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UNIVERSIDADE REGIONAL INTEGRADA DO ALTO URUGUAI E DAS MISSÕES- CAMPUS DE FREDERICO WESTPHALEN PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM LETRAS MESTRADO EM LETRAS ÁREA DE CONCENTRAÇÃO EM LITERATURA COMPARADA A REPRESENTAÇÃO DO CASAMENTO NA OBRA A MEGERA DOMADA E NA TELENOVELA O CRAVO E A ROSA Mestrando: Valtenir Muller Pernambuco Orientadora: Prof. Dra. Denise Almeida Silva Frederico Westphalen, novembro de 2016.

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UNIVERSIDADE REGIONAL INTEGRADA DO ALTO URUGUAI E DAS MISSÕES-

CAMPUS DE FREDERICO WESTPHALEN

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM LETRAS

MESTRADO EM LETRAS

ÁREA DE CONCENTRAÇÃO EM LITERATURA COMPARADA

A REPRESENTAÇÃO DO CASAMENTO NA OBRA

A MEGERA DOMADA E NA TELENOVELA O CRAVO E A ROSA

Mestrando: Valtenir Muller Pernambuco

Orientadora: Prof. Dra. Denise Almeida Silva

Frederico Westphalen, novembro de 2016.

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Valtenir Muller Pernambuco

A REPRESENTAÇÃO DO CASAMENTO NA OBRA

A MEGERA DOMADA E NA TELENOVELA O CRAVO E A ROSA

Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa de Pós-

graduação em Letras – Mestrado em Letras, área de

concentração em Literatura Comparada, sob a orientação da

Prof. Dra. Denise Almeida Silva, como requisito parcial para

realização do exame de qualificação de dissertação.

Frederico Westphalen, novembro de 2016.

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AGRADECIMENTOS

A Deus, por ter me dado saúde e muita força para superar todas as

dificuldades;

À minha orientadora, doutora Denise Almeida Silva, por todo o tempo que

dedicou a me ajudar durante o processo de realização deste trabalho, pelos diálogos,

pelos conselhos, pela compreensão e dedicação, sem os quais este trabalho não teria se

concretizado;

À professora doutora Rosangela Fachel de Medeiros, pelas orientações iniciais

sobre o gênero telenovela;

A esta faculdade e ao Programa de Pós-Graduação em Letras e todo o seu

corpo docente, além da direção e administração, que me proporcionaram as condições

necessárias para que eu pudesse alcançar os meus objetivos;

A meus pais, por todo amor que me deram, além da educação, ensinamentos e

apoio;

Aos familiares e amigos, fundamentais nesta trajetória, e, em especial a minha

amiga Márcia Ávila e aos meus colegas de curso do Mestrado em Letras da turma 2014

– 2016;

À Diretora Alexandra F. Rafaelli e à Escola Érico Veríssimo, de Vista Gaúcha,

pelo apoio durante a trajetória do curso;

E enfim, a todos que contribuíram para a realização deste trabalho, seja de

forma direta ou indireta, fica registrado aqui o meu muito obrigado.

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RESUMO

Esta dissertação tem como objetivo geral analisar a representação do casamento na peça A megera domada, de William Shakespeare, e na telenovela O cravo e a rosa, de Walcyr Carrasco. Propomos a análise do casamento como fenômeno social, e procuramos problematizar até que ponto as estruturas patriarcais e econômicas permeiam as relações de gênero, influenciando na promoção e continuidade do casamento; empregamos, como metodologia, a pesquisa bibliográfica e estudo analítico de textos. A dissertação divide-se em três capítulos. No primeiro, abordamos as características da comédia romântica shakespeariana e da telenovela brasileira; no segundo, estudamos o casamento e suas relações na sociedade da renascença inglesa, e como estas são abordadas na peça A megera domada. Finalmente, o terceiro capítulo é dedicado ao estudo da evolução do casamento, sociedade e família no Brasil, e da forma como o casamento, e as relações sociais em seu entorno, estão presentes na telenovela O cravo e a rosa. Constatamos que a representação do casamento é muito mais complexa na obra de Shakespeare, em que um jogo entre aparência e realidade problematiza o significado real da submissão (ou não) da mulher na relação conjugal, ao passo que a releitura de Walcyr Carrasco, embora apresente, inicialmente, o que parece ser uma defesa do feminismo, acaba se submetendo ao gosto popular, concluindo com a visão tradicional da missão da mulher como esposa e mãe.

Palavras-chave: A megera domada. O cravo e a rosa. Comédia romântica. Telenovela.

Casamento.

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ABSTRACT

This thesis aims at analyzing the representation of marriage in William Shakespeare's play The taming of the shrew and in Walcyr Carrasco´s soap opera O cravo e a rosa. We propose the analysis of marriage as a social phenomenon, and question to what extent patriarchal and economic structures permeate the generic relations, influencing the promotion and continuity of marriage. The study relied on bibliographical research and the analytical study of texts. The thesis is divided into three chapters. In the first, we discuss the features of the Shakespearean romantic comedy and of the Brazilian soap opera; in the second, we studied marriage and its relationships with the English Renaissance society, and how these are addressed in the play The taming of the shrew. Finally, the third chapter is devoted to the study of the evolution of marriage, family and society in Brazil, and of how marriage and its social relations are present in the soap opera O cravo e a rosa. We concluded that marriage representation is much more complex in Shakespeare for, in The taming of the shrew, the oscillation between appearance and reality questions the real meaning of the submission (or not) of women in the marital relationship, while in Walcyr Carrasco´s reading of the play what initially appears to be a defense of feminism ends up by submitting to the popular taste, and concluding with the traditional vision of the mission of the woman as a wife and a mother. Keywords: The taming of the shrew. O cravo e a rosa. Romantic comedy. Soap opera. Marriage.

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO........................................................................................................... 6

1 A COMÉDIA ROMÂNTICA SHAKESPEARIANA E A TELENOVELA

BRASILEIRA: CARACTERIZAÇÃO INICIAL.................................................... 13

1.1 A COMÉDIA ROMÂNTICA SHAKESPEARIANA:

CARACTERÍSTICAS .............................................................................................. 13

1.2 A TELENOVELA COMO GÊNERO: CARACTERÍSTICAS ......................... 26

1.3 ATELENOVELA NO BRASIL: O CRAVO E A ROSA ..................................... 30

1.3.1. A TELENOVELA NO BRASIL........................................................................ 30

1.3. 2 SHAKESPEARE NA TELENOVELA BRASILEIRA: O CRAVO E A ROSA ... 34

2 O CASAMENTO, FAMÍLIA E SOCIEDADE NA RENASCENÇA INGLESA: A

MEGERA DOMADA ................................................................................................. 38

2.1. CASAMENTO NA RENASCENÇA: FAMÍLIA E SOCIEDADE ................... 38

2.2. CASAMENTO, FAMÍLIA E SOCIEDADE EM A MEGERA DOMADA ..... 46

3 CASAMENTO, FAMÍLIA E SOCIEDADE NO BRASIL: O CRAVO E A ROSA

................................................................................................................................... 74

3.1. CASAMENTO, FAMÍLIA E SOCIEDADENO BRASIL ................................ 74

3.2 CASAMENTO, FAMÍLIA E SOCIEDADE EM O CRAVO E A ROSA .......... 80

ANÁLISE COMPARATISTA COMPARATISTA ENTRE AS OBRAS:

REFLEXÕES CONCLUSIVAS................................................................................. 99

REFERÊNCIAS ...................................................................................................... 106

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INTRODUÇÃO

Na Literatura encontramos um amplo quadro de temáticas sociais que podem

ser discutidas em comparação com outros meios de produções artísticas. Dentre estes

temas, a pobreza, a riqueza, a crescente disparidade entre classes sociais, as

características da sociedade patriarcal, dentre as quais um modelo específico de

casamento, têm sido representados em inúmeras obras e em diferentes contextos

históricos com a finalidade de refletir sobre o comportamento da sociedade. Nesta

pesquisa destacamos o teatro, bem como a televisão, e mais especificamente, a

telenovela, como gêneros que têm interrogado as estruturas sociais.

Esta dissertação tem como tema a representação do casamento na obra A

megera domada e na telenovela O cravo e a rosa. Este tema tem destaque nas obras em

análise e retrata uma instituição social que ultrapassou muitas gerações e, por isso,

compreendemos que é relevante trazê-lo a debate.

A megera domada é uma das primeiras comédias de Shakespeare, escrita entre

1590 e 1592. A trama recorre a elementos cômicos, típicos das comédias de

Shakespeare, como o casamento e a guerra dos sexos. O enredo central da peça

apresenta Petrúquio, um nobre que beira a falência, que conquista Catarina, A megera,

filha de Batista, um nobre rico. O casamento acontece por interesses econômicos; por

outro lado, Catarina apresenta-se como a precursora na luta pelos direitos da mulher.

Dessa forma, escolhemos esta peça, pois a comedia romântica A megera

domada é uma forma de denúncia e crítica social que analisa o casamento e as relações

que acontecem em torno dele, como a escolha direcionada pelos pais e pretendentes, a

submissão da mulher ao marido após o casamento, bem como o papel dos membros

familiares estipulados pela sociedade renascentista inglesa. Através da análise sobre o

casamento, na obra de Shakespeare, será possível identificar também as mudanças e as

conquistas ocorridas dentro das relações matrimoniais.

Uma vez que A megera domada é uma das peças mais conhecidas de

Shakespeare, realizamos um levantamento para ver se a obra já tinha sido estudada, por

quem e a partir de que problema de pesquisa. Sem pretender que este levantamento seja

exaustivo, na amostragem percebe-se que a peça tem sido estudada especialmente nos

cursos de Letras na área literária, e a grande parte das análises dedica-se a estudar o

comportamento da mulher e as atribuições dadas a ela na sociedade. A seguir

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mencionaremos alguns dos estudos referentes à peça A megera domada, com seus

títulos, respectivos programas de pós-graduação e universidades.

Agnes Bessa Silva Feitosa (2008), em sua dissertação do curso de pós-

graduação- Mestrado Acadêmico em Linguística Aplicada da Universidade Estadual do

Ceará, analisa como Shakespeare constrói suas personagens através de um paralelo

entre a questão histórica e social da mulher da Idade Média aos dias atuais, enfocando,

especialmente, o sujeito, a ideologia e o discurso na caracterização da mulher: sua

relação de submissão e sua posição dentro da sociedade patriarcal da época.

Luciana Neves Mendes (2011) abordou, em sua dissertação do curso de pós-

graduação Mestrado em Linguística Aplicada da Universidade Federal do Rio de

janeiro, a representação das personagens femininas principais em duas obras que

correspondem a versões cinematográficas da peça de Shakespeare: A megera domada,

de David Richards (2005), e 10 coisas que eu odeio em você (1999) ,de Gil Junger, uma

análise feita a partir da visão de teóricas feministas do cinema e de outros estudiosos

sobre a mulher, sua representação nas telas através da teoria psicanalítica, criticando o

patriarcalismo na produção audiovisual. A autora apresenta um cenário histórico que

mostra uma mulher descrita como megera por não concordar com as regras e ditos

impostos pela sociedade patriarcal da época, a partir de um discurso que a

marginalizava e a relegava a um papel secundário.

Também Grace Cruz Stolze Franco (2013), do curso de pós-graduação

Mestrado em Letras e Linguística da Universidade Federal da Bahia, em sua dissertação

analisa a obra A megera domada em quatro traduções da peça para o cinema – A megera

domada (Franco Zeffirrelli, 1967), 10 coisas que odeio em você (Gil Junger, 1999),

Kiss me Kate (George Sidney, 1953) e The taming of the shrew (David Richards, 2005).

Contrastando com os trabalhos citados, todos eles produzidos por acadêmicos

pertencentes à Área de Letras, Clarissa Cecília Ferreira Alves (2012), alude à peça de

William Shakespeare, A megera domada, em sua dissertação de Mestrado em Ciências

Jurídicas da Universidade Federal de Paraíba, para abordar uma análise feminista acerca

do casamento como manifestação contratual. A autora investiga o posicionamento do

direito brasileiro acerca da existência de uma obrigação de caráter sexual decorrente do

contrato de casamento, enquanto principal acordo que cria a família nos moldes

patriarcais, e conclui que o ordenamento jurídico brasileiro mostra-se conservador e

sexista ao dignificar o casamento como principal forma de constituição da família e ao

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servir de respaldo ao direito sexual masculino de acesso sistemático ao corpo das

mulheres.

Além de estudada em cursos de pós-graduação, a peça tem sido alvo de estudos

por estudantes de graduação. Mônica de Aguiar Moreira Garbelini (2013), em um

estudo apresentado no X Seminário de Iniciação Científica Sóletras, na Universidade

Estadual do Norte do Paraná, analisou a exploração de Shakespeare sobre alguns

códigos sociais que remontavam à Antiguidade e ainda vigoravam no Renascimento: o

costume da filha mais velha ter que se casar antes da mais nova; a necessidade de se

obter a permissão do pai para cortejar a filha; a submissão da mulher em relação ao pai

e ao marido; o dote que a noiva deveria levar para o marido ao se casar. A autora aborda

a mulher na Idade Média, considerando que a função da peça era influenciar o público

feminino sobre o comportamento que este grupo deve adotar na sociedade em que vive,

ou seja, submissão e obediência total ao marido. Além disso, faz uma análise filosófica

da obra e um estudo sobre as personagens, que eram compostos por reis, rainhas,

prostitutas, assaltantes, cavaleiros, dentre outros.

Flavia Peres Pregnolatto, (2012) da Universidade Metodista de Piracicaba- SP,

analisa a peça A megera domada, como uma crítica e sátira do machismo e da

submissão das mulheres no período Renascentista. Nesta análise a autora considerou os

fatos históricos da época em que a obra foi realizada e as características próprias de

Shakespeare. Segundo ela, a maioria das análises sobre a obra A megera domada de

William Shakespeare, julga a obra como um retrato do machismo da era renascentista.

Porém, a obra em questão é uma comédia com a presença de muitas ambiguidades,

ironias e sarcasmos; características muito específicas do autor e por isto, segundo

Pregnolatto, podem sugerir uma conotação diferente à obra.

Com relação à telenovela, verificamos que foi alvo de estudo em meios

acadêmicos, grande parte deles estudos comparatistas que enfatizam O cravo e a rosa

como releitura de Shakespeare, tanto na área de Letras como na de comunicação. Após

realizarmos um levantamento sobre os estudos que tomaram a telenovela como objeto

de estudo destacamos alguns deles:

Liliam Cristina Marins Prieto, do Curso de Doutorado em Estudos Literários

pelo Programa de Pós-graduação em Letras da Universidade Estadual de Maringá

analisa a interface literatura/telenovela na peça The Taming of the Shrew

(aproximadamente 1593), de William Shakespeare, e sua versão para a telenovela O

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cravo e a rosa (2000), de Walcyr Carrasco e Mário Teixeira, a fim de verificar relações

existentes entre literatura e multimodalidades.

Ligia Maria Prezia Lemos, do Curso de Doutorado em Ciências da

Comunicação pela Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo,

ECA, USP, analisa a telenovela brasileira em múltiplas plataformas a partir da semiótica

da comunicação estética por meio de um breve exercício de decomposição estrutural.

Após explanação sobre as linguagens da arte, ela apresenta a decomposição de tema

arquetípico relacionado à disputa entre os sexos, presente em diversas obras, entre elas,

O cravo e a rosa.

Silvana Lopes, em sua dissertação no Programa de Pós-Graduação Mestrado

em Comunicação, da UNIP, estuda o formato da telenovela de época O cravo e a rosa

dentro do quadro histórico da telenovela brasileira. Neste contexto geral, o trabalho

analisa o padrão de produção estético e temático desta telenovela bem como o seu

aspecto comercial com o propósito de verificar se o formato televisivo modifica a

integridade e adequação dos elementos originais. Os seguintes aspectos são tratados

como objetivos específicos: a) a constituição da telenovela de época no Brasil, seus

problemas singularidades b) os elementos que estruturam o formato telenovela, o

formato mini-série: ganchos, clichês, repetitividade, cenário, figurino e iluminação. c) o

contexto histórico da cultura dos anos 20 em relação aos temas tratados na telenovela O

cravo e a rosa d) a adequação do cenário, figurino e iluminação com os temas tratados

na telenovela O cravo e a rosa.

Marly Custódio da Silva e Nataniel dos Santos Gomes, participantes do Círculo

Fluminense de Estudos Filológicos e Linguísticos da Universidade Estadual de Minas

Gerais, analisam a vida do homem do campo e suas relações com a cidade grande, bem

como o nascimento e desenvolvimento do "caipira" no Brasil rural. Para contextualizar

a pesquisa, eles buscam nas histórias em quadrinhos de Chico Bento clássico, de

Maurício de Sousa e na telenovela de Walcyr Carrasco, O cravo e a rosa (2000) em seu

núcleo rural, a relação de amor à terra e aos animais e a busca pela conquista do seu

amor, sendo que nos quadrinhos de Chico Bento, de Maurício de Sousa, o amor nasce

naturalmente na infância, enquanto que em O cravo e a rosa deverá travar uma

"batalha" para conquistar a mulher amada.

A proposta analítica por que optamos difere das demais, porque analisa a

instituição do casamento no teatro e na telenovela, uma possibilidade comparatista não

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explorada pelos trabalhos já citados, os quais se ativeram a outros objetivos em suas

comparações entre a peça de Shakespeare a versão televisiva.

Nesta proposta, pretendemos analisar o casamento enquanto fator de

mobilidade social, distinguindo o casamento baseado no amor do casamento motivado

pelo interesse econômico, identificar as possíveis relações entre a obra literária e a

telenovela que apontam para uma reflexão crítica sobre o comportamento humano nas

respectivas sociedades, identificar o efeito dos papéis sociais sobre a felicidade

individual e familiar, estudar o contraste entre aparência e realidade no contexto da

transgressão, como representado pela troca de identidade e que tem o objetivo de

negociar o casamento, analisar as relações sociais e o lugar da mulher na relação

amorosa, na peça e na telenovela.

Ao estudar a peça de Shakespeare tendo como enfoque o casamento como

instituição econômica e as relações sociais que se estabelecem a partir dessa instituição

social, objetivam-se distinguir o casamento baseado no amor (Bianca e Lucêncio) e o

casamento motivado pelo interesse econômico (Petrúquio e Catarina), enquanto fator de

mobilidade social.

Propomos a análise do casamento como fenômeno social, e desse modo,

mesmo entendendo que o casamento possui relações com outros fatores sociais já

discutidos em outros estudos acadêmicos, procuramos problematizar até que ponto as

estruturas patriarcais e econômicas permeiam as relações de gênero, influenciando na

promoção e continuidade do casamento. Nesse sentido, entendemos que a análise das

relações sociais, especialmente o relacionamento pai-filha, o lugar da mulher na relação

amorosa, e a exploração da dimensão social do amor no enfoque do casamento como

instituição econômica far-se-á necessário. Através desses enfoques analíticos,

pretendemos estabelecer uma relação entre o teatro elisabetano e a telenovela brasileira,

com o propósito de identificar como as relações tecidas em torno do casamento são

representadas, bem como possíveis diferenças e/ou semelhanças com relação a essa

instituição em cada um desses contextos. É nossa preocupação verificar como as

relações entre os pares românticos vieram a acontecer, para então concluirmos se

resultaram de motivação amorosa, se foram motivadas pelo interesse econômico, ou se

há um cruzamento com relação a tais fatores.

Analisamos, a partir do viés literário, como Walcyr Carrasco faz a releitura do

teatro shakespeariano do século XVI, mantendo a abordagem sobre o casamento como

instituição econômica para os dias atuais. Apesar dos objetos terem títulos diferentes,

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Carrasco mantém os nomes dos protagonistas e apresenta um novo olhar a partir do

contexto social brasileiro. Para tanto, acrescenta subenredos, os quais, como na peça de

Shakespeare, têm como objetivo contrastar o comportamento e posicionamento social

dos pares românticos.

Como já exposto, este estudo parte da percepção de relevância sobre o estudo

do comportamento da sociedade, especialmente as relações sociais. Com este enfoque,

queremos abordar dois diferentes gêneros textuais, o teatro e a telenovela. O estudo se

desenvolverá através de uma análise comparatista dos respectivos gêneros no século

XVI na Inglaterra e no Século XX no Brasil.

Sabendo que a Literatura discute as ações do homem ao longo dos anos e que

ela é capaz de conduzir uma reflexão significante sobre as transformações vividas em

diferentes lugares e diferentes períodos, queremos estudar as relações entre as classes

sociais em uma obra literária e inglesa em comparação com um texto não-literário

brasileiro. Isto fará refletir sobre a desigualdade social e outros comportamentos

vivenciados ao longo da história nos dois países. Assim, é nosso intuito apontar as

possíveis relações entre a obra literária e o gênero não literário, da indústria televisiva,

que direcionam para uma reflexão crítica sobre o comportamento humano. Entendemos

que esta proposta é relevante pelo fato de que todos têm vivenciado, em algum

momento, a desigualdade entre classes sociais.

Justifica-se a adoção desta abordagem comparatista, pois o Programa de Pós-

Graduação em Letras em nível de Mestrado da Universidade Regional Integrada do Alto

Uruguai e das Missões – URI – Campus de Frederico Westphalen tem como Área de

Concentração a Literatura Comparada. Esta disciplina objetiva, como H. H. Remak

(1961) afirma, relacionar a literatura a outros campos de conhecimento, uma

possibilidade que se abre, inclusive, ao cruzamento de um tema em diferentes suportes,

como o literário e o da telenovela.

A pesquisa vincula-se à linha de pesquisa Comparatismo e Processos Culturais,

a qual tem como objetivo investigar os diálogos da literatura processos culturais,

socioculturais e econômicos, buscando entender os discursos que integram o campo da

cultura e as interrelações entre cultura/poder. Sem dúvida, o discurso sobre o casamento

na renascença inglesa e no século XX, no Brasil enquadra-se nessa proposta analítica.

Ademais, a linha de pesquisa abrange as textualidades contemporâneas, nelas incluindo

literaturas de língua português e inglesa, como as estudadas nesta pesquisa.

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A metodologia empregada foi a da pesquisa bibliográfica e estudo analítico de

textos. Os gêneros textuais distintos a que pertencem as obras em análise levaram à

opção por metodologia analítica diferenciada para cada uma delas: a peça A megera

domada será analisada a partir do texto teatral escrito, o que se delimita na análise dos

diálogos, na narração do espaço, descrição dos personagens e dados de catálogo como

ano e personagens. Já a telenovela será analisada a partir dos vídeos originais, o que

possibilita o estudo das falas, cenas, cenários, figurinos, características visuais, trilha

sonora, movimentos de câmera, entre outras características que o gênero proporciona.

No primeiro capítulo abordaremos as características da comédia romântica

shakespeariana e as características gerais da telenovela brasileira, a qual tem como

função representar momentos da sociedade brasileira. No segundo capítulo faremos um

estudo sobre o casamento e suas relações na sociedade da renascença inglesa, abordados

pelo teatro shakespeariano e estudaremos, também, sobre como este tema é abordado na

telenovela que retrata a sociedade brasileira na década de 20. E, no terceiro capítulo

faremos a análise entre os objetos para apontar relações e diferenças, a partir dos temas

já mencionados.

Para isto, faremos a análise a partir de trechos que apresentam situações sobre a

temática escolhida a partir do enredo de Shakespeare para serem comparados com

recortes da telenovela. No entanto, sabendo que a telenovela é uma releitura do teatro,

apontamos as diferenças e semelhanças entre os contextos, a partir da análise dos

objetos distintos.

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1 A COMÉDIA ROMÂNTICA SHAKESPEARIANA E A TELENOVELA

BRASILEIRA: CARACTERIZAÇÃO INICIAL

Este capítulo tem como objetivo conceituar as características do teatro

shakespeariano e da telenovela brasileira. Inicialmente apresentaremos as características

do teatro elisabetano, com ênfase na comédia romântica shakespeariana, gênero ao qual

pertence A megera domada, que será analisada neste trabalho. A seguir, serão

apresentadas as características da telenovela brasileira, dedicando-se, ainda, parte deste

capítulo à identificação das telenovelas produzidas no Brasil a partir da adaptação de

obras de Shakespeare. Pretende-se, com este capítulo, iniciar a construção de arcabouço

conceitual, a partir do qual será possível desenvolver a análise comparatista.

1.1 A COMÉDIA ROMÂNTICA SHAKESPEARIANA: CARACTERÍSTICAS

O Renascimento foi um movimento filosófico e cultural dos séculos XV e

XVI, o qual evidenciou transformações que não mais correspondiam ao conjunto de

valores apregoados pelo pensamento medieval. Um aspecto fundamental do pensamento

renascentista é o privilégio dado às ações humanas, o que frequentemente se traduziu na

valorização de situações do cotidiano e, na arte, na reprodução dos traços e formas

humanas. Por outro lado, a valorização das ações humanas é evidência de ainda outra

característica do nascente individualismo burguês: o exercício da capacidade de

questionar o mundo, aspecto que fica particularmente patente na comédia escolhida para

estudo neste trabalho, como se analisará mais tarde.

A valorização das ações humanas, ou humanismo, acompanha o florescimento

da burguesia, o que já vinha acontecendo desde a Baixa Idade Média. De acordo com

Souza (2016) a razão era uma manifestação do espírito humano que colocava o

indivíduo mais próximo de Deus. Ao exercer sua capacidade de questionar o mundo, o

homem distanciava-se da razão e privilegiava as ações humanistas que eram

representadas na reprodução de situações do cotidiano e na rigorosa reprodução dos

traços e formas humanas, através de um conjunto de temas e interesses aos meios

científicos e culturais de sua época.

A relação do Renascimento com a burguesia é perceptível no desenvolvimento

das grandes cidades comerciais. Na Itália, Gênova, Veneza, Milão, Florença e Roma

tornaram-se grandes centros de comércio, nos quais a intensa circulação de riquezas e

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ideias promoveram o desenvolvimento das artes. Mais do que enfatizar o mecenato,

através do qual até mesmo algumas famílias comerciantes da época, como os Médici e

os Sforza, patrocinaram o desenvolvimento da arte e estudos renascentistas, queremos

acentuar o papel social dado a essa classe dos negociantes: não é à toa que Shakespeare

escolhe a Itália, e a família do rico Batista Minola, como cenário para a análise social

levada a efeito em A megera domada.

Iniciado na Itália, o Renascimento espalhou-se por toda a Europa. De acordo

com Leandro Luz (2002), a Renascença inglesa teve três principais pilares de

sustentação: a razão, como manifestação do espírito humano, que aproximava o

indivíduo de Deus; o privilégio às ações humanas – humanismo e o elogio às

concepções artísticas da Antiguidade Clássica. Dentro do período abarcado pela

Renascença na Inglaterra, o período de maior desenvolvimento econômico e político foi

o que corresponde ao reinado da rainha Elizabeth I da Inglaterra, de 1558 a 1603, razão

pela qual recebe o nome de período elisabetano.

Dado o foco do presente trabalho, limitaremos esta apresentação inicial à

exposição acerca do desenvolvimento do teatro na Renascença inglesa, enfocando de

modo especial a Shakespeare, o mais destacado dos dramaturgos do período, e autor da

peça que é objeto deste estudo. Ainda outro recorte se faz necessário: embora

Shakespeare tenha produzido tragédias, comédias e peças históricas, além de poemas,

este estudo se limitará a caracterizar a comédia romântica shakespeariana, uma vez que

é a esse gênero que pertence A megera domada. Para dimensionar esse

desenvolvimento, será necessário, inicialmente, reportar-nos aos primórdios do teatro

inglês na Idade Média.

Segundo Barbara Heliodora (2009), o teatro elisabetano começou a aparecer na

metade da década de 1580 quando o teatro medieval já tinha passado. Nos primeiros

trinta anos do reinado de Elisabete I, ou seja, até meados da década de 1580, não

ocorreram mudanças significativas no teatro inglês. Durante essa época, no entanto, o

terreno estava sendo preparado para os acontecimentos que estavam por vir, por meio de

uma série de fatores decisivos: em primeiro lugar, data de 1500 o surgimento do inglês

moderno. Os ingleses estavam encantados com a grande potência e beleza de sua língua,

(HELIODORA, 2008); poetas que surgiram por volta da metade do século encontraram

a grafia e a gramática normatizada – a língua se desenvolvia e se tornava um

instrumento cada vez mais maleável a serviço da imaginação.

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Em segundo lugar, outro elemento fundamental era a possibilidade de trânsito

social: a Idade Média se caracterizara pela fossilização da estrutura social, mas o

crescimento do comércio e a possibilidade de aquisição de riquezas trouxeram consigo a

possibilidade de se alcançar altos cargos, boa posição social e, com sorte, até mesmo a

admissão à nobreza. Com estas perspectivas em vista, os que tinham condições iam se

preocupando em ter casas mais bonitas, roupas com maior estilo e atividades culturais e

artísticas. (HELIODORA, 2008).

Segundo a crítica Bárbara Heliodora, em 1576 um ex-carpinteiro, James

Burbage, que optara pelo teatro, considerou que Londres já tinha condições para

sustentar um teatro, ou seja, um edifício dedicado à apresentação de espetáculos teatrais.

E foi a definição do palco elisabetano, inspirado no uso das carroças dos mambembes

medievais, que tornou possível o aparecimento regular de atividades cênicas

profissionais. Uma década após ser construído o primeiro edifício teatral batizado de

teatro, e graças a todas as experimentações que vinham sendo realizadas por jovens

poetas, aparece o fenômeno que chamamos de teatro elisabetano, com a montagem do

Tamerlão de Christopher Marlowe, e da Tragédia espanhola de Thomas Kyd.

A forma do palco e a dramaturgia foram mutuamente enriquecedoras: por

vezes, as facilidades do palco permitiam ao autor ousar mais em seu texto, por outras, o

texto provocava alguma extensão no aproveitamento do espaço cênico, ou seu

aprimoramento.

Para Heliodora (2009), uma das marcas básicas do teatro renascentista foi a

transição do religioso para o secular, das glórias da vida futura para o gozo da vida

presente. A ótica medieval é radicalmente diversa da renascentista em relação a tudo o

que acontece, e o ponto de referência agora é o homem. As descobertas abrem

horizontes de aventuras, a feição do mundo muda quase que diariamente.

Surge nesse período um primeiro esboço do capitalismo, o dinheiro passa a ter

o mesmo valor que a terra, e aparece como força libertadora, já que o comércio rompe

não só o imobilismo econômico como também o social. O enriquecimento e o acesso à

educação permitem o trânsito de uma classe para outra. Depois de séculos de rígida

hierarquia feudal, o homem descobre que tem potencial para alcançar praticamente

tudo. (HELIODORA, 2009).

Na qualidade do primeiro país totalmente independente, não subordinado a

Roma, a Inglaterra pode permitir ao teatro uma liberdade que o teatro espanhol, por

exemplo, não conheceu. O grande florescimento do teatro inglês só chegou, no entanto,

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no reinado da filha de Henrique VIII, Elizabeth I. A era elisabetana e o século de ouro

espanhol formam juntos o último período do teatro autenticamente popular que o

mundo conheceu: merece esse nome o teatro que produz obras de alta qualidade, e,

conquanto escrito em termos de preocupação estética, é acessível e reflete pensamentos

e sentidos da vasta maioria da sociedade de sua época, sendo visto e apreciado por uma

porcentagem significativa dessa mesma sociedade. É um teatro que atinge o mais alto

nível, e por meio do qual as necessidades do gosto popular são atendidas, no entanto

sem fazer concessões. Nas considerações de Heliodora, na história do teatro do ocidente

é sempre possível constatar uma notável coincidência entre o melhor teatro até hoje

escrito e o mais popular, como, por exemplo, com Sófocles, Shakespeare e Molière.

O teatro elisabetano chegou a dominar um país inteiro, em uma época de

comunicações precárias, muito diferentes das de hoje. Tornou-se de tal forma popular

que conseguiu atrair para si talentos que encontraria sua expressão mais feliz, talvez, em

outras formas literárias. Contudo, naquele momento esses escritores sentiram que era

preciso escrever para o teatro.

É interessante destacar o uso do termo “elisabetano”, normalmente usado a

respeito das, aproximadamente, seiscentas peças escritas entre a segunda metade da

década de 1580 e 1642, quando foram definitivamente fechados e destruídos pelos

puritanos, todos os teatros na Inglaterra. Os Stuarts receberam pronto o ambiente

propício e o magistral drama produzido em seu reino foi o impulso inicial do período

elisabetano.

