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UNIVERSIDADE REGIONAL INTEGRADA DO ALTO URUGUAI E DAS MISSÕES
PRÓ-REITORIA DE PESQUISA, EXTENSÃO E PÓS-GRADUAÇÃO
DEPARTAMENTO DE LINGUÍSTICA, LETRAS E ARTES
CAMPUS DE FREDERICO WESTPHALEN
MESTRADO EM LETRAS – ÁREA DE CONCENTRAÇÃO: LITERATURA
VIVIANE CATARINA MARCONATO STRINGHINI
A PROBLEMATIZAÇÃO DO CONCEITO DE LAR
NO CONTEXTO DA DIÁSPORA AFRICANA
EM COMING HOME DE JUNE HENFREY
Frederico Westphalen
2011
VIVIANE CATARINA MARCONATO STRINGHINI
A PROBLEMATIZAÇÃO DO CONCEITO DE LAR
NO CONTEXTO DA DIÁSPORA AFRICANA
EM COMING HOME DE JUNE HENFREY
Dissertação apresentada ao Curso de Mestrado
em Letras como requisito parcial e último à
obtenção do grau de Mestre em Letras da
Universidade Regional Integrada do Alto
Uruguai e das Missões, Campus de Frederico
Westphalen. Área de Concentração:
Literatura.
Orientadora: Prof. Dr. Denise Almeida Silva
Frederico Westphalen
2011
UNIVERSIDADE REGIONAL INTEGRADA DO ALTO URUGUAI E DAS MISSÕES
PRÓ-REITORIA DE PESQUISA, EXTENSÃO E PÓS-GRADUAÇÃO
DEPARTAMENTO DE LINGUÍSTICA, LETRAS E ARTES
CAMPUS DE FREDERICO WESTPHALEN
MESTRADO EM LETRAS – ÁREA DE CONCENTRAÇÃO: LITERATURA
A Banca Examinadora, abaixo assinada,
aprova a Dissertação de Mestrado
A PROBLEMATIZAÇÃO DO CONCEITO DE LAR
NO CONTEXTO DA DIÁSPORA AFRICANA
EM COMING HOME DE JUNE HENFREY
Elaborada por
VIVIANE CATARINA MARCONATO STRINGHINI
como requisito parcial para a obtenção do grau de
Mestre em Letras
BANCA EXAMINADORA
_____________________________________________
Profª. Dr. Denise Almeida Silva – URI
(Presidente/Orientador)
__________________________________________________
Membro Prof. Dr. André Luis Mitidieri Pereira – UESC
______________________________________________
Membro Prof. Dr. Lizandro Carlos Calegari – URI
Frederico Westphalen, 24 de outubro de 2011.
AGRADECIMENTOS
A Deus, pelo sustento e presença sempre.
A Fabiane, ao Rômulo e ao Amauri, por compreenderem a minha ausência e o meu
silêncio, importantes no momento para o meu crescimento.
Aos meus pais, pelo carinho, e apoio em todos os momentos da minha vida.
A tia Elaine, pelo afeto.
Aos professores do Mestrado em Letras, Área de Concentração em Literatura, pelo
incentivo e ensinamentos ao longo do curso.
A professora Denise Almeida Silva, um agradecimento especial pelo incentivo,
encorajamento, valiosas orientações, pelo exemplo de competência, pela paciência, pela
confiança, o meu reconhecimento, carinho e amizade.
A Magali e a Franciele, por todos os favores prestados, pelo carinho, amizade e
disponibilidade em todos os momentos.
A Suzana, Luciane, Isabel e Rudião, pela empatia e carinho.
A Grasiela pela presença, amizade e companheirismo.
A Rejane e a Sandra Mariani pela amizade, apoio, incentivo e companheirismo.
RESUMO
Este trabalho tem como objetivo estudar a problematização do conceito de lar no contexto da
diáspora africana na coletânea de contos Coming Home, de June Henfrey. A dissertação foi
estruturada da seguinte maneira: o primeiro capítulo busca uma compreensão da diáspora,
bem como da história da diáspora africana no Caribe e, em especial, em Barbados, local onde
se desenrolam as histórias narradas na obra. Apresenta, ainda, fundamentação teórica sobre a
imagologia, como suporte para o estudo da imagem do negro que emerge dos contos da
coletânea. O segundo capítulo oferece substrato para a compreensão de lar. Inicialmente
relaciona-o a termos correlatos – espaço, lugar e território –, para, em seguida, buscar a
etimologia do termo, os elementos constituintes do conceito, em suas dimensões privada e
pública, além de sua relação com a memória. O terceiro capítulo traz as análises dos seis
contos que compõem a antologia, os quais enfocam a construção e/ou desconstrução do senso
de lar em diferentes períodos da história de Barbados: a migração forçada (escravidão), os
momentos que precedem à abolição da escravatura, o período pós-escravocrata e a
experiência, típica do período medial do século XX, da migração à metrópole e retorno à (ex)
colônia. Verifica-se que, mesmo escravizado, ou alvo de discriminação ou preconceito, o
negro é representado como um sujeito agente, capaz de construir (ou optar por desconstruir),
material ou imaginativamente, um espaço a que possa chamar de lar, mesmo em face de
fatores sociais e afetivos adversos.
Palavras-chave: Diáspora. Lar. June Henfrey. Coming Home. Literatura afro-caribenha.
ABSTRACT
This work aims to study the problematization of the concept of home in the context of the
African Diaspora in June Henfrey´s short story collection Coming Home. Analysis is
structured as follows: the first chapter seeks an understanding of the diaspora, as well as of the
history of the African Diaspora in the Caribbean, and especially in Barbados, where the
stories narrated by Henfrey take place. It also presents theoretical foundation on imagology,
as support for the study of the image of the black man that emerges from the stories. The
second chapter provides a foundation for the understanding of home. Initially it defines space,
place and territory; next, the etymology of the term home is examined, and the elements that
form the concept in its private and public dimensions are exposed; last, memory and home are
correlated. The third chapter is the analysis of the six stories in the anthology, focusing on the
construction and /or deconstruction of the sense of home in different periods in the history of
Barbados: the forced migration (slavery), the moments preceding the abolition of slavery, the
post-slavery experience and the experiences, typical of the of the mid XX century, of the
migration in reverse, i. e., the migration from the colony to the metropolis, and of the return
from the center to the (former) colony. It appears that, even enslaved or subjected to
discrimination and prejudice, the negro is represented as an acting subject, able to build (or
choose to deconstruct), material or imaginatively, the space he/she calls home, even in face of
social and emotional adverse factors.
Keywords: Diaspora. Home. June Henfrey. Coming Home. Afro-Caribbean Literature.
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO ........................................................................................................................ 7
1 CONCEITOS FUNDAMENTAIS ..................................................................................... 12 1.1 Pensando a diáspora africana no Caribe ........................................................................ 12
1.2 Imagologia: o valor representativo e simbólico da imagem ......................................... 17 1.3 A escravidão em terras americanas: a economia de plantation no Caribe .................. 23
2 LAR, TERRITÓRIO E (DES) PERTENCIMENTO ...................................................... 29
2.1 A produção social de espaço e território ........................................................................ 29 2.2 Lar: enraizamento e (des)pertencimento ....................................................................... 33 2.3 A experiência vivida do lar e a memória ........................................................................ 42
3 ANÁLISE TEXTUAL: A (DES)CONSTRUÇÃO DO CONCEITO DE LAR .............. 45 3.1 O período escravocrata .................................................................................................... 45 3.1.1 Love Trouble ................................................................................................................... 45
3.1.2 Freedom Come ................................................................................................................ 55
3.2 Para além da era escravocrata: vidas em contraste ...................................................... 63 3.2.1 The Cane Cutter ............................................................................................................... 63 3.2.2 The Gully ......................................................................................................................... 69
3.3. Contextos contemporâneos: a vida na cidade e na metrópole ..................................... 83 3.3.1 Goodnight, Miss Simons ................................................................................................. 83 3.3.2 Coming Home ................................................................................................................. 91
CONSIDERAÇÕES FINAIS ............................................................................................... 103
REFERÊNCIAS ................................................................................................................... 111
INTRODUÇÃO
Não é por acaso que o tema diáspora vem despertando tanto interesse. O sentido de
dispersão implicado no termo abarca tanto a acepção original, com referência à dispersão dos
judeus, através dos séculos, como a dispersão de outros povos por motivos religiosos ou
políticos. Nesta pesquisa, será abordada a diáspora africana e a economia escravagista nas
colônias anglófonas, especialmente em Barbados. Investiga-se o conceito de lar no contexto
da história da diáspora africana no Caribe, através da análise de contos da coletânea Coming
Home and Other Stories, de June Henfrey (1994), em que se podem observar situações
vividas pelos personagens desde o período escravocrata até o período pós-colonial. Dessa
forma, a coletânea oferece uma revisão da história da diáspora africana no Caribe, e em
especial em Barbados, pois os contos fazem alusão à África ancestral, no além mar distante,
de onde vieram os pais e avós dos escravos das plantations, referindo-se também aos navios
negreiros, à exploração da mão-de-obra escrava, à violência com que era tratado o escravo, à
submissão da mulher escrava ao branco, ao abuso do poder, ao interesse em manter a
escravidão, e à permanência da superioridade do branco, enfim, mesmo depois do período
escravocrata. A coletânea enfoca, ainda, experiência de migração – a migração ao reverso –
quando o movimento se dá da colônia para a metrópole, ao inverso do que aconteceu no
período colonial.
A autora em estudo nasceu em 1939, em uma grande família que cultivava cana-de-
açúcar em Saint David, Barbados. Ganhou uma bolsa de estudos em 1957, o que lhe
proporcionou estudar em Oxford, Inglaterra, onde se casou com Colin Henfrey, antropólogo e
fotógrafo, com quem viajou e trabalhou nos Estados Unidos e Brasil. Mais tarde, vieram a se
estabelecer em Liverpool. Tornou-se mãe de três filhos, trabalhou em vários projetos
comunitários antes de retornar ao meio acadêmico como professora e pesquisadora da
Universidade de Liverpool. Em 1991, ao descobrir que estava com câncer, escreveu os contos,
postumamente publicados em 1994 na coletânea Coming Home. A obra é, assim, de certa
forma, o testamento literário desta contista barbadense, que soube por experiência própria o
que significa viver longe do lar. É, pois, instigante, que a autora tenha escolhido a temática da
volta ao lar, e do que significa lar como tema de seus derradeiros contos.
8
Uma vez que se propõe, aqui, a análise da problematização do conceito de lar no
contexto da diáspora africana em Barbados, o primeiro capítulo desta dissertação faz
referência à diáspora africana no Caribe, embasada no pensamento de Stuart Hall (2009),
Thomas Bonnici (2009), William Saffran (1994), Paul Gilroy (2001) e James Clifford (1994).
Como julgou-se relevante observar a percepção dessa diáspora por parte da autora, como
expressa através das imagens do negro construídas nos contos, lançou-se mão da imagologia.
Por esse motivo, integra, ainda, este primeiro capítulo, de natureza conceitual, uma resenha
dos estudos de Machado e Pageaux (1988) acerca do valor representativo e simbólico da
imagem. Tendo em vista a relação entre imagem e ideologia, conceitua-se, ainda que
brevemente, o saber ideológico. Por último, levando-se em conta que a imagologia considera
as implicações contextuais, resenham-se detalhes históricos acerca da economia escravagista
em Barbados, país onde os contos são ambientados.
O segundo capítulo envolve a definição de lar, tornando-se essencial a reflexão sobre
espaço, lugar e território, relacionados ao domínio espacial, ao qual se vincula o conceito de
lar. Autores como Henri Lefebvre (2009), Anthony Giddens e Claude Raffestin, Rogério
Haesbaert, Marcos Saquet (2004), e Eva Hoffman (1999) servem de apoio para desenvolver
este pensamento. Além disso, estuda-se a origem etimológica da palavra lar, devido a sua
multiplicidade semântica, que demanda a compreensão de termos para que se possa associar
com esta pesquisa. Para isso, autores como Brink (1995) e Rykwert (1993) fornecem as
referências necessárias. No que diz respeito aos elementos constitutivos do conceito de lar,
embasa-se a pesquisa em autores como Laura Huttunen (2005), que atenta para a dimensão
coletiva de lar; Theano Terkenli (1995), que desenvolve o conceito de regiões-lar e suas
qualidades geográficas distintivas, e Nicole Schröder (2006) e Jennie German Motz (2008),
que abordam o lar em relação a narrativas de viagem e mobilidade. As ligações entre
memória, identidade e espacialidade são apoiadas nos estudos de Émile Durkheim (1970),
Maurice Halbwachs (2006, 1990) e Michael Pollak (1992), com suas reflexões sobre a
memória como elemento significativo para relacionar o indivíduo ao espaço, lugar e,
consequentemente, ao seu lar.
No terceiro capítulo, as análises apresentam as diferentes situações enfocadas nos
contos: o negro que contempla o mar que o separa da terra natal, o que busca
desesperadamente um lugar que possa chamar de seu, o que aspira por liberdade, o que ocupa
por posição marginal em relação ao seu meio-irmão branco, o que busca legitimação na
pátria-mãe, o que retorna para a colônia apenas para sentir-se igualmente deslocado. Tais
situações claramente exemplificam a experiência do deslocamento e a impossibilidade de
9
desenvolver o conceito de lar na ausência de fatores-chave para a sua formação, tais como o
sentimento de pertença e relações sociais significativas.
A sequência das histórias deste trabalho não segue a original da coletânea de June
Henfrey, por ser considerada mais apropriada para relacionar às experiências vivenciadas
pelos personagens: movimentos diaspóricos, formação das identidades, assim como a noção
de pertencimento, bem como ao exame da imagem do negro e dos discursos ideológicos
presentes nas narrativas. Essa percepção do percurso dos personagens, desde o período
escravocrata, pós-escravocrata à migração em reverso, permitirá uma melhor compreensão da
problematização do conceito de lar no contexto da diáspora africana no Caribe. Sendo assim,
opta-se pela seguinte sequência dos contos: ―Love Trouble‖, ―Freedom Come‖, ―The Cane
Cutter‖, ―The Gully‖, ―Goodnight, Miss Simmons‖, ―Coming Home‖.
O conto ―Love Trouble‖ apresenta a história de Sarah, uma jovem negra neta de Rose,
ex-escrava, cujo avô foi levado pelos navios negreiros para a fazenda onde moram e de onde
nunca saíram. A jovem é noiva de Dolphus, um rapaz negro que conhecia desde criança;
porém, ao conhecer pessoalmente o dono da fazenda para o qual trabalha, Mr. Bishop, rompe
seu vínculo com a sua avó e com a comunidade negra para ser a amante do homem branco.
Além de considerações sobre a natureza do lar nesse contexto, analisa-se o estereótipo da
figura feminina da escrava, passiva, atraente e como objeto sexual, em contrapartida às da
mulher branca, casta e digna, além da menção a figuras históricas de heróis negros insurretos
no conto.
―Freedom Come‖ sucede no período escravocrata tendo como protagonista a escrava
Nanny, que diverge das demais, pois se torna uma grande líder e responsável por uma das
maiores rebeliões. Por ser filha de escrava negra com o Feitor, não trabalha no campo, e sim,
na Casa Grande, o que lhe dá a oportunidade de se alfabetizar, embora de maneira sigilosa.
Tal habilidade contribui para que fique informada sobre o que está acontecendo nas colônias e
na Inglaterra sobre os escravos, mantendo o grupo, idealizador de uma revolta do qual faz
parte, sempre informado. Nanny, juntamente com Bussa, um líder da plantação vizinha,
Jackey e Robert, são os responsáveis pela grande rebelião que acontece na Páscoa. O fogo é a
arma principal causando a destruição de plantações e a morte de muitos brancos e escravos.
―The Cane Cutter‖ narra a história de dois cortadores de cana, Silas e Reuben, os quais
se apresentam em situações diferentes, mas vivem a experiência do período escravocrata para
o pós-escravocrata. Reuben nasce e permanece nas plantations durante toda a sua vida, não
conhece outro mundo, apenas o do branco, o de cortador de cana. Silas vive em comunidade,
juntamente com sua família. É um homem negro que prospera com o seu trabalho, o qual é
10
desenvolvido em comunidade. O fato de Reuben viver a transição do período escravocrata
para o pós-escravocrata não está explícito no texto, há indícios para subentender esta
temporalidade: o proprietário da fazenda não gosta de ir até à cidade, especialmente porque
considera tanto os brancos pobres quanto os escravos livres, com as quais não estava
acostumado na fazenda, insolentes, sem educação e cortesia. Da mesma forma em ―Silas‖,
primeira parte do conto de ―The Cane Cutter‖, a narrativa inicia com o protagonista indo
trabalhar na lavoura de cana, ocasião em que se encontra, diariamente, com outros homens da
comunidade, também cortadores de canas e que, como ele, fazem o mesmo percurso. O
trabalho contínuo nos canaviais dos negros, apenas oficialmente libertos, mas ainda sujeitos a
esse duro trabalho, é identificado através do sonho no qual um nenê negro passa às mãos de
Silas uma lâmina brilhante, lustrosa pelo uso constante, e de um segundo sonho, no qual um
homem negro assassina uma mulher branca com uma faca. Em ambas as histórias, ocorre a
morte de mulheres brancas cometidas por escravos.
Na sequência, analisa-se ―The Gully‖, conto dividido em duas partes: Quashebah e I-
Malachi. Na primeira, destaca-se a escrava negra Quashebah, que não aceita a exploração do
branco e a submissão da mulher, opondo-se à condição de objeto descartável. A fim de poder
gozar de momentos de paz e liberdade refugia-se periodicamente em um barranco. Esse
espaço de segurança e refúgio para a sua alma é analisado a partir das metáforas da noite,
água, sangue e, especialmente, a da concha. Para tal, recorre-se a estudos desenvolvidos por
Gaston Bachelard, em seu livro A poética do espaço. Na segunda parte do conto, I-Malachi, o
protagonista está à procura de um lugar onde possa se sentir protegido, livre das tentações e
dos devaneios que o perturbam, e encontra refúgio, também em um barranco, supostamente o
mesmo usado por Quashebah. É perturbado pela intromissão de mulher, Doris, a quem
compara a Jezabel. Analisam-se as ressonâncias simbólicas dos nomes dos personagems:
Malachi (Malaquias) e Jezabel, e as ligações de I-Malachi com o movimento Rastafari e seu
uso metafórico no contexto do conto. Tanto para Quashebah quanto para I-Malachi, o
barranco é seu lar, pois naquele espaço encontravam segurança, tranquilidade, suas raízes
culturais, controle sobre o espaço e eram livres para pensar.
O conto ―Goodnight, Miss Simmons‖ tem como cenário uma sociedade dominada pelo
preconceito racial não só entre brancos e negros, como também entre negros. Simmons, um
alfaiate de descendência negra, ao pretender se casar com Eva, uma professora de pele bem
mais clara, quase branca, mas de origem negra, sofre rejeição da sua família. A decadência
material e econômica da família, após a morte do marido de Eva, que os levou à falência,
ilustra o declínio familiar e, consequentemente, a desconstrução de seu lar, pois, em uma
11
sociedade caracterizada por preconceito de cor (―colour-marked society‖), as relações
familiares e afetivas são profundamente afetadas.
A migração é o tema central em ―Coming Home‖. Hilda e Linton fazem parte de um
grupo de migrantes pós-guerra do Caribe para a Inglaterra, a geração Windrush. No novo
país, descobrem ser estrangeiros vivendo sob a injustiça, a exclusão e o preconceito racial.
Uma vez viúva, Hilda retorna à terra natal, onde pensa reencontrar o senso de pertencimento e
o lar que nunca vivenciou na pátria-mãe. Porém, ao retornar a Barbados, a protagonista sente-
se frustrada, pois aquele lugar lhe parece desconhecido diante de tantas modificações,
inclusive a casa onde morava na sua infância. Essa sensação de estranhamento vai sendo
modificada mediante a recuperação de sua história pessoal que lhe proporcionam o
desenvolvimento da apreensão de lar. O conto é especialmente interessante para o estudo do
lar, que é vivenciado em dois contextos distintos.
O presente estudo está relacionado à linha de pesquisa Literatura, História e Memória,
do Programa de Mestrado em Letras da URI de Frederico Westphalen, tendo em vista que
examina o estudo das relações entre a literatura e o processo histórico cultural e social e a
interpretação da história no contexto do universo ficcional criado por June Henfrey na
coletânea Coming Home. A obra em análise contribuirá para os estudos acerca da
interpretação de procedimentos simbólicos dos contos e das atitudes sócio-histórico-culturais
neles retratadas. Esta investigação contribuirá para o enriquecimento das pesquisas nessa
linha, pois a literatura, a história e a memória estão relacionadas à análise que emerge nos
contos da coletânea de June Henfrey, enfocando, ainda, a realização de um estudo
imagológico acerca da figura do negro, conforme representado nas narrativas da autora
barbadense.
12
1 CONCEITOS FUNDAMENTAIS
There is the sense in the mind of not being here or there, of no way out or in. As if
the door had set up its own reflection. Caught between the two we live in the
Diaspora, in the sea in between. Imagining our ancestors stepping through these
portals one senses people stepping out into nothing; one senses a surreal space, an
inexplicable space. One imagines people so stunned by their circumstances, so
heartbroken as to refuse reality. Our inheritance in the Diaspora is to live in this
inexplicable space. That space is the measure of our ancestors‟ step through the
door toward the ship. One is caught in the few feet in between. The frame of the
doorway is the only space of true existence. Dione Brand. A Map to the Door of no Return: Notes to Belonging.
A coletânea Coming Home apresenta contos centrados na diáspora africana, em
histórias que acompanham o deslocamento dos negros desde a África até Barbados, e os
retratam, em solo caribenho, ao longo do traumático período escravista, abrangendo ainda o
período pós-emancipatório e a contemporaneidade. Assim, faz-se necessário, inicialmente,
pensar o conceito de diáspora. Por outro lado, configura-se igualmente relevante, para a
presente análise, observar a percepção dessa diáspora por parte da autora, como expressa
através das imagens do negro construídas nos contos. Para isso, lança-se mão da imagologia,
já que, como Machado e Pageaux expõem, a imagem é, até certo ponto, a linguagem sobre o
Outro e, neste sentido, retoma uma realidade que designa e significa.1 Mesmo essa breve
definição deixa evidente a vinculação entre estudos imagológicos e ideologia, pelo que se
apresentam, também, fundamentos teóricos sobre esse conceito. Por fim, tendo-se em vista
que a imagologia não isola o texto literário em uma torre de marfim, mas o estuda em suas
implicações históricas e sociais, faz-se também necessário ao estudo dos contos o
conhecimento da economia escravagista nas colônias americanas, especialmente as
anglófonas; nestas, destaca-se a situação de Barbados, país onde os contos são ambientados.
1.1 Pensando a diáspora africana no Caribe
Não por acaso, este subtítulo ecoa a proposta que faz Stuart Hall no capítulo inicial da
coletânea Da diáspora: identidades e mediações culturais, organizada por Liv Sovik. Ao
1 MACHADO, Álvaro Manuel; PAGEAUX, Daniel-Henri. Da literatura comparada à teoria da literatura.
Portugal: edições 70, 1988, p. 57.
13
colocar a questão da diáspora no contexto caribenho, Hall questiona, entre outras
interrogações, como pensar o pertencimento à luz da experiência da diáspora, situação em que
as identidades se tornam múltiplas. Outra indagação formulada por esse autor é como
imaginar a identidade, a diferença e o pertencimento após a diáspora. Esses questionamentos,
especialmente os cruzamentos entre identidade, diáspora e pertencimento, são extremamente
relevantes para esta pesquisa, uma vez que os personagens de Coming Home fazem parte,
todos, da diáspora africana no Caribe e, em diferentes contextos e modos, são retratados em
situações em que a identidade e o senso de pertencimento, ou o seu oposto, deslocamento, são
evidentes.2
A história do negro tem sido marcada por experiências de dispersão, de modo que a
sua presença no ocidente tem demandado estratégias específicas de sobrevivência dentro
desse novo contexto. A deslocamentos como esse, se dá o nome genérico de diáspora. Nesse
sentido, propõe-se inicialmente uma abordagem do conceito de diáspora e suas implicações
para o estudo da literatura.
A etimologia do termo diáspora, segundo o Dicionário de relações étnicas e raciais de
Ellis Cashmore, vem do grego dia (através, por meio de) e speirõ (dispersão, disseminar ou
dispersar), e está associada às ideias de migração e colonização da Ásia Menor e do
Mediterrâneo (800 a 600 a. C.). Na tradução grega do Deuteronômio, a palavra designa a
dispersão dos judeus exilados da Palestina depois da conquista babilônica e da destruição do
Templo no ano de 586 a.C.3
Porém, a palavra vem sendo usada através da história com outras conotações,
principalmente no sentido negativo, como é o caso da experiência judaica, da qual se originou
a comparação com os povos africanos e sua dispersão pelo mundo. Diferentes definições para
esse termo têm sido propostas, tendo como componentes críticos a história da dispersão,
mitos, memórias de uma pátria, alienação no país de acolhimento, desejo de um eventual
regresso, e/ou apoio permanente a uma pátria ou identidade coletiva. A diáspora é vista como
um movimento social de dispersão, construção social fundada no sentimento, percepção,
memória, mitologia, história, narrativas significativas, a identidade do grupo, anseios, sonhos,
elementos alegóricos e virtuais, os quais desempenham um papel importante no
estabelecimento de uma realidade da diáspora.
2 HALL, Stuart. Da diáspora: identidades e mediações culturais. Trad. Liv Sovik. Belo Horizonte: UFMG, 2009,
p. 28. 3 CASHMORE, Ellis. Dicionário de relações étnicas e raciais. Trad. Dinah Klevel. São Paulo: Summus, 2000,
p. 169.
14
De acordo com Thomas Bonnici, o termo diáspora designa um movimento voluntário
ou forçado de pessoas ou povos de sua terra de origem para novos locais, fazendo-os se
sentirem desenraizados de sua cultura e de seu lar. Spivak distingue duas possibilidades de
diáspora: a pré-transnacional - responsável pelo deslocamento de milhões de escravos de suas
terras, entre os séculos XV e XIX, para trabalhar nas fazendas do novo mundo – e a
transnacional, que inclui os trabalhadores de indentured labour, no século XIX (este é o caso,
por exemplo, dos milhares de chineses e indianos que foram contratados para trabalhar no
Caribe), e os deslocamentos contemporâneos ocasionados pela guerra civil, fome, desemprego
e o sonho de fazer parte da modernidade.4 Outro tipo de diáspora resulta na direção oposta, ou
seja, a emigração significativa de caribenhos, africanos, centro e sul-americanos para os
centros metropolitanos na Europa, Canadá e Estados Unidos.5 O conto final da coletânea de
contos em estudo, Coming Home, que acabou emprestando o nome à coletânea, enfoca
situação de diáspora transnacional, destacando a história de jovem casal barbadiano que se
desloca para a Inglaterra em busca de melhor situação de vida.
Embora em épocas diferentes, tanto os escravos quanto os emigrantes contemporâneos
tentaram, e tentam, reestruturar sua identidade. Uma linguagem diferente, um novo sistema
trabalhista, memórias da ‗casa‘ distante, imersão numa cultura nova produzem o
desenraizamento. Para a pessoa deslocada, a pátria ou o lar ―não é mais um único lugar, mas
uma série de lugares [...]. A dispersão e a fragmentação são aceitas como fatores na
construção de uma nova ordem mundial que revela mais plenamente onde estamos e o que
nos podemos tornar‖.6
Uma vez que variadas experiências coletivas podem ser abrangidas pelo termo
diáspora, W. Saffran refere-se a elas como ―comunidades minoritárias expatriadas‖, para as
quais alista seis características: (1) são dispersadas de um ―centro‖ original para pelo menos
dois lugares ―periféricos‖; (2) mantêm memória, visão ou mito sobre sua terra original; (3)
acreditam não ser completamente aceitos no seu país de hospedagem; (4) percebem o lar
ancestral como um possível lugar de retorno; (5) engajam-se pela manutenção e restauração
desse lar ancestral; (6) definem sua consciência de solidariedade em relação a esse lar
primevo. Em resumo, para esse teórico, as principais características da diáspora são: uma
história de dispersão, mitos ou memória da terra de origem, alienação no país de hospedagem,
4 BONNICI, Thomas. Resistência e intervenção nas literaturas pós-coloniais. Paraná: Eduem, 2009, p. 30.
5 Ibidem, p. 397, 398.
6 Ibidem, p. 398-399.
15
desejo de retorno eventual permanente, apoio à terra ancestral e definição da identidade
coletiva a partir desse relacionamento.7
Na concepção de Paul Gilroy, a diáspora não representa uma forma de dispersão
catastrófica, mas um processo que confunde a mecânica cultural e histórica do pertencimento,
pois o elo com o lugar, posição e consciência é rompido, como também o é o domínio de
território, de vital importância para determinar a identidade. Assim, a chave da diáspora,
segundo esse autor, não se encontra na raça e, sim, em formas geo-políticas e geo-culturais de
vida resultantes da interação entre sistemas comunicativos e contextos que elas não só
incorporam, mas também modificam e transcendem. Ao aderir à diáspora, a identidade pode
ser levada à indeterminação e ao conflito, em vez de estabelecer uma relação com a nação e
com o nacionalismo.8
Muitas das sociedades que se disseminavam por meio e entre diferentes geografias
políticas e culturais experimentaram tratamento de opressão e de vitimização, dor e
sofrimento, como o que resultou da escravidão. Essa migração não voluntária ocasionou
sentimento de perda, consequência da impossibilidade de retorno à terra de origem; a
migração, mesmo voluntária, pode levar também a um saudoso e intenso desejo de retorno,
uma vez frustradas as expectativas do migrante, que se agrava com a percepção da
impossibilidade de retorno à terra de origem.
