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UNIVERSIDADE REGIONAL INTEGRADA DO ALTO URUGUAI E DAS MISSÕES PRÓ-REITORIA DE PESQUISA, EXTENSÃO E PÓS-GRADUAÇÃO DEPARTAMENTO DE LINGUÍSTICA, LETRAS E ARTES CAMPUS DE FREDERICO WESTPHALEN MESTRADO EM LETRAS ÁREA DE CONCENTRAÇÃO: LITERATURA VIVIANE CATARINA MARCONATO STRINGHINI A PROBLEMATIZAÇÃO DO CONCEITO DE LAR NO CONTEXTO DA DIÁSPORA AFRICANA EM COMING HOME DE JUNE HENFREY Frederico Westphalen 2011

UNIVERSIDADE REGIONAL INTEGRADA DO ALTO URUGUAI … · Autores como Henri Lefebvre (2009), Anthony Giddens e Claude Raffestin, Rogério Haesbaert, Marcos Saquet (2004), e Eva Hoffman

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UNIVERSIDADE REGIONAL INTEGRADA DO ALTO URUGUAI E DAS MISSÕES

PRÓ-REITORIA DE PESQUISA, EXTENSÃO E PÓS-GRADUAÇÃO

DEPARTAMENTO DE LINGUÍSTICA, LETRAS E ARTES

CAMPUS DE FREDERICO WESTPHALEN

MESTRADO EM LETRAS – ÁREA DE CONCENTRAÇÃO: LITERATURA

VIVIANE CATARINA MARCONATO STRINGHINI

A PROBLEMATIZAÇÃO DO CONCEITO DE LAR

NO CONTEXTO DA DIÁSPORA AFRICANA

EM COMING HOME DE JUNE HENFREY

Frederico Westphalen

2011

VIVIANE CATARINA MARCONATO STRINGHINI

A PROBLEMATIZAÇÃO DO CONCEITO DE LAR

NO CONTEXTO DA DIÁSPORA AFRICANA

EM COMING HOME DE JUNE HENFREY

Dissertação apresentada ao Curso de Mestrado

em Letras como requisito parcial e último à

obtenção do grau de Mestre em Letras da

Universidade Regional Integrada do Alto

Uruguai e das Missões, Campus de Frederico

Westphalen. Área de Concentração:

Literatura.

Orientadora: Prof. Dr. Denise Almeida Silva

Frederico Westphalen

2011

UNIVERSIDADE REGIONAL INTEGRADA DO ALTO URUGUAI E DAS MISSÕES

PRÓ-REITORIA DE PESQUISA, EXTENSÃO E PÓS-GRADUAÇÃO

DEPARTAMENTO DE LINGUÍSTICA, LETRAS E ARTES

CAMPUS DE FREDERICO WESTPHALEN

MESTRADO EM LETRAS – ÁREA DE CONCENTRAÇÃO: LITERATURA

A Banca Examinadora, abaixo assinada,

aprova a Dissertação de Mestrado

A PROBLEMATIZAÇÃO DO CONCEITO DE LAR

NO CONTEXTO DA DIÁSPORA AFRICANA

EM COMING HOME DE JUNE HENFREY

Elaborada por

VIVIANE CATARINA MARCONATO STRINGHINI

como requisito parcial para a obtenção do grau de

Mestre em Letras

BANCA EXAMINADORA

_____________________________________________

Profª. Dr. Denise Almeida Silva – URI

(Presidente/Orientador)

__________________________________________________

Membro Prof. Dr. André Luis Mitidieri Pereira – UESC

______________________________________________

Membro Prof. Dr. Lizandro Carlos Calegari – URI

Frederico Westphalen, 24 de outubro de 2011.

AGRADECIMENTOS

A Deus, pelo sustento e presença sempre.

A Fabiane, ao Rômulo e ao Amauri, por compreenderem a minha ausência e o meu

silêncio, importantes no momento para o meu crescimento.

Aos meus pais, pelo carinho, e apoio em todos os momentos da minha vida.

A tia Elaine, pelo afeto.

Aos professores do Mestrado em Letras, Área de Concentração em Literatura, pelo

incentivo e ensinamentos ao longo do curso.

A professora Denise Almeida Silva, um agradecimento especial pelo incentivo,

encorajamento, valiosas orientações, pelo exemplo de competência, pela paciência, pela

confiança, o meu reconhecimento, carinho e amizade.

A Magali e a Franciele, por todos os favores prestados, pelo carinho, amizade e

disponibilidade em todos os momentos.

A Suzana, Luciane, Isabel e Rudião, pela empatia e carinho.

A Grasiela pela presença, amizade e companheirismo.

A Rejane e a Sandra Mariani pela amizade, apoio, incentivo e companheirismo.

RESUMO

Este trabalho tem como objetivo estudar a problematização do conceito de lar no contexto da

diáspora africana na coletânea de contos Coming Home, de June Henfrey. A dissertação foi

estruturada da seguinte maneira: o primeiro capítulo busca uma compreensão da diáspora,

bem como da história da diáspora africana no Caribe e, em especial, em Barbados, local onde

se desenrolam as histórias narradas na obra. Apresenta, ainda, fundamentação teórica sobre a

imagologia, como suporte para o estudo da imagem do negro que emerge dos contos da

coletânea. O segundo capítulo oferece substrato para a compreensão de lar. Inicialmente

relaciona-o a termos correlatos – espaço, lugar e território –, para, em seguida, buscar a

etimologia do termo, os elementos constituintes do conceito, em suas dimensões privada e

pública, além de sua relação com a memória. O terceiro capítulo traz as análises dos seis

contos que compõem a antologia, os quais enfocam a construção e/ou desconstrução do senso

de lar em diferentes períodos da história de Barbados: a migração forçada (escravidão), os

momentos que precedem à abolição da escravatura, o período pós-escravocrata e a

experiência, típica do período medial do século XX, da migração à metrópole e retorno à (ex)

colônia. Verifica-se que, mesmo escravizado, ou alvo de discriminação ou preconceito, o

negro é representado como um sujeito agente, capaz de construir (ou optar por desconstruir),

material ou imaginativamente, um espaço a que possa chamar de lar, mesmo em face de

fatores sociais e afetivos adversos.

Palavras-chave: Diáspora. Lar. June Henfrey. Coming Home. Literatura afro-caribenha.

ABSTRACT

This work aims to study the problematization of the concept of home in the context of the

African Diaspora in June Henfrey´s short story collection Coming Home. Analysis is

structured as follows: the first chapter seeks an understanding of the diaspora, as well as of the

history of the African Diaspora in the Caribbean, and especially in Barbados, where the

stories narrated by Henfrey take place. It also presents theoretical foundation on imagology,

as support for the study of the image of the black man that emerges from the stories. The

second chapter provides a foundation for the understanding of home. Initially it defines space,

place and territory; next, the etymology of the term home is examined, and the elements that

form the concept in its private and public dimensions are exposed; last, memory and home are

correlated. The third chapter is the analysis of the six stories in the anthology, focusing on the

construction and /or deconstruction of the sense of home in different periods in the history of

Barbados: the forced migration (slavery), the moments preceding the abolition of slavery, the

post-slavery experience and the experiences, typical of the of the mid XX century, of the

migration in reverse, i. e., the migration from the colony to the metropolis, and of the return

from the center to the (former) colony. It appears that, even enslaved or subjected to

discrimination and prejudice, the negro is represented as an acting subject, able to build (or

choose to deconstruct), material or imaginatively, the space he/she calls home, even in face of

social and emotional adverse factors.

Keywords: Diaspora. Home. June Henfrey. Coming Home. Afro-Caribbean Literature.

SUMÁRIO

INTRODUÇÃO ........................................................................................................................ 7

1 CONCEITOS FUNDAMENTAIS ..................................................................................... 12 1.1 Pensando a diáspora africana no Caribe ........................................................................ 12

1.2 Imagologia: o valor representativo e simbólico da imagem ......................................... 17 1.3 A escravidão em terras americanas: a economia de plantation no Caribe .................. 23

2 LAR, TERRITÓRIO E (DES) PERTENCIMENTO ...................................................... 29

2.1 A produção social de espaço e território ........................................................................ 29 2.2 Lar: enraizamento e (des)pertencimento ....................................................................... 33 2.3 A experiência vivida do lar e a memória ........................................................................ 42

3 ANÁLISE TEXTUAL: A (DES)CONSTRUÇÃO DO CONCEITO DE LAR .............. 45 3.1 O período escravocrata .................................................................................................... 45 3.1.1 Love Trouble ................................................................................................................... 45

3.1.2 Freedom Come ................................................................................................................ 55

3.2 Para além da era escravocrata: vidas em contraste ...................................................... 63 3.2.1 The Cane Cutter ............................................................................................................... 63 3.2.2 The Gully ......................................................................................................................... 69

3.3. Contextos contemporâneos: a vida na cidade e na metrópole ..................................... 83 3.3.1 Goodnight, Miss Simons ................................................................................................. 83 3.3.2 Coming Home ................................................................................................................. 91

CONSIDERAÇÕES FINAIS ............................................................................................... 103

REFERÊNCIAS ................................................................................................................... 111

INTRODUÇÃO

Não é por acaso que o tema diáspora vem despertando tanto interesse. O sentido de

dispersão implicado no termo abarca tanto a acepção original, com referência à dispersão dos

judeus, através dos séculos, como a dispersão de outros povos por motivos religiosos ou

políticos. Nesta pesquisa, será abordada a diáspora africana e a economia escravagista nas

colônias anglófonas, especialmente em Barbados. Investiga-se o conceito de lar no contexto

da história da diáspora africana no Caribe, através da análise de contos da coletânea Coming

Home and Other Stories, de June Henfrey (1994), em que se podem observar situações

vividas pelos personagens desde o período escravocrata até o período pós-colonial. Dessa

forma, a coletânea oferece uma revisão da história da diáspora africana no Caribe, e em

especial em Barbados, pois os contos fazem alusão à África ancestral, no além mar distante,

de onde vieram os pais e avós dos escravos das plantations, referindo-se também aos navios

negreiros, à exploração da mão-de-obra escrava, à violência com que era tratado o escravo, à

submissão da mulher escrava ao branco, ao abuso do poder, ao interesse em manter a

escravidão, e à permanência da superioridade do branco, enfim, mesmo depois do período

escravocrata. A coletânea enfoca, ainda, experiência de migração – a migração ao reverso –

quando o movimento se dá da colônia para a metrópole, ao inverso do que aconteceu no

período colonial.

A autora em estudo nasceu em 1939, em uma grande família que cultivava cana-de-

açúcar em Saint David, Barbados. Ganhou uma bolsa de estudos em 1957, o que lhe

proporcionou estudar em Oxford, Inglaterra, onde se casou com Colin Henfrey, antropólogo e

fotógrafo, com quem viajou e trabalhou nos Estados Unidos e Brasil. Mais tarde, vieram a se

estabelecer em Liverpool. Tornou-se mãe de três filhos, trabalhou em vários projetos

comunitários antes de retornar ao meio acadêmico como professora e pesquisadora da

Universidade de Liverpool. Em 1991, ao descobrir que estava com câncer, escreveu os contos,

postumamente publicados em 1994 na coletânea Coming Home. A obra é, assim, de certa

forma, o testamento literário desta contista barbadense, que soube por experiência própria o

que significa viver longe do lar. É, pois, instigante, que a autora tenha escolhido a temática da

volta ao lar, e do que significa lar como tema de seus derradeiros contos.

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Uma vez que se propõe, aqui, a análise da problematização do conceito de lar no

contexto da diáspora africana em Barbados, o primeiro capítulo desta dissertação faz

referência à diáspora africana no Caribe, embasada no pensamento de Stuart Hall (2009),

Thomas Bonnici (2009), William Saffran (1994), Paul Gilroy (2001) e James Clifford (1994).

Como julgou-se relevante observar a percepção dessa diáspora por parte da autora, como

expressa através das imagens do negro construídas nos contos, lançou-se mão da imagologia.

Por esse motivo, integra, ainda, este primeiro capítulo, de natureza conceitual, uma resenha

dos estudos de Machado e Pageaux (1988) acerca do valor representativo e simbólico da

imagem. Tendo em vista a relação entre imagem e ideologia, conceitua-se, ainda que

brevemente, o saber ideológico. Por último, levando-se em conta que a imagologia considera

as implicações contextuais, resenham-se detalhes históricos acerca da economia escravagista

em Barbados, país onde os contos são ambientados.

O segundo capítulo envolve a definição de lar, tornando-se essencial a reflexão sobre

espaço, lugar e território, relacionados ao domínio espacial, ao qual se vincula o conceito de

lar. Autores como Henri Lefebvre (2009), Anthony Giddens e Claude Raffestin, Rogério

Haesbaert, Marcos Saquet (2004), e Eva Hoffman (1999) servem de apoio para desenvolver

este pensamento. Além disso, estuda-se a origem etimológica da palavra lar, devido a sua

multiplicidade semântica, que demanda a compreensão de termos para que se possa associar

com esta pesquisa. Para isso, autores como Brink (1995) e Rykwert (1993) fornecem as

referências necessárias. No que diz respeito aos elementos constitutivos do conceito de lar,

embasa-se a pesquisa em autores como Laura Huttunen (2005), que atenta para a dimensão

coletiva de lar; Theano Terkenli (1995), que desenvolve o conceito de regiões-lar e suas

qualidades geográficas distintivas, e Nicole Schröder (2006) e Jennie German Motz (2008),

que abordam o lar em relação a narrativas de viagem e mobilidade. As ligações entre

memória, identidade e espacialidade são apoiadas nos estudos de Émile Durkheim (1970),

Maurice Halbwachs (2006, 1990) e Michael Pollak (1992), com suas reflexões sobre a

memória como elemento significativo para relacionar o indivíduo ao espaço, lugar e,

consequentemente, ao seu lar.

No terceiro capítulo, as análises apresentam as diferentes situações enfocadas nos

contos: o negro que contempla o mar que o separa da terra natal, o que busca

desesperadamente um lugar que possa chamar de seu, o que aspira por liberdade, o que ocupa

por posição marginal em relação ao seu meio-irmão branco, o que busca legitimação na

pátria-mãe, o que retorna para a colônia apenas para sentir-se igualmente deslocado. Tais

situações claramente exemplificam a experiência do deslocamento e a impossibilidade de

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desenvolver o conceito de lar na ausência de fatores-chave para a sua formação, tais como o

sentimento de pertença e relações sociais significativas.

A sequência das histórias deste trabalho não segue a original da coletânea de June

Henfrey, por ser considerada mais apropriada para relacionar às experiências vivenciadas

pelos personagens: movimentos diaspóricos, formação das identidades, assim como a noção

de pertencimento, bem como ao exame da imagem do negro e dos discursos ideológicos

presentes nas narrativas. Essa percepção do percurso dos personagens, desde o período

escravocrata, pós-escravocrata à migração em reverso, permitirá uma melhor compreensão da

problematização do conceito de lar no contexto da diáspora africana no Caribe. Sendo assim,

opta-se pela seguinte sequência dos contos: ―Love Trouble‖, ―Freedom Come‖, ―The Cane

Cutter‖, ―The Gully‖, ―Goodnight, Miss Simmons‖, ―Coming Home‖.

O conto ―Love Trouble‖ apresenta a história de Sarah, uma jovem negra neta de Rose,

ex-escrava, cujo avô foi levado pelos navios negreiros para a fazenda onde moram e de onde

nunca saíram. A jovem é noiva de Dolphus, um rapaz negro que conhecia desde criança;

porém, ao conhecer pessoalmente o dono da fazenda para o qual trabalha, Mr. Bishop, rompe

seu vínculo com a sua avó e com a comunidade negra para ser a amante do homem branco.

Além de considerações sobre a natureza do lar nesse contexto, analisa-se o estereótipo da

figura feminina da escrava, passiva, atraente e como objeto sexual, em contrapartida às da

mulher branca, casta e digna, além da menção a figuras históricas de heróis negros insurretos

no conto.

―Freedom Come‖ sucede no período escravocrata tendo como protagonista a escrava

Nanny, que diverge das demais, pois se torna uma grande líder e responsável por uma das

maiores rebeliões. Por ser filha de escrava negra com o Feitor, não trabalha no campo, e sim,

na Casa Grande, o que lhe dá a oportunidade de se alfabetizar, embora de maneira sigilosa.

Tal habilidade contribui para que fique informada sobre o que está acontecendo nas colônias e

na Inglaterra sobre os escravos, mantendo o grupo, idealizador de uma revolta do qual faz

parte, sempre informado. Nanny, juntamente com Bussa, um líder da plantação vizinha,

Jackey e Robert, são os responsáveis pela grande rebelião que acontece na Páscoa. O fogo é a

arma principal causando a destruição de plantações e a morte de muitos brancos e escravos.

―The Cane Cutter‖ narra a história de dois cortadores de cana, Silas e Reuben, os quais

se apresentam em situações diferentes, mas vivem a experiência do período escravocrata para

o pós-escravocrata. Reuben nasce e permanece nas plantations durante toda a sua vida, não

conhece outro mundo, apenas o do branco, o de cortador de cana. Silas vive em comunidade,

juntamente com sua família. É um homem negro que prospera com o seu trabalho, o qual é

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desenvolvido em comunidade. O fato de Reuben viver a transição do período escravocrata

para o pós-escravocrata não está explícito no texto, há indícios para subentender esta

temporalidade: o proprietário da fazenda não gosta de ir até à cidade, especialmente porque

considera tanto os brancos pobres quanto os escravos livres, com as quais não estava

acostumado na fazenda, insolentes, sem educação e cortesia. Da mesma forma em ―Silas‖,

primeira parte do conto de ―The Cane Cutter‖, a narrativa inicia com o protagonista indo

trabalhar na lavoura de cana, ocasião em que se encontra, diariamente, com outros homens da

comunidade, também cortadores de canas e que, como ele, fazem o mesmo percurso. O

trabalho contínuo nos canaviais dos negros, apenas oficialmente libertos, mas ainda sujeitos a

esse duro trabalho, é identificado através do sonho no qual um nenê negro passa às mãos de

Silas uma lâmina brilhante, lustrosa pelo uso constante, e de um segundo sonho, no qual um

homem negro assassina uma mulher branca com uma faca. Em ambas as histórias, ocorre a

morte de mulheres brancas cometidas por escravos.

Na sequência, analisa-se ―The Gully‖, conto dividido em duas partes: Quashebah e I-

Malachi. Na primeira, destaca-se a escrava negra Quashebah, que não aceita a exploração do

branco e a submissão da mulher, opondo-se à condição de objeto descartável. A fim de poder

gozar de momentos de paz e liberdade refugia-se periodicamente em um barranco. Esse

espaço de segurança e refúgio para a sua alma é analisado a partir das metáforas da noite,

água, sangue e, especialmente, a da concha. Para tal, recorre-se a estudos desenvolvidos por

Gaston Bachelard, em seu livro A poética do espaço. Na segunda parte do conto, I-Malachi, o

protagonista está à procura de um lugar onde possa se sentir protegido, livre das tentações e

dos devaneios que o perturbam, e encontra refúgio, também em um barranco, supostamente o

mesmo usado por Quashebah. É perturbado pela intromissão de mulher, Doris, a quem

compara a Jezabel. Analisam-se as ressonâncias simbólicas dos nomes dos personagems:

Malachi (Malaquias) e Jezabel, e as ligações de I-Malachi com o movimento Rastafari e seu

uso metafórico no contexto do conto. Tanto para Quashebah quanto para I-Malachi, o

barranco é seu lar, pois naquele espaço encontravam segurança, tranquilidade, suas raízes

culturais, controle sobre o espaço e eram livres para pensar.

O conto ―Goodnight, Miss Simmons‖ tem como cenário uma sociedade dominada pelo

preconceito racial não só entre brancos e negros, como também entre negros. Simmons, um

alfaiate de descendência negra, ao pretender se casar com Eva, uma professora de pele bem

mais clara, quase branca, mas de origem negra, sofre rejeição da sua família. A decadência

material e econômica da família, após a morte do marido de Eva, que os levou à falência,

ilustra o declínio familiar e, consequentemente, a desconstrução de seu lar, pois, em uma

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sociedade caracterizada por preconceito de cor (―colour-marked society‖), as relações

familiares e afetivas são profundamente afetadas.

A migração é o tema central em ―Coming Home‖. Hilda e Linton fazem parte de um

grupo de migrantes pós-guerra do Caribe para a Inglaterra, a geração Windrush. No novo

país, descobrem ser estrangeiros vivendo sob a injustiça, a exclusão e o preconceito racial.

Uma vez viúva, Hilda retorna à terra natal, onde pensa reencontrar o senso de pertencimento e

o lar que nunca vivenciou na pátria-mãe. Porém, ao retornar a Barbados, a protagonista sente-

se frustrada, pois aquele lugar lhe parece desconhecido diante de tantas modificações,

inclusive a casa onde morava na sua infância. Essa sensação de estranhamento vai sendo

modificada mediante a recuperação de sua história pessoal que lhe proporcionam o

desenvolvimento da apreensão de lar. O conto é especialmente interessante para o estudo do

lar, que é vivenciado em dois contextos distintos.

O presente estudo está relacionado à linha de pesquisa Literatura, História e Memória,

do Programa de Mestrado em Letras da URI de Frederico Westphalen, tendo em vista que

examina o estudo das relações entre a literatura e o processo histórico cultural e social e a

interpretação da história no contexto do universo ficcional criado por June Henfrey na

coletânea Coming Home. A obra em análise contribuirá para os estudos acerca da

interpretação de procedimentos simbólicos dos contos e das atitudes sócio-histórico-culturais

neles retratadas. Esta investigação contribuirá para o enriquecimento das pesquisas nessa

linha, pois a literatura, a história e a memória estão relacionadas à análise que emerge nos

contos da coletânea de June Henfrey, enfocando, ainda, a realização de um estudo

imagológico acerca da figura do negro, conforme representado nas narrativas da autora

barbadense.

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1 CONCEITOS FUNDAMENTAIS

There is the sense in the mind of not being here or there, of no way out or in. As if

the door had set up its own reflection. Caught between the two we live in the

Diaspora, in the sea in between. Imagining our ancestors stepping through these

portals one senses people stepping out into nothing; one senses a surreal space, an

inexplicable space. One imagines people so stunned by their circumstances, so

heartbroken as to refuse reality. Our inheritance in the Diaspora is to live in this

inexplicable space. That space is the measure of our ancestors‟ step through the

door toward the ship. One is caught in the few feet in between. The frame of the

doorway is the only space of true existence. Dione Brand. A Map to the Door of no Return: Notes to Belonging.

A coletânea Coming Home apresenta contos centrados na diáspora africana, em

histórias que acompanham o deslocamento dos negros desde a África até Barbados, e os

retratam, em solo caribenho, ao longo do traumático período escravista, abrangendo ainda o

período pós-emancipatório e a contemporaneidade. Assim, faz-se necessário, inicialmente,

pensar o conceito de diáspora. Por outro lado, configura-se igualmente relevante, para a

presente análise, observar a percepção dessa diáspora por parte da autora, como expressa

através das imagens do negro construídas nos contos. Para isso, lança-se mão da imagologia,

já que, como Machado e Pageaux expõem, a imagem é, até certo ponto, a linguagem sobre o

Outro e, neste sentido, retoma uma realidade que designa e significa.1 Mesmo essa breve

definição deixa evidente a vinculação entre estudos imagológicos e ideologia, pelo que se

apresentam, também, fundamentos teóricos sobre esse conceito. Por fim, tendo-se em vista

que a imagologia não isola o texto literário em uma torre de marfim, mas o estuda em suas

implicações históricas e sociais, faz-se também necessário ao estudo dos contos o

conhecimento da economia escravagista nas colônias americanas, especialmente as

anglófonas; nestas, destaca-se a situação de Barbados, país onde os contos são ambientados.

1.1 Pensando a diáspora africana no Caribe

Não por acaso, este subtítulo ecoa a proposta que faz Stuart Hall no capítulo inicial da

coletânea Da diáspora: identidades e mediações culturais, organizada por Liv Sovik. Ao

1 MACHADO, Álvaro Manuel; PAGEAUX, Daniel-Henri. Da literatura comparada à teoria da literatura.

Portugal: edições 70, 1988, p. 57.

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colocar a questão da diáspora no contexto caribenho, Hall questiona, entre outras

interrogações, como pensar o pertencimento à luz da experiência da diáspora, situação em que

as identidades se tornam múltiplas. Outra indagação formulada por esse autor é como

imaginar a identidade, a diferença e o pertencimento após a diáspora. Esses questionamentos,

especialmente os cruzamentos entre identidade, diáspora e pertencimento, são extremamente

relevantes para esta pesquisa, uma vez que os personagens de Coming Home fazem parte,

todos, da diáspora africana no Caribe e, em diferentes contextos e modos, são retratados em

situações em que a identidade e o senso de pertencimento, ou o seu oposto, deslocamento, são

evidentes.2

A história do negro tem sido marcada por experiências de dispersão, de modo que a

sua presença no ocidente tem demandado estratégias específicas de sobrevivência dentro

desse novo contexto. A deslocamentos como esse, se dá o nome genérico de diáspora. Nesse

sentido, propõe-se inicialmente uma abordagem do conceito de diáspora e suas implicações

para o estudo da literatura.

A etimologia do termo diáspora, segundo o Dicionário de relações étnicas e raciais de

Ellis Cashmore, vem do grego dia (através, por meio de) e speirõ (dispersão, disseminar ou

dispersar), e está associada às ideias de migração e colonização da Ásia Menor e do

Mediterrâneo (800 a 600 a. C.). Na tradução grega do Deuteronômio, a palavra designa a

dispersão dos judeus exilados da Palestina depois da conquista babilônica e da destruição do

Templo no ano de 586 a.C.3

Porém, a palavra vem sendo usada através da história com outras conotações,

principalmente no sentido negativo, como é o caso da experiência judaica, da qual se originou

a comparação com os povos africanos e sua dispersão pelo mundo. Diferentes definições para

esse termo têm sido propostas, tendo como componentes críticos a história da dispersão,

mitos, memórias de uma pátria, alienação no país de acolhimento, desejo de um eventual

regresso, e/ou apoio permanente a uma pátria ou identidade coletiva. A diáspora é vista como

um movimento social de dispersão, construção social fundada no sentimento, percepção,

memória, mitologia, história, narrativas significativas, a identidade do grupo, anseios, sonhos,

elementos alegóricos e virtuais, os quais desempenham um papel importante no

estabelecimento de uma realidade da diáspora.

2 HALL, Stuart. Da diáspora: identidades e mediações culturais. Trad. Liv Sovik. Belo Horizonte: UFMG, 2009,

p. 28. 3 CASHMORE, Ellis. Dicionário de relações étnicas e raciais. Trad. Dinah Klevel. São Paulo: Summus, 2000,

p. 169.

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De acordo com Thomas Bonnici, o termo diáspora designa um movimento voluntário

ou forçado de pessoas ou povos de sua terra de origem para novos locais, fazendo-os se

sentirem desenraizados de sua cultura e de seu lar. Spivak distingue duas possibilidades de

diáspora: a pré-transnacional - responsável pelo deslocamento de milhões de escravos de suas

terras, entre os séculos XV e XIX, para trabalhar nas fazendas do novo mundo – e a

transnacional, que inclui os trabalhadores de indentured labour, no século XIX (este é o caso,

por exemplo, dos milhares de chineses e indianos que foram contratados para trabalhar no

Caribe), e os deslocamentos contemporâneos ocasionados pela guerra civil, fome, desemprego

e o sonho de fazer parte da modernidade.4 Outro tipo de diáspora resulta na direção oposta, ou

seja, a emigração significativa de caribenhos, africanos, centro e sul-americanos para os

centros metropolitanos na Europa, Canadá e Estados Unidos.5 O conto final da coletânea de

contos em estudo, Coming Home, que acabou emprestando o nome à coletânea, enfoca

situação de diáspora transnacional, destacando a história de jovem casal barbadiano que se

desloca para a Inglaterra em busca de melhor situação de vida.

Embora em épocas diferentes, tanto os escravos quanto os emigrantes contemporâneos

tentaram, e tentam, reestruturar sua identidade. Uma linguagem diferente, um novo sistema

trabalhista, memórias da ‗casa‘ distante, imersão numa cultura nova produzem o

desenraizamento. Para a pessoa deslocada, a pátria ou o lar ―não é mais um único lugar, mas

uma série de lugares [...]. A dispersão e a fragmentação são aceitas como fatores na

construção de uma nova ordem mundial que revela mais plenamente onde estamos e o que

nos podemos tornar‖.6

Uma vez que variadas experiências coletivas podem ser abrangidas pelo termo

diáspora, W. Saffran refere-se a elas como ―comunidades minoritárias expatriadas‖, para as

quais alista seis características: (1) são dispersadas de um ―centro‖ original para pelo menos

dois lugares ―periféricos‖; (2) mantêm memória, visão ou mito sobre sua terra original; (3)

acreditam não ser completamente aceitos no seu país de hospedagem; (4) percebem o lar

ancestral como um possível lugar de retorno; (5) engajam-se pela manutenção e restauração

desse lar ancestral; (6) definem sua consciência de solidariedade em relação a esse lar

primevo. Em resumo, para esse teórico, as principais características da diáspora são: uma

história de dispersão, mitos ou memória da terra de origem, alienação no país de hospedagem,

4 BONNICI, Thomas. Resistência e intervenção nas literaturas pós-coloniais. Paraná: Eduem, 2009, p. 30.

5 Ibidem, p. 397, 398.

6 Ibidem, p. 398-399.

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desejo de retorno eventual permanente, apoio à terra ancestral e definição da identidade

coletiva a partir desse relacionamento.7

Na concepção de Paul Gilroy, a diáspora não representa uma forma de dispersão

catastrófica, mas um processo que confunde a mecânica cultural e histórica do pertencimento,

pois o elo com o lugar, posição e consciência é rompido, como também o é o domínio de

território, de vital importância para determinar a identidade. Assim, a chave da diáspora,

segundo esse autor, não se encontra na raça e, sim, em formas geo-políticas e geo-culturais de

vida resultantes da interação entre sistemas comunicativos e contextos que elas não só

incorporam, mas também modificam e transcendem. Ao aderir à diáspora, a identidade pode

ser levada à indeterminação e ao conflito, em vez de estabelecer uma relação com a nação e

com o nacionalismo.8

Muitas das sociedades que se disseminavam por meio e entre diferentes geografias

políticas e culturais experimentaram tratamento de opressão e de vitimização, dor e

sofrimento, como o que resultou da escravidão. Essa migração não voluntária ocasionou

sentimento de perda, consequência da impossibilidade de retorno à terra de origem; a

migração, mesmo voluntária, pode levar também a um saudoso e intenso desejo de retorno,

uma vez frustradas as expectativas do migrante, que se agrava com a percepção da

impossibilidade de retorno à terra de origem.

Tal deslocamento ou desterritorialização amplia a noção de afastamento geográfico,

levando a um afastamento não só corpóreo como também imaginativo, que desencadeia no

sujeito um sentimento de ―não estar em casa‖, questionando o seu ―pertencimento‖ e sua

identidade nacional. Hall relaciona a experiência da diáspora aos assentamentos negros na

Grã-Bretanha, os quais não levam os migrantes vindos das Índias Ocidentais a romper com

suas raízes caribenhas: os elos permanecem fortes, devido à intenção de preservar a

identidade cultural. Há aquilo que esse autor chama de ―identificação associativa‖ com suas

culturas de origem, ou seja, embora ―longe de casa‖ existe um desejo de retorno motivado

pela força do elo umbilical e pelo orgulho de ser caribenho.9

Ao responder a sua própria pergunta retórica sobre como se pode imaginar a

identidade, a diferença e o pertencimento em face da diáspora, Hall revisa dois conceitos

contrastantes de identidade. Inicialmente resenha o conceito essencialista, segundo o qual

―presume-se que a identidade cultural seja fixada no nascimento, seja parte da natureza,

7 SAFFRAN, 1991 apud CLIFFORD, James. Diasporas. Cultural Anthropology, v. 9, n. 3, p. 304-305, Aug.

1994. 8 GILROY, Paul. O Atlântico Negro modernidade e dupla consciência. São Paulo: 34, 2001, p. 18, 23, 25.

9 HALL, 2009, p. 26-28.

16

impressa através do parentesco e da linhagem dos genes, seja constitutiva de nosso eu mais

interior‖.10

De acordo com os partidários dessa definição, a identidade cultural não sofre

influências de mudanças geográficas, culturais ou sociais. Ironicamente comentando esta

concepção, Hall registra que, segundo esse conceito, a identidade seria ―impermeável a algo

tão ‗mundano‘, secular e superficial, quanto uma mudança temporária de nosso local de

residência‖.11

Contudo, a descentralização dos indivíduos, tanto de seu lugar no mundo social

e cultural quanto de si mesmos, representa um processo de transformação que influi na sua

posição identitária.

Arraigados no contexto de suas histórias nacionalistas, como parte do seu senso do eu

coletivo, os povos do Caribe adotaram uma concepção fechada de tribo, diáspora e pátria, o

que contribuiu para tornar familiar, entre eles, o conceito essencialista de diáspora. Nesse

contexto, identidade cultural corresponde a ―estar primordialmente em contato com um

núcleo imutável e atemporal, ligando ao passado o futuro e o presente numa linha

ininterrupta‖.12

Este ―cordão umbilical‖, baseado à fidelidade às origens, equivale ao conceito

de ―tradição‖. Remete a uma suposta ―autenticidade‖, sendo, portanto, um mito; como Hall

ressalta, todo mito tem o potencial ―de moldar nossos imaginários, influenciar nossas ações,

conferir significado às nossas vidas e dar sentido à nossa história‖.13

Contudo, não há como retraçar a origem de sociedades formadas por população

diaspórica, como a caribenha, a um mito fundador original único e ―autêntico‖. Essas

sociedades são compostas não de um, mas de muitos povos, não sendo suas origens únicas,

mas diversas. Conquista expropriação, genocídio, escravidão, o sistema de engenho e a longa

tutela da dependência colonial são episódios bem documentados de uma história que mostra

como seus habitantes têm suas raízes pertencentes a outro lugar. Como Hall resume, falando

de seu Caribe natal:

Todos os que estão aqui pertenciam originalmente a outro lugar. Longe de constituir

uma continuidade com os nossos passados, nossa relação com essa história está

marcada pelas rupturas mais aterradoras, violentas e abruptas. Em vez de um pacto

de associação civil lentamente desenvolvido, tão central ao discurso liberal da

modernidade ocidental, nossa ‗associação civil‘ foi inaugurada por um ato de

vontade imperial. O que denominamos Caribe renasceu de dentro da violência e

através dela.14

10

HALL, 2009, p. 28. 11

Ibidem, p. 28. 12

Ibidem, p. 29. 13

Ibidem, p. 29. 14

Ibidem, p. 30.

17

Uma vez que no Caribe se entrelaçaram povos vindos dos quatro cantos do globo –

originários da Europa, África e Ásia se juntaram aos habitantes originais – formou-se uma

sociedade que tem como traço distintivo a fusão de elementos provenientes dessas variadas

origens. Essa cultura híbrida não pode mais ser desagregada em seus elementos ―autênticos‖

de origem. A ―África‖ sobrevivente no Haiti e na Jamaica através da fusão dos deuses

africanos com os santos cristãos, a ―França‖ atravessada pela transgressão do ―estilo‖ negro

no Haiti e na Martinica, a ―Inglaterra‖ dos hábitos, costumes e etiqueta social de Barbados

atestam hibridismo, différance.

Assim, embora o conceito fechado de diáspora se apoie sobre uma concepção binária

de diferença, sendo fundado por fronteiras de exclusão e sobre uma rígida construção de um

Outro (e, portanto, sobre bem demarcadas fronteiras entre dentro e fora), as configurações

sincretizadas da cultura caribenha requerem uma lógica cultural diferente. Em vez de um e

Outro, dentro e fora, os polos binários de sentido são constantemente arruinados por processo

mais aberto e fluido. Kobena Mercer descreve tal lógica cultural como ―estética diaspórica‖,

em que formas culturais estão em poderosa dinâmica sincrética, que se apropria criticamente

dos elementos das cultuas hegemônicas e os ―criouliza‖.15

Dessa forma, a relação entre as

culturas caribenhas e suas diásporas não deve ser concebida em termos de origem e cópia,

fonte primária e reflexo, mas como a relação entre uma diáspora e outra.16

Os contos que compõem Coming Home, os quais são objetos desta pesquisa, permitem

relacionar, às experiências vivenciadas pelos personagens, movimentos diaspóricos, formação

de identidades, assim como a noção do pertencimento. As histórias têm, em sua maioria,

como cenário, a ilha de Barbados, e ocorrem durante a escravidão, o período escravocrata e a

contemporaneidade.