O teatro no período da Renascença Inglesa cresceu a partir da tradição

medieval estabelecida do mistério e da moralidade. Embora tanto o mistério como a

moralidade fossem espetáculos públicos que focavam temas religiosos, havia uma

diferença fundamental entre eles: o mistério focava na representação de peças bíblicas e

com acompanhamento musical e tratava de assuntos como Adão e Eva, Caim e Abel,

enquanto a moralidade alegorizava as virtudes cristãs.

Influenciado pela Igreja católica, o teatro medieval foi essencialmente um

teatro litúrgico, articulado com os ritos e celebrações da Igreja Católica. Os mistérios

eram atos que envolviam centenas de figurantes em inúmeros episódios que

reproduziam, de forma mais ou menos realista, a natividade de Jesus, sua vida e seus

milagres e a Paixão de Cristo, encenada no ritual da Semana Santa. Os autos natalinos

que ainda se encenam no interior do Brasil, a representação da Via-Sacra, as procissões

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do Senhor Morto e do Encontro, descendem dessa tradição litúrgica medieval, comum a

toda a Europa católica romana e que os colonizadores trouxeram para o Novo Mundo.

Outra forma de teatro medieval foi a moralidade. As representações desse

gênero se desenvolveram no século XIV, ou seja, mais tarde que o mistério, de modo

que serviu de continuação a esse gênero. Embora as moralidades estivessem repletas de

ensinamentos cristãos, os acontecimentos bíblicos dão lugar a figuras que

personificavam defeitos, virtudes, acontecimentos e ações do homem, em conflito com

as correntes opostas do Bem e do Mal pela posse da alma humana no momento da

morte. Desta forma, podemos dizer que as moralidades baseavam-se no princípio

universal decorrente da queda e da redenção da humanidade: o homem é destinado a

morrer em pecado, a menos que seja salvo pela intervenção divina. Assim, os temas

tinham sempre intenção didática pretendiam transmitir lições morais e religiosas, e até,

por vezes, políticas. (SÉRGIO, 2009). Tanto o mistério como a moralidade eram,

geralmente, encenados por coristas, monges ou comerciantes de uma cidade.

No final do século quinze, novos modelos de peças apareceram, os quais

receberam o nome de interlúdio. Estas peças eram realizadas nas casas de famílias

nobres e na corte, especialmente em épocas de férias. Os interlúdios começaram a

afastar-se do caráter didático das peças tradicionais, constituindo-se na primeira

manifestação teatral puramente secular do teatro medieval inglês. Embora o riso não

estivesse de todo ausente nos mistérios, nos quais as histórias bíblicas eram, por vezes,

apresentadas com certo humor, é com o advento dos interlúdios que o elemento cômico

passa a se fazer mais presente no teatro inglês.

Na Renascença, o teatro inglês sofre um avanço considerável, especialmente se

consideradas as formas rudimentares praticadas na Idade Média. Como o próprio nome

Renascimento sugere, e como já registrado anteriormente, a Renascença caracterizou-se,

em parte, pelo retorno ao humanismo clássico. O interesse pelo clássico cresceu e pelas

peças de antiguidade clássica, especialmente nas universidades. Os textos latinos foram

traduzidos para o inglês e a poesia latina e as peças começaram a ser adaptadas em

peças inglesas. Em 1553, um professor chamado Nicholas Udall escreveu uma comédia

em inglês intitulada Ralph Roister Doister com base nas comédias latinas tradicionais

de Plauto e Terêncio. Neste mesmo tempo, em Cambridge, a comédia Gammer

Gurton´s Needle, possivelmente escrita por William Stevens, do Colégio de Cristo,

divertia os alunos. Dá mais atenção à estrutura das peças latinas, e foi o primeiro a

adotar a divisão em cinco atos.

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De acordo com Barbara Heliodora (2009), o teatro na Renascença, influenciado

pelos autores romanos, adotou a noção de uma ação em cinco atos, a ideia de um grande

protagonista, e a preocupação com a beleza da linguagem utilizada. Os escritores

também estavam desenvolvendo tragédias em inglês pela primeira vez, influenciados

por autores gregos e latinos; dentre estes se destaca o dramaturgo romano Sêneca, cujas

obras foram traduzidas para o inglês por Jasper Heywood, filho do dramaturgo John

Heywood, em 1589. As peças de Sêneca incorporavam discursos retóricos, sangue e

violência, e muitas vezes fantasmas; componentes que deviam figurar com destaque no

drama elisabetano. (JOKINEN, 2010). Dessa forma, o teatro elisabetano pode ser

considerado uma mistura de tradições poéticas e teatrais da cultura clássica, no qual,

com a imaginação do público, os autores podiam contar qualquer história,

esquadrinhando romances e tragédias gregas, contos medievais e comédias italianas,

dentre outros.

Passada a fase inicial do Renascimento inglês, com a ascensão ao trono da

rainha Elizabeth I, grande apreciadora e encorajadora do gênero dramático, o teatro

inglês sofreu grande impulso. Durante esse período, destaca-se a figura de William

Shakespeare, embora a Renascença inglesa tenha conhecido outros dramaturgos que

contribuíram para o avanço do gênero teatral na Inglaterra, como Christopher Marlowe.

A carreira de Marlowe como dramaturgo encontra-se entre os anos de 1587 e 1593, e a

sua fama reside especialmente em quatro grandes peças: Tamburlaine the great, um

épico heróico em forma dramática dividida em duas partes de cinco atos cada (1587,

impressa em 1590); Doctor Faustus (1588) entrou no Hall Stationers (1601); A tragédia

famosa The Jew of Malta (que data talvez de 1589, mas estreou em 1592, e foi impressa

em 1633); e Edward II(impresso em 1594).

Cada uma dessas peças apresenta características singulares e inovadoramente

criativas. Tamburlaine the great é a primeira peça escrita em inglês, sem rimas

decassilábicas. A qualidade do Fausto de Marlowe é atestada pelo julgamento generoso

que dele faz Goethe; embora tenha quase a estrutura de uma peça, é realmente um

poema dramático, dotado de grande intensidade de propósito, como, por exemplo, a

concepção e expressão das agonias sofridas por Fausto sob a iminência imediata de sua

desgraça. Quanto a The Jew of Malta, é opinião de Swinburne que a última parte da

peça declina em energia, mas os dois primeiros atos seriam suficientes para justificar a

fama da obra; além disso, o retrato do herói antes que degenere em caricatura é

marcante. Prova da maestria de Marlowe é o fato, ainda, de que em Edward II a cena da

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deposição do rei em Kenilworth é quase tão efetiva em seu efeito trágico e qualidade

poética quanto à cena correspondente no Richard II, de Shakespeare, ainda que seja

menor e menos elaborada que esta última. (SWINBURNE, in JOKINEN, 2010)

O surgimento de Shakespeare só foi possível graças às condições e

circunstâncias sociais, culturais, intelectuais e estéticas, que se formaram a partir de dois

mundos: a Idade Média e o Renascimento. Diferentemente das dramaturgias francesas e

italianas, que seguiam de perto os princípios básicos sobre o drama teorizados por

Aristóteles, transformados em regras prescritivas pelas poéticas barroco-classicistas, o

teatro inglês encontrou seu destino aproveitando o melhor dos dois.

Passamos, agora, à exposição e caracterização do teatro daquele cujo nome se

tornou quase sinônimo desse gênero na era elisabetana – William Shakespeare. Como

Paula Mathenhauer Guerreiro (2012) registra, o teatro de Shakespeare mantém os cinco

atos do teatro clássico, mas não as unidades de tempo, lugar e ação. Enquanto as peças

gregas e latinas, até então, desenvolviam-se em um único espaço, normalmente em

frente a um palácio, em Shakespeare os cenários são múltiplos. Com a unidade de ação,

a ruptura também é clara: enquanto no drama grego a ação deve ser centrada no

personagem principal – rei, rainha ou outra figura nobre – na dramaturgia de

Shakespeare personagens secundários têm autonomia de confabular e determinar novos

rumos. Ademais, a tragédia grega desenvolve a trama no período de um dia, porque está

centrada na solução do conflito; ainda aqui, Shakespeare rompe com as normas do

teatro clássico, prolongando a ação de suas peças para além do período de vinte e quatro

horas.

É assim, por exemplo, que em A megera domada não só os cenários são

múltiplos, como há múltiplos cursos paralelos de ação, a qual se desenvolve em período

superior a um dia. A ruptura com o espaço único permitiu a Shakespeare não só dotar os

personagens de maior mobilidade, permitindo-lhes deslocamentos que acabam

desencadeando cursos de ação, bem como proporcionou-lhe um meio suplementar de

caracterização dos personagens. Lucêncio vem de Pisa para Pádua, sem o que seu

encontro com Bianca seria impossível; também Petrúquio se desloca de Verona para

Pádua com o intuito de encontrar uma esposa rica. Além de possibilitar a formação dos

dois principais pares românticos da peça, o deslocamento de lugar permite a

aproximação entre personagens de culturas diferentes. Em A megera domada o

deslocamento dos personagens vindo de Pisa para morar em Pádua, permite-lhes

apreciar essa cidade, sua grande economia e oportunidades de negócios e estudos. O

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deslocamento possibilita também a aproximação entre a vida urbana e a vida

camponesa, como é o caso de Petrúquio que, sendo camponês, vem à cidade em busca

de uma esposa.

Já as cenas em praça pública permitem a cumplicidade entre personagem e

público. No entanto, a praça pública representa o local de encontro e relações entre as

diversas classes sociais representadas na peça. Quando os personagens assumem essas

características estão representando a sociedade. Através da caracterização da casa de

Batista é possível identificar o perfil da classe alta, nobreza, envolvida em relações de

mercantilização do casamento. Quanto à casa de Petrúquio, é possível identificar o

perfil da classe média. A fazenda, em situação econômica precária, traz à tona os

problemas enfrentados na classe baixa. As relações entre os personagens permitem o

encontro das classes sociais.

De acordo com Bárbara Heliodora (2014) em Londres, ao tempo de

Shakespeare, a população já chegava a quase 300 mil habitantes; as numerosas

hospedarias desempenhavam papel importante na vida social e econômica da cidade,

nos negócios como nas diversões, correspondendo aos hotéis, restaurantes e clubes dos

tempos modernos, além de atraírem todos aqueles que queriam se divertir.

Batista é apresentado como um nobre rico em Pádua, tendo uma grande e

luxuosa casa onde habita com as filhas e com a empregada doméstica. Vários detalhes

de riqueza são descritos. Percebe-se que, pela descrição do ambiente e condições

sociais, Batista possui empregados, que as filhas de Batista ocupam-se em estudar e ler.

Batista apresenta-se como dono de muitas terras, as quais correspondem a vinte mil

coroas.

O confronto entre a propriedade de Batista e a de seu genro Petrúquio

apresenta contraste que contribui para caracterizar as classes sociais a que pertencem.

Petrúquio é apresentado como dono de uma casa de campo, proprietário de cavalos

fatigados, homem cansado e próximo à falência. A introdução desses personagens

possibilita uma demonstração do contexto da sociedade do período elisabetano, uma

sociedade em que se manifestavam claramente a discriminação social e a discriminação

de gênero (HELIODORA, 2014).

Enquanto o teatro grego tratava especialmente da elite, o teatro shakespeariano

insere personagens da classe burguesa, os quais têm posicionamentos críticos em

relação aos acontecimentos da sua época. Em A megera domada esses personagens

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pertencentes à classe burguesa, e assumem uma personalidade falsa para aderir aos

costumes e serem prestigiados pela elite.

Por outro lado, o rompimento com a unidade de ação contribui para a formação

do que viria a ser uma das características da comédia romântica shakespeariana, ou seja,

a exposição de múltiplos cursos de ação, com a presença do enredo principal e

subenredos. Como se percebe em A megera domada, o enredo principal narra o

relacionamento entre Petrúquio e Catarina, e como subenredo narra o romance entre

Bianca e seus pretendentes, especialmente Lucêncio. Esta característica do teatro

shakespeariano possibilita um olhar ao casamento sobre vários ângulos. Por outro lado,

percebemos o interesse econômico como responsável pelos pares românticos: Petrúquio

e Catarina e Lucêncio e Bianca. Mesmo que na narrativa de Shakespeare, Lucêncio e

Bianca apresentam-se, inicialmente, como um par movido pelo amor, entende-se,

também, que Lucêncio possui interesses sociais ao agregar-se à família Minola.

A quantidade de personagens no teatro de Shakespeare proporciona uma

análise da sociedade. Enquanto algumas peças representavam apenas personagens da

burguesia, as peças de Shakespeare representam a multiplicidade dos grupos sociais.

Batista, pai de Catarina e Bianca, é rico comerciante de Pádua; os tutores que se

apresentaram para instruir as irmãs Minola na intimidade do lar, por sua nobre função,

apresentam-se como pertencentes à classe média; o músico que vem a fazer o papel de

Vicêncio ( pai de Lucêncio) é um nobre muito rico de Pisa; Petrúquio, pretendente de

Catarina, é pobre, e Cristopher Sly, um funileiro. Na peça também há personagens

representantes de alfaiates, lojistas, hotelaria, caldeireiro, viúvas e criados. Estes

personagens entram em cena para representar a classe baixa. Sly é apresentado como

pobre que sofre o engano de estar rico; a viúva e criados entram em cena como

empregados que estão preparados e aptos a servir a classe alta; Biondelo, criado de

Batista, o serve com tranquilidade e disposição. Assim, a relação entre estes

personagens demonstra o encontro entre classes sociais, mesmo que em contraste.

Quanto ao rompimento da unidade de tempo, o teatro shakespeariano

proporciona ao leitor/espectador um contexto sobre os fatos que estavam acontecendo

na sociedade. É possível perceber o planejamento dos personagens ao envolverem-se

em uma falsa identidade para alcançar seus interesses econômicos.

Em A megera domada Shakespeare apresenta uma história inicial e, a partir

dela, passa a narrar a história principal. A esta característica Patrícia Barth Radaelli de

Oliveira (2005), dá o nome de indução, ou seja, um direcionamento que leva o público a

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entender o enredo como uma narração dirigida a outros personagens e não diretamente

ao público. Nenhuma das outras peças de Shakespeare começa com uma história na qual

uma peça completa de cinco atos é realizada dentro de outra peça. Nas cenas iniciais da

Indução - I e II–, são apresentados personagens que estão em uma cervejaria, dentre os

quais Christopher Sly, um mendigo bêbado que, ao dormir, é criticado pelos demais

personagens. Estes decidem pregar-lhe uma peça: estando Sly em profundo sono,

decidem transformar-lhe a vida, de forma que, ao despertar do sono, estivesse

transposto a um ambiente em que poderia se julgar um nobre. Transportado para a cama

de um aristocrata, e vestido com suas roupas, ao despertar Sly recebe, ainda, tratamento

especial. Para explicar a troca de situação, levam-no a acreditar que estivera em

profundo sono por quinze anos. Enquanto todos os personagens se divertem com a

surpresa e reações de Sly, propõem apresentar peça em sua homenagem, a qual vem a

ser os cinco atos de A megera domada. Dessa forma, esta se apresenta como uma peça

dentro de outra peça.

A indução cumpre o propósito de direcionar o público a compreensão dos

temas que a peça aborda. Como em A megera domada, a situação inicial induz o

público à percepção da situação social do personagem Sly. Quando este adormece, os

demais personagens o enganam, realizando uma transformação social, a qual induz o

público a refletir sobre a mudança social e econômica realizada por meio do casamento

mercantilizado da sociedade inglesa.

Na comédia há dois tipos essenciais de humor: o cômico, decorrente de

situação que envolve a trama, ou seja, enredo cômico, e o cômico, decorrente do caráter

dos personagens. A comédia Shakespeariana é de situação, portanto, uma pessoa é

colocada em circunstâncias sobre as quais tem pouco ou nenhum controle, como por

exemplo, o conflito de Bianca e Catarina, e/ou dos pretendentes a elas com o senhor

Batista.

Mesmo os inúmeros episódios de engano a que ocorrem pairam em torno de

Batista, já que, no afã de conquistar a mulher que desejam, os pretendentes fazem

parecer a ele que o que aparentam ser é realidade, quando, na verdade, não passa de

farsa. É assim que ante a proibição do casamento, e o anúncio da contratação de tutores

que ensinem as moças no recôndito do lar, surgem dois tutores, com identidades falsas,

além de um falso Lucêncio, cuja identidade é assumida por Trânio, seu empregado.

Com a mercantilização do casamento, Petrúquio aparenta uma riqueza que na verdade

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não tem com o propósito de conquistar a família de Catarina e receber o dote. Lucêncio,

para conquistar Bianca, recorre a um falso pai para sustentar sua oferta de dote.

A presença de tais enganos e confusões constitui-se em outra das

características da comédia romântica, a existência de um elemento às avessas, no qual

os papeis sociais são invertidos. Nessa convulsão da ordem social, a estrutura social,

que uma vez impedia os jovens amantes de se casar, é transformada, e os problemas são

resolvidos, de forma que o ato final muitas vezes inclui um casamento e uma

celebração. É assim que, na peça em estudo, Batista, o nobre e rico homem de Pádua é

enganado e dominado pelos pretendentes de sua filha Bianca. Por outro lado, Petrúquio

aceita a condição e desafio de conquistar a nobre Catarina, quebrando a ordem social de

celebrar o casamento entre a nobreza.

Na qualidade de comédia romântica, A megera domada concentra-se

principalmente nas relações amorosas entre homens e mulheres e como elas se

desenvolvem a partir do interesse inicial sobre o casamento. No entanto, ao contrário de

outras comédias de Shakespeare, A megera domada não idealiza os desejos de amor, e o

casamento é visto como uma resolução para as situações financeiras dos envolvidos.

Assim, o desejo emocional desempenha apenas um papel secundário de exploração do

amor. Em vez disso, a comédia enfatiza os aspectos econômicos, especificamente o

modo pelo qual as considerações econômicas determinam quem casa com quem.

A peça tende, assim, a explorar relacionamentos românticos a partir de uma

perspectiva social, abordando as instituições de namoro e casamento, além das paixões

internas dos amantes. No entanto, explora como o namoro não apenas afeta os amantes,

mas também os seus pais, seus servos, e seus amigos. O relacionamento de namoro é

negociado entre o futuro marido e pai da futura esposa. Como tal, o casamento torna-se

uma transação que envolve a transferência de dinheiro. É necessário tanto a Petrúquio

como a Lucêncio/Trânio negociar o casamento com Batista. Nesse caso, como Trânio, a

serviço de seu senhor Lucêncio, passa-se por este último, a negociação do casamento,

em que a presença de seu pai é requerida para confirmação do dote oferecido, requer a

busca de um falso pai que confirme a transação. Lucêncio ganha o coração de Bianca,

mas a ele é dada a permissão para casar com ela só depois que ele é capaz de convencer

Batista de que é fabulosamente rico. Já Hortênsio, que tinha oferecido dote maior,

desiste de suas intenções de casar-se com Bianca, pois percebe que esta amava

Lucêncio, e opta pelo casamento com uma rica viúva, inominada, o que se constitui em

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outro exemplo claro da mercantilização do casamento e do lugar irrelevante dado ao

desejo romântico.

Apesar da tematização do casamento como instituição econômica e dos efeitos

dos bens financeiros sobre a felicidade individual, A megera domada é uma comédia

romântica. Conforme Willian C. Carroll (2003) ressalta, o que define a comédia

romântica shakespeariana não é a presença do humor, mas a presença da transição da

desarmonia (as comédias tendem a começar em um tumulto) para a harmonia final

representada pelo casamento ou pela promessa de uma união conjugal. Essa

característica associa-se a outras ainda, como a existência de impedimentos, de várias

naturezas, para a concretização do casamento, e a consequente jornada dos amantes para

a superação desses bloqueios. Entre esses obstáculos, figuram leis sociais, acidentes

naturais, como naufrágios, ou a existência de pais despóticos e insensíveis, como é o

caso com Batista. Por vezes, os personagens fogem ou são exilados, ou saem de um

contexto tradicional para um mundo mais moderno, "civilizado". Assim, têm de

escolher (ou são forçados) a fugir para uma distante nova realidade, muitas vezes,

obrigados a vestir disfarces, o que dá origem, como já assinalado, a confusões e

identidades trocadas, mas sem mortes de personagens. Pode haver, também, conflito

entre dois grupos sociais opostos: governantes e súditos, mais velhos e mais jovens,

ricos e pobres – as duas últimas situações ocorrem na peça em estudo, como

representado pelo conflito entre Batista Minola e suas filhas e/ou pretendentes, menos

abastados do que ele. Fatos como este último evidenciam que o casamento é uma

questão que envolve não apenas contextos amorosos, mas, em muitos casos, contextos

sociais influenciam estas relações.

Outro tema explorado por Shakespeare tende a apresentar o efeito de papeis

sociais sobre a felicidade individual entre os envolvidos no casamento. Cada pessoa na

peça ocupa uma posição social específica que carrega consigo certas expectativas sobre

como deve se comportar. A posição social de uma personagem é definida por dados

como a sua riqueza, idade, sexo, profissão, parentesco e educação. Estas questões

envolvem os personagens ricos, como Batista e seu parentesco; o sexo masculino na

sociedade patriarcal; as profissões, como músicos e professores, que eram prestigiadas

pela classe alta, e a educação como ferramenta dos filhos e filhas da elite. (CARROLL,

2003).

As normas que regem a forma como cada um deve se comportar são duramente

impostas pela família, amigos e a sociedade como um todo. Por exemplo, na peça em

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análise, Lucêncio ocupa o papel social de um jovem estudante rico, Trânio a de um

servo, e Bianca e Catarina os de moças de classe alta à espera do casamento. Parte do

conflito existente na peça prende-se ao fato de que Catarina recusa-se a exercer seu

papel social do modo como se espera que o cumpra, e suas atitudes ásperas são os

resultados de sua frustração a respeito de sua posição. Como ela não vive as

expectativas de comportamento da sua sociedade, enfrenta a desaprovação acerca das

opiniões que defende, e, devido a sua posição e comportamento, torna-se

miseravelmente infeliz: o papel social que deveria ocupar não condiz com sua

personalidade. Por isto ela é vista como umA megera, que precisa ser domesticada ao

padrão esperado pela sociedade da época. (CARROLL, 2003)

Embora Catarina seja a única dos muitos personagens em A megera domada

que tentam burlar ou negar seus papeis socialmente definidos, há outras instâncias de

burla dos papeis sociais com o intuito de obtenção de vantagens pessoais, a que já nos

referimos, anteriormente, no quadro da discussão do mundo às avessas apresentado pela

comédia: Lucêncio transforma-se em um professor de Latim, Trânio se transforma em

um jovem rico aristocrata, ao assumir a identidade de seu patrão Lucêncio, Christopher

Sly é transformado de um funileiro a um senhor, e assim, a peça apresenta outras

mudanças de identidade dos personagens.

Os temas abordados por Shakespeare foram válidos para sua época e podem ser

perfeitamente apreciados ainda nos dias atuais. As comédias shakespearianas não

apresentam clara delimitação entre comédia e tragédia; ao contrário, os limites entre

elas são muitas vezes borrados, já que o dramaturgo observa que, na vida, comédia e

tragédia não andam separadamente, mas, antes, ocorrem simultâneas, segundo a

realidade da vida. Assim, através do teatro, apresenta os grupos e as classes sociais de

sua época de modo crítico, trágico e cômico.

O modo como a comédia shakespeariana presta-se à crítica social e pode ser

retomada em contextos históricos diferentes fica particularmente claro quando se

considera como, em pleno século XX, no Brasil, uma rede televisiva de prestígio

retomou a comédia A megera domada, reapresentando-a, em forma de telenovela, em O

cravo e a rosa, com intento de crítica social. Antes de analisar como tal crítica social se

desenvolve, torna-se necessário entender a natureza da telenovela, e as oportunidades de

crítica social que esse gênero vem a oferecer, pelo que, a seguir, abordamos as

características de tal gênero televisivo.

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1.2 A TELENOVELA COMO GÊNERO: CARACTERÍSTICAS

Segundo Marques (2012), telenovela é uma narrativa seriada, ou seja, uma

história contada em fragmentos, os quais se ligam um ao outro por compartilharem

elementos dramáticos em comum. Tanto o teatro como o folhetim exerceram grande

influência no desenvolvimento da telenovela brasileira, o que pode ser percebido através

da manutenção de estrutura narrativa essencialmente dramatúrgica. Especialmente no

que tange ao tratamento da organização dos capítulos, cenas, cenários, além da ênfase

no desenvolvimento psicológico dos personagens. Outra manifestação importante desse

aspecto está na relevância que o texto tem nas produções e do papel do autor dentro de

todo processo de realização da concepção à produção.

O teatro é uma arte em que um ator, ou conjunto de atores, interpreta uma

história ou atividades, com auxílio de dramaturgos, diretores e técnicos, que têm como

objetivo apresentar uma situação e despertar sentimentos no público. A palavra teatro

define tanto o prédio onde podem se apresentar várias formas de artes quanto uma

determinada forma de arte: o vocábulo grego Théatron estabelece o lugar físico do

espectador, "lugar onde se vê". Entretanto, o teatro também é o lugar onde acontece o

drama frente aos espectadores, complemento real e imaginário que acontece no local de

representação. Ele surgiu, supõe-se, na Grécia antiga, no século IV a.C.

Toda reflexão que tenha o drama como objeto precisa se apoiar numa tríade:

quem vê, o que se vê, e o imaginado. O teatro é um fenômeno que existe nos espaços do

presente e do imaginário, e nos tempos individuais e coletivos que se formam neste

espaço.

A literatura de folhetim, que influenciou a produção da telenovela, surgiu em

1836, na França e logo em seguida veio para o Brasil. Folhetins eram publicados em

jornais do Rio de Janeiro nos espaços para entretenimento. O folhetim possui duas

características essenciais: quanto ao formato, é publicado de forma parcial e

sequenciada em periódicos (jornais e revistas); quanto ao conteúdo, apresenta narrativa

ágil, profusão de eventos e ganchos intencionalmente voltados para prender a atenção

do leitor. Sendo assim, passou-se a adotar o rótulo folhetim à própria noção de uma

nova modalidade textual: o romance folhetim. Quanto aos aspectos estruturais, o

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romance-folhetim, possui características particulares: tipologia textual em narrativa com

a presença dos diálogos; o elemento suspense de episódio para episódio, o que atiça a

curiosidade do leitor; a presença da figura do herói – homem de gênio superior, solitário

entre os medíocres, triunfante entre os vencidos. O herói move-se em dois mundos

antitéticos: a classe baixa e a alta sociedade, extremos da escala social que se

apresentam em tensão caracterizada por alta conflitualidade; a par disso, há oposições

binárias como: bem x mal, felicidade x amargura, perseguidor x perseguido,

generosidade x mesquinhez, resolvidas pela ação heróica de uma individualidade

poderosa. (FARIA, 2005).

Marques (2012) enfatiza que a telenovela é um dos mais importantes produtos

de entretenimento no Brasil, e que, ao longo de sua existência, consolidou um espaço

representacional incisivo no cotidiano dos brasileiros. Segundo ela, a telenovela

adquiriu um formato especial que ajuda os telespectadores a compreender o mundo e

sua realidade através de tematizações dos assuntos do cotidiano, promovendo uma

aproximação e identificações múltiplas.

De acordo com Marques, é impossível caracterizar a telenovela brasileira a

partir do conjunto de gêneros e estilos que servem à literatura e ao cinema. Pode antes,

ser definida como um gênero próprio, ou como contendo uma bricolagem de gêneros e

estilos. O que se pode observar é que se utiliza, se não de todos, de muitos dos gêneros e

estilos convencionais numa mesma obra. A narração, o sonoro e o visual conferem-lhe

um conjunto de características que configuram um subgênero. Por outro lado, é a

existência de combinações tais como a mistura do popular com o erudito e de fatos reais

e ficcionais que dão a telenovela seu estilo próprio.

Entre os diversos gêneros televisivos estudados por Souza (2004), há algumas

categorias que têm os objetivos de entretenimento, informação, educativo, publicidade e

outros. A telenovela pertence à categoria entretenimento. Entretanto, dentro dessa

categoria mais genérica, a telenovela conserva ainda diferenciais que a distanciam de

outras formas de dramas seriados televisivos, por apresentar um enredo linear com

duração maior, enquanto que outros dramas, como por exemplo, o filme, os programas

interativos e seriados, que possuem características específicas.

É possível ver que o melodrama, gênero originário da mesma categoria de

entretenimento, foi sendo transformado por meio de elementos como a imediatez, o

simulacro e as releituras de aspectos da contemporaneidade que está inserida. Contudo,

perduram algumas peculiaridades advindas do melodrama, como a recapitulação, que

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visa informar os telespectadores eventualmente esquecidos e, ainda há, em algumas

telenovelas, outra característica do melodrama: a presença da redundância.

Com relação a outros dramas televisivos, uma das grandes distinções é a

presença do que Pallottini (1998) chamou de unitários (cada fragmento tem a história

apresentada e resolvida nele mesmo, embora conserve personagens, ambientação e

temáticas comuns aos outros). Na telenovela tais fragmentos são pequenos pedaços de

uma história que só se completa no conjunto, às vezes em poucos capítulos ou podendo

durar quase todo o período de exibição. Como uns exemplos citam-se as relações

românticas, os enredos e subenredos amorosos.

Outra característica fundamental que diferencia a telenovela é ser uma obra

aberta. Ao mesmo tempo em que há evidentemente um exaustivo planejamento e a

previsibilidade de autores e produtores de como a história deve se desenrolar (quais

desfechos e futuro dos personagens), essa previsibilidade não dá conta do projeto

inteiro, e mudanças de curso, até mesmo radicais, não só são permitidas, como são

ingredientes para seu sucesso.

Ser obra aberta pode ser visto como uma condição de um produto que é forjado

para a aceitação da audiência, e assim precisa reagir e estar sujeito a ela, mesmo que

quase nunca profundamente. Há alterações em função dessa aceitação (medida pelos

índices de audiência e grupos de discussão promovidos pela emissora). Contudo, não é

só a audiência que contribui para que essa condição permaneça: tendo duração

normalmente longa, e sendo uma produção que envolve um número grande de

profissionais e enorme infraestrutura, a telenovela está sujeita a toda sorte de

imprevistos - da censura que ocorria no período da ditadura, até mudanças, doença,

morte e outros incidentes com a equipe de produção, atores e atrizes.

Marques (2012) aponta o gancho como outra característica indispensável da

telenovela. Segundo ela, o propósito do gancho é fazer com que o leitor ou telespectador

acompanhe a história capítulo após capítulo, deixando-se seduzir pelo hábito que, de

alguma forma, cria a ritualização desse consumo. Mas isso não significa que a

existência explícita do gancho como recurso seja imprescindível ao final de cada

capítulo, ou de cada semana, como se só ele fosse capaz de manter o público atento à

história. Podemos entender o gancho como um conceito mais amplo, dizendo respeito a

todo e qualquer elemento ou ação dramática que seja capaz de estabelecer com o

público essa relação entre o suspense, a vontade de saber, e o efetivo desenrolar de uma

determinada ação.

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A criatividade e modificação em relação ao texto original, quando se trata de

uma adaptação de uma obra literária, também pode ser apontada como característica da

telenovela. Este é o caso, por exemplo, da telenovela O cravo e a rosa, uma adaptação

da peça A megera domada, que adiciona ao texto original de Shakespeare subenredos e

alusões de nosso contexto cultural contemporâneo e brasileiro. Nesses casos, é

característico da telenovela criar não mais do que um vínculo de inspiração para a

história ou parte dela, e acabar se desenrolando independente dos desfechos que o

escritor tenha originalmente concebido. Pode-se dizer que a telenovela só é realmente

fiel e íntegra a ela mesma, em sua própria coerência narrativa, por mais que possa ter

sido inspirada em referências externas muito claras.

Uma característica fundamental da telenovela, enfatizada por Marques e Lisboa

Filho, é a construção de “mundos” que fazem relação ou não com o mundo real. A

produção televisiva é responsável por esta construção de mundo, estabelecendo,

segundo as autoras, uma perspectiva na mente do leitor.