Tal deslocamento ou desterritorialização amplia a noção de afastamento geográfico,
levando a um afastamento não só corpóreo como também imaginativo, que desencadeia no
sujeito um sentimento de ―não estar em casa‖, questionando o seu ―pertencimento‖ e sua
identidade nacional. Hall relaciona a experiência da diáspora aos assentamentos negros na
Grã-Bretanha, os quais não levam os migrantes vindos das Índias Ocidentais a romper com
suas raízes caribenhas: os elos permanecem fortes, devido à intenção de preservar a
identidade cultural. Há aquilo que esse autor chama de ―identificação associativa‖ com suas
culturas de origem, ou seja, embora ―longe de casa‖ existe um desejo de retorno motivado
pela força do elo umbilical e pelo orgulho de ser caribenho.9
Ao responder a sua própria pergunta retórica sobre como se pode imaginar a
identidade, a diferença e o pertencimento em face da diáspora, Hall revisa dois conceitos
contrastantes de identidade. Inicialmente resenha o conceito essencialista, segundo o qual
―presume-se que a identidade cultural seja fixada no nascimento, seja parte da natureza,
7 SAFFRAN, 1991 apud CLIFFORD, James. Diasporas. Cultural Anthropology, v. 9, n. 3, p. 304-305, Aug.
1994. 8 GILROY, Paul. O Atlântico Negro modernidade e dupla consciência. São Paulo: 34, 2001, p. 18, 23, 25.
9 HALL, 2009, p. 26-28.
16
impressa através do parentesco e da linhagem dos genes, seja constitutiva de nosso eu mais
interior‖.10
De acordo com os partidários dessa definição, a identidade cultural não sofre
influências de mudanças geográficas, culturais ou sociais. Ironicamente comentando esta
concepção, Hall registra que, segundo esse conceito, a identidade seria ―impermeável a algo
tão ‗mundano‘, secular e superficial, quanto uma mudança temporária de nosso local de
residência‖.11
Contudo, a descentralização dos indivíduos, tanto de seu lugar no mundo social
e cultural quanto de si mesmos, representa um processo de transformação que influi na sua
posição identitária.
Arraigados no contexto de suas histórias nacionalistas, como parte do seu senso do eu
coletivo, os povos do Caribe adotaram uma concepção fechada de tribo, diáspora e pátria, o
que contribuiu para tornar familiar, entre eles, o conceito essencialista de diáspora. Nesse
contexto, identidade cultural corresponde a ―estar primordialmente em contato com um
núcleo imutável e atemporal, ligando ao passado o futuro e o presente numa linha
ininterrupta‖.12
Este ―cordão umbilical‖, baseado à fidelidade às origens, equivale ao conceito
de ―tradição‖. Remete a uma suposta ―autenticidade‖, sendo, portanto, um mito; como Hall
ressalta, todo mito tem o potencial ―de moldar nossos imaginários, influenciar nossas ações,
conferir significado às nossas vidas e dar sentido à nossa história‖.13
Contudo, não há como retraçar a origem de sociedades formadas por população
diaspórica, como a caribenha, a um mito fundador original único e ―autêntico‖. Essas
sociedades são compostas não de um, mas de muitos povos, não sendo suas origens únicas,
mas diversas. Conquista expropriação, genocídio, escravidão, o sistema de engenho e a longa
tutela da dependência colonial são episódios bem documentados de uma história que mostra
como seus habitantes têm suas raízes pertencentes a outro lugar. Como Hall resume, falando
de seu Caribe natal:
Todos os que estão aqui pertenciam originalmente a outro lugar. Longe de constituir
uma continuidade com os nossos passados, nossa relação com essa história está
marcada pelas rupturas mais aterradoras, violentas e abruptas. Em vez de um pacto
de associação civil lentamente desenvolvido, tão central ao discurso liberal da
modernidade ocidental, nossa ‗associação civil‘ foi inaugurada por um ato de
vontade imperial. O que denominamos Caribe renasceu de dentro da violência e
através dela.14
10
HALL, 2009, p. 28. 11
Ibidem, p. 28. 12
Ibidem, p. 29. 13
Ibidem, p. 29. 14
Ibidem, p. 30.
17
Uma vez que no Caribe se entrelaçaram povos vindos dos quatro cantos do globo –
originários da Europa, África e Ásia se juntaram aos habitantes originais – formou-se uma
sociedade que tem como traço distintivo a fusão de elementos provenientes dessas variadas
origens. Essa cultura híbrida não pode mais ser desagregada em seus elementos ―autênticos‖
de origem. A ―África‖ sobrevivente no Haiti e na Jamaica através da fusão dos deuses
africanos com os santos cristãos, a ―França‖ atravessada pela transgressão do ―estilo‖ negro
no Haiti e na Martinica, a ―Inglaterra‖ dos hábitos, costumes e etiqueta social de Barbados
atestam hibridismo, différance.
Assim, embora o conceito fechado de diáspora se apoie sobre uma concepção binária
de diferença, sendo fundado por fronteiras de exclusão e sobre uma rígida construção de um
Outro (e, portanto, sobre bem demarcadas fronteiras entre dentro e fora), as configurações
sincretizadas da cultura caribenha requerem uma lógica cultural diferente. Em vez de um e
Outro, dentro e fora, os polos binários de sentido são constantemente arruinados por processo
mais aberto e fluido. Kobena Mercer descreve tal lógica cultural como ―estética diaspórica‖,
em que formas culturais estão em poderosa dinâmica sincrética, que se apropria criticamente
dos elementos das cultuas hegemônicas e os ―criouliza‖.15
Dessa forma, a relação entre as
culturas caribenhas e suas diásporas não deve ser concebida em termos de origem e cópia,
fonte primária e reflexo, mas como a relação entre uma diáspora e outra.16
Os contos que compõem Coming Home, os quais são objetos desta pesquisa, permitem
relacionar, às experiências vivenciadas pelos personagens, movimentos diaspóricos, formação
de identidades, assim como a noção do pertencimento. As histórias têm, em sua maioria,
como cenário, a ilha de Barbados, e ocorrem durante a escravidão, o período escravocrata e a
contemporaneidade.
1.2 Imagologia: o valor representativo e simbólico da imagem
A imagologia (imagologie) é um dos mais antigos métodos de investigação em
Literatura Comparada. Torna-se especialmente convidativa para a análise em tela uma vez
que, tendo como objeto de estudo a imagem do estrangeiro em determinada literatura e/ou
cultura, desencadeia um processo de socialização que analisa duas ou mais culturas em
confronto. No Caribe das histórias de Henfrey, percebe-se o choque entre a cultura negra e a
de seus dominadores brancos. Resenha-se, aqui, o conceito de imagologia a partir da
15
HALL, 2009, p. 33. 16
Ibidem, p. 34.
18
definição de Álvaro Manuel Machado e Daniel-Henri Pageaux, em seu já clássico Da
literatura comparada à teoria da literatura.17
Movendo-se para além do estudo de fontes e influências, e da mera catalogação
temática, a imagologia propõe-se a investigar as implicações históricas e mesmo sociais do
texto literário, dentro de uma tendência mais pluridisciplinar e de uma aliança entre a
literatura e as questões de ordem social e cultural. Para tanto, os estudos das imagens são
derivadas de investigações sociológicas, antropológicas e históricas sobre questões que
abordam aculturação, opinião pública e alienação cultural sobre o estrangeiro, levando o
comparativista a se interessar pelo confronto entre os seus métodos e os desses outros campos
de conhecimento.
Nesse contexto, a imagem é entendida como uma tomada de consciência do eu em
contraposição ao outro; é a expressão, literária ou não, de um distanciamento significativo
entre duas ordens de realidades culturais, ou, ainda, é a representação de uma realidade
cultural por meio da qual aqueles que a elaboraram revelam e traduzem seu próprio espaço
cultural e ideológico.
Diversos sentidos, compatíveis ou incompatíveis entre si, de cunho epistemológico ou
político, têm sido atribuídos à ideologia. Terry Eagleton apresenta alguns deles: processo de
produção de significados na vida social; corpo de ideias de determinado grupo ou classe
social; ideias (falsas ou não), que ajudam a legitimar o poder político da classe dominante;
comunicação sistematicamente distorcida; formas de pensamento motivadas por interesses
sociais; ilusão socialmente necessária; conjuntura de discurso e de poder; conjunto de crenças
orientadas para a ação; veículo pelo qual os atores entendem o seu mundo; confusão entre a
realidade linguística e a realidade fenomenal; processo pelo qual a vida social é convertida em
uma realidade natural; meio pelo qual os indivíduos vivenciam suas relações com uma
estrutura social.18
As relações entre os discursos ideológicos e os interesses sociais são complexas e
variáveis. Só se pode decidir se o enunciado é ideológico ou não examinando-o em seu
contexto discursivo, pois a ideologia é uma função da relação de uma elocução com seu
contexto social: todo o discurso está vinculado a interesses sociais específicos e,
consequentemente, à questão do poder.
17
MACHADO; PAGEAUX, 1988, p. 55-81. 18
EAGLETON, Terry. Ideologia: uma introdução. Trad. Luís Carlos Borges Silvana Vieira. São Paulo: Editora
da Universidade Estadual Paulista: Boitempo, 1997, p. 15.
19
Pensar a ideologia como um fenômeno discursivo e semiótico corresponde a enfatizar
a sua materialidade e ressaltar o fato de que ela diz respeito essencialmente a significados.19
Como Eagleton destaca, pode ser produtivo considerar a ideologia ―menos como um conjunto
particular de discursos do que como um conjunto particular de efeitos dentro dos discursos‖.20
Todo discurso tem a intenção de produzir algum efeito em seus receptores; o conceito clássico
de ideologia aponta para o processo ―pelo qual os interesses de certo tipo são mascarados,
racionalizados, naturalizados, universalizados, legitimados em nome de certas formas de
poder político, e há muito a perder politicamente quando essas estratégias discursivas vitais
são dissolvidas em alguma categoria indiferenciada e amorfa de ‗interesses‘‖.21
Da mesma forma como a ideologia não pode ser divorciada do signo, este também não
pode ser dissociado da vida social. Como já dizia Louis Althusser, a ideologia corresponde à
relação imaginária dos indivíduos com as suas condições reais de existência e, portanto, tem
uma existência material. A vinculação entre ideologia e sociedade permite que as imagens
transmitam o pensamento do contexto social e cultural que as gerou.22
De acordo com Machado e Pageaux, a partir da análise das imagens, pode-se chegar
ao modo como funciona o pensamento e as estruturas de uma determinada ideologia. Essa
tomada de consciência estabelece uma relação entre o Eu e o Outro; toma-se a imagem como
a representação de uma realidade cultural estrangeira através da qual o indivíduo ou o grupo
que a elaboram revelam e traduzem o espaço ideológico no qual se situam. Esse fato leva o
investigador a não se deter apenas no texto literário, mas nas condições e no momento em que
ele foi escrito e a quem está destinado, permitindo perceber o que essa imagem tende a revelar
ou a esclarecer.23
No entanto, chegar a uma imagem média significa atingir certo número de imagens
que, sendo diferentes e mesmo contraditórias, se exprimem numa mesma época, numa mesma
literatura. Relaciona-se, assim, a construção imagética ao imaginário social, concebendo-se a
imagem como uma representação do Outro, de outra cultura, de uma outra realidade elaborada
por um grupo ou por um indivíduo a partir do espaço ideológico no qual se situa. Isso é
enfatizado por Machado e Pageaux, que ressaltam como ―a imagem é a representação de uma
19
EAGLETON, 1997, p. 22-23; p. 171-172. 20
Ibidem, p. 172. 21
Ibidem, p. 178. 22
ALTHUSSER, Louis. Aparelhos ideológicos de estado: nota sobre os aparelhos ideológicos de estado. Trad.
Walter José Evangelista, Maria Laura Viveiros de Castro. Rio de Janeiro: Graal, 1989, p. 85-93. 23
MACHADO; PAGEAUX, 1988, p. 57-62.
20
realidade cultural estrangeira através da qual o indivíduo ou o grupo que a elaboraram
revelam e traduzem o espaço ideológico no qual se situam‖.24
Imagens não são enunciados vagos ou gerais, mas opiniões, opções individuais ou de
grupos em relação ao real observado. Dessa forma, não se pode considerar a veracidade ou a
falsidade de uma imagem, mas conhecer os componentes, os fundamentos e a função social
que ela representa, pois, sendo considerada como uma linguagem sobre o Outro, retoma uma
realidade a qual qualifica e simboliza. Além disso, o estudo da imagem conduzirá à
identificação da linha de pensamento que rege uma cultura, seja de um escritor, de um país ou
de qualquer outro representante, estando, portanto, indissociável das suas histórias,
pensamentos e crenças.
Esse tipo de olhar envolve a percepção da cena da cultura ―que olha‖ e de outra ―que é
olhada‖. Ao olhar-se o Outro, é estabelecida uma imagem do observador impossível de evitar,
pois se identifica o seu pensamento, geração, país, cultura, espaço. Por outro lado, a referência
ao ―Outro‖ indica o mundo e o lugar de onde partiu esse ―olhar‖ ou ―juízo‖, revelando as
relações que estabelece entre o estranho mundo em que vive e o de si próprio. Na verdade, a
imagem do Outro é uma língua segunda, uma linguagem que se usa para dizer outra coisa.
Sendo assim, a imagem é uma linguagem simbólica, através da qual se exprime qualquer tipo
de relações, seja interétnicas, interculturais ou ainda de outra natureza, entre a sociedade que
fala e a sociedade ―olhada‖.
Uma forma comum da ―imagem‖, o estereótipo, geralmente é percebida como uma
simplificação, e, portanto constitui-se em perigo para a compreensão dos povos, por ser uma
forma maciça de comunicação que corresponde a uma redução conceitual. O estereótipo tende
a definir o Outro enunciando um coletivo com o intuito de uma validade, independente do
momento histórico ou político, defendendo ou baseando-se num símbolo. Essa ideia é
difundida e convertida em importante e indispensável, representativa de uma definição válida
do Outro, seja qual for a circunstância. Enunciar o estereótipo é confirmar e explicar uma
situação proveniente de um raciocínio fundamentado em uma hierarquia de culturas,
distinguindo o eu do Outro, geralmente valorizando o primeiro em detrimento do segundo,
divulgando uma caricatura ideológica, passando da imagem para a história das ideias.
O fato de a imagem representar algo permite uma comunicação, uma linguagem
daquilo que está sendo ―olhado‖; ao mesmo tempo, tem uma ―função-signo‖, isto é, dá um
sentido, um significado à representação. Explicar esse discurso e mostrar a imagem ali
24
MACHADO; PAGEAUX, 1988, p. 58.
21
presente como uma linguagem simbólica é o principal objetivo da imagologia. A fim de
discernir a imagem como um texto planejado, faz-se importante a distinção de três elementos:
a palavra, a relação hierarquizada e o cenário. A imagem é constituída por palavras, que
procuram reconstituir, por meio de um repertório comum ao escritor e ao leitor, a difusão de
imagem, mais ou menos imediata, numa determinada cultura ou época.
É preciso estar atento às palavras provenientes daquele que ―olha‖, definindo o objeto
do seu olhar, e àquelas provenientes do que é ―olhado‖, uma vez que podem ser convertidas
pelo primeiro, sem uma compreensão correta, sem ―tradução‖ na sua língua e espaço cultural.
A análise lexical oferece vestígios e indicadores de lugares, tempo, delimitação externa ou
interna do personagem, opção religiosa, filosófica, política, ideologia, oportunizando
averiguar o sistema de semelhança entre o Outro e eu. Além disso, os adjetivos, os processos
de exclusão, de marginalização, de integração, de exorcização devem ser valorizados, pois
poderão servir como um dicionário das imagens, já que a imagologia, como auxiliar ativo da
história das ideias, vale-se dos pontos de referência lexicais para construir um discurso crítico
sobre a literatura do Outro.
Machado e Pageaux distinguem entre o que chamam de ―palavras-chave‖ e ―palavras-
fantasma‖. As primeiras, autenticadas pela história e pelo processus cultural de vários séculos,
são decodificadas de forma mais ou menos imediata pelo leitor. Já as ―palavras-fantasmas‖
correspondem a semas virtuais que servem à comunicação linguística e à simbólica. Os
comparatistas franceses as exemplificam com palavras como ―harém‖, ―odalisca‖ ou
―deserto‖, cujo efeito de exotismo concorre para a elaboração de um longínquo, de um
imaginário ocidental. Nesses casos, através do texto, o eu enunciador revela um universo
fantasmático que elaborou do Outro.
No que diz respeito às relações hierarquizadas, é importante identificar o modo como
o eu contrasta ou observa o Outro no texto, assim como os elementos usados para caracterizar
e descrever essa imagem, limitando o investigador a reorganizar o texto em estudo segundo a
sua lógica pessoal, seguindo uma ordem da lógica do escritor. Por isso, o tempo e o espaço
podem ter relações explicativas com os personagens e com o próprio escritor, atentando aos
processos em que o espaço estrangeiro está organizado e simbolizado, pois este reproduz e
significa a paisagem mental de um personagem, do escritor, as condições históricas,
permitindo estabelecer relações explicativas entre o espaço geográfico e o psíquico no plano
metafórico. Desta forma, é preciso atentar aos processos de fixação dos lugares, sua
valorização positiva ou negativa: movimentos no texto, lugar, cidade, região, campo,
22
princípios de inclusão ou exclusão, família, lugares valorizados, processo de mitificação,
movimentos de recuo da história.
Além dos elementos relacionados ao espaço, há os referentes ao estudo do tempo, que
também são indicadores importantes para a compreensão da representação. Mas, para que isso
aconteça, precisamos estar atentos àquilo que pode parecer uma mitificação do tempo
histórico. Assim, serão colocadas em evidência as oposições frequentes do tempo linear da
história política ao tempo irreversível, concernente à imagem. As indicações históricas
precisas, indicadores de mitificação do tempo histórico, a presença de estereótipos e o
movimento que tende a desencadear um recuo na história, evidenciando as oposições do
tempo linear e progressivo da história política ao tempo reversível, cíclico da imagem,
também se revestem de importância.
Referente à representação dos personagens, tudo que divide o eu e o Outro tem um
significado, sendo as características morfológicas determinantes para a elaboração da imagem
do Outro possuindo um significado particular no conjunto do funcionamento do texto, o que
propõe investir na observação do sistema de relação das personagens, como por exemplo, a
escolha das personagens femininas e masculinas, a sua ligação com a cultura de origem do
escritor ou com a cultura estrangeira. Dessa forma, será possível a formulação da alteridade,
através de elementos opostos que associam natureza e cultura, selvagem e civilizado, bárbaro
e culto, homem e animal, adulto e criança (o eu é adulto, o Outro é criança), ser superior e ser
inferior, dentre outros.
Outro aspecto a ser considerado na interpretação da imagem é o que diz respeito à
antropologia cultural, a qual possibilita enfocar o texto (literário ou não) como um testemunho
ou documento que revela o grau de conhecimento do autor em relação à cultura que retrata.
Ao elaborar uma imagem, o escritor não faz uma cópia da realidade, mas, sim, uma seleção
das características por ele consideradas relevantes para a ―sua‖ representação. Assim,
considera o significado social e cultural desses elementos, confrontando-os com os dados
históricos, culturais e ideológicos. Somente com o auxílio da história é que o leitor poderá
compreender porque o autor selecionou determinada imagem cultural do texto como
referência cultural para o leitor.
Palavras, relações e cenário podem ser objetos simbólicos, mas o imaginário decorre
de referências culturais ou padrões escolhidos pelo escritor ou pelo grupo que escreve. A
imagem e o mito podem ter a capacidade de contar uma história que poderá se tornar
exemplar, pois o imaginário é o lugar onde triunfa a intertextualidade. Nesse sentido, uma
leitura imagológica vale-se de uma imagem do Outro para pensar ou sonhar de outra maneira,
23
não estando o autor necessariamente de acordo com o seu discurso sobre esse Outro, mas
servindo-se dele para justificar os fantasmas da sociedade.25
Vistas a partir do olhar de um Outro, quatro atitudes fundamentais têm sido
percebidas: a mania, a fobia, a filia e o cosmopolitismo. A primeira, a ―mania‖, corresponde à
atitude na qual a realidade cultural do estrangeiro é vista pelo escritor ou grupo como superior
à cultura nacional de origem, isto é, o autor percebe uma falha na cultura de origem e usa a
cultura do Outro para ironizar ou criticar. Dessa forma, a ―mania‖ desenvolve aquilo que é
chamado de ―miragem‖. Já na fobia, a realidade estrangeira é vista de maneira negativa ou
inferior em relação à de origem, desencadeando, assim, uma sobrevalorização de toda ou de
parte da cultura de origem. Na ―filia‖, a realidade cultural estrangeira é tida por positiva e
situa-se no interior de uma cultura vista de maneira positiva, havendo uma admiração mútua.
Assim, enquanto a ―mania‖ se alimenta de ―empréstimos‖, ou seja, importa do estrangeiro
ideias ou hábitos, a ―filia‖ desenvolve processos de avaliação e de reinterpretação do
estrangeiro. A ―fobia‖ implica a morte simbólica do Outro; já a ―filia‘ tenta impor a via
difícil, exigente, que passa pelo reconhecimento: o Outro vive, então, ao lado do Eu; não é
nem superior nem inferior, nem sequer diferente no sentido de certo ―exotismo‖, ―é pura e
simplesmente reconhecida como outro.‖ Na atitude ―cosmopolita‖, não há valoração positiva
ou negativa, e o estrangeiro é visto como fazendo parte de uma realidade mais ou menos
uniforme. 26
As manifestações acima permitem interpretar o estrangeiro ou o Outro no interior de
um texto, considerando-se uma ideologia, preferências ou rejeições. Dessa forma, o estudo da
imagem permite uma conscientização crítica das nossas práticas culturais e dos nossos
pensamentos, admitindo uma revisão e uma reapropriação da cultura que envolve o
investigador e a sua investigação. Como já comentado na introdução a este capítulo, uma vez
que a interdisciplinaridade é necessária à investigação imagológica, resgatam-se, a seguir,
dados históricos, geográficos e culturais a respeito da escravidão, especialmente no contexto
do Caribe, e particularmente em Barbados, terra natal de June Henfrey.
1.3 A escravidão em terras americanas: a economia de plantation no Caribe
A trajetória histórica da escravidão africana em terras americanas pode ser
caracterizada por três fases: a primeira compreende desde o início da colonização até o século
25
MACHADO, PAGEAUX, 1988, p. 65-71. 26
Ibidem, p. 73-79.
24
XVII, quando a escravidão negra já havia se tornado uma prática tanto na América espanhola
quanto no Caribe. O segundo período estende-se até fins do século XVII, e corresponde à
época em que o açúcar é introduzido nas Antilhas – primeiro nas Antilhas espanholas e, em
meados do século XVII, no Caribe francês, britânico e holandês (Guiana e Antilhas:
Barbados, Jamaica e São Domingos), bem como nas colônias britânicas do Sul, da América
do Norte. Um último estágio da escravidão africana nas Américas é comumente delimitado
entre 1791, data da rebelião de escravos e quilombolas no Haiti, até 1888, quando houve a
extinção final do escravismo americano, com a abolição do tráfico de africanos e da própria
escravidão.27
Até meados do século XVII, na América espanhola, a colonização se organizou com
base na mão-de-obra indígena, visando, sobretudo, à exploração das minas de prata. O
escravo africano chegara já com os exércitos conquistadores, e houve intensa mestiçagem
com brancos e índios. Contudo, como o custo do africano era muito alto – custava o
equivalente ao emprego semirremunerado de um trabalhador índio durante dez anos -, embora
os escravos negros trabalhassem nas minas, foi mais frequente o emprego de cativos africanos
e dos libertos como capatazes, trabalhadores urbanos, servidores domésticos e na agricultura
de subsistência.
A partir dos meados do século XVII, a economia de plantation se expandiu para o
Caribe britânico, francês e holandês, e em seguida para as colônias britânicas na América.
Nessa região, os negros receberam tratamento semelhante ao que os índios ocupavam na
sociedade hispano-americana: eram os elementos mais explorados e humilhados da estrutura
social. Nesta fase, além do açúcar, a empresa agrícola escravista interessou-se por diversos
outros produtos, como o tabaco, anil, cacau e algodão.
Os negros trabalhavam, sobretudo, na agricultura em fazendas (plantations). Uma vez
que este é o ambiente que serve de cenário para os contos de Coming Home que tematizam a
escravidão, explana-se esse conceito. Contrastando a plantation com a hacienda, Wolf e
Mintz definem a primeira como
uma propriedade agrícola operada por operários dirigentes (em geral organizados em
sociedade mercantil) e por uma força de trabalho que lhes está subordinada,
organizada para prover um mercado em grande escala por meio de um capital
abundante, e na qual os fatores de produção são empregados, principalmente para
fomentar a acumulação de capital, sem qualquer relação com as necessidades de
status dos donos.28
27
CARDOSO, Ciro Flamarion Santana. A afro-américa: a escravidão no novo mundo. São Paulo: Brasiliense,
1982, p. 20-22. 28
Ibidem, p. 31.
25
As plantations escravocratas caracterizavam-se como propriedades rurais
relativamente extensas, dedicadas prioritariamente às atividades agrícolas ou agroindustriais
de exportação. Seu tamanho variava segundo a densidade da população de colonos europeus e
as exigências do tipo de produção: a introdução do açúcar requereu propriedades extensas e
grande número de escravos, pois além das terras cultivadas (canas, víveres) eram necessários
pastos para os animais e a obtenção de madeira e lenha.29
Por outro lado, a concentração de terras obedecia a limites governados pelas
exigências ecológicas dos gêneros tropicais cultivados, pela necessidade de transportar
produtos agrícolas dos campos ao local do seu beneficiamento e pela embalagem;
dificuldades crescentes de administração eram enfrentadas ao serem ultrapassadas certas
dimensões em extensão e número de escravos.
A demografia dos escravos dependia igualmente de elementos ligados à própria lógica
da plantation, cuja organização foi, provavelmente, um dos mais eficientes sistemas de
trabalho oferecido no mundo ocidental capitalista. A forma mais óbvia disso é revelada na
ausência de diferenças sexuais em todas as principais tarefas de trabalho, associadas com o
plantio, o cultivo, a colheita da produção e a alta porcentagem de pessoas de todas as idades
que eram empregadas: as mulheres faziam quase o mesmo trabalho físico que os homens. Das
pequenas crianças até as pessoas mais velhas, a todos era atribuída uma tarefa proporcional às
habilidades físicas. Homens e mulheres mais velhos cuidavam de lactentes ou crianças, ou
simplesmente tinham que tratar ou guardar o gado. Todas as crianças trabalhavam,
começando na simples tarefa de capinar. Quando alcançavam a idade de oito anos, passavam
a exercer outras funções de acordo com as atividades exigidas pelo grupo de trabalho.30
Os escravos trabalhavam sob pesada supervisão, organizados em grupos baseados na
habilidade física e na realização de tarefas comuns. A constante disponibilidade de
―incentivos negativos‖, como o uso de chicotes e outras punições corporais, podem ter sido
mais decisivos como ―incentivos‖ ao trabalho escravo do que qualquer forma de recompensa
positiva de lazer, comida, vestuário ou fornecimento especial de direito à terra; no entanto,
ambos os tipos de incentivos eram constantemente disponíveis e usados. Entre força,
recompensas, elevadas taxas de participação no trabalho, supervisão direcionada,
29
CARDOSO, 1982, p. 32-36. 30
KLEIN, Herbert S.; VINSON III, Ben. African Slavery in Latin America and the Caribbean. New York:
Oxford University Press, 2007, p. 59-60.