1.2 Imagologia: o valor representativo e simbólico da imagem

A imagologia (imagologie) é um dos mais antigos métodos de investigação em

Literatura Comparada. Torna-se especialmente convidativa para a análise em tela uma vez

que, tendo como objeto de estudo a imagem do estrangeiro em determinada literatura e/ou

cultura, desencadeia um processo de socialização que analisa duas ou mais culturas em

confronto. No Caribe das histórias de Henfrey, percebe-se o choque entre a cultura negra e a

de seus dominadores brancos. Resenha-se, aqui, o conceito de imagologia a partir da

15

HALL, 2009, p. 33. 16

Ibidem, p. 34.

18

definição de Álvaro Manuel Machado e Daniel-Henri Pageaux, em seu já clássico Da

literatura comparada à teoria da literatura.17

Movendo-se para além do estudo de fontes e influências, e da mera catalogação

temática, a imagologia propõe-se a investigar as implicações históricas e mesmo sociais do

texto literário, dentro de uma tendência mais pluridisciplinar e de uma aliança entre a

literatura e as questões de ordem social e cultural. Para tanto, os estudos das imagens são

derivadas de investigações sociológicas, antropológicas e históricas sobre questões que

abordam aculturação, opinião pública e alienação cultural sobre o estrangeiro, levando o

comparativista a se interessar pelo confronto entre os seus métodos e os desses outros campos

de conhecimento.

Nesse contexto, a imagem é entendida como uma tomada de consciência do eu em

contraposição ao outro; é a expressão, literária ou não, de um distanciamento significativo

entre duas ordens de realidades culturais, ou, ainda, é a representação de uma realidade

cultural por meio da qual aqueles que a elaboraram revelam e traduzem seu próprio espaço

cultural e ideológico.

Diversos sentidos, compatíveis ou incompatíveis entre si, de cunho epistemológico ou

político, têm sido atribuídos à ideologia. Terry Eagleton apresenta alguns deles: processo de

produção de significados na vida social; corpo de ideias de determinado grupo ou classe

social; ideias (falsas ou não), que ajudam a legitimar o poder político da classe dominante;

comunicação sistematicamente distorcida; formas de pensamento motivadas por interesses

sociais; ilusão socialmente necessária; conjuntura de discurso e de poder; conjunto de crenças

orientadas para a ação; veículo pelo qual os atores entendem o seu mundo; confusão entre a

realidade linguística e a realidade fenomenal; processo pelo qual a vida social é convertida em

uma realidade natural; meio pelo qual os indivíduos vivenciam suas relações com uma

estrutura social.18

As relações entre os discursos ideológicos e os interesses sociais são complexas e

variáveis. Só se pode decidir se o enunciado é ideológico ou não examinando-o em seu

contexto discursivo, pois a ideologia é uma função da relação de uma elocução com seu

contexto social: todo o discurso está vinculado a interesses sociais específicos e,

consequentemente, à questão do poder.

17

MACHADO; PAGEAUX, 1988, p. 55-81. 18

EAGLETON, Terry. Ideologia: uma introdução. Trad. Luís Carlos Borges Silvana Vieira. São Paulo: Editora

da Universidade Estadual Paulista: Boitempo, 1997, p. 15.

19

Pensar a ideologia como um fenômeno discursivo e semiótico corresponde a enfatizar

a sua materialidade e ressaltar o fato de que ela diz respeito essencialmente a significados.19

Como Eagleton destaca, pode ser produtivo considerar a ideologia ―menos como um conjunto

particular de discursos do que como um conjunto particular de efeitos dentro dos discursos‖.20

Todo discurso tem a intenção de produzir algum efeito em seus receptores; o conceito clássico

de ideologia aponta para o processo ―pelo qual os interesses de certo tipo são mascarados,

racionalizados, naturalizados, universalizados, legitimados em nome de certas formas de

poder político, e há muito a perder politicamente quando essas estratégias discursivas vitais

são dissolvidas em alguma categoria indiferenciada e amorfa de ‗interesses‘‖.21

Da mesma forma como a ideologia não pode ser divorciada do signo, este também não

pode ser dissociado da vida social. Como já dizia Louis Althusser, a ideologia corresponde à

relação imaginária dos indivíduos com as suas condições reais de existência e, portanto, tem

uma existência material. A vinculação entre ideologia e sociedade permite que as imagens

transmitam o pensamento do contexto social e cultural que as gerou.22

De acordo com Machado e Pageaux, a partir da análise das imagens, pode-se chegar

ao modo como funciona o pensamento e as estruturas de uma determinada ideologia. Essa

tomada de consciência estabelece uma relação entre o Eu e o Outro; toma-se a imagem como

a representação de uma realidade cultural estrangeira através da qual o indivíduo ou o grupo

que a elaboram revelam e traduzem o espaço ideológico no qual se situam. Esse fato leva o

investigador a não se deter apenas no texto literário, mas nas condições e no momento em que

ele foi escrito e a quem está destinado, permitindo perceber o que essa imagem tende a revelar

ou a esclarecer.23

No entanto, chegar a uma imagem média significa atingir certo número de imagens

que, sendo diferentes e mesmo contraditórias, se exprimem numa mesma época, numa mesma

literatura. Relaciona-se, assim, a construção imagética ao imaginário social, concebendo-se a

imagem como uma representação do Outro, de outra cultura, de uma outra realidade elaborada

por um grupo ou por um indivíduo a partir do espaço ideológico no qual se situa. Isso é

enfatizado por Machado e Pageaux, que ressaltam como ―a imagem é a representação de uma

19

EAGLETON, 1997, p. 22-23; p. 171-172. 20

Ibidem, p. 172. 21

Ibidem, p. 178. 22

ALTHUSSER, Louis. Aparelhos ideológicos de estado: nota sobre os aparelhos ideológicos de estado. Trad.

Walter José Evangelista, Maria Laura Viveiros de Castro. Rio de Janeiro: Graal, 1989, p. 85-93. 23

MACHADO; PAGEAUX, 1988, p. 57-62.

20

realidade cultural estrangeira através da qual o indivíduo ou o grupo que a elaboraram

revelam e traduzem o espaço ideológico no qual se situam‖.24

Imagens não são enunciados vagos ou gerais, mas opiniões, opções individuais ou de

grupos em relação ao real observado. Dessa forma, não se pode considerar a veracidade ou a

falsidade de uma imagem, mas conhecer os componentes, os fundamentos e a função social

que ela representa, pois, sendo considerada como uma linguagem sobre o Outro, retoma uma

realidade a qual qualifica e simboliza. Além disso, o estudo da imagem conduzirá à

identificação da linha de pensamento que rege uma cultura, seja de um escritor, de um país ou

de qualquer outro representante, estando, portanto, indissociável das suas histórias,

pensamentos e crenças.

Esse tipo de olhar envolve a percepção da cena da cultura ―que olha‖ e de outra ―que é

olhada‖. Ao olhar-se o Outro, é estabelecida uma imagem do observador impossível de evitar,

pois se identifica o seu pensamento, geração, país, cultura, espaço. Por outro lado, a referência

ao ―Outro‖ indica o mundo e o lugar de onde partiu esse ―olhar‖ ou ―juízo‖, revelando as

relações que estabelece entre o estranho mundo em que vive e o de si próprio. Na verdade, a

imagem do Outro é uma língua segunda, uma linguagem que se usa para dizer outra coisa.

Sendo assim, a imagem é uma linguagem simbólica, através da qual se exprime qualquer tipo

de relações, seja interétnicas, interculturais ou ainda de outra natureza, entre a sociedade que

fala e a sociedade ―olhada‖.

Uma forma comum da ―imagem‖, o estereótipo, geralmente é percebida como uma

simplificação, e, portanto constitui-se em perigo para a compreensão dos povos, por ser uma

forma maciça de comunicação que corresponde a uma redução conceitual. O estereótipo tende

a definir o Outro enunciando um coletivo com o intuito de uma validade, independente do

momento histórico ou político, defendendo ou baseando-se num símbolo. Essa ideia é

difundida e convertida em importante e indispensável, representativa de uma definição válida

do Outro, seja qual for a circunstância. Enunciar o estereótipo é confirmar e explicar uma

situação proveniente de um raciocínio fundamentado em uma hierarquia de culturas,

distinguindo o eu do Outro, geralmente valorizando o primeiro em detrimento do segundo,

divulgando uma caricatura ideológica, passando da imagem para a história das ideias.

O fato de a imagem representar algo permite uma comunicação, uma linguagem

daquilo que está sendo ―olhado‖; ao mesmo tempo, tem uma ―função-signo‖, isto é, dá um

sentido, um significado à representação. Explicar esse discurso e mostrar a imagem ali

24

MACHADO; PAGEAUX, 1988, p. 58.

21

presente como uma linguagem simbólica é o principal objetivo da imagologia. A fim de

discernir a imagem como um texto planejado, faz-se importante a distinção de três elementos:

a palavra, a relação hierarquizada e o cenário. A imagem é constituída por palavras, que

procuram reconstituir, por meio de um repertório comum ao escritor e ao leitor, a difusão de

imagem, mais ou menos imediata, numa determinada cultura ou época.

É preciso estar atento às palavras provenientes daquele que ―olha‖, definindo o objeto

do seu olhar, e àquelas provenientes do que é ―olhado‖, uma vez que podem ser convertidas

pelo primeiro, sem uma compreensão correta, sem ―tradução‖ na sua língua e espaço cultural.

A análise lexical oferece vestígios e indicadores de lugares, tempo, delimitação externa ou

interna do personagem, opção religiosa, filosófica, política, ideologia, oportunizando

averiguar o sistema de semelhança entre o Outro e eu. Além disso, os adjetivos, os processos

de exclusão, de marginalização, de integração, de exorcização devem ser valorizados, pois

poderão servir como um dicionário das imagens, já que a imagologia, como auxiliar ativo da

história das ideias, vale-se dos pontos de referência lexicais para construir um discurso crítico

sobre a literatura do Outro.

Machado e Pageaux distinguem entre o que chamam de ―palavras-chave‖ e ―palavras-

fantasma‖. As primeiras, autenticadas pela história e pelo processus cultural de vários séculos,

são decodificadas de forma mais ou menos imediata pelo leitor. Já as ―palavras-fantasmas‖

correspondem a semas virtuais que servem à comunicação linguística e à simbólica. Os

comparatistas franceses as exemplificam com palavras como ―harém‖, ―odalisca‖ ou

―deserto‖, cujo efeito de exotismo concorre para a elaboração de um longínquo, de um

imaginário ocidental. Nesses casos, através do texto, o eu enunciador revela um universo

fantasmático que elaborou do Outro.

No que diz respeito às relações hierarquizadas, é importante identificar o modo como

o eu contrasta ou observa o Outro no texto, assim como os elementos usados para caracterizar

e descrever essa imagem, limitando o investigador a reorganizar o texto em estudo segundo a

sua lógica pessoal, seguindo uma ordem da lógica do escritor. Por isso, o tempo e o espaço

podem ter relações explicativas com os personagens e com o próprio escritor, atentando aos

processos em que o espaço estrangeiro está organizado e simbolizado, pois este reproduz e

significa a paisagem mental de um personagem, do escritor, as condições históricas,

permitindo estabelecer relações explicativas entre o espaço geográfico e o psíquico no plano

metafórico. Desta forma, é preciso atentar aos processos de fixação dos lugares, sua

valorização positiva ou negativa: movimentos no texto, lugar, cidade, região, campo,

22

princípios de inclusão ou exclusão, família, lugares valorizados, processo de mitificação,

movimentos de recuo da história.

Além dos elementos relacionados ao espaço, há os referentes ao estudo do tempo, que

também são indicadores importantes para a compreensão da representação. Mas, para que isso

aconteça, precisamos estar atentos àquilo que pode parecer uma mitificação do tempo

histórico. Assim, serão colocadas em evidência as oposições frequentes do tempo linear da

história política ao tempo irreversível, concernente à imagem. As indicações históricas

precisas, indicadores de mitificação do tempo histórico, a presença de estereótipos e o

movimento que tende a desencadear um recuo na história, evidenciando as oposições do

tempo linear e progressivo da história política ao tempo reversível, cíclico da imagem,

também se revestem de importância.

Referente à representação dos personagens, tudo que divide o eu e o Outro tem um

significado, sendo as características morfológicas determinantes para a elaboração da imagem

do Outro possuindo um significado particular no conjunto do funcionamento do texto, o que

propõe investir na observação do sistema de relação das personagens, como por exemplo, a

escolha das personagens femininas e masculinas, a sua ligação com a cultura de origem do

escritor ou com a cultura estrangeira. Dessa forma, será possível a formulação da alteridade,

através de elementos opostos que associam natureza e cultura, selvagem e civilizado, bárbaro

e culto, homem e animal, adulto e criança (o eu é adulto, o Outro é criança), ser superior e ser

inferior, dentre outros.

Outro aspecto a ser considerado na interpretação da imagem é o que diz respeito à

antropologia cultural, a qual possibilita enfocar o texto (literário ou não) como um testemunho

ou documento que revela o grau de conhecimento do autor em relação à cultura que retrata.

Ao elaborar uma imagem, o escritor não faz uma cópia da realidade, mas, sim, uma seleção

das características por ele consideradas relevantes para a ―sua‖ representação. Assim,

considera o significado social e cultural desses elementos, confrontando-os com os dados

históricos, culturais e ideológicos. Somente com o auxílio da história é que o leitor poderá

compreender porque o autor selecionou determinada imagem cultural do texto como

referência cultural para o leitor.

Palavras, relações e cenário podem ser objetos simbólicos, mas o imaginário decorre

de referências culturais ou padrões escolhidos pelo escritor ou pelo grupo que escreve. A

imagem e o mito podem ter a capacidade de contar uma história que poderá se tornar

exemplar, pois o imaginário é o lugar onde triunfa a intertextualidade. Nesse sentido, uma

leitura imagológica vale-se de uma imagem do Outro para pensar ou sonhar de outra maneira,

23

não estando o autor necessariamente de acordo com o seu discurso sobre esse Outro, mas

servindo-se dele para justificar os fantasmas da sociedade.25

Vistas a partir do olhar de um Outro, quatro atitudes fundamentais têm sido

percebidas: a mania, a fobia, a filia e o cosmopolitismo. A primeira, a ―mania‖, corresponde à

atitude na qual a realidade cultural do estrangeiro é vista pelo escritor ou grupo como superior

à cultura nacional de origem, isto é, o autor percebe uma falha na cultura de origem e usa a

cultura do Outro para ironizar ou criticar. Dessa forma, a ―mania‖ desenvolve aquilo que é

chamado de ―miragem‖. Já na fobia, a realidade estrangeira é vista de maneira negativa ou

inferior em relação à de origem, desencadeando, assim, uma sobrevalorização de toda ou de

parte da cultura de origem. Na ―filia‖, a realidade cultural estrangeira é tida por positiva e

situa-se no interior de uma cultura vista de maneira positiva, havendo uma admiração mútua.

Assim, enquanto a ―mania‖ se alimenta de ―empréstimos‖, ou seja, importa do estrangeiro

ideias ou hábitos, a ―filia‖ desenvolve processos de avaliação e de reinterpretação do

estrangeiro. A ―fobia‖ implica a morte simbólica do Outro; já a ―filia‘ tenta impor a via

difícil, exigente, que passa pelo reconhecimento: o Outro vive, então, ao lado do Eu; não é

nem superior nem inferior, nem sequer diferente no sentido de certo ―exotismo‖, ―é pura e

simplesmente reconhecida como outro.‖ Na atitude ―cosmopolita‖, não há valoração positiva

ou negativa, e o estrangeiro é visto como fazendo parte de uma realidade mais ou menos

uniforme. 26

As manifestações acima permitem interpretar o estrangeiro ou o Outro no interior de

um texto, considerando-se uma ideologia, preferências ou rejeições. Dessa forma, o estudo da

imagem permite uma conscientização crítica das nossas práticas culturais e dos nossos

pensamentos, admitindo uma revisão e uma reapropriação da cultura que envolve o

investigador e a sua investigação. Como já comentado na introdução a este capítulo, uma vez

que a interdisciplinaridade é necessária à investigação imagológica, resgatam-se, a seguir,

dados históricos, geográficos e culturais a respeito da escravidão, especialmente no contexto

do Caribe, e particularmente em Barbados, terra natal de June Henfrey.

1.3 A escravidão em terras americanas: a economia de plantation no Caribe

A trajetória histórica da escravidão africana em terras americanas pode ser

caracterizada por três fases: a primeira compreende desde o início da colonização até o século

25

MACHADO, PAGEAUX, 1988, p. 65-71. 26

Ibidem, p. 73-79.

24

XVII, quando a escravidão negra já havia se tornado uma prática tanto na América espanhola

quanto no Caribe. O segundo período estende-se até fins do século XVII, e corresponde à

época em que o açúcar é introduzido nas Antilhas – primeiro nas Antilhas espanholas e, em

meados do século XVII, no Caribe francês, britânico e holandês (Guiana e Antilhas:

Barbados, Jamaica e São Domingos), bem como nas colônias britânicas do Sul, da América

do Norte. Um último estágio da escravidão africana nas Américas é comumente delimitado

entre 1791, data da rebelião de escravos e quilombolas no Haiti, até 1888, quando houve a

extinção final do escravismo americano, com a abolição do tráfico de africanos e da própria

escravidão.27

Até meados do século XVII, na América espanhola, a colonização se organizou com

base na mão-de-obra indígena, visando, sobretudo, à exploração das minas de prata. O

escravo africano chegara já com os exércitos conquistadores, e houve intensa mestiçagem

com brancos e índios. Contudo, como o custo do africano era muito alto – custava o

equivalente ao emprego semirremunerado de um trabalhador índio durante dez anos -, embora

os escravos negros trabalhassem nas minas, foi mais frequente o emprego de cativos africanos

e dos libertos como capatazes, trabalhadores urbanos, servidores domésticos e na agricultura

de subsistência.

A partir dos meados do século XVII, a economia de plantation se expandiu para o

Caribe britânico, francês e holandês, e em seguida para as colônias britânicas na América.

Nessa região, os negros receberam tratamento semelhante ao que os índios ocupavam na

sociedade hispano-americana: eram os elementos mais explorados e humilhados da estrutura

social. Nesta fase, além do açúcar, a empresa agrícola escravista interessou-se por diversos

outros produtos, como o tabaco, anil, cacau e algodão.

Os negros trabalhavam, sobretudo, na agricultura em fazendas (plantations). Uma vez

que este é o ambiente que serve de cenário para os contos de Coming Home que tematizam a

escravidão, explana-se esse conceito. Contrastando a plantation com a hacienda, Wolf e

Mintz definem a primeira como

uma propriedade agrícola operada por operários dirigentes (em geral organizados em

sociedade mercantil) e por uma força de trabalho que lhes está subordinada,

organizada para prover um mercado em grande escala por meio de um capital

abundante, e na qual os fatores de produção são empregados, principalmente para

fomentar a acumulação de capital, sem qualquer relação com as necessidades de

status dos donos.28

27

CARDOSO, Ciro Flamarion Santana. A afro-américa: a escravidão no novo mundo. São Paulo: Brasiliense,

1982, p. 20-22. 28

Ibidem, p. 31.

25

As plantations escravocratas caracterizavam-se como propriedades rurais

relativamente extensas, dedicadas prioritariamente às atividades agrícolas ou agroindustriais

de exportação. Seu tamanho variava segundo a densidade da população de colonos europeus e

as exigências do tipo de produção: a introdução do açúcar requereu propriedades extensas e

grande número de escravos, pois além das terras cultivadas (canas, víveres) eram necessários

pastos para os animais e a obtenção de madeira e lenha.29

Por outro lado, a concentração de terras obedecia a limites governados pelas

exigências ecológicas dos gêneros tropicais cultivados, pela necessidade de transportar

produtos agrícolas dos campos ao local do seu beneficiamento e pela embalagem;

dificuldades crescentes de administração eram enfrentadas ao serem ultrapassadas certas

dimensões em extensão e número de escravos.

A demografia dos escravos dependia igualmente de elementos ligados à própria lógica

da plantation, cuja organização foi, provavelmente, um dos mais eficientes sistemas de

trabalho oferecido no mundo ocidental capitalista. A forma mais óbvia disso é revelada na

ausência de diferenças sexuais em todas as principais tarefas de trabalho, associadas com o

plantio, o cultivo, a colheita da produção e a alta porcentagem de pessoas de todas as idades

que eram empregadas: as mulheres faziam quase o mesmo trabalho físico que os homens. Das

pequenas crianças até as pessoas mais velhas, a todos era atribuída uma tarefa proporcional às

habilidades físicas. Homens e mulheres mais velhos cuidavam de lactentes ou crianças, ou

simplesmente tinham que tratar ou guardar o gado. Todas as crianças trabalhavam,

começando na simples tarefa de capinar. Quando alcançavam a idade de oito anos, passavam

a exercer outras funções de acordo com as atividades exigidas pelo grupo de trabalho.30

Os escravos trabalhavam sob pesada supervisão, organizados em grupos baseados na

habilidade física e na realização de tarefas comuns. A constante disponibilidade de

―incentivos negativos‖, como o uso de chicotes e outras punições corporais, podem ter sido

mais decisivos como ―incentivos‖ ao trabalho escravo do que qualquer forma de recompensa

positiva de lazer, comida, vestuário ou fornecimento especial de direito à terra; no entanto,

ambos os tipos de incentivos eram constantemente disponíveis e usados. Entre força,

recompensas, elevadas taxas de participação no trabalho, supervisão direcionada,

29

CARDOSO, 1982, p. 32-36. 30

KLEIN, Herbert S.; VINSON III, Ben. African Slavery in Latin America and the Caribbean. New York:

Oxford University Press, 2007, p. 59-60.

26

sistematização e rotinização das tarefas do trabalho, os escravos da plantation alcançavam

altos níveis de produção e lucro.

Na compra de escravos, visava-se antes o trabalho nas fazendas do que a constituição

familiar. Como a história tradicional narra, dava-se preferência à aquisição de homens

adultos; a procriação e formação de famílias nucleares não eram prioridade. Nas fases de

apogeu do produto cultivado, principalmente na época da colheita e da preparação do produto,

diminuíam-se as horas de descanso. Escassos cuidados e precauções higiênicas eram

dispensados, especialmente às parturientes e aos recém-nascidos, o que aumentava a

incidência da mortalidade infantil; o excesso de trabalho e a alimentação deficiente

contribuíam para o enfraquecimento da população escrava, ocasionando eventuais ondas

epidêmicas.31

Esse sistema escravocrata, vivenciado pela imensa maioria dos escravos negros em seu

labor nas plantations, fazendas e minas, datava já de longa época. Vale lembrar que as

técnicas de colonização que depois se difundiram no Novo Mundo tiveram início pouco

depois das primeiras cruzadas quando os venezianos criaram, na Palestina, desde o século

XII, verdadeiras plantations açucareiras, aprendendo as técnicas do açúcar com os

muçulmanos. Essa aprendizagem foi estendida a Chipre pelos franceses e italianos; após a

quarta cruzada, os venezianos a levaram a Creta e às ilhas menores dos mares Egeu e Jônio.

Essas colônias dedicavam-se à agricultura e mineração, e empregavam escravos raptados da

Grécia continental tanto nas ilhas do Egeu como nos Bálcãs e nas terras muçulmanas. Mais

tarde, em fins da Idade Média, quando a colonização italiana voltou-se para a Sicília, e depois,

em associação com as coroas ibéricas, para as ilhas africanas do Atlântico – Canárias, Açores,

Madeira e Cabo Verde - difundiu-se a economia de plantation, baseada nas técnicas sicilianas.

Por outro lado, a Península Ibérica já praticava a escravidão: primeiro de eslavos,

depois de mouros capturados durante as guerras de reconquista e por fim de negros africanos:

em meados do século XVI, por volta de 1550, aproximadamente 10% da população de Lisboa

era constituída de mouros e negros. Foi à mesma época em que, na Europa, se implantava o

trabalho livre, no Novo Mundo, criaram-se e se expandiram as plantations e os engenhos, nos

quais o trabalho escravo era a base da produção e da organização social.32

O escravismo nas Américas surgiu com a possibilidade de produzir para o mercado

europeu (artigos tropicais, metais preciosos com baixo custo de produção). Assim, a

escravidão estava vinculada ao capital comercial europeu; do final do século XV ao XVIII,

31

CARDOSO, 1982, p. 38. 32

Ibidem, p. 10-16.

27

vigorou, na verdade, uma economia pré-capitalista, já que o objetivo do Estado, nesse

momento, era maximizar o acúmulo de capital em prol de seu reconhecimento mundial e

capacidade de produção.

Barbados, terra natal de June Henfrey, e cenário dos contos de Coming Home, sofreu

processo colonizatório e escravocrata semelhante ao anteriormente descrito. A ilha foi

descoberta por espanhóis, em 1518. Constituiu-se, no início, em base para o aprovisionamento

de aruaques (escravos indígenas) para o trabalho nas Grandes Antilhas. Os ingleses chegaram

à ilha no início do século XVII e, em1624, começaram sua exploração. Quando, em 1662, o

rei Carlos II transformou Barbados em colônia real, já lá existiam cerca de vinte mil colonos e

dez mil escravos negros33

.

Em 1640, iniciou-se a cultura açucareira. Da introdução de mudas e da exploração do

produto resultam dois elementos fundamentais na formação do país: a plantation - unidades

agrícolas monocultoras voltadas para a exportação – e o regime escravocrata. Em 1640, os

plantadores holandeses chegaram a Barbados, assim como a Martinica e Guadalupe,

introduzindo técnicas modernas de produção, o que levou a um aumento importante da

indústria açucareira no Caribe.

A transformação que o açúcar criou nas Índias Ocidentais foi verdadeiramente

impressionante. A primeira grande produção ocorreu nas ilhas de Barbados, que

provavelmente experimentou a mais dramática mudança, mas todas as ilhas passaram por um

processo semelhante. Em 1645, às vésperas da grande mudança no açúcar, mais de 60% dos

18.300 homens brancos eram proprietários e havia somente 5.680 escravos. O tabaco era a

principal cultura e a média de produção era menos do que dez acres. Por volta de 1670, o

açúcar era dominante, e o número de fazendas estava abaixo de 2.600 unidades, ou somente ¼

do número que existia quinze anos atrás. O total da população branca tinha decaído de 37.000

para 17.000 e, pela primeira vez na história das ilhas, os negros excediam os brancos. Em

1680, havia 37.000 escravos nas ilhas (quase todos nascidos na África) e mais de 350 colônias

açucareiras, e a produção tinha subido para 8.000 toneladas de açúcar por ano.

Dos brancos contratados somente 2.000 permaneceram, e seu número estava caindo. A

sociedade local já estava dominada por uma nova elite de grandes fazendeiros, e em

Barbados, havia 175 fazendeiros que possuíam 60 escravos ou mais, e que controlavam mais

da metade das terras e dos escravos da ilha. A média dessas plantations consistia em 100

escravos e 220 acres por terra. Nesta época, Barbados era a mais populosa e a mais rica das

33

BARBADOS. In: NOVA Enciclopédia Barsa. 6. ed. São Paulo: Barsa Planeta Internacional, 2002. v. 2, p.

339-340.

28

colônias inglesas na América. Os navios de escravos traziam mais de 1.300 escravos por ano

e, no final do século, essa minúscula ilha tinha mais de 50.000 escravos. Era provavelmente a

mais populosa região das Américas.34

Nas narrativas de June Henfrey, percebe-se a exploração no ambiente das plantations

através das situações vividas pelos personagens, nas quais a distinção entre branco/negro,

senhor/escravo torna-se uma forma de demarcação identitária intimamente articulada com o

poder detido pelo europeu colonizador. A oposição classificatória entre ―nós‖ e ―eles‖ é

visível, e o sujeito negro era visto apenas como mão de obra, sendo tratado de forma cruel e

desumana, comprovando sua percepção negativa e inferiorizada.

Em 1834, foi abolida a escravatura em Barbados. Tratou-se de decisão política da

Coroa britânica, não diretamente vinculada às várias revoltas de escravos que marcaram a

história barbadiana. Com o decreto da abolição, o interesse dos latifundiários foi prejudicado,

iniciou-se uma crise econômica e social, aumentando a população negra. Mais tarde, a

economia de Barbados se recuperou parcialmente, através de investimentos por parte dos

proprietários e de medidas tomadas pelo governo britânico para impulsionar o seu

desenvolvimento.

Até um século depois da Abolição, os proprietários das plantations e comerciantes

descendentes dos ingleses dominaram a política local. Somente em 1930, os descendentes dos

escravos emancipados iniciaram um movimento por direitos políticos. Em 1958, Barbados

passou a fazer parte da Federação das Índias Ocidentais e, em 1966, o Reino Unido concedeu

a sua independência, integrando-a na Comunidade Britânica das Nações.35

Resenharam-se até aqui alguns dos conceitos fundamentais para a compreensão dos

movimentos diaspóricos e da representação imagética em suas conexões com a ideologia;

expuseram-se fatos relativos à história dos africanos no Caribe, especialmente ao sistema

econômico das plantations. Uma vez que a natureza dos deslocamentos diaspóricos

tematizados no livro põe em relevo o questionamento do conceito de lar, como já evidencia o

título da coletânea, dedicar-se-á o próximo capítulo ao estudo desse conceito.

34

KLEIN, VINSON III, 2007, p. 52-53. 35

BARBADOS, 2002, p. 339-340.

29

2 LAR, TERRITÓRIO E (DES) PERTENCIMENTO

Nós que somos sem lar – Entre os europeus, hoje não faltam aqueles que se

arrogam o direito de se chamarem sem-lar em um sentido distintivo e honroso...

Nós, crianças do futuro, como poderíamos nos sentir em casa nos dias de hoje?

Sentimos desagrado por todos os ideais que poderiam levar alguém a sentir-se em

casa mesmo neste tempo frágil e inativo de transição; quanto às „realidades‟, não

acreditamos que elas durarão. O gelo que ainda hoje suporta as pessoas se tornou

muito fino; o vento que traz o degelo está soprando; nós mesmos, os sem-lar,

constituímos uma força que rompe o gelo e outras „realidades‟ demasiado finas.

Friedrich Nietzsche, A gaia ciência.

A definição de lar, dada a sua multiplicidade semântica, é tarefa que requer o

entendimento de termos que se apresentam como auxiliares para elucidar o sentido que se

pretende construir ao longo da presente pesquisa. Assim, faz-se necessário um breve

entendimento sobre espaço, lugar e território, os quais se tornam importantes para uma

reflexão sobre lar, uma vez que, ao se procurar compreender um conceito, é fundamental que

se busque relacioná-lo ao contexto ao qual se vincula.

2.1 A produção social de espaço e território

O espaço é conceito fundamentalmente dinâmico: seus habitantes são agentes ativos

em sua construção, de forma que evolui instigado pelo movimento do sujeito nele e através

dele, gerando diversidade de ideias e multiplicidade de resultados.36

Anthony Giddens

destaca que o indivíduo vive e atua de acordo com estruturas sociais que possibilitam

manipulações e mudanças. Através das práticas sociais, o sujeito usa as estruturas sociais

para alcançar objetivos, ao mesmo tempo em que as produz, ou seja, cria uma sociedade e ao

mesmo tempo é criado por ela. Portanto, tempo e espaço não são ―simples ambientes de

ação‖,37

mas uma parte integral das ações dos seres vivos com e dentro do mundo. Dessa

forma, nenhum lugar ou espaço pode ser considerado estável e imutável, pois sua estrutura

recebe influências internas e externas que estão sujeitas a transformações e trajetórias que

levam o sujeito a outros lugares.

36

SCHRÖDER, Nicole. Spaces and Places in Motion: Spatial Concepts in Contemporary American Literature.

Tübingen, Germany: GNV, 2006, p. 22. 37

GIDDENS apud SCHRÖDER, 2006, p. 23.

30

Já o lugar, explica Lopes, representa a ocupação do espaço pelas pessoas a partir dos

significados de quem o ocupa, sendo, então, preenchidos por subjetividade. Assim, os

espaços vão se estabelecendo como lugares, constituindo valores que vão se inserindo na

geografia social de um grupo, que passa a percebê-los como sua base.38

Sendo assim, os

lugares somente possuem sentido se forem portadores de uma história, se houver um sentido

para quem neles habita ou algum dia habitou.

Uma vez que o lugar e as pessoas se influenciam mutuamente, fica claro que a

diferenciação entre o que é percebido como eu e como outro na formação da identidade

também desempenha um papel central na sua criação, e influencia também as experiências

de lugar e espaço. Essa influência se torna mais óbvia na construção de espaços como nação

e lar.39

Henri Lefebvre atribui ao espaço a noção de processualidade, acentuando o fato de

que, como produto histórico e social, possui natureza política e ideológica, pelo que se torna

tanto uma ―ferramenta‖, ―um meio de produção‖, assim como um ―meio de controle‖.40

Semelhantemente, Duncan analisa que o espaço nunca é produzido de uma forma ingênua,

inocente ou neutra. De alguma forma, valores, ideologias e normas sociais ali estarão

presentes,41

pois todo lugar é construído através da experiência, percepção, imaginação e

modo de ser das pessoas.

Assim, espaço e lugar têm uma ligação direta com os seus habitantes e são

construídos dentro das práticas e das suas relações sociais, as quais influenciam os sujeitos

que neles habitam. Maurice Halbwachs observa que ―não há grupo nem gênero de atividade

coletiva que não tenha alguma relação com o lugar – ou seja, com uma parte do espaço.‖

Não há memória coletiva que deixe de acontecer em um contexto espacial, e é o fato de que

os sucessivos fatos de uma vida ocorrem dentro de um ambiente material que permite que,

ao voltar os pensamentos a um determinado ambiente, recuperem-se fatos lá vivenciados.

Halbwachs enfatiza: ―É ao espaço, ao nosso espaço [...] que nosso pensamento tem de se

fixar para que essa ou aquela categoria de lembranças reapareça‖.42

Etimologicamente, a palavra território tem a sua origem no latim territorium e deriva

do vocábulo latino terra. Era utilizada pelo sistema jurídico romano dentro do chamado ―jus

38

LOPES, J. J. Reminiscências na paisagem: vozes, discursos e materialidades na configuração das escolas na

produção do espaço brasileiro. In: LOPES J. J.; CLARETO, S.M. (Org.) Espaço e Educação: travesssia e

atravessamentos. Araraquara, JM Editores, 2007, p. 77. 39

SCHRÖDER, 2006, p. 29-30. 40

LEFEBVRE, Henri. The Production of Space. Translated by Donald Nicholson Smith. USA, UK, Australia:

Blackwell Publishing, 2009, p. 26-27. 41

DUNCAN apud SCHRÖDER, 2006, p. 22. 42

HALBWACHS, Maurice. A memória coletiva. Trad. Beatriz Sidou. São Paulo: Centauro, 2006, p. 170.

31

terrendi‖, como o pedaço de terra apropriado dentro dos limites de uma determinada

jurisdição político-administrativa tratados.43

Segundo Friedrich Ratzel, a noção de território

se dá a partir da ideia de habitat, usada na Biologia para delimitação de áreas de domínio de

determinada espécie ou grupo de animais, aparecendo, portanto, como sinônimo de solo e/ou

de ambiente. As relações entre sociedade e território são determinadas pelas necessidades de

habitação e alimentação. A sociedade enraíza-se no território, e esta relação influencia a

natureza do Estado. O território é compreendido como Estado-Nação, a partir do momento

em que há uma organização social para sua defesa.

Assim, o estado e o território têm limites e fronteiras maleáveis. Para o autor, o

território pode existir sem a presença do homem (apolítico) ou com a sua presença e com o

domínio do Estado (político).44

Para Claude Raffestin, ―o espaço é anterior ao território‖, e o

―território se forma a partir do espaço‖. ―Ao se apropriar de um espaço, concreta ou

abstramente, o ator o ‗territorializa‘. Diferentes graus, em momentos e lugares variados,

todos produzem territórios.‖ 45

Rogério Haesbaert destaca três vertentes básicas de acordo com as quais se pode

conceituar território: jurídico-política, como delimitações e controle de poder, especialmente

o de caráter estatal; cultural(ista), de caráter simbólico e identitário, e econômica, na qual se

destaca a perda do território no movimento de re-produção do capital. Assim, o conceito

engloba não só domínio e controle politicamente estruturado, mas também de uma

apropriação resultante da articulação e do exercício do poder dos grupos que o constituem.46

Também Lobato Corrêa emprega o conceito de forma abarcante, assinalando que o termo

não se refere a território apenas como a terra que pertence a alguém: mais do que mera

propriedade, e incorpora a dimensão simbólica e identitária afetiva.47

Dessas três vertentes, a mais enfatizada pelos teóricos é a que o vincula a poder,

acentuando sua produção a partir de relações sociais, econômicas, políticas e culturais.