Marques aponta três possíveis mundos: o real, o ficcional e o lúdico. O

primeiro corresponde a aspectos que estão presentes no cotidiano. Já o mundo ficcional

por vezes é tomado como uma mentira, no entanto, não se trata de uma mentira

propagada de forma midiática, especificamente televisiva, mas sim uma construção

narrativa que não possui vínculos concretos com a realidade existente. E, o último, o

lúdico, seria o mundo intermediário entre o real e a ficção, em uma busca de recursos

que propiciem sua construção; procura constituir um elo direto com o social. Sobre esta

característica da produção telenovelística, Kegler e Araújo afirmam que:

[...] a telenovela conta histórias de vida, e, através de personagens, tenta reproduzir fatos e acontecimentos da vida de pessoas reais, a fim de que as pessoas se identifiquem e acabem acompanhando o desencadear dessas histórias. Essa narrativa, muitas vezes, transporta os receptores para um mundo fantasioso, pois, na maioria das histórias, personagens ricos são infelizes e de mau caráter, enquanto que os pobres são honestos e felizes, ou seja, há a ênfase dos extremos, os quais revelam somente uma das faces do ser humano. Vê-se, então, a presença de estereótipos, de relações, e de papéis sociais nesses enredos. (2007, p. 6).

De acordo com estes autores, a telenovela reproduz fatos ou acontecimentos

reais com o propósito de criar uma aproximação com o interlocutor. E sobre este

aspecto James Lull (1995, p.101) afirma que a os meios de comunicação massiva

refletem a realidade social e reúnem fragmentos da realidade para produzir relatos que

assemelham em alguns sentidos ao que nos rodeia. Nessa perspectiva, percebemos a

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relevância de estudar este gênero, pois ele pode influenciar o comportamento social,

mesmo que reconheçamos suas características lúdicas, as quais mencionamos

anteriormente.

Ao considerar a telenovela como uma representação de fragmentos históricos e

reunidos para discutir situações sociais, entendemos que ela não apenas reproduz, mas

cria outro enredo a partir da contextualização social. Para Marcondes Filho (1994) “a

diferença agora é esta: ela não transmite o mundo, ela fabrica mundos”. Surge então,

uma grande fábrica de imaginários, verdades e estímulos, que delineia um caminho

peculiar para o formato da telenovela brasileira. Por este motivo, a produção televisiva é

capaz de caracterizar a telenovela como um gênero de acordo com os avanços

tecnológicos da televisão.

Com base no arcabouço teórico a que recorremos para este estudo,

pretendemos estabelecer as características da telenovela brasileira. No entanto, é

interessante reconhecer que, nas colocações de Marques (2012), as telenovelas podem

ser consideradas como processos capazes de ocasionar ordens e desordens: a partir do

instante que entram nos lares influenciam cotidianos, desenham novas imagens, pro-

põem comportamentos e, de alguma forma, consolidam um padrão de narrativa

considerado dissonante, tanto para os modelos clássicos e cultos, quanto para os po-

pulares. Isso implica a aceitação do gênero pela sociedade e a compreensão do mesmo

simplesmente como gênero que, inúmeras vezes, se apropria da realidade efetuando o

seu recorte sobre ela e disseminando aos telespectadores novas visões; por outro lado,

pode ocorrer uma influência na sociedade a partir da mensagem recebida.

1.3 ATELENOVELA NO BRASIL: O CRAVO E A ROSA

1.3.1. A TELENOVELA NO BRASIL

Nesta caracterização inicial da telenovela partimos das características gerais do

gênero; no entanto as características deste gênero podem variar segundo a esfera de

produção. Por exemplo, no Brasil, segundo Marques (2012), as primeiras telenovelas

seguiam a linha já instituída pelo modelo do folhetim e abordavam temas em torno do

romance.

O ano de 1970 foi um marco na telenovela brasileira, quando a rede Globo

exibiu a telenovela Véu de noiva, inicialmente feita para o rádio e escrita por uma autora

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brasileira, Janete Clair. A trama narrativa, além da central, possuía outras tramas

paralelas. A partir desta produção, são integradas às tramas enredos semelhantes aos

aspectos presentes no cotidiano, ou seja, estabelece-se uma proximidade com os

telespectadores.

De acordo com Paula Salazar (2008), o Brasil, de modo semelhante a alguns

outros países da América Latina, teve na produção televisiva nacional seu ponto forte,

ancorado nas narrativas seriadas melodramáticas que ainda predominam no horário

nobre dos canais abertos. A telenovela emerge como um objeto de padrão massivo,

constituído em constante diálogo com matrizes populares: para considerar o quadro

conceitual anteriormente referido, uma manifestação da “cultura popular de massa”

(MARTÍN-BARBERO, 1987). Além de produto da indústria cultural, a telenovela –

forma seriada, território de ficcionalidade – constitui-se em elemento de mediação entre

produtores e o cotidiano dos receptores.

Foi no dia 18 de setembro do ano de 1950, em São Paulo, o empresário Assis

Chateaubriand inaugurava a televisão Tupi Difusora, a primeira televisão a entrar no ar

no Brasil, a primeira da América Latina e a quarta do mundo. Segundo a autora, no

início a televisão não teve modelos externos como referência. Nestes primeiros passos a

televisão aproveitou algumas bem-sucedidas experiências radiofônicas, bem como

avanços feitos pelo cinema e teatro. Ao longo do tempo as emissoras e produtoras

brasileiras foram desenvolvendo padrões e modelos próprios para o meio televisivo.

(SALAZAR, 2008).

Em 1951 foi ao ar a primeira telenovela na TV brasileira: Sua vida me

pertence, escrita por Walter Foster. Durante toda a década de 1960, as telenovelas foram

transmitidas duas vezes por semana e cada capítulo tinha duração de vinte minutos.

Nesse momento, a televisão era uma aquisição recente e não havia conhecimentos

técnicos suficientes para a exploração do novo meio.

Marques (2012) salienta que a característica da telenovela brasileira,

especialmente no tocante à linguagem deste gênero, foi se formando a partir das

influências daqueles que lhe deram suporte para existir, sendo que alguns aspectos

permanecem. O melodrama clássico foi sendo constantemente reformulado pelo fazer

televisual brasileiro. Mesmo passando por inúmeras reciclagens, algumas características

do melodrama permanecem. Marques e Lisboa Filho afirmam que:

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A produção televisiva de telenovela no Brasil acabou por criar uma linha de diversos subgêneros para além do melodrama, que contribuem para a formação diferenciada do formato da telenovela brasileira. Através de diversos deles buscam sua diferenciação dentro do que parece ser corriqueiro na sociedade. No entanto, não se limita somente às instâncias nacionais, mas transcende-as, o que permite afirmar que o gênero não é fixo, mas um processo que pode ser transformado em decorrência da trama narrativa, denotando deste modo a comunicabilidade presente na telenovela. (MARQUES; LISBOA FILHO, 2012, p. 79)

Inicialmente a telenovela era caracterizada por possuir poucos personagens,

que se delimitavam em desempenhar papéis duais contrastantes, “bons” ou “maus”,

bandidos ou heróis, vilões ou mocinhos, dentre outros. Logo, todo o enredo girava em

torno destes poucos personagens; assim se tornava previsível o destino dos mesmos,

pois a falta de personagens secundários não contribuía para a extensão de atributos

como, por exemplo, o suspense.

Muitas vezes, a telenovela, como gênero, transporta os receptores para um

mundo fantasioso, pois, na maioria das histórias, personagens ricos são infelizes e de

mau caráter, enquanto que os pobres são honestos e felizes, ou seja, há a ênfase nos

extremos, os quais revelam somente uma das faces do ser humano. Vê-se, então, a

presença de estereótipos, de relações, e de papéis sociais nesses enredos. (SALAZAR,

2008).

Segundo o Guia Ilustrado TV Globo (2010) as telenovelas, com o decorrer dos

anos, foram aderindo a narrativas complexas, que se distanciavam do modelo atrelado a

apenas uma trama central. Atualmente há uma rede de tramas paralelas que circundam e

coexistem com o enredo principal, o que, consequentemente, resulta em um número

maior de personagens, e em capítulos igualmente maiores. Isso requer rigor estético

mais aperfeiçoado e alta tecnologia em sua produção, essas adaptações contribuíram

para que as telenovelas obtivessem o aprimoramento visualizado na tela da tevê hoje em

dia. (GLOBO, 2010).

Quanto ao seu formato, pode-se dizer que, desde o seu início, a telenovela é

pautada por diálogos. Assim como o teatro, é dividida em cenas, enredos, personagens e

espaço, no entanto, ela difere do teatro por apresentar uma narrativa mais extensa, assim

também, a telenovela apresenta vários enredos que ao longo da narrativa estabelecem

conexões entre si. O enredo é desenvolvido de maneira sequencial, sendo que em

determinados momentos da narrativa alguns recursos que quebrem essa sucessividade

de acontecimentos podem ser empregados. O espaço e tempo na telenovela são

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indissociáveis. A pluralidade dramática definirá a pluralidade espacial, pois, de acordo

com as ações, os personagens podem ser continuamente deslocados para diferentes

ambientes na narrativa, enquanto que no teatro o espaço é reduzido pelo palco.

Dentre outras características fundamentais da telenovela podemos destacar as

trilhas sonoras, figurinos, cenários, movimentos e câmera-narrador. Em relação às

trilhas sonoras, Maria Cristina Aguiar afirma:

O nosso sentido de sintaxe musical depende da afinidade entre os sons. Ouvir música é um processo cognitivo, em que todos os dados se relacionam com a estrutura em si. Nas nossas actividades cognitivas, agrupamos sons, tempos fortes e harmonias e ouvímo-los como um todo. Este fenómeno é essencial para perceber a música e remete-nos para uma comparação com a linguagem, onde se agrupam palavras em frases, elaborando um discurso coerente. Na nossa memória retemos algumas peças musicais no seu todo, mas quando as ouvimos somos capazes de descodificar as suas partes e a sua estrutura. (AGUIAR, 2001, p. 129-130).

OBS: a partir disso definir trilha sonora

De acordo com Aguiar, através da trilha sonora somos capazes de associar a

cena fílmica e os personagens que a ela se relacionam. Desse modo, a trilha sonora

prepara, de forma introdutiva, o telespectador para a apresentação do cenário e dos

personagens. Ou seja, o som e a imagem agregam-se e se relacionam para construção

cinematográfica.

Os cenários e figurinos são fundamentais na análise da telenovela. As roupas

denotam a marca de uma época e fornecem aos personagens a possibilidade de criar

diversas personalidades. Segundo Nélio Pinheiro,

O vestuário denota uma presença, influenciam, determinam, constroem fatos, cenas, personagens, realidades, imaginações. Registram maneiras de ser e viver de diversas culturas em seus diferentes tempos, apresentando características próprias. Diferentes papéis cumpriram e cumpre o vestuário nas diferentes produções, sejam elas teatrais, televisivas, cinematográficas, sendo que em todas elas, está contido a função de compor, criar um personagem, identificar aquele que veste pelo que veste. O vestuário nesse caso tem a incumbência de representar, informar, simbolizar, expressar, capacitar aquele que de posse daquele traje, possa se fazer outro, nesse caso o personagem que ele representa. (PINHEIRO, 2010)

Segundo Pinheiro, o figurino retrata um período e expressa características

distintas dos personagens. Em O cravo e a rosa, considerada uma telenovela de época,

estes elementos visuais e audiovisuais favorecem a compreensão do enredo. O cenário

inicial de apresentação e o figurino dos personagens, como roupas, cabelos, e acessórios

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representam a década de 1920. Na cena de abertura, apresenta-se pelos movimentos de

câmera, a rua de São Paulo que representa a característica urbana com carros e trem que

passam pelo centro da cidade. A câmera-narrador movimenta-se para apresentar os usos

e costumes da população.

1.3. 2 SHAKESPEARE NA TELENOVELA BRASILEIRA: O CRAVO E A ROSA

Assim como no teatro shakespeariano, a telenovela brasileira apostou no

gênero melodramático, para tratar sobre a história e o cotidiano; ação e humor fazem

parte da telenovela. Desde suas primeiras manifestações, a telenovela brasileira marca

sua diferença, abordando temas polêmicos e sociais, mas sem deixar de enfatizar os

enredos românticos dentro da trama, muitas vezes de forma paralela, ou seja, vários

romances amorosos acontecem como subenredos a partir dos protagonistas.

Entre as telenovelas produzidas do Brasil, algumas se distinguiram como

recriações de dramas shakespearianos. De acordo com Resende (2009), Shakespeare aos

poucos vai ocupando lugar na televisão brasileira, referenciado em telenovelas e filmes,

ou em cenas inseridas na trama. Entre as produções podemos destacar algumas que

foram adaptações feitas pela Rede Globo a partir das peças de Shakespeare.

Romeu e Julieta é uma adaptação livre da peça de Shakespeare, feita por

Walter George Durst. Dirigida por Paulo Afonso Grisolli, com Fábio Junior e Lucélia

Santos nos papeis principais, a história dos amantes de Verona foi transportada para a

cidade de Ouro Preto, e sua abertura se faz através da alusão em off, a palavras de

Guimarães Rosa: “Minas são muitas, mas Ouro Preto com um pé no século XVIII e

outro no ano 2000, com certeza é uma só.”1 Esta adaptação livre foi apresentada em 24

de Dezembro de 1980 no Caso Especial. Caso Especial foi um programa (1971 a 1995)

da TV Globo que recriava textos do dramaturgo de forma clara, mantendo sua temática.

Suave Veneno foi uma telenovela inspirada em Rei Lear, de Shakespeare. Ela

foi dirigida por Daniel Filho e Ricardo Waddington, e exibida pela rede Globo no

período de 18/01/1999 a 17/09/1999. O enredo traz a drama de um poderoso homem

ameaçado por disputas familiares, o qual construiu seu império e, de repente, se viu

1As palavras originais de Guimarães Rosa , em Poemas e contos de Minas,são: “Minas são muitas.

Porém, poucos são aqueles que conhecem as mil faces das Gerais.”

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ameaçado de perdê-lo devido a conflitos familiares. Waldomiro Cerqueira é um

empresário pernambucano que chegou pobre ao Rio de Janeiro e fez fortuna

comercializando mármore. É o presidente da Marmoreal, uma empresa que já há 30

anos explora jazidas de minério e o vende para empresários estrangeiros. Orgulhoso

tanto de sua origem e trajetória quanto do seu patrimônio, o “Imperador do Mármore”,

como é chamado pela imprensa, tenta manter hábitos simples, como rodar pelas ruas do

Rio de Janeiro sem se preocupar em ser reconhecido. A alusão ao Rei Lear de

Shakespeare se dá através do paralelo entre Lear, que decide dividir o reino entre suas

três filhas, e Waldomiro Cerqueira, também pai de três filhas, as quais, ao início da

telenovela, interrogam o pai sobre a divisão dos bens da Marmoreal.

No ano 2000, finalmente, a Rede Globo decidiu produzir uma telenovela

baseada em A megera domada de Shakespeare. Contextualizada nos anos de 1920,

palco de diversos movimentos sociais e políticos no Brasil, como o feminismo, O cravo

e a rosa, foi escrita por Ivani Ribeiro e dirigida por Walter Avancini, tendo sido exibida

pela Rede Globo entre 26 de junho de 2000 e 9 de março de 2001. (RESENDE, 2009).

O texto de Walcyr Carrasco e Mário Teixeira foi, por sua vez, baseado nas duas

transposições anteriores para a televisão. Teve claras referências ao folhetim A

Indomável, telenovela brasileira que foi produzida pela Rede Excelsior e exibida

durante março e abril de 1965. O roteiro foi escrito por Ivani Ribeiro, baseado, também,

na peça teatral A megera domada de William Shakespeare; a telenovela foi dirigida por

Walter Avancini. Como Alves e Viana (2002) percebem, o diálogo intertextual com

Shakespeare é evidente:

[...] o papel que justifica o título A indomada fica a cargo de sua tia mesquinha, avarenta, invejosa, falsa, intolerante, enfim, a grande vilã da história, Maria Altiva Pedreira de Mendonça e Albuquerque. Em mais um desfiguramento deliberado pelos autores, é Altiva o contraponto brasileiro de Katharina, protagonista da peça inglesa. Como o próprio nome indicia e contrariamente à personagem Shakespeariana, Altiva jamais se deixa domar. Nem pelo marido, nem pelos familiares, tampouco pela sociedade. Essa sua resistência e o diabolismo de sua mente “assoberbadíssima” em maquinar contra todos os seus supostos inimigos, são elementos definidores do final

fantástico da trama (ALVES, 2002, p. 64).

Outro folhetim ao qual a telenovela O cravo e a rosa teve referências foi O

Machão, produzido e exibido pela Rede Tupi de 05 de Fevereiro de 1974 a 15 de

Abril de 1975, às 20h30, em 371 capítulos, escrito por Sérgio Jockymen e Dárcio

Ferreira. Conforme informa o registro sobre a telenovela no site brasileiro da Wikipedia

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(2015), O Machão foi baseado na telenovela A indomável, cujos quarenta primeiros

capítulos foram aproveitados, como se fosse um remake. A partir daí, Jockyman

assumiu o texto, imensamente exitoso. O enredo lembra, em muito, o drama de

Shakespeare:

O rude e determinado Julião Petrúquio, na iminência de perder suas terras numa dívida, recebeu uma missão aparentemente impossível: domar A megera Catarina, uma moça temperamental que tem aversão por homens e casamento. Feminista convicta na rígida moral da década de 20, a moça faz de tudo para espantar todos os seus pretendentes, que são vários, pois é filha de Batista, um rico fazendeiro do café que pagará uma fortuna a quem desposar sua filha.

Por isso a ardilosa Dinorá, sabendo da situação de Petrúquio, sobrinho de seu submisso marido Cornélio, lhe propõe conquistar Catarina em troca do pagamento de suas dívidas. É essa também a maneira que Dinorá encontrou para casar seu irmão mais novo, Heitor, com a caçula dos Batista, Bianca. A jovem moça está apaixonada, mas o pai só permite o namoro entre ela e Heitor depois que Catarina se casar.

Mas não será fácil para o machão Petrúquio dobrar a indomável Catarina, mesmo depois que se descobrem apaixonados um pelo outro. (O MACHÃO, 2015).

O cravo e a rosa caracteriza-se como telenovela de época, a qual se caracteriza

como uma interpretação histórica ou ficcional de uma determinada sociedade, seus

valores, utilizando-se de uma narrativa dramatúrgica de obras literárias que alcançam

telespectadores que tem acesso a esses fatos que foram importantes na história do país

somente nesse momento. Contudo, o que se mostra quando se produz uma ficção

histórica não é a realidade do passado, mas o que ele diz sobre o presente: as telenovelas

de época nos oportunizam observar de que forma o passado é representado e implica

entender esse passado como um espaço que está ligado ao presente, que é descrito a

partir de referências mantidas na memória. Nesse sentido, busca resgatar o sentido de

pertencimento, relembrar situações que aconteceram e trazer a memória que se fica

perdido através dos tempos. (MUJICA, 2007).

As telenovelas de época podem retratar uma obra literária ou apenas um

contexto histórico e cultural. Em O cravo e a rosa, podemos observar que retratou a

década de 1920 no Brasil Por outro lado, baseou-se em A megera domada, peça de

teatro inglesa, escrita por Shakespeare; portanto, constitui-se uma telenovela com

releitura de uma obra literária.

Na adaptação de O cravo e a rosa poucos nomes foram mudados. Batista,

Catarina, Bianca e Petrúquio são nomes próprios da peça de Shakespeare. Contudo a

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inclusão de novos subenredos, adaptados ao contexto nacional e ao gosto do público,

determinou a inclusão de novos personagens, como, dentre outros: Dinorá, esposa de

um nobre chamado Cornélio; Heitor, irmão de Dinorá e pretendente de Bianca; Dalva,

uma costureira e mãe de Candoca; Carlixto, criado de Petrúquio que se envolve num

romance com Mimosa, empregada de Batista; Joana, amante de Batista, a qual tem dois

filhos; Serafim, um jornalista e pretendente de Catarina.

Assim como no contexto histórico e social do período elisabetano,

caracterizado por movimentos e manifestações da Inglaterra renascentista, período em

que Shakespeare manifesta as opiniões e críticas em suas peças teatrais, o período da

história do Brasil que serve de pano de fundo para a recriação do drama de Shakespeare

é um momento em que movimentos sociais estão a exigir mudanças na sociedade.

Nesse sentido, a cena de abertura, com a passeata das feministas, induz o telespectador

ao contexto histórico em que, entre nós, as mulheres manifestavam-se na busca por seus

direitos, para introduzir o perfil da heroína que seria retratada na telenovela.

Julião Petrúquio, que ao início busca a salvação financeira ao se casar com

Catarina, é a imagem do patriarcalismo. Até o século XX, o casamento passava a noção

de união indissolúvel, na qual a figura masculina, por convenções sociais, era a cabeça

da relação. Não necessariamente deveria haver sentimento entre o casal, até porque em

alguns casos, como o de Petrúquio e Catarina, a união tinha foco na divisão dos bens.

Além disso, Petrúquio é a representação do contraste entre o grosseiro homem

do campo e a cortesia da cidade, diferenças que ficam latentes no início do século XX.

A industrialização, expressa ainda que timidamente (só vai se tornar atividade principal

no Brasil com os governos populistas a partir dos anos 50), afirmou ainda mais essa

dicotomia e criou estereótipos para cada um desses espaços geográficos. A economia

rural encontrava-se em decadência e a produção industrial crescia e levava consigo

homens e mulheres para a cidade. (SOUSA, 2014)

Por isso, a importância da telenovela como instrumento de crítica social,

especialmente quanto se relaciona com a literatura para retratar as questões sociais.

Destas, como já comentado na introdução a este trabalho, escolhemos o casamento

como foco analítico orientador desta dissertação. No próximo capítulo, estudaremos o

período renascentista inglês e, a partir deste, direcionaremos nossa pesquisa sobre as

relações matrimoniais, a constituição da família e o papel atribuído a mulher nesse

período. Desse modo, analisaremos estas questões introduzidas na peça A megera

domada, a qual é uma representação da sociedade inglesa.

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2 O CASAMENTO, FAMÍLIA E SOCIEDADE NA RENASCENÇA INGLESA: A

MEGERA DOMADA

Neste capítulo será abordado o casamento e, por derivação, a família, na

sociedade inglesa renascentista. O capítulo está divido em duas seções. A primeira trata

da família a partir do pensamento patriarcal. A segunda seção aborda os rituais reais e

costumes associados com cerimônias de casamento na obra A megera domada. Esta

pesquisa bibliográfica será direcionada a partir do olhar crítico realizado pelo teatro

shakespeariano sobre a história do casamento como uma instituição e sobre a

experiência feminina. O casamento, a submissão da mulher e a família são temas que

são apresentados pelo teatro shakespeariano como crítica social e econômica.

2.1. CASAMENTO NA RENASCENÇA: FAMÍLIA E SOCIEDADE

Durante a Renascença inglesa, a Inglaterra foi governada durante meio século

por rainhas; contudo, como Susanne Hull (1996) observa, as mulheres não tinham quase

nenhum poder legal. O casamento era sua principal vocação, e a sociedade renascentista

constituiu a família como a união de bens entre marido e mulher. Nessa época, o olhar

para a vida das mulheres resume-se a três configurações: família, religião e acultura de

elite.

As mulheres desempenhavam vários papéis em suas famílias, em função da sua

idade e estado civil. Primeiro, uma mulher era uma filha e, em seguida, uma esposa,

mãe, ou viúva. Filhas de classe alta, esposas e viúvas tinham participação na

propriedade da família, para o que elas eram consideradas principalmente como uma

maneira de agregar ou expandir. Por isso, suas vidas eram estritamente reguladas e

controladas.

Por outro lado, as mulheres camponesas geralmente tinham mais liberdade.

Esposas, filhas e até mesmo viúvas estavam ativamente envolvidas em ajudar a

sustentar a família, manter a casa e trabalhar junto com os homens na fazenda ou na

loja. Sobre este aspecto Shakespeare apresenta, na peça A megera domada, a submissão

de Catarina ao seu esposo Petrúquio. A vida camponesa requer a ajuda da esposa nos

trabalhos do campo, além dos trabalhos domésticos.

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Segundo Kathryn Martin (2002), na Inglaterra renascentista a relação entre pais

e filhos era muito diferente da que conhecemos hoje. Na sociedade moderna, essa

relação está em constante mudança, e os pais devem orientar seus filhos à medida que

crescem, seja como professor, confidente, amigo, e até mesmo um disciplinador. Na

Inglaterra renascentista, a relação pai-filho era baseada no quinto mandamento, que

declara: "Honra teu pai e tua mãe", mas o mais importante foi "honra teu pai." A

Inglaterra, nesse momento, era uma sociedade patriarcal e as filhas eram, talvez, as

maiores vítimas da família patriarcal.

Martin (2002) afirma que, durante este tempo, na Inglaterra, o pai era o chefe

da família, e sua esposa e filhos estavam a responder a ele. A menina era sempre

dependente de uma figura masculina. Tudo era baseado na linha masculina e as meninas

eram tratadas como seres inferiores dentro do agregado familiar, e eram essencialmente

preparadas para serem boas futuras esposas. Nesta sociedade centrada no homem, as

mulheres eram mantidas num estado inferior, e sempre tiveram que responder a seu pai.

Um homem tinha o controle completo sobre sua família; e as mulheres eram

consideradas sua propriedade para fazer o que quisesse. Seus filhos herdavam terras e

títulos, mas suas filhas eram “vendidas” para viver na casa de outro homem quando se

casassem. Os meninos eram educados para assumir a herdade em lugar de seus pais; às

meninas eram ensinadas habilidades para ajudar a gerenciar as suas próprias famílias e

agradar seus maridos. Nesse processo educativo, o mais importante era O artesanato

têxtil, em trabalhos tais como fiação, tecelagem e bordado, que eram geralmente

ensinadas pelas mulheres mais velhas da família às mais novas. As mulheres também

aprendiam a gerir as finanças, para supervisionar servos, e para cuidar de membros da

família em dificuldade. Finalmente, as meninas eram instruídas em castidade,

obediência e silêncio.

Como se vê, as esposas tinham muitas responsabilidades enquanto

trabalhadoras e gestoras de uma família. As mulheres camponesas realizavam inúmeros

deveres, desde o atendimento às aves, ovelhas e horta; produziam, ainda, cerveja e

ajudavam na colheita. As esposas, artesãs, faziam trabalho habilidoso ao lado de seus

maridos, ou realizavam os trabalhos durante a ausência deste. Às vezes tornavam-se

membros de corporações de ofício desta forma. As corporações (guilds) eram

organizações que treinavam aprendizes para um ofício ou profissão, e estabeleciam

padrões de qualidade. Esposas de comerciantes prestavam atendimento em lojas,

ajudavam a manter contas, ou geriam outros documentos profissionais.

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Entre as famílias aristocráticas mais ricas, as mulheres realizavam o trabalho

têxtil, e produziam itens de luxo, como bordados de ouro. Seu papel principal era,

porém, o funcionamento da casa: realizar as compras, armazenar e repor os suprimentos

para a família. Outras atividades da mulher eram entreter os visitantes de seus maridos,

supervisionar os servos e prestar auxílio de enfermagem aos doentes, servos ou

membros da família. (DEL PRIORI, 2001)

Pregadores, humanistas e outros instrutores morais promoviam o ideal de uma

estreita relação entre marido e mulher. Pregavam contra o adultério (ter relações sexuais

fora do casamento), a bigamia (ter mais de um cônjuge), abandono e abuso. O adultério

era constantemente visto como crime, e muito grave, de uma esposa. Em muitos locais,

um marido era inocentado por matar sua esposa se ela tivesse sido apanhada em

flagrante adultério. Em alguns lugares, esse assassinato não era nem designado como

crime. Abuso poderia ser encontrado em toda parte, e entre todas as classes. Bater na

esposa era permissível, como era o castigo físico de crianças e servos. Contudo, alguns

moralistas pediam moderação e outros deploravam o uso de surras por completo. Os

homens podiam, além disso, aprisionar, deixar morrer de fome, e degradar as mulheres

e outros membros da família.

Embora as mulheres fossem consideradas inferiores aos homens, tinham papeis

diferentes em diferentes classes. Esperava-se das mulheres de classe baixa que se

tornassem donas de casa e cuidassem de tudo o que se relacionava com a casa. A

expectativa quanto a mulheres da classe trabalhadora era um pouco diferente. Esperava-

se que trabalhassem para seus maridos e ajudassem a gerir os seus negócios. Elas iam

trabalhar juntas a eles e, em seguida, voltavam para casa. Já as mulheres da classe alta

poderiam ter servos e trabalhadores que trabalhavam para elas, mas ainda deveriam

cuidar de algumas tarefas específicas, como ordenar o que cabia no porão da casa.

As mulheres não podiam ter profissões próprias e nem poderiam viver em paz

se não fossem casadas. Se uma mulher permanecia solteira, deveria mudar-se para a

casa de um de seus parentes masculinos, ou aderir a um convento e se tornar freira. Não

havia outra opção naquele momento para as mulheres, e o casamento era a opção para

as mulheres que não pretendiam seguir a vida religiosa.

De acordo com o pertencimento a diferentes classes sociais, as únicas mulheres

que gozavam de direito para se expressar eram as e classe alta, mas não o suficiente. Por

outro lado, era muito raro a uma mulher de classe média ser vista ou ser ouvida. Quando

se expressava, era influenciada pelos homens. (MAZZOCCO, s. d.).

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Em contraste, os papéis do sexo masculino eram geralmente definidos pela

posição social ou ocupação: comerciante, cavaleiro, padre, camponês, fabricante barril,

tecelão, e assim por diante. No teatro shakespeariano, os jovens eram apresentados com

profissões definidas; ter uma ocupação representava uma estabilidade e, por isso, a farsa

para demonstrar o fator econômico e sustentável para o casamento torna-se parte deste

gênero. Por outro lado, os papéis femininos eram mais bem definidos na sociedade de

classe alta do que na sociedade camponesa. Em A megera domada, as mulheres da

classe alta apresentavam-se como estudantes, como por exemplo, o fazem as filhas de

Batista Minola.

No Renascimento, quando o sistema político mudou a partir dos sistemas

feudais medievais, as mulheres de todas as classes sociais viram uma mudança em suas

opções sociais e políticas: "as relações entre os sexos foram reestruturadas para uma

relação de dependência do sexo feminino e dominação masculina" (KELLY,1977). Os

homens governaram acima de tudo, até mesmo durante o meio século governado por

rainhas.

A megera domada, escrita em meados do século XVI, tem como personagem

principal Catarina. Ela é a uma mulher que luta por seus direitos, por isso é considerada

como indomável, ou em necessidade de ser domada, como sugere o título da peça.

Mesmo no Renascimento, a palavra “megera” é muito negativa quando empregada com

relação a uma mulher: quando as pessoas olhavam negativamente para as mulheres

referiam-se a elas como megeras. (THOMAS, 1995). Essas mulheres eram muito

abertas e expressavam aquilo que queriam. A sociedade, porém, fortemente reprovava

as mulheres como estas no renascimento. Os homens eram as únicas pessoas com voz

“alta” o suficiente para serem francos e expressivos.

Catarina é apresentada na peça de Shakespeare como umA megera. Às vezes,

suas palavras e ações eram extremamente violentas. Ela representa uma mulher muito

abusiva, de sorte que havia um forte sentimento de desaprovação de todos com respeito

à Catarina. Ninguém queria receber a tarefa de 'domesticar' a ela, isto é, até que

Petrúquio chega e decide que fará a tarefa, a fim de casar-se com sua fortuna. Neste

tempo, as mulheres deviam ser vistas e não ouvidas. A mulher ideal deveria ser calma e

respeitosa, e aceitar sem recalcitrância ser controlada por um homem. Tal mulher

apreciava a atenção recebida dos homens por ser uma mulher delicada. Esta mulher

ideal é Bianca, irmã de Catarina.

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Shakespeare decidiu ter dois personagens contrastantes para representar a luta

das mulheres. Mostra ao leitor os dois perfis diferentes: Catarina, em comparação com

Bianca, parece-se como uma louca. Em A megera domada, os homens almejavam casar-

se com Bianca por sua beleza e seu dote. Ela é de fala mansa e doce, enquanto Catarina

é justamente o oposto: decidida e com muita força de vontade. Em consequência, os

homens não querem Catarina, a quem temem, ainda que almejem seu dote. Shakespeare

usou os dois tipos diferentes de personagens, a saber, umA megera e uma mulher ideal,

as quais, em conjunto, mostram o que representava ser mulher então.

Se a mulher não fosse de classe alta, era considerada incapaz de falar o que

pensava; mesmo quando partilhava desse privilégio social, os homens ditavam como

deveriam proceder ao expressar opiniões. As mulheres deviam ser donas de casa, e

esperava-se delas a submissão aos maridos. Como se viu, se uma mulher não se

conformava com o seu marido, seria chamada de umA megera. Estamos referindo à

situação social no início dos tempos contemporâneos. As coisas mudaram, mas assim

era então.

