesma coisa... Tem um conselho, o professor: “Ah, eu não vou participar, eu

não tenho força nenhuma, entendeu? Então, se eu achar... Eu achava que era importante.

Então, com isso, ela se tornou importante.

Se valorizava?

Se valorizava. Se eu não me valorizar, ninguém vai valorizar. Então a busca, realmente,

do profissional, que hoje a gente chama qualidade, eficiência, eficaz... O professor

eficaz, o professor eficiente, é do professor, não da. Mas isso, eu acho que é em todas as

disciplinas, ‘né’? Por isso que eu sou contra a educação ambiental. Eu acho um absurdo

vim falar sobre... “ ‘Vamo’ criar a cadeira de educação ambiental nas escolas” – isso é

um absurdo. Por quê? Porque eu não posso sair da sala de aula... Eu sou professor de

matemática... Eu sou professor de ambiental: então eu dei aula pra vocês, falei sobre o

meio ambiente, tal. Aí, virei as costas, saí da sala, entra o professor de química. Aí o

professor de química pega uma folha, amassa e joga no chão, ‘né’?

[riso]

A educação ambiental é uma coisa mais ampla. Não falo da educação física, eu falo da

educação ambiental. Todos os professores têm que trabalhar a educação ambiental.

“Então, o que nós ‘vamo’...? / “Ah, ‘vamo’ trabalhar cálculo de química: ‘Pessoal, por

favor, tá aqui, ‘vamo’ utilizar a fórmula tal, tal, tal: um terreno onde tem um declive de

150 metros, aconteceu uma erosão de vinte m2, que comprometeu a qualidade da água

do córrego, que passa com 200 litros por segundo...’ Puxa, eu tô trabalhando o meio

ambiente e a química junto, a física, a matemática. Então, eu citei esse exemplo, mas...

Sim.

Professor de português: “ ‘Vamo’ ver aqui, ó...”

Tudo junto, não é?

Eu fiz um concurso público de educação ambiental... Educação ambiental, não, pro

Ibama... Não sei se era o Ibama... Meu, veio um texto pra mim, em inglês, todinho

falando sobre meio ambiente. Eu parei no meio. Parei, fechei, entreguei e fui embora.

Eu não ‘tô’ preparado pra aquilo, entendeu? Porque o texto era de interpretação de

texto, com um texto em inglês, sobre o tema meio ambiente, sobre o que vai ser daqui

25 anos e o que aconteceu há 25 anos atrás. A mesma coisa que ‘cê’ ‘tá’ fazendo, eles

296

fizeram um link com os 25 anos atrás com os próximos 25 anos. Mas tudo em inglês,

que você tinha que interpretar o que o autor ‘tava’ falando, e ainda... ‘Né’? ‘Então’ isso

é uma loucura. Mas a professora de inglês pode pegar um texto básico de inglês pra

trabalhar sobre o meio ambiente, sobre a preservação da água. Inclusive, dá pra

trabalhar no meio ambiente [com] todas as disciplinas. Então você não precisa ter uma

cadeira de educação ambiental. Já a educação física, ela tem uma outra... como é que eu

vou dizer, assim? Uma outra visão, ela tem que ser constante dentro da escola. A

educação física não pode ser: “Ah, o professor de educação física chegou...”, entendeu?

“ ‘Pô’, o professor de educação física chegou! ‘Vamo’ lá ver se ele precisa pegar

alguma coisa, se ele quer que eu vá adiantando, se ele quer que eu vá abrindo a sala...”

Entendeu? Ele tem que ser o auê! “Chegou o professor de educação física!” Tem que

ser o diferencial. E eu tô falando que eu consegui isso.

Da pessoa, não é? Que é da própria...?

Da pessoa. Não da... É que, não sei, se eu fosse professor de português, talvez eu não

tivesse essa visão...

É uma conjunção de fatores, não é?

É, então não dá ‘pá’ descartar a educação física, é uma junção de vários momentos,

‘né’? Mas eu visualizo, realmente, que a educação física, ela se torna sólida – ‘vamo’

falar sólida, mas não sei se esse é o termo – a partir do momento que o profissional, ele

se junta a esse ideal, vai – ‘vamo’ falar do ideal, mas não é o termo ideal –; ele se junta

nessa busca, entendeu? Da performance.