Souza entende o território como um ―espaço definido e delimitado por e a partir das relações

de poder‖: para a compreensão do território é fundamental saber quem tem o domínio ou

influência e de que forma domina ou influencia esse espaço.48

Enfatizando a natureza

imaterial do espaço, Saquet destaca que é a partir ―do instante em que uma sociedade se

43

RIBAS, Alexandre Domingues; SPOSITO, Eliseu Savério; SAQUET, Marcos Aurélio. Território e

desenvolvimento: diferentes abordagens. Francisco Beltrão: UNIOESTE, 2004, p. 93. 44

RATZEL apud RIBAS, SPOSITO, SAQUET, 2004, p. 79. 45

RAFFENSTIN apud RIBAS, SPOSITO, SAQUET, 2004, p. 80. 46

RIBAS, SPOSITO, SAQUET, 2004, p. 122-123. 47

CORRÊA, R. L. Territotialidade corporação: um exemplo. In: SANTOS, M.; SOUZA, M. A. A.; SILVEIRA,

M. L. (Org.). Território: globalização e fragmentação. São Paulo: Hucitec/Anpur, 1996, p. 252. 48

RIBAS, SPOSITO, SAQUET, 2004, p. 81.

32

apropria dele e começa a estabelecer relações de posse‖ que passa a se formar um território.

Sua população determinará que tipo de relações serão instituídas e que atores sociais terão o

poder sobre esse território. Também definindo território como ―um espaço sobre o qual se

exerce um domínio político, e como tal, um controle do acesso‖, Haesbaert aponta que existe

diferença entre o domínio, que é político, e a apropriação do espaço, que é simbólico-

cultural. É quando se pensam as dimensões política e cultural da sociedade, que se flexibiliza

a noção, enfocando-a como rede de relações sociais, definidas por um limite de identidade

(entre insiders e outsiders).49

Essa diferença entre pertencentes (insiders) e não pertencentes

(ousiders), nós e os outros, torna-se crucial para a análise dos contos de Henfrey, que

remetem a uma sociedade de negros dominados e brancos dominadores.

Ao desenvolver suas reflexões sobre o conceito de território, Haesbaert considera,

também, os conceitos de desterritorialização e reterritorialização, que merecem ser

destacados neste trabalho, uma vez que os contos a serem estudados envolvem diferentes

situações diaspóricas. A produção do espaço envolve tanto a desterritorialização quanto a

reterritorialização, já que, ―na prática proliferam as interseções e as ambiguidades‖: não há

desterritorialização sem que haja uma reterritorialização, pois, no momento em que o vínculo

que une o indivíduo ao território sofre alterações, ocorre o processo de desterritorialização, o

qual pode ser definido como uma quebra das relações do indivíduo, gerando um afastamento

do seu território. Esse processo, que ocasiona a perda de controle das territorialidades

pessoais, coletivas, econômicas e sociais, subentende o processo de reterritorialização, o qual

nem sempre é bem sucedido, como quando o indivíduo se habitua ao novo território, no qual

se torna um agente efetivo.

Esse fato leva a pensar nas consequências da desterritorialização com relação ao

sentimento de pertencimento, outro fator relevante para o estudo dos contos, já que o

processo gera angústias nos desterritorializados, pois têm de reconstruir um novo lar, em

outro lugar. O estudioso é enfático:

Desterritorialização afeta as lealdades de grupo [...] as relações marido esposa e pai-

filho tornam-se ao mesmo tempo politizada e exposta aos traumas da

desterritorialização na medida em que os membros da família reúnem recursos e

negociam seus entendimentos e aspirações comuns em arranjos espaciais às vezes

fraturados [...].50

49

SOUZA apud RIBAS, SPOSITO, SAQUET, 2004, p. 82. 50

APPADURAI apud SOUZA, José Luiz de. Da desterritorialização ao território simbólico: o caminho de uma

sociedade indígena a rumo ao seu território tradicional. Caminhos de Geografia. Revista on-line. Uberlândia, v.

8, n. 23, Edição Especial, p. 77, 2007. Disponível em:

33

Eva Hoffman acentua a natureza plural e fragmentária da experiência da

desterritorialização, ou seja, do ―desligamento do conhecimento, ação, informação e

identidade de um lugar específico ou origem física‖, e destaca como esta frequentemente

remete à condição de entre - lugar do sujeito migrante. Pode constituir-se em experiência de

alienação (um sentimento de não-pertencimento) ou mesmo de liberação (de conceitos e

noções culturais arraigadas e preestabelecidas) dos sujeitos em trânsito, os quais se situam

num contexto espacial específico, que é, contudo, movediço, efêmero e mutante.51

2.2 Lar: enraizamento e (des)pertencimento

Em contraste, um contexto social ao qual se costuma associar a ideia de apego,

enraizamento, é o lugar ao qual se chama de lar. A palavra tem vivido por milhares de anos,

tornando-se semanticamente mais ampla ou mais estreita em línguas diferentes. Embora um

significado seja compartilhado com outras pessoas dentro de um mesmo contexto cultural, a

figura semântica provavelmente irá diferir para cada falante. Stefan Brink considera a

possibilidade de várias conotações em relação a lar, que está associado não a um objeto

concreto, mas a algo mais abstrato.52

Pensando-se lar etimologicamente a partir da vertente indo-germânica, verifica-se

que a palavra tem diferentes cognatos. Formas e significados lexicais encontram-se nas mais

antigas línguas alemãs53

: hãm (Old English) refere-se a conjunto de habitações, vilarejos,

fazendas, casas, etc.; heima (Old High German) designa lar, mundo; hem (Old Saxon)

corresponde ao conceito de lar e heimr (Old Scandinavian) faz menção a habitação, moradia,

lar, mundo.54

Outro significado está associado ao tema ―amor‖, encontrado nas línguas celtas

<http://www.seer.ufu.br/index.php/caminhosdegeografia/article/viewFile/10498/6256>. Acesso em: 23 ago.

2011. 51

HOFFMAN, Eva. Letters of Transit: Reflection of Exile, Identity, Language and Loss. Andre Aciman (Ed.).

New York: The New Press, 1999, p. 55. 52

BRINK, Stefan. Home: The term and the Concept from a Linguistic and Settlement –Historical Viewpoint. In:

BENJAMIN, David N.; STEA, David.; SAILE, David. The Home: Words, Interpretations, Meanings, and

Environments. England, USA: Avebury, 1995, p. 17. 53

Old English, também conhecido como Anglo-Saxon, é uma forma inicial da língua inglesa, falada pelos anglo-

saxões e seus descendentes no território que agora corresponde à Inglaterra e ao sudeste da Escócia entre

meados do século V e o século XI; Old High German (OHGerman) refere-se ao mais antigo estágio da língua

alemã, e cobre o período entre 500 e 1050; Old Saxon, também conhecido como Old Low German, é a mais

antiga forma registrada do Baixo Alemão (Low German), documentdado dos séculos VIII ao XII; Old

Scandinavian pode referir-se ao Proto-Norse, uma língua norte germânica falada entre o III e o VII século, ou ao

Old Norse, falado dos séculos XVIII ao XIV. Middle High German é o termo usado para a forma de alemão que

sucedeu ao OHGerman, e que foi usada entre 1050e 1350. 54

BRINK, 1995, p. 17.

34

antigas: cõim (querido, amado, em Old Irish), estando também relacionado à formação

proto-germânica Haim, heimen (levar para casa; casar, em Middle High German) e hãeman

(ter relações sexuais; casar-se, em Old English), originalmente trazer para casa (a noiva).

Desse modo, as palavras que se associam a lar, desde a antiguidade até a atualidade, e que

são cognatos diretos de lar ou se relacionam a esse vocábulo, transmitem a ideia de habitação

e afeto, ou talvez o afeto pelo lugar de moradia, o lar.55

Para Brink, não há uma explicação etimológica que comprove que se deve relacionar

lar com algum tipo de habitação, isto é, nada impede que lugares tenham as terminações -

heim, -ham, -heim nos seus nomes, como, por exemplo, Trondheim (aprovíncia de Tronder),

Sähem (a fazenda a beira do lago), Stenhem (a fazenda a beira das pedras), o gótico plural

haimos (país) e heimr (moradia, lar, mundo) da OW Scandinavo. Algum tipo de núcleo

semântico em relação à palavra lar e seus cognatos associa-se à área ou lugar onde vive o

sujeito, um lugar para o qual devota afeto e pelo qual mantém uma relação especial ao longo

da vida.56

A palavra lar, Heim, de origem alemã, está próxima de home, de origem inglesa, vindo

a ser quase um homônimo. Embora heim seja gramaticalmente neutra, tem uma forma

feminina, heimat, para a qual a palavra inglesa não é ―pátria mãe‖, ―terra materna‖

(motherland) que consta nos dicionários, mas é, antes, fatherland. A palavra designa a

dimensão pública de lar, associada à pátria de origem. Da mesma raiz, procede Heimweh–

nostalgia. Tanto os ingleses quanto os alemães fazem uma distinção entre Haus und Heim –

casa e lar – que aponta não só para o conjunto dos bens possuídos como para o sentimento de

cidadania pelo lugar. O equivalente em inglês à expressão seria ―hearth and home‖,57

expressão idiomática58

que conota segurança e aconchego.

Ao pensar-se a palavra lar a partir de sua raiz latina, verifica-se que os romanos

costumam dizer domus para ―casa‖ (house), a qual pode ter um significado de

domesticidade, valores relacionados à família, simplicidade, até mesmo paz. Na língua

latina, há ainda outras duas palavras para casa: aedes, algo construído, e mansio, lugar de

descanso, derivado de maneo, que significa ―eu permaneço‖. Esta palavra originou a palavra

francesa Maison, que recebe a tradução de ―casa‖.59

55

BRINK, 1995, p. 19-20. 56

Ibidem, p. 22. 57

RYKWERT, Joseph. House and Home. In: MACK, Arien. Home a Place in the World. New York and

London: New York University Press, 1993, p. 48-49. 58

Hearth and home - ao pé da letra, ―lareira e lar‖. A expressão remete ao conforto do lar e da família. 59

RYKWERT, 1993, p. 48-49.

35

Deve-se ainda considerar o termo latino lar, laris, referente aos deuses protetores da

família e, por extensão, à lareira, local, na cozinha, onde se mantinha o fogo vivo em sua

honra.60

Segundo Holwell, laren é um termo antigo referente à arca da narrativa diluviana,

tendo sido transformado em laris pela troca da vogal em semivogal, e do –n em –s. A palavra

servia também para referência aos antigos arquitas, preservados pela arca. 61

Fica, pois, clara,

a implicação da arca como proteção, lugar de preservação da vida, o que é também patente no

emprego com referência às divindades domésticas dos etruscos e dos latinos, os Lares e os

Penates. Embora diferentes, os Lares e Penates, eram, frequentemente, adorados juntamente

nos santuários domésticos. Os Lares eram os espíritos dos mortos, e os antigos pensavam que

guardavam as casas, encruzilhadas e a cidade; toda a família romana tinha o seu próprio

guardião para garantir que a linhagem familiar não morresse. Os Penates estavam associados

a Vesta, a deusa da lareira. A principal função dos Penates era o de garantir o bem-estar da

família e sua prosperidade; já os Penates publici, serviam como guardiões do Estado e eram

objeto de patriotismo romano. O significado compartilhado de proteção, preservação, calor e

aconchego alimenta ainda hoje o imaginário popular sobre o lar.

Em vez de centrar-se em lar como uma localidade específica, Theano Terkenli opta

por definir o que chama de regiões-lar (home regions). Assinala como, diariamente, o

indivíduo interage com o seu meio ambiente por meio de comportamentos pessoais e

culturais, processo do qual resultam paisagens, lugares e lares que irão se diferenciar de

acordo com seus propósitos e desejos. Esses lugares irão se transformar no que o teórico

grego chama de regiões-lar, porque contém propriedades geográficas únicas que atendem às

necessidades fundamentais do indivíduo e dos grupos, além de permitirem o seu

desenvolvimento no contexto histórico, social, e culturais. Uma vez que o sujeito estabelece

suas geografias de lar através da relação da sua identidade com o mundo, gera diversas noções

de lar, que variam no espaço, tornando-se símbolo de si mesmo ou de sua cultura.

Como um termo profundamente simbólico, lar não pode ser mapeado apenas com

referência exclusivamente espacial, e pode ser percebido como um aspecto do território

emocional humano. Sendo assim, as regiões coletivas e individuais de lugar são

constantemente construídas e desconstruídas, tendo um significado subjetivo quando o

indivíduo lhe atribui significado, e intersubjetivo quando contém sentido para os membros de

60

HOUAISS, Antônio; VILLAR, Mauro de Salles. Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa. Rio de Janeiro:

Objetiva, 2001, p. 1724. 61

HOLWELL, Willian. A Mythological Etymological and Historical Dictionary. Extracted from the Analysis of

Ancient Mythology. London: Printed for C. Dilly, 1793, p. 257.

36

um grupo. Percebe-se, assim, que a concepção de lar pode variar em abrangência, variando da

familiar até a nacional.62

Laura Huttunen chama a atenção para a dimensão coletiva de lar, que pode também se

referir ao ―país de origem‖, ao ―lugar de nascimento‖. Esse é um espaço público marcado por

questões carregadas politicamente de pertencimento, convidando a questões sobre raízes e

memória ligadas a certos locais. Mesmo quando o termo se refere a espaço privado, está

necessariamente relacionado ao espaço público. Este último é claramente politizado nas

discussões de imigração, quando se questiona quem pode considerar um país como lar e exigir

direitos políticos e sociais. Frequentemente nos estudos de migração é discutida a

problemática do relacionamento dos imigrantes com o espaço público do novo país, pois esses

espaços são organizados de acordo com diferentes regimes de força, e cada sujeito reage de

forma diferente, dependendo do seu relacionamento com aquele espaço. Sempre haverá um

poder classificatório (―nós‖ versus ―eles‖) no controle institucional de entrada e residência,

lembrando, especialmente àqueles que são visivelmente diferentes, de que não pertencem ou

que pertencem a um grau inferior.63

Regiões-lar possuem certas qualidades geográficas que as distinguem de outros tipos

de regiões, as quais são provenientes de características distintivas de lar e de seus vínculos

com as pessoas. Terkenli descreve quatro dessas qualidades: a perspectiva de não-lar,

enraizamento, ciclo de vida e dinâmica do apego. Referente à experiência de lar numa

perspectiva de não-lar, o autor assinala que é quando o sujeito está fora ou longe do espaço a

que chama lar que essa noção avulta, para ele, em significado, por se tratar de algo que já

não existe ou que está na iminência de ser perdido. Nesse momento, torna-se mais consciente

do papel dessa instituição na vida e analisa suas qualidades e contribuição em relação ao seu

bem-estar pessoal e psicológico, o que lhe permite uma reavaliação e reorganização do seu

mundo íntimo e de seu passado, presente e futuro. Assim, o conceito é ampliado no

momento em que as pessoas passam a compreender seus relacionamentos para além dos seus

limites, ao construírem sua compreensão geográfica cotidiana do mundo.64

Quanto ao enraizamento, está naturalmente associado ao lar, pois se refere ao

pertencimento do indivíduo a algum lugar. A noção é importante na compreensão de como o

contexto de lar se expande espacialmente quando aumenta a distância de uma pessoa em

relação ao seu lar. Às vezes, o indivíduo não consegue desenvolver um sentimento de lar com

62

TERKENLI, Theano S. Home as a Region. Geographical Review, v. 85, n. 3, p. 324; 327, jul. 1995. 63 HUTTUNEN, Laura. ‗Home‘ and ethnicity in the context of war. European Journal of Cultural Studies, v. 8,

p. 179, 2005. 64

TERKENLI, 1995, p. 328.

37

relação ao lugar onde está vivendo, porque não se identifica pessoalmente com aquele lugar,

isto é, não estabelece relações de afetividade, familiaridade, bem-estar e sociais, ocorrendo

apenas uma continuidade da sua existência.65

Assim, desenvolve, antes, estranhamento e

sensação de não pertencimento àquele lugar; em migrantes, essa percepção frequentemente

desencadeia desejo de retorno a sua terra de origem, pois não encontram pontos de referência.

Em relação ao ciclo da vida, o conceito de lar altera-se com a passagem do tempo e

com a acumulação da idade. É na mãe que o indivíduo encontra o seu primeiro lar; à medida

que cresce, sua curiosidade e conquistas se ampliam, estimulando-o a criar novos lares e a

desejar o seu próprio mundo. Leva consigo os laços familiares e comunitários que foram

anteriormente vividos, estabelecidos e formados. O lar, então, se torna uma projeção do eu,

constituindo o mundo do indivíduo. A pessoa dá forma ao seu lar e também o modifica

devido à entrada de outros indivíduos, em um processo de vida que amplia os horizontes de

lar, até que, na fase final da vida, este começa a diminuir devido à perda das faculdades, à

doença e à morte.66

A noção de que o lar passa a ser mais valorizado à distância, seja física, social, cultural

ou histórica, está presente na quarta qualidade atribuída por Terkenli ao conceito. O estudioso

denomina ―dinâmica de apego‖ ao sentimento vivido pelo indivíduo que se distancia do lar,

mas sente a necessidade de sentir-se protegido num lugar aconchegante e acolhedor, um

refúgio no mundo.

Nesse contexto, o lar pode ser apreendido como uma expressão do eu, criado por seus

habitantes; reflete suas características e desejos. Porém, pode também surgir como sendo um

lugar onde versões alternativas do eu são criadas e estilos de vida são vividos, pois a exclusão

do exterior pode servir como uma proteção das forças restritivas externas, como as normas

sociais. Contudo, o lar pode ser um lugar de limitação e opressão onde o eu tem a

possibilidade de ser severamente reprimido.67

Doreen Massey argumenta que a identidade do lar é baseada na segurança ―of a (false

[...]) stability and an apparently reassuring boundedness‖, e estabelecida ―through negative

counterposition with the Other beyond the boundaries‖. Neste sentido, embora construir o lar

não seja equivalente a criar identidades, ambos estão intimamente entrelaçados, pois se

baseiam no estabelecimento de diferenças.68

65

TERKENLI, 1995, p. 329-330. 66

Ibidem, p. 330-331. 67

SCHRÖDER, 2006, p. 32. 68

MASSEY apud SCHRÖDER, 2006, p. 32. ―de uma falsa [...] estabilidade e um confinamento aparentemente

reconfortante‖, ... ―através da contraposição negativa com o Outro além das fronteiras‖.

38

Schröder chama a atenção para o fato de que, às vezes, lar é visto de uma maneira

estereotipada, romantizada, que omite aspectos como violência. Destaca, ainda, que o lar pode

emergir como um contexto para o exercício da força. Na tentativa de estabelecer a ideia de um

ambiente seguro e estável, é possível idealizá-lo como um lugar de proteção dos perigos,

especialmente em relação à vida moderna.69

O conceito de lar não pode ser avaliado de acordo com um entendimento geral ou

universal: circunstâncias de tempo e espaço devem ser levadas em conta. Os ciganos, por

exemplo, não veem lar como algo estático, definitivamente localizável. Ao contrário, para

nômades, o significado de lar depende muito da localização onde se encontram, além de levar

em conta, também, questões relativas à inclusão/ exclusão, mudança/ estabilidade,

movimento/ flexibilidade.70

Um dos fatores que transforma lugar em lar é o controle sobre o espaço. Desta

maneira, nem toda casa ou abrigo pode ser definida como um lar, pois se o indivíduo não tem

domínio sobre suas fronteiras e entradas, sua qualidade essencial como lar é perdida.71

Construir um lar parece ser um tipo de mapeamento; estabelecer um espaço apropriado e fazê-

lo familiar pode exprimir o desejo de purificá-lo de tudo que é considerado desviante.72

Isso

se verifica tanto na dimensão particular como em seu aspecto público, e está presente, em

ambas as dimensões, nos contos de Henfrey.

O sentimento de estar no lar não exige necessariamente estar em um certo lugar:

não é para todos que um lar está localizado numa certa casa, num certo endereço. Pode estar

associado a pessoas, família, amigos ou a um sentimento específico, podendo ser, para

alguns, certo estado de espírito, a possibilidade de pensar livremente. Esta é uma

característica essencial para lar, além de ser, também, uma forma de mapear o espaço.73

Pensando essa possibilidade, bell hooks acentua a importância do lar como um

espaço de e para um pensamento não restrito:

At times, home is nowhere. At times, one knows only extreme estrangement and

alienation. Then, home is no longer just one place. It is locations. Home is that

place which enables and promotes varied and ever changing perspectives, a place

where one discovers new ways of seeing reality, frontiers of difference.74

69

SCHÖDER, 2006, p. 32. 70

Ibidem, p. 33. 71

DOUGLAS apud HUTTUNEN, 2005, p. 179. 72

SCHRÖDER, 2006, p. 34. 73

Id. Ibid. 74

HOOKS apud SCHRÖDER, 2006, p. 34. Às vezes, o lar não está em nenhum lugar; às vezes, pensado

deforma alienada e indiferente, o lar não passa de localização, demarcação; outras vezes, ainda, é aquele lugar

39

Fica claro que a diferenciação entre o que é percebido como eu e como outro na

formação da identidade também desempenha um papel central nas experiências de lugar e

espaço, mais obviamente na construção de espaços como nação e lar. Esses espaços e lugares

são importantes para a autodefinição e distinção entre quem e o que pertence e quem e o que

deve ser excluído.

Contra essas categorizações binárias e estáticas de mundo, deve-se apresentar uma

compreensão de espaço e lugar como performativo, e como uma interação construída com o

mundo que destaca a possibilidade de mudança. Dessa forma, nenhum lugar ou espaço pode

ser considerado estável e imutável, pois sua estrutura recebe influências internas e externas

que estão sujeitas a transformações e trajetórias que levam o sujeito a outros lugares.

A identidade e a alteridade são produzidas simultaneamente na formação da

localidade e comunidade. Doreen Massey pensa as oposições entre pertencente x excluído

como associadas a um senso progressivo de lugar, que é caracterizado pela mobilidade e

pelo trânsito, no sentido figurado e literal. Os habitantes dos lugares não compartilham com

a mesma ideia de lugar, como também são caracterizados por diferentes relações dentro e

fora desses lugares: cada lugar tem diferentes significados para seus habitantes, dependendo

da história de cada um.75

Para Terkenli, a percepção mais forte de lar geralmente coincide geograficamente com

uma habitação; no momento em que alguém se afasta desse ponto, a compreensão de lar

enfraquece. A própria terra é uma coleção de lares, o lar definitivo em si, porque preenche a

necessidade de refúgio que vai servir de referência ao indivíduo lhe fornecendo uma

autoidentificação com esse lugar. Sendo assim, é importante que esse espaço não oportunize

apenas condição física de sobrevivência, mas ofereça condições sociais e habituais além de

controle sobre esse lugar, para então poder chamá-lo de lar.76

Embora as rotinas diárias nem

sempre aconteçam nos mesmos lugares, elas geralmente se repetem e o indivíduo retorna a

elas porque representam significativas estratégias de sobrevivência. A repetição, portanto, é

um elemento essencial para que o lugar se transforme em lar, servindo como ponto de

referência no tempo, no espaço e na sociedade.

Outra dimensão de lar enfatizada por Terkenli é o seu componente social, que é

essencial devido à necessidade do indivíduo de se relacionar com os outros, validando-o como

que habilita e promove uma variedade de mudanças que levarão o indivíduo a descobrir novas formas de ver a

realidade, as fronteiras de diferença. 75

MASSEY apud SCHRÖDER, 2006, p. 26-27. 76

TERKENLI, 1995, p. 324.

40

um ser humano. Lares pessoais podem estar intimamente ligados e articulados por associações

familiares e comunitárias, e os lares coletivos podem ser delineados pela etnia, nacionalidade,

civismo ou parâmetros ideológicos. Como a ideia de um lar coletivo está relacionada ao

passado e ao futuro, etnicidade e nacionalismo constituem poderosos polos de fixação.77

Pode-se dizer então que uma cidade ou vilarejo tem um valor representativo para as pessoas

desse lugar, o qual lhes transmite valores associados a lar, pois ali se encontram experiências

subjetivas e intersubjetivas do sujeito ou do grupo que são símbolos de si mesmos ou de

culturas. A região coletiva ou individual de lar é passível de ser construída ou desconstruída,

conforme o significado que o indivíduo lhes atribui a elas, vindo a ser um ponto de referência

que o sujeito poderá levar consigo.78

Por outro lado, como Jennie Germann Motz observa, o lar é sempre uma presença

ausente nas narrativas de viagem e mobilidade. Estudos etnográficos e entrevistas com

migrantes e viajantes indicam que o termo tem um significado material e emocional, até para

aquelas pessoas que estão em movimento. Nessa situação, verifica-se uma complicada

interseção entre lar e mobilidade, negociando pertencimento através de várias mobilidades de

interseção de pessoas, tecnologias, culturas, imagens e objetos. Num mundo onde lar não

pode ser mais visto como algo estático, um local fixo, a habitação envolve um complexo de

relações entre pertencimento e viagem. O lar se torna um significante não apenas para a

estabilidade normativa de um lugar em particular ou para o sentimento que leva consigo de

conforto, segurança, familiaridade e controle, mas também uma forma de ser e pertencer no

mundo como um todo.79

Ainda para a autora, domicílio apresenta um duplo significado: habitação e lar, o qual

permite pensar lar como algo imóvel no fluxo e no tempo. A autora usa a metáfora domicílio

global, devido à rejeição da associação de mobilidade com desenraizamento de lar com

êxtase, fixação e melancolia. A forma de lar é modulada pela mobilidade e ao mesmo tempo a

de mobilidade é modulada pelos sinais de ligação. Sarah Ahmed insiste que o movimento

sempre envolve a formação dos lares como espaços complexos e contingentes de

povoamento.80

A noção de domicílio global dá ênfase à dimensão cosmopolita para a interseção entre

habitação e viagem. Se lar é definido através de diversos registros espaciais, tais como espaço

77

TERKENLI, 1995, p. 326. 78

Ibidem, p. 327. 79

MOTZ, Jennie Germann. Home and Mobility in Narratives of Round-the-World Travel. Space and Culture, v.

11, n. 4, p. 325-342, nov. 2008, p. 326-327. 80

Ibidem, p. 327.

41

doméstico, vizinhança ou nação, como Morley sugere, então os sujeitos que viajam pelo

mundo estendem essa geografia de lar para o seu globo, revindicando o mundo como um lar.

Sua figura cosmopolita é emblemática, móvel e individual, aprecia as diferenças que encontra

e está aberta a experiências e outras culturas, mas sempre estando de passagem. Nessa

perspectiva, ao invés de distancimento, o cosmopolitanismo é uma realidade de (re)ligação, de

múltiplas ligações ou diz respeito à distância a um estilo de residência na terra que envolve

complexos e múltiplos pertencimentos.81

Pode-se contrastar a experiência desses viajantes do mundo com a mobilidade dos

migrantes diaspóricos, como um paralelo provocativo que destaca os suportes políticos de

sentimento de lar em termos de natureza privilegiada e voluntária dos viajantes pelo mundo.

Estes geralmente viajam durante diversos meses e anos, podendo trabalhar durante esse

período. Eles viajam, principalmente, por prazer; são mochileiros ou viajantes que possuem

um orçamento independente. Sua experiência é temporária, voluntária, têm uma data

definitiva e usualmente uma passagem aérea para retornar ao lar.

Ao contrário do migrante, que se alimenta do desejo de uma pátria imaginada onde se

possa fixar, o viajante não apenas deseja ir para casa, como, na maior parte das vezes, sabe

que retornará para o seu lar no final da jornada; tem controle em relação ao seu itinerário e o

padrão do mesmo. Já migrantes e refugiados, deslocados sob a condição religiosa, opressão

política ou econômica, viajam e se tornam sem pátria voluntariamente. Portanto, seus esforços

no sentido de sentirem-se em casa podem não estar carregados com o mesmo senso de

urgência ou constrangimento e pelos mesmos obstáculos de outros grupos móveis.

Além disso, os viajantes não expressam necessariamente um desejo de se estabelecer

nos lugares que visitam, ao contrário dos migrantes que desejam um lar, que tentam se

desprender de suas raízes e construir espaços de pertencimento num novo país lar. Têm um

tipo de ligação móvel que os permite sentir-se em casa em muitos lugares. Mas eles não

fazem o seu lar em outro lugar, mas sim, usam de estratégias para se sentirem em casa em

qualquer lugar ou em todo lugar.82

Castles S. e Davidson A. expõem que, com os grupos

migrantes, no entanto, os esforços dos viajantes em sentir o lar em algum lugar depende de

alguns atributos fundamentais de lar como familiaridade, segurança, comunidade, assim como

continuidade e controle, levando a associar lar com êxtase, o que significa que algo se torna

familiar seguro e contínuo por ainda permanecer ou por não mudar.83

81

ROBBIN apud MOTZ, 2008, p. 328. 82

MOTZ, 2008, p. 329. 83

CASTLES, DAVIDSON apud MOTZ, 2008, p. 329.

42

Nas histórias contadas por viajantes, o lar é evocado como uma construção metafórica

de diferentes formas e por vezes contraditórias, como os viajantes saem, desejam, representam

e retornam ao lar. A narrativa clássica de viagens tem geralmente como tema o lar

concentrado em descrições vividas dos estrangeiros, dos encontros com a alteridade e de lidar

com as dores e prazeres do deslocamento. O lar é visto como o lugar de onde a viagem

começa e onde a viagem termina, é o local para onde o viajante retorna, isto é, o lar é o ponto

de partida e de retorno. Não se refere apenas a um lugar que foi deixado para trás, mas

também a uma coleção de práticas, objetos, rituais e emoções portáteis que fazem sentir-se em

casa, uma forma transportável de ligação e pertencimento. Em outras palavras, lar não é

apenas um lugar, mas também um processo de padrões regulares e conexões sociais que

podem ser realizadas e reiteradas mesmo quando viajando.

Mesmo em face do deslocamento, lar continua a ser o local físico e emocional de

pertencimento para os que estão na viagem, se torna uma fuga para o lar e não do lar.

Portanto, nas interseções da dialética clássica entre lar e distância, há narrativas que

reconfiguram mobilidade como lar. Em alguns dos contos analisados na sequência deste

estudo, a perspectiva de lar é o ponto de origem e também de retorno após a experiência de

exílio. Em todos, porém, a ideia de lar está fortemente ligada a pertencimento, funcionando

também como referente para a construção identitária.

2.3 A experiência vivida do lar e a memória

Se o lar está embutido nas representações corpóreas do viajante, então pode ser levado

com o corpo do viajante: mesmo quando um viajante deixa o seu lar, o lar não deixa o

viajante. Há várias formas de carregar o lar, por exemplo, gestos, posturas e rotinas diárias.

Pelo engajamento em algumas das rotinas, o sujeito pode fazer o lar, pois cria o senso de

continuidade no contexto do deslocamento e estranhamento. Se o lar é evocado através de

sentimentos de familiaridade, então a realização dos mesmos rituais, embora em lugares

diferentes, permite que a família sinta-se em casa ou no seu lar mesmo quando distante dele.84

Essa complexidade do termo lar aponta para um imbricamento que envolve elementos

de experiências vividas, relacionando-se, assim, com a noção de memória, definida por Émile

Durkheim como sendo a condutora de nossas vidas. Lembrar do passado é trazer à memória

―os resíduos deixados por nossa vida anterior, [...] os hábitos contraídos, os preconceitos, as

84

MOTZ, 2008, p. 333.

43

tendências que nos movem sem que disso nos apercebamos [...] tudo aquilo que constitui

nossa característica moral.‖85

Entretanto, não significa que essas reproduções do passado não possam sofrer

modificações, estando a memória, portanto, em um processo contínuo de reconstrução.

Durkheim introduz a questão da atualização da memória, isto é: está associada a um tempo

passado, mas é no presente e pelos estímulos desse tempo presente que ela é solicitada. Além

disso, mesmo que novas representações não lhes sejam introduzidas, a percepção de outras

relações com as já existentes torna a memória continuamente reconstruída, pois ―qualquer

representação, no momento em que se produz, afeta, além dos órgãos, o próprio espírito, isto

é, as representações presentes e passadas que o constituem desde que se admita como nós, que

as representações passadas subsistem conosco‖.86

Ainda esse autor destaca que ―a vida

representativa [...] não é formada de átomos separados uns dos outros; é um todo contínuo, no

qual todas as partes se interpenetram‖.87

É através da memória que se evoca o passado e que se mantêm as lembranças vivas, as

quais são o produto de vivências individuais ou grupais, podendo ser reconstituídas através

das imagens que constituem representações significativas para o indivíduo. Faz-se

importante mencionar o pensamento de Maurice Halbwachs, que estabelece uma ligação

entre memória e identidade. Assinala que a memória se apoia sobre o passado vivido; de

acordo com o autor, a memória individual existe sempre a partir de uma memória coletiva,

visto que as lembranças são constituídas no interior de um grupo.88

São as lembranças que mantêm o apego afetivo com a comunidade vivida. ―Esquecer

um período de sua vida é perder contato com aqueles que então nos rodearam.‖89

A

lembrança, para Halbwachs, é reconhecimento e reconstrução, e ambos dependem da

existência de um grupo de referência, tendo em vista que as lembranças retomam relações

sociais e não apenas ideias ou sentimentos isolados sendo construídas a partir de um

fundamento comum de dados e noções compartilhadas.90

Toda memória coletiva acontece num contexto espacial e não é possível retomar o

passado se ele não se mantiver conservado no ambiente material ocupado pelo indivíduo. O

pensamento deve estar fixado no espaço para que as lembranças possam reaparecer, uma vez

85

DURKHEIM, 1970, p. 20. 86

DURKHEIM, Emile. Representações individuais e representações coletivas. In: ______. Sociologia e

filosofia. 2. ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária,1970, p. 31. 87

Ibidem, p. 32. 88

HALBWACHS, 2006, p. 41-43. 89

Ibidem, p. 32. 90

Ibidem, p. 33-34.

44

que todo o grupo ou atividade coletiva tem alguma relação com o lugar, com uma parte do

espaço.91

Os objetos materiais com que o indivíduo está em contato diário oferecem uma

imagem de permanência e estabilidade e essa estabilidade passa uma ilusão de imutabilidade,

o que facilita a fixação das lembranças, e sua recuperação no presente.92

O espaço ocupado

pelo indivíduo, ao qual tem acesso e onde estão fixados os pensamentos do passado, facilita a

recuperação do passado pela memória. É, pois, uma realidade que dura, onde a memória se

conserva.93

Para Michael Pollak, a memória, fenômeno construído social e individualmente, é

seletiva, pois nem tudo fica gravado, registrado. É em parte herdada, e não se refere apenas à

vida física da pessoa, podendo sofrer alterações no momento em que ela é articulada, em que

ela está sendo expressa. Quando se trata de memória herdada, há uma ligação entre memória

e o sentimento de identidade, visto aqui de uma maneira superficial no sentido da imagem de

si, para si e para os outros. Portanto,

a memória é um elemento constituinte do sentimento de identidade, tanto

individual quanto coletiva, na medida em que ela é um fator importante do

sentimento de continuidade e de coerência de uma pessoa ou de um grupo em

reconstrução de si.94

Portanto, na memória estão guardados momentos que, de certa forma, orientam e

fazem parte do dia-a-dia do sujeito, dando a sensação de pertencimento e/ou de

estranhamento nas suas relações. Exerce uma poderosa influência na construção do lar, pois

através dela é possível retornar ao passado, onde estão guardados, junto à memória espacial,

as relações sociais e afetivas vividas pelo indivíduo, as quais servirão como pontos de

referência para que o lugar se torne significativo enquanto lar.

Para que haja uma compreensão e realização da análise dos contos de June Henfrey, as

concepções de lar, território, pertencimento e memória são fundamentais, pois esses conceitos

estão relacionados à vida dos personagens. Como exposto, o lar pode ser estabelecido como

um espaço imaginado, em vez de físico. A memória pode ser constituída através das raízes e

das lembranças, levando a um desejo de pertencimento. Todos esses fatores exercem um

papel no que se refere a pertencimento, e a conceitos de lar que essas personagens constroem

ao longo da narrativa.

91

HALBWACHS, 2006, p. 170-171. 92

Ibidem, p. 189. 93

Ibidem, p. 170. 94

POLLAK, Michael. Memória e identidade social. Revista Estudos Históricos, Rio de Janeiro, v. 5, n. 10, 1992,

p. 202.