Segundo Kirsti S. Thomas (1995), o casamento na Europa era visto como

estrutura econômica. Uma mulher não tinha praticamente nenhum papel na escolha de

seu marido. Nas classes altas, a maioria dos casamentos era arranjada pelos pais dos

noivos e, talvez, em consulta com a mãe dos noivos. Muitas mulheres se casaram com

homens que mal conheciam ou nunca conheceram. Na maior parte dos camponeses

europeus o casamento se dava antes dos vinte anos. Thomas (1995) define o casamento,

segundo o New Shorter Oxford Dictionary, como "União pessoal legalmente

reconhecida entre um homem e uma mulher. Com a intenção de viverem juntos e ter

relações sexuais, e que impliquem direitos de propriedade e herança" (p. 1209).

O Arcebispo de Rheims, Hincmar, (845-882) declarou que o casamento

legítimo tinha de cumprir quatro condições e que consistia em três elementos: os

parceiros tinham de ser de categoria igual e livre e deviam dar o seu consentimento; a

mulher devia ser dada por seu pai e dotada; o casamento devia ser honrado

publicamente; a união deveria ser completada pela consumação sexual. Reconhecia-se,

assim, tanto a tradição romana, que exige o consentimento, como a tradição germânica

que exige consumação. Além disso, Hincmar afirmava que o casamento devia ser

celebrado em público, em vez de em segredo.

Assim como hoje, o casamento de uma mulher era um dos dias mais

importantes de sua vida. A principal diferença entre os costumes de casamento

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Elisabetano para um dia de casamento ocidental moderno é que a mulher tinha poucas

opções em relação à escolha do marido. As mulheres eram subservientes aos homens.

Elas eram dependentes de seus pais para apoiá-las. As mulheres eram criadas para

acreditar que eram inferiores aos homens, os quais tinham conhecimento superior da

vida.

A desobediência era vista como um crime contra a religião. Os casamentos

eram frequentemente dispostos de modo que ambas as famílias envolvidas seriam

beneficiadas. Eram dispostos para trazer prestígio ou riqueza para a família - um fato

surpreendente é que os homens jovens eram tratados de uma forma semelhante às

mulheres. Muitos casais se encontram pela primeira vez no dia do casamento. Este

costume elisabetano, em particular, era normalmente aplicado à nobreza, mas a vida de

casado ou religioso eram as únicas opções reais para o período elisabetano e,

independentemente de sua posição social, mulheres e homens deveriam se casar.

Segundo Kirsti S. Thomas (1995), os casamentos eram sempre uma cerimônia

religiosa, conduzida por um ministro. Nas diferentes religiões, o processo legal antes do

casamento era sempre o mesmo. Não havia casamentos em cartórios ou casamentos

realizados por um juiz de paz. A primeira etapa era o anúncio sobre a intenção de se

casar. O mesmo procedimento aplica-se ainda aos casamentos da Igreja na Inglaterra

hoje. A intenção do casal para se casar deveria ser anunciada na igreja três vezes, em

três domingos ou dias santos consecutivos. Qualquer casamento não publicado

previamente era considerado clandestino e ilegal. Os convites do casamento não eram

emitidos, já que as pessoas viviam em pequenas comunidades e sabiam o que estava

acontecendo na vida comum. Presentes eram ocasionalmente dados à noiva e ao noivo.

Era costume a realização de uma festa de casamento. A festa especial deveria

ser cuidadosamente planejada. O cardápio era discutido e arranjado para adquirir o

conteúdo dos pratos mais exóticos, como pavão. Pães e doces também seriam

preparados. Os alimentos doces e picantes eram extremamente populares e muitos dos

pratos eram altamente aromatizados. A bebida típica elisabetana era o vinho,

encomendado para a festa de casamento.

As culturas da Europa Ocidental durante a Idade Média e do Renascimento

reconheciam duas fases distintas no processo de uma união entre o casal: o noivado e o

casamento. O noivado era realizado com diferentes níveis de formalidade em diferentes

lugares e épocas. Na Inglaterra anglo-saxã, por exemplo, não há nenhuma evidência

conhecida de que o noivado era celebrado formalmente. Eles trocaram palavras

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prometendo a união das duas famílias e objetos eram passados de mão em mão para

simbolizar a transferência de bens (DUBY, p. 45).

Na história da Europa ocidental medieval, muitos rituais estão associados mais

com o noivado do que com o casamento. Segundo Thomas (1995), os rituais eram mais

associados com a celebração do casamento, em vez de o noivado. O casamento decorre

diretamente da aprovação da Igreja do direito romano sobre o casamento. O noivado

cristão era considerado dissolúvel, enquanto o casamento era indissolúvel. Então, uma

vez que o noivado era a cerimônia de ligação, com uma celebração da união física

seguindo depois, o foco mudou para uma cerimônia em que o casal afirma o seu

consentimento mútuo, a fim de estabelecer um vínculo longo da vida.

Um casamento pode refletir a glória dos pais da noiva, ganhá-los aliados

políticos e acesso ao poder, ou aumentar a riqueza da família. Se a família de uma

mulher não podia pagar um marido de alto status, ela teria que se contentar com um que

poderia ser adquirido com um dote menor. Mesmo entre as fileiras mais pobres, era

esperado que uma noiva trouxesse alguns bens materiais para o casamento, mesmo se

apenas alguns vasos para sua nova casa.

De acordo com Thomas (1995), o dote era muito comum na maioria das

regiões da Europa. Quando uma mulher da classe alta se casava era esperado que ela

trouxesse para a casa de seu novo marido uma porção da riqueza de seu pai. A função

do dote era remover uma mulher da linha de sucessão de seu pai, para que ela não

tivesse mais o direito sobre a propriedade dos pais. A parte legal de sua herança era para

ser tão pequena quanto possível, para minimizar a carga na propriedade do pai. Ao

mesmo tempo, o dote tinha que ser grande o suficiente para atrair pretendentes que

possuíssem o mais alto status social.

Na peça de Shakespeare, Catarina possui um grande dote. No entanto, como

precursora futurista, ela considera que o casamento não era obrigatório. O perfil de

mulher que ela representa está direcionado para a liberdade da mulher na escolha do

futuro marido. Ela vê no casamento uma negociação e não aceita, pelo menos

inicialmente, a submissão da mulher ao marido.

O dote tecnicamente permaneceu propriedade da mulher para a vida, mas na

verdade era gerido pelo marido. No falecimento da mulher, a propriedade passava para

seus herdeiros. Em algumas regiões da Europa, uma esposa podia, porém, possuir

propriedade em seu próprio nome, além do dote. Às vezes, essa propriedade era

concedida a ela por seu pai, que determinou o valor do dote. Mais uma vez, dependendo

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do costume local, a mulher era capaz de passar a propriedade aos seus herdeiros quando

morresse. As mulheres tiveram muitas vezes o direito de utilizar imóveis, joias e roupas

que pertenciam a um parente do sexo masculino, que tinha o direito de recuperá-lo

conforme necessário.

Entre as classes superiores, no entanto, uma adolescente casava-se com um

homem mais velho que já estava com estabilidade econômica ou era pertencente da

sociedade aristocrática. Às vezes, uma jovem se casava com um homem que já tinha

sido casado. Nessas circunstâncias, é difícil saber se o amor desempenhou um papel no

casamento. Na peça A megera domada, podemos perceber claramente esta circunstância

econômica. No entanto, percebemos que o casamento entre os protagonistas da peça

envolve uma questão financeira, mas por interesse do noivo.

Muitas esposas e maridos de classe alta levavam vidas separadas devido à

disparidade de idade entre eles, a falta de conhecimento prévio ao casamento, e as

diferentes ocupações diárias. Por exemplo, o marido podia estar envolvido em seu

trabalho ou em atividades políticas, enquanto a vida da esposa estava voltada para a

casa. Companheirismo parecia ser mais possível em casamentos entre as classes mais

baixas. Muitas vezes, os cônjuges estavam envolvidos no mesmo tipo de ocupação,

ambos eram artesãos qualificados, ou eles operavam em uma taberna ou em uma loja

juntos.

Uma vez que o casamento era visto quase como uma transação comercial entre

duas famílias, os interesses das mesmas prevaleciam sobre os interesses pessoais dos

envolvidos diretos. Casados, os jovens deviam produzir um herdeiro e dar, portanto,

continuidade à linhagem familiar. Caso esse objetivo não fosse atingido, a esposa se

tornava indesejável e o divórcio ocorria.

Entretanto, a partir de 1090, com Yves de Chartres, começou a surgir um

modelo matrimonial diferente, definido pelo consentimento dos envolvidos. Somente a

partir do século XII, quando a Igreja estendeu sua jurisdição aos assuntos matrimoniais

e tornou o casamento um sacramento, o consentimento dos noivos foi levado em conta,

situação que perdura até hoje. Como R. Howard Bloch (1995) apontou, a teologia

possuía duas visões sobre o consentimento. Para Pedro Lombardo, bastava o

consentimento das partes para a união ser considerada válida; para Graciano, além do

consentimento, a consumação do casamento era essencial para torná-lo válido. A ideia

de que as mulheres podiam aceitar propostas de casamento sem o consentimento dos

pais, porém, não correspondia à realidade da prática social.

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Como exposto na caracterização do teatro romântico shakespeariano, sua

principal característica não era a presença do humor, mas, sim, a harmonia final,

assinalada pelo casamento. Shakespeare, por meio da comédia, representou o perfil e

visão da sociedade inglesa sobre essa instituição, utilizando elementos cômicos dos

pares românticos para refletir sobre as questões econômicas envolvidas no casamento.

2.2. CASAMENTO, FAMÍLIA E SOCIEDADE EM A MEGERA DOMADA

Pretendemos analisar a seguir o casamento e as relações sociais que se constrói

em torno dele na sociedade inglesa renascentista, como representados na peça A megera

domada. Entendemos que, dentre os temas relacionados ao período renascentista inglês,

a peça possibilita uma reflexão sobre o casamento no contexto de uma sociedade

patriarcal e, nesta, a ordem para o casamento das filhas, a relação entre pais e filhos e o

papel atribuído à mulher.

Escolhemos a tradução de Millôr Fernandes por ser recente e por

considerarmos que o tradutor, humorista, teatrólogo e jornalista interpreta com muita

propriedade o texto shakespeariano. Para esta análise, selecionamos alguns recortes, , os

quais queremos analisar por serem trechos da peça que se mostraram especialmente

relacionados aos objetivos desta pesquisa. O primeiro destes recortes refere-se ao

sistema patriarcal, evidenciado, ao início da peça, no modo como se processa a escolha

e aprovação, por parte de Batista Minola, dos pretendentes para o casamento de suas

filhas.

No primeiro ato, e na primeira cena, a peça apresenta Lucêncio e Trânio, recém

chegados em Pádua. Sua vinda a essa cidade é resultado da busca pela educação, já que

a cidade era reconhecida intelectualmente, e estava em desenvolvimento econômico e

artístico. A chegada de jovens na cidade sugere o desenvolvimento de Pádua e

Shakespeare enfatiza na peça esta representatividade enquanto os jovens buscam

acomodação para estarem ali em busca do desenvolvimento intelectual.

Após conversarem sobre a nova cidade e trocarem conselhos sobre a

permanência em Pádua, Lucêncio e Trânio assistem à chegada de Batista com as duas

filhas, Catarina e Bianca. São acompanhados, ainda, por Grêmio, um pantalão, e

Hortênsio, ambos pretendentes a Bianca. Esta é a cena inicial da peça principal, já que,

como explicado em capítulo anterior, a peça inicia com a Indução, na qual, a partir da

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brincadeira feita com o bêbado Sly, vários temas da peça, como o embaralhamento entre

aparência e realidade e a crítica às classes sociais, são introduzidos.

Nessa cena inicial de A megera domada propriamente dita - a peça dentro da

peça que é encenada para Sly -, mesmo não havendo uma contextualização anterior

sobre o diálogo entabulado entre Batista e os pretendentes, subentende-se que Batista e

as filhas, juntamente com Grêmio e Hortênsio, estavam conversando sobre o casamento

de Catarina e Bianca.

É neste momento do diálogo que Lucêncio e Trânio percebem que, em Pádua,

o casamento é tratado pelos pais e pretendentes. Por isto consideramos esta análise

especialmente sobre o sistema patriarcal, no que diz respeito ao relacionamento pai e

filhas. No entanto, direcionaremos esta análise, também, sobre os posicionamentos de

Catarina em relação ao sistema patriarcal. Vejamos:

Recorte 01: Ato I, Cena 1:

[...] LUCÊNCIO: Agradecido, Trânio, aconselhas bem. Ah, se Biondello já tivesse chegado poderíamos estar prontos sem demora. Arranjar uma casa onde ficarmos, local digno de receber os amigos que a permanência em Pádua há de trazer-nos. Mas, espera um pouco; quem será essa gente? TRÂNIO: Na certa uma delegação para nos receber. (Entra Batista com as duas filhas, Catarina e Bianca; Grêmio, um pantalão. E Hortênsio, pretendente a Bianca. Lucêncio e Trânio põem-se de lado.) BATISTA: Cavalheiros, não me aborreçam mais, pois sabem como é firme o meu propósito; isto é, não ceder minha filha mais jovem enquanto a mais velha não tiver marido. Se um dos dois gosta de Catarina, porque eu os conheço e os estimo, concedo a permissão de cortejá-la. GRÊMIO: Ou esquartejá-la? É grosseira demais para meu gosto; não é você, Hortênsio, quem procura esposa? CATARINA: (A Batista.) Eu pergunto, senhor, é seu intuito transformar-me em brinquedo desses pretendentes? (SHAKESPEARE, 2008, p. 23-24)

Das quatro personagens femininas presentes em A megera domada (a

Taberneira, presente no Prólogo, as irmãs Catarina e Bianca Minola e a viúva) estão

presentes nesta cena as duas principais. É em torno dessas irmãs que se concentram a

maioria dos estudos sobre a peça, uma vez que são as protagonistas dos dois enredos

principais e as personagens-chave da representação da mulher nesta peça. Elas possuem

um número maior de falas e as outras personagens da peça expressam suas opiniões

sobre elas.

De acordo com Mendes (2011), o texto de Shakespeare gira em torno de

Catarina: ela é a personagem principal e influencia tanto o seu enredo quanto o da irmã.

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Catarina é um problema para a relação amorosa de Bianca, que somente poderia se

casar após a irmã. No entanto, para Petrúquio, Catarina é a solução para a situação

financeira, e desse modo, a trama favorece o casamento, o principal tema da peça.

Neste contexto, Catarina é apresentada como megera. Sua inconformidade com

relação ao tratamento dado as mulheres, ao modo como é tratada pelo pai e

especialmente à forma como se dá o casamento revelam-na se tornar uma mulher de

firme postura. O propósito inicial de Batista é o casamento bem sucedido

financeiramente, e isto para Catarina é inaceitável por não oportunizar sua tomada de

decisão sobre o casamento. Este conflito leva Batista a pensar em um casamento

forçado e seu propósito, apesar da revolta de Catarina, é tão somente casá-la. Nessa

cena inicial de A megera domada propriamente dita - a peça dentro da peça que é

encenada para Sly -, mesmo não havendo uma contextualização anterior sobre o diálogo

entabulado entre Batista e os pretendentes, subentende-se que Batista e as filhas,

juntamente com Grêmio e Hortênsio, estavam conversando sobre o casamento de

Catarina e Bianca.

Percebe-se, através da fala de Batista, a sua insistência em casar a filha mais

velha, Catarina. Mesmo que ao leitor, ou espectador, não seja dado ler ou escutar o

trecho anterior da conversação encenada na peça, percebemos que a fala de Batista é a

continuação de um diálogo. Este pretende apresentar a cultura e até mesmo o costume

sobre as regras do casamento. Para Lucêncio e Trânio, este foi o primeiro contato com

os habitantes de Pádua, exatamente no clímax da conversa entre Batista, as filhas,

Grêmio e Hortênsio.

Na cena que introduz a visão desse cortejo, Lucêncio lamenta o atraso de

Biondello, outro de seus servos, o qual, se já houvesse chegado, poderia ter-lhes

preparado um lugar em que pudessem morar e receber os amigos. O local da cena é a

praça pública de Pádua, ambiente capaz de impressionar viajantes, e a primeira

impressão apresentada aos novos moradores que acabam de chegar à cidade é uma

donzela sendo influenciada pelo pai a casar-se, a fim de que a filha mais nova possa

também casar-se. Lucêncio e Trânio observam a cena à distância, e conversam sobre as

moças, filhas de Batista. Segundo Mendes:

[...] até mesmo quem acaba de chegar a Pádua logo adquire uma opinião negativa sobre a protagonista. Ao presenciar a cena entre ela, Bianca, Batista, GrêmioHortênsio; Trânio, o criado particular de Lucêncio, diz que Catarina é completamente louca, crosta e perspicaz. Em suas quatro falas na Cena 1 Catarina nos revela ser alguém que se sente injustiçada: todos

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preferem Bianca, mesmo ela sendo uma pessoa falsa. Isso vai de encontro à descrição de Trânio que declara sua opinião com base na ideologia da época – uma mulher deveria ser silenciosa, quieta, de maneira alguma poderia expressar suas opiniões livremente. As personagens Trânio e Lucêncio têm a função do coro, isto é, suas falas instruem o espectador quanto à maneira como devem ser lidas as personagens. (MENDES,2011)

Trânio e Lucêncio passam a conversar sobre os perfis das moças. Enquanto

comentavam sobre as características assombrosas de Catarina, falam também sobre o

comportamento gentil de Bianca, vendo-a como uma donzela cheia de recato, cuja

aparência lhe agradara a vista. Shakespeare, em toda a peça, deixa claro o contraste

entre as irmãs. Embora ambas sejam representadas como belas, cada personagem que

conhece as filhas de Batista percebe as diferenças psicológicas entre as jovens.

Batista mantém firme o seu propósito: não ceder a filha mais nova enquanto a

mais velha não tiver marido. Ao afirmar isto, podemos perceber a autonomia de Batista

em relação às filhas. E, através desta representação, é possível perceber que em Pádua,

nos tempos de Shakespeare, o casamento é tratado pelos pais, configurando-se assim,

como uma sociedade patriarcal. Ansioso por casar a filha mais velha, Batista oferece-a

aos pretendentes que, sabe, disputam a mão de sua outra filha, a mais jovem e suave

Bianca.

Postada ao lado do pai, Catarina ouve Grêmio pronunciar palavras pouco

corteses sobre ela– antes que desposá-la, preferiria esquartejá-la, já que, como declara,

ela é “muito grosseira”. O personagem oferece à moça ao outro pretendente. O fato de

que seja oferecida como mercadoria pelo pai e em seguida por Grêmio já é rude, e de

molde a ferir os sentimentos de Catarina. Contudo, a ofensa ainda é maior por vir de um

“pantalão”. O pantalão era uma figura da tradição cômica da commedia dell´arte, e

constituía-se em figuras risíveis, velhos que eram punidos e feitos objeto de chacota por,

inapropriadamente, procurarem casar-se com jovens como Bianca. Tipicamente, os

pantalões vestiam calcas grandes e folgadas – daí o nome atribuído a tais tipos.

(COMMEDIA DEL ARTE, s. d.).

Assim, o fato de que é uma figura risível como Grêmio que continua a oferecê-

la como objeto de consumo – de namoro e casamento, no caso – a outro pretendente é

especialmente agressiva. É por essa razão que Catarina discorda da atitude do pai em

relação aos pretendentes que lhe são apresentados e passa a interrogá-lo. No contexto

histórico da peça, e contrastando com a habitual relação patriarcal entre pais e filhas,

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Catarina é representada como uma donzela que luta e discorda dos padrões sociais da

época. Por este motivo, discute com seu pai e defende seus ideais.

Bárbara Heliodora (1998) comenta que a revolta e a violência de Catarina são

produto da disparidade do tratamento que recebem de Batista, seu pai, as duas irmãs,

sendo a caçula, que o sabe adular, a favorita clamorosa do velho. Para a autora, Catarina

deveria ser tratada como a primogênita da casa, o que não acontece na casa dos Minola.

As decisões de Batista em reunir pretendentes para a filha demonstram o tratamento

dado à Catarina, e isto causa revolta, a qual é possível ver na fala de Catarina.

Maya Tzur (2013) considera que a atitude de Catarina é apenas uma

consequência de sua tensão com relação ao tratamento dado a Bianca. Catarina poderia

ser uma percursora dos direitos das mulheres para o seu tempo, como ela subverte a

autoridade abusiva, tendencioso de seu pai. Ela quer escolher com quem se casar, em

vez de ser obrigada a casar-se com um homem escolhido por seu pai, a fim de abrir

espaço para o grande casamento de sua irmã. Na verdade, ela é espirituosa e agressiva

com os homens que a caluniavam, mas só queria mostrar que ela não deveria ser tratada

como lixo. Conforme Tzur, a filosofia de Catarina era combater o preconceito contra a

mulher.

Na fala de Batista, evidencia-se o interesse em casar as filhas. Sua intenção

primeira é encontrar um pretendente para Catarina. Percebemos isto quando ele concede

a Grêmio e Hortênsio a permissão para cortejar a filha, mesmo sem saber se algum deles

aceitaria. No entanto, como já comentado, percebemos que Grêmio e Hortênsio não

estão interessados em cortejar Catarina, porque esta se apresenta como umA megera,

grosseira, alguém que discute com seus pretendentes.

Esta situação em que o casamento é retratado convida a pensar sobre o papel

do casamento, e como este ilustra as relações entre Batista e as filhas. Para Batista, o

casamento é um símbolo de honra, e, para o prestigio da família, ele pretende casar as

filhas, mas mantém a ordem social de casar a mais velha antes que a mais nova seja

dada em casamento.

O segundo recorte selecionado continua a enfocar as relações entre pais e

filhas; a cena reforça a postura patriarcal de Batista, a qual influi diretamente nos planos

matrimoniais das filhas. Perante os questionamentos de Catarina sugere um conflito

familiar, neste caso entre pai e filha; fica visível, também, conflito de relacionamento

entre as irmãs Catarina e Bianca.

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Recorte 02: Ato I, Cena 1:

[...]

BATISTA: Cavalheiros, para mostrar que pretendo cumprir bem depressa... Bianca, para dentro. E não fique aborrecida com a minha decisão, pois continuo a te amar mais do que nunca, minha filha. CATARINA: Que linda bonequinha! E tão mimada! É só enfiar-lhe um dedo no olho e deixará de ser tão delicada. BIANCA: Alegre-se, irmã, com minha tristeza. Senhor, para lhe agradar me curvo humildemente. Meus livros e instrumentos serão minha companhia: neles aprenderei e tocarei, sozinha. [...] BATISTA: Conformem-se, senhores: estou resolvido — entra, Bianca! (Sai Bianca.) E, como eu sei que seus maiores prazeres são a música e a poesia, contratarei professores capazes, para instruir sua juventude. Se tu, Hortênsio — ou o Signior Grêmio — conhecem alguns em condições, mandem-nos aqui. Sou sempre amigo dos homens de cultura e nada poupo para que minhas filhas recebam boa educação. E com isso, adeus. Você pode ficar, Catarina. Tenho que conversar com tua irmã. (Sai) CATARINA: Ué, e por que não vou embora também eu? Por quê? Como se alguém pudesse me dizer o que devo fazer. Como se eu não soubesse o que devo pegar e o que devo largar. Ora! (Sai) (SHAKESPEARE, 2008, p. 25-26)

Neste recorte da peça, é possível identificar a relação entre Batista e Bianca,

nas duas primeiras falas de Batista; a relação entre Catarina e Bianca nas falas de

ambas; e nas últimas duas falas, a relação entre Batista e Catarina. Também fica claro,

mais uma vez, o desgosto de Catarina por estar sendo tratada por seu pai como um

objeto, um ser totalmente desprovido de vontade e afetos.

Inicialmente, Batista deixa claro que está decidido em relação ao assunto do

casamento. Para muitos o casamento é tratado, pelos envolvidos, com dignidade,

diálogo, acertos e com muitos planejamentos; no entanto, Batista trata este assunto

como um acordo breve e apenas burocrático.

Demonstra autoridade sobre as filhas, mas apenas Bianca, a mais nova, parece

ser submissa ao pai. Batista mantém autoridade sobre Bianca e parece estimá-la e tratá-

la carinhosamente, mais do que a Catarina. Nesta relação é possível perceber a

submissão de Bianca ao seu pai. Esta submissão demonstra o perfil ideal da mulher,

segundo a sociedade patriarcal, no momento histórico da peça. Além disso, a jovem é

retratada como formosa e delicada: tem, portanto, um perfil altamente desejável por

seus pretendentes, tendo em mente que à submissão feminina, ideal para um casamento

bem sucedido à época, a jovem une gentileza e beleza. Bianca, a filha mais nova e a

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preferida de Batista, como já apontado, ao contrário de sua irmã mais velha, Bianca é

descrita como uma criatura adorável.

Segundo Maya Tzur (2013), é possível perceber que Bianca destaca-se diante

de sua irmã visando ser o objeto de afeto de todos. Ironicamente, no decorrer da peça,

Bianca recebe todos os elogios para o seu "bom comportamento", enquanto Catarina é

ridicularizada e humilhada, como umA megera. Porém, ao final da peça essa

caracterização é questionada, já que Bianca, e não Catarina recusa-se a cumprir uma

ordem do esposo. Essa reversão alinha-se a uma das caraterísticas da comedia, a das

identidades equivocadas, mas contribui, também, para questionar não só o conceito de

megera como a questão da submissão feminina, como se verá ao longo da análise

presente neste capítulo.

A megera, segundo Cegala, (2005) pela definição da era elisabetana, poderia

simplesmente ser uma mulher de mau gênio, mulher perversa ou má. De acordo com

essa definição, uma mulher era considerada umA megera se não seguisse os padrões

sociais impostos pela sociedade centrada no homem, mas hoje, o termo megera é

substituído pela expressão feminista. Já na telenovela, o termo usado por Carrasco para

referir-se a Catarina é fera que, segundo Cegala (2005), significa uma pessoa irascível,

pessoa que se distingue numa atividade muito competente, pessoa feroz, extremamente

enraivecida, descontrolada. Nestes termos a fera representa a mulher feminista no

século XXI é lutar pelos interesses das mulheres e pela igualdade de direitos entre os

gêneros. A diferença dos conceitos representa uma mudança sobre o status da mulher

em cada uma das sociedades enfocadas.

Lucêncio compara Bianca à Minerva, deusa da sabedoria. Mendes (2011) ainda

destaca que Lucêncio usa o verbo “ver”, uma indicação de que o que está diante de seus

olhos naquele momento pode não corresponder à realidade, o que acontece no final da

peça. Podemos apontar a primeira questão sobre Bianca: a diferença entre sua aparência

e sua essência. Catarina é a única que conhece a irmã e suas artimanhas para enganar

todos e ser considerada bela e doce. Ela revela a personalidade de sua irmã ao dizer que

ao colocar um dedo no olho deixaria de ser tão mimada. Isso revela o conhecimento que

Catarina tem de sua irmã, o que vai além da beleza.

Já as características de Catarina parecem ser indesejáveis aos pretendentes, que

almejavam casar e manter um relacionamento harmônico. Conquanto ela seja

apresentada com uma donzela bonita e rica, seu caráter não submisso, e sua disposição

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para defender seus posicionamentos fazem com que seja considerada uma moça

arrogante para um casamento harmonioso.

Tais opiniões não deixam de afetar Catarina, que, no íntimo, sente-se

humilhada por não ter pretendentes, enquanto a irmã possui mais de um. Ademais,

percebe a predileção do pai pela filha mais moça; vê que Bianca é mimada por Batista.

Catarina e Bianca não possuem uma boa relação, justamente porque Bianca é submissa

ao seu pai, enquanto que Catarina discorda das decisões de Batista em relação ao

casamento das filhas. Isso fica evidente, na cena, quando Bianca chama ao pai de senhor

e afirma que, como de sempre, para agradá-lo curva-se às suas ordens.

A relação entre Batista e Catarina é o resultado do conflito de opiniões. Bianca

tenta fazer a irmã compreender que também ela sofre com as decisões do pai, e pede-lhe

que, se lhe serve de consolo, apiede-se com sua tristeza. Batista procura manter a ordem

sobre as decisões do lar, da família e inclusive sobre o casamento das filhas. Catarina

não aceita receber ordens, e não permite que outros lhe orientem na tomada de decisões.

Por este motivo, ela é vista na peça como umA megera. No entanto, Shakespeare

pretende apontar as características de Catarina como uma representação dos direitos de

igualdade de gênero, como uma mulher que assume um posicionamento contra as

normas estáveis do período elisabetano. Catarina não apenas discorda, mas manifesta-se

contra o pai e contra os demais homens que lhe tratam como objeto.

Por outro lado, Shakespeare representa Bianca como submissa, suave e

prestativa aos desejos da sociedade patriarcal. A construção deste contraste pretende

demonstrar o perfil almejado na mulher da sociedade renascentista. Catariana representa

o desejo por igualdade de gêneros, enquanto Bianca representa a submissão da mulher.

Percebe-se neste contraste que o autor pretende apresentar as manifestações e os direitos

das mulheres, no entanto, ainda mantém a crítica sobre o comportamento feminino.

Durante o início do Ato I, cena 1, Catarina não age como umA megera e não há

nenhuma razão para duvidar de seu comportamento; ela ainda educadamente se dirige

ao pai e aos pretendentes como "senhor". Só quando as pessoas começaram a murmurar

sobre sua insolência que a aparência dA megera começa a se manifestar. No entanto,

pode ser interpretado como a frustração que seu comportamento está sendo estritamente

ditada nas declarações pejorativas, quando ela realmente não está sendo compreendida

corretamente.

Tzur (2013) questiona: Será que a peça se tornaria uma interpretação mais

cômica e plausível se o título representa Bianca como A megera? Pelo que sabemos

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sobre ela, Bianca tem o cuidado para apaziguar seu pai, seus pretendentes, e, o mais

importante a si mesma. Todos à sua volta colocam-na como superior à sua irmã mais

velha, que percebe a situação a sua volta, mas é ingênua, através do disfarce.

Na realidade, acredito que Bianca é umA megera. Ela é uma menina mimada

que gosta de manipular aqueles que ofertam dotes sobre ela, a fim de subestimar-se e

prender o melhor, e mais rico possível marido. Como Catarina afirma no encerramento

de seu monólogo (V, ii, 169), fortuna e um bom marido favorecem a esposa obediente,

que “são obrigadas a servir, amar e obedecer ao seu marido " (SHAKESPEARE, 2008,

p. 128). Bianca deve estar de acordo com a imagem ideal de uma mulher; ela disfarça-se

de meiga e ingênua e continua a persuadir até conseguir o que ela mais precisa. "Ela

tem, numa primeira concepção, todas as características de uma jovem modéstia, mas a

ao conhecê-la, é possível ver nela todas as características que se iguala a personalidade

de marcas internas de seu pai”. (TZUR, 2013, p. 17).

Ao seguirmos a perspectiva de Tzur, até o final do ato V, quando Bianca

finalmente está casada com o rico, belo marido que ela desejava, ela não tem que

mostrar-se falsa para atrair os pretendentes. Devido ao fato de que sua personalidade é,

na verdade, uma regressão da submissa à megera, apesar de seu perfeito casamento,

pode-se dizer que Bianca nunca mais foi a moça submissa, como todos a consideravam,

um fato que volto a discutir no decorrer desta análise. No final da peça, na cena em que

uma aposta entre os maridos para demonstrarem a submissão das mulheres, Bianca não

se submete a obedecer ao marido e considera a aposta de Petrúquio tola.

Ainda no Ato 1, momento em que se apresentam os personagens e o motivo

desencadeador da ação dramática – no caso, os obstáculos colocados por Batista para a

obtenção da mão de suas filhas –encontram-se outros momentos em que o casamento

está sendo tratado como resolução dos problemas econômicos, ou seja, o dinheiro está

em questão. Os pares conjugais se formam a partir dos interesses econômicos dos

pretendentes ou de seus pais. Embora ainda não patente nas cenas do Ato I, Batista virá

a negociar o casamento de Bianca com ênfase no dote a receber; em um primeiro

momento da peça, contudo, a mercantilização do casamento se faz visível a partir da

atitude de alguém que se dispõe a casar com quem quer que seja, desde que rica.