26
sistematização e rotinização das tarefas do trabalho, os escravos da plantation alcançavam
altos níveis de produção e lucro.
Na compra de escravos, visava-se antes o trabalho nas fazendas do que a constituição
familiar. Como a história tradicional narra, dava-se preferência à aquisição de homens
adultos; a procriação e formação de famílias nucleares não eram prioridade. Nas fases de
apogeu do produto cultivado, principalmente na época da colheita e da preparação do produto,
diminuíam-se as horas de descanso. Escassos cuidados e precauções higiênicas eram
dispensados, especialmente às parturientes e aos recém-nascidos, o que aumentava a
incidência da mortalidade infantil; o excesso de trabalho e a alimentação deficiente
contribuíam para o enfraquecimento da população escrava, ocasionando eventuais ondas
epidêmicas.31
Esse sistema escravocrata, vivenciado pela imensa maioria dos escravos negros em seu
labor nas plantations, fazendas e minas, datava já de longa época. Vale lembrar que as
técnicas de colonização que depois se difundiram no Novo Mundo tiveram início pouco
depois das primeiras cruzadas quando os venezianos criaram, na Palestina, desde o século
XII, verdadeiras plantations açucareiras, aprendendo as técnicas do açúcar com os
muçulmanos. Essa aprendizagem foi estendida a Chipre pelos franceses e italianos; após a
quarta cruzada, os venezianos a levaram a Creta e às ilhas menores dos mares Egeu e Jônio.
Essas colônias dedicavam-se à agricultura e mineração, e empregavam escravos raptados da
Grécia continental tanto nas ilhas do Egeu como nos Bálcãs e nas terras muçulmanas. Mais
tarde, em fins da Idade Média, quando a colonização italiana voltou-se para a Sicília, e depois,
em associação com as coroas ibéricas, para as ilhas africanas do Atlântico – Canárias, Açores,
Madeira e Cabo Verde - difundiu-se a economia de plantation, baseada nas técnicas sicilianas.
Por outro lado, a Península Ibérica já praticava a escravidão: primeiro de eslavos,
depois de mouros capturados durante as guerras de reconquista e por fim de negros africanos:
em meados do século XVI, por volta de 1550, aproximadamente 10% da população de Lisboa
era constituída de mouros e negros. Foi à mesma época em que, na Europa, se implantava o
trabalho livre, no Novo Mundo, criaram-se e se expandiram as plantations e os engenhos, nos
quais o trabalho escravo era a base da produção e da organização social.32
O escravismo nas Américas surgiu com a possibilidade de produzir para o mercado
europeu (artigos tropicais, metais preciosos com baixo custo de produção). Assim, a
escravidão estava vinculada ao capital comercial europeu; do final do século XV ao XVIII,
31
CARDOSO, 1982, p. 38. 32
Ibidem, p. 10-16.
27
vigorou, na verdade, uma economia pré-capitalista, já que o objetivo do Estado, nesse
momento, era maximizar o acúmulo de capital em prol de seu reconhecimento mundial e
capacidade de produção.
Barbados, terra natal de June Henfrey, e cenário dos contos de Coming Home, sofreu
processo colonizatório e escravocrata semelhante ao anteriormente descrito. A ilha foi
descoberta por espanhóis, em 1518. Constituiu-se, no início, em base para o aprovisionamento
de aruaques (escravos indígenas) para o trabalho nas Grandes Antilhas. Os ingleses chegaram
à ilha no início do século XVII e, em1624, começaram sua exploração. Quando, em 1662, o
rei Carlos II transformou Barbados em colônia real, já lá existiam cerca de vinte mil colonos e
dez mil escravos negros33
.
Em 1640, iniciou-se a cultura açucareira. Da introdução de mudas e da exploração do
produto resultam dois elementos fundamentais na formação do país: a plantation - unidades
agrícolas monocultoras voltadas para a exportação – e o regime escravocrata. Em 1640, os
plantadores holandeses chegaram a Barbados, assim como a Martinica e Guadalupe,
introduzindo técnicas modernas de produção, o que levou a um aumento importante da
indústria açucareira no Caribe.
A transformação que o açúcar criou nas Índias Ocidentais foi verdadeiramente
impressionante. A primeira grande produção ocorreu nas ilhas de Barbados, que
provavelmente experimentou a mais dramática mudança, mas todas as ilhas passaram por um
processo semelhante. Em 1645, às vésperas da grande mudança no açúcar, mais de 60% dos
18.300 homens brancos eram proprietários e havia somente 5.680 escravos. O tabaco era a
principal cultura e a média de produção era menos do que dez acres. Por volta de 1670, o
açúcar era dominante, e o número de fazendas estava abaixo de 2.600 unidades, ou somente ¼
do número que existia quinze anos atrás. O total da população branca tinha decaído de 37.000
para 17.000 e, pela primeira vez na história das ilhas, os negros excediam os brancos. Em
1680, havia 37.000 escravos nas ilhas (quase todos nascidos na África) e mais de 350 colônias
açucareiras, e a produção tinha subido para 8.000 toneladas de açúcar por ano.
Dos brancos contratados somente 2.000 permaneceram, e seu número estava caindo. A
sociedade local já estava dominada por uma nova elite de grandes fazendeiros, e em
Barbados, havia 175 fazendeiros que possuíam 60 escravos ou mais, e que controlavam mais
da metade das terras e dos escravos da ilha. A média dessas plantations consistia em 100
escravos e 220 acres por terra. Nesta época, Barbados era a mais populosa e a mais rica das
33
BARBADOS. In: NOVA Enciclopédia Barsa. 6. ed. São Paulo: Barsa Planeta Internacional, 2002. v. 2, p.
339-340.
28
colônias inglesas na América. Os navios de escravos traziam mais de 1.300 escravos por ano
e, no final do século, essa minúscula ilha tinha mais de 50.000 escravos. Era provavelmente a
mais populosa região das Américas.34
Nas narrativas de June Henfrey, percebe-se a exploração no ambiente das plantations
através das situações vividas pelos personagens, nas quais a distinção entre branco/negro,
senhor/escravo torna-se uma forma de demarcação identitária intimamente articulada com o
poder detido pelo europeu colonizador. A oposição classificatória entre ―nós‖ e ―eles‖ é
visível, e o sujeito negro era visto apenas como mão de obra, sendo tratado de forma cruel e
desumana, comprovando sua percepção negativa e inferiorizada.
Em 1834, foi abolida a escravatura em Barbados. Tratou-se de decisão política da
Coroa britânica, não diretamente vinculada às várias revoltas de escravos que marcaram a
história barbadiana. Com o decreto da abolição, o interesse dos latifundiários foi prejudicado,
iniciou-se uma crise econômica e social, aumentando a população negra. Mais tarde, a
economia de Barbados se recuperou parcialmente, através de investimentos por parte dos
proprietários e de medidas tomadas pelo governo britânico para impulsionar o seu
desenvolvimento.
Até um século depois da Abolição, os proprietários das plantations e comerciantes
descendentes dos ingleses dominaram a política local. Somente em 1930, os descendentes dos
escravos emancipados iniciaram um movimento por direitos políticos. Em 1958, Barbados
passou a fazer parte da Federação das Índias Ocidentais e, em 1966, o Reino Unido concedeu
a sua independência, integrando-a na Comunidade Britânica das Nações.35
Resenharam-se até aqui alguns dos conceitos fundamentais para a compreensão dos
movimentos diaspóricos e da representação imagética em suas conexões com a ideologia;
expuseram-se fatos relativos à história dos africanos no Caribe, especialmente ao sistema
econômico das plantations. Uma vez que a natureza dos deslocamentos diaspóricos
tematizados no livro põe em relevo o questionamento do conceito de lar, como já evidencia o
título da coletânea, dedicar-se-á o próximo capítulo ao estudo desse conceito.
34
KLEIN, VINSON III, 2007, p. 52-53. 35
BARBADOS, 2002, p. 339-340.
29
2 LAR, TERRITÓRIO E (DES) PERTENCIMENTO
Nós que somos sem lar – Entre os europeus, hoje não faltam aqueles que se
arrogam o direito de se chamarem sem-lar em um sentido distintivo e honroso...
Nós, crianças do futuro, como poderíamos nos sentir em casa nos dias de hoje?
Sentimos desagrado por todos os ideais que poderiam levar alguém a sentir-se em
casa mesmo neste tempo frágil e inativo de transição; quanto às „realidades‟, não
acreditamos que elas durarão. O gelo que ainda hoje suporta as pessoas se tornou
muito fino; o vento que traz o degelo está soprando; nós mesmos, os sem-lar,
constituímos uma força que rompe o gelo e outras „realidades‟ demasiado finas.
Friedrich Nietzsche, A gaia ciência.
A definição de lar, dada a sua multiplicidade semântica, é tarefa que requer o
entendimento de termos que se apresentam como auxiliares para elucidar o sentido que se
pretende construir ao longo da presente pesquisa. Assim, faz-se necessário um breve
entendimento sobre espaço, lugar e território, os quais se tornam importantes para uma
reflexão sobre lar, uma vez que, ao se procurar compreender um conceito, é fundamental que
se busque relacioná-lo ao contexto ao qual se vincula.
2.1 A produção social de espaço e território
O espaço é conceito fundamentalmente dinâmico: seus habitantes são agentes ativos
em sua construção, de forma que evolui instigado pelo movimento do sujeito nele e através
dele, gerando diversidade de ideias e multiplicidade de resultados.36
Anthony Giddens
destaca que o indivíduo vive e atua de acordo com estruturas sociais que possibilitam
manipulações e mudanças. Através das práticas sociais, o sujeito usa as estruturas sociais
para alcançar objetivos, ao mesmo tempo em que as produz, ou seja, cria uma sociedade e ao
mesmo tempo é criado por ela. Portanto, tempo e espaço não são ―simples ambientes de
ação‖,37
mas uma parte integral das ações dos seres vivos com e dentro do mundo. Dessa
forma, nenhum lugar ou espaço pode ser considerado estável e imutável, pois sua estrutura
recebe influências internas e externas que estão sujeitas a transformações e trajetórias que
levam o sujeito a outros lugares.
36
SCHRÖDER, Nicole. Spaces and Places in Motion: Spatial Concepts in Contemporary American Literature.
Tübingen, Germany: GNV, 2006, p. 22. 37
GIDDENS apud SCHRÖDER, 2006, p. 23.
30
Já o lugar, explica Lopes, representa a ocupação do espaço pelas pessoas a partir dos
significados de quem o ocupa, sendo, então, preenchidos por subjetividade. Assim, os
espaços vão se estabelecendo como lugares, constituindo valores que vão se inserindo na
geografia social de um grupo, que passa a percebê-los como sua base.38
Sendo assim, os
lugares somente possuem sentido se forem portadores de uma história, se houver um sentido
para quem neles habita ou algum dia habitou.
Uma vez que o lugar e as pessoas se influenciam mutuamente, fica claro que a
diferenciação entre o que é percebido como eu e como outro na formação da identidade
também desempenha um papel central na sua criação, e influencia também as experiências
de lugar e espaço. Essa influência se torna mais óbvia na construção de espaços como nação
e lar.39
Henri Lefebvre atribui ao espaço a noção de processualidade, acentuando o fato de
que, como produto histórico e social, possui natureza política e ideológica, pelo que se torna
tanto uma ―ferramenta‖, ―um meio de produção‖, assim como um ―meio de controle‖.40
Semelhantemente, Duncan analisa que o espaço nunca é produzido de uma forma ingênua,
inocente ou neutra. De alguma forma, valores, ideologias e normas sociais ali estarão
presentes,41
pois todo lugar é construído através da experiência, percepção, imaginação e
modo de ser das pessoas.
Assim, espaço e lugar têm uma ligação direta com os seus habitantes e são
construídos dentro das práticas e das suas relações sociais, as quais influenciam os sujeitos
que neles habitam. Maurice Halbwachs observa que ―não há grupo nem gênero de atividade
coletiva que não tenha alguma relação com o lugar – ou seja, com uma parte do espaço.‖
Não há memória coletiva que deixe de acontecer em um contexto espacial, e é o fato de que
os sucessivos fatos de uma vida ocorrem dentro de um ambiente material que permite que,
ao voltar os pensamentos a um determinado ambiente, recuperem-se fatos lá vivenciados.
Halbwachs enfatiza: ―É ao espaço, ao nosso espaço [...] que nosso pensamento tem de se
fixar para que essa ou aquela categoria de lembranças reapareça‖.42
Etimologicamente, a palavra território tem a sua origem no latim territorium e deriva
do vocábulo latino terra. Era utilizada pelo sistema jurídico romano dentro do chamado ―jus
38
LOPES, J. J. Reminiscências na paisagem: vozes, discursos e materialidades na configuração das escolas na
produção do espaço brasileiro. In: LOPES J. J.; CLARETO, S.M. (Org.) Espaço e Educação: travesssia e
atravessamentos. Araraquara, JM Editores, 2007, p. 77. 39
SCHRÖDER, 2006, p. 29-30. 40
LEFEBVRE, Henri. The Production of Space. Translated by Donald Nicholson Smith. USA, UK, Australia:
Blackwell Publishing, 2009, p. 26-27. 41
DUNCAN apud SCHRÖDER, 2006, p. 22. 42
HALBWACHS, Maurice. A memória coletiva. Trad. Beatriz Sidou. São Paulo: Centauro, 2006, p. 170.
31
terrendi‖, como o pedaço de terra apropriado dentro dos limites de uma determinada
jurisdição político-administrativa tratados.43
Segundo Friedrich Ratzel, a noção de território
se dá a partir da ideia de habitat, usada na Biologia para delimitação de áreas de domínio de
determinada espécie ou grupo de animais, aparecendo, portanto, como sinônimo de solo e/ou
de ambiente. As relações entre sociedade e território são determinadas pelas necessidades de
habitação e alimentação. A sociedade enraíza-se no território, e esta relação influencia a
natureza do Estado. O território é compreendido como Estado-Nação, a partir do momento
em que há uma organização social para sua defesa.
Assim, o estado e o território têm limites e fronteiras maleáveis. Para o autor, o
território pode existir sem a presença do homem (apolítico) ou com a sua presença e com o
domínio do Estado (político).44
Para Claude Raffestin, ―o espaço é anterior ao território‖, e o
―território se forma a partir do espaço‖. ―Ao se apropriar de um espaço, concreta ou
abstramente, o ator o ‗territorializa‘. Diferentes graus, em momentos e lugares variados,
todos produzem territórios.‖ 45
Rogério Haesbaert destaca três vertentes básicas de acordo com as quais se pode
conceituar território: jurídico-política, como delimitações e controle de poder, especialmente
o de caráter estatal; cultural(ista), de caráter simbólico e identitário, e econômica, na qual se
destaca a perda do território no movimento de re-produção do capital. Assim, o conceito
engloba não só domínio e controle politicamente estruturado, mas também de uma
apropriação resultante da articulação e do exercício do poder dos grupos que o constituem.46
Também Lobato Corrêa emprega o conceito de forma abarcante, assinalando que o termo
não se refere a território apenas como a terra que pertence a alguém: mais do que mera
propriedade, e incorpora a dimensão simbólica e identitária afetiva.47
Dessas três vertentes, a mais enfatizada pelos teóricos é a que o vincula a poder,
acentuando sua produção a partir de relações sociais, econômicas, políticas e culturais.
Souza entende o território como um ―espaço definido e delimitado por e a partir das relações
de poder‖: para a compreensão do território é fundamental saber quem tem o domínio ou
influência e de que forma domina ou influencia esse espaço.48
Enfatizando a natureza
imaterial do espaço, Saquet destaca que é a partir ―do instante em que uma sociedade se
43
RIBAS, Alexandre Domingues; SPOSITO, Eliseu Savério; SAQUET, Marcos Aurélio. Território e
desenvolvimento: diferentes abordagens. Francisco Beltrão: UNIOESTE, 2004, p. 93. 44
RATZEL apud RIBAS, SPOSITO, SAQUET, 2004, p. 79. 45
RAFFENSTIN apud RIBAS, SPOSITO, SAQUET, 2004, p. 80. 46
RIBAS, SPOSITO, SAQUET, 2004, p. 122-123. 47
CORRÊA, R. L. Territotialidade corporação: um exemplo. In: SANTOS, M.; SOUZA, M. A. A.; SILVEIRA,
M. L. (Org.). Território: globalização e fragmentação. São Paulo: Hucitec/Anpur, 1996, p. 252. 48
RIBAS, SPOSITO, SAQUET, 2004, p. 81.
32
apropria dele e começa a estabelecer relações de posse‖ que passa a se formar um território.
Sua população determinará que tipo de relações serão instituídas e que atores sociais terão o
poder sobre esse território. Também definindo território como ―um espaço sobre o qual se
exerce um domínio político, e como tal, um controle do acesso‖, Haesbaert aponta que existe
diferença entre o domínio, que é político, e a apropriação do espaço, que é simbólico-
cultural. É quando se pensam as dimensões política e cultural da sociedade, que se flexibiliza
a noção, enfocando-a como rede de relações sociais, definidas por um limite de identidade
(entre insiders e outsiders).49
Essa diferença entre pertencentes (insiders) e não pertencentes
(ousiders), nós e os outros, torna-se crucial para a análise dos contos de Henfrey, que
remetem a uma sociedade de negros dominados e brancos dominadores.
Ao desenvolver suas reflexões sobre o conceito de território, Haesbaert considera,
também, os conceitos de desterritorialização e reterritorialização, que merecem ser
destacados neste trabalho, uma vez que os contos a serem estudados envolvem diferentes
situações diaspóricas. A produção do espaço envolve tanto a desterritorialização quanto a
reterritorialização, já que, ―na prática proliferam as interseções e as ambiguidades‖: não há
desterritorialização sem que haja uma reterritorialização, pois, no momento em que o vínculo
que une o indivíduo ao território sofre alterações, ocorre o processo de desterritorialização, o
qual pode ser definido como uma quebra das relações do indivíduo, gerando um afastamento
do seu território. Esse processo, que ocasiona a perda de controle das territorialidades
pessoais, coletivas, econômicas e sociais, subentende o processo de reterritorialização, o qual
nem sempre é bem sucedido, como quando o indivíduo se habitua ao novo território, no qual
se torna um agente efetivo.
Esse fato leva a pensar nas consequências da desterritorialização com relação ao
sentimento de pertencimento, outro fator relevante para o estudo dos contos, já que o
processo gera angústias nos desterritorializados, pois têm de reconstruir um novo lar, em
outro lugar. O estudioso é enfático:
Desterritorialização afeta as lealdades de grupo [...] as relações marido esposa e pai-
filho tornam-se ao mesmo tempo politizada e exposta aos traumas da
desterritorialização na medida em que os membros da família reúnem recursos e
negociam seus entendimentos e aspirações comuns em arranjos espaciais às vezes
fraturados [...].50
49
SOUZA apud RIBAS, SPOSITO, SAQUET, 2004, p. 82. 50
APPADURAI apud SOUZA, José Luiz de. Da desterritorialização ao território simbólico: o caminho de uma
sociedade indígena a rumo ao seu território tradicional. Caminhos de Geografia. Revista on-line. Uberlândia, v.
8, n. 23, Edição Especial, p. 77, 2007. Disponível em:
33
Eva Hoffman acentua a natureza plural e fragmentária da experiência da
desterritorialização, ou seja, do ―desligamento do conhecimento, ação, informação e
identidade de um lugar específico ou origem física‖, e destaca como esta frequentemente
remete à condição de entre - lugar do sujeito migrante. Pode constituir-se em experiência de
alienação (um sentimento de não-pertencimento) ou mesmo de liberação (de conceitos e
noções culturais arraigadas e preestabelecidas) dos sujeitos em trânsito, os quais se situam
num contexto espacial específico, que é, contudo, movediço, efêmero e mutante.51
2.2 Lar: enraizamento e (des)pertencimento
Em contraste, um contexto social ao qual se costuma associar a ideia de apego,
enraizamento, é o lugar ao qual se chama de lar. A palavra tem vivido por milhares de anos,
tornando-se semanticamente mais ampla ou mais estreita em línguas diferentes. Embora um
significado seja compartilhado com outras pessoas dentro de um mesmo contexto cultural, a
figura semântica provavelmente irá diferir para cada falante. Stefan Brink considera a
possibilidade de várias conotações em relação a lar, que está associado não a um objeto
concreto, mas a algo mais abstrato.52
Pensando-se lar etimologicamente a partir da vertente indo-germânica, verifica-se
que a palavra tem diferentes cognatos. Formas e significados lexicais encontram-se nas mais
antigas línguas alemãs53
: hãm (Old English) refere-se a conjunto de habitações, vilarejos,
fazendas, casas, etc.; heima (Old High German) designa lar, mundo; hem (Old Saxon)
corresponde ao conceito de lar e heimr (Old Scandinavian) faz menção a habitação, moradia,
lar, mundo.54
Outro significado está associado ao tema ―amor‖, encontrado nas línguas celtas
<http://www.seer.ufu.br/index.php/caminhosdegeografia/article/viewFile/10498/6256>. Acesso em: 23 ago.
2011. 51
HOFFMAN, Eva. Letters of Transit: Reflection of Exile, Identity, Language and Loss. Andre Aciman (Ed.).
New York: The New Press, 1999, p. 55. 52
BRINK, Stefan. Home: The term and the Concept from a Linguistic and Settlement –Historical Viewpoint. In:
BENJAMIN, David N.; STEA, David.; SAILE, David. The Home: Words, Interpretations, Meanings, and
Environments. England, USA: Avebury, 1995, p. 17. 53
Old English, também conhecido como Anglo-Saxon, é uma forma inicial da língua inglesa, falada pelos anglo-
saxões e seus descendentes no território que agora corresponde à Inglaterra e ao sudeste da Escócia entre
meados do século V e o século XI; Old High German (OHGerman) refere-se ao mais antigo estágio da língua
alemã, e cobre o período entre 500 e 1050; Old Saxon, também conhecido como Old Low German, é a mais
antiga forma registrada do Baixo Alemão (Low German), documentdado dos séculos VIII ao XII; Old
Scandinavian pode referir-se ao Proto-Norse, uma língua norte germânica falada entre o III e o VII século, ou ao
Old Norse, falado dos séculos XVIII ao XIV. Middle High German é o termo usado para a forma de alemão que
sucedeu ao OHGerman, e que foi usada entre 1050e 1350. 54
BRINK, 1995, p. 17.
34
antigas: cõim (querido, amado, em Old Irish), estando também relacionado à formação
proto-germânica Haim, heimen (levar para casa; casar, em Middle High German) e hãeman
(ter relações sexuais; casar-se, em Old English), originalmente trazer para casa (a noiva).
Desse modo, as palavras que se associam a lar, desde a antiguidade até a atualidade, e que
são cognatos diretos de lar ou se relacionam a esse vocábulo, transmitem a ideia de habitação
e afeto, ou talvez o afeto pelo lugar de moradia, o lar.55
Para Brink, não há uma explicação etimológica que comprove que se deve relacionar
lar com algum tipo de habitação, isto é, nada impede que lugares tenham as terminações -
heim, -ham, -heim nos seus nomes, como, por exemplo, Trondheim (aprovíncia de Tronder),
Sähem (a fazenda a beira do lago), Stenhem (a fazenda a beira das pedras), o gótico plural
haimos (país) e heimr (moradia, lar, mundo) da OW Scandinavo. Algum tipo de núcleo
semântico em relação à palavra lar e seus cognatos associa-se à área ou lugar onde vive o
sujeito, um lugar para o qual devota afeto e pelo qual mantém uma relação especial ao longo
da vida.56
A palavra lar, Heim, de origem alemã, está próxima de home, de origem inglesa, vindo
a ser quase um homônimo. Embora heim seja gramaticalmente neutra, tem uma forma
feminina, heimat, para a qual a palavra inglesa não é ―pátria mãe‖, ―terra materna‖
(motherland) que consta nos dicionários, mas é, antes, fatherland. A palavra designa a
dimensão pública de lar, associada à pátria de origem. Da mesma raiz, procede Heimweh–
nostalgia. Tanto os ingleses quanto os alemães fazem uma distinção entre Haus und Heim –
casa e lar – que aponta não só para o conjunto dos bens possuídos como para o sentimento de
cidadania pelo lugar. O equivalente em inglês à expressão seria ―hearth and home‖,57
expressão idiomática58
que conota segurança e aconchego.
Ao pensar-se a palavra lar a partir de sua raiz latina, verifica-se que os romanos
costumam dizer domus para ―casa‖ (house), a qual pode ter um significado de
domesticidade, valores relacionados à família, simplicidade, até mesmo paz. Na língua
latina, há ainda outras duas palavras para casa: aedes, algo construído, e mansio, lugar de
descanso, derivado de maneo, que significa ―eu permaneço‖. Esta palavra originou a palavra
francesa Maison, que recebe a tradução de ―casa‖.59
55
BRINK, 1995, p. 19-20. 56
Ibidem, p. 22. 57
RYKWERT, Joseph. House and Home. In: MACK, Arien. Home a Place in the World. New York and
London: New York University Press, 1993, p. 48-49. 58
Hearth and home - ao pé da letra, ―lareira e lar‖. A expressão remete ao conforto do lar e da família. 59
RYKWERT, 1993, p. 48-49.
35
Deve-se ainda considerar o termo latino lar, laris, referente aos deuses protetores da
família e, por extensão, à lareira, local, na cozinha, onde se mantinha o fogo vivo em sua
honra.60
Segundo Holwell, laren é um termo antigo referente à arca da narrativa diluviana,
tendo sido transformado em laris pela troca da vogal em semivogal, e do –n em –s. A palavra
servia também para referência aos antigos arquitas, preservados pela arca. 61
Fica, pois, clara,
a implicação da arca como proteção, lugar de preservação da vida, o que é também patente no
emprego com referência às divindades domésticas dos etruscos e dos latinos, os Lares e os
Penates. Embora diferentes, os Lares e Penates, eram, frequentemente, adorados juntamente
nos santuários domésticos. Os Lares eram os espíritos dos mortos, e os antigos pensavam que
guardavam as casas, encruzilhadas e a cidade; toda a família romana tinha o seu próprio
guardião para garantir que a linhagem familiar não morresse. Os Penates estavam associados
a Vesta, a deusa da lareira. A principal função dos Penates era o de garantir o bem-estar da
família e sua prosperidade; já os Penates publici, serviam como guardiões do Estado e eram
objeto de patriotismo romano. O significado compartilhado de proteção, preservação, calor e
aconchego alimenta ainda hoje o imaginário popular sobre o lar.
Em vez de centrar-se em lar como uma localidade específica, Theano Terkenli opta
por definir o que chama de regiões-lar (home regions). Assinala como, diariamente, o
indivíduo interage com o seu meio ambiente por meio de comportamentos pessoais e
culturais, processo do qual resultam paisagens, lugares e lares que irão se diferenciar de
acordo com seus propósitos e desejos. Esses lugares irão se transformar no que o teórico
grego chama de regiões-lar, porque contém propriedades geográficas únicas que atendem às
necessidades fundamentais do indivíduo e dos grupos, além de permitirem o seu
desenvolvimento no contexto histórico, social, e culturais. Uma vez que o sujeito estabelece
suas geografias de lar através da relação da sua identidade com o mundo, gera diversas noções
de lar, que variam no espaço, tornando-se símbolo de si mesmo ou de sua cultura.
Como um termo profundamente simbólico, lar não pode ser mapeado apenas com
referência exclusivamente espacial, e pode ser percebido como um aspecto do território
emocional humano. Sendo assim, as regiões coletivas e individuais de lugar são
constantemente construídas e desconstruídas, tendo um significado subjetivo quando o
indivíduo lhe atribui significado, e intersubjetivo quando contém sentido para os membros de
60
HOUAISS, Antônio; VILLAR, Mauro de Salles. Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa. Rio de Janeiro:
Objetiva, 2001, p. 1724. 61
HOLWELL, Willian. A Mythological Etymological and Historical Dictionary. Extracted from the Analysis of
Ancient Mythology. London: Printed for C. Dilly, 1793, p. 257.