45

3 ANÁLISE TEXTUAL: A (DES)CONSTRUÇÃO DO CONCEITO DE LAR

Abandonamos a terra e embarcamos. Queimamos nossas pontes atrás de nós – na

verdade, fomos mais longe e destruímos a terra atrás de nós. Agora, barquinho,

cuidado! Ao seu lado está o oceano: por certo ele nem sempre ruge e, às vezes, ele

se esparrama como seda e ouro e devaneios de afabilidade. Mas horas virão em que

você perceberá que ele é infinito e que não há nada mais atemorizante do que o

infinito. Ah, o pobre pássaro que se sentia livre agora se choca contra as paredes

dessa gaiola! Desgraça, quando você sente saudade da terra como se ela houvesse

oferecido mais liberdade – e não há mais nenhuma “terra”.

Friedrich Nietzsche, A gaia ciência.

The body is the place of captivity. The Black body is situated as a sign of particular

cultural and political meanings in the Diaspora. All of these meanings return to the

Door of No Return – as if those leaping bodies, those prostrate bodies, those bodies

made to dance and then to work, those bodies curdling under the singing of whips,

those bodies cursed, those bodies valued, those bodies remain curved in these

attitudes. They remain fixed in the ether of history. They leap onto the backs of the

contemporary – they cleave not only to the collective and acquired memories of

their descendants but also to the collective and acquired memories of the other. We

all enter those bodies.

Dione Brand. A Map to the Door of no Return: Notes to Belonging.

3.1 O período escravocrata

3.1.1 Love Trouble

O conto ―Love Trouble‖ tem como protagonista a afrodescendente Sarah, que vive

com sua avó, Rose, em uma fazenda em Barbados, no Caribe, onde nasce e cresce, numa

época posterior à alforria. Os pais de Rose eram escravos, mas ela ganha a liberdade quando

jovem. Nessa época, já tinha filhos pequenos, entre os quais uma que se tornaria a mãe de

Sarah.

Rose mantém bem viva em sua mente a terra natal do pai. Volta a sua imaginação para

a África, de onde os seus ancestrais foram sequestrados e transportados. Embora nunca tenha

tido a oportunidade de conhecê-la, as histórias contadas pelo pai acerca da terra onde passou

seus primeiros anos, e a convivência com ele e os demais membros de sua comunidade negra,

foram suficientes para que se orgulhasse da sua herança cultural. O modo como Rose e, mais

tarde, Sarah partilham a memória de fatos que não vivenciaram pessoalmente recorda a

distinção que faz Halbwachs sobre memória pessoal e memória histórica.

46

De acordo com Maurice Halbwachs, a memória não está isolada e fechada. Para

evocar o seu passado, o indivíduo recorre às lembranças dos outros e se transporta a pontos de

referência que existem fora de si, determinados pela sociedade. A memória individual não

existe sem esses instrumentos, que são as palavras e as ideias que o indivíduo toma

emprestado de seu meio. Desse modo, enquanto indivíduo, o que se recorda com mais

facilidade está condicionado ao fato de pertencer a um grupo. Na memória, o sujeito mantém

os valores e solidifica os laços afetivos existentes entre os membros de um grupo, material e

mentalmente identificado no espaço e no tempo.

O indivíduo, muitas vezes, não viveu em determinada época, porém recebe suas

influências por fazer parte de um grupo social que viveu tal época, através do contato, por

meio de imagens e pelas lembranças que são reconstruídas pelo grupo social em que vive.

Assim, a história de que nossa memória se alimenta não é a história aprendida, mas a história

vivida.95

Rose costuma falar para a neta sobre suas origens. Em sua companhia, contempla o

Atlântico e lembra como seu pai, o bisavô de Sarah, veio em um barco para aquela ilha. Ele

não gostava muito de falar sobre isso, porque essas lembranças faziam-no sentir ao mesmo

tempo frio, calor, e fraqueza. Enfatizava, com orgulho, que ele não tinha nascido na ilha,

portanto, não nascera escravo: na África, seu avô era um homem livre. Entretanto, Rose e sua

mãe nascem na ilha, na Great Hope Plantation e de lá nunca saem. Diante disso, a África

está na memória de Rose e de sua mãe, respectivamente avó e bisavó de Sarah, por meio das

histórias e lembranças contadas pelo avô de Sarah. A memória da África para Rose não é uma

memória diretamente vivida, mas corresponde, antes, à ―história vivida‖.

O avô de Rose – bisavô de Sarah – tem sensações desagradáveis ao lembrar-se da

viagem pelo oceano, porque vem à memória toda aquela triste imagem de sofrimento, fome,

violência que os negros passaram durante a passagem. A alusão aos navios negreiros e,

consequentemente, à migração forçada que levou à escravidão, traz à mente o pensamento de

Stuart Hall, que recorda como o Caribe nasceu de dentro e através da violência. ―A via para a

nossa modernidade‖, o autor acentua, ―está marcada pela conquista, expropriação, genocídio,

escravidão, pelo sistema de engenho e pela longa tutela da dependência colonial‖.96

Ao contar que nunca viveu em outro lugar, apenas na fazenda, e revelar seu grande

desejo em conhecer a África, expressando ainda sua convicção de que quando morrer é para

lá que seu espírito irá, Rose deixa claramente perceptível seu orgulho pelas suas origens,

95

HALBWACHS, 2006, p. 53; 77- 80. 96

HALL, 2009, p. 30.

47

assim como sua propensão afiliativa para com a África e sua tentativa de desenvolver na neta

esses valores. Além disso, percebe-se a construção da África como lar. O lar torna-se um

significante não apenas por representar um lugar onde se relacione familiaridade, segurança,

conforto e controle, mas um lugar onde se possa ser e se sentir pertencente no mundo. Embora

nunca tivesse estado na África, Rose sente-se daquele lugar, pois lá estão suas origens e sua

identidade cultural, e não na fazenda dos brancos, onde viveu a escravidão.

Por outro lado, a imagem de Rose contemplando o Atlântico leva à percepção de

fronteira, isto é, há uma divisão de culturas, nações, comunidades. O Atlântico divide a

cultura do branco e a cultura do negro, o que leva Rose à sensação de ―não estar no lugar‖,

que localiza do outro lado, na África, em relação à qual, mesmo sem conhecer, sente forte elo

de ligação.

A adoção de uma concepção fechada de tribo, diáspora e pátria pode levar a um

conceito essencialista de diáspora. Em tais contextos, como o exemplificado pelo comentário

de Hall acerca da formação do eu coletivo dos povos do Caribe, identidade cultural

corresponde a ―estar primordialmente em contato com um núcleo imutável e atemporal,

ligando ao passado o futuro e o presente numa linha ininterrupta‖.97

Este ―cordão umbilical‖,

baseado na fidelidade às origens, equivale ao conceito de ―tradição‖. Remete a uma suposta

―autenticidade‖, sendo, portanto, um mito; como Hall ressalta, todo mito tem o potencial ―de

moldar nossos imaginários, influenciar nossas ações, conferir significado às nossas vidas e dar

sentido à nossa história‖.98

Sendo assim, Rose criou um ―mito‖ em relação à África.

Sarah sempre guarda em sua memória as histórias contadas pela avó. Sabe que ela

nascera escrava e que obtivera sua liberdade quando ainda era uma jovem mulher, com seus

quatro filhos, dentre eles a sua mãe, os quais não eram mais do que bebês. Para Sarah, sua avó

viveu numa época interessante e lhe contava com entusiasmo da rebelião, quando um escravo

chamado Bussa e outro chamado Jackey, juntamente com a empregada preta da casa, Nanny,

organizaram grupos de escravos para fazerem um levante e se tornarem livres. Dessa rebelião,

participou o pai de Rose; desapontado com o fracasso da rebelião, insistia que deveriam ter

proclamado a liberdade com suas próprias mãos, não esperando que ela lhes fosse dada.

O conto remete a líderes negros que de fato existiram, Bussa e Nanny. O líder Bussa

deu origem a uma rebelião eclodida em Barbados em 14 de abril de 1816, domingo de Páscoa,

motivo pelo qual é também conhecida como Easter Rebellion (―Rebelião da Páscoa‖). É

considerada a primeira grande revolta escrava no Caribe, e envolveu aproximadamente mil

97

HALL, 2009, p. 29. 98

Ibidem, p. 29.

48

insurretos, dos quais 140 foram executados e 123 deportados.99

O impacto dessa rebelião foi

tão grande que levou a reformas que suavizaram o tratamento a que eram submetidos os

escravos, e em 1825 a Lei de Emancipação foi promulgada, reconhecendo três direitos aos

escravos: 1) o direito à propriedade; 2) o direito de testemunhar em todos os processos

judiciais; 3) redução de taxas cobradas por alforria, que era cobrada dos proprietários que

emancipavam seus escravos.100

Bussa (também gravado como Bussa, Busso ou Bussoe) nasceu na África, mas foi

capturado e levado para Barbados para trabalhar como escravo na plantação de Bayleys, na

paróquia do sul de São Filipe. Era um escravo doméstico, categoria de escravos que se

considerava acima da dos que trabalhavam no campo; alguns chegavam a delatar planos de

rebeliões a seus senhores a fim de serem favorecidos. Bussa, com sua posição privilegiada,

ajudou a planejar com meses de antecedência a rebelião. Na noite de Sexta-Feira Santa, 12 de

abril de 1816, os últimos preparativos foram feitos. Nesta reunião, foi decidido que um

mulato escravo, Washington Francklyn (sic), deveria se tornar o governador da ilha. Na

manhã do domingo, 14 de abril de 1816, Bussa levou cerca de 400 escravos aos canaviais

para incendiá-los. Os fazendeiros brancos foram totalmente pegos de surpresa, e os escravos

lutaram bravamente contra as tropas da Primeira West Índia. A rebelião se alastrou de fazenda

em fazenda até cerca de metade da ilha. Levou quatro dias para as autoridades retomarem o

controle. Bussa foi morto na batalha e os líderes foram executados. Embora a rebelião

acabasse por fracassar, nunca foi esquecida. Em 1985, mais de um século depois, a Estátua da

Emancipação foi erguida na rotunda em Haggatt Hall, St Michael. Em 1999, Bussa foi

nomeado como um dos heróis nacionais de Barbados.101

A outra figura história a que faz referência o conto, ―Nanny‖, incentivou a formação

de uma comunidade de escravos fugitivos, The Maroons of Jamaica. O termo maroon deriva

provavelmente da palavra cimarróm do espanhol – que literalmente significa ―vivendo no

topo das montanhas‖ – aplicada, pela primeira vez, com referência ao lugar usado para fugir

dos animais que retornavam da selva. O termo passou a se referir às comunidades de escravos

fugitivos.102

Quando os britânicos invadiram a Jamaica em 1655, 1500 africanos que tinham

sido escravizados pelos espanhóis, vindos de Akan, da África ocidental, fugiram para as áreas

99

LOPES, Nei. Enciclopédia brasileira da diáspora africana. São Paulo: Selo Negro, 2004, p. 146. 100

THE HISTORY of slavery in Barbados. In: FUN Barbados. s.d. Disponível Em:

<http://www.funbarbados.com/ourisland/history/slavery.cfm>. Acesso em: 08 jul. 2011. 101

BUSSA. Caribbean History. In: ITZCARIBBEAN.COM. 2011. Disponível em:

<http://www.itzcaribbean.com/history_barbados_bussa.php>. Acesso em: 08 jul. 2011. 102

RESISTENCE and Rebellion. In: UNDERSTANDING Slavery Initiative. Disponível em:

<http://www.understandingslavery.com/index.php?option=com_content&view=article&id=310&Itemid=222>.

Acesso em: 26 ago. 2011.

49

montanhosas da ilha, e outros fugitivos se juntaram a eles. Durante 150 anos, essas

comunidades escaparam de capturas e participaram de guerrilhas contra os britânicos

proprietários de plantations, libertando os escravos e oferecendo abrigo a eles quando faziam

estragos nas plantações e nas propriedades. Os dois principais grupos eram Trelawney e

Windward Maroons; este último, liderado pela rainha Nanny. Eles eram considerados

autossuficientes, bem organizados, habilidosos para a caça e bons lutadores, o que dificultava

aos britânicos derrotá-los.

Nanny tornou-se símbolo de força e unidade para o seu povo, possuindo a

característica de guerreira dos seus ancestrais Asante, ou Ashanti. Embora seja considerada

uma heroína nacional na Jamaica, é difícil estabelecer com certeza fatos históricos sobre essa

figura lendária, e não é certo se nasceu na África ou na Jamaica, escrava ou livre. Há

historiadores que sugerem mesmo ser possível que tenha havido várias líderes femininas

importantes que ficaram conhecidas coletivamente como Nanny. Outras fontes dão como

certo o fato de que Nanny, juntamente com cinco irmãos que escaparam da escravidão,

aportou à Jamaica, onde controlou um povoado nas Blue Mountains chamado Nanny Town,

que liderou de forma excepcional. Foi necessário aos ingleses seis anos de luta – 1728 a 1734-

para a tomada de Nanny Town. 103

No conto ―Love Trouble‖, às memórias da rebelião de Bussa segue-se o relato da

abolição, ou como Rose descreve, o tempo em que a liberdade foi concedida. Contudo, como

Rose ressalva, os senhores continuavam com o poder, já que havia pouco trabalho fora da

fazenda e o pagamento era ruim, insuficiente para comprar alimentos e roupas. Essa situação

leva os mais jovens a deixarem a colônia; os que ficam têm permissão de continuarem

vivendo na antiga senzala. Mas como aquele lugar é próximo demais da Casa Grande, o que

lhes lembra a época da escravidão, decidem colocar alguns barracos em um pedaço de terra

desocupada próximo a uma nascente. Mais tarde, o senhor e o seu procurador informam aos

negros que passariam a ser arrendatários da fazenda e, portanto, ser-lhes-ia descontado do

salário o aluguel do terreno.

A libertação dos escravos deveria ter-lhes assegurado condições reais de liberdade e

cidadania, mas o que ocorreu foi a concentração de poderes sociais e políticos nas mãos de

uma elite agrária, que continuava a oprimir a população desprovida de recursos. Os grandes

senhores de terras continuavam a ser os maiores beneficiários, perpetuando seu domínio.

103

RESISTANCE and Rebellion. Nanny and the Maroons. In: UNDERSTANDING Slavery. s.d. Disponível em:

<www.understandingslavery.com>. Acesso em: 08 jul. 2011.

50

Outro motivo que leva Sarah a pensar que gostaria de ter vivido à época em que sua

avó era jovem é o forte sentimento comunitário que une a população negra. Sua avó orgulha-

se em contar como as pessoas se ajudavam, trabalhavam em grupos para construir suas casas;

havia sempre alguém para cuidar das crianças menores enquanto as mães trabalhavam, e os

idosos eram bem tratados. Entre eles, reinava o espírito de solidariedade, em contraste à época

em que Sarah vive em que se percebe gradual perda do senso comunitário.

Essas histórias sobre o passado da sua avó Rose estão sendo rememoradas ao início do

conto, enquanto a jovem olha a paisagem, esperando pelo seu namorado, Dolphus, que pesca

em um dos barcos, com o seu tio e primos. Sarah e Dolphus pretendem casar assim que ele se

tornar proprietário de um dos barcos pesqueiros. Conhecem-se desde criança; todos da aldeia

aprovam o relacionamento e lhes dão as bênçãos em voz alta. Como Hall observa, as

comunidades preservam a manutenção das identidades racializadas e o fator da ―negritude‖ é

decisivo para a identidade da terceira geração de afro-caribenhos.104

A manutenção de

identidade racializada, étnico-cultural, como fator de coesão grupal, é bem explícita no conto:

embora com tarefas bem definidas de acordo com o gênero - os homens pescavam juntos, as

mulheres, juntas, esperavam os homens na praia, cuidavam dos filhos e da casa – a

comunidade é unida e declaradamente não desejam a presença do branco, como expresso na

advertência de Rose à Sarah de que red niggers são indesejáveis. Red nigger ou backra-

nigger refer-se à pessoa de pele clara, de ascendência mista, fruto da união de preto e branco,

que é desprezada.105

Enquanto Rose observa os pescadores, Johnny Bishop, o proprietário da fazenda,

observa-a da mais alta janela do presbitério, onde se recupera de uma fratura causada por

queda do cavalo num domingo pela manhã, após a igreja. Levado ao presbitério, lá permanece

por conselho do médico, que o recomenda a não sair até que a perna melhore. A esposa visita-

o frequentemente e, quando não pode, manda-lhe seus alimentos favoritos, geralmente através

de Sarah, que trabalha com Ada, a mais velha cozinheira da casa da fazenda. Assim, Bishop,

que já tinha visto a moça nos pátios da fazenda e sabe vagamente quem ela é, começa a

prestar muita atenção na jovem negra: ela é mais alta que a média, move-se com descuidada

graça, é magra, mas iria arredondar-se logo que começasse a ter filhos, no entanto, evitaria a

obesidade. Imediatamente vem à sua mente, com uma onda de culpa, a imagem da sua esposa

Bessie: gordinha, tão cuidadosa em evitar o sol com medo de ficar com a pele vermelha ou

áspera; uma mulher alegre que trata os empregados muito bem.

104

HALL, 2009, p. 63. 105

ALLSOPP, Richard. Dictionary of Caribbean English Usage. USA: Oxford University Press, 1996, p. 61.

51

Sonia Maria Giacomini (1988) registra a permanente oposição entre as figuras das

mulheres escravas e a das mulheres brancas. Estas eram descritas como ―gordas, nédias,

flácidas‖, enquanto as escravas possuíam ―boas coxas, bons dentes, peitos salientes‖, criando,

assim, uma imagem de que um corpo era feito para a inércia, e outro para a ação. O corpo das

mulheres brancas marca a sua função social; a agilidade e elasticidade das mulheres negras

indicam o seu lugar na sociedade. A implicação é de que as mulheres escravas eram,

naturalmente, provedoras de satisfação sexual aos seus senhores (os patriarcas e seus filhos),

pois seu corpo era percebido como conducente a tal atividade. A mulher negra/escrava torna-

se objeto sexual do branco, ao mesmo tempo em que lhe é negada a possibilidade de relações

familiares. Segundo Giacomini, criou-se uma classificação entre a mulher branca e a negra:

―Senhoras, mães, castas, puras e brancas contrapõem-se a escravas, infanticidas, sensuais,

lascivas, imorais, sem religião e negras‖.106

Embora Giacomini descreva o contexto das

relações escravocratas no Brasil, a situação parece ajustar-se, também, à situação descrita

nesse conto ambientado em Barbados.

Quando o fazendeiro retorna à fazenda, passa a observar Sarah e, para se aproximar

dela, começa a ir até o pátio da igreja, onde ela costuma ir quando procura por tranquilidade.

Observando a paisagem, percebe que há pessoas brancas pobres morando naquela região e se

lembra da sua família, que lá tinha começado. O bisavô de Bishop foi capataz de Clark e se

casou com sua sobrinha que, por ser a parente mais próxima do dono da terra, herdou a

fazenda Great Hope. Os Bishops prosperaram rapidamente e, por ocasião da rebelião de

Bussa, já figuravam entre as famílias de elite da ilha, não mais denunciando suas origens

Backra; à época em que Johnny Bishop vive, poucos sabem a origem pobre dessa família,

agora tão influente.

A palavra ―backra‖ ou ―buckra‖, de origem africana, é encontrada em muitos dialetos

indianos do Ocidente, referindo-se ao homem branco, não sendo, provavelmente, pejorativa.

Porém, em Barbados, refere-se, de uma forma desprezível, aos brancos pobres, geralmente

nas frases ―pobres backra‖ ou ―Backra Johnnie‖, ou simplesmente abreviada através das

iniciais ―PBJ‖.107

Em Barbados, o ―Backra Johnnie‖ ou ―Backra Jonny‖ era aquele que usava

as pessoas para atingir suas ambições, para chegar ao topo. Pode-se associar o nome do patrão

da fazenda, Johnny, com essa definição.

106

GIACOMINI, Sonia Maria. Mulher e escrava: uma introdução ao estudo da mulher negra no Brasil.

Petrópolis, RJ: Vozes, 1988, p. 76-77. 107

WILTSHIRE, Ernest M. CARIBBEAN-L Archives. Jan. 2000. Disponível em:

<http://archiver.rootsweb.ancestry.com/th/read/CARIBBEAN/2000-01/0947707012>. Acesso em: 30 ago. 2011.

52

Quando Sarah encontra Johnny contemplando o mar, percebe que começa uma paixão

ardente, diferente do seu sentimento por Dolphus. Percebe também que nunca mais pensaria

novamente em Johnny Bishop como o patrão. Fica evidente a forte atração entre a mulher

negra e o homem branco, o que leva Sarah a se desinteressar por seu namorado.

Na tarde seguinte, quando se encontram novamente, ao observar o oceano, Bishop diz

que barcos trouxeram os antepassados de ambos para Barbados: ―I look out at the ocean and I

thik of all the ships which have brought people to this place. Your people, my people‖.108

Sarah, contudo, mostra o seu descontentamento, comentando que o povo dele teve mais sorte,

pois receberam o que havia de melhor, o dinheiro, enquanto o dela ficou com recebeu apenas

o suor. Ele então lança- lhe um olhar e promete tomar providências para que ela não precise

mais transpirar. Ao fazer menção aos barcos e tentar igualar-se ao povo de Sarah, Johnny

recorda sua origem humilde, talvez como uma forma de seduzi-la ou de mostrar que existe

afinidade entre eles.

O discurso colonial submeteu milhões de pessoas a uma cultura considerada superior,

além de estar impregnado pela ideologia imperial e pela mentalidade sexista, na qual o termo

homem e seus derivados incluíam também a mulher, que era vista como inferior, um ser sem

voz e subalterno, destinada ao silêncio da reprodução e às lides caseiras, à sombra da vida

doméstica.109

Dessa forma, nas sociedades coloniais, a mulher foi duplamente colonizada.

Segundo Bonnici, ―a dupla colonização é a subjugação da mulher nas colônias, objeto do

poder imperial em geral e da opressão patriarcal colonial e doméstica‖.110

A ideologia da

política colonial era usufruir o corpo feminino, assim como as riquezas naturais da terra; dessa

forma, o corpo da mulher constitui-se em representação etonímica da terra colonizada.111

Nesse contexto, a mulher africana foi representada como passiva, domesticada, vítima de todo

tipo de preconceito e opressão.

Por outro lado, divulgou-se o estereótipo da sexualidade sobre a mulher negra –

sensual, pervertida sexualmente -, que permanece mesmo após o período colonial: a mulher

branca era vista como casta, e a negra, como objeto sexual. Assim, Bishop não vê Sarah de

outra forma. Ele, como branco dominador, partilha uma visão estereotipada da jovem que, na

condição de mulher negra, é alvo de fácil manipulação. Além disso, ele só vê a mulher

enquanto símbolo sexual, como objeto de prazer e, por isso, ela é totalmente objetificada.

Relembre-se, com Fanon, que a ―objetificação consiste na negação da individualidade e da

108

HENFREY, June. Coming Home and Other Stories. England: Arts Council, 1994, p. 21. 109

DUBY, G. A história das mulheres. Madrid: Taurus, 1992, p. 1. 110

BONNICI, Thomas. Conceitos-chave da teoria pós-colonial. Maringá: Eduem, 2005, p. 53. 111

LOOMBA, A. Colonialism/postcolonialism. London: Routledge, 1998, p. 152.

53

subjetividade‖.112

Percebe-se a negação da subjetividade de Sarah quando ela aceita ser

alojada em uma casa distante da aldeia, onde só recebe a visita de Bishop e de alguns

empregados. Nesse contexto há uma anulação da sua individualidade, pois aceita

passivamente ficar totalmente dependente do seu amante.

Naquela noite, quando Sarah entra na carruagem do cocheiro de Bishop, há o

rompimento com suas raízes e origens, deixando para trás o senso de comunidade, a avó que a

tinha criado e o noivo negro. Nesse momento, a harmonia antes vivida pela jovem com sua

comunidade negra é quebrada, pois tal atitude será reprovada, especialmente por sua avó

Rose. Para ela, é inconcebível qualquer relação com homens brancos, e ela não aceitará ―red

niggers‖ na família. ―Backra-nigger‖ ou ―red nigger‖ é uma denominação usada para referir-

se a um mulato, uma pessoa que é desprezada por ter a pele mista, resultante de um negro

com um ancestral branco.113

Pode-se dizer que a união de Sarah com Johnny Bishop representa a união do homem

da classe dominante com uma mulher da camada dominada significando, para ela, certa

valorização e ascensão social. Um exemplo é a casa em que Sarah foi residir, que representa

para ela uma grande mudança, da choupana de Rose, com dois quartos e uma cozinha

pequena, para outra bastante ampla. O espaço deixa- a tão maravilhada que caminha de um

quarto para outro, inclinando-se numa janela e outra, imaginando estar num sonho do qual

seria logo despertada. O sonho persiste, e a casa vai se enchendo de mobílias dadas por

Johnny. Sarah está deslumbrada com o fato de ter o seu próprio espaço, pois até então mora

com a avó e é muito difícil uma mulher negra, na sua posição social, desfrutar de uma casa

confortável. No entanto, experimenta absoluto isolamento: os negros a evitam e também os

brancos, os quais não perdoam o fato de ser a amante negra de um homem branco casado.

Mais tarde vêm os filhos, os quais recebem o nome dele e, após a morte de sua esposa,

Bessie, reivindicavam sua presença. Evelyn, a filha do seu casamento, também passa a exigir

a presença do pai. Durante muitos anos, os únicos visitantes da casa são o próprio Johnny

Bishop e os empregados que ele envia para ajudar Sarah com o trabalho pesado ao ar livre.

Nisso, ele cumpre sua promessa de que ela nunca suaria novamente, mas poderia desenvolver

as habilidades próprias de uma concubina. Os filhos resultantes da união de Sarah e Bishop

são tão igualmente discriminados e isolados quanto a mãe.

Somente quando a avó Rose morre é que Sarah revê a sua comunidade. Grávida do seu

quarto filho, é levada por um carro até a igreja, onde permanece sozinha, sentada ao fundo,

112

FANON, Frantz. Os condenados da terra. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1968, p. 72. 113

ALLSOPP, 1996, p. 61.

54

sentindo-se totalmente deslocada, pois tanto a comunidade negra quanto a branca fazem

questão de ignorá-la. Ela percebe, entre os carregadores do caixão, Dolphus, o seu antigo

namorado, que não olha em sua direção.

Sarah claramente entende que tal desprezo é o resultado da sua escolha no passado.

Ela acreditava que viver com conforto era sinônimo de lar, mas, no entanto, adquire uma

habitação, tem melhores condições físicas de sobrevivência, um abrigo, porém não

desenvolve relacionamentos sociais. Ao aceitar seu isolamento, Sarah rompe seus vínculos

familiares e com suas raízes étnicas. Ao pensar sobre a ideia de lar, pode-se dizer que a

protagonista não desenvolve uma completa concepção do mesmo, porque a sua morada está

mais relacionada a condição física e espacial. Não é permitida a convivência com outras

pessoas: nem Sarah e nem seus filhos estabelecem um círculo de relações sociais.

Pode-se dizer que, na realidade de Rose, encontram-se bem definidas as dimensões de

lar. No contexto espacial, ocorre identificação com e controle sobre o espaço. Desenvolve

relações sociais, pois está sempre em contato com a sua comunidade negra, o que lhe traz

referências e associações de familiaridade, afetividade, etnia e parâmetros ideológicos. A

dimensão histórica também está presente, pois, através dos hábitos desenvolvidos e rotinas

cognitivas desenvolvidas com a sua comunidade negra, mantém viva a sua identidade

cultural.

Já Sarah apresenta uma concepção de lar incompleta, pois nem todas essas dimensões

estão presentes. Não se pode dizer que Sarah tem controle sobre o seu espaço, porque ela não

tem autonomia sobre ele, visto que vive escondida e totalmente dependente e submissa ao seu

amante, o homem branco. Presa às vontades de Bishop, não tem realmente o domínio sobre as

entradas e fronteiras do espaço em que habita. Essa situação contrasta com a experimentada

quando morava com sua avó, na fazenda, e desenvolvia relações de afetividade, familiaridade

e sociais, em contato com a sua comunidade negra e com a avó. No momento em que passa a

viver isolada, há rompimento das relações com sua etnia raízes culturais. Assim, o espaço

ocupado por Sarah e seus filhos não pode ser chamado de lar, mas sim de uma habitação,

onde há uma continuidade de sua existência. Com relação a esse espaço, há referências

negativas, pois é percebido como a casa da amante do homem branco, o que lhe atribui

exclusão da sociedade, sendo vista como diferente. Além disso, não há uma articulação com

família, nem com a comunidade, não podendo ser visto como lar pessoal. Nisso, contrasta

violentamente com sua casa antiga, onde esses aspectos estavam presentes.

55

3.1.2 Freedom Come

―Freedom Come‖ traz como cenário o período escravocrata, tendo como protagonista

Nanny, que, embora sendo escrava não age como tal: não segue as ordens da dona da casa,

Sra. Beth, expressa suas opiniões sobre a administração da plantação, intrometendo-se nas

conversas, e não se amedronta quando ameaçada de punição. Alguns comentam que ela é

meia-irmã do feitor, embora nunca fosse reconhecida pelo pai. Nanny acredita que nada lhe

acontece devido a um feitiço por ela lançado contra a Casa Grande. Tal magia, conhecida por

obeah, é legado da avó africana, da qual herda seu nome.

Obeah ou ‗Poccomania‘ é uma forma de religião ou culto de ancestrais africanos que

tem raízes em comum com o candomblé do Brasil, com a santeria de Cuba e com o vudu (ou

voodoo) do Haiti ou Jamaica. Diz-se que seu líder espiritual tem controle sobre os corpos e

espírito das outras pessoas, através de um pó que possui, supostamente, propriedades mágicas

que dariam a seu usuário proteção contra as armas do homem branco. Isso foi importante para

estimular a organização e execução de revoltas dos escravos e de resistência dos escravos,

pois os brancos temiam o seu poder, e que viessem a ser petrificados, vítimas da sua

mágica.114

Quando Nanny nasce, seu pai, o Velho Feitor, demonstra o desejo de que a sua mãe,

Juba, lhe dê o nome de Charlotte, um ‗bonito nome crioulo (Creole)‘. O termo Creole e seus

cognatos em outras línguas – tais como crioulo, criollo, créole, kriolu, criol, kreyol, kreol,

kriulo, kriol, krio, etc. — tem sido aplicado para pessoas em diferentes países e épocas com

significados bem diferentes. O termo Creole é, às vezes, usado, também, imprecisamente,

para descrever qualquer pessoa independentemente da raça ou etnia com que nasceu e cresceu

na região. Aqui, entretanto, o contexto autoriza pensar que ele se refere a preto/mulato,

mistura do branco. Por esse motivo, sua avó, a Velha Nanny, deixa claro que na sua família

não há permissão para nomes Backra115

. O feitor não insiste, dando como único privilégio à

menina ser treinada para trabalhar na casa, em vez de ser enviada para o campo. A avó

aprende a amar rapidamente o bebê de pele marrom, apesar de preferir que tivesse a pele

negra como a dela e a de Jubah. Porém, conforma-se dizendo que as pessoas de pele marrom

não ficam vermelhas e nem têm a aparência ―não terminada‖ dos brancos.

114

HISTÓRIA do Reggae. 2010. Disponível em: <http://reggaespotlights.blogspot.com/2010/12/obeah.html>.

Acesso em: 13 ago. 2011. 115

Backra, ver explicação em ―Love Trouble‖, p. 8.

56

Nanny trabalha na Casa Grande e tem a permissão de sentar-se na sala enquanto as

meninas e os jovens rapazes fazem suas lições. Aprende a ler, o que era proibido aos escravos,

declarados incapazes de aprender. Não era do interesse do branco que o escravo se tornasse

alfabetizado, pois, assim, ficaria alienado às informações e não desenvolveria um sentimento

crítico. Nanny, porém, passa a ter contato com os livros e jornais, o que lhe permite acesso à

informação a respeito do que está acontecendo nas colônias do Oeste da Índia e sobre os

escravos.

Percebe que, na fazenda, há diferentes tipos de escravos: os ousados, os descarados, os

quietos, os humildes, os que têm medo que as coisas mudem para o pior. Por outro lado, há

aqueles de pele mais clara, que se comportam como os feitores, recusando-se a realizar certos

tipos de trabalhos, e que insistem em serem servidos por escravos de uma escala mais baixa.

A sociedade colonial desprezou o negro, levando-o à marginalização. Imagens estereotipadas

levaram-no a se autorrejeitar e a negar as próprias origens, sua cultura, língua, caracteres

físicos, almejando até o embranquecimento. Segundo Kabengele Munanga,

[...] pressupunha-se a admiração da cor do outro, o amor ao branco, a aceitação da

colonização e a auto-recusa. E os dois componentes dessa tentativa de libertação

estão estreitamente ligados: subjacente ao amor pelo colonizador há um complexo

de sentimentos que vão da vergonha ao ódio de si mesmo. O embranquecimento do

negro realizar-se-á principalmente pela assimilação dos valores culturais do

branco.116

Pode-se pensar que esses escravos agem daquela forma para se sentirem mais

próximos do branco, como uma forma de não se perceberem tão inferiorizados, levando a

uma negação da própria identidade. Fanon expõe que a violência epistemológica sofrida pelo

negro faz com que ele se sinta dilacerado, já que a ―civilização branca, a cultura europeia

impuseram ao negro um desvio existencial. [...] aquilo que se chama de alma branca é

frequentemente uma construção do branco.‖ Assim,

[...] incapaz de estar no espaço aberto com o outro, com o branco que

impiedosamente me aprisionava, eu me distanciei para longe, para muito longe do

meu estar-aqui, constituindo-me como objeto. O que é que isso significava para

mim, senão um desajolamento, uma extirpação, uma hemorragia que coagulava

sangue negro sobre todo o meu corpo? No entanto, eu não queria esta

reconsideração, esta esquematização. Queria simplesmente ser um homem entre

outros homens.117

116

MUNANGA, Kabengele. Negritude: usos e sentidos. São Paulo: Ed. Ática, 1986, p. 27. 117

FANON, Frantz. Pele negra, máscaras brancas. Salvador: EDUFBA, 2008, p. 30; 106.

57

Entretanto, Nanny não está interessada em tipos como estes, pois tem por eles

desprezo. Procura pessoas sérias, determinadas e que acreditam que a liberdade possa ser

assegurada. A escrava sabe que os feitores estão assustados pelos fatos acontecidos em

Mingo: todos os brancos que lá residem são mortos, e os escravos, libertos, passam a

dominar as plantações. Novamente, percebem-se componentes históricos inseridos no conto.

Mingo é a forma abreviada de São Domingos. A sociedade de São Domingos era dividida em

latifundiários, brancos, pobres, mulatos livres e escravos, e foi agitada pela aprovação, na

Assembleia Constituinte na França, em 1791, da lei que aprovava a igualdade de direitos entre

todas as pessoas em São Domingos, permitindo o voto dos mulatos, mas não significava,

ainda, a abolição da escravidão. Os fazendeiros ricos discordavam e, paralelamente aos

protestos dos mulatos contra os brancos, os escravos começaram a se organizar, surgindo

várias rebeliões, que enchiam de preocupação os fazendeiros, não só de Dominica, mas de

toda a região do Caribe.

É possível que Mingo, no conto de Henfrey, lembre esse clima revolucionário, embora

retratando a eclosão de rebeliões escravas em Barbados. Nanny, alfabetizada, lê nos jornais

sobre as revoltas dos negros, mantém os escravos atualizados acerca delas, bem como sobre a

interferência da Inglaterra quanto ao tráfico de escravos. Como não estavam vindo escravos

da África para a Ilha já fazia alguns anos, os feitores ficavam ansiosos para que as mulheres

ganhassem bebês, e isso contribui para que as escravas não fossem mais chicoteadas até a

morte.

Nanny tem convicção da sua missão proveniente de seus ancestrais. A sua avó, a

Velha Nanny, poderia sentir orgulho dela, pois o espírito de resistência continuaria a existir.

O orgulho e a confiança herdados fazem com que ela aprofunde o sentido de justiça e se torne

uma grande líder, levando-a a se integrar o grupo de Bussa, juntamente com Jackie e Robert,

o qual dá origem a uma grande rebelião de escravos.118

Nanny e o grupo estão determinados, e os planos começam a tomar forma. Planejam

usar fogo, e a Casa Grande iria ser atingida. Em alguns momentos, Nanny questiona-se em

relação a seus sentimentos para com aquela família, já que foram tantos anos de convivência e

pode dizer que eles a valorizam. Por um momento, até pensa em salvá-los. No entanto,

lembra-se dos escravos, da sua vida difícil e de que eles não possuem uma ‗vida própria‘,

estando sempre à disposição dos brancos. Sendo assim, ela não iria desperdiçar nem tempo

nem sentimento com as pessoas brancas; talvez quando ela estivesse livre.