Desviando o olhar de Bianca, Catarina e Batista, a segunda cena do Ato 1

introduz a figura de Petrúquio. No momento da cena escolhida como o Recorte 03,

citada abaixo, Petrúquio está juntamente com seu criado Grúmio em frente à casa de

Hortênsio, com quem fala sobre sua vinda a Pádua. O propósito da viagem é a busca de

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fortuna através do casamento, tendo em vista que Petrúquio encontrava-se à beira da

falência, devido à morte de seu pai. Encontrar um casamento em Pádua, onde não era

conhecido, seria uma grande solução, considerando a rapidez dos contratos de

casamento. Petrúquio poderia, de fato, conseguir casamento mais rico em Pádua do que

em Verona, sua terra natal.

A amizade entre Petrúquio e Hortênsio oportuniza uma conversa franca sobre o

casamento por interesse e é nesta conversa inicial que falam sobre Catarina, a jovem

rica. Petrúquio não demonstra interesse de conhecê-la por suas qualidades, mas

claramente afirma suas intenções em ser feliz com um casamento rico. Sendo assim, a

trama explora a dimensão social do amor no enfoque do casamento como instituição

econômica. É exatamente essa instituição que é alvo de análise no recorte 3, o qual

enfoca o diálogo entre Hortênsio e Petrúquio, no qual este último relata sua intenção de

alcançar prosperidade através do casamento:

Recorte 03: Ato I, cena 2.

Hortênsio: [...] E agora me diga, bom, amigo, que bons ventos o sopraram da velha Verona até aqui, em Pádua? Petrúquio: O vento que espalha os jovens pelo mundo em busca de fortuna fora da própria terra, onde não há mais o que aprender. Em resumo, velho Hortênsio, eis o que há comigo: Antônio, meu pai, acaba de morrer. Atirei-me, então ao caos, decidido a casar do melhor modo e prosperar o mais possível. Tenho dinheiro na bolsa e bens na pátria. Resolvi viajar e ver o mundo. Hortênsio: Então, Petrúquio, devo eu, sem rodeios, aconselhar-te uma mulher grosseira e detestável? Sei que não parece um conselho aconselhável; garanto porém que ela é rica, e muito rica: mas qual, és muito amigo meu para que eu queira apresentar-te a ela. Petrúquio: Signor Hortêncio, entre amigos, como nós, poucas palavras bastam. Assim, se conhece uma mulher bastante rica para ser esposa de Petrúquio, como essa mulher pode ser tão feia como a amada de Florêncio, tão velha ou mais velha como a Sibila, tão abominável e feroz quanto Xantipa, companheira de Sócrates, que não me movera do meu intento e nem removerá minha afeição, mesmo que tão perigosa quanto o Adriático. Vim arranjar em Pádua um casamento rico: se o casamento é rico, estou feliz em Pádua. (SHAKESPEARE, 2008, 34-35.)

Neste recorte, percebemos um deslocamento de lugar. Petrúquio deixa Verona

e vai a Pádua rever amigos, especialmente seu amigo Hortênsio. A visita ao seu amigo

em Pádua possui outros interesses que estão claros nos diálogos entre eles. Este

deslocamento de Verona à Pádua sugere uma motivação baseada na diferença das

condições econômicas entre as duas cidades. O interesse de Petrúquio, demonstrado na

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peça, pode indicar que Pádua possui mais riquezas, o que facilitaria a tarefa de encontrar

ali moças ricas para casar. Ainda através da fala de Petrúquio, ao responder sobre sua

vinda à Pádua, percebemos que o interesse principal dele é a busca de fortuna fora da

própria terra (Verona), através do casamento.

A cidade de Verona foi o local ideal para que Petrúquio resolvesse a sua

situação econômica. Petrúquio perdera o pai e estava com sua fazenda beirando à

falência e, por esse motivo, estava decidido a casar-se do melhor modo possível, para

prosperar o mais possível. Petrúquio revelou isto ao amigo Hortênsio, considerado o

mais fiel de todos. Nesta relação amigável, o diálogo flui e eles passam a tratar o

casamento apenas como uma negociação: “a riqueza deve ser a chave de ouro do meu

soneto matrimonial”, Petrúquio confessa a Hortênsio.

As palavras usadas por Petrúquio demonstram que o interesse pelo casamento

era apenas financeiro. Em seu vocabulário ele usa o termo Xantipa. Segundo Brisolara

(2014), etimologicamente o nome Xantipa significa cavalo loiro. Porém, como usada na

peça de Shakespeare, a referência parece ser a Xantipa, a irascível mulher de Sócrates;

Xenófanes, no Symposium refere-se a ela como "a pessoa mais difícil de se relacionar

de todas as mulheres que existem". Ainda, conforme afirma Diógenes Laércio (2014),

Sócrates dizia que vivia com uma mulher desse feitio da mesma forma que os cavaleiros

gostam de cavalos fogosos e "do mesmo jeito que, quando conseguem domá-los, podem

facilmente dominar o resto, também eu, na companhia de Xantipa, hei de aprender a

adaptar-me ao resto da humanidade." (LAERCIO, apud BRISOLARA, 2014)

Neste diálogo, Shakespeare enfatiza a causa do casamento como instituição

financeira, aproveitando da conversa entre os personagens para representar como o

casamento e a mulher eram tratados. Hortênsio aconselha para Petrúquio uma mulher

com características detestáveis e grosseiras, diferentes das demais, porém rica. Tão

detestável a moça parece a Hortênsio, que este salienta que tomar a moça como esposa

possa não parecer um conselho para um amigo; sustenta a Petrúquio, porém, que a moça

é rica.

Catarina não é apenas caracterizada por Hortênsio como umA megera, mas

vista por toda a sociedade como tal, como descrita na peça. A postura adotada por ela

para tratar sobre questões sociais como o casamento e o papel da mulher eram

considerados inconvenientes para uma mulher de sua época, já que o casamento era

tratado pelos pais das moças e pretendentes. No entanto, como Catarina participa da

tomada de decisões, contrariando as intenções de seu pai e até mesmo envolvia-se em

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discussões com seus pretendentes, ela era considerada como uma fera. Shakespeare

caracteriza Catarina, com exagero em sua personalidade para demonstrar que a

sociedade ignora as relações sociais e o amor quando beneficiada pelo dinheiro.

Percebemos que Shakespeare pretende demonstrar, também, que em sua época, havia

mulheres que lutavam pelos direitos entre os gêneros e liberdade de pensamento.

Continuando na análise da mercantilização do casamento, passamos a uma

seleção que é continuação da anterior, razão pela qual consideramos como uma

subdivisão do recorte 3B. Enquanto Petrúquio e Hortênsio conversam sobre a moça rica

de Pádua, Grúmio, criado de Petrúquio, que os observa, participa da conversa:

Recorte 04: Ato I cena 2

Grúmio: Veja, senhor, que ele lhe diz francamente o que tem na cabeça: dê-lhe ouro bastante que ele se casa com um espantalho, uma réstia de cebola ou uma velha de um dente só, mesmo que tenha as cinquenta e duas doenças do cavalo. Nada disso lhe importa, se vier com dinheiro. Hortênsio: [...] Posso ajudar-te a conseguir uma mulher bastante rica, jovem e bem bonita. Educada como convém a uma dama. Seu único defeito - e é defeito demais – é ser brusca, teimosa e violenta. Isso a tal ponto que, fosse minha situação ainda pior, não me casaria com ela nem por uma mina de ouro. Petrúquio: Já chega, Hortênsio! Tu não conheces o poder do ouro. Diz-me o nome do pai, isto me basta. Eu a dominarei, inda que berre mais alto que o trovão ribombando pelos céus de outono. Hortênsio: Seu pai é Batista Minola, cavalheiro gentil e educado. Ela se chama Catarina Minola, famosa, em Pádua, por sua língua viperina. Petrúquio: Eu conheço o pai dela, embora não a conheça. Ele se dava bem com meu defunto pai. Não dormirei, Hortênsio, antes de vê-la. Assim, perdoa-me a ousadia de abandonar-te aqui neste primeiro encontro. A menos que me acompanhes até lá. Grúmio: Eu lhe peço, senhor, deixe-o partir quando quiser. Palavra de honra que, se ela o conhecesse como eu, saberia que com ele de nada valem insultos. Pode chamá-lo de canalha vinte vezes que pouco se lhe dá; quando ele começa não pára antes do fim. E garanto, senhor, que se ela resistir um só momento ele lhe marcará o rosto de tal modo que ficará mais cega do que um gato cego. Ah, o senhor não o conhece. (SHAKESPEARE, 2008, p. 36-37)

Ao perceber o interesse econômico de Petrúquio no casamento, Grúmio, criado

de Petrúquio, participa do diálogo, confirmando as intenções de seu amo. Através deste

diálogo podemos perceber que, para Petrúquio, o casamento era apenas por interesse

econômico, enquanto na maioria dos casamentos o interesse inicial partia de uma

relação afetuosa entre os pares apaixonados. De acordo com Grúmio, a condição física e

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sentimental da moça desejada não influenciava na decisão do pretendente, desde que a

jovem lhe somasse uma grande quantia em dinheiro.

Em sua linguagem, Grúmio utiliza um vocabulário que remete a elementos do

campo, tais como: espantalho, uma réstia cebola, cavalo. O uso destes adjetivos aponta

a frieza de Petrúquio a respeito do casamento. Ao mesmo tempo em que Shakespeare

reproduz na peça o encontro entre o campo e a cidade, especialmente a agricultura,

produtos agrícolas e animais, os quais são símbolos da produção alimentícia, ainda,

através de Grúmio, há a alusão à riqueza encontrada na cidade, através da palavra

“ouro”, com a qual refere-se ao dinheiro ou à fortuna.

O contraste entre a descrição da moça e de seu pai representa uma desordem

familiar, segundo a sociedade patriarcal do período elisabetano. Batista Minola é

apresentado como cavalheiro gentil e educado. Tem o perfil ideal do homem da época,

com autoridade familiar, porém com serenidade de espírito. Já Catarina Minola é

conhecida e famosa, em Pádua, por sua língua viperina; suas atitudes parecem não

proceder da educação dada por seu pai. No entanto, entendemos que as atitudes de

Catarina são, de um lado, consideradas incoerentes pelos homens e, por outro lado,

vistas como uma manifestação de seus direitos, pelas mulheres.

Batista também considerava a condição social dos pretendentes de suas filhas,

no entanto, devido à situação em que Catarina se apresentava, ele estava determinado a

casá-la sem dar muita importância para as questões econômicas. Batista almejava

manter sua postura social de ter suas filhas casadas, de acordo com os costumes de sua

época. Nesse contexto, Grêmio garante a Hortênsio que Catarina aceitará conhecer

Petrúquio.

Um dos aspectos relacionados à mercantilização do casamento, se bem que

herdeiro de uma tradição secular é o dote. Este é um costume antigo, ainda em vigor em

algumas regiões do mundo, nas quais ocorre a transferência da propriedade parental por

ocasião do casamento de uma filha. Na ocasião, uma quantia de bens e dinheiro é

oferecida a um noivo pela família da noiva, como parte do acerto do casamento etnr

ambops. Em algumas culturas, como entre os muçulmanos, é o noivo que entrega à

família da noiva ou à própria noiva um dote. (DOWRY, s. d.). O recorte a seguir

(recorte 5) tem como objetivo analisar o costume do dote como representado na peça A

megera domada. Nesta cena, em um aposento na casa de Batista, Trânio e Grêmio se

apresentam e discutem seus dotes perante Batista para conquistar a filha Bianca

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Recorte 05:Ato II cena 1

Trânio: E eu sou aquele que ama Bianca mais do que podem exprimir simples palavras. Grêmio: Rapazinho, não podes amar da maneira intensa com que eu amo. Trânio: Vovozinho, o teu amor congela. Grêmio: E o teu derrete. Para trás, doidivanas: o que fecunda é a idade. Trânio: Mas para o olhar das mulheres o que faz florescer é a juventude. Batista: Contenham-se, cavalheiros, eu decido a questão. O que importa são os atos; o que garantir dote maior, terá o amor de Bianca. Diga, signor Grêmio, que tem a oferecer? [...] Batista: Bem, cavalheiros, eis minha resolução; como ouviram, minha filha Catarina casa-se no domingo que vem: assim no domingo seguinte, Bianca será a sua noiva, se você me trouxer uma garantia. Se não, será do Signor Grêmio. E assim, senhores, eu me despeço, agradecido a ambos. (SHAKESPEARE, 2008, p. 60-62)

Diante da discussão entre os cavalheiros, os quais dialogavam sobre o amor

que tinham a oferecer a Bianca, Batista decide a questão evidenciando o materialismo

como bem estar de Bianca e da família. Como vimos, na sociedade renascentista, o dote

era um dos principais assuntos de contratos de casamento e era tratado francamente

entre os pais e pretendentes das filhas. O dote, no entanto, era o critério de escolha

utilizado pelo pai da filha mulher, sem que esta pudesse influenciar nas decisões do pai.

Na fala de Batista fica evidente a franqueza com que o dote era tratado: “[...] O

que importa são os atos; aquele dos dois que garantir dote maior terá o amor de Bianca.”

[...] (SHAKESPEARE, 2008, p. 60). Batista deixa clara a questão da negociação ao

afirmar que a garantia do maior dote receberia em troca o amor de Bianca, segundo ele,

o que importava de fato não era o que eles tinham a oferecer sentimentalmente, mas sim

os atos financeiros. Diante da proposta de Batista, Trânio e Grêmio, pretendentes de

Bianca, apresentam seus bens financeiros. Seus argumentos, no entanto, se invertem e a

disputa sobre quem possuía maior amor a oferecer passa a ser, a partir de então, sobre

quem possuía maior riqueza. E, nesta discussão, Batista analisa, atenciosamente, os

casos e decide que sua filha Bianca seria noiva de Trânio, se este lhe garantisse uma

quantia como contrato de noivado; caso contrário, seria de Signior Grêmio.

Shakespeare retrata, na peça, o dote como recurso para um casamento, e, nesta

condição, a jovem era tratada como mercadoria entre as famílias dos noivos. O texto em

análise refere-se à Bianca, uma jovem aparentemente submissa e disposta a casar por

amor; sua submissão e os padrões sociais de sua época oportunizaram a decisão de seu

pai, Batista, a realizar contratos de casamento.

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A peça tende a explorar relacionamentos românticos a partir de uma

perspectiva social, abordando as instituições de namoro e casamento, em vez de enfocar

as paixões internas de amantes. Além disso, ressalta como a corte não apenas afeta os

amantes, mas também seus pais, seus servos, e seus amigos. Em geral, o marido e a

esposa conduzem o relacionamento conjugal após o casamento, mas o relacionamento

de namoro é negociado entre o futuro marido e o pai da futura esposa. Como tal, o

casamento se torna uma transação envolvendo a transferência de dinheiro. Lucêncio

ganha o coração de Bianca, mas ele é dado permissão para se casar com ela só depois

que ele é capaz de convencer Batista que ele é muito rico. Hortênsio ofereceu mais

dinheiro, ele teria se casado com Bianca, independentemente se ela amava Lucêncio.

Na peça, Shakespeare enfatiza o casamento da sociedade renascentista,

especialmente o dote, e neste recorte da peça, esse tema é retratado com reflexões; os

contratos de casamento são negociados entre Batista e os pretendentes de Bianca. No

entanto, através da personagem protagonista, é apresentada uma nova forma de pensar o

casamento: Catarina introduz um pensamento social que foge aos padrões do casamento

de sua época e assim, segundo a personagem, o casamento deveria ser assunto a ser

tratado pelos envolvidos, especialmente os noivos.

Em toda a peça é possível comparar a submissão de Bianca e a imposição de

Catarina. Ambas da mesma família, mas com personalidades diferentes, Bianca aceita

ser tratada como submissa e entende que o casamento é uma instituição que lhe trará

felicidade. Catarina impõe seu pensamento e discorda com as regras normatizadas pela

sociedade em que vive, ela vê o casamento como uma submissão da mulher ao marido.

Contudo, a aparente submissão de Bianca pode, também, ocultar uma

discordância íntima com a forma como o casamento era negociado. No recorte 06, que

corresponde ao Ato III, cena 1, pretendemos analisar o contraste entre aparência e

realidade no contexto da transgressão, como representado pela troca de identidade que

tem o objetivo de negociar o casamento. Nesta farsa, Lucêncio assume o papel de

professor de Filosofia e Literatura; Hortênsio assume o papel de professor de música

para que tenham acesso ao interior da casa de Batista, e assim, na proximidade de

Bianca, possam conquistar-lhe o coração. Nota-se que Bianca, assim que inteirada da

farsa, reage positivamente, aproveitando a ocasião para encontrar-se livremente com seu

amado.

No recorte a seguir analisaremos como as identidades dos personagens são

representadas na peça. Cada pessoa na peça ocupa uma posição social específica que

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traz consigo certas expectativas sobre como essas pessoas devem se comportar. A

posição social de um personagem é definida por coisas como a sua riqueza, idade, sexo,

profissão, filiação e educação; as normas que regem a forma como cada um deles

devem se comportar é duramente imposto pela família, amigos, e da sociedade como

um todo. Por exemplo, Lucêncio ocupa o papel social de uma jovem estudante rico,

Trânio a de um servo, e Bianca e Catarina os papéis de moças solteiras da classe alta.

No mínimo, elas deveriam ocupar esses papéis, mas, como mostra a peça, na realidade,

Catarina não se importa com seu papel social e sua indignação é o resultado de sua

frustração a respeito de sua posição (SHAKESPEARE, 1966)

Catarina não vive as expectativas de comportamento de sua sociedade, ela

enfrenta a desaprovação sociedade a seu respeito, e, devido a esta alienação, ela torna-se

miseravelmente infeliz. Ela é apenas um dos muitos personagens em A megera domada

que tentam contornar ou negar seus papéis socialmente definidos, no entanto: Lucêncio

transforma-se em um tutor de Latim da classe trabalhadora, Trânio se transforma em um

jovem rico aristocrata, Christopher Sly é transformado a partir de um funileiro em um

senhor, e assim por diante.

Em comparação com a angústia mais grave de Catarina sobre o seu papel, as

tentativas dos outros personagens para contornar as expectativas sociais parecem ser

uma diversão inofensiva. No entanto, a peça ilustra que cada disfarce deve ser desfeito e

a vida convencional pode retomar nos personagens no final da peça. Em última análise,

a felicidade da sociedade depende de todos atuando em seus papéis prescritos.

Através do motivo do disfarce, a peça entretém a ideia de que uma pessoa

determina a sua posição social, mas em última análise, afirma que este não é o caso. Um

servo pode colocar-se sobre a roupa de um senhor, mas ele continua a ser um servo,

aquele que deve retornar ao seu lugar, como podemos ver com Trânio. Da mesma

forma, Lucêncio deve revelar seu subterfúgio para seu pai e para Batista antes de

conquistar Bianca. O desenvolvimento de Catarina ao longo da peça é basicamente

determinado pela sua adaptação gradativa ao seu novo papel social como mulher. Ela

está em conformidade com regime humilhante de Petrúquio de domesticar, porque ela

sabe em algum nível que, se ela gosta do papel de esposa ou não, ela será mais feliz

aceitar suas obrigações sociais do que viver como ela tem sido em desacordo com todos

ligados a ela.

Na verdade, a emoção primária em A megera domada decorre de suas

fronteiras sociais permeáveis, atravessada continuamente por aqueles que empregam um

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disfarce ou uma mentira inteligente. No final, no entanto, a ordem convencional se

restabelece, e aqueles personagens que se harmonizam com essa ordem alcançam a

felicidade pessoal.

Apesar das desvantagens de estar no extremo inferior da hierarquia social,

Trânio, e até mesmo sem dúvida Biondello e Grêmio, são muitas vezes mais inteligentes

do que seus mestres. Grêmio muitas vezes interpreta mal as coisas excessivamente

literalmente, mas isso também pode ser visto como um jogo ou brincadeira com

Petrúquio, sob o pretexto de não o compreender. Trânio, entretanto, surge com o plano

pelo qual Lucêncio corteja com sucesso Bianca e, na elaboração dos vários disfarces

pelos quais ele e Lucêncio enganam Batista,

Na peça de Shakespeare há uma rígida hierarquia social entre nobres e

personagens de classe baixa, como os servos, mas também transforma essa hierarquia de

cabeça para baixo. O Senhor se veste como um servo, Lucêncio se veste como o de

classe baixa ligeiramente Cambio, Trânio se veste como Lucêncio, e os antigos

comerciantes se veste como Vicêncio. Além disso, todo a peça é realizada para o

entretenimento de Christopher Sly, um mendigo bêbado que tem sido levado a pensar

que ele é um nobre senhor. Tal como acontece com o sexo, as categorias que a

sociedade pode muitas vezes julgam ser natural são revelados no jogo como identidades

que têm de ser executadas e colocar como uma fantasia. A classe social é tanto uma

questão das roupas que usam e o modo como se comportam. Assim, mesmo que a

comédia de Shakespeare mostra com leveza cômica o tratamento brutal de funcionários,

ele expõe a arbitrariedade deste tipo de hierarquia social.

Na troca de identidade, que tem o objetivo de negociar o casamento para

conquistar Bianca, Lucêncio se disfarça de tutor para que possa ficar perto de sua amada

e conquistá-la, assim como Hortênsio. Na trama que envolve Bianca há um grande

número de personagens que se disfarçam para enganarem os outros. Lucêncio se

disfarça de Câmbio, enquanto Hortênsio adota o nome de Lítio, ambos fingirão ser os

professores de latim e música, respectivamente. Mas além dessas duas personagens, o

criado de Lucêncio, Trânio, adota a identidade de seu amo; e para conseguir casar com

Bianca, Lucêncio e Trânio convencem um transeunte a se passar por Vincêncio, pai de

Lucêncio, para garantir o dote do filho. Pode-se ver então que nesta trama ninguém é o

que parece ser.

A seguir analisaremos o recorte que retrata a cena em que Bianca recebe os

professores em sua casa para aprender latim e música, e como característica da comédia

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romântica shakespeariana, pretendemos discorrer sobre a troca de identidade e

especialmente caracterizar a personalidade de Bianca, bem como seu posicionamento

diante do casamento.

Recorte 06: Ato III cena 1

Bianca: Como, senhores, me fazem dupla ofensa, discutindo uma primazia que depende só de mim; não estão ensinando a uma aluna de escola; não quero que me amarrem a horas ou horários. Desejo aprender minhas lições como mais me agradar. E para acabar a discussão, sentemo-nos aqui. Pegue seu alaúde e vá tocando; nossa leitura não demorará mais do que o tempo de afinar o instrumento. Hortênsio: quando estiver afinada acabará a lição? (sai) Lucêncio: então a lição não acabará nunca- vai afinando. Bianca: onde tínhamos parado? Lucêncio: Aqui senhorita. (Lê)

Hac ibat Simois: hic est Sigeia tellus; Hic seterat Priami regia celsa senis.

Bianca: Traduz. Lucêncio: Hac ibat – como lhe disse antes – Simois – eu sou Lucêncio – hic est – filho de Vicêncio de Pisa – Sigeia tellus – disfarçado assim para conseguir seu amor – hic steterat – e esse Lucêncio que se apresenta como pretendente, - Priami – é meu criado Trânio, - regia – que tomou o meu nome, - celsa senis – para que juntos pudéssemos enganar o velho pantalão. Hortênsio: (Entrando.) Senhora, o instrumento está afinado. [...] Hortênsio: (A Lucêncio.) Quer ir andando agora e nos deixar sozinhos um momento? Minhas lições não servem para três vozes. Lucêncio: É tão formal assim, senhor? Bem, fico esperando (À parte) – e vigiando: pois, salvo engano, nosso belo músico está enamorado. [...] Hortênsio: Contudo, leia a escala de Hortênsio. Bianca: (Lendo.) “Escala”: Sou a magia que invade o silêncio. Para encantar o grande amor de Hortênsio: B mi, Bianca, aceita-o como teu senhor. C fá dó, porque te ama com imenso ardor. D sol ré, pus em você meu ideal do mundo. E lá mi, tem pena de mim, ou eu sucumbo. E chama isto de escalas? Qual, não me agrada: prefiro ficar com a tradição; não sou leviana para trocar regras antigas por longas invenções. (Entra um criado.) (SHAKESPEARE, 2008, p. 65-68)

A partir deste recorte podemos estudar a personalidade de Bianca, que aos

poucos é revelada. É durante sua primeira aula com Lucêncio e Hortênsio que Bianca

começa a demonstrar sua verdadeira natureza aos seus pretendentes. Inicialmente, tal

como Catarina já o fizera reiteradamente, Bianca reclama acerca do fato de ter sua

subjetividade ignorada. Seu comportamento é tão altivo e decidido quanto o da irmã

“megera” quando claramente reclama a si o direito de escolher o curso de seus estudos,

e a ordem em que este se cumprirá. É enfática ao afirmar que o dom da escolha é dela, e

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que ignorá-lo constitui-se em ofensa, pois retira de si uma primazia que só a ela

pertence. Na sequência, é Bianca que passa a dar ordens aos mestres, ordenando a um

que pegue seu instrumento e vá tocando enquanto ela passa a ser ensinada por Litio,

cujas classes escolhe. Assim, Bianca demostra sua decisão diante dos homens.

Ao analisar as características de Bianca, Mendes (2011), afirma:

A personagem de Bianca é mais um enigma shakespeariano. Queria ele dizer que todas as mulheres são “megeras”? Não importando a resposta, Bianca pode ser analisada como o estereótipo da mulher enganadora, que consegue as coisas por meio da mentira e do ardil. Mas em uma sociedade patriarcal, na qual a mulher não era livre para escolher seu futuro, haveria outra opção? É interessante destacar, contudo, que em sua trama, as personagens masculinas também fazem uso da mentira para conseguirem o que querem, em especial Lucêncio. (MENDES, 2011, p. 89)

Na escolha pela primazia dos mestres, Bianca demonstra clara preferência por

Lítio/Hortênsio, o que pode insinuar que já tenha percebido a realidade por trás do

disfarce. Bianca é esperta e sabe o que cada um pretende com as supostas aulas. Como

não lhe agrada a companhia de Cambio/Lucêncio, com muita determinação afasta-o de

si, ordenando-lhe que vá afinar o instrumento. Como Hortênsio, tomando literalmente a

declaração de Bianca, de que a aula de latim duraria apenas o tempo necessário para que

afinasse o instrumento, indaga se a lição de música efetivamente começará quando a

afinação estivesse concluída, Bianca grosseiramente desfaz de sua capacidade de afinar

o instrumento, dizendo-lhe que, a depender disso, a lição nunca terminará. É

novamente grosseira quando Hortênsio retorna, interrompendo seu diálogo com

Lucêncio, ocasião em que manda-o embora, sob a alegação de que pratica um dueto, e

não um trio.

Por outro lado, a imagem da doce e meiga Bianca também não se confirma no

tratamento dado a Hortênsio, que tenta cortejá-la com um poema usando as notas

musicais. Quando, ao expor a tradução das notas musicais, Hortênsio declara-lhe seu

amor, Bianca desdenha a escala musical assim apresentada, declarando preferir a

tradição a novas invenções. Essa declaração que Bianca prefere a tradição da sociedade

em que os pais ajudavam na decisão e escolha dos pretendentes das filhas.

Prosseguimos, agora, deslocando-nos de cena que envolvem a corte às

pretendentes para uma cena que enfoca o casamento. Trata-se do Ato III, cena 2, a qual

a cena acontece em frente à casa de Batista, no contexto do dia do casamento de

Petrúquio e Catarina.

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Recorte 07, Ato III cena 2

Batista: (Para Trânio) Signior Lucêncio, é hoje o dia do casamento de Petrúquio e nem sabemos onde está meu genro. Que irão falar? Que zombaria não farão ao saber que o sacerdote aguarda e não há noivo para cumprir o cerimonial do enlace? Que diz Lucêncio diante dessa vergonha que passamos? Catarina: A vergonha é toda minha: obrigada a conceder a mão, contra a vontade, a um maluco, estúpido e cheio de capricho que ficou noivo às pressas mas pretende casar bem devagar. Eu bem dizia que era um louco varrido, escondendo sentimentos vis sob a capa de um comportamento excêntrico. Para ter fama de engraçado é bem capaz de cortejar mil moças marcar o dia dos enlaces, organizar as festas, convidar amigos e espalhar os proclamas; sem ter sequer intenção de casar com quem antes noivou. Agora o mundo pode apontar para a pobre Catarina e dizer: “olhem, aí vai a mulher do doido Petrúquio se a Petrúquio lhe agradar e se casar com ela. ” Trânio: Paciência, boa Catarina, e o senhor também, Batista. Por minha vida, as intenções de Petrúquio são honradas, seja qual for o azar que impede de cumprir sua palavra: embora um tanto brusco e mais do que sensato e, apesar de suas brincadeiras e um homem muito sério. Catarina: Ah, antes não tivesse visto nunca! (Sai chorando, seguida por Bianca e ouros.) Batista: Vai, filha, vai: não posso censurá-la por chorar. Pois tal afronta envergonharia um santo, quanto mais um gênio impaciente como o seu. (Entra Biondello.) (SHAKESPEARE, 2008, p. 60-70)

O casamento de Catarina foi um dos eventos esperados por Batista. A cena

permite ainda analisar a alternância de sentimentos de preocupação, vergonha (de

Batista frente ao atraso de Petrúquio), humilhação e revolta (de Catarina, ante a aparente

ausência do noivo), bem como de alívio pela chegada deste último, e inconformidade

com a maneira como se veste. Na alegria aliviada de Batista queremos discutir o

prestígio social obtido por um pai que casa a filha; na revolta de Catarina, evidenciar a

desconsideração para com a situação social e emocional da mulher.

O recorte evidencia o constrangimento e a desconsideração para com os

sentimentos da mulher no dia de seu casamento. O contexto desta cena se dá em torno

do atraso de Petrúquio no dia de seu próprio casamento, o que parece ser uma grande

preocupação e vergonha para Batista, pai da noiva, já que tudo sugeria a desistência do

noivo.

Catarina declara toda a sua a frustração por ter sido obrigada a consentir em

casar, mesmo contra sua vontade, contra alguém que considera maluco, estúpido e cheio

de caprichos. A descrição que faz de Petrúquio é perfeita, considerando-se a maneira

como Petrúquio sistematicamente ignorou sua vontade e palavras no único momento em

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que esteve a sós com ela anteriormente. Também a decisão do casamento foi tomada

unilateralmente, por Petrúquio, que, aliás, já se decidira a desposá-la, a despeito de quão

geniosa se demonstrasse, antes mesmo de tê-la encontrado, já que não queria a ela, mas

a seu dinheiro.

Além disso, Catarina demonstra vergonha por parecer-lhe ter sido abandonada

no dia do casamento. Imagina que o noivo esconde sentimentos vis, e é alguém dado a

contratar casamento sem intenção alguma de cumprir com sua palavra. Imagina-se uma

a mais na sequência de mulheres enganadas e abandonadas por Petrúquio. Ademais, fica

humilhada pela vergonha de seu abandono ser público e notório a todos; mesmo que o

noivo aparecesse ficaria conhecida como a que casou como um doido, e apenas porque

a este agradou casar com ela, uma descrição que, além de retirar todo o seu poder de

agência, a humilha, reduzindo-a ao status de um joguete nas mãos de um maluco.

No entanto, o insulto parece não ser preocupante para Batista que, nesta

situação, apenas esperava pela realização de seu grande desejo de casar a filha Catarina.

O prestígio da família de Batista Minola, de acordo com os padrões sociais da época, se

completa a partir desse momento, quando a filha estivesse casada. A felicidade pessoal

e individual está em segundo plano, ante a necessidade de se conformar aos padrões

sociais estabelecidos. Catarina casa-se para o bem-estar da família, no entanto o

casamento não é algo planejado por ela e por isso não se encaixa na sua realização como

esposa.

O casamento consuma-se, uma vez que Petrúquio comparece, embora seu

modo de vestir (com roupas velhas), seu comportamento inconveniente durante o

casamento e sua retirada intempestiva com a noiva ao início do banquete nupcial

caracterizem um deboche quanto ao casamento e descaso absoluto para com os

sentimentos da noiva. Petrúquio obriga Catarina a deixar a festa nupcial e os convidados

e leva-a para a casa de campo, desse modo desconsidera a formalidade do casamento, o

que para Catarina é desonroso. Esta situação introduz o modo como se dá a relação

matrimonial do casal.