Professor, o senhor falou de link, então vamos tentar linkar. [riso] Eu sei que é

uma pergunta complicada pra gente tentar fazer de uma forma mais sintética,

resumida, mas como é que o senhor entende a educação física na década de 1970 e

1980, quando o senhor atuou, e a de hoje? Como é que o senhor compreende a

educação física de lá e a de hoje?

Olha, eu vou ser sincero...

Eu sei que é uma pergunta complexa...

Não, não... É, eu não tenho a vivência... Vivência hoje, ‘né’? O que eu fico muito triste,

que eu ouço, não só do professor de educação física, mas de vários professores, é que

297

não tem mais jeito, ‘né’? Que não dá pra recuperar mais. E eu não acredito nisso, eu

acredito no resgate. Talvez de forma diferente, ‘né’? Diferente disso. Mas alguns

princípios são básicos. Quer dizer, o menino que não podia fumar maconha na década

de [19]80, ele continua não podendo fumar maconha agora. Eu não posso achar que

fumar a maconha seja uma coisa tão... um termo tão simplista assim, como hoje ele se

caracteriza. Então, as mudanças, elas estão ligadas... diferenciadas, até – ‘vamo’ falar

“diferenciadas” –, daquela época pra essa, num intervalo chamado qualidade de vida.

Hoje nós temos um parâmetro de que a qualidade de vida ‘tá’ diretamente ligada à

educação do físico, ‘né’? Que, na época, nós não tínhamos isso. Na época, nós não

‘távamos’ preocupados em ter um físico bom pra ter uma vida mais longa...

A visão da época era qual, então?

Não interferia, não interferia; não era importante você fazer uma caminhada...

Essa questão da qualidade de vida não emergia[?]?

Não, não tinha nem... Qualidade de vida era você ter um bom emprego, você fazer uma

viagem, você... Não ‘tava’ relacionado a você ter uma boa saúde. E hoje não tá

completamente focado nisso. Você não pode abrir mão, por exemplo, da atividade física

mínima. Por exemplo, como é que o professor, hoje, fala que ele não vai dar um

condicionamento físico global? Ele tem que fazer um trabalho, uma coisa que era...

poderia não ser feita aqui. Por exemplo, soltar a bola, na década de [19]80, não era tão

ruim como soltar hoje, entendeu? Hoje não dá. A tecnologia que nós ‘tamo’ vivendo,

‘né’? Com a estatística da fisiologia do movimento, das paradas cardíacas que

acontecem em atletas, você visualiza que, realmente, a culpa ‘tá’ aqui atrás: o soltar a

bola aqui é que tá ocasionando essas situações agora. Então, falando da metade pra

frente, não dá mais pra você ter um professor meia boca hoje. Porque, ‘vamo’ supor,

então vou falar, assim, de... daquele equipamento de medir a pressão, a pulsação lá – eu

não sei nem o nome, pra você ver como eu não tenho conhecimento pra isso. Mas o

professor que ‘tá’, hoje, dando aula no Estado tem que saber, é imprescindível saber

sobre a pressão arterial, saber sobre a pulsação média, sobre desnutrição, sobre

alimentação balanceada. Hoje o gordinho tem que ser olhado de uma outra forma. Ele

era um empecilho na época, e hoje ele precisa da orientação. É, mudou, mudou muito...

Seja em escola estadual... Eu ‘tô’ falando duma forma global. Mas, visualizando a

estadual, você pode manter, hoje, numa atividade física educacional com um menino

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gordinho, mas nós, como educadores, mesmo que você seja gordo, você tem que

mostrar pra ele a importância ‘duma’ comida balanceada, o acompanhamento dele, se

ele não ‘tá’ chegando na fase do diabete; tentar orientá-lo para que ele regularmente

faça o exame do diabete; o mal que a diabetes causa pra ele, da hipertensão... Nós

‘temo’ um papel muito maior hoje, ‘né’? Hoje... Porque a mãe....