36
um grupo. Percebe-se, assim, que a concepção de lar pode variar em abrangência, variando da
familiar até a nacional.62
Laura Huttunen chama a atenção para a dimensão coletiva de lar, que pode também se
referir ao ―país de origem‖, ao ―lugar de nascimento‖. Esse é um espaço público marcado por
questões carregadas politicamente de pertencimento, convidando a questões sobre raízes e
memória ligadas a certos locais. Mesmo quando o termo se refere a espaço privado, está
necessariamente relacionado ao espaço público. Este último é claramente politizado nas
discussões de imigração, quando se questiona quem pode considerar um país como lar e exigir
direitos políticos e sociais. Frequentemente nos estudos de migração é discutida a
problemática do relacionamento dos imigrantes com o espaço público do novo país, pois esses
espaços são organizados de acordo com diferentes regimes de força, e cada sujeito reage de
forma diferente, dependendo do seu relacionamento com aquele espaço. Sempre haverá um
poder classificatório (―nós‖ versus ―eles‖) no controle institucional de entrada e residência,
lembrando, especialmente àqueles que são visivelmente diferentes, de que não pertencem ou
que pertencem a um grau inferior.63
Regiões-lar possuem certas qualidades geográficas que as distinguem de outros tipos
de regiões, as quais são provenientes de características distintivas de lar e de seus vínculos
com as pessoas. Terkenli descreve quatro dessas qualidades: a perspectiva de não-lar,
enraizamento, ciclo de vida e dinâmica do apego. Referente à experiência de lar numa
perspectiva de não-lar, o autor assinala que é quando o sujeito está fora ou longe do espaço a
que chama lar que essa noção avulta, para ele, em significado, por se tratar de algo que já
não existe ou que está na iminência de ser perdido. Nesse momento, torna-se mais consciente
do papel dessa instituição na vida e analisa suas qualidades e contribuição em relação ao seu
bem-estar pessoal e psicológico, o que lhe permite uma reavaliação e reorganização do seu
mundo íntimo e de seu passado, presente e futuro. Assim, o conceito é ampliado no
momento em que as pessoas passam a compreender seus relacionamentos para além dos seus
limites, ao construírem sua compreensão geográfica cotidiana do mundo.64
Quanto ao enraizamento, está naturalmente associado ao lar, pois se refere ao
pertencimento do indivíduo a algum lugar. A noção é importante na compreensão de como o
contexto de lar se expande espacialmente quando aumenta a distância de uma pessoa em
relação ao seu lar. Às vezes, o indivíduo não consegue desenvolver um sentimento de lar com
62
TERKENLI, Theano S. Home as a Region. Geographical Review, v. 85, n. 3, p. 324; 327, jul. 1995. 63 HUTTUNEN, Laura. ‗Home‘ and ethnicity in the context of war. European Journal of Cultural Studies, v. 8,
p. 179, 2005. 64
TERKENLI, 1995, p. 328.
37
relação ao lugar onde está vivendo, porque não se identifica pessoalmente com aquele lugar,
isto é, não estabelece relações de afetividade, familiaridade, bem-estar e sociais, ocorrendo
apenas uma continuidade da sua existência.65
Assim, desenvolve, antes, estranhamento e
sensação de não pertencimento àquele lugar; em migrantes, essa percepção frequentemente
desencadeia desejo de retorno a sua terra de origem, pois não encontram pontos de referência.
Em relação ao ciclo da vida, o conceito de lar altera-se com a passagem do tempo e
com a acumulação da idade. É na mãe que o indivíduo encontra o seu primeiro lar; à medida
que cresce, sua curiosidade e conquistas se ampliam, estimulando-o a criar novos lares e a
desejar o seu próprio mundo. Leva consigo os laços familiares e comunitários que foram
anteriormente vividos, estabelecidos e formados. O lar, então, se torna uma projeção do eu,
constituindo o mundo do indivíduo. A pessoa dá forma ao seu lar e também o modifica
devido à entrada de outros indivíduos, em um processo de vida que amplia os horizontes de
lar, até que, na fase final da vida, este começa a diminuir devido à perda das faculdades, à
doença e à morte.66
A noção de que o lar passa a ser mais valorizado à distância, seja física, social, cultural
ou histórica, está presente na quarta qualidade atribuída por Terkenli ao conceito. O estudioso
denomina ―dinâmica de apego‖ ao sentimento vivido pelo indivíduo que se distancia do lar,
mas sente a necessidade de sentir-se protegido num lugar aconchegante e acolhedor, um
refúgio no mundo.
Nesse contexto, o lar pode ser apreendido como uma expressão do eu, criado por seus
habitantes; reflete suas características e desejos. Porém, pode também surgir como sendo um
lugar onde versões alternativas do eu são criadas e estilos de vida são vividos, pois a exclusão
do exterior pode servir como uma proteção das forças restritivas externas, como as normas
sociais. Contudo, o lar pode ser um lugar de limitação e opressão onde o eu tem a
possibilidade de ser severamente reprimido.67
Doreen Massey argumenta que a identidade do lar é baseada na segurança ―of a (false
[...]) stability and an apparently reassuring boundedness‖, e estabelecida ―through negative
counterposition with the Other beyond the boundaries‖. Neste sentido, embora construir o lar
não seja equivalente a criar identidades, ambos estão intimamente entrelaçados, pois se
baseiam no estabelecimento de diferenças.68
65
TERKENLI, 1995, p. 329-330. 66
Ibidem, p. 330-331. 67
SCHRÖDER, 2006, p. 32. 68
MASSEY apud SCHRÖDER, 2006, p. 32. ―de uma falsa [...] estabilidade e um confinamento aparentemente
reconfortante‖, ... ―através da contraposição negativa com o Outro além das fronteiras‖.
38
Schröder chama a atenção para o fato de que, às vezes, lar é visto de uma maneira
estereotipada, romantizada, que omite aspectos como violência. Destaca, ainda, que o lar pode
emergir como um contexto para o exercício da força. Na tentativa de estabelecer a ideia de um
ambiente seguro e estável, é possível idealizá-lo como um lugar de proteção dos perigos,
especialmente em relação à vida moderna.69
O conceito de lar não pode ser avaliado de acordo com um entendimento geral ou
universal: circunstâncias de tempo e espaço devem ser levadas em conta. Os ciganos, por
exemplo, não veem lar como algo estático, definitivamente localizável. Ao contrário, para
nômades, o significado de lar depende muito da localização onde se encontram, além de levar
em conta, também, questões relativas à inclusão/ exclusão, mudança/ estabilidade,
movimento/ flexibilidade.70
Um dos fatores que transforma lugar em lar é o controle sobre o espaço. Desta
maneira, nem toda casa ou abrigo pode ser definida como um lar, pois se o indivíduo não tem
domínio sobre suas fronteiras e entradas, sua qualidade essencial como lar é perdida.71
Construir um lar parece ser um tipo de mapeamento; estabelecer um espaço apropriado e fazê-
lo familiar pode exprimir o desejo de purificá-lo de tudo que é considerado desviante.72
Isso
se verifica tanto na dimensão particular como em seu aspecto público, e está presente, em
ambas as dimensões, nos contos de Henfrey.
O sentimento de estar no lar não exige necessariamente estar em um certo lugar:
não é para todos que um lar está localizado numa certa casa, num certo endereço. Pode estar
associado a pessoas, família, amigos ou a um sentimento específico, podendo ser, para
alguns, certo estado de espírito, a possibilidade de pensar livremente. Esta é uma
característica essencial para lar, além de ser, também, uma forma de mapear o espaço.73
Pensando essa possibilidade, bell hooks acentua a importância do lar como um
espaço de e para um pensamento não restrito:
At times, home is nowhere. At times, one knows only extreme estrangement and
alienation. Then, home is no longer just one place. It is locations. Home is that
place which enables and promotes varied and ever changing perspectives, a place
where one discovers new ways of seeing reality, frontiers of difference.74
69
SCHÖDER, 2006, p. 32. 70
Ibidem, p. 33. 71
DOUGLAS apud HUTTUNEN, 2005, p. 179. 72
SCHRÖDER, 2006, p. 34. 73
Id. Ibid. 74
HOOKS apud SCHRÖDER, 2006, p. 34. Às vezes, o lar não está em nenhum lugar; às vezes, pensado
deforma alienada e indiferente, o lar não passa de localização, demarcação; outras vezes, ainda, é aquele lugar
39
Fica claro que a diferenciação entre o que é percebido como eu e como outro na
formação da identidade também desempenha um papel central nas experiências de lugar e
espaço, mais obviamente na construção de espaços como nação e lar. Esses espaços e lugares
são importantes para a autodefinição e distinção entre quem e o que pertence e quem e o que
deve ser excluído.
Contra essas categorizações binárias e estáticas de mundo, deve-se apresentar uma
compreensão de espaço e lugar como performativo, e como uma interação construída com o
mundo que destaca a possibilidade de mudança. Dessa forma, nenhum lugar ou espaço pode
ser considerado estável e imutável, pois sua estrutura recebe influências internas e externas
que estão sujeitas a transformações e trajetórias que levam o sujeito a outros lugares.
A identidade e a alteridade são produzidas simultaneamente na formação da
localidade e comunidade. Doreen Massey pensa as oposições entre pertencente x excluído
como associadas a um senso progressivo de lugar, que é caracterizado pela mobilidade e
pelo trânsito, no sentido figurado e literal. Os habitantes dos lugares não compartilham com
a mesma ideia de lugar, como também são caracterizados por diferentes relações dentro e
fora desses lugares: cada lugar tem diferentes significados para seus habitantes, dependendo
da história de cada um.75
Para Terkenli, a percepção mais forte de lar geralmente coincide geograficamente com
uma habitação; no momento em que alguém se afasta desse ponto, a compreensão de lar
enfraquece. A própria terra é uma coleção de lares, o lar definitivo em si, porque preenche a
necessidade de refúgio que vai servir de referência ao indivíduo lhe fornecendo uma
autoidentificação com esse lugar. Sendo assim, é importante que esse espaço não oportunize
apenas condição física de sobrevivência, mas ofereça condições sociais e habituais além de
controle sobre esse lugar, para então poder chamá-lo de lar.76
Embora as rotinas diárias nem
sempre aconteçam nos mesmos lugares, elas geralmente se repetem e o indivíduo retorna a
elas porque representam significativas estratégias de sobrevivência. A repetição, portanto, é
um elemento essencial para que o lugar se transforme em lar, servindo como ponto de
referência no tempo, no espaço e na sociedade.
Outra dimensão de lar enfatizada por Terkenli é o seu componente social, que é
essencial devido à necessidade do indivíduo de se relacionar com os outros, validando-o como
que habilita e promove uma variedade de mudanças que levarão o indivíduo a descobrir novas formas de ver a
realidade, as fronteiras de diferença. 75
MASSEY apud SCHRÖDER, 2006, p. 26-27. 76
TERKENLI, 1995, p. 324.
40
um ser humano. Lares pessoais podem estar intimamente ligados e articulados por associações
familiares e comunitárias, e os lares coletivos podem ser delineados pela etnia, nacionalidade,
civismo ou parâmetros ideológicos. Como a ideia de um lar coletivo está relacionada ao
passado e ao futuro, etnicidade e nacionalismo constituem poderosos polos de fixação.77
Pode-se dizer então que uma cidade ou vilarejo tem um valor representativo para as pessoas
desse lugar, o qual lhes transmite valores associados a lar, pois ali se encontram experiências
subjetivas e intersubjetivas do sujeito ou do grupo que são símbolos de si mesmos ou de
culturas. A região coletiva ou individual de lar é passível de ser construída ou desconstruída,
conforme o significado que o indivíduo lhes atribui a elas, vindo a ser um ponto de referência
que o sujeito poderá levar consigo.78
Por outro lado, como Jennie Germann Motz observa, o lar é sempre uma presença
ausente nas narrativas de viagem e mobilidade. Estudos etnográficos e entrevistas com
migrantes e viajantes indicam que o termo tem um significado material e emocional, até para
aquelas pessoas que estão em movimento. Nessa situação, verifica-se uma complicada
interseção entre lar e mobilidade, negociando pertencimento através de várias mobilidades de
interseção de pessoas, tecnologias, culturas, imagens e objetos. Num mundo onde lar não
pode ser mais visto como algo estático, um local fixo, a habitação envolve um complexo de
relações entre pertencimento e viagem. O lar se torna um significante não apenas para a
estabilidade normativa de um lugar em particular ou para o sentimento que leva consigo de
conforto, segurança, familiaridade e controle, mas também uma forma de ser e pertencer no
mundo como um todo.79
Ainda para a autora, domicílio apresenta um duplo significado: habitação e lar, o qual
permite pensar lar como algo imóvel no fluxo e no tempo. A autora usa a metáfora domicílio
global, devido à rejeição da associação de mobilidade com desenraizamento de lar com
êxtase, fixação e melancolia. A forma de lar é modulada pela mobilidade e ao mesmo tempo a
de mobilidade é modulada pelos sinais de ligação. Sarah Ahmed insiste que o movimento
sempre envolve a formação dos lares como espaços complexos e contingentes de
povoamento.80
A noção de domicílio global dá ênfase à dimensão cosmopolita para a interseção entre
habitação e viagem. Se lar é definido através de diversos registros espaciais, tais como espaço
77
TERKENLI, 1995, p. 326. 78
Ibidem, p. 327. 79
MOTZ, Jennie Germann. Home and Mobility in Narratives of Round-the-World Travel. Space and Culture, v.
11, n. 4, p. 325-342, nov. 2008, p. 326-327. 80
Ibidem, p. 327.
41
doméstico, vizinhança ou nação, como Morley sugere, então os sujeitos que viajam pelo
mundo estendem essa geografia de lar para o seu globo, revindicando o mundo como um lar.
Sua figura cosmopolita é emblemática, móvel e individual, aprecia as diferenças que encontra
e está aberta a experiências e outras culturas, mas sempre estando de passagem. Nessa
perspectiva, ao invés de distancimento, o cosmopolitanismo é uma realidade de (re)ligação, de
múltiplas ligações ou diz respeito à distância a um estilo de residência na terra que envolve
complexos e múltiplos pertencimentos.81
Pode-se contrastar a experiência desses viajantes do mundo com a mobilidade dos
migrantes diaspóricos, como um paralelo provocativo que destaca os suportes políticos de
sentimento de lar em termos de natureza privilegiada e voluntária dos viajantes pelo mundo.
Estes geralmente viajam durante diversos meses e anos, podendo trabalhar durante esse
período. Eles viajam, principalmente, por prazer; são mochileiros ou viajantes que possuem
um orçamento independente. Sua experiência é temporária, voluntária, têm uma data
definitiva e usualmente uma passagem aérea para retornar ao lar.
Ao contrário do migrante, que se alimenta do desejo de uma pátria imaginada onde se
possa fixar, o viajante não apenas deseja ir para casa, como, na maior parte das vezes, sabe
que retornará para o seu lar no final da jornada; tem controle em relação ao seu itinerário e o
padrão do mesmo. Já migrantes e refugiados, deslocados sob a condição religiosa, opressão
política ou econômica, viajam e se tornam sem pátria voluntariamente. Portanto, seus esforços
no sentido de sentirem-se em casa podem não estar carregados com o mesmo senso de
urgência ou constrangimento e pelos mesmos obstáculos de outros grupos móveis.
Além disso, os viajantes não expressam necessariamente um desejo de se estabelecer
nos lugares que visitam, ao contrário dos migrantes que desejam um lar, que tentam se
desprender de suas raízes e construir espaços de pertencimento num novo país lar. Têm um
tipo de ligação móvel que os permite sentir-se em casa em muitos lugares. Mas eles não
fazem o seu lar em outro lugar, mas sim, usam de estratégias para se sentirem em casa em
qualquer lugar ou em todo lugar.82
Castles S. e Davidson A. expõem que, com os grupos
migrantes, no entanto, os esforços dos viajantes em sentir o lar em algum lugar depende de
alguns atributos fundamentais de lar como familiaridade, segurança, comunidade, assim como
continuidade e controle, levando a associar lar com êxtase, o que significa que algo se torna
familiar seguro e contínuo por ainda permanecer ou por não mudar.83
81
ROBBIN apud MOTZ, 2008, p. 328. 82
MOTZ, 2008, p. 329. 83
CASTLES, DAVIDSON apud MOTZ, 2008, p. 329.
42
Nas histórias contadas por viajantes, o lar é evocado como uma construção metafórica
de diferentes formas e por vezes contraditórias, como os viajantes saem, desejam, representam
e retornam ao lar. A narrativa clássica de viagens tem geralmente como tema o lar
concentrado em descrições vividas dos estrangeiros, dos encontros com a alteridade e de lidar
com as dores e prazeres do deslocamento. O lar é visto como o lugar de onde a viagem
começa e onde a viagem termina, é o local para onde o viajante retorna, isto é, o lar é o ponto
de partida e de retorno. Não se refere apenas a um lugar que foi deixado para trás, mas
também a uma coleção de práticas, objetos, rituais e emoções portáteis que fazem sentir-se em
casa, uma forma transportável de ligação e pertencimento. Em outras palavras, lar não é
apenas um lugar, mas também um processo de padrões regulares e conexões sociais que
podem ser realizadas e reiteradas mesmo quando viajando.
Mesmo em face do deslocamento, lar continua a ser o local físico e emocional de
pertencimento para os que estão na viagem, se torna uma fuga para o lar e não do lar.
Portanto, nas interseções da dialética clássica entre lar e distância, há narrativas que
reconfiguram mobilidade como lar. Em alguns dos contos analisados na sequência deste
estudo, a perspectiva de lar é o ponto de origem e também de retorno após a experiência de
exílio. Em todos, porém, a ideia de lar está fortemente ligada a pertencimento, funcionando
também como referente para a construção identitária.
2.3 A experiência vivida do lar e a memória
Se o lar está embutido nas representações corpóreas do viajante, então pode ser levado
com o corpo do viajante: mesmo quando um viajante deixa o seu lar, o lar não deixa o
viajante. Há várias formas de carregar o lar, por exemplo, gestos, posturas e rotinas diárias.
Pelo engajamento em algumas das rotinas, o sujeito pode fazer o lar, pois cria o senso de
continuidade no contexto do deslocamento e estranhamento. Se o lar é evocado através de
sentimentos de familiaridade, então a realização dos mesmos rituais, embora em lugares
diferentes, permite que a família sinta-se em casa ou no seu lar mesmo quando distante dele.84
Essa complexidade do termo lar aponta para um imbricamento que envolve elementos
de experiências vividas, relacionando-se, assim, com a noção de memória, definida por Émile
Durkheim como sendo a condutora de nossas vidas. Lembrar do passado é trazer à memória
―os resíduos deixados por nossa vida anterior, [...] os hábitos contraídos, os preconceitos, as
84
MOTZ, 2008, p. 333.
43
tendências que nos movem sem que disso nos apercebamos [...] tudo aquilo que constitui
nossa característica moral.‖85
Entretanto, não significa que essas reproduções do passado não possam sofrer
modificações, estando a memória, portanto, em um processo contínuo de reconstrução.
Durkheim introduz a questão da atualização da memória, isto é: está associada a um tempo
passado, mas é no presente e pelos estímulos desse tempo presente que ela é solicitada. Além
disso, mesmo que novas representações não lhes sejam introduzidas, a percepção de outras
relações com as já existentes torna a memória continuamente reconstruída, pois ―qualquer
representação, no momento em que se produz, afeta, além dos órgãos, o próprio espírito, isto
é, as representações presentes e passadas que o constituem desde que se admita como nós, que
as representações passadas subsistem conosco‖.86
Ainda esse autor destaca que ―a vida
representativa [...] não é formada de átomos separados uns dos outros; é um todo contínuo, no
qual todas as partes se interpenetram‖.87
É através da memória que se evoca o passado e que se mantêm as lembranças vivas, as
quais são o produto de vivências individuais ou grupais, podendo ser reconstituídas através
das imagens que constituem representações significativas para o indivíduo. Faz-se
importante mencionar o pensamento de Maurice Halbwachs, que estabelece uma ligação
entre memória e identidade. Assinala que a memória se apoia sobre o passado vivido; de
acordo com o autor, a memória individual existe sempre a partir de uma memória coletiva,
visto que as lembranças são constituídas no interior de um grupo.88
São as lembranças que mantêm o apego afetivo com a comunidade vivida. ―Esquecer
um período de sua vida é perder contato com aqueles que então nos rodearam.‖89
A
lembrança, para Halbwachs, é reconhecimento e reconstrução, e ambos dependem da
existência de um grupo de referência, tendo em vista que as lembranças retomam relações
sociais e não apenas ideias ou sentimentos isolados sendo construídas a partir de um
fundamento comum de dados e noções compartilhadas.90
Toda memória coletiva acontece num contexto espacial e não é possível retomar o
passado se ele não se mantiver conservado no ambiente material ocupado pelo indivíduo. O
pensamento deve estar fixado no espaço para que as lembranças possam reaparecer, uma vez
85
DURKHEIM, 1970, p. 20. 86
DURKHEIM, Emile. Representações individuais e representações coletivas. In: ______. Sociologia e
filosofia. 2. ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária,1970, p. 31. 87
Ibidem, p. 32. 88
HALBWACHS, 2006, p. 41-43. 89
Ibidem, p. 32. 90
Ibidem, p. 33-34.
44
que todo o grupo ou atividade coletiva tem alguma relação com o lugar, com uma parte do
espaço.91
Os objetos materiais com que o indivíduo está em contato diário oferecem uma
imagem de permanência e estabilidade e essa estabilidade passa uma ilusão de imutabilidade,
o que facilita a fixação das lembranças, e sua recuperação no presente.92
O espaço ocupado
pelo indivíduo, ao qual tem acesso e onde estão fixados os pensamentos do passado, facilita a
recuperação do passado pela memória. É, pois, uma realidade que dura, onde a memória se
conserva.93
Para Michael Pollak, a memória, fenômeno construído social e individualmente, é
seletiva, pois nem tudo fica gravado, registrado. É em parte herdada, e não se refere apenas à
vida física da pessoa, podendo sofrer alterações no momento em que ela é articulada, em que
ela está sendo expressa. Quando se trata de memória herdada, há uma ligação entre memória
e o sentimento de identidade, visto aqui de uma maneira superficial no sentido da imagem de
si, para si e para os outros. Portanto,
a memória é um elemento constituinte do sentimento de identidade, tanto
individual quanto coletiva, na medida em que ela é um fator importante do
sentimento de continuidade e de coerência de uma pessoa ou de um grupo em
reconstrução de si.94
Portanto, na memória estão guardados momentos que, de certa forma, orientam e
fazem parte do dia-a-dia do sujeito, dando a sensação de pertencimento e/ou de
estranhamento nas suas relações. Exerce uma poderosa influência na construção do lar, pois
através dela é possível retornar ao passado, onde estão guardados, junto à memória espacial,
as relações sociais e afetivas vividas pelo indivíduo, as quais servirão como pontos de
referência para que o lugar se torne significativo enquanto lar.
Para que haja uma compreensão e realização da análise dos contos de June Henfrey, as
concepções de lar, território, pertencimento e memória são fundamentais, pois esses conceitos
estão relacionados à vida dos personagens. Como exposto, o lar pode ser estabelecido como
um espaço imaginado, em vez de físico. A memória pode ser constituída através das raízes e
das lembranças, levando a um desejo de pertencimento. Todos esses fatores exercem um
papel no que se refere a pertencimento, e a conceitos de lar que essas personagens constroem
ao longo da narrativa.
91
HALBWACHS, 2006, p. 170-171. 92
Ibidem, p. 189. 93
Ibidem, p. 170. 94
POLLAK, Michael. Memória e identidade social. Revista Estudos Históricos, Rio de Janeiro, v. 5, n. 10, 1992,
p. 202.
45
3 ANÁLISE TEXTUAL: A (DES)CONSTRUÇÃO DO CONCEITO DE LAR
Abandonamos a terra e embarcamos. Queimamos nossas pontes atrás de nós – na
verdade, fomos mais longe e destruímos a terra atrás de nós. Agora, barquinho,
cuidado! Ao seu lado está o oceano: por certo ele nem sempre ruge e, às vezes, ele
se esparrama como seda e ouro e devaneios de afabilidade. Mas horas virão em que
você perceberá que ele é infinito e que não há nada mais atemorizante do que o
infinito. Ah, o pobre pássaro que se sentia livre agora se choca contra as paredes
dessa gaiola! Desgraça, quando você sente saudade da terra como se ela houvesse
oferecido mais liberdade – e não há mais nenhuma “terra”.
Friedrich Nietzsche, A gaia ciência.
The body is the place of captivity. The Black body is situated as a sign of particular
cultural and political meanings in the Diaspora. All of these meanings return to the
Door of No Return – as if those leaping bodies, those prostrate bodies, those bodies
made to dance and then to work, those bodies curdling under the singing of whips,
those bodies cursed, those bodies valued, those bodies remain curved in these
attitudes. They remain fixed in the ether of history. They leap onto the backs of the
contemporary – they cleave not only to the collective and acquired memories of
their descendants but also to the collective and acquired memories of the other. We
all enter those bodies.
Dione Brand. A Map to the Door of no Return: Notes to Belonging.
3.1 O período escravocrata
3.1.1 Love Trouble
O conto ―Love Trouble‖ tem como protagonista a afrodescendente Sarah, que vive
com sua avó, Rose, em uma fazenda em Barbados, no Caribe, onde nasce e cresce, numa
época posterior à alforria. Os pais de Rose eram escravos, mas ela ganha a liberdade quando
jovem. Nessa época, já tinha filhos pequenos, entre os quais uma que se tornaria a mãe de
Sarah.
Rose mantém bem viva em sua mente a terra natal do pai. Volta a sua imaginação para
a África, de onde os seus ancestrais foram sequestrados e transportados. Embora nunca tenha
tido a oportunidade de conhecê-la, as histórias contadas pelo pai acerca da terra onde passou
seus primeiros anos, e a convivência com ele e os demais membros de sua comunidade negra,
foram suficientes para que se orgulhasse da sua herança cultural. O modo como Rose e, mais
tarde, Sarah partilham a memória de fatos que não vivenciaram pessoalmente recorda a
distinção que faz Halbwachs sobre memória pessoal e memória histórica.
46
De acordo com Maurice Halbwachs, a memória não está isolada e fechada. Para
evocar o seu passado, o indivíduo recorre às lembranças dos outros e se transporta a pontos de
referência que existem fora de si, determinados pela sociedade. A memória individual não
existe sem esses instrumentos, que são as palavras e as ideias que o indivíduo toma
emprestado de seu meio. Desse modo, enquanto indivíduo, o que se recorda com mais
facilidade está condicionado ao fato de pertencer a um grupo. Na memória, o sujeito mantém
os valores e solidifica os laços afetivos existentes entre os membros de um grupo, material e
mentalmente identificado no espaço e no tempo.
O indivíduo, muitas vezes, não viveu em determinada época, porém recebe suas
influências por fazer parte de um grupo social que viveu tal época, através do contato, por
meio de imagens e pelas lembranças que são reconstruídas pelo grupo social em que vive.
Assim, a história de que nossa memória se alimenta não é a história aprendida, mas a história
vivida.95
Rose costuma falar para a neta sobre suas origens. Em sua companhia, contempla o
Atlântico e lembra como seu pai, o bisavô de Sarah, veio em um barco para aquela ilha. Ele
não gostava muito de falar sobre isso, porque essas lembranças faziam-no sentir ao mesmo
tempo frio, calor, e fraqueza. Enfatizava, com orgulho, que ele não tinha nascido na ilha,
portanto, não nascera escravo: na África, seu avô era um homem livre. Entretanto, Rose e sua
mãe nascem na ilha, na Great Hope Plantation e de lá nunca saem. Diante disso, a África
está na memória de Rose e de sua mãe, respectivamente avó e bisavó de Sarah, por meio das
histórias e lembranças contadas pelo avô de Sarah. A memória da África para Rose não é uma
memória diretamente vivida, mas corresponde, antes, à ―história vivida‖.