A roupa ridícula que Petrúquio usa no dia do seu casamento com Catarina

simboliza seu controle sobre ela: vestindo a fantasia, ele é capaz de humilhá-la. Mesmo

sendo vergonhoso para Catarina estar casando com alguém em tal vestimenta, ela sabe

que não tem outra escolha, se não deseja permanecer solteira. Ela consente deixar a

cerimônia de prosseguir, mesmo com Petrúquio vestido como um palhaço, e, portanto,

cede à sua autoridade mesmo antes do casamento (Shakespeare, 2013).

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Na alegria aliviada de Batista queremos discutir o prestígio social para um pai

que casa a filha; na revolta de Catarina, evidenciar a desconsideração para com a

situação social e emocional da mulher e, como representado nesta cena, ela demonstra a

insatisfação em casar com Petrúquio. Além disso, a revolta e insatisfação de Catarina se

dão a partir do atraso de Petrúquio que a faz esperar diante dos convidados e o modo

como Petrúquio está vestindo-se para o casamento.

No próximo recorte, correspondente ao ato IV, cena 1, avançamos para a

análise da relação matrimonial entre Petrúquio e Catarina. Na casa de campo, Petrúquio

inicia sua tarefa de domesticar Catarina. Shakespeare narra esta cena com o propósito de

representar a posição da mulher com relação ao cônjuge no período elisabetano;

analisaremos o tratamento dispensado por Petrúquio a Catarina, e o vocabulário por ele

utilizado para enfatizar o status dela como objeto (e não sujeito), submissa ao marido:

Recorte 08: Ato IV cena 1

Petrúquio: Assim, com muita astúcia, começo meu reinado e espero termina-lo com sucesso. Meu falcão agora está faminto, de barriga vazia. E enquanto não ficar bem amestrado, não mandarei matar a sua fome. Assim, aprenderá a obedecer ao dono. Outra maneira que tenho de amansar meu milhafre, de ensiná-lo a voltar e a conhecer meu chamado, é obrigá-lo a vigília como se faz com os falcões que bicam e batem as assas para não obedecer. Ela não comeu nada hoje, nem comerá. Não dormiu a noite passada, também não dormirá esta. Como fiz com a comida ei de encontrar também algum defeito na arrumação da cama. Atirarei pra cá o travesseiro, pra lá as almofadas, pum lado o cobertor, para o outro os lençóis. Ah, no meio de infernal balbúrdia não esquecerei de mostrar que faço tudo por cuidado e reverencia a ela. Concluindo, porém, ficará acordada a noite inteira. E se por um acaso cochilar, me imponho aos gritos e aos impropérios, com tal furor que a manterei desperta. Assim se mata uma mulher com gentilezas. Assim eu dobrarei seu gênio áspero e raivoso. Se alguém conhece algum modo melhor de domar umA megera, tenha a palavra. (Sai.) (SHAKESPEARE, 2008, p. 88)

Petrúquio compara o casamento a um reinado, e, portanto, a ele com um rei

cujas ordens e atitudes evidenciam sua superioridade em relação a sua esposa Catarina.

O vocabulário usado por ele demonstra que sua tarefa a partir do casamento é a

domesticação da mulher. Neste recorte, alguns comparativos são utilizados por

Petrúquio para definir sua mulher, entre eles, a expressão “falcão faminto”, o que sugere

Catarina como uma mulher com garra e opiniões para atacar a presa, mas que nesse

momento estava sob comando do marido. A palavra “milhafre” é utilizada para

expressar uma ave de rapina que persegue a caça miúda e pequenos roedores, e ao

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referir-se a Catarina que, neste momento, estava faminta, Petrúquio considera-a como

submissa e dependente, desesperadamente em busca da “caça”, por miúda que seja, que

possa mitigar-lhe a fome.

Desde o início, Petrúquio quis dominar uma relação de duas personalidades

dominantes. Ele tentou domá-la de uma forma não-violenta, mas ainda um pouco cruel.

O método que Petrúquio utilizou para a "domesticação" de Catarina foi privá-la das

coisas que ela tinha ou que lhe eram concedidas em toda a sua vida, e ele

sarcasticamente agiu a favor de seu interesse. Em nome do amor, Petrúquio se recusou a

deixá-la comer, sob o pretexto de que ela merecia mais alimentos do que o que estava

sendo dado a ela. E, da mesma forma, Petrúquio não achou que sua cama era adequada

para ela dormir, de modo que seus servos se revezaram para mantê-la acordada e

negando-lhe o sono que ela tanto precisava. Petrúquio tomou a posição de que Kate era

sua propriedade, como demonstrou, também na segunda cena do terceiro ato. (FONTE)

As pretensões de Petrúquio eram, de fato, domesticar Catarina, e como sugere

a peça, ele realizou a doma. De acordo com Gaberlini (2013), Catarina e Petrúquio

possuíam fortes personalidades, pois seus temperamentos eram exagerados e quando

brigavam, alguém sempre apanhava inocentemente. Sendo assim, ao estudarmos sobre o

comportamento da sociedade elisabetana, entendemos que Shakespeare faz uma crítica

social sobre o comportamento conjugal, no entanto, deixa prevalecer a posição

machista, na qual o marido mantém o domínio sobre a esposa. Isso indica que sua peça

analisa as ações do homem ao mesmo tempo em que deixa permanecer, até mesmo no

título, os padrões sociais representados através dos personagens.

Garbelini (2013) afirma que A megera domada é uma comédia de aprendizado,

pois sua principal função, na sua época de produção, era influenciar o público feminino,

por via oral ou visual, acerca do comportamento que devia adotar na sociedade em que

vivia, ou seja, submissão e obediência total ao marido. Acreditamos que a peça, de fato,

intenta em influenciar o comportamento social, mas a reversão do comportamento da

personagem Catarina é uma forma usada por Shakespeare para reivindicar os direitos de

igualdade entre os gêneros, já na sua época, no século XVI.

Na sequência, avançamos para outra cena de casamento, o banquete de

casamento de Bianca, com a presença dos três pares românticos da peça: Petrúquio e

Catarina, Bianca e Lucêncio e Hortêncio e a viúva rica, além de demais familiares dos

noivos. Enfoca-se, em especial, a aposta de Petrúquio acerca da obediência das

mulheres a seus maridos e senhores. Ainda que a situação tenha sido o resultado de uma

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aposta entre os homens, não deixa de evidenciar o comportamento da mulher esperado

por seus maridos no período renascentista inglês.

Recorte 09: Ato V cena 2 – Banquete do casamento

Batista: Agora, bom Petrúquio, fala a sério; acho que a mais megera é mesmo a que te coube Petrúquio: Não discuto; vamos verificar. Cada um de nós manda chamar a esposa. Aquele cuja esposa for mais obediente, vindo assim que chamada, ganhará prêmio que nós combinarmos. [...] Batista: Por Nossa Senhora, lá vem Catarina (Entra Catarina.) Catarina: Que deseja, senhor, para que me chama? Petrúquio: Onde está tua irmã e a mulher de Hortênsio? Catarina: Conversam, senhor, junto a lareira do salão. Petrúquio:Vai busca-las; se recusarem vir, podes bater-lhes com vontade, desde que venham ter os maridos. Vai, anda; que venham sem demora! (Sai Catarina.) [...] Viúva: Meu Deus, não me dê jamais o infortúnio de padecer semelhante humilhação! Bianca: Que vergonha! Isso é uma obediência estúpida. Lucêncio:Gostaria que tua obediência fosse igualmente estúpida, formosa Bianca. Pois tua obediência sábia já me custou cem coroas. Bianca: Pois mais estúpido é você que aposta em minha obediência. Petrúquio: Catarina, encarrego-te de dizer a estas senhoras cabeçudas as obrigações que têm para com seus maridos e senhores. Viúva: Vamos, vamos, está zombando. Não queremos sermão. Petrúquio: Estou mandando, vamos; e começa com ela. Viúva: Não o fará. Petrúquio: Fará: e começa com ela. Catarina:Tem vergonha? Desfaz essa expressão ameaçadora e não lance olhares desdenhosos para ferir teu senhor, teu rei, teu soberano, isso corrói tua beleza, como a geado queima o verde prado, destrói tua reputação como redemoinho os botões em flor; e não é em sensato, nem gracioso. A mulher irritada e uma fonte turva, enlameada, desagradável de aspecto, ausente de beleza. E enquanto está assim não há ninguém, por mais seco e sedento que, que toque os lábios nela, e lhe beba uma gota. O marido é teu senhor, tua vida, teu protetor, teu chefe e soberano. É quem cuida de ti, e, para manter-te, submete seu corpo a trabalho penoso seja em terra ou no mar. Sofrendo a tempestade a noite, de dia o frio, enquanto dormes no teu leito orno, salva e segura, segura e salva. E não exige de ti outro atributo se não amor, beleza, sincera obediência. Pagamento reduzido demais para tão grande esforço. Mesmo dever que prende o servo ao soberano prende, ao marido, a mulher. E quando ela é teimosa, impertinente, azeda, desabrida, não obedecendo as suas ordens justas, que é então senão rebelde, infame, uma traidora que não merece as graças de seu amo e amante? Tenho vergonha de ver mulheres tão ingênuas que pensam em fazer guerra quando devia ajoelhar e pedir paz. Ou procurando poder, supremacia e força, quando deviam amar, servir, obedecer. Por que razão o nosso corpo é liso, macio, delicado, não preparado para a fadiga, e a confusão do mundo, senão para que o nosso coração e o nosso espírito tenham delicadeza igual ao exterior, vamos, vamos, vermes teimosas e impotentes. Também já tive um gênio tão difícil, um coração pior. E mais razão, talvez, para revidar, palavra por palavra, ofensa por ofensa. Vejo

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agora, porém que nossas lanças são de palhas. Nossa força é fraqueza, nossa fraqueza sem remédio. E quanto mais queremos ser, menos nós somos. Assim, compreendido o inútil desse orgulho, devemos colocar as mãos, humildemente, sobre os pés do senhor. Para esse dever, quando meu esposo quiser, a minha mão está pronta. (SHAKESPEARE, 2008, p. 125-128)

Um dos pontos da peça que enfatiza a domesticação da mulher está no

desfecho. Entre as críticas apresentadas por Shakespeare, percebemos que o autor

pretende denunciar a sociedade de sua época, mas cuidadosamente mantém o enredo de

acordo com a sociedade. Este cuidado demonstrado pelo autor indica que sua obra, além

de uma comédia, é também uma representação da sociedade de sua época, por isso, o

enredo de A megera domada encerra-se assim. Entendemos que, mesmo diante dessa

situação, Shakespeare representa, através de Catarina, uma mulher que, no percurso da

peça não está inteiramente submissa ao marido. Sua obra poderia receber críticas ainda

maiores caso não representasse Catarina com esta nova postura ao final da peça.

Flavia Peres Pregnolato, ao analisar a peça, considera que:

A maioria das análises sobre a obra A megera domada de William Shakespeare, julga a obra como um retrato do machismo da era renascentista. Porém, a obra em questão é uma comédia com a presença de muitas ambiguidades, ironias e sarcasmos; características muito específicas do autor e que podem sugerir uma conotação diferente à obra. Foi provada na análise que Shakespeare tinha uma admiração muito grande pela Rainha Elizabeth I que foi um símbolo muito forte do poder feminino em uma época em que as mulheres não tinham espaço. Começando por esse fato é possível gerar uma primeira hipótese: se Shakespeare admirava a Elizabeth I, faria ele uma obra machista? Catarina é a principal personagem da trama e a ironia está sempre presente em sua fala. Com isso, pode-se gerar uma nova hipótese: teria Catarina sido realmente domada por Petrúquio? Portanto, a principal discussão em torno da obra é se ela é apenas um retrato da época Renascentista, sendo assim uma obra machista ou se a obra trata de um tema a frente de seu tempo (o feminismo), e critica os padrões exigidos na época pela sociedade. (PREGNOLATTO, 2012)

Segundo Pregnolatto, a ironia está sempre presente na fala de Catarina e é

possível que em seu discurso ela esteja sendo submissa ao marido enquanto usa a

ocasião para descrever algumas responsabilidades do parido para com a esposa, quando

ela declara:

O marido é teu senhor, tua vida, teu protetor, teu chefe e soberano. É quem cuida de ti, e, para manter-te, submete seu corpo a trabalho penoso seja em terra ou no mar. Sofrendo a tempestade a noite, de dia o frio, enquanto dormes no teu leito orno, salva e segura, segura e salva. (SHAKESPEARE, 2008, p. 127)

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No entanto, nesta declaração ela enfatiza o tratamento que a mulher deve

receber. Quando ela declara o marido como senhor, que cuida da esposa, aquele que

submete o corpo a trabalho penoso enquanto a mulher e dorme no leito morno, salva e

segura, ela enfatiza os cuidados e o tratamento que a mulher deve receber. Para

Petrúquio, este era um discurso genuíno de submissão, mas nas entrelinhas, há uma

sequência de responsabilidades a que o marido deveria submeter-se para os cuidados

com a esposa.

Assim como afirma o mesmo autor, Shakespeare tinha uma admiração muito

grande pela Rainha Elizabeth I que foi um símbolo muito forte do poder feminino em

uma época em que as mulheres não tinham espaço, e nesse sentido Shakespeare não

representaria o machismo em sua peça, mas demonstraria uma admiração às mulheres

através da comédia que representa a relação genérica através de seus personagens.

Na fala de Petrúquio ocorrida antes deste discurso, em tom machista ele

ordena: “Catarina, encarrego-te de dizer a estas senhoras cabeçudas as obrigações que

têm para com seus maridos e senhores”. (SHAKESPEARE, 2008, 127). No entanto, ao

discursar, Catarina não apresenta as obrigações da mulher em relação ao marido, mas

enfatiza que num casamento a relação deve ser harmoniosa para que a reputação da

mulher não seja destruída como o redemoinho destrói os botões em flor. Esta bela

comparação da mulher com a flor, já caracteriza o discurso plausível de Catarina. Ela

compara a mulher irritada como uma fonte turva, enlameada, desagradável de aspecto,

ausente de beleza. Estas comparações caracterizam a mulher sábia, o que não é

sinônimo de submissa.

Na mesma declaração, Catarina apresenta os deveres dos maridos. Os

sinônimos: senhor, soberano, chefe e protetor que ela utiliza para descrevê-los, não

isentam das obrigações e deveres que os mesmos devem ter para com suas esposas.

Todas as declarações que descrevem a mulher estão representadas em um

relacionamento recíproco de cuidados que os maridos devem lhe proporcionar.

É possível perceber que Bianca, em suas falas, tem um posicionamento diante do

marido, o que já acontece em toda a peça, quando dialoga com outros do gênero oposto.

A posição assumida por ela reflete o feminismo de sua época. Suas decisões são claras

em diversos assuntos. Nesta cena, ela declara que submeter-se a obedecer ao marido

através do discurso declarado de Catarina é uma obediência estúpida. E ao marido, ela o

considera mais estúpido por apostar nesta obediência.

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A partir desta declaração feita por Bianca, alguns analistas, como por exemplo,

Tzur (2013) questionam: Será que a peça se tornaria uma interpretação mais cômica e

plausível se o título representa Bianca como A megera? Pelo que sabemos sobre ela,

Bianca tem o cuidado para apaziguar seu pai, seus pretendentes, e, o mais importante a

si mesma. Todos à sua volta colocam a em um pedestal acima sua irmã mais velha.

Tzur (2013) acredita que Bianca é umA megera. Segundo ele, Bianca é uma

menina mimada que gosta de manipular aqueles que ofertam dotes sobre ela, a fim de

subir até o topo e prender o melhor, e mais rico possível marido. Como Catarina afirma

ao fim de seu monólogo, fortuna e um bom marido favorecem as esposas obedientes

que "são obrigadas a servir, amar e obedecer" ao seu marido. Bianca deve estar de

acordo com a imagem ideal de uma mulher; como Tzur (2013) percebe, ela coloca

máscara e é extremamente persuasiva até conseguir o que sente que ela mais precisa.

Ao seguirmos a perspectiva de Tzur, até o final do ato V, quando Bianca

finalmente está casada com o rico e belo marido que desejava, ela não necessita mais

mostrar-se falsa para atrair os pretendentes. Devido ao fato de que sua personalidade é

na verdade, uma regressão da submissa à megera, apesar de seu perfeito casamento, é

seguro dizer que Bianca nunca mais foi a bela moça que todos esperavam que ela fosse.

Segundo Maya Tzur (2013), mesmo que outras pessoas consideram Catarina

como umA megera, não significa que ela é a personagem do título; Bianca, por suas

atitudes demonstra ser uma raposa de língua afiada, se não moreso. Segundo Tzur,

Shakespeare propositalmente induziu o público para que eles pudessem ver que as

aparências não definem uma pessoa. Durante o início do Ato I, cena 1, Catarina não age

como umA megera e não há nenhuma razão para duvidar de seu comportamento; ela

ainda educadamente aborda o pai e a pretendentes como "senhor". Só quando as pessoas

começaram a murmurar sobre sua insolência que a aparência dA megera começa a se

manifestar. No entanto, seu comportamento pode ser compreendido como resultado da

frustação que ela vem enfrentando no meio social onde não é compreendida.

Com base na leitura de A megera domada e nos estudos aqui referenciados

entendemos que a peça proporciona uma compreensão sobre a sociedade renascentista

inglesa. O fato de que uma das características da comédia romântica é que as aparências

e realidade estão em desacordo, não só é motivo para riso como para reflexão, já que a

irmã que se mostrava submissa revela-se depois tão megera quanto a outra, e A megera,

em sua aparente submissão final, na verdade continua defendendo uma posição

feminista.

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Shakespeare relata o comportamento e os padrões da sociedade, contrastando

com a opinião e os ideais de Catarina. Até este ponto, é possível caracterizar facilmente

a comédia como uma crítica à sociedade da época. Porém, a partir do momento que

Catarina casa-se com Petrúquio e muda de comportamento, indaga-se: se ela foi domada

pelo marido, como poderíamos considerar a obra como uma crítica à sociedade? Afinal,

ao Catarina ser domada, Shakespeare estaria elaborando um final de acordo com os

padrões renascentistas. (PREGNOLATTO, 2012).

Contudo, por meio de seu último discurso, Catarina não deve ser compreendida

como uma mulher vencida pela sociedade machista. Acreditamos que Shakespeare

intenciona, desde o princípio, mostrar como a sociedade pode precipitar-se com

julgamentos. Desde o início da obra, formamos a imagem da Catarina pelo o que a

sociedade diz a respeito dela, sem conhecermos sua real natureza. Shakespeare sugere a

insatisfação da mulher com a falsa obediência das mulheres e com o julgamento feito

pela sociedade.

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3 CASAMENTO, FAMÍLIA E SOCIEDADE NO BRASIL: O CRAVO E A ROSA

O casamento e as relações de gênero e sociais que se estabelecem a partir dele,

dentre as quais relações familiares de ordem diversa, bem como a independência ou

submissão da mulher, são temas presentes na telenovela O cravo e a rosa, de Walcyr

Carrasco, a qual faz crítica social à sociedade brasileira do século XX. Para analisar o

casamento como uma instituição e a forma com este tema foi abordado na telenovela,

dividimos este capítulo em duas seções. A primeira, introdutória, trata sobre os

costumes associados ao casamento a partir do pensamento patriarcal no Brasil. A

segunda seção é o resultado das análises dos diferentes casamentos e relações sociais

associadas a ele na telenovela O cravo e a rosa.

3.1. CASAMENTO, FAMÍLIA E SOCIEDADE NO BRASIL

Como já estabelecido neste estudo, O cravo e a rosa é uma reescritura de A

megera domada, a qual aborda, também, em outro contexto, o casamento e as relações

em seu entorno. Focamos, agora, o olhar para esta instituição na sociedade brasileira.

No Brasil, assim como na Inglaterra, a sociedade segue os padrões da família e do

casamento europeu e, ao longo da história, algumas mudanças ocorreram a partir de

movimentos sociais de vários grupos, entre eles, as mulheres.

Entendemos que estudar, neste trabalho, a história do casamento na sociedade

brasileira de forma geral, em um percurso histórico que englobasse do Brasil colônia

aos dias atuais, desviaria o foco deste estudo, quando consideramos o contexto histórico

da telenovela a que pretendemos recorrer. Por isso, direcionamos prioritariamente esta

análise em torno da década de 1920, palco histórico de O cravo e a rosa, e

especialmente sobre o casamento e as relações que dele fazem parte, para então,

relacionarmos com as mudanças que ocorreram no Brasil a partir desse período até o

final do século XX, momento histórico em que a telenovela foi lançada e ao qual,

ultimamente, fazia referência. Contudo, entendemos ser necessária breve menção às

concepções que presidiram o casamento no período colonial, dada a persistência de

alguns desses fundamentos no imaginário social. Enfocamos, sobretudo, os

desenvolvimentos que têm lugar na transição do século XIX para o início do século XX,

já que este último é o período em que se situa, temporalmente, O cravo e a rosa.

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Tal como ocorria no período renascentista na Inglaterra, no Brasil, desde o

período colonial até o final do século XIX, o casamento também era tratado pelo pai da

noiva (PIMENTEL, 2005). Evidencia-se, já aí, desigualdade entre os sexos, a qual,

segundo Pimentel (2005) associava-se à interferência da Igreja, que mantinha

autonomia e controle sobre a sociedade e através do casamento. Priorizava os direitos

dos homens na relação conjugal e implantava normas morais e sociais. Pimentel afirma

que:

O casamento se constitui assim em um espaço de interferência ativa da Igreja, dentro do qual era possível controlar a luxúria, educar os instintos, criminalizar o prazer e comprometer as pessoas com o caráter “civilizador” e “catequético” das normas morais e sociais que estavam sendo impostas. Nestas matrizes, reprodução, fidelidade mútua, indissolubilidade, domesticação do desejo, encontramos disposições gerais que, entretanto, em sua aplicabilidade impõem margens de tolerância diferenciadas, criando assim práticas sociais hierarquizadas e assimétricas. (PIMENTEL, 2005, p. 25)

Contudo, ainda segundo Pimentel (2005), a discussão a respeito da importância

e da forma pela qual deve ser realizado o casamento atravessou séculos e não ocupou

apenas teólogos e concílios, mas também legisladores leigos. Assim, no Brasil, foi um

instrumento tanto de aquietação da população como de preservação da estrutura social

portuguesa, assim como de implantação dos princípios cristãos entre os colonos.

Mesmo que a normatização do casamento esteja presente em alguns

documentos oficiais, sua valorização era mais tradicionalista. Pimentel afirma que:

A quantidade de processos impetrados pelos Tribunais Eclesiásticos e pelo Santo Ofício em decorrência de irregularidades relativas à sexualidade é impressionante. Homens e mulheres eram chamados a regularizar sua situação por meio do casamento ou a abandonar o “comportamento escandaloso” que vinham apresentando. As leis civis e eclesiásticas, as pregações dos moralistas e os processos conduzidos pelo clero são todos discriminatórios com relação às mulheres, aos negros, índios, judeus e aos pobres em geral. O casamento, objeto de tantas preocupações no período, serve de parâmetro para a análise da vida no Brasil colonial, principalmente com relação aos desclassificados sociais. (PIMENTEL, 2005, p. 29)

Ainda segundo este autor, no caso de adultério, a prática judiciária estabeleceu

enorme diferença entre os sexos, castigando levemente a fornicação eventual do marido

e fixando rigorosas punições para a transgressão da esposa, assimilada à prostituição e

admitida como causa justa para o divórcio.

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Também a pesquisadora Clarissa Cecília Ferreira Alves (2016) enfatiza a

presença de uma sociedade machista que, ao longo dos anos no poder, mantinha a

autoridade na vida política e social. Nesse contexto, o casamento caracteriza-se como

instituição que favorecia o sexo masculino:

O casamento enquanto contrato situa-se no centro de um debate histórico acerca das contraditórias relações de igualdade e consentimento das partes ao pactuarem a constituição de uma relação conjugal, referindo-se a um contexto ainda mais amplo, que diz respeito não só à esfera familiar, mas a relações que repercutem fortemente no mundo político. Em meio a isso, há o fato de que a história da teoria contratual mostra-se ambígua quando funda uma instituição que supostamente cria relações entre iguais, mas que, a despeito disto, garante a manutenção de diversas formas de desigualdades, de modo não assumido. (ALVES, 2012, p. 96)

Alves (2012) afirma que o contrato de casamento, enquanto principal acordo

que cria a família nos moldes patriarcais tem sido, desde o início da teorização

contratual, concebido possuindo como pressuposto a subordinação feminina ao domínio

dos homens, como se isso resultasse de uma ordem natural, desde sempre existente.

Levando-se em consideração o contexto temporal e social a partir do qual

Walcyr Carrasco optou por situar a telenovela, não podemos falar sobre o casamento

sem retratarmos a posição da mulher na constituição da família e especialmente sobre o

movimento feminista da década de 1920, no Brasil. É nosso objetivo verificar se, dadas

as diferenças de contexto social e temporal em que cada uma dessas obras foi escrita, há

significativa diferença no modo como o casamento e as relações sociais dele decorrentes

são retratadas em cada uma dessas obras.

Vemos, assim, que a desigualdade entre os sexos não é característica apenas do

contexto do século XVI na Inglaterra, conforme retratado na peça de Shakespeare. Por

outro lado, como já exposto, um pensamento de resistência a um contexto machista é

sutilmente introduzido por Shakespeare em sua construção da personagem. Viés

semelhante é adotado na telenovela O cravo e a rosa, no qual Catarina é apresentada,

também, como uma feminista.

Considerando-se o quadro social já delineado, percebe-se, como Alves (2012)

chama a atenção, que no imaginário social ao qual o movimento feminista buscou

combater, evidencia-se o casamento como instituição inserida em uma conjuntura

tradicionalista, pautado pelos ideais burgueses de felicidade e privacidade, e defendido

como o modo mais legítimo para a constituição da família. Esta última é, por sua vez,

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largamente protegida dentro dos ordenamentos jurídicos ocidentais, inclusive do

brasileiro.

Em O cravo e a rosa, além de Catarina, duas outras mulheres, Lourdes e

Bárbara, alinham-se aos ideais feministas. Essa opção proporciona a discussão dos

movimentos feministas que ocorreram em vários países no final do século XIX e início

do século XX através de diferentes olhares, já que, com suas diferenças individuais,

essas três mulheres virão a sugerir, na telenovela, que, assim como os seres humanos

não são todos iguais, também o feminismo pode assumir diferentes contornos, conforme

praticado por mulheres com diferentes formações e históricos de vida. Táboas, no

tocante as questões feministas, tomando o sufrágio como conquista feminina máxima,

afirma:

A indignação feminina com sua situação de propriedade legal dos homens, marginalização da educação, salários muito mais baixos que o masculino, obrigação de casar-se, ou, então, a miséria e a intolerância destinadas às profissionais liberais solteiras, cria um contexto propício para a organização do sufrágio feminino. (TÁBOAS, 2011, p. 270)

O destaque para o feminismo situa-se em um contexto histórico em que, de

acordo com Macedo (2013), já no início do século XIX uma autonomia feminina maior

começou a ser vista no Brasil.

Segundo Del Priori (2001), com o desenvolvimento das cidades no século XIX,

novos modelos de construções de casas influíram na disposição do espaço no interior da

residência, tornando-a mais aconchegante, o que deixou mais claro o limite do convívio

e as distancias sociais entre a nova classe e o povo. Segundo a autora,

A mulher de elite passou a marcar presença em cafés, bailes, teatros e certos acontecimentos da vida social. [...] não só o marido ou o pai vigiavam seus passos, sua conduta era também submetida aos olhares atentos da sociedade. Essas mulheres tiveram de aprender a comportar-se em público, a conviver de maneira educada. (DEL PRIORI, 2001, p .228)

Se, por um lado, os espaços sociais foram abertos às mulheres e estas passaram a

frequentar bailes, teatros e cafés, é de se notar, também, que as mulheres da classe

média foram valorizadas pela responsabilidade a elas atribuídas para o cuidado com a

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família e filhos, desse modo, algumas oportunidades surgiram como, por exemplo, uma

nova forma de pensar o amor. Sobre esta mentalidade Del Priori afirma:

Durante o século XIX, a sociedade brasileira sofreu uma série de transformações: a consolidação do capitalismo; o incremento de uma vida urbana que oferecia novas alternativas de convivência social; a ascensão da burguesia e o surgimento de uma nova mentalidade –burguesia – reorganizadora das vivencias familiares e domésticas, do tempo e das atividades femininas; e, por que não, a sensibilidade e a forma de pensar o amor (DEL PRIORI, p. 223, 2001)

No Brasil, no século XIX, o casamento era tratado a partir dos interesses

econômicos.

O casamento entre famílias ricas e burguesas era usado como um

degrau de ascensão social ou uma forma de manutenção do status (ainda que os romances alentassem, muitas vezes, uniões por amor). Muitas mulheres casadas ganhavam uma nova função: contribuir para o projeto familiar de mobilidade social através de sua postura nos salões como anfitriãs e na vida cotidiana, em geral, como esposas modelares e boas mães. (DEL PRIORI, p. 229. 2001)

Segundo a autora, a mãe era a responsável para cuidar e supervisionar a

primeira educação dos filhos para que não deixassem simplesmente soltos sobre a

influência de amas, negras, ou “estranhos”, “moleques” de rua. O sucesso da família

também dependia das mulheres esposas de ricos comerciantes, ou de profissionais

liberais, cabia a elas a responsabilidade em manter o elevado nível de prestigio social da

família.

Os casamentos eram considerados uma forma de ascender socialmente ou

manter o status e eram realizados entre as famílias que possuíam patrimônios e bens

materiais. Com isso, a mulher era instrumental em ajudar a família a ter reconhecimento

perante a sociedade, sendo necessário ser uma boa anfitriã e portar-se de maneira

requintada. Além disso, nesse período, além da valorização da intimidade, percebe-se a

exaltação da maternidade, uma vez que ela passa a ser cobrada como mãe cuidadosa e

zelosa. (MACEDO, 2013)

A partir destas considerações, entendemos que a sociedade patriarcal foi um

fator que favoreceu o desenvolvimento de uma desigualdade genérica. Segundo Del

Priori (2001), no sertão nordestino, no século XIX, a mulher de elite, mesmo com certo

grau de instrução, estava restrita a esfera do espaço privado, pois a ela não se destinava

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a esfera pública do mundo econômico, político, social e cultural. A mulher não era

considerada cidadã política.

Em questões de educação, as mulheres não estudaram nem mesmo as primeiras

letras do alfabeto, enquanto os homens recebiam noções do grego e do pensamento de

Platão e Aristóteles, aprendiam ciências naturais, filosofia, geografia e francês, elas

aprendiam a bordar em branco, o crochê, o matiz a costura e a música. Del Priori,

afirma que o casamento passou a ser visto de forma diferente a partir do século XX,

Na passagem do século XIX para o XX, ocorrem mudanças comportamentais

e o casamento não poderia ficar imune a elas. “Os casais começam a se

escolher porque as relações matrimoniais tinham sido fundadas no

sentimento recíproco. O casamento de conveniência passa a ser vergonhoso e

o amor... bem, o amor não é mais uma ideia romântica, mas o cimento de

uma relação” (DEL PRIORI, p. 231. 2005).

Mesmo com estas mudanças que favoreceram as mulheres, ainda, segundo Del

Priori (2005), em meados do século XX, apesar de todos os avanços, o melhor lugar

para a mulher ainda era o lar e como destaca a autora, alguns casamentos ainda

aconteciam de acordo com a opinião da família.

Apesar de todas as mudanças comportamentais, os casamentos ainda

aconteciam de acordo com a opinião da família, isto é, a paixão ainda deveria

estar submetida à razão. À mulher estava reservado o maior quinhão de

responsabilidade para com a felicidade no lar. Ela deveria estar à disposição

de seu marido e da família a qualquer momento. Deveria ser prendada,

recatada, mas, ao mesmo tempo, esmerada em sua aparência, para que o

homem não se sentisse atraído pelas mulheres da rua. (DEL PRIORI, p. 322.

2005)

Contudo, por limitadas que fossem, aos olhos da sociedade atual, essas

oportunidades beneficiaram a atuação da mulher na vida social, o que mais tarde deu

origem ao movimento feminista da década de 1920. O encontro entre as mulheres de

elite oportunizou o desenvolvimento de um espaço de segredo e individualidade,

ambiente oportuno e privado para debates sobre sentimentos.

Passamos agora a comentar como esse contexto histórico se faz presente na

telenovela de Walcyr Carrasco, e a forma como ele optou por enfocar a sociedade

brasileira, considerando-se o contexto das relações tecidas a partir do casamento.