Abriu o leque?

É, porque a família ‘tá’ mais distante hoje do que na época. Na época, nós tínhamos

aqui muitas poucas mães que ‘trabalhava’. Nós fazíamos reunião de mães, as mães iam

– de pais, ‘né’? A mãe ia. Hoje não vai mais; hoje ela quer que se f... (palavra

inapropriada para transcrição) o menino, não vai mais na reunião. Mas ela não é

culpada, ‘né’? O sistema é culpado, porque ela tem que trabalhar, ela tem que...

“Meu filho, por favor, vai pra escola, porque eu tenho que trabalhar. Senão, não tem

comida em casa”. Então o parâmetro seria mais ou menos isso, fazendo uma

comparação: hoje nós somos profissionais muito mais importantes na vida do ‘seu’

aluno do que éramos anteriormente. Isso é uma visão minha, ‘né’? Não sei, até, se vai

de encontro com a de outros profissionais, ‘né’? Porque não sei se a Marli pensa da

mesma forma, ‘né’? A minha visão é assim: eu era muito mais importante na escola

como agente mobilizador do que como uma pessoa ligada à qualidade de vida dele. O

meu papel não era melhorar a qualidade de vida dele, o meu papel era fazer a integração

dele com o ambiente escolar. E hoje eu vejo... Hoje o nosso... ‘Vamo’ fazer assim: um

teste de resistência que a gente fazia, alguma coisa que tinha – isso, na minha época,

não sei se hoje ‘chamaria’ esse termo –, a gente fazia os meninos correr cem metros em

tantos minutos, e pápápá, pra avaliar se o menino tava com condicionamento físico ou

não, na época a gente fazia por fazer, e hoje os resultados impressionam a gente. Se o

menino sentiu falta de ar aqui, é nosso dever encaminhar para o médico.

[toca um telefone, entrevistado se afasta pra atender]

Entendeu?

Sim.

Então hoje a gente tá muito mais capacitado, qualificado – não sei bem o termo pra isso,

mas o nosso papel é de muito maior responsabilidade do que na época.

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Do que antes?

Sabe? Hoje, se você tiver um... Eu não lembro de ter tido nenhum aluno que morreu,

não lembro. Eu tive um aluno que teve um ataque epilético – que, na época, era um

ataque epilético, ‘né’? E eu quase morri pra atender ele. Porque eu ‘tava’ na quadra, e

ele teve o ataque epilético no segundo andar do prédio. E ninguém sabia resolver o

problema, só eu na quadra. E aí, de cima de 75 degraus, a professora gritava: “Julio,

pelo amor de Deus, sobe aqui, rápido”. E eu corri os 75 degraus, depois subi mais

quatro lances de degraus pra chegar. A hora que eu cheguei ‘na’ sala de aula, o menino

já tinha passado o estágio grave, graças a Deus, a língua não enrolou... Quer dizer...

Tiraram as carteiras de perto dele, tal, ele já ‘tava’ voltando, mas foi, assim, um caso

grave que eu lembro... Não digo de acidentes, ‘tô’ falando do dia-a-dia, ‘né?’ Então,

nós, como educadores do físico, a nossa preocupação... pelo menos a minha seria isso,

‘né’? Os testes de resistência são importantes pra você poder saber a pulsação dele, se

passa dos 180, se chega nos 180, se não chega nos 180... ‘Tô’ falando, ‘né’? Não tenho,

hoje, esse conhecimento pra avaliar, mas queda de pressão... Na época acontecia muito

menos que acontece hoje: queda, ‘né’? Aumento de pressão e diminuição de pressão.

Naquela época, acontecia muito mais do que hoje, ‘né’? Quer dizer, se acontecia, não

era premente, hoje acontece com mais freqüência em... Meu filho tem hipertensão,

então... Eu nunca tive hipertensão. Meu pai não teve esse problema comigo, como

aluno. Às vezes, é muito mais no dia-a-dia da gente. Então eu acho que o nosso

trabalho, hoje, é muito mais... de maior importância.