O avô de Rose – bisavô de Sarah – tem sensações desagradáveis ao lembrar-se da
viagem pelo oceano, porque vem à memória toda aquela triste imagem de sofrimento, fome,
violência que os negros passaram durante a passagem. A alusão aos navios negreiros e,
consequentemente, à migração forçada que levou à escravidão, traz à mente o pensamento de
Stuart Hall, que recorda como o Caribe nasceu de dentro e através da violência. ―A via para a
nossa modernidade‖, o autor acentua, ―está marcada pela conquista, expropriação, genocídio,
escravidão, pelo sistema de engenho e pela longa tutela da dependência colonial‖.96
Ao contar que nunca viveu em outro lugar, apenas na fazenda, e revelar seu grande
desejo em conhecer a África, expressando ainda sua convicção de que quando morrer é para
lá que seu espírito irá, Rose deixa claramente perceptível seu orgulho pelas suas origens,
95
HALBWACHS, 2006, p. 53; 77- 80. 96
HALL, 2009, p. 30.
47
assim como sua propensão afiliativa para com a África e sua tentativa de desenvolver na neta
esses valores. Além disso, percebe-se a construção da África como lar. O lar torna-se um
significante não apenas por representar um lugar onde se relacione familiaridade, segurança,
conforto e controle, mas um lugar onde se possa ser e se sentir pertencente no mundo. Embora
nunca tivesse estado na África, Rose sente-se daquele lugar, pois lá estão suas origens e sua
identidade cultural, e não na fazenda dos brancos, onde viveu a escravidão.
Por outro lado, a imagem de Rose contemplando o Atlântico leva à percepção de
fronteira, isto é, há uma divisão de culturas, nações, comunidades. O Atlântico divide a
cultura do branco e a cultura do negro, o que leva Rose à sensação de ―não estar no lugar‖,
que localiza do outro lado, na África, em relação à qual, mesmo sem conhecer, sente forte elo
de ligação.
A adoção de uma concepção fechada de tribo, diáspora e pátria pode levar a um
conceito essencialista de diáspora. Em tais contextos, como o exemplificado pelo comentário
de Hall acerca da formação do eu coletivo dos povos do Caribe, identidade cultural
corresponde a ―estar primordialmente em contato com um núcleo imutável e atemporal,
ligando ao passado o futuro e o presente numa linha ininterrupta‖.97
Este ―cordão umbilical‖,
baseado na fidelidade às origens, equivale ao conceito de ―tradição‖. Remete a uma suposta
―autenticidade‖, sendo, portanto, um mito; como Hall ressalta, todo mito tem o potencial ―de
moldar nossos imaginários, influenciar nossas ações, conferir significado às nossas vidas e dar
sentido à nossa história‖.98
Sendo assim, Rose criou um ―mito‖ em relação à África.
Sarah sempre guarda em sua memória as histórias contadas pela avó. Sabe que ela
nascera escrava e que obtivera sua liberdade quando ainda era uma jovem mulher, com seus
quatro filhos, dentre eles a sua mãe, os quais não eram mais do que bebês. Para Sarah, sua avó
viveu numa época interessante e lhe contava com entusiasmo da rebelião, quando um escravo
chamado Bussa e outro chamado Jackey, juntamente com a empregada preta da casa, Nanny,
organizaram grupos de escravos para fazerem um levante e se tornarem livres. Dessa rebelião,
participou o pai de Rose; desapontado com o fracasso da rebelião, insistia que deveriam ter
proclamado a liberdade com suas próprias mãos, não esperando que ela lhes fosse dada.
O conto remete a líderes negros que de fato existiram, Bussa e Nanny. O líder Bussa
deu origem a uma rebelião eclodida em Barbados em 14 de abril de 1816, domingo de Páscoa,
motivo pelo qual é também conhecida como Easter Rebellion (―Rebelião da Páscoa‖). É
considerada a primeira grande revolta escrava no Caribe, e envolveu aproximadamente mil
97
HALL, 2009, p. 29. 98
Ibidem, p. 29.
48
insurretos, dos quais 140 foram executados e 123 deportados.99
O impacto dessa rebelião foi
tão grande que levou a reformas que suavizaram o tratamento a que eram submetidos os
escravos, e em 1825 a Lei de Emancipação foi promulgada, reconhecendo três direitos aos
escravos: 1) o direito à propriedade; 2) o direito de testemunhar em todos os processos
judiciais; 3) redução de taxas cobradas por alforria, que era cobrada dos proprietários que
emancipavam seus escravos.100
Bussa (também gravado como Bussa, Busso ou Bussoe) nasceu na África, mas foi
capturado e levado para Barbados para trabalhar como escravo na plantação de Bayleys, na
paróquia do sul de São Filipe. Era um escravo doméstico, categoria de escravos que se
considerava acima da dos que trabalhavam no campo; alguns chegavam a delatar planos de
rebeliões a seus senhores a fim de serem favorecidos. Bussa, com sua posição privilegiada,
ajudou a planejar com meses de antecedência a rebelião. Na noite de Sexta-Feira Santa, 12 de
abril de 1816, os últimos preparativos foram feitos. Nesta reunião, foi decidido que um
mulato escravo, Washington Francklyn (sic), deveria se tornar o governador da ilha. Na
manhã do domingo, 14 de abril de 1816, Bussa levou cerca de 400 escravos aos canaviais
para incendiá-los. Os fazendeiros brancos foram totalmente pegos de surpresa, e os escravos
lutaram bravamente contra as tropas da Primeira West Índia. A rebelião se alastrou de fazenda
em fazenda até cerca de metade da ilha. Levou quatro dias para as autoridades retomarem o
controle. Bussa foi morto na batalha e os líderes foram executados. Embora a rebelião
acabasse por fracassar, nunca foi esquecida. Em 1985, mais de um século depois, a Estátua da
Emancipação foi erguida na rotunda em Haggatt Hall, St Michael. Em 1999, Bussa foi
nomeado como um dos heróis nacionais de Barbados.101
A outra figura história a que faz referência o conto, ―Nanny‖, incentivou a formação
de uma comunidade de escravos fugitivos, The Maroons of Jamaica. O termo maroon deriva
provavelmente da palavra cimarróm do espanhol – que literalmente significa ―vivendo no
topo das montanhas‖ – aplicada, pela primeira vez, com referência ao lugar usado para fugir
dos animais que retornavam da selva. O termo passou a se referir às comunidades de escravos
fugitivos.102
Quando os britânicos invadiram a Jamaica em 1655, 1500 africanos que tinham
sido escravizados pelos espanhóis, vindos de Akan, da África ocidental, fugiram para as áreas
99
LOPES, Nei. Enciclopédia brasileira da diáspora africana. São Paulo: Selo Negro, 2004, p. 146. 100
THE HISTORY of slavery in Barbados. In: FUN Barbados. s.d. Disponível Em:
<http://www.funbarbados.com/ourisland/history/slavery.cfm>. Acesso em: 08 jul. 2011. 101
BUSSA. Caribbean History. In: ITZCARIBBEAN.COM. 2011. Disponível em:
<http://www.itzcaribbean.com/history_barbados_bussa.php>. Acesso em: 08 jul. 2011. 102
RESISTENCE and Rebellion. In: UNDERSTANDING Slavery Initiative. Disponível em:
<http://www.understandingslavery.com/index.php?option=com_content&view=article&id=310&Itemid=222>.
Acesso em: 26 ago. 2011.
49
montanhosas da ilha, e outros fugitivos se juntaram a eles. Durante 150 anos, essas
comunidades escaparam de capturas e participaram de guerrilhas contra os britânicos
proprietários de plantations, libertando os escravos e oferecendo abrigo a eles quando faziam
estragos nas plantações e nas propriedades. Os dois principais grupos eram Trelawney e
Windward Maroons; este último, liderado pela rainha Nanny. Eles eram considerados
autossuficientes, bem organizados, habilidosos para a caça e bons lutadores, o que dificultava
aos britânicos derrotá-los.
Nanny tornou-se símbolo de força e unidade para o seu povo, possuindo a
característica de guerreira dos seus ancestrais Asante, ou Ashanti. Embora seja considerada
uma heroína nacional na Jamaica, é difícil estabelecer com certeza fatos históricos sobre essa
figura lendária, e não é certo se nasceu na África ou na Jamaica, escrava ou livre. Há
historiadores que sugerem mesmo ser possível que tenha havido várias líderes femininas
importantes que ficaram conhecidas coletivamente como Nanny. Outras fontes dão como
certo o fato de que Nanny, juntamente com cinco irmãos que escaparam da escravidão,
aportou à Jamaica, onde controlou um povoado nas Blue Mountains chamado Nanny Town,
que liderou de forma excepcional. Foi necessário aos ingleses seis anos de luta – 1728 a 1734-
para a tomada de Nanny Town. 103
No conto ―Love Trouble‖, às memórias da rebelião de Bussa segue-se o relato da
abolição, ou como Rose descreve, o tempo em que a liberdade foi concedida. Contudo, como
Rose ressalva, os senhores continuavam com o poder, já que havia pouco trabalho fora da
fazenda e o pagamento era ruim, insuficiente para comprar alimentos e roupas. Essa situação
leva os mais jovens a deixarem a colônia; os que ficam têm permissão de continuarem
vivendo na antiga senzala. Mas como aquele lugar é próximo demais da Casa Grande, o que
lhes lembra a época da escravidão, decidem colocar alguns barracos em um pedaço de terra
desocupada próximo a uma nascente. Mais tarde, o senhor e o seu procurador informam aos
negros que passariam a ser arrendatários da fazenda e, portanto, ser-lhes-ia descontado do
salário o aluguel do terreno.
A libertação dos escravos deveria ter-lhes assegurado condições reais de liberdade e
cidadania, mas o que ocorreu foi a concentração de poderes sociais e políticos nas mãos de
uma elite agrária, que continuava a oprimir a população desprovida de recursos. Os grandes
senhores de terras continuavam a ser os maiores beneficiários, perpetuando seu domínio.
103
RESISTANCE and Rebellion. Nanny and the Maroons. In: UNDERSTANDING Slavery. s.d. Disponível em:
<www.understandingslavery.com>. Acesso em: 08 jul. 2011.
50
Outro motivo que leva Sarah a pensar que gostaria de ter vivido à época em que sua
avó era jovem é o forte sentimento comunitário que une a população negra. Sua avó orgulha-
se em contar como as pessoas se ajudavam, trabalhavam em grupos para construir suas casas;
havia sempre alguém para cuidar das crianças menores enquanto as mães trabalhavam, e os
idosos eram bem tratados. Entre eles, reinava o espírito de solidariedade, em contraste à época
em que Sarah vive em que se percebe gradual perda do senso comunitário.
Essas histórias sobre o passado da sua avó Rose estão sendo rememoradas ao início do
conto, enquanto a jovem olha a paisagem, esperando pelo seu namorado, Dolphus, que pesca
em um dos barcos, com o seu tio e primos. Sarah e Dolphus pretendem casar assim que ele se
tornar proprietário de um dos barcos pesqueiros. Conhecem-se desde criança; todos da aldeia
aprovam o relacionamento e lhes dão as bênçãos em voz alta. Como Hall observa, as
comunidades preservam a manutenção das identidades racializadas e o fator da ―negritude‖ é
decisivo para a identidade da terceira geração de afro-caribenhos.104
A manutenção de
identidade racializada, étnico-cultural, como fator de coesão grupal, é bem explícita no conto:
embora com tarefas bem definidas de acordo com o gênero - os homens pescavam juntos, as
mulheres, juntas, esperavam os homens na praia, cuidavam dos filhos e da casa – a
comunidade é unida e declaradamente não desejam a presença do branco, como expresso na
advertência de Rose à Sarah de que red niggers são indesejáveis. Red nigger ou backra-
nigger refer-se à pessoa de pele clara, de ascendência mista, fruto da união de preto e branco,
que é desprezada.105
Enquanto Rose observa os pescadores, Johnny Bishop, o proprietário da fazenda,
observa-a da mais alta janela do presbitério, onde se recupera de uma fratura causada por
queda do cavalo num domingo pela manhã, após a igreja. Levado ao presbitério, lá permanece
por conselho do médico, que o recomenda a não sair até que a perna melhore. A esposa visita-
o frequentemente e, quando não pode, manda-lhe seus alimentos favoritos, geralmente através
de Sarah, que trabalha com Ada, a mais velha cozinheira da casa da fazenda. Assim, Bishop,
que já tinha visto a moça nos pátios da fazenda e sabe vagamente quem ela é, começa a
prestar muita atenção na jovem negra: ela é mais alta que a média, move-se com descuidada
graça, é magra, mas iria arredondar-se logo que começasse a ter filhos, no entanto, evitaria a
obesidade. Imediatamente vem à sua mente, com uma onda de culpa, a imagem da sua esposa
Bessie: gordinha, tão cuidadosa em evitar o sol com medo de ficar com a pele vermelha ou
áspera; uma mulher alegre que trata os empregados muito bem.
104
HALL, 2009, p. 63. 105
ALLSOPP, Richard. Dictionary of Caribbean English Usage. USA: Oxford University Press, 1996, p. 61.
51
Sonia Maria Giacomini (1988) registra a permanente oposição entre as figuras das
mulheres escravas e a das mulheres brancas. Estas eram descritas como ―gordas, nédias,
flácidas‖, enquanto as escravas possuíam ―boas coxas, bons dentes, peitos salientes‖, criando,
assim, uma imagem de que um corpo era feito para a inércia, e outro para a ação. O corpo das
mulheres brancas marca a sua função social; a agilidade e elasticidade das mulheres negras
indicam o seu lugar na sociedade. A implicação é de que as mulheres escravas eram,
naturalmente, provedoras de satisfação sexual aos seus senhores (os patriarcas e seus filhos),
pois seu corpo era percebido como conducente a tal atividade. A mulher negra/escrava torna-
se objeto sexual do branco, ao mesmo tempo em que lhe é negada a possibilidade de relações
familiares. Segundo Giacomini, criou-se uma classificação entre a mulher branca e a negra:
―Senhoras, mães, castas, puras e brancas contrapõem-se a escravas, infanticidas, sensuais,
lascivas, imorais, sem religião e negras‖.106
Embora Giacomini descreva o contexto das
relações escravocratas no Brasil, a situação parece ajustar-se, também, à situação descrita
nesse conto ambientado em Barbados.
Quando o fazendeiro retorna à fazenda, passa a observar Sarah e, para se aproximar
dela, começa a ir até o pátio da igreja, onde ela costuma ir quando procura por tranquilidade.
Observando a paisagem, percebe que há pessoas brancas pobres morando naquela região e se
lembra da sua família, que lá tinha começado. O bisavô de Bishop foi capataz de Clark e se
casou com sua sobrinha que, por ser a parente mais próxima do dono da terra, herdou a
fazenda Great Hope. Os Bishops prosperaram rapidamente e, por ocasião da rebelião de
Bussa, já figuravam entre as famílias de elite da ilha, não mais denunciando suas origens
Backra; à época em que Johnny Bishop vive, poucos sabem a origem pobre dessa família,
agora tão influente.
A palavra ―backra‖ ou ―buckra‖, de origem africana, é encontrada em muitos dialetos
indianos do Ocidente, referindo-se ao homem branco, não sendo, provavelmente, pejorativa.
Porém, em Barbados, refere-se, de uma forma desprezível, aos brancos pobres, geralmente
nas frases ―pobres backra‖ ou ―Backra Johnnie‖, ou simplesmente abreviada através das
iniciais ―PBJ‖.107
Em Barbados, o ―Backra Johnnie‖ ou ―Backra Jonny‖ era aquele que usava
as pessoas para atingir suas ambições, para chegar ao topo. Pode-se associar o nome do patrão
da fazenda, Johnny, com essa definição.
106
GIACOMINI, Sonia Maria. Mulher e escrava: uma introdução ao estudo da mulher negra no Brasil.
Petrópolis, RJ: Vozes, 1988, p. 76-77. 107
WILTSHIRE, Ernest M. CARIBBEAN-L Archives. Jan. 2000. Disponível em:
<http://archiver.rootsweb.ancestry.com/th/read/CARIBBEAN/2000-01/0947707012>. Acesso em: 30 ago. 2011.
52
Quando Sarah encontra Johnny contemplando o mar, percebe que começa uma paixão
ardente, diferente do seu sentimento por Dolphus. Percebe também que nunca mais pensaria
novamente em Johnny Bishop como o patrão. Fica evidente a forte atração entre a mulher
negra e o homem branco, o que leva Sarah a se desinteressar por seu namorado.
Na tarde seguinte, quando se encontram novamente, ao observar o oceano, Bishop diz
que barcos trouxeram os antepassados de ambos para Barbados: ―I look out at the ocean and I
thik of all the ships which have brought people to this place. Your people, my people‖.108
Sarah, contudo, mostra o seu descontentamento, comentando que o povo dele teve mais sorte,
pois receberam o que havia de melhor, o dinheiro, enquanto o dela ficou com recebeu apenas
o suor. Ele então lança- lhe um olhar e promete tomar providências para que ela não precise
mais transpirar. Ao fazer menção aos barcos e tentar igualar-se ao povo de Sarah, Johnny
recorda sua origem humilde, talvez como uma forma de seduzi-la ou de mostrar que existe
afinidade entre eles.
O discurso colonial submeteu milhões de pessoas a uma cultura considerada superior,
além de estar impregnado pela ideologia imperial e pela mentalidade sexista, na qual o termo
homem e seus derivados incluíam também a mulher, que era vista como inferior, um ser sem
voz e subalterno, destinada ao silêncio da reprodução e às lides caseiras, à sombra da vida
doméstica.109
Dessa forma, nas sociedades coloniais, a mulher foi duplamente colonizada.
Segundo Bonnici, ―a dupla colonização é a subjugação da mulher nas colônias, objeto do
poder imperial em geral e da opressão patriarcal colonial e doméstica‖.110
A ideologia da
política colonial era usufruir o corpo feminino, assim como as riquezas naturais da terra; dessa
forma, o corpo da mulher constitui-se em representação etonímica da terra colonizada.111
Nesse contexto, a mulher africana foi representada como passiva, domesticada, vítima de todo
tipo de preconceito e opressão.
Por outro lado, divulgou-se o estereótipo da sexualidade sobre a mulher negra –
sensual, pervertida sexualmente -, que permanece mesmo após o período colonial: a mulher
branca era vista como casta, e a negra, como objeto sexual. Assim, Bishop não vê Sarah de
outra forma. Ele, como branco dominador, partilha uma visão estereotipada da jovem que, na
condição de mulher negra, é alvo de fácil manipulação. Além disso, ele só vê a mulher
enquanto símbolo sexual, como objeto de prazer e, por isso, ela é totalmente objetificada.
Relembre-se, com Fanon, que a ―objetificação consiste na negação da individualidade e da
108
HENFREY, June. Coming Home and Other Stories. England: Arts Council, 1994, p. 21. 109
DUBY, G. A história das mulheres. Madrid: Taurus, 1992, p. 1. 110
BONNICI, Thomas. Conceitos-chave da teoria pós-colonial. Maringá: Eduem, 2005, p. 53. 111
LOOMBA, A. Colonialism/postcolonialism. London: Routledge, 1998, p. 152.
53
subjetividade‖.112
Percebe-se a negação da subjetividade de Sarah quando ela aceita ser
alojada em uma casa distante da aldeia, onde só recebe a visita de Bishop e de alguns
empregados. Nesse contexto há uma anulação da sua individualidade, pois aceita
passivamente ficar totalmente dependente do seu amante.
Naquela noite, quando Sarah entra na carruagem do cocheiro de Bishop, há o
rompimento com suas raízes e origens, deixando para trás o senso de comunidade, a avó que a
tinha criado e o noivo negro. Nesse momento, a harmonia antes vivida pela jovem com sua
comunidade negra é quebrada, pois tal atitude será reprovada, especialmente por sua avó
Rose. Para ela, é inconcebível qualquer relação com homens brancos, e ela não aceitará ―red
niggers‖ na família. ―Backra-nigger‖ ou ―red nigger‖ é uma denominação usada para referir-
se a um mulato, uma pessoa que é desprezada por ter a pele mista, resultante de um negro
com um ancestral branco.113
Pode-se dizer que a união de Sarah com Johnny Bishop representa a união do homem
da classe dominante com uma mulher da camada dominada significando, para ela, certa
valorização e ascensão social. Um exemplo é a casa em que Sarah foi residir, que representa
para ela uma grande mudança, da choupana de Rose, com dois quartos e uma cozinha
pequena, para outra bastante ampla. O espaço deixa- a tão maravilhada que caminha de um
quarto para outro, inclinando-se numa janela e outra, imaginando estar num sonho do qual
seria logo despertada. O sonho persiste, e a casa vai se enchendo de mobílias dadas por
Johnny. Sarah está deslumbrada com o fato de ter o seu próprio espaço, pois até então mora
com a avó e é muito difícil uma mulher negra, na sua posição social, desfrutar de uma casa
confortável. No entanto, experimenta absoluto isolamento: os negros a evitam e também os
brancos, os quais não perdoam o fato de ser a amante negra de um homem branco casado.
Mais tarde vêm os filhos, os quais recebem o nome dele e, após a morte de sua esposa,
Bessie, reivindicavam sua presença. Evelyn, a filha do seu casamento, também passa a exigir
a presença do pai. Durante muitos anos, os únicos visitantes da casa são o próprio Johnny
Bishop e os empregados que ele envia para ajudar Sarah com o trabalho pesado ao ar livre.
Nisso, ele cumpre sua promessa de que ela nunca suaria novamente, mas poderia desenvolver
as habilidades próprias de uma concubina. Os filhos resultantes da união de Sarah e Bishop
são tão igualmente discriminados e isolados quanto a mãe.
Somente quando a avó Rose morre é que Sarah revê a sua comunidade. Grávida do seu
quarto filho, é levada por um carro até a igreja, onde permanece sozinha, sentada ao fundo,
112
FANON, Frantz. Os condenados da terra. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1968, p. 72. 113
ALLSOPP, 1996, p. 61.
54
sentindo-se totalmente deslocada, pois tanto a comunidade negra quanto a branca fazem
questão de ignorá-la. Ela percebe, entre os carregadores do caixão, Dolphus, o seu antigo
namorado, que não olha em sua direção.
Sarah claramente entende que tal desprezo é o resultado da sua escolha no passado.
Ela acreditava que viver com conforto era sinônimo de lar, mas, no entanto, adquire uma
habitação, tem melhores condições físicas de sobrevivência, um abrigo, porém não
desenvolve relacionamentos sociais. Ao aceitar seu isolamento, Sarah rompe seus vínculos
familiares e com suas raízes étnicas. Ao pensar sobre a ideia de lar, pode-se dizer que a
protagonista não desenvolve uma completa concepção do mesmo, porque a sua morada está
mais relacionada a condição física e espacial. Não é permitida a convivência com outras
pessoas: nem Sarah e nem seus filhos estabelecem um círculo de relações sociais.
Pode-se dizer que, na realidade de Rose, encontram-se bem definidas as dimensões de
lar. No contexto espacial, ocorre identificação com e controle sobre o espaço. Desenvolve
relações sociais, pois está sempre em contato com a sua comunidade negra, o que lhe traz
referências e associações de familiaridade, afetividade, etnia e parâmetros ideológicos. A
dimensão histórica também está presente, pois, através dos hábitos desenvolvidos e rotinas
cognitivas desenvolvidas com a sua comunidade negra, mantém viva a sua identidade
cultural.
Já Sarah apresenta uma concepção de lar incompleta, pois nem todas essas dimensões
estão presentes. Não se pode dizer que Sarah tem controle sobre o seu espaço, porque ela não
tem autonomia sobre ele, visto que vive escondida e totalmente dependente e submissa ao seu
amante, o homem branco. Presa às vontades de Bishop, não tem realmente o domínio sobre as
entradas e fronteiras do espaço em que habita. Essa situação contrasta com a experimentada
quando morava com sua avó, na fazenda, e desenvolvia relações de afetividade, familiaridade
e sociais, em contato com a sua comunidade negra e com a avó. No momento em que passa a
viver isolada, há rompimento das relações com sua etnia raízes culturais. Assim, o espaço
ocupado por Sarah e seus filhos não pode ser chamado de lar, mas sim de uma habitação,
onde há uma continuidade de sua existência. Com relação a esse espaço, há referências
negativas, pois é percebido como a casa da amante do homem branco, o que lhe atribui
exclusão da sociedade, sendo vista como diferente. Além disso, não há uma articulação com
família, nem com a comunidade, não podendo ser visto como lar pessoal. Nisso, contrasta
violentamente com sua casa antiga, onde esses aspectos estavam presentes.
55
3.1.2 Freedom Come
―Freedom Come‖ traz como cenário o período escravocrata, tendo como protagonista
Nanny, que, embora sendo escrava não age como tal: não segue as ordens da dona da casa,
Sra. Beth, expressa suas opiniões sobre a administração da plantação, intrometendo-se nas
conversas, e não se amedronta quando ameaçada de punição. Alguns comentam que ela é
meia-irmã do feitor, embora nunca fosse reconhecida pelo pai. Nanny acredita que nada lhe
acontece devido a um feitiço por ela lançado contra a Casa Grande. Tal magia, conhecida por
obeah, é legado da avó africana, da qual herda seu nome.
Obeah ou ‗Poccomania‘ é uma forma de religião ou culto de ancestrais africanos que
tem raízes em comum com o candomblé do Brasil, com a santeria de Cuba e com o vudu (ou
voodoo) do Haiti ou Jamaica. Diz-se que seu líder espiritual tem controle sobre os corpos e
espírito das outras pessoas, através de um pó que possui, supostamente, propriedades mágicas
que dariam a seu usuário proteção contra as armas do homem branco. Isso foi importante para
estimular a organização e execução de revoltas dos escravos e de resistência dos escravos,
pois os brancos temiam o seu poder, e que viessem a ser petrificados, vítimas da sua
mágica.114
Quando Nanny nasce, seu pai, o Velho Feitor, demonstra o desejo de que a sua mãe,
Juba, lhe dê o nome de Charlotte, um ‗bonito nome crioulo (Creole)‘. O termo Creole e seus
cognatos em outras línguas – tais como crioulo, criollo, créole, kriolu, criol, kreyol, kreol,
kriulo, kriol, krio, etc. — tem sido aplicado para pessoas em diferentes países e épocas com
significados bem diferentes. O termo Creole é, às vezes, usado, também, imprecisamente,
para descrever qualquer pessoa independentemente da raça ou etnia com que nasceu e cresceu
na região. Aqui, entretanto, o contexto autoriza pensar que ele se refere a preto/mulato,
mistura do branco. Por esse motivo, sua avó, a Velha Nanny, deixa claro que na sua família
não há permissão para nomes Backra115
. O feitor não insiste, dando como único privilégio à
menina ser treinada para trabalhar na casa, em vez de ser enviada para o campo. A avó
aprende a amar rapidamente o bebê de pele marrom, apesar de preferir que tivesse a pele
negra como a dela e a de Jubah. Porém, conforma-se dizendo que as pessoas de pele marrom
não ficam vermelhas e nem têm a aparência ―não terminada‖ dos brancos.
114
HISTÓRIA do Reggae. 2010. Disponível em: <http://reggaespotlights.blogspot.com/2010/12/obeah.html>.
Acesso em: 13 ago. 2011. 115
Backra, ver explicação em ―Love Trouble‖, p. 8.
56
Nanny trabalha na Casa Grande e tem a permissão de sentar-se na sala enquanto as
meninas e os jovens rapazes fazem suas lições. Aprende a ler, o que era proibido aos escravos,
declarados incapazes de aprender. Não era do interesse do branco que o escravo se tornasse
alfabetizado, pois, assim, ficaria alienado às informações e não desenvolveria um sentimento
crítico. Nanny, porém, passa a ter contato com os livros e jornais, o que lhe permite acesso à
informação a respeito do que está acontecendo nas colônias do Oeste da Índia e sobre os
escravos.
Percebe que, na fazenda, há diferentes tipos de escravos: os ousados, os descarados, os
quietos, os humildes, os que têm medo que as coisas mudem para o pior. Por outro lado, há
aqueles de pele mais clara, que se comportam como os feitores, recusando-se a realizar certos
tipos de trabalhos, e que insistem em serem servidos por escravos de uma escala mais baixa.