118

Nanny e Bussa: mesmas figuras históricas citadas em ―Love Trouble‖.

58

De acordo com Thomas Bonnici, o ―revide‖ ou ―resistência‖ é uma forma de reverter

o binarismo e abalar as ordens impostas pelo poder colonial que se postou no centro. O

revide, através das lutas, resistências física, armada, guerra dos povos colonizados, foi a única

forma que os povos colonizados encontraram para quebrar a hegemonia da colonização

europeia.119

Para Emília Viotti da Costa,

Foi na resistência cotidiana que os escravos reafirmaram o apego a seus ―direitos‖ e

testaram limites do poder senhorial. Foi na resistência cotidiana que o ressentimento

dos escravos cresceu, que laços de solidariedade se fortaleceram, que líderes se

formaram e que atos de desafio individuais se converteram em protesto coletivo.120

Quando o subalterno responde ao europeu, ele não só recupera sua voz, como também

denuncia a usurpação europeia e as leis tradicionais nativas infringidas.121

É a resistência que

provoca a descolonização da nação, da cultura e do intelecto. O subalterno se transforma em

sujeito, não só porque retoma sua voz, mas porque a descolonização traz um novo ritmo a sua

existência, pois sua mente é descolonizada. O ―revide‖ constitui um meio de sobrevivência e

manutenção da subjetividade, permitindo ao sujeito colonial mostrar sua cultura, crença e

costumes como o bem mais precioso que possui.122

Sendo assim, a atitude da personagem pode ser entendida como afirmação da própria

identidade via força. Nanny não se compadece diante do fato de a família branca onde

trabalha também ser castigada, porque, na verdade, eles assumem o papel do senhor e

colonizador, o qual nunca teve qualquer sentimento por eles, os escravos. O colonizador,

explica Bonnici, jamais teve piedade de qualquer espécie de sujeito colonial, pois o que

sempre lhe importou foi estar em superioridade face a eles e demonstrar força e poder de

domínio.123

De acordo com as leituras em jornais feitas por Nanny, no Ano Novo, mudanças

deveriam acontecer na Inglaterra, e a liberdade aos escravos seria uma delas. Entretanto,

chega o grande dia e nada acontece. A escrava percebe que os proprietários, juntamente com

os seus amigos na Casa da Assembleia, decidem que as transformações na Inglaterra não

trariam qualquer mudança para a ilha. Então, ela e o seu grupo decidem esperar até a Páscoa

para ver se realmente nada se modificaria. A empolgação se ascende a cada dia, e Nanny não

119

BONNICI, 2009, p. 217-218. 120

COSTA, Emilia Viotti da. Coroas de glória, lágrimas de sangue: a rebelião dos escravos de Demerara em

1823. Trad. Anna Olga de Barros Barreto. São Paulo: Companhia das Letras, 1998, p. 109. 121

BONNICI, Thomas. O pó-colonialismo e a literatura: estratégias de leitura. Maringá: Eduem, 2000, p. 56. 122

BONNICI, 2009, p. 246. 123

Ibidem, p. 242.

59

pensa em outra coisa, a não ser no dia em que a liberdade será alcançada. Pouco lhe importa o

que a liberdade implicaria, mas o fato de deixar de pertencer à outra pessoa, de receber ordens

como se fosse uma criança ou de ser batida por um capataz, é o suficiente para criar

expectativas e motivá-la quanto à credibilidade da rebelião.

Chega o grande dia e, ao sinal combinado, o de fumaça, ela desce as escadas correndo

e sai para o quintal, arrancando sua faixa da cabeça e acenando-a como uma bandeira. A

comoção se espalha, e outros escravos se unem, com armas chegando mais ao Oeste sob o

comando de Bussa. A empolgação de Nanny cresce, e ela corre de um lado para outro,

gritando para os outros escravos que eles não precisam mais trabalhar, fazendo planos para a

maneira como eles viveriam quando o dia terminasse. Ela sente-se extremamente feliz e forte,

pega as crianças nos braços e diz-lhes ser a geração livre, a qual nunca saberia das

indignidades sofridas pelos seus pais e avós.

A escolha do fogo como a principal arma utilizada pela rebelião- certamente a mais

facilmente disponível e potencialmente destruidora acessível aos negros escravizados- pode

também ser pensada em seu valor simbólico. O fogo, que queima e consome, é também

símbolo de purificação e de regenerescência.124

Destrói, limpa, purifica, é o grande agente das

transformações pelo seu modo de simbolizar as emoções, tanto que aquilo que resiste ao fogo

tem o caráter da imortalidade. Sem o fogo da emoção, nenhum desenvolvimento ocorre e

nenhuma conscientização maior pode ser alcançada, por isso, é considerado um símbolo da

consciência.125

Por outro lado, o fogo também pode estar relacionado à Páscoa, especialmente em

uma sociedade agrícola. No Sábado Santo, a celebração é iniciada com a bênção do fogo,

chamado de "fogo novo". Os agricultores, desprovidos de tecnologia e de conhecimento,

utilizam o fogo, uma técnica milenar e primitiva, para limpar o terreno que será destinado ao

plantio. O fogo limpa aquele espaço do mato das ervas daninhas e de tudo aquilo que

prejudica ou é obstáculo para o plantio.126

Pode-se, ainda, associar a escolha do fogo a uma forma de apagamento do opressor,

um elemento de purificação e uma forma de cicatrização das feridas abertas pelos maus-tratos

e violências sofridas na senzala. Além disso, seria o início de uma nova fase, em que todo

124

GREGÓRIO, Sérgio Biagi. Fogo. In: DICIONÁRIO de símbolos. s.d. Disponível em:

<https://sites.google.com/site/dicionariodesimbolos/fogo>. Acesso em: 30 ago. 2011. 125

ALVES, Sérgio Pereira. Fogo. s.d. Disponível em:

<http://www.salves.com.br/dicsimb/dicsimbolon/fogo.htm>. Acesso em: 13 ago. 2011. 126

DUARTE, José Luiz C. O verdadeiro sentido da Páscoa. In: CULTURA brasileira. s.d. Disponível em:

<http://www.culturabrasil.org/pascoa.htm>. Acesso em: 30 ago. 2011.

60

sofrimento, as desilusões - o joio - seriam queimados e a esperança – a semente - de uma nova

etapa iria começar, uma nova era para a geração vindoura.

Outro aspecto interessante é em relação à época dos acontecimentos, ou seja, a

informação de que o Ano Novo e, mais tarde, a Páscoa, trariam a liberdade. Ano Novo está

relacionado à esperança, vida nova. A Páscoa judaica, como é apresentada no livro do Êxodo,

é a comemoração mais importante do calendário judaico, em que o povo celebra o fato

histórico de sua libertação da escravidão do Egito. Se pensada a partir da ressurreição de

Cristo, Páscoa também está relacionada à libertação: celebra a ressurreição de Jesus, sua

vitória sobre a morte, promessa de vida eterna aos que nele creem.

A referência à Páscoa com relação ao êxodo permite, ainda, a associação de Nanny à

figura de Moisés, pois ambos têm uma missão em comum: libertar o seu povo da escravidão.

Educado no palácio de Faraó, após ter sido adotado por sua filha, Moisés teve acesso à

educação da civilização mais adiantada naquele tempo, e foi treinado para ocupar um alto

cargo ou até mesmo o trono no Egito. Aprendeu a escrita e as literaturas de seu tempo, bem

como administração e justiça. Tendo que fugir da corte por ter matado um feitor egípcio, o

qual estava batendo em um escravo hebreu, retornou para o Egito após alguns anos, enviado

por Deus para a missão de resgatar os hebreus da escravidão.127

A comparação da protagonista com Moisés apresenta, ainda, outros pontos em

comum: ambos são filhos de escravos, possuem espírito de liderança, têm acesso à leitura, o

que lhes oportuniza conhecimento que não está acessível ao resto de seu povo. Ambos

tornam-se libertadores dos seus povos, submetidos ao sofrimento da escravidão. A páscoa é

celebrada pela primeira vez na noite em que o êxodo inicia. Porém, enquanto Moisés salva o

seu povo, Nanny não alcança seu objetivo, sentindo-se profundamente frustrada e infeliz.

Nanny, em nenhum momento, pensa a liberdade de forma individual, sempre sonha

que todo o seu povo seja emancipado, o que demonstra o seu senso de comunidade e

solidariedade. Além disso, não guarda rancor, pois nunca sente raiva da família branca para a

qual trabalha, ao contrário, fica feliz em saber que tinham conseguido fugir da rebelião. O ato

de arrancar a faixa da cabeça é um grito à liberdade, como se os pensamentos não precisassem

mais ficar escondidos, nem as ações tolhidas, mas não apenas os seus como os do seu povo,

pois todos teriam ganhado a liberdade, representando também vitória, nova vida.

127

A BÍBLIA sagrada: Antigo e Novo Testamento. Trad. Pe. Antonio Pereira de Figueiredo. Rio de

Janeiro: Livros do Brasil, 1962. Ex. 1:8 a 4:31.

61

Porém, passados alguns dias, chegam notícias de que muitos foram mortos e Nanny

não consegue entender o que tinha dado errado. Percebe que era momento de fugir, embora

isso não estivesse nos seus planos. Após caminhar muito pelos campos, chega à beira de um

penhasco, observa que a água é de um azul profundo. Passa pela sua mente, então, que, ao

longo desse trecho, não frequentado de costa, um corpo, provavelmente levado, poderia muito

bem passar despercebido até que fosse mais uma vez recuperado pela maré. Presos, os

homens cujas esperanças ela tinha acendido, perguntam–se onde e como a babá teria

escapado.

A respeito de sua morte, pode-se, mais uma vez, traçar paralelo com Moisés. Nanny é

obrigada a atravessar os campos sozinha, pois não consegue completar sua missão e, ao

chegar à beira de um penhasco, observa as águas do mar, escolhendo o suicídio. Atira-se do

alto de um penhasco; Moisés é enterrado no alto do monte Nebo. Olho humano algum jamais

viu seus corpos.

De acordo com Ludwig Feuerbach, a água é a imagem da consciência de si mesmo, a

imagem do olho humano - a água é o espelho natural do homem. Na água, o homem se despe

destemidamente de todas as roupagens místicas; à água confia-se ele em sua forma

verdadeira, nua; na água, desaparecem todas as ilusões sobrenaturais. Nela, o homem se

reflete. Nela, o homem põe o que ele é, se projeta. E ao mesmo tempo, nela o homem se vê

espelhado, por ela ele volta a si.128

Nanny, assim como a água, é pessoa transparente, corajosa

e verdadeira; age de acordo com a sua consciência; por isso, torna-se uma grande líder, na

qual o seu povo confia plenamente.

Para José Carlos Bruni, a água é símbolo de regeneração. Apresenta-se de diversas

formas, estando, portanto, ligada à vida de infinitas formas, seja ela indesejável, decaída ou

desejável. Por outro lado, a imersão não é só purificadora, é também regeneradora, opera um

renascimento. É comparável à deposição de Cristo no Santo Sepulcro: ele ressuscita, depois

da permanência nas entranhas da Terra. De forma similar, o batismo por imersão – o único

praticado pela igreja primitiva apostólica- é tido como um exemplo de ritual de purificação e

regeneração. A água apaga a história, pois estabelece o ser a um estado novo. Bruni considera,

ainda, a água um símbolo da morte, devido a sua fluidez e ao fato de como as coisas se

dissolvem nela e desaparecem. ―A purificação é a anulação do impuro, do pecado e do mal; é

a anulação do passado. A água é símbolo de vida e de morte‖.129

Pode-se dizer que Nanny é

símbolo de vida e de morte, pois, no momento em que luta pela liberdade dos escravos está,

128

FEUERBACH, Ludwig. A essência do cristianismo. Porto: Fundação Calouste Gulbenkian, 2002, p. 6-7. 129

BRUNI, José Carlos. A água e a vida. Tempo Social, São Paulo, v. 5, n. 1-2, p. 62, nov. 1994.

62

de uma forma, oferecendo- lhes ou oportunizando- lhes o direito de sonhar e de ter o direito

de fazer suas escolhas, de viver a vida livremente. Simboliza a morte, porque, com o seu

suicídio, a esperança de todos aqueles escravos foi com ela.

Nanny, ao olhar o azul profundo do mar, reflete a respeito de sua missão frustrada de

salvar o seu povo da escravidão, sentindo-se talvez culpada de tantas destruições e de ter

motivado seus irmãos a ter esperança e acreditar que a liberdade seria possível. As águas do

oceano estão sempre em movimento e representam uma situação de ambivalência que é a de

incerteza, de dúvida; são, ao mesmo tempo, a imagem da vida e a imagem da morte.130

Pode-

se contrastar Nanny com as águas do mar, pois a angústia de não saber o que deu errado traz-

lhe grande inquietação, que se transforma em responsabilidade e amargura. A escrava parece

não encontrar outra solução a não ser uma forma de punir a si mesma; também ela não pode

decepcionar o seu povo, voltando à fazenda como uma derrotada. Entregar o seu corpo às

águas do mar é uma forma de atingir a liberdade.

Diante da posição ocupada por Nanny na narrativa, não se percebe a construção de lar

pela protagonista; na verdade, a perspectiva de não-lar é que está presente. Nanny não se sente

associada ao lugar ocupado, não estabelecendo relações de afetividade, familiaridade, bem-

estar, pertencimento e enraizamento. Mesmo sendo bem tratada pela família para quem

trabalha, tem consciência de sua condição de escrava e, portanto, não tem domínio e controle

sobre o seu espaço, no qual está claramente presente o poder classificatório e a diferenciação

das identidades.

O fato de que Nanny lidera e incentiva a rebelião é uma evidência de que, naquele

lugar, não há referências que lhe deem condições de sobrevivência, nem referências

significativas, característica essencial do lar. O lar de Nanny está muito longe dali, em sua

imaginação, no seu desejo de criar o seu espaço de pertencimento, isto é, um lar pessoal onde

poderá articular suas associações familiares e comunitárias e um lar coletivo, caracterizado

pela sua etnicidade, nacionalidade e ideologia.

130

CHEVALIER, Jean; GHEERBRANT, Alain. Dicionário de símbolo: mitos, sonhos, costumes, gestos, formas,

figuras, cores, números. Rio de Janeiro: José Olympio, 1992, p. 592.

63

3.2 Para além da era escravocrata: vidas em contraste

3.2.1 The Cane Cutter

―The Cane Cutter‖ narra a história de dois personagens, Reuben e Silas, ambos

cortadores de cana, que vivem a transição do período escravocrata para o pós-escravocrata.

Reuben é filho de Lizzie, que trabalhava na Casa Grande, encarregada dos afazeres

domésticos, e que tinha sido amada por muitos homens, inclusive o patrão. Após a sua morte,

Reuben, ainda muito pequeno, é criado pelas mulheres mais velhas da senzala: o espírito de

solidariedade entre os negros se faz presente. Trabalha no grupo das crianças até ser forte o

suficiente para cortar cana, evidenciando que a exploração do negro pelo branco vai desde as

crianças pequenas até as pessoas mais idosas, incluindo aqueles escravos que, por algum

motivo, sofrem alguma mutilação. Reuben cresce no meio das canas, não conhece outro

mundo.

Nesta narrativa está muito claro o negro como subalterno do branco, o senhor de

escravos. O mundo que o protagonista conhece é o da servidão, da subalternidade e o da

objetificação. Embora os escravos dessa narrativa não retratem as situações abaixo

mencionadas, faz-se interessante saber algumas estratégias, por eles usadas, no seu convívio

em comunidade, fundamental para sentirem-se unidos num ambiente de tanta agressividade.

Para suportar a sujeição, os escravos costumavam formar uma comunidade coesa:

casavam-se e tinham filhos (mesmo que sejam casamentos não oficiais); adotavam práticas

como ―parentesco fictício‖ - prática de chamar as pessoas coisas como ―irmão‖ ou ―tia‖

mesmo sem nenhum vínculo parentesco. Este tipo de prática permitiu aos escravos sentirem-

se como se estivessem conectados um ao outro. Praticavam suas próprias religiões, diferentes

da do cristianismo praticada pelos proprietários de escravos, como forma de resistência.

Assim, tentavam construir vidas que lhes permitam sobreviver à provação da escravidão.131

O nome do protagonista, Reuben, é homônimo ao do filho primogênito de Jacob no

livro bíblico.132

Seu nome é a combinação de duas palavras: (ra'a) significando ver, olhar,

inspecionar no sentido lateral, e em muitas formas figurativas como perceber, entender.

Também há os derivados (ro'eh), que também significa ver ou uma visão profética; (re'i),

espelho; (mar'a), visão; (mar'a), mirror. A segunda parte do nome Reuben é a palavra (ben),

131

GENOVESE, Eugene D. A terra prometida: o mundo que os escravos criaram. Rio de Janeiro: Paz e terra,

1988, p. 204-205. 132

A BÍBLIA, 2000. Gênesis 29:32.

64

cujo significado é filho, prole.133

Pode-se dizer que, no conto, o nome do protagonista anuncia

sua forma de viver, que é inspecionando, olhando e entendendo as canas. Quanto à acepção de

filho, lembra o fato de que é filho de escrava, podendo-se pensar, com o branco senhor da

fazenda.

A origem de Reuben comprova que a mulher escrava e negra eram vistas como objeto

sexual, o que não foi diferente com Lizzie. É possível que Reuben seja filho do patrão, pois

sua mãe trabalhava na Casa Grande e, por sentir-se inferiorizada ou por causa da situação

servil, permite ser usada sexualmente pelo patrão. Nesse caso, teria havido, de certa forma,

uma ―troca de favores‖, pelo fato de o branco lhe dar emprego e abrigo, além de permitir que

o filho permaneça com ela na casa. Porém, logo que a mulher negra morre, o filho é banido da

casa pela senhora Missie, esposa do proprietário da fazenda. Percebe-se a submissão da

mulher branca, sem contestação, ao poder do patriaraca. Segundo Iara Bongiovani Saffiotti

Heleieth, a abolição da escravatura, obra masculina, provoca uma mudança no sistema de

estratificação da sociedade em castas; porém, não ocorre nenhuma mudança na divisão da

sociedade baseada no sexo.134

Reuben costuma conversar com as canas e não gosta de cortá-las, porque elas fazem-

lhe companhia. Acredita, porém, que elas voltam, tal como os espíritos dos mortos, e brotam

no mesmo lugar onde são ―vitimadas‖. Reuben trabalha com rapidez, apesar de não gostar de

cortar as canas, para agradar o branco. E isso o anima, pois essa crença lhe dá a reputação de

ser o mais rápido cortador da plantação, o que o estimula a trabalhar com entusiasmo.

Em uma manhã, ao cortar cana, o jovem começa a sentir sua cabeça latejar devido ao

cheiro enjoativo do suco de cana doce no ar vindo do moinho do alto do morro. Reconhece

ser o xarope que as crianças adoravam antes de transformar o melado em açúcar. Nesse

momento, traz à memória um fato do passado, uma lembrança da infância quando trabalhava

nos moinhos de cana-de-açúcar.

Mesmo após a abolição, Reuben continua a morar na fazenda, exercendo a mesma

atividade desde criança: cortador de canas. A abolição libertou ao mesmo tempo em que

sentenciou milhares de negros escravos libertos, pois estes foram lançados ao abandono: não

mais eram necessários como mão-de-obra servil e, concomitantemente, foram-lhes negadas as

133

MEANING and etymology of the name Reuben. In: ABARIM publicações. s.d. Disponível em:

<http://www.abarim-publications.com/meaning/reuben.html>. Acesso em: 20 set. 2011. 134

HELEIETH, Iara Bongiovani Saffiotti. A mulher na sociedade de classes: mito e realidade. São Paulo: Quatro

Artes Ed., 1969, p. 151.

65

condições necessárias para a sua sobrevivência: o acesso à terra.135

A libertação dos escravos

deveria ter-lhes assegurado condições reais de liberdade e cidadania, mas o que ocorreu foi a

concentração de poderes sociais e políticos nas mãos de uma elite agrária que continua sendo

a maior beneficiária.

Com o passar do tempo, o jovem passa a ouvir as canas lhe dizerem que nem sempre

cresceriam novamente, pois no momento em que suas raízes são rompidas, elas morrem.

Reuben, então, dá-se conta de que a cana não cresce para sempre e que, eventualmente, sua

raiz é arrancada e substituída por novos cortes. Percebe, assim, que, tal como as canas, é

substituível, o que poderia acontecer no momento em que não fornecesse mais ao branco a

mão de obra esperada. Assim, dá-se conta de que nunca foi realmente valorizado pelo branco:

não é visto nem tratado como ser humano, mas como um valioso cutelo, podendo ser

substituído no momento por lhes dar muito lucro. Toma consciência da sua identidade e do

que o branco tem feito com ela.

As relações entre senhor e escravo caracterizam-se pela tendência ao desprezo e

alienação do escravo, visto pelo seu dono como objeto, um acessório da terra, um animal

humano. Esse sistema levou o escravo a aceitar a sua inferioridade e sua impotência em tentar

uma mudança. Nessa conjuntura, a escravidão e o status reificado do escravo são

naturalizados na mentalidade do proprietário de terras branco, que não vê outra forma de

organização social.136

E, mesmo após a abolição, esta concepção permanece, pois o

proprietário da fazenda demonstra não aceitar esse novo sistema, considerando que a abolição

deixou os escravos livres e os brancos, pobres, insolentes e impacientes. Percebe-se sua

aversão quando tem que ir à cidade para verificar os agentes responsáveis pelo transporte do

seu açúcar, pois não é mais tratado com a cortesia e educação a que sempre havia sido

acostumado na fazenda.

É em uma dessas idas do seu patrão à cidade que Reuben considera o momento

oportuno para demonstrar sua indignação em relação ao branco. Está sob a influência de uma

conversa imaginária com as canas. Estas revelam-lhe que a senhora Missie, proprietária da

fazenda, nunca gostou delas e nem dele, o que leva o rapaz a perceber a exploração à qual

vem sendo submetido. Sua passividade se transforma em exaltação, pois o ex- escravo sente-

se enganado e traído, aflorando-lhe um sentimento de raiva.

135

SILVA, Flavia Aparecida da. Quilombo da caçandoca: identidade e resistência. Ágora: Revista Eletrônica, v.

4, n. 8, p. 94, jun. 2009. Disponível em:

<http://www.ceedo.com.br/agora/agora8/quilombodacacandocaidentidadeeresistencia_FlaviaAparecidad%85.pdf

>. Acesso em: 02 jul. 2010. 136

CARDOSO, 1982, p. 58-59.

66

Hall refere-se à identidade como sendo algo não acabado e, sim, um processo que está

sempre em andamento, surgindo de um preenchimento a partir do exterior pela forma como o

individuo pensa ser visto ou reconhecido pelo outro.137

Assim, o protagonista enfrenta um

conflito de identidade, pois até aquele momento vive sob a ilusão de uma valorização. Então,

como uma forma de rebeldia, deixa-se dominar pela raiva e assassina a senhora, Missie.

A raiva gera impulsos violentos contra os que ferem ou invadem a dignidade do

indivíduo, sendo responsável por atos de violência. A agressividade de Reuben faz pensar que

toma consciência de sua identidade cultural, que até então parecia negar. Pensa que a morte da

senhora branca liberá-lo-ia da escravidão, da exploração e da ilusão.

A outra parte do conto apresenta o personagem Silas como protagonista. Também é

um cortador de cana, negro, ex-escravo. É casado com Millie, e pai de quatro filhos, um dos

quais haviam perdido quando ainda bebê. Esta perda ainda está presente na memória de Silas

e de sua esposa. Silas vive, com a família, numa comunidade negra, em uma pequena casa de

madeira. Sua mulher está feliz, porque o seu marido contrata Cumberbatch, um carpinteiro,

para adicionar uma varanda à casa, o que enche de orgulho Millie.

Sendo assim, pode-se dizer que Silas tem conseguido prosperar, juntamente com a

comunidade. Millie também trabalha em comunidade, com o grupo de mulheres na capina da

plantação e na pequena área atrás da casa. O trabalho em sociedade reforça os laços de

identidade, além de preservar a origem cultural, pois as pessoas mantém unidade grupal e

compartilham uma cultura comum. Todas as manhãs, Silas encontra o seu grupo a caminho

para a plantação.

Silas sonha, por três noites consecutivas, com um nenê morto sentado à cabeceira da

sua cama. A criança sorri, mostrando um único dente de bebê branco contra o negrume de sua

face. Na segunda noite, embora o nenê não apareça, ele sente a sua presença. Estão na sacada

da Casa Grande e, dentro, está uma mulher branca de camisola, quando entra,

silenciosamente, um homem, brilhando de óleo e suor. Carrega uma faca, e mata a mulher em

três partes. Silas percebe que o assassino tem uma marca no ombro. Na terceira noite, a

criança reaparece sentada à cama e com um sorriso inocente entrega-lhe uma faca. Nesse

momento, Silas acorda assustado apertando o seu travesseiro e segurando-o carinhosamente

contra o seu peito.

Para Sigmund Freud, em sua obra A interpretação dos sonhos, os sonhos não são

destituídos de sentido e nem são absurdos; não implicam que uma parcela da nossa reserva de

137

HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade. Trad. Tomaz Tadeu da Silva; Guaciara Lopes

Louro. São Paulo: DP&A, 2005, p. 39.

67

representações esteja adormecida enquanto outra começa a despertar. Ao contrário, são

fenômenos psíquicos de inteira validade, são realizações de desejos produzidos por uma

atividade mental altamente complexa. Muitas vezes, em diversas situações da vida, o sonhar

toma o lugar da ação.138

Assim, pode-se dizer que se o sonho é uma forma inconsciente de

realizar esse desejo.

Na manhã seguinte, Silas opta por não contar tudo à esposa, omite a parte da criança

para não magoá-la, já que Millie ainda sofre muito com a perda do filho. Pode-se pensar que

ela tenha perdido essa criança na época em que exercia atividades mais pesadas nas

plantations. Ela, então, aconselha que o marido vá à igreja e coloque tudo perante Deus. Silas

vai trabalhar pensativo, não se esquece do seu sonho.

O fato de o bebê dar uma faca a Silas representa cobrança de atitude contra o branco,

responsável pela sua morte, ainda que indiretamente, já que as mulheres trabalhavam tanto

quanto os homens nas plantations. A marca no ombro é lembrança da escravidão, pois os

escravos eram marcados, como gado, para impedir sua fuga e imprimir a marca da

propriedade em seu corpo. A essa possibilidade, associam-se lembranças sobre Millie, que

vêm à memória de Silas, enquanto trabalha. Fora uma jovem magra, ativa e graciosa, notada

por ele desde o primeiro dia que ela se juntou ao grupo de mulheres do campo. Questionando-

se a respeito dos seus sonhos, lembra que sua avó dizia que os espíritos estavam sempre por

perto, fazendo sentido, então, o conselho dado pela esposa, o de ter Deus ao seu lado. E nesse

instante, vê o sangue.

No final do dia, Silas percebe que as canas sangram abundantemente ao serem

cortadas, um sentimento desconfortável era ignorado pelo cortador. Percebe que há sangue

por tudo, as canas sangram abundantemente ao serem cortadas; o suco da cana se transforma

em sangue. Essa imagem o faz pensar na história na qual a água se transforma em vinho.

Essa imagem faz alusão ao primeiro milagre de Cristo, realizado nas Bodas de Caná

de Galiléia, quando, a pedido da mãe, ajuda os anfitriões, embaraçados com a falta de vinho,

ordenando-lhes que lhe tragam seis talhas cheias de água. Então, transforma a água em vinho

de qualidade superior ao que estava sendo servido inicialmente. Por esse milagre, Jesus deu

princípio aos seus em Caná de Galiléia: e assim fez que se conhecesse a sua glória, e seus

discípulos creram nele.139

No conto, porém, não há indícios de que a transformação tenha se efetuado em

benefício do escravo liberto. Pelo contrário, a simbologia parece invertida, e o suco da cana,

138

FREUD, Sigmund. A Interpretação dos Sonhos. São Paulo: IMAGO, 1999, p. 6; 10. 139

A BÍBLIA, 2000, João 2. 1:11.

68

associado ao contexto do trabalho árduo, em vez de vida, parece apontar para um sistema

onde o operário ―sangra‖, dando seu suor e energia sem que haja retribuição econômica e

social proporcional ao esforço despendido. Nesse sentido, associar o suco da cana com a água,

que é símbolo da vida espiritual, símbolo da regeneração, da vida, é profundamente irônico.140

O sangue, conforme já comentado anteriormente no conto ―The Gully‖, é associado a uma

substância vital, e por sua notável aparência, é possuidor de muitos significados simbólicos,

destacando-se três grupos: sangue como vida, sangue como família ou ancestralidade e sangue

como sacrifício.141

Evidentemente, encontra-se claro o contexto de ancestralidade: trata-se de

etnia historicamente sacrificada, explorada, discriminada. Por outro lado, como já comentado

anteriormente neste parágrafo, o sangue que se esvai aponta para a cessação da vida, ou, no

contexto do conto, para sua pouca valorização, no contexto da objetificação do negro.

Em seguida, vê um poço coberto por uma vegetação, sobre o qual o nenê do sonho

está sentado, sorrindo e acenando para Silas, que vai à sua direção carregando a sua faca suja

de sangue. Quando se aproxima, nota uma figura adulta entre as folhas, segurando uma cutelo

manchada de sangue; tem uma marca em seu ombro.

Nesse contexto, pode-se dizer que, apesar de viver em liberdade, Silas permanece

preso às lembranças de uma época de sofrimento e revolta; sente-se explorado e roubado, pois

a escravidão, além de oprimi-lo, roubou-lhe uma vida, seu filho. Silas, talvez, tenha carregado

consigo um sentimento de mágoa e ódio do branco, e desenvolve-se sentimento da vingança,

ainda largamente inconsciente.

Nessa narrativa, em relação ao senso de lar, pode-se dizer que Reuben não apresenta

características para que o lugar onde vive possa ser chamado lar, pois não tem controle sobre

o seu espaço, e vive sob as ordens do branco, mesmo após a abolição, permanecendo na

fazenda. Além disso, vive praticamente isolado, conversa apenas com as canas, o que não lhe

permite desenvolver a dimensão componente social, que está relacionado a relacionamentos

familiares e comunitários. O enraizamento, que está associado ao pertencimento do indivíduo

ao lugar, também é desconstruído quando ele se decepciona com Missie e percebe sua

identidade cultural.

Com o personagem Silas, há o componente social, uma vez que vive em comunidade,

pois o lar coletivo e pessoal estão bem presentes, isto é, existe uma identificação, referências,

além de condições sociais e habituais. Tem controle e domínio sobre o espaço: manda

140

CHEVALIER; GHEERBRANT, 1992, p. 17-18. 141

FERBER, Michael. A Dictionary of Literary Symbols. 2. ed. New York: Cambridge University Press, 2007, p.

29.

69

construir a casa, reforma-a, diferenciando-a das demais, dispõe do terreno anexo à casa como

melhor lhe parece, e vive harmoniosamente com a esposa e filhos. Mesmo em sua

simplicidade, sua casa é lar onde se cultiva, valores relacionados à família e domesticidade.

Contudo, a paz é anterior aos sonhos, e deixa de existir quando é lembrada a época da

escravidão.

3.2.2 The Gully

O conto ―The Gully‖ é composto por duas partes, protagonizadas por,

respectivamente, Quashebah e I-Malachi. A primeira está ambientada no período escravocrata

no Caribe, quando o negro era usado como mão de obra nas plantations, sobretudo na

agricultura. A segunda tem lugar no século XX, como pode se inferir pela referência ao

rastafarianismo. Embora em contextos históricos diferentes, ambas as narrativas têm um

ponto em comum, a constante busca de um lugar onde se possa sentir protegido, livre, um

lugar que possa chamar de lar. Analisa-se o conto a partir do estudo de metáforas que o

enriquecem: concha, noite, sangue, tempo, vegetação, terra, água e raízes.

A autora intitulou a primeira parte Quashebah, o que remete à figura histórica de

Barbados: escrava negra pertencente à plantantion de Codrington, de onde tentou fugir cinco

vezes, entre 1775 e 1784.142

A palavra também designa o nome de uma cidade situada na ilha

de Barbuda, do Caribe Oriental e parte do estado de Antígua e Barbuda.

Em 1674, Sir Christopher Codrington chegou à ilha e estabeleceu a primeira plantação

de açúcar. A sua propriedade prosperou bastante no final desse século, principalmente devido

à chegada de escravos e à plantação de cana-de-açúcar em áreas florestais que foram

desbastadas. Sir Codrington arrendou à Coroa Britânica a ilha de Barbuda para cultivo, de

forma a alimentar os escravos, dando o seu nome à maior localidade dessa ilha.143

Grande parte dos escravos de Codrington eram trabalhadores agrícolas e, desde os sete

ou oito anos de idade, eram colocados para trabalhar. A disciplina era draconiana, e a fuga de

um escravo por mais de trinta dias significava a morte. A tentativa de fuga era comum,

entretanto; a recompensa pela localização de um escravo fugido era de um galão de rum. Em

142

HOCHSCHILD, Adam. Enterrem as correntes: profetas e rebeldes na luta pela libertação dos escravos. Trad.

Wanda Brand. Rio de Janeiro: Record, 2007, p. 89-90. 143

ANTÍGUA e Barbuda. In: PORTAL São Francisco. s.d. Disponível em:

<http://www.portalsaofrancisco.com.br/alfa/antigua-e-barbuda/continentes-antigua-e-barbuda-3.php>. Acesso

em: 25 maio 2011.

70

algumas plantations, um longo sopro em uma concha de caramujo era usado como um alarme

para indicar uma fuga.

Inicialmente, o conto ―The Gully‖ narra como sua protagonista, Quashebah, é muitas

vezes forçada a se sujeitar às vontades de Blackett, o senhor de escravos da fazenda. Porém, a

jovem escrava não aceita essa exploração do branco. Ao contrário das outras escravas,

submissas e sem esperança, opõe-se à condição de objeto descartável. Diante disso, enfrenta

diversas situações de dor, exaustão, revolta, e até aborto. Sempre em busca de, pelo menos,

momentos de liberdade, vê essa possibilidade se materializar somente quando encontra um

barranco, no qual se refugia em suas fugas periódicas.

Quashebah recorre a devaneios para poder continuar vivendo livre, de acordo com a

sua consciência. Todas as vezes em que é coagida a manter relações com Blackett, a escrava

conduz seu pensamento para longe dali, imaginando seu corpo dissociado de si, inerte,

incapaz de se mover. Dessa forma, concebe o corpo como uma concha, algo de que, como um

molusco, pode se desfazer, preservando o resto de sua materialidade:

When Blackett had first forced her, she had lain under him mute and hurting,

separating herself from her body and from the business that Blackett was doing.

Every time after that she had done the same, and had managed to will her spirit

away, leaving the shell of her body behind. […].144

Assim, imaginado como uma concha, seu corpo meramente serve de invólucro a seu

eu real. Essa concepção permite à escrava perceber o corpo como um não-eu, separado de sua

real essência, levando-a a uma desvinculação que lhe possibilita sobreviver à humilhação de

uma possessão brutal e não desejada, já que, ao separar-se do invólucro, deixa também de

lado o ato agressor.

A imagem da concha simboliza as situações em que a escrava busca uma forma de

refúgio e abrigo. Gaston Bachelard, em seu livro A poética do espaço, associa a figura da

concha a um lugar de morada, a uma casa, a uma caverna, a um lugar de proteção, enfim, no

qual estão ―alojados‖ o inconsciente e as lembranças do indivíduo.145

Assim, a concha é o

invólucro do corpo, como a casa é o lugar de acolhimento. Na imagem empregada no conto, a

concha não representa uma proteção ao corpo de Quashebah, pois ela, na condição de escrava,

144

HENFREY, June, 1994, p. 27. ―Quando Blackett aforçara pela primeira vez, ela se deitou sob ele, muda e

ferida, separando-se do seu corpo e do que Blackett estava fazendo. Depois, todas as outras vezes ela fez o

mesmo, e conseguira fazer o seu espírito sair de si, deixando a concha do seu corpo atrás. 145

BACHELARD, Gaston. O novo espírito científico. A poética do espaço. Trad. Remberto Francisco Kuhnen,

Antônio da Costa Leal, Lídia do Valle Santos Leal. São Paulo: Nova Cultural, 1988, p. 109‖.

71

não pode evitar o abuso. Seu corpo-concha, porém, provê proteção e segurança para sua alma,

constituindo-se em envoltório protetor para a dimensão emotiva e volitiva.