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3.2 CASAMENTO, FAMÍLIA E SOCIEDADE EM O CRAVO E A ROSA

Telenovelas de época, como é o caso de O cravo e a rosa, oportunizam não só

observar de que forma o passado é representado, mas, acima de tudo, implicam entender

esse passado como um espaço que está ligado ao presente. Assim, o que se mostra

quando se produz uma ficção histórica não é a realidade do passado, mas o que ele diz

sobre o presente (MUJICA, 2007).

A telenovela em análise contextualiza-se na década de 1920; foi, contudo,

levada ao ar pela Rede Globo entre 2000 a 2001: o distanciamento temporal pode ter

sido usado como uma forma favorável para comentar, através do passado, fatos do

presente. Entendemos que a telenovela possibilita uma reflexão sobre muitos temas que

se relacionam com a década de 1920 no Brasil, porém, como já destacado, escolhemos

analisar o relacionamento entre homens e mulheres como evidenciado através do

casamento. Há a representação de casamentos por interesses econômicos, como há

aqueles que se realizaram por amor; há, no caso de alguns pares românticos, uniões que

são mantidas em segredo para atender à normatização social do momento histórico, por

serem oriundas de traição ou envolverem classes sociais distintas, dentre outros fatores.

Em O cravo e a rosa, assim como evidenciado na peça de Shakespeare, a trama

central acontece em torno do casamento de Petrúquio e Catarina, protagonistas que

fazem parte do enredo principal. Contudo, como acontece na comédia romântica

shakespeariana, Carrasco opta por introduzir múltiplos subenredos. Além dos pares

românticos representados por Catarina e Petrúquio e sua irmã e Bianca e Edmundo, há

outros subenredos envolvendo relações amorosas que, além de acentuarem o contexto

brasileiro em que se desenvolve a telenovela, duplicam os subenredos originalmente

propostos por Shakespeare, analisando-os, assim, a partir de mais de um olhar.

Passamos agora a descrever os casamentos relatados na telenovela. Iniciamos com

aqueles que fazem um paralelo com a peça de Shakespeare e posteriormente com os

demais, os quais foram introduzidos na telenovela e que se diferenciam do enredo

shakespeariano.

Os protagonistas do principal subenredo de A megera domada, Julião

Petrúquio e Catarina Batista, são personagens de Shakespeare mantidos por Carrasco.

Evidentemente, a telenovela introduz alterações, como fica evidente já nos nomes dos

personagens, que apresentam adições bem brasileiras: o Julião, adicionado ao nome

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Petrúquio, e a substituição do sobrenome italiano Minola por Batista. Como em

Shakespeare, o casamento é baseado em interesses econômicos: Petrúquio, fazendeiro

tão falido como o Petrúquio de Shakespeare, interessa-se em conquistar a Catarina para,

com o dote do casamento, evitar que sua fazenda seja leiloada. Esta é, pelo menos

inicialmente, a motivação de Petrúquio, o qual buscava um relacionamento baseado nos

bens financeiros de Catarina. Tal motivação fica clara em diálogos como o que tem

lugar na casa de Cornélio, para onde Petrúquio retorna depois de ter sido informado

sobre a rica herdeira, e abruptamente retoma o diálogo enfocando os benefícios

econômicos que tal casamento traria.

A cena que retrata este momento acontece na casa de Cornélio. O ambiente

luxuoso, e a arquitetura atraente contribuem para a representação da classe alta. A

câmera focaliza, inicialmente, o bolo que está posto sobre a mesa do café e aos poucos,

a refeição sobre mesa, de forma panorâmica. Os alimentos, as xícaras e o bule de louça,

formam o conjunto de uma mesa farta e luxuosa aparência. Os móveis da casa

representam o estilo social da família e a presença de uma empregada é uma

característica das famílias nobres. As telas artísticas sobre as paredes e as luminárias

confirmam a situação econômica privilegiada da família.

A câmera introduz em cena os personagens, que se alimentam. Os homens

usam paletós; no caso das personagens femininas, chama atenção o uso de joias. O

figurino acentua a ideia da opulência, primeiro sugerida pelo cenário. A presença de

Petrúquio no ambiente de jantar, causa espanto e admiração, pois o figurino em que ele

se apresenta forma um contraste na ocasião. Sua roupa representa o estilo do campo,

pois, espera-se que o figurino, composto por roupas de aparência velha, foi uma forma

de enfatizar as diferenças entre a vida do campo e a vida da cidade. Petrúquio caminha

pela sala e os movimentos de câmera contribuem para a apresentação do ambiente.

Nesta cena, não há trilha sonora musical, pois, a ênfase está nos sons dos

talheres, e nos sons dos passos de Petrúquio, que formam o suspense para a fala dos

personagens. A seguir, transcreve-se o diálogo no momento em que esta cena acontece.

Recorte 01. Cap 002. 00:16:15’- 00:17:35’ (Entra Petrúquio na casa de Cornélio) Dinorá: Ora, ora, ora, quem vejo! Petrúquio: Ela é rica? Tem dote? Dinorá: Ela, quem? Cornélio: Ele só pode estar falando de Catarina. Dinorá: Áh! A Catarina, o pai é banqueiro, se tem dote?

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Josefa: O dote de Catarina é mais que o suficiente para salvar dez fazendas iguais a sua. Dinorá: Eu fico espantadíssima de ouvir esta pergunta. Ontem mesmo você gritou que não queria saber de Catarina. Disse que ela é uma fera! Petrúquio: É uma fera que eu sei, um demônio de saia. Mas eu não tenho medo de cobra, não tenho medo de onça braba, não vou ter medo de mulher. Se ela é rica eu caso! Eu caso com a fera!

Neste diálogo, Carrasco enfatiza a causa do casamento como instituição

financeira. Petrúquio, mesmo conhecendo o perfil de Catarina, mas motivado pelo

dinheiro, pretende se casar com Catarina. Nesta cena em análise, percebemos que

Petrúquio não tinha nenhum interesse amoroso por Catarina, almejava apenas o dinheiro

para solucionar seus problemas financeiros.

Diferentes motivações levam parentes e amigos dos protagonistas a se

posicionarem a favor do romance entre Petrúquio e Catarina. Batista quer vê-la casada,

livrar-se do constrangimento que passa por causa das atitudes da filha. Ademais, espera-

se de alguém de sua classe social, que constitua família, pelo que tanto a insistência da

filha em permanecer solteira como sua atitude são estorvos para seus planos de lançar

sua candidatura a prefeito. Bianca, a irmã mais nova, quer noivar e casar, mas só terá

permissão após a filha mais velha arrumar um pretendente. Já Cornélio, tio de

Petrúquio, torce pelo sobrinho, assim como o faz Calixto, velho empregado da fazenda,

que considera Petrúquio como um filho. Também apoiam o romance Dinorá e Josefa,

irmã e mãe do esportista Heitor, já que as duas querem vê-lo casado com Bianca, por

causa da fortuna dos Batista.

Essas motivações sugerem, ainda, a posição ocupada pela mulher na sociedade.

O fato de que ao pai é dado o direito de decidir sobre o casamento da filha caracteriza a

situação da mulher como “propriedade legal dos homens”, um fato que não é aceito

tanto por Catarina, que abertamente posiciona-se como feminista, como por Bianca,

inconformada com a impossibilidade de se casar, dado o costume social invocada e

defendido por Batista.

A cena em análise acontece na nobre casa de Batista, ambiente luxuoso e

caracterizado pelas riquezas materiais, como já descrito anteriormente. A cena que

antecede ao diálogo, focaliza de forma panorâmica a casa de Batista e em seguida o

interior da sala, com ênfase na magnifica escadaria pela qual hão de descer Batista e

Bianca. A arquitetura da casa é moderna, se considerada a época; representa estilo e

riqueza, no entanto os móveis são em grande parte uma combinação de estofados com

madeiras envernizadas.

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A câmera focaliza Batista no alto da escada como sinal de autoridade, enquanto

suas empregadas esperam para atendê-lo quando da sua chegada à sala de recepção.

Batista veste terno e Bianca usa vestido branco, botas e chapéu e estão preparados para

participarem de uma regata. Batista parece demonstrar cavalheirismo quando segura a

mão de Bianca ao descer a escada, mas isso demonstra a submissão dela ao pai. As

empregadas da casa usam vestidos com cores cinza e uniformes, os quais contrastam

com os de seus patrões e demonstram sua posição de servas.

Durante o diálogo, ouve-se, também, o barulho de objetos sendo quebrados por

Catarina, e, no desfecho da cena, vê-se um vaso com flores ser jogado por ela até a sala

de recepção. A cena é gravada em câmera lenta, para demonstrar e reconhecer o objeto

caindo. Vejamos a transcrição do diálogo que acontece neste ambiente, onde Batista

debate com Bianca (e não com Catarina, cuja opinião também desconsidera) o

aparecimento de um candidato para esta última.

Recorte 02: Cap 001, 07:15 – 7:35

(Na casa de Batista)

[...]

Batista: Eu não posso deixar de escapar esse, esse pretendente, é carioca, acaba de se mudar pra São Paulo, não conhece a fama de fera de Catarina. Bianca: Você não me deixa namorar, se casar, insiste que Catarina se case primeiro, assim, vou acabar ficando encalhada. Batista: Mas é a lei da vida! A filha mais velha tem que se casar antes da mais nova! Bianca: Áh! Que diabo de lei da vida é esta que o senhor tanto fala e que só me atrapalha.

Neste discurso Batista evidencia o modo como se processa a escolha e

aprovação dos pretendentes para Catarina. Apesar da telenovela não apresentar em cena

uma sequência de pretendentes, subentendemos, através da fala de Batista, que à

Catarina foram apresentados diversos pretendentes para o casamento e isto se justifica

na expressão “não posso deixar de escapar esse”, referindo-se ao pretendente carioca

que chegou em São Paulo. Na cena, está evidenciado o perfil de fera de Catarina,

característica desconhecida desse pretendente.

Na fala de Batista está subentendido o respeito de Batista às normas sociais;

parte dessa preocupação é a defesa da própria posição que ocupa na sociedade. Como

evidenciado em outros diálogos da telenovela, é uma desonra para uma família de classe

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alta ter filhas solteironas, fato que o impele a arranjar casamento para as filhas, e

obedecer ao critério de ordem do casamento por ordem de idade. Por esse motivo,

casamento de Catarina como resolução da possibilidade de casamento de Bianca.

O perfil de Bianca representa uma mulher submissa às normas sociais. Ela não

afronta seu pai com palavras, mas acredita e defende, através do diálogo, que uma

mulher será feliz em um casamento baseado no amor. Bianca é caracterizada como uma

jovem calma e inocente, mas apesar da submissão e respeito, ela assume posição diante

de suas escolhas. Observamos isto quando ela encontra Heitor no quintal, conta a

vontade de seu pai Batista e quando questiona sobre a lei da vida que seu pai tanto fala,

ao seguir a ordem de casar as filhas por ordem de idade.

Para Batista, toda mulher necessita de um marido para ser completa. Contudo,

Catarina não pretende se casar. É interessante destacar que ela é privilegiada pela

situação econômica da família: enquanto as mulheres da classe baixa subordinavam-se

ao casamento para não sofrerem as condições financeiras que lhes cabiam, Catarina não

sofreria as consequências de seus atos, caso viesse a permanecer solteira. Contraria a

sociedade de sua época ao defender a ideia de que uma mulher não necessita estar em

um casamento para ser bem sucedida.

A transcrição abaixo é uma parte do diálogo que acontece na chegada de

Batista e filhas em casa, após a regata. Na cena em que este diálogo acontece, Catarina

entra em casa empurrando a porta com os pés. Ela carrega uma sombrinha, está usando

botas, com as quais caminha de modo deselegante; usa saia cinza sobre meias pretas e

um blazer marrom claro com gravata, figurino com tons escuros que enfatizam sua

posição feminista. Ao chegar, Catarina deita-se sobre o sofá e retira as botas, jogando-as

para o alto, isto demonstra a sua postura inconformada com as pretensões do pai em

arranjar um casamento. A sua volta, estão Batista, Bianca e Mimosa, que conversam

com Catarina sobre a situação que ocorrera na regata, na qual Catarina derruba na água

um de seus pretendentes que de modo cortês pretendia auxiliar o desembarque de

Catarina. Em contraste com Catarina, o figurino de Bianca é caracterizado por cores

claras, chapéu branco, bolsa de mãos, vestido rosa sobre meias brancas e botas claras.

Assim, visualmente, sugere-se que as diferenças entre o modo de vestir das irmãs,

demostram que Catarina, sendo feminista, não segue os padrões das mulheres cujo

modo de vestir é suave e delicado.

Os personagens demonstram preocupação e contrariam o pensamento de

Catarina, que parece star inconformada com os discursos da sociedade, que mantém

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visão pré-definida sobre o casamento e a vida das mulheres. Vejamos a transcrição da

cena em que é possível identificar este pensamento.

Recorte 03. Cap 001, 00:23: 00’ – 00: 23:34’

(Na casa de Batista) [...] Catarina: Não sei por que ficar me arrumando pretendentes, papai, não quero e não vou me casar nunca! E vou logo avisando, este eu atirei no rio, o próximo eu afogo! Batista: Eu ainda vou enrolar essa tua língua com um tapete. Você vai se casar, sim! Um homem como eu, um banqueiro, numa posição social, não pode ter uma filha solteirona. [...] Batista: Minha filha, eu sou seu pai e me preocupo com você. Uma mulher sem marido é uma faca sem ponta, galinha sem pé! Catarina: Quer saber! Está pra nascer o homem capaz de me levar pro altar, Tenho dito!

Neste recorte são apresentadas características de Catarina, bem como sua

posição feminista em relação ao casamento, ao relacionamento com o seu pai, Batista,

quando contraria o pensamento de que as mulheres estão destinadas a criar filhos e

dedicarem-se às tarefas domésticas. Sua personalidade forte e língua ferina dominam a

trama e as pessoas com as quais ela se relaciona demonstram temor, e aos poucos vão se

adequando a sua personalidade. Com base nela e nas personagens Lourdes e Bárbara,

Walcyr Carrasco, mantém a temática feminista no decorrer da telenovela.

Assim como na primeira cena, em que Carrasco apresenta o movimento

feminista, no decorrer da telenovela o tema continua em evidência e uma nova proposta

é traçada entre os enredos a fim de tornar o movimento feminista frágil e ressaltar a

imagem de que o homem é capaz de contornar o movimento e controlar as ações

promovidas pelas mulheres. Isso está representado através de Catarina, que inicialmente

é apresentada com uma simpatizante do movimento feminista e contrária ao casamento,

mas que no decorrer da telenovela é influenciada pelo romantismo e conduzida a

assumir uma nova visão sobre o casamento.

Catarina, juntamente com Barbara e Lourdes está presente na cena inicial do

primeiro capítulo da telenovela, que inicia com uma manifestação de mulheres pela

busca dos direitos e igualdade entre os sexos, o que já sugere o foco temático adotado

pela adaptação brasileira do drama de Shakespeare. Carrasco direciona as personagens

feministas para assumirem uma nova postura como representada por Lourdes e Bárbara,

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que são as líderes do movimento feminismo apresentadas na cena inicial, mas que no

decorrer da telenovela transmitem a imagem de que as mulheres não resistem aos

encantos masculinos. Assim, o feminismo, na telenovela, aos poucos vai se

enfraquecendo. Isso demonstra, de forma cômica, como o movimento foi retratado e

como as atitudes feministas foram representadas para desfavorecer os ideais feministas.

Uma cena que representa este viés da representação das mulheres é o momento em que

Catarina questiona o porquê de apenas os homens dirigirem, e em seguida pede ao

empregado que colocasse o carro de Batista em ordem para que ela pudesse aprender a

dirigir, mas quando dirige atropela as pessoas na rua e sobe nas calçadas demonstrando,

assim, ser incapaz para a função de motorista.

O feminismo de Catarina, como o que ocorre com o da Catarina de

Shakespeare, é posto à prova, e melhor exposto quando testado frente à imposição do

casamento, e à sua vivência. Nesse contexto, é indispensável considerar a figura de

Petrúquio, e a forma como desenvolve seu relacionamento com Catarina.

Petrúquio é um jovem órfão de pais e dono de uma fazenda que está à beira da

falência, mas que, em meio à crise, trabalha juntamente com seus empregados para

resolver a situação financeira. Entre as atividades do campo estão a produção e a

comercialização de queijos. O Petrúquio representado na telenovela é submisso,

inteligente e romântico. É um homem cuja crença é a de que a mulher deve ser a rainha

do lar; embora tente, depois de casado, impor-se à mulher, fica claro que a teme.

Contrasta, assim, com o Petrúquio de Shakespeare, machão que não se submete à

mulher, e é autoritário. Dessa forma, o processo de “doma” de Catarina assume feições

diferentes na telenovela brasileira, o que será comentado mais tarde.

Por outro lado, Catarina Batista é a mulher moderna, na sociedade paulista da

década de 20; recusa o papel feminino e não aceita os costumes normatizados quanto ao

tratamento dado à mulher. Ela não concordava que única função da mulher era estar

voltada para os serviços domésticos e aos cuidados com o marido. Conhecida como ‘a

fera’ por botar todos os seus pretendentes para correr, a jovem, como a protagonista

shakespeariana, agia dessa maneira porque estava certa que o casamento não estava

entre os seus objetivos. Mesmo assim, alguns pretendentes acabaram se apaixonando,

como é o caso do jornalista Serafim que, ao visitar Catarina pela primeira vez, é

recepcionado por ela, disfarçada de louca e, com uma melancia sobre a barriga para

criar um disfarce de grávida e assim surpreender o pretendente. Em Petrúquio, Catarina

atirava vasos e quaisquer objetos que encontrasse por perto, comportamento que, mais

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uma vez, replica o da protagonista de Shakespeare. Como os pretendentes não dão o

braço a torcer e continuam a visitá-la, há cenas muito bem-humoradas de discussões e

brigas.

Ainda em relação aos protagonistas e para destacar a influência feminista sobre

Catarina, destacamos que, antes do casamento de Petrúquio, outros interessados

disputavam a mão de Catarina para receberem a herança; entre eles estava Serafim,

diretor de uma Revista Feminina de São Paulo. Na tentativa de conquistar Catarina, ele

prometeu publicar um artigo dela na revista, mas não cumpriu seu propósito. A

ideologia da revista estava sob o comando dos homens daquele período. Isto demonstra

uma sociedade influenciada e controlada pelo pensamento machista, além de ser um

comentário irônico. A revista feminista não tinha nenhuma funcionária mulher e nem

mesmo dava voz às próprias feministas, como evidenciados ao evitar a publicação do

artigo da feminista Catarina. No artigo, Catarina escreveu que os maridos devem ajudar

a lavar a louça da casa, a cozinhar o feijão e encerar o assoalho. O artigo não pode ser

publicado, e o jornalista Serafim argumenta que essas são tarefas da rainha do lar. Esta

declaração revolta Catarina, que começa a discutir com Serafim, declarando ainda que a

revista é mal escrita, mal feita e não serve para nada, além das palavras; derruba, ainda,

os documentos da mesa de Serafim.

Batista priorizava, inicialmente, um casamento em que o genro tivesse uma

posição social digna e reconhecida na sociedade, mas, devido a tantas tentativas

frustradas, concede a mão de Catarina a Petrúquio. Ao saber do interesse de Batista em

casar as filhas, Catarina decide contrariar a vontade do pai, mas este, conforme

combinado com Petrúquio, decide proibir a presença do pretendente em casa. Sabia que

Catarina iria contrariar suas ordens e exigiria a presença de Petrúquio como visita de

honra, o que acabaria por tornar realidade o plano de aproximação que tramara.

Com relação a Petrúquio, apesar de suas intenções para domar a fera, podemos

perceber que há um propósito inicial baseado nos bens materiais que se transforma em

uma paixão e posteriormente em amor. Petrúquio, em Shakespeare, não se submete aos

desejos de Catarina, mas segue com o processo de doma. Já o Petrúquio de Carrasco

submete-se às vontades de Catarina e declara que as palavras e os pedidos da amada

seriam como ordens e com todo esforço possível as cumpriria.

O recorte a seguir retrata o momento em que Catarina está na casa de Petrúquio

pela primeira vez após o casamento, momento em que o processo de doma se inicia.

Este não é o único episódio que trata sobre a domesticação, mas por ser um dos

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momentos após o casamento faremos a análise sobre ele e de modo geral sobre este

assunto em toda a telenovela.

Vejamos parte do diálogo que se passa na sala de estar da casa de Petrúquio. A

cena inicia com Catarina olhando o ambiente da sala de estar. O ambiente é apresentado

pelas câmeras, que mostram a simplicidade da casa de sítio. Petrúquio encontra-se na

sala, sentado em uma cadeira, usando botas e com os pés estendidos sobre a mesa do

centro, sem formalidade. Ele usa chapéu velho e sujo, paletó velho e calças cinza. Seu

figurino representa a vida campeira, na qual a importância pela terra e pelos animais

prevalece em relação ao apuro no vestuário.

A sala de jantar é composta por sofás e móveis de madeira antigos, alguns

armários de madeira em cujas portas, entreabertas, estão penduradas cordas. Há uma

galinha sobre uma caixa, que parece ser o animal de estimação da sala de jantar. O

assoalho é de madeira, há algumas caixas sobre os cantos, roupas penduradas. Apesar

do acentuado contraste entre a magnificência da casa de Batista e a rusticidade da de

Petrúquio, este último tem, como Batista, uma empregada, a qual se chama Neca e

trabalha na preparação do alimento.

Nesta cena a trilha sonora consiste nos sons dos passos dos personagens e o

canto de pássaros, galinha e grilos, os quais enfatizam a vida no campo. A seguir há a

transcrição do diálogo que corresponde a esta cena:

Recorte: 04: Cap 030. 00:56:45 – 00: 58: 57

Catarina: Mande servir o jantar, eu tô morta de fome! Petrúquio: Áh! Não, morta você não tá não, tá bem viva pelo que eu tô vendo Catarina: Você entendeu perfeitamente o que eu disse! Petrúquio: (risos) Tá certo! Neca! Neca: Sim senhor! Petrúquio: Neca, você pode servir o jantar! Neca: Ahm, o jantar tá servido lá na cozinha. Petrúquio: Mas que disparate é esse, dona Neca? Como é que a senhora se atreve a servir o jantar na cozinha pra minha esposa, pra minha doce Catarina Batista? Catarina: Eu não me importo Petrúquio, hoje eu posso comer na cozinha. Meu estômago está roncando de fome. Petrúquio: Não, não, de jeito nenhum, de jeito nenhum meu favo de mel. Você disse qual eram as suas condições na hora de casar, eu ouvi, eu concordei, eu prometi e vou cumprir. Não, não, não! Neca! Você coloca o jantar, jantar não porque nem é mais a essa altura das horas. Você bota a ceia é na mesa aqui da sala. Ouviu? Muito bem disposta, muito bem arrumada, e muita apetitosa porque é pra tá a altura da minha Catarina Batista. Neca: Mas, a gente sempre comeu na cozinha. Petrúquio: Pois não vai mais comer, Neca! Vai começar a comer na sala. Se você quiser, você pede ajuda pra quem você quiser, pra Carlixto, pra

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Januário, pra quem você quiser. Mas quantas vezes eu vou ter que repetir que eu quero que tudo esteja na altura da minha adorada Catarina! Catarina: já que insiste, Petrúquio, pois muito bem, eu como na sala de jantar como compete a minha pessoa, e você, (à Neca) nunca mais comete o erro de servir na cozinha. Neca: com licença! Catarina: Pelo menos tá prendendo a lidar com alguém assim do meu nível social néh?

Inicialmente, Petrúquio parece ter deixado que Catarina passasse fome. Assim

como também acontece na peça de Shakespeare, ela diz estar morta de fome. Um dos

propósitos de Petrúquio é demonstrar preocupação com Catarina, para que esta veja nele

um marido dedicado e preocupado, para então obter completa confiança.

Como vimos na comédia romântica shakespeariana, Petrúquio é machista e, ao

final da peça, se considera um vencedor por ter domado A megera. Já na telenovela ele

propõe a mesma tarefa, domesticar a fera, e para isso demonstra ser romântico ao

atender aos pedidos de Catarina Batista. Neste processo, Catarina se submete ao marido

por entender que a forma como é tratada e respeitada é digna para uma mulher. Um dos

pedidos de Catarina foi o de ser tratada como rainha e, atendendo a isto, Petrúquio a

trata como uma donzela digna de respeito.

O mesmo discurso que Catarina expressa sobre a condição da mulher é em

expresso, também, na telenovela. No entanto, nesta última, seu discurso perde a

complexidade da ambivalência, pois a personagem parece ter sido, efetivamente,

“domada” pelo discurso e ações do esposo que, mesmo com a postura machista,

preocupa-se com o tratamento dado à mulher. Ao contrário, em Shakespeare, a “doma”

é aparente e adaptada às conveniências imediatas.

Com base na análise sobre o comportamento desse par, podemos concluir que

tanto Catarina quanto Petrúquio se submeteram ao processo de domesticação. Ela, por

se submeter ao casamento, constituir família e acreditar no amor, e ele por se submeter

aos desejos de Catarina, corresponder como cavalheiro e quebrar os tabus até então

pregados pela sociedade machista.

Outro casamento representado na telenovela acontece entre Bianca Batista e

Edmundo, o professor. Este romance é evidenciado por Carrasco como o resultado do

amor, diferente do que percebemos inicialmente no casamento de Catarina. Edmundo,

de classe média baixa, professor de poesia e música, apaixona-se por Bianca, mas não

foi correspondido porque Bianca, no início da telenovela, era apaixonada por Heitor. O

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casamento entre Edmundo e Bianca baseado no amor só aconteceu no final da

telenovela, com a ajuda de Catarina.

O recorte a seguir retrata o momento em que Catarina discursa sobre o amor

como o principal motivo para a felicidade em um casamento e convence Batista a

permitir que Bianca case com Edmundo. Batista, motivado pelas filhas e por sua esposa

Joana, permite o casamento após o pedido formal de Edmundo:

Recorte 05 Cap 114, 00: 25: 28’ – 00 27: 48’

Batista: Agora eu entendi o que você fez. Você tirou a Joana da fazenda para levar a convenção. Catarina:Eu sabia, papai, que se pudesse pesar as duas coisas, o seu coração falaria mais alto. Só que falta uma coisa! Batista: Falta o que Catarina? Catarina: Por que pensa que eu trouxe o professor Edmundo até aqui? Hum? Batista: Ah, sim, sim, O que quer professor? Edmundo: Nada do senhor. Catarina: Papai, eu falei com o Cornélio. E a Dinorá confessou que tudo o que fez foi para atrapalhar a vida do professor Edmundo. E foi por causa de tudo o que fizeram contra ele que ele foi parar na cadeia. Papai, agora que o senhor sabe que o amor é mais importante do que tudo, não pense mais em dote! Não pense em casar a Bianca com qualquer pessoa que seja rica! Pense! Pense na felicidade de sua filha, papai, Bianca: Catarina, você falou as palavras que estão no meu coração. Batista: Eu não, o caso do professor é diferente. Joana: Diferente coisa nenhuma, senhor Batista! O professor é um homem bom! E o professor vai casar com a Bianca de qualquer jeito, ou você quer brigar com a sua filha o resto da vida? Hum? Batista: É, então, rapaz! Faça pelo menos o pedido. Edmundo: Doutor Batista, o senhor me concede a mão de Bianca em casamento? Batista: E tem outro jeito? Se eu não disser sim, as minhas filhas me matam! Então é, é um sim!

Catarina compreende que o amor é o principal motivo para a felicidade e

convivência do casamento. Ela declara que a riqueza não traz felicidade e que o amor é

mais importante do que tudo, e pede a Batista que não pense mais em dote ou em casar

a Bianca com qualquer pessoa que seja rica, mas que pensasse na felicidade de Bianca.

Com a permissão de Batista, Bianca e Edmundo se casam. Esse casamento é uma

relação baseada no amor. Edmundo é pobre, e não tem nada a oferecer além do

sentimento que tem por Bianca.

Assim como na trama de Shakespeare, na telenovela Bianca também tem

outros pretendentes, não apenas por ser bela e meiga, mas porque os interessados em

sua mão desejavam ter parte da herança de Bianca. Antes de Bianca perceber o amor

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que sentia por Edmundo, ela vive uma paixão por Heitor Lacerda de Moura, filho de

Josefa e irmão de Dinorá. O personagem é influenciado por sua irmã Dinorá a casar

com Bianca para receber a herança da família Batista. Este romance se configura como

um relacionamento cujo interesse é baseado nos bens materiais de Bianca, por parte do

pretendente. Bianca, ao perceber as intenções de Heitor, abandona-o e casa-se com

Edmundo.

O recorte a seguir retrata o momento em que Heitor vai até a casa de Bianca e

revela as intenções de fugir com ela. Eles se encontram no pátio dos fundos da casa, às

escondidas. Neste momento em que Heitor propõe fugir, Bianca declara o grande desejo

de casar tradicionalmente e oferecer uma festa a amigos e familiares.

A trilha sonora é a música O que o amor me faz, de Sandy e Junior, que

sonoriza o momento do encontro entre Heitor e Bianca. É interessante lembrar que esta

música foi também escolhida como a trilha sonora para Bianca e Edmundo, ao final do

enredo. Bianca está usando vestido azul claro, longo, com laços em volta da cintura e

babados nas mangas, figurino que representa a delicadeza feminina; Heitor veste terno

e chapéu, figurino que representa a classe alta. Esta cena acontece no quintal da casa de

Batista, cenário composto pelo verde das árvores e que, com a combinação da trilha

sonora e figurino dos personagens, acentua o caráter romântico do encontro.

Recorte: 05, Cap 003: 00: 17: 40’ - 00: 19:20’

Bianca: Eu quase não acreditei quando você jogou pedrinhas na minha janela e vi que estava aqui no jardim Heitor: Eu não suportei esperar, conte-me tudo, Catarina aceitou o pretendente? Bianca: Ah, Heitor, o dia que Catarina aceitar um pretendente, vai chover dinheiro. Imagina que ela colocou uma melancia na barriga pra se fingir de grávida. Heitor: Mas que falta de compostura. Bianca: Catarina não vai casar nunca Heitor, nunca vou poder me noivar, casar, papai põe na cabeça que eu só posso me comprometer depois de Catarina, não há quem faça mudar de ideia. Eu não sei, eu acho que vou enlouquecer! Heitor: Bianca, você confia em mim, não confia? Bianca: Mais que em nenhum outro, Heitor. Heitor: Então só temos uma saída, amor! Bianca: Qual? Heitor: Vamos fugir, vamos embora juntos! Bianca: Papai morreria de desgosto, Heitor. Heitor: Morre nada! Teu pai vai querer é me matar, mas depois acaba se conformando. Bianca: A vida inteira eu sonho em casar de véu e grinalda, oferecer uma festa para muitos convidados a minhas amigas, um bolo de três andares com dois noivinhos em cima,

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Heitor: Bianca, eu fico triste porque noiva fugida não tem nada disso, o casamento é rápido não tem nada de festa, mas em compensação, Bianca, nós vamos estar juntos! Já pensou? Eu e você juntos!

Neste recorte podemos entender que Heitor tem interesse nos bens que Bianca

possui; não a respeita como mulher, nem se importa com o desgosto que causaria à

família Batista: tudo o que quer é garantir o casamento. Bianca é apaixonada por Heitor,

seu primeiro romance, e, de forma ingênua, se entrega a ele. O encontro narrado nesta

cena proporciona entender que Heitor tem muita pressa em consumar o noivado, que é

proibido pelo pai de Bianca, Nicanor Batista. Bianca acredita no amor e entende que o

casamento e a constituição da família são a base para a felicidade das mulheres. Prefere

realizar tudo segundo a tradição, noivado, casamento, igreja e festa.

Heitor não suporta esperar pelo casamento de Catarina e propõe a ela fugirem.

Esta atitude que, mesmo não consumada, reflete muitos casamentos que ocorreram no

Brasil no século passado, os quais eram proibidos pelos pais, devido ao desencontro das

classes sociais. Heitor e Bianca sonham em se casar, mas sem que antes Catarina se

casasse eles não poderiam namorar, por este motivo sues encontros são às escondidas e

influenciados por dona Mimosa, empregada da casa de Batista.

O romance entre Heitor e Bianca não resultou em casamento, pois Bianca

conheceu as intenções de Heitor as quais eram por interesse nos bens financeiros da

família Batista. Bianca então conheceu Edmundo, o professor de música e latim com

quem se casa ao final da telenovela, por amor.