A sociedade colonial desprezou o negro, levando-o à marginalização. Imagens estereotipadas
levaram-no a se autorrejeitar e a negar as próprias origens, sua cultura, língua, caracteres
físicos, almejando até o embranquecimento. Segundo Kabengele Munanga,
[...] pressupunha-se a admiração da cor do outro, o amor ao branco, a aceitação da
colonização e a auto-recusa. E os dois componentes dessa tentativa de libertação
estão estreitamente ligados: subjacente ao amor pelo colonizador há um complexo
de sentimentos que vão da vergonha ao ódio de si mesmo. O embranquecimento do
negro realizar-se-á principalmente pela assimilação dos valores culturais do
branco.116
Pode-se pensar que esses escravos agem daquela forma para se sentirem mais
próximos do branco, como uma forma de não se perceberem tão inferiorizados, levando a
uma negação da própria identidade. Fanon expõe que a violência epistemológica sofrida pelo
negro faz com que ele se sinta dilacerado, já que a ―civilização branca, a cultura europeia
impuseram ao negro um desvio existencial. [...] aquilo que se chama de alma branca é
frequentemente uma construção do branco.‖ Assim,
[...] incapaz de estar no espaço aberto com o outro, com o branco que
impiedosamente me aprisionava, eu me distanciei para longe, para muito longe do
meu estar-aqui, constituindo-me como objeto. O que é que isso significava para
mim, senão um desajolamento, uma extirpação, uma hemorragia que coagulava
sangue negro sobre todo o meu corpo? No entanto, eu não queria esta
reconsideração, esta esquematização. Queria simplesmente ser um homem entre
outros homens.117
116
MUNANGA, Kabengele. Negritude: usos e sentidos. São Paulo: Ed. Ática, 1986, p. 27. 117
FANON, Frantz. Pele negra, máscaras brancas. Salvador: EDUFBA, 2008, p. 30; 106.
57
Entretanto, Nanny não está interessada em tipos como estes, pois tem por eles
desprezo. Procura pessoas sérias, determinadas e que acreditam que a liberdade possa ser
assegurada. A escrava sabe que os feitores estão assustados pelos fatos acontecidos em
Mingo: todos os brancos que lá residem são mortos, e os escravos, libertos, passam a
dominar as plantações. Novamente, percebem-se componentes históricos inseridos no conto.
Mingo é a forma abreviada de São Domingos. A sociedade de São Domingos era dividida em
latifundiários, brancos, pobres, mulatos livres e escravos, e foi agitada pela aprovação, na
Assembleia Constituinte na França, em 1791, da lei que aprovava a igualdade de direitos entre
todas as pessoas em São Domingos, permitindo o voto dos mulatos, mas não significava,
ainda, a abolição da escravidão. Os fazendeiros ricos discordavam e, paralelamente aos
protestos dos mulatos contra os brancos, os escravos começaram a se organizar, surgindo
várias rebeliões, que enchiam de preocupação os fazendeiros, não só de Dominica, mas de
toda a região do Caribe.
É possível que Mingo, no conto de Henfrey, lembre esse clima revolucionário, embora
retratando a eclosão de rebeliões escravas em Barbados. Nanny, alfabetizada, lê nos jornais
sobre as revoltas dos negros, mantém os escravos atualizados acerca delas, bem como sobre a
interferência da Inglaterra quanto ao tráfico de escravos. Como não estavam vindo escravos
da África para a Ilha já fazia alguns anos, os feitores ficavam ansiosos para que as mulheres
ganhassem bebês, e isso contribui para que as escravas não fossem mais chicoteadas até a
morte.
Nanny tem convicção da sua missão proveniente de seus ancestrais. A sua avó, a
Velha Nanny, poderia sentir orgulho dela, pois o espírito de resistência continuaria a existir.
O orgulho e a confiança herdados fazem com que ela aprofunde o sentido de justiça e se torne
uma grande líder, levando-a a se integrar o grupo de Bussa, juntamente com Jackie e Robert,
o qual dá origem a uma grande rebelião de escravos.118
Nanny e o grupo estão determinados, e os planos começam a tomar forma. Planejam
usar fogo, e a Casa Grande iria ser atingida. Em alguns momentos, Nanny questiona-se em
relação a seus sentimentos para com aquela família, já que foram tantos anos de convivência e
pode dizer que eles a valorizam. Por um momento, até pensa em salvá-los. No entanto,
lembra-se dos escravos, da sua vida difícil e de que eles não possuem uma ‗vida própria‘,
estando sempre à disposição dos brancos. Sendo assim, ela não iria desperdiçar nem tempo
nem sentimento com as pessoas brancas; talvez quando ela estivesse livre.
118
Nanny e Bussa: mesmas figuras históricas citadas em ―Love Trouble‖.
58
De acordo com Thomas Bonnici, o ―revide‖ ou ―resistência‖ é uma forma de reverter
o binarismo e abalar as ordens impostas pelo poder colonial que se postou no centro. O
revide, através das lutas, resistências física, armada, guerra dos povos colonizados, foi a única
forma que os povos colonizados encontraram para quebrar a hegemonia da colonização
europeia.119
Para Emília Viotti da Costa,
Foi na resistência cotidiana que os escravos reafirmaram o apego a seus ―direitos‖ e
testaram limites do poder senhorial. Foi na resistência cotidiana que o ressentimento
dos escravos cresceu, que laços de solidariedade se fortaleceram, que líderes se
formaram e que atos de desafio individuais se converteram em protesto coletivo.120
Quando o subalterno responde ao europeu, ele não só recupera sua voz, como também
denuncia a usurpação europeia e as leis tradicionais nativas infringidas.121
É a resistência que
provoca a descolonização da nação, da cultura e do intelecto. O subalterno se transforma em
sujeito, não só porque retoma sua voz, mas porque a descolonização traz um novo ritmo a sua
existência, pois sua mente é descolonizada. O ―revide‖ constitui um meio de sobrevivência e
manutenção da subjetividade, permitindo ao sujeito colonial mostrar sua cultura, crença e
costumes como o bem mais precioso que possui.122
Sendo assim, a atitude da personagem pode ser entendida como afirmação da própria
identidade via força. Nanny não se compadece diante do fato de a família branca onde
trabalha também ser castigada, porque, na verdade, eles assumem o papel do senhor e
colonizador, o qual nunca teve qualquer sentimento por eles, os escravos. O colonizador,
explica Bonnici, jamais teve piedade de qualquer espécie de sujeito colonial, pois o que
sempre lhe importou foi estar em superioridade face a eles e demonstrar força e poder de
domínio.123
De acordo com as leituras em jornais feitas por Nanny, no Ano Novo, mudanças
deveriam acontecer na Inglaterra, e a liberdade aos escravos seria uma delas. Entretanto,
chega o grande dia e nada acontece. A escrava percebe que os proprietários, juntamente com
os seus amigos na Casa da Assembleia, decidem que as transformações na Inglaterra não
trariam qualquer mudança para a ilha. Então, ela e o seu grupo decidem esperar até a Páscoa
para ver se realmente nada se modificaria. A empolgação se ascende a cada dia, e Nanny não
119
BONNICI, 2009, p. 217-218. 120
COSTA, Emilia Viotti da. Coroas de glória, lágrimas de sangue: a rebelião dos escravos de Demerara em
1823. Trad. Anna Olga de Barros Barreto. São Paulo: Companhia das Letras, 1998, p. 109. 121
BONNICI, Thomas. O pó-colonialismo e a literatura: estratégias de leitura. Maringá: Eduem, 2000, p. 56. 122
BONNICI, 2009, p. 246. 123
Ibidem, p. 242.
59
pensa em outra coisa, a não ser no dia em que a liberdade será alcançada. Pouco lhe importa o
que a liberdade implicaria, mas o fato de deixar de pertencer à outra pessoa, de receber ordens
como se fosse uma criança ou de ser batida por um capataz, é o suficiente para criar
expectativas e motivá-la quanto à credibilidade da rebelião.
Chega o grande dia e, ao sinal combinado, o de fumaça, ela desce as escadas correndo
e sai para o quintal, arrancando sua faixa da cabeça e acenando-a como uma bandeira. A
comoção se espalha, e outros escravos se unem, com armas chegando mais ao Oeste sob o
comando de Bussa. A empolgação de Nanny cresce, e ela corre de um lado para outro,
gritando para os outros escravos que eles não precisam mais trabalhar, fazendo planos para a
maneira como eles viveriam quando o dia terminasse. Ela sente-se extremamente feliz e forte,
pega as crianças nos braços e diz-lhes ser a geração livre, a qual nunca saberia das
indignidades sofridas pelos seus pais e avós.
A escolha do fogo como a principal arma utilizada pela rebelião- certamente a mais
facilmente disponível e potencialmente destruidora acessível aos negros escravizados- pode
também ser pensada em seu valor simbólico. O fogo, que queima e consome, é também
símbolo de purificação e de regenerescência.124
Destrói, limpa, purifica, é o grande agente das
transformações pelo seu modo de simbolizar as emoções, tanto que aquilo que resiste ao fogo
tem o caráter da imortalidade. Sem o fogo da emoção, nenhum desenvolvimento ocorre e
nenhuma conscientização maior pode ser alcançada, por isso, é considerado um símbolo da
consciência.125
Por outro lado, o fogo também pode estar relacionado à Páscoa, especialmente em
uma sociedade agrícola. No Sábado Santo, a celebração é iniciada com a bênção do fogo,
chamado de "fogo novo". Os agricultores, desprovidos de tecnologia e de conhecimento,
utilizam o fogo, uma técnica milenar e primitiva, para limpar o terreno que será destinado ao
plantio. O fogo limpa aquele espaço do mato das ervas daninhas e de tudo aquilo que
prejudica ou é obstáculo para o plantio.126
Pode-se, ainda, associar a escolha do fogo a uma forma de apagamento do opressor,
um elemento de purificação e uma forma de cicatrização das feridas abertas pelos maus-tratos
e violências sofridas na senzala. Além disso, seria o início de uma nova fase, em que todo
124
GREGÓRIO, Sérgio Biagi. Fogo. In: DICIONÁRIO de símbolos. s.d. Disponível em:
<https://sites.google.com/site/dicionariodesimbolos/fogo>. Acesso em: 30 ago. 2011. 125
ALVES, Sérgio Pereira. Fogo. s.d. Disponível em:
<http://www.salves.com.br/dicsimb/dicsimbolon/fogo.htm>. Acesso em: 13 ago. 2011. 126
DUARTE, José Luiz C. O verdadeiro sentido da Páscoa. In: CULTURA brasileira. s.d. Disponível em:
<http://www.culturabrasil.org/pascoa.htm>. Acesso em: 30 ago. 2011.
60
sofrimento, as desilusões - o joio - seriam queimados e a esperança – a semente - de uma nova
etapa iria começar, uma nova era para a geração vindoura.
Outro aspecto interessante é em relação à época dos acontecimentos, ou seja, a
informação de que o Ano Novo e, mais tarde, a Páscoa, trariam a liberdade. Ano Novo está
relacionado à esperança, vida nova. A Páscoa judaica, como é apresentada no livro do Êxodo,
é a comemoração mais importante do calendário judaico, em que o povo celebra o fato
histórico de sua libertação da escravidão do Egito. Se pensada a partir da ressurreição de
Cristo, Páscoa também está relacionada à libertação: celebra a ressurreição de Jesus, sua
vitória sobre a morte, promessa de vida eterna aos que nele creem.
A referência à Páscoa com relação ao êxodo permite, ainda, a associação de Nanny à
figura de Moisés, pois ambos têm uma missão em comum: libertar o seu povo da escravidão.
Educado no palácio de Faraó, após ter sido adotado por sua filha, Moisés teve acesso à
educação da civilização mais adiantada naquele tempo, e foi treinado para ocupar um alto
cargo ou até mesmo o trono no Egito. Aprendeu a escrita e as literaturas de seu tempo, bem
como administração e justiça. Tendo que fugir da corte por ter matado um feitor egípcio, o
qual estava batendo em um escravo hebreu, retornou para o Egito após alguns anos, enviado
por Deus para a missão de resgatar os hebreus da escravidão.127
A comparação da protagonista com Moisés apresenta, ainda, outros pontos em
comum: ambos são filhos de escravos, possuem espírito de liderança, têm acesso à leitura, o
que lhes oportuniza conhecimento que não está acessível ao resto de seu povo. Ambos
tornam-se libertadores dos seus povos, submetidos ao sofrimento da escravidão. A páscoa é
celebrada pela primeira vez na noite em que o êxodo inicia. Porém, enquanto Moisés salva o
seu povo, Nanny não alcança seu objetivo, sentindo-se profundamente frustrada e infeliz.
Nanny, em nenhum momento, pensa a liberdade de forma individual, sempre sonha
que todo o seu povo seja emancipado, o que demonstra o seu senso de comunidade e
solidariedade. Além disso, não guarda rancor, pois nunca sente raiva da família branca para a
qual trabalha, ao contrário, fica feliz em saber que tinham conseguido fugir da rebelião. O ato
de arrancar a faixa da cabeça é um grito à liberdade, como se os pensamentos não precisassem
mais ficar escondidos, nem as ações tolhidas, mas não apenas os seus como os do seu povo,
pois todos teriam ganhado a liberdade, representando também vitória, nova vida.
127
A BÍBLIA sagrada: Antigo e Novo Testamento. Trad. Pe. Antonio Pereira de Figueiredo. Rio de
Janeiro: Livros do Brasil, 1962. Ex. 1:8 a 4:31.
61
Porém, passados alguns dias, chegam notícias de que muitos foram mortos e Nanny
não consegue entender o que tinha dado errado. Percebe que era momento de fugir, embora
isso não estivesse nos seus planos. Após caminhar muito pelos campos, chega à beira de um
penhasco, observa que a água é de um azul profundo. Passa pela sua mente, então, que, ao
longo desse trecho, não frequentado de costa, um corpo, provavelmente levado, poderia muito
bem passar despercebido até que fosse mais uma vez recuperado pela maré. Presos, os
homens cujas esperanças ela tinha acendido, perguntam–se onde e como a babá teria
escapado.
A respeito de sua morte, pode-se, mais uma vez, traçar paralelo com Moisés. Nanny é
obrigada a atravessar os campos sozinha, pois não consegue completar sua missão e, ao
chegar à beira de um penhasco, observa as águas do mar, escolhendo o suicídio. Atira-se do
alto de um penhasco; Moisés é enterrado no alto do monte Nebo. Olho humano algum jamais
viu seus corpos.
De acordo com Ludwig Feuerbach, a água é a imagem da consciência de si mesmo, a
imagem do olho humano - a água é o espelho natural do homem. Na água, o homem se despe
destemidamente de todas as roupagens místicas; à água confia-se ele em sua forma
verdadeira, nua; na água, desaparecem todas as ilusões sobrenaturais. Nela, o homem se
reflete. Nela, o homem põe o que ele é, se projeta. E ao mesmo tempo, nela o homem se vê
espelhado, por ela ele volta a si.128
Nanny, assim como a água, é pessoa transparente, corajosa
e verdadeira; age de acordo com a sua consciência; por isso, torna-se uma grande líder, na
qual o seu povo confia plenamente.
Para José Carlos Bruni, a água é símbolo de regeneração. Apresenta-se de diversas
formas, estando, portanto, ligada à vida de infinitas formas, seja ela indesejável, decaída ou
desejável. Por outro lado, a imersão não é só purificadora, é também regeneradora, opera um
renascimento. É comparável à deposição de Cristo no Santo Sepulcro: ele ressuscita, depois
da permanência nas entranhas da Terra. De forma similar, o batismo por imersão – o único
praticado pela igreja primitiva apostólica- é tido como um exemplo de ritual de purificação e
regeneração. A água apaga a história, pois estabelece o ser a um estado novo. Bruni considera,
ainda, a água um símbolo da morte, devido a sua fluidez e ao fato de como as coisas se
dissolvem nela e desaparecem. ―A purificação é a anulação do impuro, do pecado e do mal; é
a anulação do passado. A água é símbolo de vida e de morte‖.129
Pode-se dizer que Nanny é
símbolo de vida e de morte, pois, no momento em que luta pela liberdade dos escravos está,
128
FEUERBACH, Ludwig. A essência do cristianismo. Porto: Fundação Calouste Gulbenkian, 2002, p. 6-7. 129
BRUNI, José Carlos. A água e a vida. Tempo Social, São Paulo, v. 5, n. 1-2, p. 62, nov. 1994.
62
de uma forma, oferecendo- lhes ou oportunizando- lhes o direito de sonhar e de ter o direito
de fazer suas escolhas, de viver a vida livremente. Simboliza a morte, porque, com o seu
suicídio, a esperança de todos aqueles escravos foi com ela.
Nanny, ao olhar o azul profundo do mar, reflete a respeito de sua missão frustrada de
salvar o seu povo da escravidão, sentindo-se talvez culpada de tantas destruições e de ter
motivado seus irmãos a ter esperança e acreditar que a liberdade seria possível. As águas do
oceano estão sempre em movimento e representam uma situação de ambivalência que é a de
incerteza, de dúvida; são, ao mesmo tempo, a imagem da vida e a imagem da morte.130
Pode-
se contrastar Nanny com as águas do mar, pois a angústia de não saber o que deu errado traz-
lhe grande inquietação, que se transforma em responsabilidade e amargura. A escrava parece
não encontrar outra solução a não ser uma forma de punir a si mesma; também ela não pode
decepcionar o seu povo, voltando à fazenda como uma derrotada. Entregar o seu corpo às
águas do mar é uma forma de atingir a liberdade.
Diante da posição ocupada por Nanny na narrativa, não se percebe a construção de lar
pela protagonista; na verdade, a perspectiva de não-lar é que está presente. Nanny não se sente
associada ao lugar ocupado, não estabelecendo relações de afetividade, familiaridade, bem-
estar, pertencimento e enraizamento. Mesmo sendo bem tratada pela família para quem
trabalha, tem consciência de sua condição de escrava e, portanto, não tem domínio e controle
sobre o seu espaço, no qual está claramente presente o poder classificatório e a diferenciação
das identidades.
O fato de que Nanny lidera e incentiva a rebelião é uma evidência de que, naquele
lugar, não há referências que lhe deem condições de sobrevivência, nem referências
significativas, característica essencial do lar. O lar de Nanny está muito longe dali, em sua
imaginação, no seu desejo de criar o seu espaço de pertencimento, isto é, um lar pessoal onde
poderá articular suas associações familiares e comunitárias e um lar coletivo, caracterizado
pela sua etnicidade, nacionalidade e ideologia.
130
CHEVALIER, Jean; GHEERBRANT, Alain. Dicionário de símbolo: mitos, sonhos, costumes, gestos, formas,
figuras, cores, números. Rio de Janeiro: José Olympio, 1992, p. 592.
63
3.2 Para além da era escravocrata: vidas em contraste
3.2.1 The Cane Cutter
―The Cane Cutter‖ narra a história de dois personagens, Reuben e Silas, ambos
cortadores de cana, que vivem a transição do período escravocrata para o pós-escravocrata.
Reuben é filho de Lizzie, que trabalhava na Casa Grande, encarregada dos afazeres
domésticos, e que tinha sido amada por muitos homens, inclusive o patrão. Após a sua morte,
Reuben, ainda muito pequeno, é criado pelas mulheres mais velhas da senzala: o espírito de
solidariedade entre os negros se faz presente. Trabalha no grupo das crianças até ser forte o
suficiente para cortar cana, evidenciando que a exploração do negro pelo branco vai desde as
crianças pequenas até as pessoas mais idosas, incluindo aqueles escravos que, por algum
motivo, sofrem alguma mutilação. Reuben cresce no meio das canas, não conhece outro
mundo.
Nesta narrativa está muito claro o negro como subalterno do branco, o senhor de
escravos. O mundo que o protagonista conhece é o da servidão, da subalternidade e o da
objetificação. Embora os escravos dessa narrativa não retratem as situações abaixo
mencionadas, faz-se interessante saber algumas estratégias, por eles usadas, no seu convívio
em comunidade, fundamental para sentirem-se unidos num ambiente de tanta agressividade.
Para suportar a sujeição, os escravos costumavam formar uma comunidade coesa:
casavam-se e tinham filhos (mesmo que sejam casamentos não oficiais); adotavam práticas
como ―parentesco fictício‖ - prática de chamar as pessoas coisas como ―irmão‖ ou ―tia‖
mesmo sem nenhum vínculo parentesco. Este tipo de prática permitiu aos escravos sentirem-
se como se estivessem conectados um ao outro. Praticavam suas próprias religiões, diferentes
da do cristianismo praticada pelos proprietários de escravos, como forma de resistência.
Assim, tentavam construir vidas que lhes permitam sobreviver à provação da escravidão.131
O nome do protagonista, Reuben, é homônimo ao do filho primogênito de Jacob no
livro bíblico.132
Seu nome é a combinação de duas palavras: (ra'a) significando ver, olhar,
inspecionar no sentido lateral, e em muitas formas figurativas como perceber, entender.
Também há os derivados (ro'eh), que também significa ver ou uma visão profética; (re'i),
espelho; (mar'a), visão; (mar'a), mirror. A segunda parte do nome Reuben é a palavra (ben),
131
GENOVESE, Eugene D. A terra prometida: o mundo que os escravos criaram. Rio de Janeiro: Paz e terra,
1988, p. 204-205. 132
A BÍBLIA, 2000. Gênesis 29:32.
64
cujo significado é filho, prole.133
Pode-se dizer que, no conto, o nome do protagonista anuncia
sua forma de viver, que é inspecionando, olhando e entendendo as canas. Quanto à acepção de
filho, lembra o fato de que é filho de escrava, podendo-se pensar, com o branco senhor da
fazenda.
A origem de Reuben comprova que a mulher escrava e negra eram vistas como objeto
sexual, o que não foi diferente com Lizzie. É possível que Reuben seja filho do patrão, pois
sua mãe trabalhava na Casa Grande e, por sentir-se inferiorizada ou por causa da situação
servil, permite ser usada sexualmente pelo patrão. Nesse caso, teria havido, de certa forma,
uma ―troca de favores‖, pelo fato de o branco lhe dar emprego e abrigo, além de permitir que
o filho permaneça com ela na casa. Porém, logo que a mulher negra morre, o filho é banido da
casa pela senhora Missie, esposa do proprietário da fazenda. Percebe-se a submissão da
mulher branca, sem contestação, ao poder do patriaraca. Segundo Iara Bongiovani Saffiotti
Heleieth, a abolição da escravatura, obra masculina, provoca uma mudança no sistema de
estratificação da sociedade em castas; porém, não ocorre nenhuma mudança na divisão da
sociedade baseada no sexo.134
Reuben costuma conversar com as canas e não gosta de cortá-las, porque elas fazem-
lhe companhia. Acredita, porém, que elas voltam, tal como os espíritos dos mortos, e brotam
no mesmo lugar onde são ―vitimadas‖. Reuben trabalha com rapidez, apesar de não gostar de
cortar as canas, para agradar o branco. E isso o anima, pois essa crença lhe dá a reputação de
ser o mais rápido cortador da plantação, o que o estimula a trabalhar com entusiasmo.
Em uma manhã, ao cortar cana, o jovem começa a sentir sua cabeça latejar devido ao
cheiro enjoativo do suco de cana doce no ar vindo do moinho do alto do morro. Reconhece
ser o xarope que as crianças adoravam antes de transformar o melado em açúcar. Nesse
momento, traz à memória um fato do passado, uma lembrança da infância quando trabalhava
nos moinhos de cana-de-açúcar.
Mesmo após a abolição, Reuben continua a morar na fazenda, exercendo a mesma
atividade desde criança: cortador de canas. A abolição libertou ao mesmo tempo em que
sentenciou milhares de negros escravos libertos, pois estes foram lançados ao abandono: não
mais eram necessários como mão-de-obra servil e, concomitantemente, foram-lhes negadas as
133
MEANING and etymology of the name Reuben. In: ABARIM publicações. s.d. Disponível em:
<http://www.abarim-publications.com/meaning/reuben.html>. Acesso em: 20 set. 2011. 134
HELEIETH, Iara Bongiovani Saffiotti. A mulher na sociedade de classes: mito e realidade. São Paulo: Quatro
Artes Ed., 1969, p. 151.
65
condições necessárias para a sua sobrevivência: o acesso à terra.135
A libertação dos escravos
deveria ter-lhes assegurado condições reais de liberdade e cidadania, mas o que ocorreu foi a
concentração de poderes sociais e políticos nas mãos de uma elite agrária que continua sendo
a maior beneficiária.
Com o passar do tempo, o jovem passa a ouvir as canas lhe dizerem que nem sempre
cresceriam novamente, pois no momento em que suas raízes são rompidas, elas morrem.
Reuben, então, dá-se conta de que a cana não cresce para sempre e que, eventualmente, sua
raiz é arrancada e substituída por novos cortes. Percebe, assim, que, tal como as canas, é
substituível, o que poderia acontecer no momento em que não fornecesse mais ao branco a
mão de obra esperada. Assim, dá-se conta de que nunca foi realmente valorizado pelo branco:
não é visto nem tratado como ser humano, mas como um valioso cutelo, podendo ser
substituído no momento por lhes dar muito lucro. Toma consciência da sua identidade e do
que o branco tem feito com ela.
As relações entre senhor e escravo caracterizam-se pela tendência ao desprezo e
alienação do escravo, visto pelo seu dono como objeto, um acessório da terra, um animal
humano. Esse sistema levou o escravo a aceitar a sua inferioridade e sua impotência em tentar
uma mudança. Nessa conjuntura, a escravidão e o status reificado do escravo são
naturalizados na mentalidade do proprietário de terras branco, que não vê outra forma de
organização social.136
E, mesmo após a abolição, esta concepção permanece, pois o
proprietário da fazenda demonstra não aceitar esse novo sistema, considerando que a abolição
deixou os escravos livres e os brancos, pobres, insolentes e impacientes. Percebe-se sua
aversão quando tem que ir à cidade para verificar os agentes responsáveis pelo transporte do
seu açúcar, pois não é mais tratado com a cortesia e educação a que sempre havia sido
acostumado na fazenda.
É em uma dessas idas do seu patrão à cidade que Reuben considera o momento
oportuno para demonstrar sua indignação em relação ao branco. Está sob a influência de uma
conversa imaginária com as canas. Estas revelam-lhe que a senhora Missie, proprietária da
fazenda, nunca gostou delas e nem dele, o que leva o rapaz a perceber a exploração à qual
vem sendo submetido. Sua passividade se transforma em exaltação, pois o ex- escravo sente-
se enganado e traído, aflorando-lhe um sentimento de raiva.
135
SILVA, Flavia Aparecida da. Quilombo da caçandoca: identidade e resistência. Ágora: Revista Eletrônica, v.
4, n. 8, p. 94, jun. 2009. Disponível em:
<http://www.ceedo.com.br/agora/agora8/quilombodacacandocaidentidadeeresistencia_FlaviaAparecidad%85.pdf
>. Acesso em: 02 jul. 2010. 136
CARDOSO, 1982, p. 58-59.
66
Hall refere-se à identidade como sendo algo não acabado e, sim, um processo que está
sempre em andamento, surgindo de um preenchimento a partir do exterior pela forma como o
individuo pensa ser visto ou reconhecido pelo outro.137
Assim, o protagonista enfrenta um
conflito de identidade, pois até aquele momento vive sob a ilusão de uma valorização. Então,
como uma forma de rebeldia, deixa-se dominar pela raiva e assassina a senhora, Missie.
A raiva gera impulsos violentos contra os que ferem ou invadem a dignidade do
indivíduo, sendo responsável por atos de violência. A agressividade de Reuben faz pensar que
toma consciência de sua identidade cultural, que até então parecia negar. Pensa que a morte da
senhora branca liberá-lo-ia da escravidão, da exploração e da ilusão.
A outra parte do conto apresenta o personagem Silas como protagonista. Também é
um cortador de cana, negro, ex-escravo. É casado com Millie, e pai de quatro filhos, um dos
quais haviam perdido quando ainda bebê. Esta perda ainda está presente na memória de Silas
e de sua esposa. Silas vive, com a família, numa comunidade negra, em uma pequena casa de
madeira. Sua mulher está feliz, porque o seu marido contrata Cumberbatch, um carpinteiro,
para adicionar uma varanda à casa, o que enche de orgulho Millie.
Sendo assim, pode-se dizer que Silas tem conseguido prosperar, juntamente com a
comunidade. Millie também trabalha em comunidade, com o grupo de mulheres na capina da
plantação e na pequena área atrás da casa. O trabalho em sociedade reforça os laços de
identidade, além de preservar a origem cultural, pois as pessoas mantém unidade grupal e
compartilham uma cultura comum. Todas as manhãs, Silas encontra o seu grupo a caminho
para a plantação.
Silas sonha, por três noites consecutivas, com um nenê morto sentado à cabeceira da
sua cama. A criança sorri, mostrando um único dente de bebê branco contra o negrume de sua
face. Na segunda noite, embora o nenê não apareça, ele sente a sua presença. Estão na sacada
da Casa Grande e, dentro, está uma mulher branca de camisola, quando entra,
silenciosamente, um homem, brilhando de óleo e suor. Carrega uma faca, e mata a mulher em
três partes. Silas percebe que o assassino tem uma marca no ombro. Na terceira noite, a
criança reaparece sentada à cama e com um sorriso inocente entrega-lhe uma faca. Nesse
momento, Silas acorda assustado apertando o seu travesseiro e segurando-o carinhosamente
contra o seu peito.