Bachelard considera a imagem como um excesso da imaginação que ultrapassa a

realidade. Especialmente acerca da concha, pensa que essa figura acentua a dialética do

pequeno e do grande, do escondido e do manifesto, do plácido e do ofensivo, do fraco e do

vigoroso.146

Tais simbologias podem ser identificadas no conto mediante as situações vividas

pela escrava e o branco. Na dialética do pequeno e do grande, tem-se a própria situação vivida

por Quashebah, que é a de uma mulher negra abusada e explorada pelo branco. Essa condição

pode ser relacionada com a do escondido e do manifesto, pois ela se fecha na sua concha para

suportar as manifestações de prazer do branco. Nesse sentido, associa-se à do fraco e à do

vigoroso, já que a escrava é vista aos olhos do branco como inferior, como objeto, uma

mercadoria, e o capataz como o proprietário, o superior. Porém, no universo do conto, essa

simbologia apresenta-se de forma invertida, pois Quashebah se apresenta como extremamente

forte e resistente, frustrando ao feitor, que fica impotente frente a ela. Quanto às conotações

do plácido e a do ofensivo, associam-se aos momentos em que a escrava escapa para o

barranco, mesmo sabendo que ao retornar ganhará muitas chibatadas, que tornarão sua pele

em carne viva. Diante de tanta brutalidade, sufoca, porém, seus gritos de dor, mantendo a

calma diante do insulto e da humilhação sofrida.

Seguindo sua discussão sobre as imagens relacionadas a conchas, Bachelard registra

como estas apresentam formas variadas, e destaca a Concha Bivalve de Vênus, na qual

Robinet divisa a forma da vulva de uma mulher.147

A associação da concha à mulher traz à

lembrança desta pesquisadora a forma como June Henfrey usa a imagem da concha em

relação ao corpo de Quashebah. Como já referido, essa imagem enfatiza a exploração e

objetificação da escrava pelo feitor. Aparentemente, tal como a concha inerte, Quashebah não

demonstra ter vida diante de Blackett: é apenas o corpo de uma mulher diante da exploração

do capataz, não havendo naquele momento qualquer sinal de emoção. Quando fica inerte aos

prazeres do senhor-de-escravos, ela abandona a concha, o seu corpo. Assim, pode-se

relacionar o abandono da concha-corpo nesse ato de resistência à metáfora da concha vazia e

do ninho vazio, que sugerem devaneios de refúgio, segundo Bachelard.148

Inicialmente, a imagem do ninho é de uma morada quente e terna para o pássaro, uma

casa de vida, que também está associada à imagem de descanso e tranquilidade. Essa imagem

146

BACHELARD, 1988, p. 182. 147

Ibidem, p. 183; 184. 148

Ibidem, p. 179.

72

desencadeia no indivíduo o devaneio da segurança, originando seu instinto de confiança no

mundo, dando uma ideia de refúgio absoluto. Em seu poder onírico, a casa é um ninho no

mundo onde não existe a experiência da hostilidade e da agressividade.149

Diante do processo de animalização ao qual Quashebah está submetida, distanciar seu

pensamento da brutalidade intrusiva do senhor é uma forma de manter a sua dignidade

intocada. Através do sonho e da imaginação, ela poderia ter o ninho que quisesse, evitando a

realidade perversa à qual estava presa, já que se sente desconfortável e considera inadmissível

ter que aceitar fazer algo à força, Quashebah procura manter o espírito e a imaginação em

algo que ela desejasse ou a fizesse querer continuar sobrevivendo.

Ainda sob o tema da concha, Bachelard comenta como esta remete à imaginação a

dialética do ser livre e do ser acorrentado.150

Essa imagem pode ser associada à viagem da

protagonista nos navios negreiros. A escrava lembra quando vive livremente no seu povoado,

sua captura e o momento em que é atirada para dentro de uma ―casa estranha feita de pedra‖,

onde passa pelas mais terríveis experiências de exploração, abuso e aniquilamento da

dignidade humana. Para sobreviver a essa realidade, mantém-se fechada na sua concha, onde

se refugia da dor, da exaustão e do desespero, pois sabe que não pode lutar contra a

superioridade estabelecida pelo branco. Sendo assim, consegue sobreviver à travessia, porque

mantém a sua alma protegida: ―[…] During the awful crossing in the big boat, she had stayed

alive by knowing that none of it was touching the real Quashebah, whom she was able to keep

away from the pain, the exhaustion and the despair‖.151

Conforme Bachelard, nas conchas comumente chamadas Grande Pia de Água Benta, a

natureza delineia um imenso delírio de proteção, uma verdadeira monstruosidade de

proteção; força que acompanha a grandeza e a massa de suas muralhas. Embora as conchas

sejam frequentemente associadas a objetos frágeis, moradas de pequenos moluscos, há

conchas de tamanho bastante invulgar. Uma delas, a Grande Pia de Água Benta, que tem em

cada uma de suas valvas um peso de 250 a 300 quilos e um metro e meio de comprimento,

enquanto o molusco pesa apenas catorze libras. Com essas conchas, pode-se traçar um

imenso sonho de proteção, um delírio de proteção e chegar a uma monstruosidade de

proteção. Assim, Bachelard toma a imagem dessa grande concha gigante como sinônimo de

149

BACHELARD, 1988, p. 169-177. 150

Ibidem, p. 181. 151

HENFREY, 1994, p. 28. ―[...] Durante a terrível travessia no grande navio, ela permaneceu viva por saber que

nada daquilo estava atingindo a real Quashebah, a quem ela era capaz de e manter longe da dor, da exaustão e do

desespero‖.

73

proteção em grau superlativo.152

Então, pode-se dizer que Quashebah sentia-se dominada

pelo imenso delírio do amparo da Grande Pia de Água-Benta, a qual a acompanha,

abraçando-a como uma fortaleza, e mantendo-a protegida.

Ainda como estratégia para escapar à violência e ao arbítrio do senhor branco,

Quashebah encontra no barranco um lugar para si, livre do olhar do Outro. Nesse espaço, ela

tem o controle, pois é o seu lugar, o seu ninho, para onde retorna sempre que se sente cansada

ou quando seu espírito ameaça ser quebrado por tantas chicoteadas. Lá, ela não precisa ficar

inerte, nem abandonar a sua concha e separar a sua alma do seu corpo. Ao contrário, é o único

lugar no qual ela pode ter liberdade não só para se movimentar ou para sonhar, mas para ser

ela mesma. Nesse sentido, o barranco torna-se invólucro para a sua essência, o alimento para

a sua alma, o seu espaço protegido, o seu mundo, o seu lar.

A esse respeito, lembra-se que, como Theano S. Terkenli registra, um importante fator

para a formação da noção de lar é a possibilidade de controle sobre ele. Ademais, o local em

que a escrava se acolhe lembra a sensação de refúgio e bem estar, tão amplamente relacionado

a regiões-lar.153

Além de refúgio, o barranco-lar proporciona à escrava um contexto de

autoidentificação, como é característico das regiões-lar.

Assim, pode-se dizer que Quashebah encontra paz, segurança e felicidade no barranco,

porque, além de ter controle sobre ele, relaciona com a sua África ao ver a entrada

parcialmente encoberta por arbustos, com suas raízes e árvores frutíferas, e ao escutar o

barulho do mar quando encosta seu ouvido nas suas paredes, e ao sentir a umidade, o cheiro

da terra, da vegetação. Lá, pode lembrar livremente da sua cultura e se sentir dona daquele

lugar, passando a desfrutar da liberdade tão sonhada.

A escrava descobre o seu local de refúgio numa noite chuvosa, quando opta por fazer

um aborto, levando consigo plantas e medicamentos feitos pela velha Mercy, que

funcionavam muito bem. Nessa noite, expulsa do seu corpo algo que a fazia se sentir suja e

abusada, pois aquela criança representa desonra, posse e imposição, o que lhe impossibilitaria

atribuir qualquer sentimento afetivo e materno a ela. ―She did not want this child. She would

not be able to love it, to feel it as hers. It was Blackett‘s and his alone. ―[…] Her true self

played no part in the rough couplings which left her feeling soiled and abused‖.154

152

BACHELARD, 1988, p. 189. 153

TERKENLI, 1995, p. 324- 327. 154

HENFREY, 1994, p. 28. ―Ela não queria essa criança. Ela não seria capaz de amá-la, senti-la como sua. Era

apenas de Blackett. Seu verdadeiro eu não participou desse acoplamento violento que a fez se sentir-se suja e

abusada‖.

74

A opção narrativa por situar a fuga na noite leva a uma reflexão sobre a simbolização

do espaço. Michael Ferber, em A Dictionary of Literary Symbols, descreve a noite como a

mais antiga das coisas, a escuridão que tudo precede ao vazio ou caos. Segundo ele, poetas

gregos e romanos a relacionam com silêncio, solidão, adormecer. A escuridão da noite estaria

vinculada ao mal, ao pecado, ao perverso, ao esquecimento, à mentira, à falsidade.

Representa, ainda, a morte e é tradicionalmente considerada um momento para meditação e

estudo.155

Ao pensar a noite no conto ―The Gully‖, pode-se dizer que Quashebah escolhe

justamente este período para o ato abortivo, porque era uma forma de se proteger e de anular

sua culpa. Precisava ficar completamente sozinha para assumir o seu pecado e o preço por não

se reprimir e aceitar que a sua alma seja transgredida.

Da mesma forma, pensa-se importante atentar à imagem da chuva, não apenas como

um elemento que constitui um cenário, mas para o seu papel de representação numa

linguagem figurada. Dentre os vários aspectos simbólicos da chuva, Michael Ferber a associa

ao sofrimento: é um símbolo relacionado aos momentos infelizes da vida. Por ouro lado,

simboliza regeneração, limpeza. Na poesia latina, a chuva, enviada do céu, é a semente que

fertiliza a terra. Um sentido associado, então, é o de cura para a sede ou aridez espiritual.156

Ao falar da chuva, não se pode deixar de associá-la aos trovões e relâmpagos. Segundo

Ferber, de acordo com os hebreus, gregos e romanos era por meio deles que os deuses se

manifestavam nos céus. Na origem latina, podem representar revelação, associando os flashes

de relâmpagos a alguma coisa que é quebrada pela magia.157

O significado da chuva parece ironizar a situação vivida pela protagonista, pois denota

fecundidade, vida, mas naquele momento a mulher negra estava optando por tirar uma vida

para salvar outra, ou seja, para continuar ―vivendo‖ dentro de suas crenças e princípios

Quashebah prefere esquecer o seu desejo de ser mãe. Ao tentar correr sob a terra encharcada,

ouve o barulho dos trovões no céu e a luz de seus flashes aponta para ela, como se os deuses

a acusassem e a punissem pela sua atitude egocêntrica. A chuva é sua aliada, pois, além de

lhe ajudar a não deixar rastros, lavaria a sua alma e, ao inundar o seu corpo, as águas

embeberiam o espírito de pureza e o hidratariam, mantendo-o vivo.

O fato de os negros viverem em cabanas e o senhor de escravos, Blackett, em uma

residência atrás da Casa Grande, distante dos alojamentos dos escravos, leva à percepção de

que aos escravos não se cogita o direito a momentos de vida privada. A hierarquia se faz

155

FERBER, 2007, p. 137-138. 156

Ibidem, p. 165. 157

Ibidem, p. 115.

75

presente, o proprietário das plantations vive na Casa Grande, em seguida o capataz e, a

alguns metros de distância, ficam as cabanas para os subalternos. A eles basta apenas um

abrigo, já que estão lá para servir ao branco, sendo, portanto, dispensável qualquer coisa que

possa se parecer a uma casa ou a um lar. Ademais, é de costume as escravas servirem ao

senhor-de-escravos sempre que lhes são solicitadas, não sendo diferente para Quashebah,

mesmo naquela noite chuvosa.

Diante disso, pode-se novamente recorrer à metáfora da concha, mas não como um

abrigo ou um lugar de refúgio. Associa-se aqui ao simbolismo de fecundidade. Conforme

Mircea Eliade, a sua semelhança com a vulva contribui para permitir essa analogia, às vezes

inscrita nas designações dos moluscos bivalves, como, por exemplo, o antigo nome

dinamarquês da ostra Kudefisk (Kude = vulva), que é associada ao órgão genital feminino.158

Apesar da escuridão, caminha em direção ao muro de pedra que marca a divisa da

fazenda, cujo nome era Stone-wall Field. Descobre que não está mais na plantation ao

tropeçar em terreno pedregoso e ao sentir a presença de arbustos, pois a sua infância na África

lhe desenvolveu um reconhecimento de mundo natural. O muro representa divisão, fronteira,

podendo, ainda, se fazer uma associação com prisão e isolamento, situações que já tinha

vivenciado no navio negreiro. Ao perceber que uma rocha está quase seca, deita-se para

descansar e esperar a noite passar. Nesse instante de segurança, começa a sentir os efeitos dos

remédios de Mercy: fortes dores indicavam que se inicia o processo do aborto. Percebe que o

sangue escorria.

O sangue, conforme Ferber, por ser uma substância vital e por sua notável aparência, é

possuidor de muitos significados simbólicos, destacando-se três grupos: sangue como vida,

sangue como família ou ancestralidade e sangue como sacrifício. Na época de Hipócrates, o

sangue era considerado um dos quatro fluidos vitais ou humores, e o seu equilíbrio

considerado essencial para a saúde e a sanidade humana. Ferber comenta como Robert

Burton, em seu livro Anatomy of Melancholy, interpreta o sangue como ―um quente, doce

temperado, humor vermelho,‖ geralmente relacionado a algo ―agradável, bem-disposto,

alegre‖ ou ―esperançoso, otimista‖. Pode também significar ―corajoso‖.159

Nesse contexto, o sangue que flui da mulher representa sua coragem em sacrificar

uma vida para continuar se mantendo fiel aos seus ancestrais e à sua integridade, pois aquela

criança seria uma prova concreta da exploração e aceitação de sua anulação como sujeito. Por

158

ELIADE, Mircea. Imagens e símbolos: ensaio sobre o simbolismo mágico-religioso. Chicago: Artes e

Letras/Arcádia, 1979, p. 125. 159

FERBER, 2007, p. 29.

76

outro lado, significa esperança de um dia ser livre para fazer suas escolhas e viver com

dignidade.

Quando entra no barranco, ao reconhecer as árvores frutíferas, Quashebah tem a

impressão de estarem dando-lhe boas-vindas. Pensa o lugar como a sua África, pois somente

em sua terra poderia desfrutar de momentos de felicidade e de calmaria. Essa sensação de

bem-estar e de proteção vem ao encontro do pensamento de Ferber ao dizer que arbustos,

raízes e árvores frutíferas simbolizam algo que pode crescer e morrer: pessoa família, nação,

tradição cultural.160

É por meio da memória que Quashebah refaz seu senso de lar, pois é

pelas lembranças do passado que conserva uma ligação com a sua terra natal, e os dias em que

era livre. No barranco, Quashebah encontra o seu espaço, o seu lugar onde ela pode ser livre

para sonhar e para ser ela mesma. O barranco passa a ser a sua concha, a sua ―cidade

fortificada‖, que atribui à fantasia uma intimidade completamente física: suas sólidas paredes,

com sua estrutura fechada, transmitem segurança que se associa à ideia de habitação, de casa.

Acerca dessa concepção, Bachelard alude a Bernard Palissy que, na sua obra Recepte

Veritable (Receita Verdadeira), desenvolve a metáfora da ―cidade fortificada‖ após observar

―uma pequena lesma que construía sua casa e sua fortaleza com a sua própria saliva‖.161

Assim, pode-se entender que cada ser encontra uma forma de sentir-se protegido daquilo que

lhe amedronta. A lesma é um molusco frágil, mas a sua casa lhe atribui um significado de

proteção, é a forma que encontra para se proteger do ―inimigo‖. Assim acontece com

Quashebah: o barranco é o local que encontra para se proteger da violência do branco. Não

tem portas, nem janelas, mas para ela significa segurança, na sua imaginação, é a sua ―cidade

fortificada‖.

Torna-se comum para Quashebah refugiar-se na sua ―concha‖, pois, diante de tanta

violência e crueldade que é obrigada a suportar, sente-se cansada e necessita alimentar a sua

alma fugindo, então, para o seu lugar de refúgio. As centenas de chicoteadas comumente

levadas ao retornar para a plantation não a abalam. Volta tão fortalecida que a força de cada

chibatada, apesar de lhe deixar marcas na pele, não consegue atingir o seu espírito. A

protagonista é como o caracol, cuja casa aumenta à medida que o corpo que a habita cresce:

toda vez que ela retorna daquele lugar sente-se mais robustecida, e a sua casa, a sua concha,

parece se tornar ainda maior.

Anos depois, mesmo quando Quashebah não consegue mais correr até o barranco por

se sentir cansada e enfraquecida, mantém em seus devaneios a presença daquele lugar,

160

FERBER, 2007, p. 219. 161

BACHELARD, 1988, p. 192-195.

77

associando-o a convicções do refúgio. O barranco continua, imaginativamente, a ser seu

ninho e a sua concha, para transformar a sua vida.162

She continued to visit the gully in her mind long after she had ceased to do so

physically. Working in the fields on hot afternoons, she would conjure up its cool

dampness, the smell of soil and vegetation, the sound of buried water to be heard

when she pressed her ear against the wall of its caves, like the sound of the sea in a

conch shell. She would have liked to have gone there to die when her time came, but

feared that in death she might then yeld up the secret of its whereabouts, which she

had guarded through her lifetime.163

Bachelard faz menção ao Abade de Vallemont, o qual destaca que os caracóis, por

construírem uma pequena casa que carregam consigo, estão sempre em casa, seja qual for a

terra para onde viaje.164

De forma análoga, a escrava não precisa mais ir até a caverna para

gozar da percepção de estar no lar, pois já o carrega consigo, desencadeando o devaneio da

segurança que pode evocar de qualquer lugar, e, na imaginação, dá-lhe continuidade ao seu

sonho de liberdade.

A segunda parte do conto ―The Gully‖ intitula-se ―I-Malachi‖, denominação que

corresponde ao nome de seu protagonista. I-Malachi está à procura de um lugar, de um espaço

próprio, onde possa sentir-se protegido, assim como seus irmãos rastafaris. Busca uma

morada onde se sinta livre das marcas da Babilônia. A referência não é ao grande império da

Antiguidade, mas antes à sua evocação simbólica no livro de Apocalipse: a mulher chamada

Babilônia, que se assenta sobre uma besta de sete cabeças e dez chifres, segurando uma taça

em sua mão. Essa mulher é descrita como ―a mãe das prostitutas‖: ―Com ela prostituíram os

reis da terra, e os habitantes da terra se têm embriagado com o vinho de sua prostituição‖.165

Nesse contexto, a mulher é símbolo de confusão, e o vinho que leva em sua mão é uma

representação das falsas doutrinas com que tem enganado a grande maioria dos habitantes da

terra, em uma analogia ao costume, entre a antiguidade oriental, de os exércitos vencedores

atordoarem com vinho aos inimigos que subjugavam. 166

Insinua-se, assim, no conto, a noção

de que I-Malachi é líder de uma comunidade que pretende se isolar de uma sociedade que

considera corrupta.

162

BACHELARD, 1988, p. 187. 163

HENFREY, 1994, p. 36. ―Ela continuava a visitar a caverna em seu pensamento muito depois de cessar de

fazê-lo fisicamente. Trabalhando nos campos, nas tardes quentes, ela evocaria sua umidade, o cheiro de terra e

da vegetação, o som da água escorrendo por debaixo do solo, que ela ouvia quando pressionava o ouvido contra

a parede das cavernas, como o som do mar em uma concha. Ela gostaria de morrer lá quando sua hora chegasse,

mas temia pelo segredo do seu paradeiro, o qual ela tinha guardado por toda a sua vida‖. 164

BACHELARD, 1988, p. 188. 165

A BÍBLIA, 2000, Apoc. 17:2. 166

ANDERSON, Roy Allan. O Apocalipse revelado. São Paulo: Casa Publicadora Brasileira, 1977, p. 191-195.

78

I-Malachi se depara diante de uma estrada que dá para um povoado pelo qual passa

movimentada rodovia. Encontra, então, um barranco que considera adequado para se instalar

com o seu grupo, supostamente o mesmo onde Quashebah costumava se refugiar. Porém,

devido ao progresso, o local encontra-se bastante modificado: de grandes arbustos e pedras,

está cercado por extensas áreas de terras cultivadas e casas ao fundo. Tais transformações no

cenário levam à percepção de que a narrativa está ambientada em período bastante posterior

ao em que a primeira narrativa do conto.

Inicialmente, faz-se importante comentar quão significativo é o nome do protagonista,

para que se possa atingir uma melhor compreensão da sua representação nesta narrativa.

Malachi (Malaquias), em inglês, é o último dos doze profetas do Antigo Testamento. O nome

significa ―meu mensageiro‖, em hebraico. Suas crenças incluem pureza ritual de sacrifícios,

os males dos casamentos mistos e do divórcio e o dia da vinda do julgamento.

Semelhantemente, o personagem Malachi partilha algumas das características do profeta do

Velho Testamento: costuma ter visões, uma vida simples, ressalta fortemente conduta e as

questões morais, insiste em aplicar à vida aos eternos princípios de Deus, defende ética e se

apresenta como reformador moral,167

embora a maneira como desmascara os desmandos

sociais pareça sugerir certo desequilíbrio mental.

I-Malachi se estabelece no barranco com mais seis homens, seis irmãos de seita,

sendo ele o mais velho deles. Sua proposta é organizar aquele lugar de tal modo que possam

habitá-lo e, além de plantarem bananas e figos, com sobras de tiras de borrachas fabricariam

sandálias, as quais venderiam na cidade como forma inicial de sobrevivência. No decorrer da

narrativa, o profeta tem visões acerca de uma mulher africana, provavelmente Quashebah, que

mais tarde se confundirá com outra mulher, Doris, a qual aparece no barranco com duas

crianças, dizendo serem filhos de um dos irmãos. Essa mulher efetivamente vem a infiltrar-se

entre eles, vindo a desestabilizar o grupo.

Após estabelecidos no barranco, este passa a ser a casa para esse grupo, o seu lar.

Segundo Bachelard, em seu livro A poética do espaço, o indivíduo se enraíza num ―canto do

mundo‖; a casa representa este ―canto do mundo‖, sendo o primeiro universo do indivíduo,

um verdadeiro cosmos. Todo o espaço habitado traz a essência da noção de casa, e o ser

abrigado vive a casa tanto em sua realidade como em sua virtualidade, através de

pensamentos e sonhos.168

167

BOOK of Malachi, Malachias. In: BELIEVE. s.d. Disponível em: <http://mb-

soft.com/believe/txs/malachi.htm> Acesso em: 25 maio 2011. 168

BACHELARD, 1988, p. 112.

79

O espaço escolhido por I-Malachi dá-lhe a sensação de bem-estar e segurança, uma

morada que pode ser relacionada à metáfora da concha, de refúgio. Além disso, também passa

a ser o seu lar, pois, segundo Terkenli, lar não se refere apenas a um lugar que dê ao sujeito

condições físicas ou espaciais, mas também condições habituais e sociais, no qual as pessoas

se identificam através de algumas medidas de controle.169

Dentre essas medidas, I-Malachi

decide a proibição do envolvimento com mulheres, pois estava determinado a viver uma vida

simples longe das tentações de Babilônia, a mulher decaída.

Pode-se, contudo, também pensar esse lugar simples como uma moradia em que a

segurança e a felicidade podem desencadear o devaneio da solidão. Como Bachelard afirma,

―todo canto de uma casa, todo ângulo de um aposento, todo espaço reduzido onde gostamos

de encolher-nos em nós mesmos e, para a imaginação, uma solidão, ou seja, o germe de um

quarto, o germe de uma casa‖.170

Henri Bachelin relaciona o centro da casa a um centro de força inserido em uma zona

de proteção maior. A simplicidade da cabana remete a lendas, e à imagem da cabana do

eremita, onde se aprofundam lembranças vividas, e deslocam-se recordações vividas para se

tornarem lembranças da imaginação. Em tal lugar, localiza-se aquele que está só diante de

Deus, que se isola do mundo para meditar, abstendo-se de qualquer tipo de riqueza, e

acolhendo a pobreza com feliz intensidade em seu refúgio absoluto.171

Diante disso, pode-se

dizer que I-Malachi apresenta semelhanças com um eremita.

Ao compararmos a ideia de barranco para Quashebah e para I-Malachi, percebe-se que

está associado à noção de proteção, concha, abrigo e lar, porque lhes dá segurança e liberdade

para que possam agir de acordo com os seus valores e crenças. Está relacionada à cabana,

metáfora que lembra seu refúgio na solidão, com a intenção de encontrarem momentos de paz

e alimentação espiritual.

No momento em que Doris aparece na caverna com as duas crianças, dizendo serem

filhos de I-Zelius e obrigando os homens a aceitarem a sua presença, passa a causar grandes

preocupações e inquietações ao líder do grupo, o qual a associa com Jezabel. Duplica-se,

assim, no conto, a noção da mulher como símbolo de degradação. inicialmente, a mulher já

havia sido sugerida como símbolo de degradação através da personagem Doris; essa ideia é

reforçada através de Jezabel, filha de poderoso rei da Fenícia, que tornou-se, por casamento,

rainha de Israel durante o reinado de Acabe (870-853 a.C.) e transformou o palácio em antro

169

TERKENLI, p. 325. 170

BACHELARD, 1988, p. 198. 171

Ibidem, p. 129-130.

80

de luxúria, malandragem, excessos e vícios sexuais. Além disso, exterminou os profetas do

Senhor e colocou na casa nobre os sacerdotes, sacerdotisas e profetas de Baal e Astarote. Ela

era uma mulher determinada e independente, e não media meios para conquistar os seus

objetivos.172

Doris, assim como Jezebel, não desiste de seus objetivos, e decide que não será

ignorada e desprezada pelos homens do barranco. Esforça-se para chamar sua atenção, seja

quando estão na plantação, na fabricação das sandálias, ou com as crianças. Simula estar se

livrando de insetos; suspira a todo momento.

Nas suas visões, I-Malachi costuma ver uma mulher africana amarrada num poste

sendo chicoteada, e sua imagem funde-se com a forma sensual de Doris. Mas depois que ela

parte com um dos irmãos, Ras Simeon, percebe que não é mais Doris que está amarrada, mas

a mulher africana, sendo ele o agressor. Tem a impressão de que ele surra com prazer até que

o chicote queima a palma da sua mão; então, ele o atira ao chão. Nesse momento, percebe-se

que I-Malachi se torna o agressor, unindo-se imageticamente à figura do senhor branco.

A presença da mulher representa uma ameaça à paz e a tranquilidade ao ninho de I-

Malaqui, fazendo-o perder o controle do espaço. Bachelard declara que, no momento em que

o indivíduo passa a contemplar o seu ninho, cria confiança no mundo e a experiência da

hostilidade do mundo é mais tardia.173

Contudo, a presença de Doris não permite que I-

Malaqui desencadeie o devaneio da segurança em seu ninho. Este pode, antes, ser associado a

―um fruto que se intrumesce, que se comprime contra seus limites‖174

. Doris representa a

depravação, as tentações da Babilônia, tudo o que o eremita rastafari despreza, sendo uma

ameaça para a paz espiritual que procura e para a doutrina que tem como filosofia de vida.

Assim, por sentir-se intimidado, o líder quer encolher-se e proteger-se no barranco, mas,

como se tivesse crescido, sente-se oprimido, como se o barranco já não o pudesse conter.

Nas confusas visões de I-Malachi, aparece a mulher africana. Metade do seu rosto

zomba dele e suas mãos correm sobre seus seios de uma forma sedutora, enquanto a outra

metade, com a cabeça modestamente coberta, parece olhá-lo com preocupação. Essa imagem

composta faz pensar na justaposição de Quashebah (a modesta mulher africana) e Jezabel (a

meia face com o olhar irônico e gestos sedutores). Tal figura questiona-o, ironizando seu

poder como profeta e lembrando-lhe de que a sua autoridade estava arruinada. O olhar

apreensivo sugere uma atmosfera de sofrimento e de angústia, porque ela sabe que, mais uma

vez, o branco irá tirar-lhes a liberdade, tomando posse do barranco. Por isso, é preciso que I-

172

JEZABEL, Queen of Israel. Women of Royalty. In: TRIPOD. s.d. Disponível em:

<http://royalwomen.tripod.com/id21.html>. Acesso em: 17 ago. 2011. 173

BACHELARD, 1988, p. 177. 174

Ibidem, p. 175.

81

Malaqui descubra sua identidade, para que possa ser realmente um homem livre e, a partir de

então, levar consigo suas raízes culturais.

Com a vinda dos policiais até o barranco para expulsar I-Malachi e Ras Joseph, o

único que ainda o acompanha, o líder finalmente se identifica com o lugar. No momento em

que é forçado a se retirar, está costurando tiras de pano vermelhas, verdes e amarelas para

fabricar as túnicas com que se veste. E então, imediatamente, fica em pé e junta seus pés,

orgulhosamente, na posição de Rastamen, em um movimento de oposição ao sistema do qual

fazia parte. Essa imagem é muito significativa, levando a uma reflexão a respeito desse

movimento negro, e à compreensão do nome do irmão Ras Joseph.

Rastafari é uma palavra do idioma aramaico, uma língua eclesiástica da Etiópia, usada

pela real dinastia do povo de Davi. A palavra ―Ras‖ significa Rei, e ―tafari‖ paz, sendo,

portanto, Rastafari, ―Rei da paz‖. Alguns ainda atribuem o significado de ―cabeça‖, vindo a

simbolizar o indivíduo que tem sabedoria. O rastafarianismo é um movimento pan-africano

com aspectos messiânicos que se originou das previsões de Marcus Garvey. Os Rastas veem

os africanos e seus descendentes no Oeste como se estivessem vivendo na Babilônia, sob a

opressão da sociedade branca por mais de 400 anos de perseguição e colonialismo.

Uma das características da linguagem rastafari é a utilização do pronome eu – I em

inglês – como sufixo ou prefixo, ou como parte de termos compostos. ―I and I‖ (Eu e Eu) é

usado seja onde um pronome aparecer no discurso; substitui ‗você e eu‘, expressando a

igualdade presumida entre os Rastas.175

A cultura Rastafari tem ligação muito forte com a natureza, princípio básico da

criação; os Rastas são naturalistas e vegetarianos. As cores têm importância fundamental e

marcante, pois traduzem significados que representam a própria cultura rastafari, com seus

princípios básicos de união e defesa de suas raízes. A cor verde refere-se à África, a Mãe da

criação; a cor ouro simboliza a riqueza que foi roubada dos povos nativos por opressores; o

vermelho, o sangue derramado durante a escravidão e, o preto, os guerreiros da raça negra.176

I-Malachi, focalizado ao fim do conto em sua identidade Rastafari (que, contudo, é

sugerida desde o início por suas atitudes contra o sistema e pela adoção do I- junto ao nome),

tem, assim, a identificação com o movimento claramente confirmada. O líder é retirado do

barranco pelos policiais e, por um instante, lança um olhar para dentro do barranco,

admirando a calma, proteção e profundidade que lhe outorgara. Enquanto Doris zomba dele,

175

RAS Tafari e a profecia etíope. Cultura reggae. São Paulo: Delfa Reggae, s.d. Disponível em:

<http://www.delfareggae.com.br/ras.htm>. Acesso em: 17 ago. 2011. 176

A CULTURA Rastafari. In: RASTAFARI Inside. 2007. Disponível em:

<http://rastashanti.blogspot.com/2007/08/paz-e-unio-so-princpios-bsicos-de-uma.html>. Acesso: 30 maio 2011.

82

juntamente com a multidão, vê a mulher africana, que tinha conseguido se livrar de Doris. A

presença da mulher africana sugere a luta pelo não esquecimento da história de um povo que

o Outro tentou anular, pois aquele lugar foi escolhido para fazê-lo lembrar da sua missão

como um Rastaman.

Nesse contexto, I-Malachi descobre o valor da concha como lar, como alimento para o

seu espírito, assim como Quashebah, que foge para a caverna para se fortalecer e receber

energia para enfrentar a brutalidade à qual é submetida. Ao apresentar a metáfora do caracol,

Bachelard lembra a interpretação de Charbonneaux-Lassay, para quem essa imagem remete a

um tranquilo ser terrestre que, no inverno, fecha-se em sua concha, como que em um caixão

de sólido calcário e na primavera rompe a sua clausura, voltando à luz do dia cheio de vida.

Dessa forma, o caracol é símbolo de esperança. Ao se reconhecer e redescobrir o seu passado,

I-Malachi volta a entender a sua história e isso lhe dá esperança de continuar a viver

defendendo os seus ideais Rastafari. Nesse momento, pode-se dizer que ele está preparado

para a vida, pois ele está renovado, despertou para o seu ser, o seu eu, a sua identidade. 177

A imagem lembra a experiência de Quashebah, que descobre o barranco, passando a

pensá-la como o seu lar. Esse é também um momento de esperança, pois daquele dia em

diante ela já não é mais a mesma, ao contrário, sente-se muito mais invencível e alimentada

pela sua tradição, tanto mais quanto mais cresce seu desejo de retorno a esse lugar de

aconchego.

Assim, em ambas narrativas, pode-se associar o barranco à metáfora da concha de

Bachelard e das ―conchas de ressurreição‖ de Charbonneaux-Lassay. Segundo ele, o molusco,

em seu conjunto, carapaça e organismo sensível, significa, para os Antigos, um emblema

completo do ser humano, corpo e alma. Essa simbologia fez da concha o emblema de nosso

corpo, que encerra, em um invólucro exterior, a alma que anima o ser por inteiro,

representado pelo organismo do molusco. Assim como o corpo fica inerte quando a alma se

separa dele, da mesma forma a concha se torna incapaz de se mover quando se separa da parte

que a anima. O caracol terrestre, como exemplo de esperança, no inverno fecha-se na sua

concha, como em um caixão, e na primavera rompe sua clausura.178

Semelhantemente,

Quashebah fica no barranco para se preparar para a vida lá fora, enquanto que I-Malachi, não

tão cheio de vida, mas fortalecido pela imagem de Quashebah, consegue desfrutar de

momentos de paz e tranquilidade, formando uma sociedade no barranco.

177

BACHELARD, 1988, p. 185. 178

Ibidem, p. 185.

83

Tanto Quashebah quanto I-Malachi estão à procura de um lar e o encontram no

barranco. Para ambos, o barranco, além de conotar segurança e paz, lembram, também, pátria

de origem. É uma região-lar para Quashebah, porque há uma interação com o meio ambiente,

visto que ela o associa às árvores, ao som das águas do mar e ao cheiro da terra com a terra

natal, fortalecendo-lhe o senso de identidade em relação à África. O barranco associa a

dimensão coletiva de lar para ambos personagens, está carregado de referências ao ―país de

origem‖, ao ―lugar de nascimento‖.

Justifica-se ainda o barranco como lar, porque apresenta a característica enraizamento:

ambos se sentem pertencentes ao lugar, identificando-se com ele, e estabelecendo relações de

afetividade, familiaridade e bem-estar. Além disso, para I-Malachi, associa-se, ainda, a laços

sociais, pois ele organiza no barranco uma sociedade, embora temporariamente. Assim,

ambos têm o controle sobre aquele espaço, ela total e ele parcial e temporário; têm a liberdade

de pensar livremente.

3.3 Contextos contemporâneos: a vida na cidade e na metrópole

3.3.1 Goodnight, Miss Simons

O conto ―Goodnight, Miss Simmons‖ retrata uma sociedade dominada pelo

preconceito racial: a ―colour-marked society‖, em que as relações entre brancos e negros estão

bem codificadas. Simmons, um alfaiate de estatura mediana, pele morena, cabelos

encaracolados e olhos negros, sempre observa Eva ao voltar da escola e está determinado a se

casar com ela, mesmo sendo viúvo e com idade duas vezes superior a dela. Os pais de Eva

não demonstram interesse nesse relacionamento, pois sentem-se superiores ao jovem. Como

possuem a pele mais clara que a de Simmons, quase branca, eles o subestimam, devido a seus

traços de ascendência negra, esquecendo-se que pertencem à mesma origem.

O preconceito racial aqui presente não acontece entre brancos e negros, mas, sim,

entre negros. Há diferentes conceitos para racismo, mas todos têm um ponto em comum: a

distinção ou classificação entre superiores e inferiores. Daniele Benício e Thomas Bonnici

observam como, nas definições sobre racismo, o que impera é o verbo ―distinguir‖, que vem

acompanhado de outro verbo, ―hierarquizar‖, levando à compreensão de que o racismo pode

ser caracterizado tanto por questões biológicas, quanto por questões culturais e de que adquire

84

conotação fortemente negativa em uma sociedade heterogênea.179

Pode-se dizer, então, que o

fato da família de Eva discriminar Simmons demonstra uma rejeição à sua cor, à sua

identidade, numa tentativa de se igualar ao branco e de ser aceito por ele.