Um casamento baseado nos interesses econômicos e sociais está representado

pelo par Cornélio e Dinorá, uma trama paralela acrescentada na telenovela, mas que,

assim como o casamento entre Petrúquio e Catarina na comédia romântica de

Shakespeare, enfoca o casamento como entidade financeira em que a relação acontece

motivada pelo dinheiro. Assim como Petrúquio, que tem interesse nos bens econômicos

de Catarina, Dinorá depende da riqueza de Cornélio e mantém um relacionamento em

troca de recompensas financeiras como joias, casa. Dinorá, filha de Josefa, é uma jovem

linda casada com Cornélio, um senhor rico. Dinorá, como representada na telenovela,

não é uma mulher realizada em seu romance, por isso ela busca outras relações fora do

casamento em um romance com Celso, um estudante que mora na pensão de Dalva.

Cornélio, sendo rico, mantém controle sobre Dinorá através dos bens materiais;

no entanto, ela mantém um controle maior sobre Cornélio através da paixão que ela

desperta nele. A submissão de Cornélio por amor a Dinorá o faz aceitar as propostas

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para beneficiar a sua mãe e ao seu irmão Heitor. Cornélio vive em sua grande e luxuosa

casa com sua esposa Dinorá, sua sogra Josefa e seu cunhado Heitor os quais dependem

das economias de Cornélio.

A cena a seguir retrata um dos momentos em que Cornélio é submetido a

obedecer a esposa e oferecer-lhe presentes em troca de carinho e atenção. A casa

contém lindas decorações, quadros, poltronas e tapetes, ambiente da classe alta. O

quarto é grande, e contém quadros, luminárias, piano e móveis clássicos. As roupas de

dormir são de tecidos caros e ajudam a caracterizar honra, estilo e riqueza.

A câmera, movendo-se, apresenta o ambiente luxuoso que os personagens

percorrem. Neste momento em que o diálogo acontece, não há trilha sonora musical

para o casal Cornélio e Dinorá, pois, o propósito é enfatizar as falas dos personagens,

bem como os ruídos dos movimentos que eles realizam.

Recorte 06: Cap 04 53: 32’ - 54: 32’

Cornélio: Abra minha divina, abra! Seja boazinha comigo, Dinorá! Dinorá:Me chorominga, eu estou com dor de cabeça! Cornélio: Minha divina, minha querida! (Dinorá bate a porta em Cornélio) Cornélio: Minha divina, abra, abra, que amanhã eu te dou um presente, abra! (Dinorá abre a porte e Cornélio entra) Dinorá: Entra Cornélio! Mas não é por causa do presente, é porque você me deixa exausta de tanta lamentação. Mas você vai dormir no tapete! Cornélio: Deixa eu dormir na cama, deixa! Dinorá: No tapete!

A cena retrata um momento em que Dinorá, ao ir dormir, deixa Cornélio para

fora do quarto para dormir no sofá. Após muito insistir e prometer presentes a amada,

ele consegue a permissão para entrar no quarto, mas com a condição de dormir sobre o

tapete. Nesta relação que representa a classe alta, identificamos um amor baseado pela

troca de favores. Em outras cenas estão evidenciadas as chantagens de Heitor e Josefa

sobre Cornélio, que também recebem dinheiro, presentes e favores de Cornélio.

O relacionamento deste par romântico representa o casamento entre membros

da classe alta, o qual está retratado na telenovela como uma relação frustrada, com

hipocrisia, traição e separação. Ao final da telenovela Dinorá torna-se dependente e

submissa a trabalhar para Cornélio. Nisto se compara ao processo de “doma” entre

Petrúquio e Catarina. Em ambos os enredos, o início da relação é marcado pelo domínio

das mulheres sobre os maridos, mas que no decorrer da trama os papeis se invertem.

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Cornélio conquista esta autoridade sobre Dinorá porque esta perdeu sua reputação como

mulher por trair o esposo.

A trama entre Cornélio e Dinorá, rompida pela traição, é reestabelecida no final

da telenovela e Dinorá submete-se a Cornélio, de quem recebe uma nova chance. Desse

modo, a mulher, devido ao fator econômico se submete ao marido. O recorte a seguir

retrata o momento em que ocorre esta reconciliação:

Recorte 07: Cap 114, 00: 04: 00’ – 00: 05: 21’

Cornélio: eu estou disposto a dar uma nova oportunidade pra você, Dinorá, apenas uma nova oportunidade, você tem que andar nos trilhos. Dinorá: Eu vou andar nos trilhos, como uma locomotiva, Cornélio. Cornélio: amanhã mesmo eu vou falar com a prima Dalva, vou pedir a nossa casa, mudaremos para lá. Josefa: Ótimo, eu fico tão feliz, por voltarmos novamente a sermos uma família de verdade. Cornélio: Quem falou que a senhora vai? Josefa: Cornélio? Conélinho! Eu sempre amei você! Dinorá: Cornélio, a mamãe já está mais pra lá do que pra cá, eu não posso abandoná-la. Você não quer que eu tenha bons sentimentos? Quem tem bons sentimentos não abandona a própria mãe! Cornélio: Está bem! É, vou pensar no seu caso. Bom, se a senhora me contradisser vi para rua, vai pedir esmolas na porta da igreja. [...] Então Dinorá, decida-se!

Dinorá: Está decidido Cornélio, farei como você quiser! [...]

Para se beneficiar dos bens de Cornélio, Dinorá está disposta a ser submissa às

ordens do marido. Em um casamento no qual os bens materiais estão em destaque, a

felicidade e a igualdade entre marido e mulher não está em vigor, mas sempre há a

dependência e a troca de favores. Neste diálogo, que evidencia a reconciliação do casal,

Dinorá compromete-se a ser fiel e servir ao marido. Algumas expressões na fala de

Dinorá mostram a submissão dela a Cornélio como, por exemplo: “andar nos trilhos

como um locomotiva” e “ farei como você quiser”, as quais declaram que, neste

momento, Cornélio está com a autoridade e que a esposa deve estar completamente

submissa a ele.

A telenovela possibilita este olhar sobre os gêneros. Enquanto, na peça de

Shakespeare, apenas os homens submetem-se ao casamento por interesse econômico,

Carrasco, a partir das novas tramas, acrescenta também as mulheres que se submetem

ao casamento por questões econômicas, como é o caso de Dinorá e também de sua mãe

Josefa, que se casa por interesses econômicos. Isso reflete a condição financeira da

mulher brasileira, com salários baixos ou poucas oportunidades de empregos.

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Se a motivação econômica para o casamento, bem como a dependência final ao

marido, aproxima o subenredo de Cornélio e Dinorá do de Catariana e Petrúquio, o

casamento baseado no amor representado pelo par Calixto e Mimosa duplica, em outro

contexto social, o relacionamento que se desenvolve entre Bianca e Edmundo. Carlixto

é um empregado de Petrúquio, mas também considerado como um pai para ele. Já,

Mimosa é empregada da casa de Batista. Ambos são de classe operária, mas com

sentimento de amor, assim como no romance entre Bianca e Edmundo. Os sentimentos

do casal são incentivados por Petrúquio e Catarina para que o casamento se constitua.

Carlixto é um antigo criado da casa de Petrúquio, tio de Lindinha. Gosta de

Mimosa, empregada da casa de Batista. O casal não possui dotes ou qualquer outro

bem, pois são dependentes de seus senhores e ao longo da trama, eles vivem um

romance lírico fundamentado no sentimento amoroso.

O casamento entre Carlixto e Mimosa representa o amor na classe operária. Ao

evidenciar essa trama, Carrasco insere na telenovela um novo modelo de casamento

baseado inteiramente no amor. É diferente dos demais casamento, nos quais o fator

econômico era necessário para que o romance ocorresse.

Outras tramas da telenovela também evidenciam o amor, o fator econômico e

as classes sociais, as quais interferem no prestígio entre os envolvidos. Um desses

subenredos é o do romance entre Batista e Joana, o qual se configura como uma

relação amorosa entre diferentes classes sociais e, por este motivo, é mantido em

segredo. Batista revela apenas a Cosme, seu motorista, a paixão que sente por Joana, a

qual não quer revelar com o propósito de concorrer ao cargo de prefeito da cidade de

São Paulo.

A seguir analisaremos a cena que retrata a questão social como problemática

para o relacionamento entre o casal. Batista tem um motorista particular e um carro

luxuoso, um dos poucos da cidade. A cena retrata o momento em que o personagem

muda de figurino para visitar Joana. Troca o terno azul por um terno cinza,

caracterizando-se como caixeiro viajante, modo pelo qual Batista se apresenta a sua

esposa e amante Joana.

Embarcados em destino a casa de Joana, a câmera capta de baixo para cima a

passagem do carro, o que demonstra grandeza. A cena se passa no interior do carro, cuja

aparência é de um carro novo, com bancos em couro, e muito bem encerrado, o que

contribui para sugerir a riqueza de seu dono. Contudo, como já comentado, ele se veste

pobremente para apresentar-se a sua segunda família, como caixeiro viajante, na

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tentativa de esconder a sua vida de banqueiro reconhecido da cidade de São Paulo.

Batista demonstra preocupação e conversa com Cosme, seu motorista, sobre a vida de

Joana. Nesta cena, a câmera está dentro do carro, posicionada em frente aos dois,

focalizando suas faces, e ao fundo, com o movimentar do carro, percebe-se a cidade.

Vejamos a seguir a transcrição deste diálogo:

Recorte 08: cap. 14, 00: 01:55 – 00: 02: 52’

Cosme: Doutor Batista, hoje o senhor se trocou tão depressa que nem parece um banqueiro. Batista: Minha pressa é pura saudade Cosme, pura saudade. Tenho tanta vontade de ver a Joana e meus filhos. Sabe, às vezes penso que seria tão bom seu eu pudesse viver com ela, como marido e mulher. Cosme: Mas doutor, o senhor é viúvo, é um homem desimpedido, se quiser casar com ela é só pedir! Batista: Não, não, eu não posso, eu tenho minha posição social. A Joana é uma simples lavadeira. O que a sociedade iria dizer? Minhas ambições políticas estariam acabadas para sempre! Cosme: Isso é verdade! E dona Catarina que já é tão brava, na havia de perdoar o senhor! Batista: Nem a Bianca me perdoaria! Como explicar que tenho outra família, outros filhos? È melhor continuar assim, mesmo porque se a Joana fosse rica, talvez perdesse essa simplicidade, essa pureza, que me traz tanta felicidade.

Em um casamento, no início do século XX, as famílias prezavam pela

igualdade econômica entre as famílias dos noivos e, como sabemos, o romance entre

Batista e Joana é um encontro de indivíduos pertencentes a diferentes classes. Batista

evidencia a importância de viver um amor público, levar uma vida como marido e

mulher assumidos diante da sociedade, mas que por questões políticas e sociais ele não

pode assumir esta relação. Cosme, seu motorista, questiona sobre a impossibilidade

disso, por ser Batista viúvo e desimpedido, acreditava que não haveria problemas.

Os problemas que Batista evita são devido ao questionamento da sociedade

sobre o envolvimento dele, um homem de posição social, com uma simples lavadeira. A

preocupação de Batista é o que a sociedade irá dizer de seu segundo casamento e, além

disso, ele acredita que assumir uma relação com Joana, a lavadeira, atrapalharia a sua

candidatura a prefeito, pois é banqueiro de renome na cidade de São Paulo. Outro

problema que Batista acredita enfrentar é sobre o posicionamento das filhas em relação

à nova família.

Como percebemos, a relação entre Batista e Joana enfrenta um problema

social, no entanto, está enraizada por um sentimento verdadeiro baseado no amor.

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Batista afirma em seu diálogo com Cosme, que pretende continuar assim, com seu

relacionamento ocultado socialmente, e acredita que se Joana fosse rica, talvez perdesse

essa simplicidade, essa pureza, que traz a ele tanta felicidade. Batista encontra a

felicidade na simplicidade de Joana, que considera uma mulher pura, que possui

sinceridade em um amor não fingido, sem traições e sem interesses econômicos, tendo

em vista que ela não sabia a real condição econômica de Batista.

Walcyr Carrasco, juntamente com o diretor Walter Avancini, optaram por

ambientar todos os subenredos conforme a época e a sociedade da década de 20, de

forma a reproduzir o comportamento de toda uma sociedade, além de acontecimentos

históricos como a transformação da arte, a luta pelo voto feminino e a mudança no papel

da mulher. O foco feminista aparece já na primeira cena do primeiro capítulo da

telenovela, na qual um grupo de mulheres, do qual Catarina faz parte, clama: “Abaixo à

supremacia dos homens, pelo voto, pela igualdade dos sexos, igualdade, igualdade,

igualdade”.

A imagem de mulher independente é, aparentemente, mais reforçada na

telenovela quando comparada à peça. Na telenovela, a primeira cena do primeiro

capítulo é a de um movimento feminista, uma característica da adequação espacial da

peça ao contexto brasileiro da década de 20, mais precisamente, de 1927, época em que

vive a personagem Catarina, que é filha de um banqueiro, e não de um mercador, como

em Shakespeare. A profissão de mercador na década de 20 não era mais uma profissão

de prestígio; por isso, é substituída pela de banqueiro.

Considerando que a telenovela é ambientada na década de 20, Catarina aparece

no capítulo III liderando um movimento feminista a favor das mulheres no mercado de

trabalho. Ela grita em praça pública: “Homens no fogão. Mulheres na profissão”. Na

década de 20, surgiram os primeiros movimentos feministas no Brasil em busca de

melhor reconhecimento das mulheres no mercado de trabalho.

Parte-se, nesse sentido, da hipótese de que a telenovela tenha sido bem aceita

pelo público (fato confirmado pela audiência) por ser baseada em uma história

pertencente a sociedade brasileira e com temáticas sociais pertinentes ao debate e,

também por ter sido comercializada como uma comédia romântica, o que acontece com

a maioria das adaptações literárias, tanto cinematográficas quanto televisivas. Assim

como A megera domada, comédia romântica que apresentar uma crítica subliminar às

relações entre homem e mulher na sociedade patriarcal do século XVI, O cravo e a rosa

também segue esta proposta em relação a sociedade brasileira.

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Na telenovela, Petrúquio e Catarina têm, no desfecho, filhos gêmeos (um

casal), estereótipo de uma família feliz. Catarina se revela uma mãe exemplar (no

casamento de Bianca, ela mostra estar preocupada com o fato de ter de deixar os filhos

com uma babá) e eles são felizes para sempre. Para completar esse ar romântico, depois

do beijo dos dois na cena final, um casal de beija-flores sobrevoa a fazenda carregando

um camafeu dourado e o abrem, revelando as fotos de Petrúquio e Catarina. Em

justificativa à forma como adaptou a história shakespeariana, Carrasco afirma: “Eu

atualizei o cerne da telenovela, colocando uma Catarina mais simpática em seus ideais,

com os quais muitas telespectadoras vão se identificar”.

A opção acaba por construir uma Catarina muito diferente da altiva mulher

concebida por Shakespeare, que se mantém fiel a seu ideal feminista. Na obra de

Carrasco, ao final da telenovela, há uma (ex-) feminista que está feliz e acomodada no

papel de esposa e mãe. Ao observarmos esta transformação, concluímos que, dentro do

casamento, Carrasco privilegia as ações românticas e direciona para um desfecho que

resulta em uma família feliz, o qual parece, ainda, encontrar eco na mentalidade da

família brasileira. Apesar dos séculos que separam a peça de Shakespeare de sua

releitura por Carrasco, o ideal de uma família constituída pela mulher no papel de

esposa e mãe submissa continua bem vivo.

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ANÁLISE COMPARATISTA ENTRE AS OBRAS: REFLEXÕES

CONCLUSIVAS

No presente trabalho, nos propusemos a analisar a representação do casamento

na obra A megera domada, escrita por William Shakespeare, e, também em uma

adaptação para a telenovela da obra – O cravo e a rosa, escrita por Walcyr Carrasco, o

qual adaptando o texto de Shakespeare ao contexto brasileiro. Embora a telenovela

retroceda à década de 1920, a qual escolhe como referência temporal, na verdade, na

qualidade de telenovela de época, comenta o presente, ou seja, a sociedade brasileira do

final do século XX, a partir de um momento do passado.

Em um primeiro momento, apresentamos um breve panorama da história da

sociedade renascentista inglesa do século XVI para que pudéssemos entender o

posicionamento da mesma sobre o casamento. Além disso, estudamos algumas relações

sociais que ocorreram em virtude do casamento, tais como: a figura da mulher, o

modelo de sociedade patriarcal, a constituição da família, os quais são temas

importantes que influenciaram a sociedade, com o passar dos anos, para uma nova visão

sobre o matrimônio. Estudamos as relações matrimoniais na obra de Shakespeare e,

como resultado, pudemos perceber que o casamento foi tratado como uma instituição

que mantinha o controle social, econômico e familiar e que através dele as demais

relações eram submetidas.

Do mesmo modo, estudamos o comportamento da sociedade brasileira a fim de

averiguarmos se alguns desses fatores sociais ainda estariam presentes no fim do século

XIX e início do XX. Pudemos perceber a realidade vivida no casamento em tempos

passados e em sociedades distintas. Através deste processo comparatista, estudamos o

casamento representado na telenovela O cravo e a rosa e concluímos que Carrasco, em

sua abordagem sobre o casamento, representou-o a partir de uma perspectiva de

transformações políticas e dos movimentos sociais ocorridos no Brasil em 1920.

O ano 2000, quando O cravo e a rosa teve sua primeira exibição, foi marcado

pela retomada dos movimentos sociais no Brasil, como Maria da Glória Gohn afirma:

Já nos anos 90, existiam inúmeras organizações, fundações, associações e movimentos criados para promover o desenvolvimento econômico local, impedir a degradação ambiental, defender os direitos civis e atuar em áreas

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onde o Estado é incipiente, como em relação aos idosos, à mulher, aos índios

e aos negros. (GOHN, 2000, p. 21).

Nesse sentido, a telenovela propôs uma releitura dos movimentos sociais acorridos na

década de 1920.

Veremos agora algumas características que pudemos relacionar entre os

gêneros. Salientamos que, mesmo considerando as características de cada gênero, a

análise terá ênfase nos aspectos sociais retratados nas diferentes as obras e em diferentes

contextos.

A megera domada possui um número restrito de personagens e os enredos

estão em torno das personagens Petrúquio, Catarina, Bianca, Batista, pretendentes de

Bianca, servos e os personagens do prólogo: um lorde, Cristóvão Sly, hoteleira,

comediantes, caçadores e servidores. Já a telenovela, por ser um enredo mais complexo

e de maior duração, possui maior número de personagens. Com esta característica é

possível desenvolver outros enredos, bem como a representação de um número maior de

personagens mulheres, com ideais diferenciados. A grande duração do gênero

possibilita, também, representar os diversos setores da sociedade, e a representação do

casamento em diversas camadas da sociedade.

Os nomes de quase todos os personagens são diferentes. Na peça, os

pretendentes de Bianca são três: Hortênsio, Lucêncio e Grêmio; na telenovela são dois:

Heitor que tinha interesses no casamento motivado pelo fator econômico, e o professor

Edmundo que tinha sentimento verdadeiro e amor por Bianca. A diminuição dos

pretendentes representa a dignidade da mulher do século XX, período em que as

mulheres passavam a conquistar direitos e já não eram submetidas às negociações de

casamento do modo como eram vistas no período elisabetano. O pai de Catarina na peça

é Batista Minola e na telenovela Nicanor Batista. Já Petrúquio na telenovela é Julião

Petrúquio. As adaptações dos nomes correspondem a nomes brasileiros, com os quais o

ouvinte brasileiro pode se identificar, porém os nomes dos protagonistas, assim como os

de alguns personagens primários, permaneceram os mesmos, para garantir a associação

com a obra de Shakespeare.

Tramas secundárias são criadas e se entrelaçam no desenrolar da história. Esta

adaptação possibilita o estudo ampliado das relações amorosas na telenovela. Enquanto

em Shakespeare três casamentos foram retratados, os quais se configuram,

especialmente, com base no fator econômico, Carrasco insere outros pares nos quais

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pudemos estudar e identificar uma nova visão sobre o casamento, e aqueles que são

baseados no amor como principal motivação. Além disso, na telenovela é possível

identificar a traição e a separação, em alguns dos casamentos, questões que não foram

abordadas na peça, mas que são atinentes à realidade social brasileira do século XX.

Entendemos que, ao considerarmos as características dos gêneros, e as

adaptações do teatro para a telenovela, percebemos que estas possibilitaram a

contextualização das respectivas sociedades e a adaptação da peça a um contexto

histórico distinto. Por outro lado, a partir da proposta comparatista foi possível

identificar as diferentes concepções de Shakespeare e de Carrasco sobre o casamento.

Tanto a peça quanto a telenovela enfatizaram o casamento e, com grande

ênfase, representaram as lutas de poder que ocorrem dentro dos relacionamentos

conjugais. A peça promove ideias do século XVI, típicas do que era tomado como

relações adequadas entre homem e mulher no matrimônio. No entanto, a peça também

é oportuna para criticar e pôr em evidência algumas das atitudes difundidas sobre os

casamentos arranjados e intermediados entre homens, sem qualquer iniciativa de

mulheres, e as formas como homens e mulheres lutam por posições de poder.

Uma dessas críticas é apresentada através dos personagens do sexo masculino,

que tratam o casamento como uma transação financeira ou de negócios, na qual as

mulheres são mercadorias para serem comercializadas. Desse modo, as obras em análise

enfatizaram como as considerações econômicas influenciam o casamento. No entanto,

Shakespeare e também Carrasco inovaram em relação às estruturas sociais de suas

épocas quando representaram o casamento de pessoas de diferentes classes sociais, entre

camponeses e moradores da cidade, e, no caso de Carrasco, entre o banqueiro e a

lavadeira.

Na peça, enquanto Catarina e Petrúquio, marido e a esposa, conduzem o

relacionamento conjugal após o casamento, o relacionamento de namoro de Bianca é

negociado entre o futuro marido e o pai de sua futura esposa. Como tal, o casamento se

torna uma transação envolvendo a transferência de dinheiro. Já na telenovela, esta

perspectiva tem um novo direcionamento por Carrasco, e mesmo que o fator econômico

inicialmente esteja em destaque para alguns pares, como Petrúquio e Catarina, ou

apareça como problema social, como no relacionamento de Batista e Joana, no decorrer

da trama o amor direciona os encontros amorosos, que resultam em casamento. Isso,

como já comentado, parece satisfazer a mentalidade das espectadoras da novela, que era

apresentada às 18h, horário que, provavelmente, é constituído de uma audiência

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feminina mais jovem ou que não trabalha, dado que neste horário aqueles que detêm

uma atividade remunerada fora de casa muitas vezes encontram-se ainda em processo

de deslocamento do trabalho para o lar.

Em relação ao casamento, percebemos que o dote não mais é um requisito para

os contratos de casamento; no entanto, o condicionamento social ainda contribui ou

interfere em algumas relações representadas na telenovela, como acontece com Batista e

Joana, Cornélio e Dinorá e mesmo Edmundo, que, devido a sua condição social, tinha

vergonha de declarar seu amor a Bianca.

Atrelado ao casamento, estudamos as relações que dele decorrem para o

processo de estruturação social. Entre elas, o papel da mulher no casamento e na

sociedade. Apesar de sua importância em determinados papéis sociais, de maneira geral,

as mulheres eram vistas como uma ameaça, e por isso deveriam ser mantidas sob

controle. Na peça de Shakespeare, os assuntos eram tratados pelos homens, e na

telenovela, em pleno século XX, a revista feminina era controlada por homens.

Tanto na peça quanto na telenovela, as mulheres desejáveis eram aquelas

fracas, submissas, caridosas, silenciosas, virtuosas e recatadas, e suas tarefas eram as de

cuidar da casa, do marido e dos filhos. Aquelas mulheres que transgrediam as normas e

desequilibravam a ordem social vigente eram indesejáveis, como o caso das feministas

Lourdes e Bárbara; no entanto Catarina, mesmo sendo uma simpatizante do movimento

feminista, era almejada, devido a sua fortuna.

Com o passar do tempo e as mudanças sociais, econômicas e políticas, tornou-

se inevitável que as mulheres ganhassem um papel de destaque na sociedade. O

movimento feminista, em suas diversas ondas, só acelerou o processo. Todavia,

algumas noções estereotipadas em relação às mulheres não foram abolidas e

permanecem até hoje.

Em relação ao casamento, na peça, Petrúquio se casa para viver feliz em Pádua

com fortunas advindas do casamento, enquanto na telenovela ele se casa pelo dote e por

amor. Batista, tanto na peça como na telenovela é viúvo, no entanto somente na

telenovela possui esposa e filhos escondidos da família, porque sua esposa Joana é

humilde e sem estudos. Assim, Batista se casa com Marcela, ex- amante de Petrúquio, e

só mais tarde assume a relação com Joana.

Na peça, Catarina tem Petrúquio como único pretendente, porém na telenovela

há um outro pretendente, o jornalista Serafim, que se envolve na tentativa de

interromper a relação de Catarina e Petrúquio. É notável que o jornalista, sendo de

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classe alta, tem, como o falido Petrúquio, intenções ao casamento com Catarina também

devido às condições econômicas da jovem. Nesse sentido, Carrasco duplica a ênfase na

motivação econômica, que perpassa a classe alta e baixa.

Com a intenção de conquistar Petrúquio, Lindinha, a empregada dele e,

também Marcela, a ex-namorada de Petrúquio, atrapalham o romance dos protagonistas.

Nestes casos, ambas por sentimentos amorosos; socialmente, pertencem à mesma classe

que Petrúquio. Lindinha não corresponde ao sentimento de Januário, colega de trabalho

na fazenda de Petrúquio, mas busca concretizar seu amor pelo patrão. Estas novas

tramas, inseridas por Carrasco, representam os perfis de mulheres que buscam a

felicidade no amor e no casamento, além do condicionamento social.

Catarina se casa obrigada, na peça de Shakespeare, porém na telenovela

brasileira, casa-se por solidariedade a Bianca, que está com sopro no coração e sonha

em se casar. Esta diferença representa uma nova concepção de mulher; a solidariedade

de Catarina por sua irmã, a ponto de ceder ao casamento, indica um novo conceito de

mulher. Certamente esta mudança de personalidade de Catarina, da peça para a

telenovela, foi possível devido às possibilidades da mulher tomar decisões, segundo

seus próprios desejos. Contudo, paradoxalmente, permanece o adjetivo empregado com

para descrever Catarina, embora adaptado ao contexto e cultura brasileiros: ao invés de

megera, ela é apresentada como fera e, portanto, uma pessoa a ser temida.

Ainda na telenovela, Catarina faz exigências a Petrúquio: dormir em quartos

separados e viver como rainha; ele as aceita e se casam. Este acordo para o casamento

indica uma diferente posição das mulheres do século XX em relação às do século XVI,

que eram controladas pelos maridos. Nesse sentido, a presença de argumentos

feministas está presente na telenovela. Porém, como já registrado, o movimento

feminista, como representado pelas personagens Lourdes e Bárbara, perde em

intensidade e coerência, já que estas se dizem feministas e independentes dos homens e

assumem posicionamentos em prol das mulheres, mas depois verifica-se que seus

envolvimentos românticos se assemelham ao das outras mulheres, não declaradas

feministas.

Bianca, na peça, tem dois professores, mas na telenovela tem apenas um, pelo

qual se apaixona e casa com a permissão do pai. No entanto, ela tem dois pretendentes,

o Heitor e o professor. Em relação a esta trama, em Shakespeare os dois professores são

apaixonados e declaram amor por Bianca; Carrasco opta por um professor, Edmundo,

que não tem liberdade de demonstrar seu amor a Bianca e, além disso, é obrigado a

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escrever poemas de amor, a pedido de Heitor, o qual proíbe uma possível aproximação

romântica entre ele e Bianca. Carrasco, direciona a trama no sentido de que, a par dos

interesses econômicos por parte de Heitor, o amor verdadeiro de Edmundo aconteça

paralelamente à trama com motivação monetária.

A partir da análise dos comportamentos entre os personagens em ambos os

objetos, podemos perceber outras mudanças em O cravo e a rosa, oportunizadas por

uma representação social que se distancia por aproximadamente quatro séculos da obra

de Shakespeare, e também pelo novo contexto geográfico. A presença de múltiplos

enredos, na telenovela, que mostram os romances e as separações entre os pares

demonstram que o casamento não se constitui apenas sobre contratos, mas que as regras

decorrentes dele são flexíveis.

Podemos verificar que a mulher representada em O cravo e a rosa tem maior

influência nas decisões sobre o casamento, como representada na decisão de Bianca em

se casar com Edmundo, e na decisão de Catarina em se casar com Petrúquio, por

solidariedade para com a irmã Bianca. Isto indica que, no momento histórico brasileiro

representado na telenovela, a mulher estava conquistando seu espaço e adquirindo

direitos.

Na peça de Shakespeare, uma das possibilidades de compreensão do enredo é a

submissão da mulher, submetida ao casamento por obrigação do pai e submissa ao

marido, a quem serve e diante do qual declara submissão. Já na telenovela, o enredo

encerra-se com uma mulher feliz, realizada e mãe de família. Assim, em relação ao

movimento feminista destacado e louvado no capítulo inicial da telenovela, concluímos

que, no decorrer da mesma, este movimento não continua sendo exaltado e perde forças.

Observamos isto no modo como Carrasco direciona as personagens feministas.

Catarina, defensora do movimento, casa-se e constitui família, as amigas Lourdes e

Bárbara apaixonam-se por Fábio, mas, comprometidas com o movimento, escondem o

romance. Elas são tratadas como objetos de engano, o que as torna fúteis em seus papeis

como feministas.

Pudemos perceber que, em O cravo e a rosa, Carrasco instigou-nos a uma

releitura da peça de Shakespeare, tendo a sociedade brasileira como cenário histórico.

Nesse sentido, a visão sobre o casamento permanece, mas na telenovela Carrasco pode

representar o movimento feminista, a luta das mulheres e, através da tram,a criou um

novo olhar sobre os relacionamentos entre as classes sociais. Em ambos os gêneros, a

ênfase sobre o relacionamento conjugal permanece e, de acordo com os autores William

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Shakespeare e Walcyr Carrasco, o casamento é uma instituição necessária para a

constituição da família; em ambos os autores podemos entender que a cada um dos

cônjuges são atribuídos papeis que definem as regras normatizadas pelo casamento.

Apesar dos cerca de quatrocentos anos que separam a peça de sua adaptação,

parece que os papeis sociais esperados da mulher no casamento assemelham-se aos

vigentes na época elisabetana: enquanto o homem tem liberdade para ocupar cargos,

conduzir espaços sociais, cabe à mulher assumir a responsabilidade com as tarefas da

casa, cuidados com os filhos e atenção ao marido. Em Carrasco, a sociedade patriarcal

tem menos poder em um casamento, como representado nos pares aqui estudados.

O estudo sobre o casamento a partir das obras já mencionadas nos possibilitou

um olhar crítico sobre as diferentes sociedades e nos habilitou a estudar a peça teatral e

a telenovela como gêneros. Nesse sentido, justificamos a escolha dos gêneros, pois a

função social deles não é apenas para o entretenimento, mas resultaram em debates e

tramas que têm interrogado as estruturas sociais. Na forma teatral, Shakespeare pode

retratar um contexto histórico da sociedade elisabetana, assim como Carrasco faz com a

sociedade brasileira.

Enquanto gêneros, o teatro contribuiu para um debate crítico sobre a mulher,

no século XVI até o presente momento e, como proposta deste trabalho, para uma

análise sobre o modo em que o casamento era tratado, tanto em questões contratuais

tratadas pelos familiares, quanto em relações matrimoniais e constituição da família. Do

mesmo modo, a telenovela enquanto entretenimento, tem interrogado e feito refletir

sobre este tema, o casamento. Esse gênero tem ocupado espaço na casa de várias

famílias brasileiras, que mergulham nas histórias de amor, nos romances, nas injustiças

sofridas pelos personagens. Dessa forma, percebemos a importância de relacionar

literatura com a telenovela brasileira, visto que pessoas de todos os segmentos sociais,

pobres, ricos, homens, mulheres, jovens, crianças, com maior ou menor ou sem

escolaridade, e residentes nas mais diferentes regiões do país, discutem a temática social

pautada pela telenovela.

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comunicação. 2001. Disponível em: http://www.ipv.pt/forumedia/6/13.pdf. Acesso em:

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