Mais abrangente, não é?

Mais abrangente.

Professor, agradeço a entrevista concedida. Para encerrar nosso trabalho, gostaria

que o senhor deixasse uma última palavra sobre essa profissão que escolhemos pra

exercer, e sobre o que a gente conseguiu... lidar direto com o ser humano... Eu

queria que o senhor desse uma última palavra sobre nossa área, nossa profissão.

Ó, veja só, a Educação Física foi a minha vida. Desde criança eu adorava a educação

física, sempre foi o que eu gostei de fazer, e tive a felicidade de ser um professor de

educação física, nunca que eu imaginei que eu seria. Eu fiz um teste vocacional em

[19]75, onde deu Engenharia Mecânica Automobilística: tem uma faculdade no Brasil,

300

são 20 formandos por ano, período integral, e você já sai empregados nas empresas

automotivas. Então você... Não era uma faculdade que você tinha qualquer dificuldade,

você já saía empregado. E este teste vocacional deu esse resultado. Mas o esporte

sempre veio junto, o esporte sempre teve junto da minha vida. A educação física,

competição de futebol de salão: joguei futebol de salão por Jundiaí. Então teve todo esse

emaranhado. E eu acho que se eu tivesse que escolher uma outra faculdade eu

escolheria de novo a Educação Física, porque eu não tenho nada de... Não construí nada

estruturalmente, ‘né’? Porque nunca foi a minha preocupação com isso. A Educação

Física não me deu uma casa, não me deu um carro, não me deu nada, mas meu deu

oportunidade de transmitir conhecimentos que eu fui adquirindo com o tempo. Então,

hoje, trabalhando com o meio ambiente, eu me sinto duplamente gratificado, ‘né’?

Porque eu até queria ter conhecido o meio-ambiente antes da Educação Física, que

algumas posturas minhas seriam diferenciadas, porque o meio-ambiente te dá um de

qualidade de vida, e, talvez, a minha performance, depois, na área de Educação Física,

tenha sido... Se eu tivesse feito, por exemplo, gestão ambiental em vez de Desenho

Mecânico, eu acho que eu seria um profissional melhor ainda do que eu me considero.

Então... Mas eu nunca fiz isso por ninguém, eu fiz isso por mim, entendeu? A Educação

Física é muito eu. Até, às vezes, eu fico muito preocupado, porque eu faço muitos

projetos que as pessoas falam que é o “projeto do eu”: sou eu que pego, sou eu que vou,

sou eu que levo, sou eu que vou buscar. Que nem lá no Jaú... Então sou eu que vou lá,

eu chego todo dia antes, nunca faltei uma aula, dou aula no feriado; não tenho férias,

não interrompo a aula durante todo ano. ‘Fazem’ quatro anos que eu dou aula, a média

de alunos é 35 alunos. Eu cheguei a ter 55, mas nem eu agüentava, ‘né’? Porque aí

aumenta o ritmo. Cheguei a dar três vezes por semana, e hoje a gente ‘tá’ uma vez só, e

a prefeitura dá as outras duas aulas com elas... Então a Educação Física me deu essa

oportunidade de poder me expressar... Eu sempre fui um cara muito acanhado, ‘né’? Me

libertei, realmente, na Educação Física. Na hora que a professora Elenir falou assim: “

‘Cê’ vai dar aula”, que eu... Chegou na frente desse grupo de escola, de 5ª Série, na

época, foi a primeira turma que eu dei aula, eu falei: “Pessoal, é agora”. E aí você tem

os seus conhecimentos adquiridos, passados pela escola, pelos professores que você

teve, ‘né’? Então, eu tive, por exemplo, um professor disciplinado e organizado como o

Bissoli, e tive um professor alterado, mas de uma competência ímpar, que é o (x), ‘né’?