Para Sigmund Freud, em sua obra A interpretação dos sonhos, os sonhos não são
destituídos de sentido e nem são absurdos; não implicam que uma parcela da nossa reserva de
137
HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade. Trad. Tomaz Tadeu da Silva; Guaciara Lopes
Louro. São Paulo: DP&A, 2005, p. 39.
67
representações esteja adormecida enquanto outra começa a despertar. Ao contrário, são
fenômenos psíquicos de inteira validade, são realizações de desejos produzidos por uma
atividade mental altamente complexa. Muitas vezes, em diversas situações da vida, o sonhar
toma o lugar da ação.138
Assim, pode-se dizer que se o sonho é uma forma inconsciente de
realizar esse desejo.
Na manhã seguinte, Silas opta por não contar tudo à esposa, omite a parte da criança
para não magoá-la, já que Millie ainda sofre muito com a perda do filho. Pode-se pensar que
ela tenha perdido essa criança na época em que exercia atividades mais pesadas nas
plantations. Ela, então, aconselha que o marido vá à igreja e coloque tudo perante Deus. Silas
vai trabalhar pensativo, não se esquece do seu sonho.
O fato de o bebê dar uma faca a Silas representa cobrança de atitude contra o branco,
responsável pela sua morte, ainda que indiretamente, já que as mulheres trabalhavam tanto
quanto os homens nas plantations. A marca no ombro é lembrança da escravidão, pois os
escravos eram marcados, como gado, para impedir sua fuga e imprimir a marca da
propriedade em seu corpo. A essa possibilidade, associam-se lembranças sobre Millie, que
vêm à memória de Silas, enquanto trabalha. Fora uma jovem magra, ativa e graciosa, notada
por ele desde o primeiro dia que ela se juntou ao grupo de mulheres do campo. Questionando-
se a respeito dos seus sonhos, lembra que sua avó dizia que os espíritos estavam sempre por
perto, fazendo sentido, então, o conselho dado pela esposa, o de ter Deus ao seu lado. E nesse
instante, vê o sangue.
No final do dia, Silas percebe que as canas sangram abundantemente ao serem
cortadas, um sentimento desconfortável era ignorado pelo cortador. Percebe que há sangue
por tudo, as canas sangram abundantemente ao serem cortadas; o suco da cana se transforma
em sangue. Essa imagem o faz pensar na história na qual a água se transforma em vinho.
Essa imagem faz alusão ao primeiro milagre de Cristo, realizado nas Bodas de Caná
de Galiléia, quando, a pedido da mãe, ajuda os anfitriões, embaraçados com a falta de vinho,
ordenando-lhes que lhe tragam seis talhas cheias de água. Então, transforma a água em vinho
de qualidade superior ao que estava sendo servido inicialmente. Por esse milagre, Jesus deu
princípio aos seus em Caná de Galiléia: e assim fez que se conhecesse a sua glória, e seus
discípulos creram nele.139
No conto, porém, não há indícios de que a transformação tenha se efetuado em
benefício do escravo liberto. Pelo contrário, a simbologia parece invertida, e o suco da cana,
138
FREUD, Sigmund. A Interpretação dos Sonhos. São Paulo: IMAGO, 1999, p. 6; 10. 139
A BÍBLIA, 2000, João 2. 1:11.
68
associado ao contexto do trabalho árduo, em vez de vida, parece apontar para um sistema
onde o operário ―sangra‖, dando seu suor e energia sem que haja retribuição econômica e
social proporcional ao esforço despendido. Nesse sentido, associar o suco da cana com a água,
que é símbolo da vida espiritual, símbolo da regeneração, da vida, é profundamente irônico.140
O sangue, conforme já comentado anteriormente no conto ―The Gully‖, é associado a uma
substância vital, e por sua notável aparência, é possuidor de muitos significados simbólicos,
destacando-se três grupos: sangue como vida, sangue como família ou ancestralidade e sangue
como sacrifício.141
Evidentemente, encontra-se claro o contexto de ancestralidade: trata-se de
etnia historicamente sacrificada, explorada, discriminada. Por outro lado, como já comentado
anteriormente neste parágrafo, o sangue que se esvai aponta para a cessação da vida, ou, no
contexto do conto, para sua pouca valorização, no contexto da objetificação do negro.
Em seguida, vê um poço coberto por uma vegetação, sobre o qual o nenê do sonho
está sentado, sorrindo e acenando para Silas, que vai à sua direção carregando a sua faca suja
de sangue. Quando se aproxima, nota uma figura adulta entre as folhas, segurando uma cutelo
manchada de sangue; tem uma marca em seu ombro.
Nesse contexto, pode-se dizer que, apesar de viver em liberdade, Silas permanece
preso às lembranças de uma época de sofrimento e revolta; sente-se explorado e roubado, pois
a escravidão, além de oprimi-lo, roubou-lhe uma vida, seu filho. Silas, talvez, tenha carregado
consigo um sentimento de mágoa e ódio do branco, e desenvolve-se sentimento da vingança,
ainda largamente inconsciente.
Nessa narrativa, em relação ao senso de lar, pode-se dizer que Reuben não apresenta
características para que o lugar onde vive possa ser chamado lar, pois não tem controle sobre
o seu espaço, e vive sob as ordens do branco, mesmo após a abolição, permanecendo na
fazenda. Além disso, vive praticamente isolado, conversa apenas com as canas, o que não lhe
permite desenvolver a dimensão componente social, que está relacionado a relacionamentos
familiares e comunitários. O enraizamento, que está associado ao pertencimento do indivíduo
ao lugar, também é desconstruído quando ele se decepciona com Missie e percebe sua
identidade cultural.
Com o personagem Silas, há o componente social, uma vez que vive em comunidade,
pois o lar coletivo e pessoal estão bem presentes, isto é, existe uma identificação, referências,
além de condições sociais e habituais. Tem controle e domínio sobre o espaço: manda
140
CHEVALIER; GHEERBRANT, 1992, p. 17-18. 141
FERBER, Michael. A Dictionary of Literary Symbols. 2. ed. New York: Cambridge University Press, 2007, p.
29.
69
construir a casa, reforma-a, diferenciando-a das demais, dispõe do terreno anexo à casa como
melhor lhe parece, e vive harmoniosamente com a esposa e filhos. Mesmo em sua
simplicidade, sua casa é lar onde se cultiva, valores relacionados à família e domesticidade.
Contudo, a paz é anterior aos sonhos, e deixa de existir quando é lembrada a época da
escravidão.
3.2.2 The Gully
O conto ―The Gully‖ é composto por duas partes, protagonizadas por,
respectivamente, Quashebah e I-Malachi. A primeira está ambientada no período escravocrata
no Caribe, quando o negro era usado como mão de obra nas plantations, sobretudo na
agricultura. A segunda tem lugar no século XX, como pode se inferir pela referência ao
rastafarianismo. Embora em contextos históricos diferentes, ambas as narrativas têm um
ponto em comum, a constante busca de um lugar onde se possa sentir protegido, livre, um
lugar que possa chamar de lar. Analisa-se o conto a partir do estudo de metáforas que o
enriquecem: concha, noite, sangue, tempo, vegetação, terra, água e raízes.
A autora intitulou a primeira parte Quashebah, o que remete à figura histórica de
Barbados: escrava negra pertencente à plantantion de Codrington, de onde tentou fugir cinco
vezes, entre 1775 e 1784.142
A palavra também designa o nome de uma cidade situada na ilha
de Barbuda, do Caribe Oriental e parte do estado de Antígua e Barbuda.
Em 1674, Sir Christopher Codrington chegou à ilha e estabeleceu a primeira plantação
de açúcar. A sua propriedade prosperou bastante no final desse século, principalmente devido
à chegada de escravos e à plantação de cana-de-açúcar em áreas florestais que foram
desbastadas. Sir Codrington arrendou à Coroa Britânica a ilha de Barbuda para cultivo, de
forma a alimentar os escravos, dando o seu nome à maior localidade dessa ilha.143
Grande parte dos escravos de Codrington eram trabalhadores agrícolas e, desde os sete
ou oito anos de idade, eram colocados para trabalhar. A disciplina era draconiana, e a fuga de
um escravo por mais de trinta dias significava a morte. A tentativa de fuga era comum,
entretanto; a recompensa pela localização de um escravo fugido era de um galão de rum. Em
142
HOCHSCHILD, Adam. Enterrem as correntes: profetas e rebeldes na luta pela libertação dos escravos. Trad.
Wanda Brand. Rio de Janeiro: Record, 2007, p. 89-90. 143
ANTÍGUA e Barbuda. In: PORTAL São Francisco. s.d. Disponível em:
<http://www.portalsaofrancisco.com.br/alfa/antigua-e-barbuda/continentes-antigua-e-barbuda-3.php>. Acesso
em: 25 maio 2011.
70
algumas plantations, um longo sopro em uma concha de caramujo era usado como um alarme
para indicar uma fuga.
Inicialmente, o conto ―The Gully‖ narra como sua protagonista, Quashebah, é muitas
vezes forçada a se sujeitar às vontades de Blackett, o senhor de escravos da fazenda. Porém, a
jovem escrava não aceita essa exploração do branco. Ao contrário das outras escravas,
submissas e sem esperança, opõe-se à condição de objeto descartável. Diante disso, enfrenta
diversas situações de dor, exaustão, revolta, e até aborto. Sempre em busca de, pelo menos,
momentos de liberdade, vê essa possibilidade se materializar somente quando encontra um
barranco, no qual se refugia em suas fugas periódicas.
Quashebah recorre a devaneios para poder continuar vivendo livre, de acordo com a
sua consciência. Todas as vezes em que é coagida a manter relações com Blackett, a escrava
conduz seu pensamento para longe dali, imaginando seu corpo dissociado de si, inerte,
incapaz de se mover. Dessa forma, concebe o corpo como uma concha, algo de que, como um
molusco, pode se desfazer, preservando o resto de sua materialidade:
When Blackett had first forced her, she had lain under him mute and hurting,
separating herself from her body and from the business that Blackett was doing.
Every time after that she had done the same, and had managed to will her spirit
away, leaving the shell of her body behind. […].144
Assim, imaginado como uma concha, seu corpo meramente serve de invólucro a seu
eu real. Essa concepção permite à escrava perceber o corpo como um não-eu, separado de sua
real essência, levando-a a uma desvinculação que lhe possibilita sobreviver à humilhação de
uma possessão brutal e não desejada, já que, ao separar-se do invólucro, deixa também de
lado o ato agressor.
A imagem da concha simboliza as situações em que a escrava busca uma forma de
refúgio e abrigo. Gaston Bachelard, em seu livro A poética do espaço, associa a figura da
concha a um lugar de morada, a uma casa, a uma caverna, a um lugar de proteção, enfim, no
qual estão ―alojados‖ o inconsciente e as lembranças do indivíduo.145
Assim, a concha é o
invólucro do corpo, como a casa é o lugar de acolhimento. Na imagem empregada no conto, a
concha não representa uma proteção ao corpo de Quashebah, pois ela, na condição de escrava,
144
HENFREY, June, 1994, p. 27. ―Quando Blackett aforçara pela primeira vez, ela se deitou sob ele, muda e
ferida, separando-se do seu corpo e do que Blackett estava fazendo. Depois, todas as outras vezes ela fez o
mesmo, e conseguira fazer o seu espírito sair de si, deixando a concha do seu corpo atrás. 145
BACHELARD, Gaston. O novo espírito científico. A poética do espaço. Trad. Remberto Francisco Kuhnen,
Antônio da Costa Leal, Lídia do Valle Santos Leal. São Paulo: Nova Cultural, 1988, p. 109‖.
71
não pode evitar o abuso. Seu corpo-concha, porém, provê proteção e segurança para sua alma,
constituindo-se em envoltório protetor para a dimensão emotiva e volitiva.
Bachelard considera a imagem como um excesso da imaginação que ultrapassa a
realidade. Especialmente acerca da concha, pensa que essa figura acentua a dialética do
pequeno e do grande, do escondido e do manifesto, do plácido e do ofensivo, do fraco e do
vigoroso.146
Tais simbologias podem ser identificadas no conto mediante as situações vividas
pela escrava e o branco. Na dialética do pequeno e do grande, tem-se a própria situação vivida
por Quashebah, que é a de uma mulher negra abusada e explorada pelo branco. Essa condição
pode ser relacionada com a do escondido e do manifesto, pois ela se fecha na sua concha para
suportar as manifestações de prazer do branco. Nesse sentido, associa-se à do fraco e à do
vigoroso, já que a escrava é vista aos olhos do branco como inferior, como objeto, uma
mercadoria, e o capataz como o proprietário, o superior. Porém, no universo do conto, essa
simbologia apresenta-se de forma invertida, pois Quashebah se apresenta como extremamente
forte e resistente, frustrando ao feitor, que fica impotente frente a ela. Quanto às conotações
do plácido e a do ofensivo, associam-se aos momentos em que a escrava escapa para o
barranco, mesmo sabendo que ao retornar ganhará muitas chibatadas, que tornarão sua pele
em carne viva. Diante de tanta brutalidade, sufoca, porém, seus gritos de dor, mantendo a
calma diante do insulto e da humilhação sofrida.
Seguindo sua discussão sobre as imagens relacionadas a conchas, Bachelard registra
como estas apresentam formas variadas, e destaca a Concha Bivalve de Vênus, na qual
Robinet divisa a forma da vulva de uma mulher.147
A associação da concha à mulher traz à
lembrança desta pesquisadora a forma como June Henfrey usa a imagem da concha em
relação ao corpo de Quashebah. Como já referido, essa imagem enfatiza a exploração e
objetificação da escrava pelo feitor. Aparentemente, tal como a concha inerte, Quashebah não
demonstra ter vida diante de Blackett: é apenas o corpo de uma mulher diante da exploração
do capataz, não havendo naquele momento qualquer sinal de emoção. Quando fica inerte aos
prazeres do senhor-de-escravos, ela abandona a concha, o seu corpo. Assim, pode-se
relacionar o abandono da concha-corpo nesse ato de resistência à metáfora da concha vazia e
do ninho vazio, que sugerem devaneios de refúgio, segundo Bachelard.148
Inicialmente, a imagem do ninho é de uma morada quente e terna para o pássaro, uma
casa de vida, que também está associada à imagem de descanso e tranquilidade. Essa imagem
146
BACHELARD, 1988, p. 182. 147
Ibidem, p. 183; 184. 148
Ibidem, p. 179.
72
desencadeia no indivíduo o devaneio da segurança, originando seu instinto de confiança no
mundo, dando uma ideia de refúgio absoluto. Em seu poder onírico, a casa é um ninho no
mundo onde não existe a experiência da hostilidade e da agressividade.149
Diante do processo de animalização ao qual Quashebah está submetida, distanciar seu
pensamento da brutalidade intrusiva do senhor é uma forma de manter a sua dignidade
intocada. Através do sonho e da imaginação, ela poderia ter o ninho que quisesse, evitando a
realidade perversa à qual estava presa, já que se sente desconfortável e considera inadmissível
ter que aceitar fazer algo à força, Quashebah procura manter o espírito e a imaginação em
algo que ela desejasse ou a fizesse querer continuar sobrevivendo.
Ainda sob o tema da concha, Bachelard comenta como esta remete à imaginação a
dialética do ser livre e do ser acorrentado.150
Essa imagem pode ser associada à viagem da
protagonista nos navios negreiros. A escrava lembra quando vive livremente no seu povoado,
sua captura e o momento em que é atirada para dentro de uma ―casa estranha feita de pedra‖,
onde passa pelas mais terríveis experiências de exploração, abuso e aniquilamento da
dignidade humana. Para sobreviver a essa realidade, mantém-se fechada na sua concha, onde
se refugia da dor, da exaustão e do desespero, pois sabe que não pode lutar contra a
superioridade estabelecida pelo branco. Sendo assim, consegue sobreviver à travessia, porque
mantém a sua alma protegida: ―[…] During the awful crossing in the big boat, she had stayed
alive by knowing that none of it was touching the real Quashebah, whom she was able to keep
away from the pain, the exhaustion and the despair‖.151
Conforme Bachelard, nas conchas comumente chamadas Grande Pia de Água Benta, a
natureza delineia um imenso delírio de proteção, uma verdadeira monstruosidade de
proteção; força que acompanha a grandeza e a massa de suas muralhas. Embora as conchas
sejam frequentemente associadas a objetos frágeis, moradas de pequenos moluscos, há
conchas de tamanho bastante invulgar. Uma delas, a Grande Pia de Água Benta, que tem em
cada uma de suas valvas um peso de 250 a 300 quilos e um metro e meio de comprimento,
enquanto o molusco pesa apenas catorze libras. Com essas conchas, pode-se traçar um
imenso sonho de proteção, um delírio de proteção e chegar a uma monstruosidade de
proteção. Assim, Bachelard toma a imagem dessa grande concha gigante como sinônimo de
149
BACHELARD, 1988, p. 169-177. 150
Ibidem, p. 181. 151
HENFREY, 1994, p. 28. ―[...] Durante a terrível travessia no grande navio, ela permaneceu viva por saber que
nada daquilo estava atingindo a real Quashebah, a quem ela era capaz de e manter longe da dor, da exaustão e do
desespero‖.
73
proteção em grau superlativo.152
Então, pode-se dizer que Quashebah sentia-se dominada
pelo imenso delírio do amparo da Grande Pia de Água-Benta, a qual a acompanha,
abraçando-a como uma fortaleza, e mantendo-a protegida.
Ainda como estratégia para escapar à violência e ao arbítrio do senhor branco,
Quashebah encontra no barranco um lugar para si, livre do olhar do Outro. Nesse espaço, ela
tem o controle, pois é o seu lugar, o seu ninho, para onde retorna sempre que se sente cansada
ou quando seu espírito ameaça ser quebrado por tantas chicoteadas. Lá, ela não precisa ficar
inerte, nem abandonar a sua concha e separar a sua alma do seu corpo. Ao contrário, é o único
lugar no qual ela pode ter liberdade não só para se movimentar ou para sonhar, mas para ser
ela mesma. Nesse sentido, o barranco torna-se invólucro para a sua essência, o alimento para
a sua alma, o seu espaço protegido, o seu mundo, o seu lar.
A esse respeito, lembra-se que, como Theano S. Terkenli registra, um importante fator
para a formação da noção de lar é a possibilidade de controle sobre ele. Ademais, o local em
que a escrava se acolhe lembra a sensação de refúgio e bem estar, tão amplamente relacionado
a regiões-lar.153
Além de refúgio, o barranco-lar proporciona à escrava um contexto de
autoidentificação, como é característico das regiões-lar.
Assim, pode-se dizer que Quashebah encontra paz, segurança e felicidade no barranco,
porque, além de ter controle sobre ele, relaciona com a sua África ao ver a entrada
parcialmente encoberta por arbustos, com suas raízes e árvores frutíferas, e ao escutar o
barulho do mar quando encosta seu ouvido nas suas paredes, e ao sentir a umidade, o cheiro
da terra, da vegetação. Lá, pode lembrar livremente da sua cultura e se sentir dona daquele
lugar, passando a desfrutar da liberdade tão sonhada.
A escrava descobre o seu local de refúgio numa noite chuvosa, quando opta por fazer
um aborto, levando consigo plantas e medicamentos feitos pela velha Mercy, que
funcionavam muito bem. Nessa noite, expulsa do seu corpo algo que a fazia se sentir suja e
abusada, pois aquela criança representa desonra, posse e imposição, o que lhe impossibilitaria
atribuir qualquer sentimento afetivo e materno a ela. ―She did not want this child. She would
not be able to love it, to feel it as hers. It was Blackett‘s and his alone. ―[…] Her true self
played no part in the rough couplings which left her feeling soiled and abused‖.154
152
BACHELARD, 1988, p. 189. 153
TERKENLI, 1995, p. 324- 327. 154
HENFREY, 1994, p. 28. ―Ela não queria essa criança. Ela não seria capaz de amá-la, senti-la como sua. Era
apenas de Blackett. Seu verdadeiro eu não participou desse acoplamento violento que a fez se sentir-se suja e
abusada‖.
74
A opção narrativa por situar a fuga na noite leva a uma reflexão sobre a simbolização
do espaço. Michael Ferber, em A Dictionary of Literary Symbols, descreve a noite como a
mais antiga das coisas, a escuridão que tudo precede ao vazio ou caos. Segundo ele, poetas
gregos e romanos a relacionam com silêncio, solidão, adormecer. A escuridão da noite estaria
vinculada ao mal, ao pecado, ao perverso, ao esquecimento, à mentira, à falsidade.
Representa, ainda, a morte e é tradicionalmente considerada um momento para meditação e
estudo.155
Ao pensar a noite no conto ―The Gully‖, pode-se dizer que Quashebah escolhe
justamente este período para o ato abortivo, porque era uma forma de se proteger e de anular
sua culpa. Precisava ficar completamente sozinha para assumir o seu pecado e o preço por não
se reprimir e aceitar que a sua alma seja transgredida.
Da mesma forma, pensa-se importante atentar à imagem da chuva, não apenas como
um elemento que constitui um cenário, mas para o seu papel de representação numa
linguagem figurada. Dentre os vários aspectos simbólicos da chuva, Michael Ferber a associa
ao sofrimento: é um símbolo relacionado aos momentos infelizes da vida. Por ouro lado,
simboliza regeneração, limpeza. Na poesia latina, a chuva, enviada do céu, é a semente que
fertiliza a terra. Um sentido associado, então, é o de cura para a sede ou aridez espiritual.156
Ao falar da chuva, não se pode deixar de associá-la aos trovões e relâmpagos. Segundo
Ferber, de acordo com os hebreus, gregos e romanos era por meio deles que os deuses se
manifestavam nos céus. Na origem latina, podem representar revelação, associando os flashes
de relâmpagos a alguma coisa que é quebrada pela magia.157
O significado da chuva parece ironizar a situação vivida pela protagonista, pois denota
fecundidade, vida, mas naquele momento a mulher negra estava optando por tirar uma vida
para salvar outra, ou seja, para continuar ―vivendo‖ dentro de suas crenças e princípios
Quashebah prefere esquecer o seu desejo de ser mãe. Ao tentar correr sob a terra encharcada,
ouve o barulho dos trovões no céu e a luz de seus flashes aponta para ela, como se os deuses
a acusassem e a punissem pela sua atitude egocêntrica. A chuva é sua aliada, pois, além de
lhe ajudar a não deixar rastros, lavaria a sua alma e, ao inundar o seu corpo, as águas
embeberiam o espírito de pureza e o hidratariam, mantendo-o vivo.
O fato de os negros viverem em cabanas e o senhor de escravos, Blackett, em uma
residência atrás da Casa Grande, distante dos alojamentos dos escravos, leva à percepção de
que aos escravos não se cogita o direito a momentos de vida privada. A hierarquia se faz
155
FERBER, 2007, p. 137-138. 156
Ibidem, p. 165. 157
Ibidem, p. 115.
75
presente, o proprietário das plantations vive na Casa Grande, em seguida o capataz e, a
alguns metros de distância, ficam as cabanas para os subalternos. A eles basta apenas um
abrigo, já que estão lá para servir ao branco, sendo, portanto, dispensável qualquer coisa que
possa se parecer a uma casa ou a um lar. Ademais, é de costume as escravas servirem ao
senhor-de-escravos sempre que lhes são solicitadas, não sendo diferente para Quashebah,
mesmo naquela noite chuvosa.
Diante disso, pode-se novamente recorrer à metáfora da concha, mas não como um
abrigo ou um lugar de refúgio. Associa-se aqui ao simbolismo de fecundidade. Conforme
Mircea Eliade, a sua semelhança com a vulva contribui para permitir essa analogia, às vezes
inscrita nas designações dos moluscos bivalves, como, por exemplo, o antigo nome
dinamarquês da ostra Kudefisk (Kude = vulva), que é associada ao órgão genital feminino.158
Apesar da escuridão, caminha em direção ao muro de pedra que marca a divisa da
fazenda, cujo nome era Stone-wall Field. Descobre que não está mais na plantation ao
tropeçar em terreno pedregoso e ao sentir a presença de arbustos, pois a sua infância na África
lhe desenvolveu um reconhecimento de mundo natural. O muro representa divisão, fronteira,
podendo, ainda, se fazer uma associação com prisão e isolamento, situações que já tinha
vivenciado no navio negreiro. Ao perceber que uma rocha está quase seca, deita-se para
descansar e esperar a noite passar. Nesse instante de segurança, começa a sentir os efeitos dos
remédios de Mercy: fortes dores indicavam que se inicia o processo do aborto. Percebe que o
sangue escorria.
O sangue, conforme Ferber, por ser uma substância vital e por sua notável aparência, é
possuidor de muitos significados simbólicos, destacando-se três grupos: sangue como vida,
sangue como família ou ancestralidade e sangue como sacrifício. Na época de Hipócrates, o
sangue era considerado um dos quatro fluidos vitais ou humores, e o seu equilíbrio
considerado essencial para a saúde e a sanidade humana. Ferber comenta como Robert
Burton, em seu livro Anatomy of Melancholy, interpreta o sangue como ―um quente, doce
temperado, humor vermelho,‖ geralmente relacionado a algo ―agradável, bem-disposto,
alegre‖ ou ―esperançoso, otimista‖. Pode também significar ―corajoso‖.159
Nesse contexto, o sangue que flui da mulher representa sua coragem em sacrificar
uma vida para continuar se mantendo fiel aos seus ancestrais e à sua integridade, pois aquela
criança seria uma prova concreta da exploração e aceitação de sua anulação como sujeito. Por
158
ELIADE, Mircea. Imagens e símbolos: ensaio sobre o simbolismo mágico-religioso. Chicago: Artes e
Letras/Arcádia, 1979, p. 125. 159
FERBER, 2007, p. 29.
76
outro lado, significa esperança de um dia ser livre para fazer suas escolhas e viver com
dignidade.
Quando entra no barranco, ao reconhecer as árvores frutíferas, Quashebah tem a
impressão de estarem dando-lhe boas-vindas. Pensa o lugar como a sua África, pois somente
em sua terra poderia desfrutar de momentos de felicidade e de calmaria. Essa sensação de
bem-estar e de proteção vem ao encontro do pensamento de Ferber ao dizer que arbustos,
raízes e árvores frutíferas simbolizam algo que pode crescer e morrer: pessoa família, nação,
tradição cultural.160
É por meio da memória que Quashebah refaz seu senso de lar, pois é
pelas lembranças do passado que conserva uma ligação com a sua terra natal, e os dias em que
era livre. No barranco, Quashebah encontra o seu espaço, o seu lugar onde ela pode ser livre
para sonhar e para ser ela mesma. O barranco passa a ser a sua concha, a sua ―cidade
fortificada‖, que atribui à fantasia uma intimidade completamente física: suas sólidas paredes,
com sua estrutura fechada, transmitem segurança que se associa à ideia de habitação, de casa.
Acerca dessa concepção, Bachelard alude a Bernard Palissy que, na sua obra Recepte
Veritable (Receita Verdadeira), desenvolve a metáfora da ―cidade fortificada‖ após observar
―uma pequena lesma que construía sua casa e sua fortaleza com a sua própria saliva‖.161
Assim, pode-se entender que cada ser encontra uma forma de sentir-se protegido daquilo que
lhe amedronta. A lesma é um molusco frágil, mas a sua casa lhe atribui um significado de
proteção, é a forma que encontra para se proteger do ―inimigo‖. Assim acontece com
Quashebah: o barranco é o local que encontra para se proteger da violência do branco. Não
tem portas, nem janelas, mas para ela significa segurança, na sua imaginação, é a sua ―cidade
fortificada‖.
Torna-se comum para Quashebah refugiar-se na sua ―concha‖, pois, diante de tanta
violência e crueldade que é obrigada a suportar, sente-se cansada e necessita alimentar a sua
alma fugindo, então, para o seu lugar de refúgio. As centenas de chicoteadas comumente
levadas ao retornar para a plantation não a abalam. Volta tão fortalecida que a força de cada
chibatada, apesar de lhe deixar marcas na pele, não consegue atingir o seu espírito. A
protagonista é como o caracol, cuja casa aumenta à medida que o corpo que a habita cresce:
toda vez que ela retorna daquele lugar sente-se mais robustecida, e a sua casa, a sua concha,
parece se tornar ainda maior.