Em seu famoso estudo de natureza psicológica sobre o negro, Pele negra, máscaras

brancas, Frantz Fanon objetiva compreender a natureza da relação entre negros e brancos. De

um lado, percebe o branco fechado na sua brancura e o negro na sua negrura. Contudo, o

negro quer ser branco. Quer provar ao branco, que se julga superior a ele, a riqueza de seu

pensamento, a igual valia de seu intelecto. Desenraizado, disperso, confuso, o negro é

condenado a ver se dissolverem, umas após as outras, as verdades que elaborou. Desenvolve

um complexo de inferioridade após um processo econômico e pela interiorização ou

epidermização de sua inferioridade. Contudo, ao buscar embranquecer a raça, torna-se tão

infeliz quanto aquele que prega o ódio ao branco.180

Além do preconceito de cor, pesa contra Simmons o preconceito social. Assim,

esconde suas origens. Casa-se com Eva após o falecimento do pai da jovem e assume a

pequena propriedade. Mas nunca revela que é filho de branco, proprietário de fazenda, com a

cozinheira negra. Simmons é um dos cinco filhos fruto de uma longa e estável relação.

Herdam o nome do seu pai, que lhes deixou um patrimônio modesto, mas suficiente no seu

testamento. Contudo, sua família só vem a descobrir sua origem quando ele fica doente e

recebe, ocasionalmente, a visita de sua meio irmã branca, Josephine.

Logo que chega ao vilarejo, Simmon procura impressionar a população com seu estilo,

elegância e presença urbana. Possui uma charrete puxada a cavalo, sendo o único proprietário

de veículo, com exceção dos proprietários de fazendas. Pode-se pensar que o fato de querer

aparentar uma boa posição social seja uma estratégia para se defender do preconceito e do

desprezo do branco, além de querer sentir-se branco, pois ―ser branco é como ser rico, como

ser bonito, como ser inteligente‖.181

Segundo Fanon, o negro não se satisfaz no isolamento,

porque na sua concepção só existe uma porta de saída, a qual dá no mundo branco. É sua

preocupação constante atrair-lhe a atenção; deseja alcançar o santuário branco, ser como ele, e

possuir as coisas que ele possui.182

É interessante atentar à profissão de alfaiate de Simmons. Os negros, provavelmente,

não têm condições de mandar fazer suas roupas sob medida; somente os que possuem uma

179

BENÍCIO, Daniele; BONNICI, Thomas. O Racismo no Romance Le Sang de L‘anglais (1993), de Carl de

Souza. Estação Literária, Vagão-volume 2, 2008, p. 67. Disponível em: <http://www.uel.br/pos/letras/EL>.

Acesso em: 28 ago. 2011. 180

FANON, 2008, p. 26-28. 181

Ibidem, p. 60. 182

Ibidem, p. 60.

85

renda maior, que seriam os brancos. Sendo assim, ao costurar para o branco, Simmons não só

aparenta uma boa posição, como também mantém-se em meio a eles, participando do seu

mundo, tendo a consideração destes e, de alguma forma, sendo por eles valorizado.

Frantz Fanon comenta a situação do negro que chega à França e assume a língua

francesa, não compreendendo mais o crioulo, e o do camponês que, ao retornar à casa paterna,

finge desconhecer um arado. Questiona o porquê dessa alteração da personalidade. O fato de

o negro adotar uma linguagem diferente daquela da coletividade em que nasceu representa um

deslocamento, uma clivagem. Destaca o que Westerman escreve em The African Today

acerca do sentimento de inferioridade entre os negros, principalmente entre os ―evoluídos‖,

que tentam permanentemente eliminar a inferioridade usando, como estratégia ingênua, o

vestuário:

Usar roupas europeias ou trapos da última moda, adotar coisas usadas pelos

europeus, suas formas exteriores de civilidade, florear a linguagem nativa com

expressões europeias, usar frases pomposas falando ou escrevendo em uma língua

europeia, tudo calculado para obter um sentimento de igualdade com o europeu e

seu modo de existência.183

Eva apresenta posição econômica superior à de Simmons, pois sua família é

proprietária de terras. Além disso, a jovem tem uma profissão valorizada: é professora e não

parece ter traços de origem negra. Sua pele é bem mais clara que a de Simmons. Assim, é

possível que o alfaiate tenha se casado com Eva com a intenção de ascensão social, como uma

forma de ―ser branco‖. Em uma palestra nos encontros inter-raciais de 1949, Louis- T. Achille

dizia que, num casamento inter-racial, quando o cônjuge é de cor, pode-se pensar que ele

esteja usando o enlace como forma de consagração subjetiva com relação ao preconceito de

cor que sofreu durante muito tempo.184

Por outro lado, pode-se perceber que Simmons sofre discriminação e preconceito na

sua família, pois quando sua irmã, por parte de pai, visita-o, conversa na porta do seu veículo.

Não entra na casa do meio irmão; os filhos de Simmons ficam a uma certa distância,

enfileirados, para avistar tia Josephine com seus olhos azuis.

Esta cena – os filhos enfileirados admirando a tia de olhos azuis – consiste numa

manifestação de preconceito. Segundo Tomaz Tadeu Silva, a marcação simbólica é o meio

pelo qual damos sentido a práticas e a relações sociais, definindo, por exemplo, quem é

excluído ou incluído; essa diferenciação social manifesta-se, dentre outros modos, através da

183

FANON, 2008, p. 38-40. 184

ACHILLE apud FANON, 2008, p. 75.

86

classificação das diferenças vivenciada nas relações sociais.185

Ora, no corpo estão inscritas

as marcas da diferença geradoras do preconceito; é ao corpo de alguém que reage, e essa

reação ocorre, muitas vezes, em relação à diferença traduzida em poder que esse corpo

representa. A imagem de alguém sempre tem um signo de poder.186

Então, pode-se dizer que

o fato de Josephine não entrar na casa do irmão, além de ser um exemplo de preconceito, é

também de alteridade e de que a hierarquia do branco sobre o negro permanece, mesmo no

período pós-escravocrata. O tratamento à distância aos sobrinhos e o encantamento destes

pelos olhos azuis da tia representa a exclusão, a anulação do negro da sociedade e a

permanência do branco como exemplo de civilização e beleza.

Note-se, a respeito da profissão de Eva, que a jovem não trabalha na escola da sua

comunidade, pois só era para meninos e emprega professores do sexo masculino, levando-a a

lecionar em uma outra escola infantil, mista, não muito longe dali. De acordo com o modelo

britânico, nas mais antigas e tradicionais escolas de Barbados, havia separação entre meninos

e meninas, ou havia turmas diferentes para cada sexo, na mesma instituição. Estabeleceram-se

primeiro as escolas para brancos: a primeira foi fundada em 1686, mas apenas em 1818 surge

a primeira escola para meninos negros. Já no período colonial fundaram-se, também, escolas

mistas, como a Combermere School, fundada em 1695; contudo, a admissão de mulheres era

rara e, pelo menos em Combermere, foi descontinuada, tendo sido retomada somente em

1976. Em 1966 a rainha Elizabeth II juntamente com o seu esposo, o Duque de Edinburg,

visitaram Barbados e fundaram uma escola mista,187

exatamente no ano em que o Reino

Unido concedeu a sua independência integrando Barbados à Comunidade Britânica das

Nações.188

Sendo assim, pode-se apreender que escolas de um único sexo, cujas aulas são

ministradas por professor do gênero correspondente, significam prestígio e tradição, o que é

possível apenas às crianças brancas e de famílias tradicionais. As mistas provavelmente se

localizavam mais distante da comunidade e são de menos prestígio, além de serem acessíveis

às famílias com menos poder aquisitivo. Isso é confirmado pelo fato de que as filhas de Eva -

crianças negras, ainda que com pele clara como a dela - estudaram na escola mista onde ela

tinha trabalhado anteriormente. Até por volta de 1960, a sociedade de Barbados era composta

185

SILVA, Tomaz Tadeu. Identidade e diferença. A perspectiva dos estudos culturais. Petrópolis: Vozes, 2000,

p. 14. 186

ELIAS, Norbert. Os alemães: a luta pelo poder e a aevolução do habitus no século XIX e XX. Rio de Janeiro:

Jorge Zahar Editor, 1997. 187

EDUCATION in Barbados Information Handbook. In: BARBADOS: The Planning & Research Section

Ministry of Education, Youth Affairs & Culture, 2000. Disponível em:

<http://www.mes.gov.bb/UserFiles/File/Education_in_Barbados.pdf>. Acesso em: 08 set. 2011. 188

BARBADOS, 2002, p. 339-340.

87

por uma pequena elite de plantadores, comerciantes, em grande parte de ascendência

europeia; outra classe, um pouco maior, formada por contadores, advogados, médicos,

jornalistas e professores de ascendência diversa. Um grande número de trabalhadores do

campo e de empregados domésticos de ascendência africana formam a populosa classe

baixa.189

Sendo assim, a classe de professores se enquadra na classe média da qual Eva faz

parte. Logo, ela detém certo prestígio social, porém, sua cor e gênero não a qualificam para

lecionar na escola masculina de elite. Evidência deste prestígio é o fato de que Eva, mesmo

após a falência econômica, continua sendo respeitada e lembrada respeitosamente como

professora. A comunidade continua cumprimentando-a, juntamente com Edna, sempre de uma

forma respeitável.

Após o casamento, Eva e Simmons passam a morar no vilarejo, na casa de pedra coral

sólida, que é grande o suficiente para as dez crianças que vieram em quinze anos. Uma

faleceu ao nascer, outras duas, com oitos meses de vida. Simmons prospera e Eva, apesar

dessas experiências maternas, está feliz na sua sólida casa, com sua boa mobília de mogno e

seus sete filhos, dois meninos e cinco meninas, além de uma funcionária que a ajuda. A sua

casa é confortável e o mobiliário em mogno indica certa posição social, o que leva Eva a não

exercer mais a sua profissão, passando a se dedicar apenas a sua família.

No entanto, a vida de Eva começa a seguir outro destino, pois seu marido, dominado

pela bebida, leva a família à falência e nunca mais consegue recuperar a boa fase financeira.

A situação piora com a morte de Simmons e, consequentemente, abala o prestígio familiar.

Inicia a decadência da família, ocasionando sua desintegração. Ao início do conto, a casa se

encontra aos pedaços e o relacionamento familiar está bastante afetado, especialmente, entre

Edna e Eva. As relações entre mãe e filha são bastante distantes. Edna não conversa muito

com a mãe e esta sofre por não poder ajudá-la.

Edna é uma mulher alta, de meia idade, cabelos longos, soltos e pele clara, embora

sangue misto. Em sua juventude, foi uma mulher desejável, mas orgulhosa e arrogante, o que

a fez desprezar outros pretendentes. Depois, há uma desilusão amorosa, que a abala muito.

Com o passar dos anos, sente-se abandonada, e começa a se encontrar com homens de

diferentes classes, para grande vergonha de Eva, pois isso é do conhecimento de todo o

vilarejo. O declínio de Edna simboliza também o de sua família, pois, assim como ela, a sua

mãe não se veste nem come melhor do que os trabalhadores da fazenda, os quais formam o

189

BARBADOS. Countries and their cultures. s.d. Disponível em: <http://www.everyculture.com/A-

Bo/Barbados.html>. Acesso em: 08 set. 2011.

88

povo da aldeia. O nível de conforto doméstico não é alto. É devido às lembranças de um

amável alfaiate e do antigo prestígio à professora que os vizinhos, frequentemente, ao parar

para cumprimentá-las na varanda, presenteiam-nas com alimentos, como uma forma de ajudá-

las.

Pode-se dizer que o espaço ocupado por Eva e Edna não lhes oferece mais condições

físicas de sobrevivência. A casa está desmoronando; do mobiliário, poucas peças boas restam.

O declínio da ambiência física espelha o da família que ali se abriga. A conexão entre lar e

família está, também, afetada. Outro indicador de decadência familiar é a desintegração social

e psíquica de Edna que, depois de desprezada pelo pretendente, começa a se prostituir. Já

agora seu corpo deixa de ser belo como outrora. Os adjetivos empregados para descrevê-la

assim o demonstram: ―sagging body”, “tormented flesh”; por outro lado, ―garish mask” e

““skimpy dresses‖ sugerem a vistosa maquiagem e forma de vestir das prostituas.190

Conforme o narrador, Edna costuma retornar quando o sol está alto, às vezes depois do

primeiro canto do galo, frequentemente bêbada. Esse cenário faz pensar que Edna se prostitui

por opção, uma vez que sofre uma grande decepção no passado ao ser abandonada pelo

homem que amava, passando a desvalorizar-se, e a aceitar essa depreciação do negro por

parte do branco. De acordo com Thomas Bonnici, nas sociedades pós-coloniais, o sujeito e o

objeto pertencem inexoravelmente a uma hierarquia em que o oprimido é fixado pela

superioridade moral do dominador.191

Pode-se pensar que Edna se vale da prostituição para poder se sentir, pelo menos por

um momento e em sua fantasia, mulher de um branco. Fanon, em seu livro Pele negra,

máscaras brancas, comenta como as mulheres negras desejam um amante ou um namorado

branco, como uma forma de embranquecer e salvar a raça, não no sentido de preservar a

originalidade da porção do mundo onde elas cresceram, mas para assegurar sua brancura. É

fundamental não sombrear de novo a tez, por isso, é preciso escolher para seu relacionamento

o menos negro. As mulheres de cor, as desgrenhadas, se atormentam em pensar ―em uma

noite maravilhosa, um amante maravilhoso, um branco‖. É preciso que elas compreendam,

um dia, que os brancos não se casam com uma mulher negra, mas aceitam correr o risco,

porque precisam da brancura a qualquer preço.192

Os negros adotam, assim, uma atitude de

―mania‖, quando a cultura estrangeira, ou do Outro, é tida como superior. No caso, há rejeição

de suas origens e dos irmãos de cor.

190

HENFREY, 1994, p. 51-52. ―flacidez corporal, corpo atormentado, maquiagem extravagante, vestidos

provocativos.‖ 191

BONNICI, 2000, p. 17. 192

FANON, 2008, p. 57-59.

89

O discurso colonial consistia em fazer com que o colonizado acreditasse que era um

ser inferior e sem cultura e submeteu milhões de pessoas a acreditarem na existência de uma

cultura superior. Nesse discurso, estava incluída a mulher, a qual era vista como subalterna e

sem voz. Sendo assim, ela foi duplamente colonizada. Para Bonnici, ―a dupla colonização é a

subjugação da mulher nas colônias, objeto do poder imperial em geral e da opressão patriarcal

colonial e doméstica‖.193

A mulher era intelectualmente inferiorizada e estava sujeita a todo

tipo de exploração e dominação.

Esse tipo de abuso e opressão é perceptível na cena em que Eva percebe que a filha

tem na face contusões e que os seus lábios estão inchados. Edna é agredida e aceita essa

agressão, tanto que na noite seguinte retorna ao local de costume. A mãe segue a filha e a vê

prostituindo-se. Com marcas de tristeza no rosto, percebe sua decadência, mais uma etapa da

degradação familiar. Chocada, Eva desmaia. É carregada para casa por um vigia noturno de

uma plantation, chamado Hooper, e mais dois homens. Ao se despedirem de Edna, Hooper

usa as palavras: ―Goodnight, Miss Simmons!‖,194

como tentativa de mascarar a situação, pois

esses mesmos homens que utilizam os serviços de Edna, agora, de forma velada, a censuram.

Observa-se uma assimilação da imagem de poder pelos personagens, Hooper, um homem

branco, além de demonstrar desprezo, dá ordens à mulher negra, Edna.

Recorde-se como Michael Ferber registra, em seu dicionário de símbolos, a noite

como a escuridão que tudo precede ao vazio ou caos.195

Embora ―good night‖ seja a expressão

convencional usada para despedida à noite, parece haver um sentido irônico em night, noite.

Como signo do fim de um ciclo, a noite, com sua escuridão, pode simbolizar o declínio dos

Simmons, Além disso, na experiência cotidiana, geralmente à noite, em pequenas

comunidades tradicionais, as moças solteiras, senhoritas, costumam permanecer nas suas

casas juntamente com suas famílias se recolhendo cedo da noite, o que não acontece com

Edna. A palavra ―senhorita‖ é uma forma abreviada originada de ―Mistress‖, palavra usada no

Reino Unido na década de 1600. A palavra é usada como um título para mulheres solteiras e

também era tradicionalmente utilizada para tratar as mulheres jovens, em geral as menores de

dezoito anos, especialmente aquelas que pertenciam às famílias de classe alta. Era também

usada pelos alunos para tratar os professores na escola na cultura britânica.196

Existe, ainda, a

tradução de ―Mistress‖ como amante, usada na década de 1600, o que pode ser uma forma de

193

BONNICI, 2005, p. 53. 194

HENFREY, 1994, p. 54. ―Boa noite, Senhorita Simmons!‖ 195

FERBER, 2007, p. 132.

196

ORIGIN of Miss and Ms. In: DIFFEN. s.d. Disponível em:

<http://www.diffen.com/difference/Miss_vs_Ms>. Acesso em: 10 set. 2011.

90

sarcasmo por parte de Hooper ao se referir a Edna como senhorita, já que todos tinham

conhecimento de que ela era uma mulher vulgar. Há um declínio econômico e emocional que

pode ser interpretado como mais uma forma de violência. Não se trata de violência física, mas

verbal, através da disfarçada censura: ― ‗I hope you going stay home and look after the old

lady now!‘ he said‖.197

Edna é condenada por se prostituir e abandonar a mãe, esquecendo-se

de seus valores de mulher e filha, deixando de se comportar realmente como uma ―miss‖,

senhorita.

Em ―Goodnight Miss Simmons‖, pode-se dizer que há a formação e a deformação de

lar, pois no passado Eva tinha o controle sobre o espaço, isto é, tinha o domínio sobre ele, o

que não acontece agora, já que não tem mais autoridade sobre Edna e muito menos o seu

respeito e preservação de valores. Também o relacionamento familiar foi afetado, não só com

a filha, mas com os demais filhos. Não parecem manter contato e muito menos visitá-la; Eva

guarda apenas na memória momentos vividos com eles e com os netos. Essa perda de controle

sobre o lar pode-se associar ao desmoronamento físico da casa, simbolizando não apenas a

falência da família e a ausência de conforto, mas também a perda da afetividade e dos elos

familiares.

Eva, aos oitenta anos de idade, tem cabelos brancos, e sua rotina é passar o tempo

sentada numa cadeira de balanço sobrevivente de um par que ela e o marido tinham comprado

há mais de meio século antes, quando se casaram. A adoção de rotinas representa estratégia de

sobrevivência, que lhe permite tornar o seu espaço um lar, ajudando-a a preservar sua

referência familiar no tempo e no espaço. A cadeira é uma referência do seu passado; toda vez

que Eva senta-se nela, preenche a sua necessidade de refúgio e vai trazendo à memória o seu

lar pessoal e o seu lar coletivo, isto é, todas as experiências ligadas com a família e com a

comunidade.

Porém, o lar de Eva vai aos poucos se desconstruindo e a decadência da família deixa

claro que é difícil a um negro conseguir se manter na sociedade, é muito mais comum ser

visto à margem, como Edna. A frase ―These pale-skinned, near-white people appeared to

have squandered the advantages that accrued to them naturally in that colour-marked

society‖198

exemplifica esse preconceito racial. Aos negros, embora de pele clara, atribui-se

falta de competência para administrar vantagens que lhes advêm pela semelhança da cútis

com a do branco.

197

HENFREY, 1994, p. 54. ― ‗Eu espero que você fique em casa e cuide da velha senhora agora!‘ ele disse‖. 198

Ibidem, p. 48. ―Essas pessoas de pele clara, quase brancas, pareciam ter desperdiçado as vantagens que

conseguiram naturalmente em uma sociedade marcada pela cor‖.

91

Pode-se dizer ainda que atualmente, no lar de Eva, não se percebe a presença da

qualidade geográfica de enraizamento, a qual se refere ao indivíduo se sentir pertencente ao

lugar. Isso ocorre, porque ela não se identifica mais com o lugar, não estabelece mais relações

de afetividade e familiaridade, nem bem-estar e sociais, pois há uma distância entre Eva e

seus filhos. Vive precariamente, já que vive na miséria e a reputação da família também está

afetada pelas atitudes de Edna; apenas sobrevivem, dão continuidade a sua existência. Além

disso, sabe que a exclusão social que sempre existiu hoje está mais presente, pois a situação

econômica reforça a dicotomia entre o dentro e o fora, os aceitos e os excluídos. Sendo assim,

Eva desmaia ao dar-se conta de que não apenas a sua casa está aos pedaços, mas o seu lar,

como o simboliza o abuso final por que passa Edna.

3.3.2 Coming Home

A migração, a nação e o significado da identidade na diáspora têm estado entre os

temas dominantes da literatura caribenha contemporânea. Em ―Coming Home‖, June Henfrey

apresenta a migração como tema central. Analisa-se, nesse conto, a trajetória da protagonista

Hilda, em seu deslocamento entre Barbados e a Inglaterra, e em seu retorno para o país de

origem. Estuda-se o duplo deslocamento por que a personagem passa, pouco à vontade tanto

na metrópole quanto na volta a seu país natal, que difere daquele que deixara anos antes.

O movimento diaspórico vivido pela protagonista instiga questionamentos: como é

narrada a experiência de deslocamento, a construção de um lar (dimensão privada) fora do lar

(dimensão pública)? Que experiências são rejeitadas e quais levam à marginalização? Assim,

o conto oferece privilegiado contexto para a análise da desconstrução do conceito de lar em

contextos migratórios, quando o senso de enraizamento, elemento fundamental para a

formação do conceito de lar, é extremamente desafiado. O relacionamento de Hilda com seu

país de origem é renegociado. Como Laura Huttunen observa a propósito de contextos

migratórios, para a população migrante, o conceito de lar pode ter muitos pontos de referência

no espaço global, porque tal população necessita se adaptar ou negociar novos vínculos e

possibilidades de relacionamento com o país de adoção, ainda que não abandone ou esqueça

suas origens; ao passado, é dado um significado no contexto do presente.199

A imaginação literária permite articular uma consciência da diáspora e da nação ao

nível das experiências vividas, através das distintas modalidades de migração. Desse modo,

199

HUTTUNEN, 2005, p. 180.

92

cada geração tem abordado ângulos diferentes das questões de lar e exílio, da migração e das

identidades diaspóricas, ou da recriação de novas identidades nos contextos dos estados-nação

tanto antes como depois da independência política.200

A migração para Londres tem produzido

ondas de deslocamento, articuladas por elementos de diversas gerações em luta por uma

identidade caribenha na diáspora. Para os/as escritores/as da primeira geração diaspórica, que

migraram para os centros coloniais da Europa e dos Estados Unidos em busca de

reconhecimento, o significado de migrar como sujeito colonial, relacionado a questões acerca

da identidade nacional, era uma das preocupações prioritárias. Nesses trabalhos, a realidade

do racismo no centro colonial e a lógica da rejeição e recriação da identidade em um novo

lugar são temas marcantes de suas narrativas, assim como a relação entre lar/pátria e exílio.

Em uma geração posterior, à que pertence Henfrey, mormente constituída por escritoras

mulheres, meditações acerca da pátria fazem-se paralelas à discussão de problemas de gênero,

em romances em que a figura da mulher, a infância, o processo de envelhecimento são

frequentemente tematizados.201

―Coming Home‖ parece ser uma reavaliação ficcional da experiência da geração

Windrush, já que a viagem de Hilda à Inglaterra, nesse conto, rememora a experiência

histórica da migração em massa de colônias negra para a Inglaterra, cujo marco inicial foi a

chegada do navio SS Empire Windrush. A 22 de junho de 1948, este navio aportou em Tilbury

Dock, Essex, após viajar por 8.000 milhas, do Caribe para Londres. Carregava 492

passageiros da Jamaica, Trinidad, Tobago e outras ilhas, que chegaram à ―pátria-mãe‖,

desejando iniciar vida nova na Inglaterra.202

Vieram motivados por um anúncio em um jornal

jamaicano, oferecendo transporte barato naquele navio para quem quisesse trabalhar na Grã-

Bretanha.203

Os migrantes, convocados devido à necessidade de trabalhadores não

especializados, foram dispersos por todo o país para as áreas em que seu trabalho era

necessário: nos fornos e forjas das indústrias transformadoras que foram se expandindo, como

porteiros, faxineiros, motoristas e enfermeiros - trabalhos que pagavam tão mal que poucos

brancos os queriam.204

200

DAVIES, Carole Boyce. Black Women Writing and Identity. Migrations of the Subject. London and New

York: Routledge, 1994, p. 751. 201

DAVIES, Carole Boyce. Mulheres caribenhas escrevem a migração e a diáspora. Estudos Feministas,

Florianópolis, p. 754, set./dez. 2010. 202

PHILLIPS, Mike. Windrush - The Passengers. In: BBC History. mar. 2011. Disponível em:

<http://www.bbc.co.uk/history/british/modern/windrush_01.shtml>. Acesso em: 28 ago. 2011. 203

HISTORY. Empire Windrush 1947. In: THE OCEAN Liners. s.d. Disponível em:

<http://www.oceanlinermuseum.co.uk/Empire%20Windrush%20History.html>. Acesso em: 08 jul. 2011. 204

PHILLIPS, 2011.

93

Diferentemente da migração, em que o sujeito geralmente tem a intenção de fixar-se

em um novo espaço, para James Clifford, a linguagem da diáspora está associada ao

deslocamento de pessoas que sentem um atrelamento com o lar anterior, o qual deve ser forte

o suficiente para resistir ao esquecimento e distanciamento e surge para substituir, ou pelo

menos complementar, o discurso de uma minoria. As comunidades diaspóricas transmitem

uma forte diferença, constituem um ―povo‖ que mantém suas raízes históricas; vivem,

portanto, numa tensão às experiências de viver a localidade, mas relembrar ou desejar outro

lugar.205

Formas diaspóricas de pertencimento, memória e (des)identificação são

compartilhadas por essas populações, que atravessam vastos oceanos e barreiras políticas, mas

buscam manter os laços com o país de origem, facilitados devido aos modernos meios de

comunicação e transporte, que reduzem as distâncias e facilitam o tráfego, legal e ilegal, entre

os lugares do mundo.206

A tensão entre perda e esperança, enraizamento e deslocamento, pode ser identificada

em várias situações vividas pelas personagens de June Henfrey, analisadas a seguir. Na

esperança de prosperar na ―pátria-mãe‖, Hilda, juntamente com outros jovens, alguns de

outras ilhas, embarca numa interminável e úmida viagem até a estação londrina de

Paddington. Embora tivesse sido maravilhoso reencontrar Linton, uma dúvida surge quando

ela toma conhecimento de que o lugar onde ele vive que, além de ser pequeno, é dividido com

outras pessoas.

Ao chegar à Inglaterra, a jovem, assim como o namorado, é acolhida por outros

caribenhos que já tinham chegado anteriormente. Em comunidades transnacionais, a família é

ampliada, isto é, funciona como uma rede e local de memória que permite manter vivo no

exterior um forte senso associativo com a terra de origem.207

Dessa forma, a assistência dada

por ilhéus com mais experiência na Inglaterra não somente provê proteção e abrigo, ainda que

precários, como é forma de manter forte identificação com as culturas de origem. No conto, o

espírito de solidariedade se faz presente, e a divisão do espaço com os outros inquilinos,

apesar do desconforto, é o que dá a migrantes como Hilda e Linton a força para viver naquele

país e suportar a desilusão, o preconceito e a saudade da sua terra natal. A propósito, recorda-

se como a situação vivida pela protagonista faz lembrar algumas das características que

William Safran atribui à diáspora: a consciência e solidariedade do grupo, importantemente

205

CLIFFORD, 1994, p. 310-12. 206

Ibidem, p. 304. 207

HALL, 2009, p. 26.

94

definidas por relacionamento contínuo com a terra natal, e a crença de que não são e talvez

possam ser aceitos no país anfitrião.208

Mais tarde, o casal tem filhos e se muda para um lugar maior, mas não consegue

desfrutar felicidade naquele país, pois sempre se sentem estrangeiros, vivendo sob a injustiça,

a exclusão e o preconceito. Assim, não têm oportunidade de desenvolverem um sentimento de

lar com relação àquele lugar. O sofrimento e a tristeza já fazem parte de seu dia-a-dia. O

trabalho de Hilda como faxineira do hospital só lhe permite limpar ao seu redor, nunca lhe dá

a oportunidade de sentir a vida com prazer, ao contrário, só vive para trabalhar. Além disso,

suporta diariamente o preconceito e a discriminação, ao perceber que as pessoas preferem

ficar em pé a sentarem ao seu lado no ônibus. Seu marido, Linton, perde o direito a uma

posição melhor no seu trabalho por ser negro, o que o deixa profundamente nervoso e

revoltado, contribuindo para se irritar facilmente com os filhos, pois a dor da injustiça remoi

seus pensamentos.

Para James Clifford, a percepção da diáspora pode ser constituída positivamente,

através de identificação com o mundo político, cultural e histórico – como se dá entre os

descendentes de brasileiros e comunidades brasileiras na América, por exemplo - e

negativamente, por experiências de discriminação, perda e exclusão.209

Este último é o caso

de Hilda. O preconceito racial presente nas situações diárias vivida pela personagem, seja no

ônibus, no trabalho ou nas ruas - quando Hilda, juntamente com outra mulher negra, quase foi

apedrejada por dois garotos brancos, situação essa que a marcou profundamente – deixa-a

perplexa. Olhares cheios de censura e malevolência não poderiam deixar de fazê-la sentir-se

senão como estranha naquele lugar. Com a atitude dos garotos, Hilda toma consciência de que

cria uma ilusão em relação à Inglaterra. Gradualmente, percebe que o trabalho de limpeza no

hospital não serviria como trampolim para outras ocupações mais privilegiadas, mas seria

uma ocupação permanente, pois naquele país, ser faxineira era tudo o que se pensava que ela

teria capacidade de fazer, tudo o que lhe era permitido fazer.

Hilda entende que não apenas ela está vivendo num lugar no qual não pode ter

segurança, mas toda a sua família. Ela e seu marido preocupam-se com seus filhos, porque

não têm esperanças de que, com eles, as coisas possam ser diferentes. Por isso, sempre

lembram sua terra natal, embora para as crianças, muitas vezes, se tornasse entediante, já que

falar sobre Barbados é algo muito distante para eles. No entanto, a Inglaterra, mesmo sendo

hostil, não parece causar estranhamento algum à segunda geração. Ao contrário, não sentem

208

SAFRAN apud CLIFFORD, 1994, p. 304-305. 209

CLIFFORD, 1994, p. 311-312.

95

qualquer constrangimento em desconhecer suas origens. Para os pais, tal atitude é

desconcertante, porque, em sua experiência, não ser branco naquele país faz diferença, sendo

um significante de exclusão e marginalização.

David Sibley explica que espaço e sociedade estão implicados na construção de

fronteiras do eu, mas o eu está projetado para dentro da sociedade e do espaço. O eu, o outro

e os espaços, ao mesmo tempo em que são criados, são definidos através de projeção e

introjeção. As fronteiras da sociedade são continuamente redesenhadas para distinguir

aqueles que pertencem, e aqueles que, por alguma diferença de cultura, são considerados fora

do lugar.210

Hilda e sua família são avaliados como diferentes. São negros, não nascidos na

Inglaterra, o que os determina como menosprezados e subalternos. O racismo submete-os a

um processo de estranhamento.

Zilá Bernd considera que ―Em princípio, racismo é a teoria que sustenta a

superioridade de certas raças em relação a outras, preconizando ou não a segregação racial ou

até mesmo a extinção de determinadas minorias‖.211

De acordo com Homi Bhabha, a

diferença do objeto de discriminação é constituída como sendo espontânea, de tal forma que é

tornada imediata e simultaneamente visível e natural: ―a cor como sinal cultural/político da

inferioridade e da degeneração, a pele como sua identidade natural‖.212

No mundo colonial, o

africano e o ameríndio estavam no último degrau da escala racista e classista, ou seja, o

trabalhador colonizado no contexto da produção capitalista europeia tinha de ser índio, negro

ou afrodescendente.213

Conforme define Thomas Bonnici: ―o europeu, julgando-se parâmetro

de civilização e educação, não apenas estratifica as raças, mas também coloca o outro como

diferente e, portanto, não civilizado e sem cultura‖.214

Nesse contexto, percebe-se que a

migração levou as populações periféricas para o centro (a metrópole) e restabeleceu a

alteridade como elemento constitutivo da identidade.

Hilda descobre, ao ver os filhos crescidos, que envelheceu num lugar do qual não

gosta, ficando-lhe claro que em Londres sempre haveria uma relação de poder, uma hierarquia

e jamais ela iria construir um espaço em que pudesse buscar uma identificação ou ter o seu

espaço cultural. Essa sensação de não pertencimento, de sentir-se deslocada, coloca-a em uma

fronteira de diferença, a partir da qual não consegue desenvolver relações de pertinência com

o espaço, pois sente-se desconfortável e discriminada.

210

SIBLEY, David. Geographies of Exclusion: Society and Difference in the West. New York: Routledge, 1999,

p. 86; 91. 211

BERND, Zilá. Racismo e anti-racismo. São Paulo: Moderna, 1994, p. 11. 212

BHABHA, Homi K. O local da cultura. Belo Horizonte: UFMG, 1998, p. 198. 213

BONNICI, 2005, p. 51. 214

Idem, 2000, p. 70.

96

Essa situação em que a protagonista e sua família vivem traz à mente o pensamento de

Dionne Brand, em A Map to the Door of No Return, quando fala sobre o efeito alienante e

transformador da cidade sobre o migrante:

Origins. A city is not a place of origins. It is a place of transmigrations and

transmogrifications. Cities collect people, stray and lost and deliberate arrivants.

Origins are rehabilitated and rebuilt here. A torturer in Chile becomes a taxi

driver, an English thief becomes a stock hawker, an Eritrean warlord becomes a

bycicle courier. An Indian businessman a security guard, a Hong Kong policeman a

waiter, a sixth-generation Ukrainian girl a murderer, a teacher from Caribbean a

housekeeper, a farmer from Azores a construction worker.

A city is a place where the old migrants transmogrify into citizens with disappeared

origins who look at new migrants as if at strangers, forgetting their own flights. And

the new migrants remain immigrants until they too can disappear their origins.215

Hilda, que tinha a intenção de se tornar uma professora ou uma enfermeira, de acordo

com o desejo da sua mãe, devido à falta de oportunidade, torna-se apenas uma faxineira na

grande metrópole. Seu desconforto na Inglaterra cresce e, com a morte de Linton, memórias

dolorosas vêm-lhe à mente. Em seguida, ela se aposenta; desperta-se a saudade do seu país de

origem. Lembra-se, aqui, a concepção de Bill Aschcroft de que, para a pessoa diaspórica,

―lar‖ difere de ―lugar‖, pois não está, geralmente, associado a um conceito espacial. Sua

concepção está profundamente arraigada na memória, muitas vezes, em uma ―comunidade

imaginada‖, longe no tempo e no espaço, e associada a um sentimento de perda

compartilhado com outros. Refere-se ao poder de sentido de ―lar‖ dentro da psique, um lar

ancestral, e também do poder de sua ausência.216

Um dos netos de Hilda, Claudette, menina curiosa, faz com que a avó se recorde do

passado ao responder seus questionamentos sobre Barbados. As lembranças, renovadas,

intensificam seu desejo de retornar à terra natal, da qual lembra como o seu lar. Nas conversas

com a neta, rememora sua mãe, a avó, o cuidado e a relação que tinha com ela; não se esquece

da parteira Gladys, da vizinhança, do gosto bom do peixe, podendo até sentir o seu tempero.

215

BRAND, 2001, p. 62-63. Origens. A cidade não é um lugar de origens. É um lugar de transmigrações e

transmogrificações. As cidades coletam pessoas dispersas e perdidas e recém-chegados que deliberadamente

aportaram. As origens são reabilitadas e reconstruídas aqui. Um torturador no Chile se torna um motorista de

taxi, um ladrão inglês se torna um camelô, um comandante eritreu se torna um mensageiro de bicicleta. Um

indiano de negócios, um guarda de segurança, um policial de Hong Kong um garçom, uma menina ucraniana da

sexta geração uma assassina, uma professora do Caribe uma governanta, um fazendeiro de Açores um

trabalhador de construção.

Uma cidade é um lugar onde os velhos imigrantes se transmogrifam em cidadãos com suas origens

desaparecidas, e olham para os novos imigrantes como se fossem estrangeiros, esquecendo suas próprias fugas.