Quer dizer, tem tantos ‘defeito’ o (x), mas ele tem tantas qualidades que é um equilíbrio

fantástico. E aí ele jogava giz no aluno, entendeu? O aluno ‘tava’ conversando, ele

301

pegava e metia giz da frente pra lá, porque ele, na cabeça dele, o cara tá ali, tem que

ouvir o que tem pra falar, entendeu? [trecho ininteligível] que nesse ponto ele ‘tá’

errado, entendeu? “Poxa, ‘cê’ entrou aqui, c... (palavra inapropriada para transcrição),

‘cê’ não quer ouvir o que eu tenho pra falar?” Entendeu? Tudo bem, que eu acho que ele

abusou de jogar. Ainda bem que foi o giz, pior se fosse o apagador, a cadeira. [risos]

Podia ter sido pior, ‘né’? [risos]

É, podia ter sido pior. Na hora, a gente ficou até meio revoltado com ele, mas o (x) é um

doutor, pô, é um cara é cabeça pensante; é o cara que não devia dar aula nunca, só ficar

pensando, entendeu? Porque nós ‘precisamo’ de gente pra pensar. Nós ‘tamo’ vivendo

num mundo que as soluções vão sair das cabeças ‘pensante’. Como preservar a água

no...? Eu não sei a solução. Eu sei o problema, eu não sei a solução. Mas eu preciso ter

uma cabeça pensando, eu preciso ter um maluco que só pense nisso: “‘Pera’ aí, se eu

tirar a água daqui e eu pôr ali. Se eu tirar a água do mar, eu vou ter esse problema...”

Cabeça pensante. Nós não temos, nós não temos cabeças pensantes. Por isso que essa

faculdade da ESEF tá entrando num campo maravilhoso. Faço minhas críticas, mas tem

um lado da ESEF que é o estudo, que é no 4º Ano ‘cê’ já ter a oportunidade de fazer

uma pós, entendeu? ‘Cê’ termina sua escola, depois de seis meses ‘cê’ já é pós-

graduado. Isso é uma oportunidade ímpar. Eu fiz a minha pós-graduação, 90% da sala

de aula era aluno de 4º Ano, do começo do 4º Ano. Fizeram a pós-graduação comigo.

Terminaram, se formaram, depois de seis meses nós ‘ficamo’ pós-graduado. Então

essa... Por que ‘que’ isso é importante? Porque eles são os responsáveis de buscar

soluções na evolução, na tecnologia. Então esse equilíbrio realmente é o supra-sumo aí,

é o que a gente imagina como a busca da responsabilidade, a busca de performance,

‘né’? E não é performance como a busca de resultado, de ser campeão, entendeu?

Quando ‘cê’ consegue a melhor qualidade de vida de um aluno seu, ou você identifica

um problema grave que ele tenha, você fez o seu papel, ‘né’?

O equilíbrio, então, professor?

É equilíbrio pras duas coisas, é você poder passar o seu conhecimento adquirido numa

faculdade, ‘né’? Numa faculdade formal. Aí a sua experiência de vida. E aí a gente

chega nesse equilíbrio que você fala: como a gente pode atingir esse equilíbrio, o ideal,

‘né’? Não o real, ‘né’? Nós ‘temo’ que trabalhar muito mais no real do que no ideal.

Mas a gente busca o ideal. E depois a gente cai na consciência de que, realmente, se

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trabalha no real, ‘né’? Que algumas coisas ‘cê’ não consegue resolver – que ‘tá’

relacionado a droga, que ‘tá’ relacionado ao que o moleque comeu na casa dele, o que

‘que’ ele ‘tá’ comendo, entendeu? ‘Cê’ pode até tentar ajudar, mas ‘cê’ não consegue

solucionar esse tipo de problema. E nem é bom que você interfira nesse ciclo, ‘né’?

Porque se ele ‘tá’ passando fome, a culpa não é sua. Não é você pegar uma cesta básica

dar pra ele que você vai resolver o problema. É ir mais a fundo, ‘né’? Parte estrutural da

família, falta a família, entra outras coisas por aí.

É mais embaixo, ‘né’?

É mais embaixo, é.

Professor, então é isso. Encerramos por aqui.

Tá bom, Wesley.

Agradecemos muito pela entrevista...

Obrigado você pela oportunidade de eu ‘tá’ falando isso, ‘né’?

FIM DA ENTREVISTA