E os novos migrantes permanecem imigrantes até que suas origens possam também desaparecer. 216

ASHCROFT, Bill. Post-colonial transformation. London and New York: Routledge, 2002, p. 155.

97

Uma vez que falta a Hilda a noção de pertencimento, sentindo-se social e espacialmente

constrangida, torna-se problemático seu enraizamento em Londres. Se, por um lado,

desenvolve familiaridade e conhecimento da metrópole, não tem controle sobre os espaços em

que circula e trabalha, e o preconceito dificulta a identificação pessoal com os mesmos. A

distância geográfica e afetiva aguça, então, o desejo pelo lar da infância e juventude. Desse

modo, pode-se dizer que Hilda não consegue desenvolver em Londres o senso de lar, porque

não reconhece nenhuma percepção positiva com o lugar.

Observa-se, no conto em análise, a associação entre memória e a reivindicação da

identidade cultural, pois é através desses momentos revividos que Hilda percebe que o Caribe

sempre foi o seu lar, e decide que é tempo de voltar. Segundo Maurice Halbwachs, através das

lembranças, o sujeito aprende a se situar na história, transportando-se imaginativamente ao

passado e relacionando a evocação com o presente. Esses pontos de referência tanto mais

fortes serão quanto mais estiverem vinculados a um espaço e tempo compartilhados com um

grupo.217

Assim, Hilda, através de suas lembranças da pátria natal, mantém o passado vivo, e

rememora os laços familiares e os espaços que os abrigaram, a fim de suportar a realidade

presente na pátria-mãe. Então, o senso de lar está vinculado à memória, e que a rememoração

da infância e juventude poderosamente influencia Hilda em seu desejo de retorno a Barbados.

Por outro lado, como Carole Boyce Davies escreve, a migração cria o desejo de possuir

um lar, o que, por sua vez, leva à reescrita desse lar. A saudade ou a falta de um espaço físico

a que se possa chamar de lar, como na condição ―sem teto‖, a rejeição do lar ou o intenso

desejo por ele podem levar a essa reescritura nostálgica e imaginativa.218

Afinal, como

repetidamente enfatizado, o grau de deslocamento do lar é crescente e diretamente influencia

tanto o desejo como a atribuição de sentido a ele.219

No entanto, como Shröder alerta, a nostalgia e a idealização tornam-se perigosas quando

usadas na tentativa de localizar o lar em algum lugar no passado, idealizando-o a tal ponto que

nunca mais poderá ser alcançado novamente pelo sujeito. Além disso, pensar o lar como um

lugar imutável, estático, restrito e fechado, é atribuir-lhe concepção exclusiva e limitada.220

Tais construções de lar tornam-se muitas vezes utópicas, e a noção de retorno é,

frequentemente, uma projeção escatológica ou utópica em resposta a uma presente distopia. A

alusão ajusta-se perfeitamente ao caso de Hilda, cujos sonhos de uma vida positiva e ideal na

Inglaterra estão completamente arrasados. Por outro lado, a idealização da terra de origem

217

HALBWACHS, 2006, p. 75-76. 218

DAVIES, 1994, p. 113. 219

TERKENLI, 1995, p. 327. 220

SCHRÖDER, 2006, p. 35.

98

pode resultar também em utopia, já que a imagem congelada na mente do migrante ignora

possíveis transformações, que podem vir a fazer com que venha a sentir-se deslocado em sua

própria terra.221

Esse é o desafio do personagem Hilda no momento do retorno a Barbados: a realidade

encontrada é confrontada com o conteúdo idealizado, alimentado pela memória e tantas vezes

revisitado pelos caminhos da imaginação. Hilda sente-se uma estranha na sua terra natal.

Tudo está muito diferente, o que a deixa bastante decepcionada, pois parece desconhecer

aquele lugar; inclusive a casa onde viveu não é mais a mesma. Ademais, convém ressaltar

que, ao migrar para a Inglaterra, foi num barco cheio de jovens assim como ela, agora retorna

de avião, sozinha e aposentada.

Essa situação requer a construção de uma nova identidade. Não é mais possível voltar

ao momento anterior à diáspora, da mesma forma que não é mais a mulher exilada numa terra

que não reconhece como sua. A identidade do personagem que retorna busca dar conta tanto

dos elementos conservados pela memória, como das experiências vividas na Inglaterra

(constituição da família) e da nova realidade encontrada na terra natal.

Pode-se dizer que, tanto na partida quanto no retorno, a protagonista apresenta

sentimentos em comum: o da esperança e o da frustração. Em Londres, tem esperança de ser

bem sucedida e, no Caribe, de reconhecer a sua terra e as pessoas que ali vivem. A decepção a

faz conviver com o preconceito e a solidão na pátria-mãe e, no Caribe, leva-a a perder o senso

de lar, pois não tem mais domínio e controle sobre o seu espaço, nem laços comunitários e

familiares.

Segundo Hilda, voltar é bem diferente de ir, pois como estava tudo tão mudado, sentia-

se muito mais ―caribenha‖ em Londres do que em Barbados, que não reconhece, tantas são as

inovações: bancos na praia, mesas para piquenique, novo caminho para a praia, Shopping

Center completo com supermercado, farmácia e loja de roupas, competição com premiação,

na Páscoa, da desossa de peixes. Esse tipo de experiência é comum na vivência do migrante.

Ao entrevistar migrantes barbadianos que retornam para o Caribe, Mary Chamberlain percebe

que muitos sentem dificuldade em se religar às suas sociedades de origem, pois as mudanças

sofridas no espaço lhes dão uma sensação de ―não estar em casa‖.

Muitos sentem que a ―terra‖ tornou-se irreconhecível. Em contrapartida, são vistos

como se os elos naturais e espontâneos que antes possuíam tivessem sido

221

SAFRAN apud CLIFFORD, 1994, p. 305.

99

interrompidos por suas experiências diaspóricas. Sentem-se felizes por estar em

casa. Mas a história, de alguma forma, interveio irrevogavelmente.222

Pode-se ainda relacionar o desejo de retorno de Hilda para Barbados à metáfora do

ninho e da concha, presente na teoria de Gastón Bachelard. Segundo o autor, o ninho, para o

pássaro, é uma terna e quente morada. É uma casa de vida.223

Está associado à imagem de

descanso, de tranquilidade e simplicidade; uma ―casa‖ onde se volta ou se sonha voltar como

o pássaro volta ao ninho, como o cordeiro volta ao aprisco.224

Essa volta à terra natal, ao

ninho, desencadeia o devaneio da segurança, é um refúgio absoluto, e corresponde a voltar às

origens da casa onírica, pois a confiança nesse lugar é inata.225

A experiência da hostilidade

vivida por Hilda leva-a a sonhar em se defender dessa agressividade e desejar contemplar o

seu ―ninho‖: pensa que o bem-estar só poderia ser reencontrado no seu canto do mundo natal.

Curiosamente, descreve a construção original de sua casa em Barbados como se

assemelhando a uma concha: ―Over the years she had replaced the wood with stone,

gradually encasing the original building in an outer shell, in the time-honoured way of the

island.‖226

Assim, pode-se relacionar esse lugar de morada a um lugar de proteção, onde estão

―alojados‖ o inconsciente e as lembranças da protagonista. A imagem da concha está

associada à segurança, como já comentado na análise do conto ―The Gully‖. Contudo, esse

lugar de proteção não é vivido por Hilda exclusivamente na casa-concha de Barbados; a paz

que a ilha lhe proporciona pode ser comparada aos momentos passados em Londres, quando

Hilda transmitia amor, aconchego, proteção e segurança a seus pequenos londrinos, seus

netos.

De volta a Barbados, após os momentos iniciais em que vê desfeita a imagem que

congelara da ilha, aos poucos, Hilda vai se recuperando do seu isolamento, pois conhece

Vincent, um homem que também é solitário e começam a construir laços afetivos. A partir de

então, além de viver em um território que é seu, num espaço sob o qual tem controle e se

sente segura, não sendo discriminada, encontra em Vincent o relacionamento significativo de

que carece. A seu lado, começa a readquirir a sensação de tranquilidade ao vir para casa, não

precisando mais se apressar ao caminhar; agora descansa seus membros no calor. Ouve turista

falando em inglês na praia, mas não mais necessita temer palavras de desdém a ela dirigidas

naquela língua.

222

CHAMBERLAIN apud HALL, 2009, p. 27. 223

BACHELARD, 1988, p. 169-170. 224

Ibidem, p. 173-174. 225

Ibidem, p. 176-177. 226

HENFREY, 1994, p. 89. [...] Com o passar dos anos ela tinha trocado a madeira por pedra, gradualmente

revestindo a construção original com uma concha exterior, da maneira como sempre foi feito na ilha. [...].

100

Aos poucos, Hilda vai encontrando a alegria de viver, pois consegue reparar as rupturas

de sua história pessoal. A retomada de seus vínculos com a comunidade da ilha permite-lhe o

desenvolvimento da percepção de lar. Segundo Theano Terkenli, uma cidade ou vizinhança

representa lar para seus habitantes, porque seus conteúdos contêm representações de si, do

grupo e da sua cultura.227

Logo, esse espaço tem conotações fundamentais que funcionam

como referências importantes para o indivíduo, e os relacionamentos desenvolvidos são,

também, significativos.

Hilda reconstrói seu espaço, o seu senso de lar, de família estreita. Contudo, afasta-se de

Vincent para dedicar todo o seu tempo à neta Claudette, agora com dezesseis anos, que vem

para o Caribe para passar suas férias. A jovem se identifica rapidamente com a ilha,

admirando suas belezas e fazendo amizade com outros jovens da sua idade. Foram momentos

muito importantes vivenciados pelas duas gerações, pois um novo vínculo entre Hilda e

Claudette é formado, onde afeto, credibilidade e confiança são ampliados.

Com a partida da adolescente, a avó vive uma solidão que lhe tira a sensação de

liberdade que pensava ter encontrado na sua pátria natal, pois percebe que relações

significativas constituem um elo muito forte para tornar um lar expressivo. E o seu estava

incompleto, pois seus netos e filhos permanecem em Londres e a amizade de Linton fora

seriamente comprometida. Assim, a Inglaterra ainda se faz presente nos seus sonhos e não só

pelos anos tirados de sua vida, como pela família que lá deixa.

Pode-se dizer que Hilda consegue despertar em Claudette o orgulho pelas suas origens e

tradições, através da vivência em Barbados. Talvez agora Claudette consiga compreender sua

herança cultural. A carta de agradecimento da neta pelos maravilhosos momentos

compartilhados na ilha não demonstra apenas gratidão pelo lazer, mas, também, porque

descobre a sua história.

Percebe-se, dessa forma, que tanto a neta quanto a avó constroem uma noção de lar,

porque ambas têm relações de pertencimento e de identificação bem definidas, controle sobre

seu espaço, associando a família, pessoas e amigos. Para Daniel Miller, o lar não precisa ser o

destino da viagem, mas o lugar do qual se parte e para o qual se retorna pelo menos em

espírito. Esse retorno é uma viagem simbólica, constitutiva de significado que permitirá ao

indivíduo adquirir um senso de história e identidade.228

Nesse sentido, também o Caribe

torna-se um lar para Claudete.

227

TERKENLI, 1995, p. 327. 228

MILLER, Daniel. Home Possessions. New York: Berg, 2001, p. 88.

101

O título deste conto, ―Coming Home‖ (Volta ao lar), está relacionado a retorno, e pode

ser associado à atitude de Hilda de voltar para o seu lar, para a sua terra natal. Na concepção

de Gilroy, a diáspora é uma ―via de mão dupla‖,229

um movimento de ida e volta ao qual se

podem relacionar momentos de melancolia, de incertezas, lembranças, valores culturais e

esquecimentos. Tal movimento leva o indivíduo a se adaptar ao novo ambiente, conduzindo-o

a uma reflexão acerca de sua identidade, da sua cultura, que é diferente daquele país no qual

passa a viver. Assim, o movimento de ―ir‖ está associado tanto à esperança como a

decepções; quanto ao ―vir‖, pode-se conectar ao desejo do encontro da paz, da felicidade, do

reencontro com as raízes, embora por vezes, como acontece com Hilda, também possa trazer

desilusão.

Para Hilda, o Caribe é o seu ninho, um signo de retorno, que lembra a descrição de

Bachelard da casa-ninho:

A casa-ninho nunca é nova. Poder-se ia dizer, de uma maneira pedante, que ela é o

lugar natural da função de habitar. A ela se volta, ou se sonha voltar, como o pássaro

volta ao ninho, como o cordeiro volta ao aprisco. Este signo do retorno marca

infinitos devaneios, pois os retornos humanos se fazem sobre grande ritmo da vida

humana, ritmo que atravessa os anos, que luta contra todas as ausências através do

sonho. Sobre as imagens aproximadas do ninho e da casa repercute um componente

de íntima fidelidade.230

Neste conto, percebe-se que o movimento diaspórico Barbados - Inglaterra afastou

Hilda e Linton apenas geograficamente da sua terra natal, pois eles a mantiveram em sua

memória. Aliada ao sentimento de ―não estar em casa‖ na Inglaterra, tal fidelidade contribuiu

para fortalecer seus elos de pertencimento com Barbados.

Em movimento diaspórico transnacional, Hilda e Linton escolhem ir para a Inglaterra,

onde pensam poder prosperar. Ocorre, porém, que a pessoa e/ou grupo diaspórico tem uma

cultura própria, que difere da cultura do país que a recebe, tendo, portanto, problemas de

adaptação no país hospedeiro, que comparam com seu lugar e cultura de origem, surgindo o

sentimento de não pertencer. Hilda idealiza um lar nessa nova pátria, tendo como referência

suas experiências na terra natal. Experiências de preconceito social e racial vividas pela

protagonista não fornecem uma base sólida para que ela desenvolva a percepção de lar, pois

com os sujeitos provenientes de movimentos migratórios há uma problemática em seu

relacionamento com o espaço público, especialmente quando há uma classificação entre ―nós‖

e ―eles‖, como acontece com Hilda e Linton. Essa diferenciação, fundamental na construção

229

GILROY, 2001, p. 21. 230

BACHELARD, 1988, p. 173-174.

102

de espaços, faz com que o sujeito se sinta pertencente ou não a um lugar. Como o casal não se

identifica com a pátria-mãe, não sente aquele espaço como seu lar.

O componente social, importante para a dimensão de lar, só é encontrado pela

protagonista ao retornar para a pátria natal, porque na Inglaterra, tal qualidade está

incompleta, já que este país não lhe permite relacionamento com a comunidade britânica. Em

Barbados, Hilda encontra valores nacionais, sua identidade cultural, experiências que lhe

permitem ter o controle do espaço, atribuindo-lhe segurança. Embora logo ao retornar

experimente estranhamento, devido às mudanças sofridas no decorrer do tempo, não deixa de

identificar seus vínculos com o lugar e de desejar reconstruir elos familiares, pois reconhece

seu lugar de nascimento, o que lhe dá a convicção de pertencimento e de enraizamento ao

lugar, associações fundamentais para que o indivíduo reconheça o espaço como seu lar.

103

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Esta investigação partiu do questionamento acerca da problematização do conceito de

lar no contexto da diáspora africana no Caribe, em especial em Barbados, como percebida

através das situações vividas pelos personagens que compõem as narrativas da coletânea

Coming Home and Other Histories, de June Henfrey. Da narrativa da travessia em navios

negreiros, à reiterada tematização da experiência escrava nas plantations, as narrativas

estendem à história pós-escracravocrata, quando, todavia, o negro ainda retém status inferior,

social e etnicametne discriminado, avançando ainda até o registro da migração negra à

Inglaterra na geração Windrush, em meados do século XX. A coletânea abraça, assim, séculos

da história de Barbados, e traz o negro à visibilidade através de contos em que é o

personagem principal.

Tanto a diáspora pré-transnacional como a transnacional estão presentes nos contos

analisados. A primeira é representada em ―The Gully‖, quando Quashebah, a protagonista,

lembra-se de momentos de dor e exaustão vividos na sua travessia, e em ―Love Trouble‖,

através das histórias que Rose contava a sua neta Sarah, acerca do modo como ela e seus pais

chegaram até a fazenda Grande Esperança. Em ―Cane Cutter‖ e em ―Freedom Come‖, a

experiência da travessia não está explícita, mas subentendida, pois vivem no período

escravocrata. A diáspora transnacional faz-se presente em ―Goodnight, Miss Simmons‖ e

―Coming Home‖. Há, ainda, a ocorrência da migração em reverso, representada, no universo

dos contos, pela emigração de caribenhos de Barbados para a Inglaterra personificada nas

personagens Hilda e Linton do conto ―Coming Home‖.

Na perspectiva da história de Barbados, os contos trazem, recorrentemente, a

representação da diáspora como um movimento de migração forçada, na qual milhares de

escravos foram transportados de diferentes ilhas, suportando e se submetendo às mais

desprezíveis situações que se possa imaginar. Esse processo de grande violência põe em

relevo o negro barbadense, objeto desta pesquisa, contrastando-o com o senhor branco.

Consequentemente, há a valorização de sua identidade cultural: ressaltar a visão desse negro

como diferente, objetificado, mera mercadoria e mão-de-obra, traz visibilidade a esse escravo

sofredor.

104

Nesse contexto, torna-se extremamente relevante para esta pesquisa pensar sobre

pertencimento à luz da diáspora, para compreender como a construção do sentido de lar é

afetada em tais circunstâncias. Características da diáspora, como, por um lado, o apego a

mitos ou memória da terra de origem, e a definição da identidade coletiva a partir desse

relacionamento e, por outro lado, a alienação no país de hospedagem e desejo de retorno

eventual permanente, estão presentes nos contos. Em ―Love Trouble‖, ―The Gully‖ e em

―Coming Home‖, ressalta-se o apego à terra de origem e o desejo de retorno. No primeiro

desses contos, embora Rose, a protagonista, jamais tenha estado na África, desenvolve

conhecimento do continente de onde vieram seus ancestrais por meio de histórias narradas

pelo avô. Quanto à alienação no país de hospedagem e desejo de retorno eventual, observa-se

em ―The Gully‖, ―Coming Home‖ e ―Freedom Come‖.

Outro aspecto observado foi a migração em reverso, isto é, a emigração significativa

da colônia para a metrópole, como Hilda e Linton, que migram de Barbados para a Inglaterra

na perspectiva de prosperar. Em ―Coming Home‖, Hilda e seu marido, Hilton, ao enfrentarem

experiências numa nova cultura, confrontam-se com uma linguagem diferente, de hostilidade

e exclusão, em uma sociedade dominada pelo racismo, que os submete a um processo de

estranhamento, desencadeando memórias da ‗casa‘ distante, da pátria natal. Tal sentimento

leva à experiência do desenraizamento em Londres, aguçando o seu desejo pelo lar da

infância e da juventude, que se mantém vivo na memória. Nesse conto, o lar não está

associado a um único lugar, pois Hilda desenvolve a dimensão de lar na Inglaterra e na pátria-

natal, visto que constrói uma família em Londres, onde deixa um forte vínculo afetivo, e em

Barbados, que reconhece como o seu lar, sentindo a convicção de pertencimento em relação à

terra onde nasceu.

June Henfrey permite analisar a diáspora como processo que confunde a mecânica

cultural e histórica do pertencimento, pois o vínculo com o lugar, assim como a posição e

consciência, é rompido. A chave da diáspora não se encontra na raça e, sim, nas formas geo-

políticas e geo-culturais de vida resultantes da interação entre sistemas comunicativos e

contextos incorporados, modificados e transcendidos. Em ―Goodnight, Miss Simmons‖, por

exemplo, ainda que ambientado no período pós-escravocrata, permanece o domínio do

território pelo branco. Alvos de preconceito, discriminação social e racial, os indivíduos de

cor negra desejam romper com suas próprias origens, negando sua identidade cultural para

serem aceitos, mesmo que de uma forma falsa, pelo branco. Em ―Love Trouble‖, Sarah rompe

com sua comunidade negra e com sua avó Rose, nega ou rejeita suas origens pra viver com o

branco. Em ―Freedom Come‖, alguns escravos negros também traem suas origens, só porque

105

possuem pele mais clara, tratando os outros escravos com superioridade para serem aceitos

pelo branco. ―The Gully‖ revela a situação de mulher escrava que se submete à exploração do

branco em troca de algum benefício; em ―The Cane Cutter‖, Reuben acredita ser valorizado

pelo branco, até que se liberta ao ―conversar com as canas‖.

Em ―Coming Home‖, a diáspora se confunde com um afastamento não só corpóreo,

mas também imaginativo, o qual desencadeia no sujeito um sentimento de ―não estar em

casa‖, questionando o pertencimento tanto no estrangeiro como em Barbados. Este

deslocamento imaginativo também pode ser observado em ―The Gully‖, no qual Quashebah

refugia-se no barranco e mais tarde em pensamento, para imaginar estar mais perto da África;

em ―Freedom Come‖, Nanny sonha com a liberdade para voltar à terra natal e, em ―Love

Trouble‖, a avó Rose, embora não conheça a África e viva com sua comunidade negra na

plantation, sonha com a terra de seus antepassados.

Essa variedade de contextos sócio-históricos proporciona situações diversificadas para

a análise da experiência de estar ou não no lar. Como exposto no capítulo 3, a acepção de lar

está associada não só à dimensão espacial, mas implica controle real sobre o espaço e

investimento contínuo sobre ele, através de dimensão histórica, i. e., a construção, ao longo do

tempo, de hábitos e rotinas, bem como através da construção de relações sociais

significativas. Em contos ambientados sobretudo nas plantations à época da escravidão, seria

de esperar que, desprovidos de liberdade, e desrespeitados como seres humanos, os escravos

dificilmente poderiam construir a dimensão de lar. É difícil pensar que seja possível a um

escravo considerar o lugar onde é menosprezado como a sua casa, ou viver em paz,

desenvolver valores familiares, afetos e de cidadania.

Este raciocínio parece se confirmar, à primeira vista, especialmente se lar for pensado

apenas a partir das conotações de lar em que a ideia partilhada comum é a de habitação e

afeto, e, a partir daí, afeto pelo lugar de moradia, em relação ao qual se mantém uma relação

especial ao longo da vida. Essas noções, implícitas na etimologia do termo a partir das línguas

indo-germânicas, não se confirmam em todos os contos.

Como os personagens vivem sob a condição de escravos, especificamente em ―The

Gully‖ e ―Freedom Come‖, a Casa Grande não lhes desenvolve um sentimento de lar, mas de

habitação. Esta é também a noção compartilhada por Reuben, em ―The Cane Cutter‖; no

mesmo conto, porém, para Silas, cuja história se desenrola após a escravidão, o lar não

compreende apenas habitação, mas se verifica sentimentos de afetividade e investimento no

local de moradia. Em ―Love Trouble‖, na casa partilhada com Bishop, Sarah alcança construir

apenas parcialmente o senso de lar quando se distancia de sua comunidade, já que vive

106

isolada, apenas convive com o amante e alguns empregados e, mais tarde, com os filhos. Já

para Rose, o local onde mora coincide com o senso de lar, sendo um lugar querido, em que

pode investir social e emocionalmente. Nos contos ―Goodnight, Miss Simmons‖ desintegra-

se, a par da ruína econômica, o senso familiar, e a casa de Eva passa a ser, também, mero

domicílio. Já em e ―Coming Home‖, a afetividade em relação ao local de habitação pode

apenas desenvolver-se quando Hilda retorna a sua terra natal, pois em Londres, mesmo

quando adquire casa, tendo, pois controle sobre ela, o preconceito não permite que se sinta

realmente pertencente.

Escravidão e preconceito também dificultam pensar em lar a partir das conotações

evidentes na etimologia latina, como domus, lugar de domesticidade, valores associados à

família, simplicidade e paz. Quando essa domesticidade e amor estão presentes, fazem

lembrar a proteção associada à concha e ao ninho, como em ―The Gully‖, ―The Cane Cutter‖

(Reuben), ―Love Trouble‖ e ―Coming Home‖.

Prosseguindo no raciocínio sobre lar a partir de suas raízes etimológicas, as noções de

construção, como em aedes, de lugar de descanso (mansio) ou ainda de permanência (maneo,

de onde deriva mansio) também apenas dificilmente se sustêm em presença da falta de

liberdade. O lugar se transforma em lar no momento em que há interação do indivíduo com o

meio ambiente, através de comportamentos pessoais e culturais, os quais irão atender aos seus

propósitos tornando-se símbolos de si mesmos. Este lar não precisa necessariamente estar

num local específico, mas deve estar associado ao estado de espírito, à liberdade de

pensamento e à percepção da identidade, além do sentimento de pertença. Apesar das

circunstâncias, os negros, representados como sofredores e discriminados, mas sempre como

agentes, constroem um lar, ainda que precário, mesmo em um barranco – a Quashebah e I-

Malachi, em ―The Gully, ou em meio às canas, como Reuben, em ―The Cane Cutter. Em

―Love Trouble‖, Rose, ao contrário da neta, Sarah, para quem o lar se confunde com

habitação, fundamentado em quatro paredes, constrói o lar na simplicidade das habitações dos

negros, mas na segurança e conforto de sua companhia.

Para Nanny, em ―Freedom Come‖, o lar é ainda uma projeção imaginativa; para

Hilda, em ―Coming Home‖, concretiza-se ao voltar à terra natal; até esse momento, deslocada

na Inglaterra, o lar permanece apenas em suas lembranças. Em ―The Cane Cutter‖, que

contrasta a situação do negro nos períodos escravocrata e pós-escravocrata, Silas, já liberto,

constrói apego a um espaço que pode chamar de ser, sobre o qual tem controle, e no qual

desenvolve relações significativas. Em ―The Cane Cutter‖, por exemplo, o lar é construído

nessas duas dimensões. Silas, juntamente com sua família, tem uma habitação com as

107

características básicas para chamar de lar: controle sobre o espaço, pertencimento ao lugar,

relações de afetividade, familiaridade, bem-estar, sociais, repetição; o lar também é coletivo,

porque vem a ser delineado pela etnia, nacionalidade e parâmetros ideológicos, já que faz

parte de uma comunidade negra, na qual até a forma de trabalho é comunitária. O escravo

Reuben, contudo, não tem concepção de lar, pois essas dimensões não são identificadas:

caracteriza-se como um ser solitário, que se relaciona apenas com as canas.

Contrasta com o lar construído por Silas o extremo despojamento de um barranco, em

―The Gully‖, em que, contudo, percebe-se a construção de lar por Quashebah: mais tarde,

quando lhe é impossível desfrutar do espaço físico do barranco, este permanece em sua

imaginação. Anos mais tarde, o Rastafari I-Malachi, da mesma forma, faz do barranco seu lar

ate o dia em que lhe retiram de lá. Na quietude do barranco, ambos são capazes de construir

suas próprias rotinas, desenvolver apego ao lugar, avaliar ou construir relacionamentos e,

acima de tudo, ter o controle do espaço habitado.

Percebe-se a dinâmica lar/não lar nos contos, através das situações vividas pelos

personagens. Em ―The Gully‖, os protagonistas, Quashebah e I-Malachi, encontram o seu lar

no barranco. Embora temporário, lembra à escrava sua África natal: as árvores frutíferas, o

cheiro da terra e da vegetação, o som do mar, o som da água escorrendo por debaixo do solo,

a umidade, a tranquilidade, a sensação de liberdade remetem ao lugar em que passou seus

primeiros anos. Esse lugar especial contrasta com a senzala e a sociedade organizada, lugares

execráveis para esses personagens. Em contraste, para ambos, o barranco torna-se lar, porque

têm controle sobre o espaço, e desenvolvem afetividade para com o lugar vivenciado como

lugar de proteção, de refúgio. Essas características também podem ser detectadas em ―The

Cane Cutter‖, com Reuben e sua afinidade com as canas. Em ―Goodnight, Miss Simmons‖, a

dinâmica lar/não lar é estruturada a partir do contraste entre o tempo, em que a família era

próspera e unida, e a época presente, em que o conto se passa, quando já se estabelece a

decadência econômica e a desagregação familiar. Em ―Coming Home‖, essa dinâmica se dá

no contraste entre Barbados e Londres. Já em ―Freedom Come‖, há uma desconstrução do

conceito de lar, não há um desenvolvimento de afetividade e familiaridade, segurança,

controle sobre o espaço, sentimento de proteção e de pertencimento.

Como parte da dinâmica do processo de construção de lar, ou regiões-lar, percebe-se o

valor agregador da comunidade. O sentimento de desarraigamento leva-os ao

desenvolvimento do espírito solidário: unem-se em comunidades, como uma forma de

manterem os laços culturais e reforçarem os mitos de origem. Na narrativa ―The Cane

Cutter‖, Silas e a esposa vivem em uma comunidade negra, na qual o sistema de trabalho é

108

comunitário. Reuben é cuidado pelas escravas negras mais velhas depois que a sua mãe

morre. Rose, em ―Love Trouble‖, desperta na neta o desejo de viver à época da sua juventude,

quando mais forte era o espírito colaborativo entre os negros. Hilda é acolhida logo que chega

em Londres por outros caribenhos, assim como o seu namorado já o fora, em ―Coming

Home‖.

Enquanto Sarah e Eva constroem ou desconstroem o senso de lar com relação ao local

de domicílio, em outros contos, percebe-se que o lar não precisa estar fixo no espaço, ou

implica deslocamento para que seja construído. Este último é o caso de Quashebah e I-

Malachi e Hilda.

Para além da dimensão privada de lar, sua extensão pública de lar, associada à pátria

de origem, também se identifica nos contos. Essa dimensão coletiva de lar, associada ao ―país

de origem‖, ou lugar de nascimento, faz-se presente nos contos ―Love Trouble‖, ―The Gully‖

e ―Coming Home‖. Para Hilda, a ideia de lar está relacionada à terra natal, da mesma forma

que para Quashebah e Rose. Contudo, o referente difere: Hilda lembra-se de Barbado:

Quashebah e Rose evocam vivência de liberdade associada à África.

A análise de Coming Home ainda permite dizer que a memória está relacionada com a

concepção da palavra lar, pois remete a lembranças do passado que influenciam na formação

da identidade, sendo importantes referências para o indivíduo. A memória faz Hilda, Rose,

Quashebah, I-Malachi e Nanny lembrar do passado, às suas origens e lembranças da infância

ou relacioná-lo ao presente, permitindo-lhes reconstruir sua identidade cultural no novo

mundo.

A análise valeu-se do estudo imagológico para estudar o processo de socialização

resultante do encontro de duas culturas em confronto, quer na ambiência da escravidão quer

na imagem do negro como estrangeiro na Inglaterra. Nas histórias de Coming Home, June

Henfrey, o confronto da cultura negra com a dos brancos permite o exame da imagem do

negro na perspectiva de uma tomada de consciência do Eu negro em contraposição ao Outro,

branco já que os negros são os protagonistas dos contos e, embora representados como

sofrendo maus tratos e discriminação, assumem a postura de sujeito. Ademais, as experiências

vivenciadas pelos negros barbadenses, obrigados a viverem sob as ordens do branco, de

diferentes formas e não apenas no período escravocrata, narradas a partir da experiência do

negro, permitem outra visão da história centrada nos sujeitos marginais.

Em ―The Gully‖, por exemplo, a exposição do modo como Quashebah tem de se

sujeitar às vontades de Blackett, que se sente no direito de castigar-lhe ou exigir-lhe

obediência, chicoteando-a sem piedade, exemplarmente, diante dos outros escravos, provoca

109

no leitor admiração pelo negro e desprezo pelo branco. Percebe a protagonista como sujeito

ativo, que se mantém com coragem e preservando sua dignidade. O narrador apresenta o

sujeito negro como superior, não submisso, admirável e forte, ao contrário da imagem do

branco, passando este a ser o inferior e o desprezível.

No conto ―The Cane Cutter‖, Reuben, que não conhece outro mundo a não ser o das

canas, o mundo do branco, toma consciência de sua identidade, no momento em que percebe

ser visto pelo branco como mão de obra, fonte de renda. Em ―Freedom Come‖, Nanny não se

preocupa em salvar a família dos brancos da Casa Grande do incêndio durante a rebelião, pois

também se dá conta de que, apesar do tratamento cortês, é-lhe negado o bem maior, a

liberdade.

Através dos contos, há a representação de uma realidade cultural por meio da qual

June Henfrey revela e traduz seu próprio espaço cultural e ideológico. Essa autora negra, que

nasceu e cresceu em Barbados, ex-colônia britânica no Caribe, experimentou uma realidade

de extrema diversidade e fragmentação, oriunda do confronto entre as culturas europeias e

africanas e bem conhece o que significa sentir-se deslocado. Do ponto de vista narrativo, é

estabelecida uma imagem do observador impossível de evitar, pois se identifica o seu

pensamento, geração, país, cultura, espaço.

A autora é negra, barbadense. Ela representa a cultura que ―olha‖. Ao referir-se ao

―Outro‖, ao branco, coloca o seu mundo, a mundividência negra barbadense, como o lugar de

onde parte esse ―olhar‖ ou ―juízo‖. Percebe-se que Henfrey, em todas as narrativas, tem como

personagem central negros trabalhadores, corajosos, honestos, dignos, respeitáveis, alinhados,

bonitos, atraentes, corajosos, líderes, competentes, bem-sucedidos. Além disso, a autora

consegue fazer com que o leitor valorize a cultura do negro através das histórias dos

personagens, pois o percebe não como uma vítima que sofreu nas mãos do branco, mas como

um guerreiro, um ser forte, bravo, determinado, que também tem uma cultura da qual pode

orgulhar-se e a qual pode respeitar.

O leitor consegue entender as atitudes tomadas pelos negros sem recriminá-los, pois a

autora faz com que ele viva o personagem, isto é, se coloca no seu lugar assumindo a posição

do Eu, a cultura que olha. Sendo assim, compreende-se a atitude de Sarah em desejar ter sua

casa e, por isso, abandonar suas origens; Reuben, em assassinar a senhora Missie; Quashebah,

em praticar o aborto; I-Malachi, em querer organizar uma sociedade; Nanny, em não se

importar com a morte dos brancos; a prostituição de Edna; a propensão associativa de

Simmons, que esconder suas origens e viver no meio dos brancos, e a atitude dos pais de Eva,

110

que não valorizam Simmons. Entende-se, ainda, a revolta de Hilton e o desejo de retorno de

Hilda.

A partir do olhar de um outro, quatro atitudes fundamentais podem ser percebidas: a

mania, a fobia, a filia e o cosmopolitismo. Em ―Goodnight, Miss Simmons‖ e ―Love

Trouble‖, os personagens adotam a postura da ―mania‖, pois a cultura do estrangeiro é

apresentada como superior à cultura negra, de origem dos personagens, que veem o branco

como superior. ―The Cane Cutter‖ também apresenta essa atitude em Reuben, pois vive para o

branco. Na ―fobia‖, a realidade cultural estrangeira é concebida de forma negativa ou inferior

em relação à cultura de origem, originando uma sobrevalorização total ou parcial da cultura

de origem. É o que se percebe em ―The Gully‖, ―Freedom Come‖, ―Love Trouble‖ e ―Coming

Home‖, em que os personagens deixam claros a admiração pela sua terra natal e o orgulho

pelas suas origens e cultura. Ocorre a inversão do pensamento europeu colonizador; o espaço

privilegiado é a cultura negra e não a branca. Já na ―filia‖, em que a cultura estrangeira é vista

como positiva, prevalece a admiração mútua. Isso é perceptível, por exemplo, na avaliação de

Hilda do Caribe, que passa a avaliar positivamente tanto quanto a Inglaterra.

Já a atitude cosmopolita, em que não se apresenta qualquer valor positivo ou negativo,

de maneira imediata, e o ―estrangeiro‖ é visto como fazendo parte mais ou menos uniforme,

está presente no conto que faz um relato citadino ―Goodnight, Miss Simmons‖.

Aparentemente, a família Simmons tem lugar à sociedade, porém sofre preconceito quanto à

cor, não só do branco, como também, do negro. Essa subversão da aparente igualdade não

deixa de ser um comentário à real posição do negro em uma sociedade em que nuanças de

cor são bem marcadas.

A presente análise de Coming Home, a partir da construção e desconstrução de lar, e

seus temas correlatos – o deslocamento, o conflito na construção identitária, a exclusão, o

sentimento de não pertencimento, a migração forçada– não esgota as possibilidades

interpretativas da coletânea. Uma pesquisa nunca está terminada, sempre há o que acrescentar,

aprofundar. Assim, muitos caminhos analíticos, ainda, poderão ser buscados nessa obra, por

meio da investigação de vários elementos, tais como: o trauma consequente das violências

sofridas pela; os estereótipos sobre o negro; o preconceito não só entre brancos e negros, mas

também entre negros; a questão de gênero, centrada na mulher/homem negro; a análise da

função da memória nas narrativas, ou ainda o estudo centrado nas técnicas de construção da

narrativa.

111

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