Anos depois, mesmo quando Quashebah não consegue mais correr até o barranco por
se sentir cansada e enfraquecida, mantém em seus devaneios a presença daquele lugar,
160
FERBER, 2007, p. 219. 161
BACHELARD, 1988, p. 192-195.
77
associando-o a convicções do refúgio. O barranco continua, imaginativamente, a ser seu
ninho e a sua concha, para transformar a sua vida.162
She continued to visit the gully in her mind long after she had ceased to do so
physically. Working in the fields on hot afternoons, she would conjure up its cool
dampness, the smell of soil and vegetation, the sound of buried water to be heard
when she pressed her ear against the wall of its caves, like the sound of the sea in a
conch shell. She would have liked to have gone there to die when her time came, but
feared that in death she might then yeld up the secret of its whereabouts, which she
had guarded through her lifetime.163
Bachelard faz menção ao Abade de Vallemont, o qual destaca que os caracóis, por
construírem uma pequena casa que carregam consigo, estão sempre em casa, seja qual for a
terra para onde viaje.164
De forma análoga, a escrava não precisa mais ir até a caverna para
gozar da percepção de estar no lar, pois já o carrega consigo, desencadeando o devaneio da
segurança que pode evocar de qualquer lugar, e, na imaginação, dá-lhe continuidade ao seu
sonho de liberdade.
A segunda parte do conto ―The Gully‖ intitula-se ―I-Malachi‖, denominação que
corresponde ao nome de seu protagonista. I-Malachi está à procura de um lugar, de um espaço
próprio, onde possa sentir-se protegido, assim como seus irmãos rastafaris. Busca uma
morada onde se sinta livre das marcas da Babilônia. A referência não é ao grande império da
Antiguidade, mas antes à sua evocação simbólica no livro de Apocalipse: a mulher chamada
Babilônia, que se assenta sobre uma besta de sete cabeças e dez chifres, segurando uma taça
em sua mão. Essa mulher é descrita como ―a mãe das prostitutas‖: ―Com ela prostituíram os
reis da terra, e os habitantes da terra se têm embriagado com o vinho de sua prostituição‖.165
Nesse contexto, a mulher é símbolo de confusão, e o vinho que leva em sua mão é uma
representação das falsas doutrinas com que tem enganado a grande maioria dos habitantes da
terra, em uma analogia ao costume, entre a antiguidade oriental, de os exércitos vencedores
atordoarem com vinho aos inimigos que subjugavam. 166
Insinua-se, assim, no conto, a noção
de que I-Malachi é líder de uma comunidade que pretende se isolar de uma sociedade que
considera corrupta.
162
BACHELARD, 1988, p. 187. 163
HENFREY, 1994, p. 36. ―Ela continuava a visitar a caverna em seu pensamento muito depois de cessar de
fazê-lo fisicamente. Trabalhando nos campos, nas tardes quentes, ela evocaria sua umidade, o cheiro de terra e
da vegetação, o som da água escorrendo por debaixo do solo, que ela ouvia quando pressionava o ouvido contra
a parede das cavernas, como o som do mar em uma concha. Ela gostaria de morrer lá quando sua hora chegasse,
mas temia pelo segredo do seu paradeiro, o qual ela tinha guardado por toda a sua vida‖. 164
BACHELARD, 1988, p. 188. 165
A BÍBLIA, 2000, Apoc. 17:2. 166
ANDERSON, Roy Allan. O Apocalipse revelado. São Paulo: Casa Publicadora Brasileira, 1977, p. 191-195.
78
I-Malachi se depara diante de uma estrada que dá para um povoado pelo qual passa
movimentada rodovia. Encontra, então, um barranco que considera adequado para se instalar
com o seu grupo, supostamente o mesmo onde Quashebah costumava se refugiar. Porém,
devido ao progresso, o local encontra-se bastante modificado: de grandes arbustos e pedras,
está cercado por extensas áreas de terras cultivadas e casas ao fundo. Tais transformações no
cenário levam à percepção de que a narrativa está ambientada em período bastante posterior
ao em que a primeira narrativa do conto.
Inicialmente, faz-se importante comentar quão significativo é o nome do protagonista,
para que se possa atingir uma melhor compreensão da sua representação nesta narrativa.
Malachi (Malaquias), em inglês, é o último dos doze profetas do Antigo Testamento. O nome
significa ―meu mensageiro‖, em hebraico. Suas crenças incluem pureza ritual de sacrifícios,
os males dos casamentos mistos e do divórcio e o dia da vinda do julgamento.
Semelhantemente, o personagem Malachi partilha algumas das características do profeta do
Velho Testamento: costuma ter visões, uma vida simples, ressalta fortemente conduta e as
questões morais, insiste em aplicar à vida aos eternos princípios de Deus, defende ética e se
apresenta como reformador moral,167
embora a maneira como desmascara os desmandos
sociais pareça sugerir certo desequilíbrio mental.
I-Malachi se estabelece no barranco com mais seis homens, seis irmãos de seita,
sendo ele o mais velho deles. Sua proposta é organizar aquele lugar de tal modo que possam
habitá-lo e, além de plantarem bananas e figos, com sobras de tiras de borrachas fabricariam
sandálias, as quais venderiam na cidade como forma inicial de sobrevivência. No decorrer da
narrativa, o profeta tem visões acerca de uma mulher africana, provavelmente Quashebah, que
mais tarde se confundirá com outra mulher, Doris, a qual aparece no barranco com duas
crianças, dizendo serem filhos de um dos irmãos. Essa mulher efetivamente vem a infiltrar-se
entre eles, vindo a desestabilizar o grupo.
Após estabelecidos no barranco, este passa a ser a casa para esse grupo, o seu lar.
Segundo Bachelard, em seu livro A poética do espaço, o indivíduo se enraíza num ―canto do
mundo‖; a casa representa este ―canto do mundo‖, sendo o primeiro universo do indivíduo,
um verdadeiro cosmos. Todo o espaço habitado traz a essência da noção de casa, e o ser
abrigado vive a casa tanto em sua realidade como em sua virtualidade, através de
pensamentos e sonhos.168
167
BOOK of Malachi, Malachias. In: BELIEVE. s.d. Disponível em: <http://mb-
soft.com/believe/txs/malachi.htm> Acesso em: 25 maio 2011. 168
BACHELARD, 1988, p. 112.
79
O espaço escolhido por I-Malachi dá-lhe a sensação de bem-estar e segurança, uma
morada que pode ser relacionada à metáfora da concha, de refúgio. Além disso, também passa
a ser o seu lar, pois, segundo Terkenli, lar não se refere apenas a um lugar que dê ao sujeito
condições físicas ou espaciais, mas também condições habituais e sociais, no qual as pessoas
se identificam através de algumas medidas de controle.169
Dentre essas medidas, I-Malachi
decide a proibição do envolvimento com mulheres, pois estava determinado a viver uma vida
simples longe das tentações de Babilônia, a mulher decaída.
Pode-se, contudo, também pensar esse lugar simples como uma moradia em que a
segurança e a felicidade podem desencadear o devaneio da solidão. Como Bachelard afirma,
―todo canto de uma casa, todo ângulo de um aposento, todo espaço reduzido onde gostamos
de encolher-nos em nós mesmos e, para a imaginação, uma solidão, ou seja, o germe de um
quarto, o germe de uma casa‖.170
Henri Bachelin relaciona o centro da casa a um centro de força inserido em uma zona
de proteção maior. A simplicidade da cabana remete a lendas, e à imagem da cabana do
eremita, onde se aprofundam lembranças vividas, e deslocam-se recordações vividas para se
tornarem lembranças da imaginação. Em tal lugar, localiza-se aquele que está só diante de
Deus, que se isola do mundo para meditar, abstendo-se de qualquer tipo de riqueza, e
acolhendo a pobreza com feliz intensidade em seu refúgio absoluto.171
Diante disso, pode-se
dizer que I-Malachi apresenta semelhanças com um eremita.
Ao compararmos a ideia de barranco para Quashebah e para I-Malachi, percebe-se que
está associado à noção de proteção, concha, abrigo e lar, porque lhes dá segurança e liberdade
para que possam agir de acordo com os seus valores e crenças. Está relacionada à cabana,
metáfora que lembra seu refúgio na solidão, com a intenção de encontrarem momentos de paz
e alimentação espiritual.
No momento em que Doris aparece na caverna com as duas crianças, dizendo serem
filhos de I-Zelius e obrigando os homens a aceitarem a sua presença, passa a causar grandes
preocupações e inquietações ao líder do grupo, o qual a associa com Jezabel. Duplica-se,
assim, no conto, a noção da mulher como símbolo de degradação. inicialmente, a mulher já
havia sido sugerida como símbolo de degradação através da personagem Doris; essa ideia é
reforçada através de Jezabel, filha de poderoso rei da Fenícia, que tornou-se, por casamento,
rainha de Israel durante o reinado de Acabe (870-853 a.C.) e transformou o palácio em antro
169
TERKENLI, p. 325. 170
BACHELARD, 1988, p. 198. 171
Ibidem, p. 129-130.
80
de luxúria, malandragem, excessos e vícios sexuais. Além disso, exterminou os profetas do
Senhor e colocou na casa nobre os sacerdotes, sacerdotisas e profetas de Baal e Astarote. Ela
era uma mulher determinada e independente, e não media meios para conquistar os seus
objetivos.172
Doris, assim como Jezebel, não desiste de seus objetivos, e decide que não será
ignorada e desprezada pelos homens do barranco. Esforça-se para chamar sua atenção, seja
quando estão na plantação, na fabricação das sandálias, ou com as crianças. Simula estar se
livrando de insetos; suspira a todo momento.
Nas suas visões, I-Malachi costuma ver uma mulher africana amarrada num poste
sendo chicoteada, e sua imagem funde-se com a forma sensual de Doris. Mas depois que ela
parte com um dos irmãos, Ras Simeon, percebe que não é mais Doris que está amarrada, mas
a mulher africana, sendo ele o agressor. Tem a impressão de que ele surra com prazer até que
o chicote queima a palma da sua mão; então, ele o atira ao chão. Nesse momento, percebe-se
que I-Malachi se torna o agressor, unindo-se imageticamente à figura do senhor branco.
A presença da mulher representa uma ameaça à paz e a tranquilidade ao ninho de I-
Malaqui, fazendo-o perder o controle do espaço. Bachelard declara que, no momento em que
o indivíduo passa a contemplar o seu ninho, cria confiança no mundo e a experiência da
hostilidade do mundo é mais tardia.173
Contudo, a presença de Doris não permite que I-
Malaqui desencadeie o devaneio da segurança em seu ninho. Este pode, antes, ser associado a
―um fruto que se intrumesce, que se comprime contra seus limites‖174
. Doris representa a
depravação, as tentações da Babilônia, tudo o que o eremita rastafari despreza, sendo uma
ameaça para a paz espiritual que procura e para a doutrina que tem como filosofia de vida.
Assim, por sentir-se intimidado, o líder quer encolher-se e proteger-se no barranco, mas,
como se tivesse crescido, sente-se oprimido, como se o barranco já não o pudesse conter.
Nas confusas visões de I-Malachi, aparece a mulher africana. Metade do seu rosto
zomba dele e suas mãos correm sobre seus seios de uma forma sedutora, enquanto a outra
metade, com a cabeça modestamente coberta, parece olhá-lo com preocupação. Essa imagem
composta faz pensar na justaposição de Quashebah (a modesta mulher africana) e Jezabel (a
meia face com o olhar irônico e gestos sedutores). Tal figura questiona-o, ironizando seu
poder como profeta e lembrando-lhe de que a sua autoridade estava arruinada. O olhar
apreensivo sugere uma atmosfera de sofrimento e de angústia, porque ela sabe que, mais uma
vez, o branco irá tirar-lhes a liberdade, tomando posse do barranco. Por isso, é preciso que I-
172
JEZABEL, Queen of Israel. Women of Royalty. In: TRIPOD. s.d. Disponível em:
<http://royalwomen.tripod.com/id21.html>. Acesso em: 17 ago. 2011. 173
BACHELARD, 1988, p. 177. 174
Ibidem, p. 175.
81
Malaqui descubra sua identidade, para que possa ser realmente um homem livre e, a partir de
então, levar consigo suas raízes culturais.
Com a vinda dos policiais até o barranco para expulsar I-Malachi e Ras Joseph, o
único que ainda o acompanha, o líder finalmente se identifica com o lugar. No momento em
que é forçado a se retirar, está costurando tiras de pano vermelhas, verdes e amarelas para
fabricar as túnicas com que se veste. E então, imediatamente, fica em pé e junta seus pés,
orgulhosamente, na posição de Rastamen, em um movimento de oposição ao sistema do qual
fazia parte. Essa imagem é muito significativa, levando a uma reflexão a respeito desse
movimento negro, e à compreensão do nome do irmão Ras Joseph.
Rastafari é uma palavra do idioma aramaico, uma língua eclesiástica da Etiópia, usada
pela real dinastia do povo de Davi. A palavra ―Ras‖ significa Rei, e ―tafari‖ paz, sendo,
portanto, Rastafari, ―Rei da paz‖. Alguns ainda atribuem o significado de ―cabeça‖, vindo a
simbolizar o indivíduo que tem sabedoria. O rastafarianismo é um movimento pan-africano
com aspectos messiânicos que se originou das previsões de Marcus Garvey. Os Rastas veem
os africanos e seus descendentes no Oeste como se estivessem vivendo na Babilônia, sob a
opressão da sociedade branca por mais de 400 anos de perseguição e colonialismo.
Uma das características da linguagem rastafari é a utilização do pronome eu – I em
inglês – como sufixo ou prefixo, ou como parte de termos compostos. ―I and I‖ (Eu e Eu) é
usado seja onde um pronome aparecer no discurso; substitui ‗você e eu‘, expressando a
igualdade presumida entre os Rastas.175
A cultura Rastafari tem ligação muito forte com a natureza, princípio básico da
criação; os Rastas são naturalistas e vegetarianos. As cores têm importância fundamental e
marcante, pois traduzem significados que representam a própria cultura rastafari, com seus
princípios básicos de união e defesa de suas raízes. A cor verde refere-se à África, a Mãe da
criação; a cor ouro simboliza a riqueza que foi roubada dos povos nativos por opressores; o
vermelho, o sangue derramado durante a escravidão e, o preto, os guerreiros da raça negra.176
I-Malachi, focalizado ao fim do conto em sua identidade Rastafari (que, contudo, é
sugerida desde o início por suas atitudes contra o sistema e pela adoção do I- junto ao nome),
tem, assim, a identificação com o movimento claramente confirmada. O líder é retirado do
barranco pelos policiais e, por um instante, lança um olhar para dentro do barranco,
admirando a calma, proteção e profundidade que lhe outorgara. Enquanto Doris zomba dele,
175
RAS Tafari e a profecia etíope. Cultura reggae. São Paulo: Delfa Reggae, s.d. Disponível em:
<http://www.delfareggae.com.br/ras.htm>. Acesso em: 17 ago. 2011. 176
A CULTURA Rastafari. In: RASTAFARI Inside. 2007. Disponível em:
<http://rastashanti.blogspot.com/2007/08/paz-e-unio-so-princpios-bsicos-de-uma.html>. Acesso: 30 maio 2011.
82
juntamente com a multidão, vê a mulher africana, que tinha conseguido se livrar de Doris. A
presença da mulher africana sugere a luta pelo não esquecimento da história de um povo que
o Outro tentou anular, pois aquele lugar foi escolhido para fazê-lo lembrar da sua missão
como um Rastaman.
Nesse contexto, I-Malachi descobre o valor da concha como lar, como alimento para o
seu espírito, assim como Quashebah, que foge para a caverna para se fortalecer e receber
energia para enfrentar a brutalidade à qual é submetida. Ao apresentar a metáfora do caracol,
Bachelard lembra a interpretação de Charbonneaux-Lassay, para quem essa imagem remete a
um tranquilo ser terrestre que, no inverno, fecha-se em sua concha, como que em um caixão
de sólido calcário e na primavera rompe a sua clausura, voltando à luz do dia cheio de vida.
Dessa forma, o caracol é símbolo de esperança. Ao se reconhecer e redescobrir o seu passado,
I-Malachi volta a entender a sua história e isso lhe dá esperança de continuar a viver
defendendo os seus ideais Rastafari. Nesse momento, pode-se dizer que ele está preparado
para a vida, pois ele está renovado, despertou para o seu ser, o seu eu, a sua identidade. 177
A imagem lembra a experiência de Quashebah, que descobre o barranco, passando a
pensá-la como o seu lar. Esse é também um momento de esperança, pois daquele dia em
diante ela já não é mais a mesma, ao contrário, sente-se muito mais invencível e alimentada
pela sua tradição, tanto mais quanto mais cresce seu desejo de retorno a esse lugar de
aconchego.
Assim, em ambas narrativas, pode-se associar o barranco à metáfora da concha de
Bachelard e das ―conchas de ressurreição‖ de Charbonneaux-Lassay. Segundo ele, o molusco,
em seu conjunto, carapaça e organismo sensível, significa, para os Antigos, um emblema
completo do ser humano, corpo e alma. Essa simbologia fez da concha o emblema de nosso
corpo, que encerra, em um invólucro exterior, a alma que anima o ser por inteiro,
representado pelo organismo do molusco. Assim como o corpo fica inerte quando a alma se
separa dele, da mesma forma a concha se torna incapaz de se mover quando se separa da parte
que a anima. O caracol terrestre, como exemplo de esperança, no inverno fecha-se na sua
concha, como em um caixão, e na primavera rompe sua clausura.178
Semelhantemente,
Quashebah fica no barranco para se preparar para a vida lá fora, enquanto que I-Malachi, não
tão cheio de vida, mas fortalecido pela imagem de Quashebah, consegue desfrutar de
momentos de paz e tranquilidade, formando uma sociedade no barranco.
177
BACHELARD, 1988, p. 185. 178
Ibidem, p. 185.
83
Tanto Quashebah quanto I-Malachi estão à procura de um lar e o encontram no
barranco. Para ambos, o barranco, além de conotar segurança e paz, lembram, também, pátria
de origem. É uma região-lar para Quashebah, porque há uma interação com o meio ambiente,
visto que ela o associa às árvores, ao som das águas do mar e ao cheiro da terra com a terra
natal, fortalecendo-lhe o senso de identidade em relação à África. O barranco associa a
dimensão coletiva de lar para ambos personagens, está carregado de referências ao ―país de
origem‖, ao ―lugar de nascimento‖.
Justifica-se ainda o barranco como lar, porque apresenta a característica enraizamento:
ambos se sentem pertencentes ao lugar, identificando-se com ele, e estabelecendo relações de
afetividade, familiaridade e bem-estar. Além disso, para I-Malachi, associa-se, ainda, a laços
sociais, pois ele organiza no barranco uma sociedade, embora temporariamente. Assim,
ambos têm o controle sobre aquele espaço, ela total e ele parcial e temporário; têm a liberdade
de pensar livremente.
3.3 Contextos contemporâneos: a vida na cidade e na metrópole
3.3.1 Goodnight, Miss Simons
O conto ―Goodnight, Miss Simmons‖ retrata uma sociedade dominada pelo
preconceito racial: a ―colour-marked society‖, em que as relações entre brancos e negros estão
bem codificadas. Simmons, um alfaiate de estatura mediana, pele morena, cabelos
encaracolados e olhos negros, sempre observa Eva ao voltar da escola e está determinado a se
casar com ela, mesmo sendo viúvo e com idade duas vezes superior a dela. Os pais de Eva
não demonstram interesse nesse relacionamento, pois sentem-se superiores ao jovem. Como
possuem a pele mais clara que a de Simmons, quase branca, eles o subestimam, devido a seus
traços de ascendência negra, esquecendo-se que pertencem à mesma origem.
O preconceito racial aqui presente não acontece entre brancos e negros, mas, sim,
entre negros. Há diferentes conceitos para racismo, mas todos têm um ponto em comum: a
distinção ou classificação entre superiores e inferiores. Daniele Benício e Thomas Bonnici
observam como, nas definições sobre racismo, o que impera é o verbo ―distinguir‖, que vem
acompanhado de outro verbo, ―hierarquizar‖, levando à compreensão de que o racismo pode
ser caracterizado tanto por questões biológicas, quanto por questões culturais e de que adquire
84
conotação fortemente negativa em uma sociedade heterogênea.179
Pode-se dizer, então, que o
fato da família de Eva discriminar Simmons demonstra uma rejeição à sua cor, à sua
identidade, numa tentativa de se igualar ao branco e de ser aceito por ele.
Em seu famoso estudo de natureza psicológica sobre o negro, Pele negra, máscaras
brancas, Frantz Fanon objetiva compreender a natureza da relação entre negros e brancos. De
um lado, percebe o branco fechado na sua brancura e o negro na sua negrura. Contudo, o
negro quer ser branco. Quer provar ao branco, que se julga superior a ele, a riqueza de seu
pensamento, a igual valia de seu intelecto. Desenraizado, disperso, confuso, o negro é
condenado a ver se dissolverem, umas após as outras, as verdades que elaborou. Desenvolve
um complexo de inferioridade após um processo econômico e pela interiorização ou
epidermização de sua inferioridade. Contudo, ao buscar embranquecer a raça, torna-se tão
infeliz quanto aquele que prega o ódio ao branco.180
Além do preconceito de cor, pesa contra Simmons o preconceito social. Assim,
esconde suas origens. Casa-se com Eva após o falecimento do pai da jovem e assume a
pequena propriedade. Mas nunca revela que é filho de branco, proprietário de fazenda, com a
cozinheira negra. Simmons é um dos cinco filhos fruto de uma longa e estável relação.
Herdam o nome do seu pai, que lhes deixou um patrimônio modesto, mas suficiente no seu
testamento. Contudo, sua família só vem a descobrir sua origem quando ele fica doente e
recebe, ocasionalmente, a visita de sua meio irmã branca, Josephine.
Logo que chega ao vilarejo, Simmon procura impressionar a população com seu estilo,
elegância e presença urbana. Possui uma charrete puxada a cavalo, sendo o único proprietário
de veículo, com exceção dos proprietários de fazendas. Pode-se pensar que o fato de querer
aparentar uma boa posição social seja uma estratégia para se defender do preconceito e do
desprezo do branco, além de querer sentir-se branco, pois ―ser branco é como ser rico, como
ser bonito, como ser inteligente‖.181
Segundo Fanon, o negro não se satisfaz no isolamento,
porque na sua concepção só existe uma porta de saída, a qual dá no mundo branco. É sua
preocupação constante atrair-lhe a atenção; deseja alcançar o santuário branco, ser como ele, e
possuir as coisas que ele possui.182
É interessante atentar à profissão de alfaiate de Simmons. Os negros, provavelmente,
não têm condições de mandar fazer suas roupas sob medida; somente os que possuem uma
179
BENÍCIO, Daniele; BONNICI, Thomas. O Racismo no Romance Le Sang de L‘anglais (1993), de Carl de
Souza. Estação Literária, Vagão-volume 2, 2008, p. 67. Disponível em: <http://www.uel.br/pos/letras/EL>.
Acesso em: 28 ago. 2011. 180
FANON, 2008, p. 26-28. 181
Ibidem, p. 60. 182
Ibidem, p. 60.
85
renda maior, que seriam os brancos. Sendo assim, ao costurar para o branco, Simmons não só
aparenta uma boa posição, como também mantém-se em meio a eles, participando do seu
mundo, tendo a consideração destes e, de alguma forma, sendo por eles valorizado.
Frantz Fanon comenta a situação do negro que chega à França e assume a língua
francesa, não compreendendo mais o crioulo, e o do camponês que, ao retornar à casa paterna,
finge desconhecer um arado. Questiona o porquê dessa alteração da personalidade. O fato de
o negro adotar uma linguagem diferente daquela da coletividade em que nasceu representa um
deslocamento, uma clivagem. Destaca o que Westerman escreve em The African Today
acerca do sentimento de inferioridade entre os negros, principalmente entre os ―evoluídos‖,
que tentam permanentemente eliminar a inferioridade usando, como estratégia ingênua, o
vestuário:
Usar roupas europeias ou trapos da última moda, adotar coisas usadas pelos
europeus, suas formas exteriores de civilidade, florear a linguagem nativa com
expressões europeias, usar frases pomposas falando ou escrevendo em uma língua
europeia, tudo calculado para obter um sentimento de igualdade com o europeu e
seu modo de existência.183
Eva apresenta posição econômica superior à de Simmons, pois sua família é
proprietária de terras. Além disso, a jovem tem uma profissão valorizada: é professora e não
parece ter traços de origem negra. Sua pele é bem mais clara que a de Simmons. Assim, é
possível que o alfaiate tenha se casado com Eva com a intenção de ascensão social, como uma
forma de ―ser branco‖. Em uma palestra nos encontros inter-raciais de 1949, Louis- T. Achille
dizia que, num casamento inter-racial, quando o cônjuge é de cor, pode-se pensar que ele
esteja usando o enlace como forma de consagração subjetiva com relação ao preconceito de
cor que sofreu durante muito tempo.184
Por outro lado, pode-se perceber que Simmons sofre discriminação e preconceito na
sua família, pois quando sua irmã, por parte de pai, visita-o, conversa na porta do seu veículo.
Não entra na casa do meio irmão; os filhos de Simmons ficam a uma certa distância,
enfileirados, para avistar tia Josephine com seus olhos azuis.
Esta cena – os filhos enfileirados admirando a tia de olhos azuis – consiste numa
manifestação de preconceito. Segundo Tomaz Tadeu Silva, a marcação simbólica é o meio
pelo qual damos sentido a práticas e a relações sociais, definindo, por exemplo, quem é
excluído ou incluído; essa diferenciação social manifesta-se, dentre outros modos, através da
183
FANON, 2008, p. 38-40. 184
ACHILLE apud FANON, 2008, p. 75.
86
classificação das diferenças vivenciada nas relações sociais.185
Ora, no corpo estão inscritas
as marcas da diferença geradoras do preconceito; é ao corpo de alguém que reage, e essa
reação ocorre, muitas vezes, em relação à diferença traduzida em poder que esse corpo
representa. A imagem de alguém sempre tem um signo de poder.186
Então, pode-se dizer que
o fato de Josephine não entrar na casa do irmão, além de ser um exemplo de preconceito, é
também de alteridade e de que a hierarquia do branco sobre o negro permanece, mesmo no
período pós-escravocrata. O tratamento à distância aos sobrinhos e o encantamento destes
pelos olhos azuis da tia representa a exclusão, a anulação do negro da sociedade e a
permanência do branco como exemplo de civilização e beleza.
Note-se, a respeito da profissão de Eva, que a jovem não trabalha na escola da sua
comunidade, pois só era para meninos e emprega professores do sexo masculino, levando-a a
lecionar em uma outra escola infantil, mista, não muito longe dali. De acordo com o modelo
britânico, nas mais antigas e tradicionais escolas de Barbados, havia separação entre meninos
e meninas, ou havia turmas diferentes para cada sexo, na mesma instituição. Estabeleceram-se
primeiro as escolas para brancos: a primeira foi fundada em 1686, mas apenas em 1818 surge
a primeira escola para meninos negros. Já no período colonial fundaram-se, também, escolas
mistas, como a Combermere School, fundada em 1695; contudo, a admissão de mulheres era
rara e, pelo menos em Combermere, foi descontinuada, tendo sido retomada somente em
1976. Em 1966 a rainha Elizabeth II juntamente com o seu esposo, o Duque de Edinburg,
visitaram Barbados e fundaram uma escola mista,187
exatamente no ano em que o Reino
Unido concedeu a sua independência integrando Barbados à Comunidade Britânica das
Nações.188
Sendo assim, pode-se apreender que escolas de um único sexo, cujas aulas são
ministradas por professor do gênero correspondente, significam prestígio e tradição, o que é
possível apenas às crianças brancas e de famílias tradicionais. As mistas provavelmente se
localizavam mais distante da comunidade e são de menos prestígio, além de serem acessíveis
às famílias com menos poder aquisitivo. Isso é confirmado pelo fato de que as filhas de Eva -
crianças negras, ainda que com pele clara como a dela - estudaram na escola mista onde ela
tinha trabalhado anteriormente. Até por volta de 1960, a sociedade de Barbados era composta
185
SILVA, Tomaz Tadeu. Identidade e diferença. A perspectiva dos estudos culturais. Petrópolis: Vozes, 2000,
p. 14. 186
ELIAS, Norbert. Os alemães: a luta pelo poder e a aevolução do habitus no século XIX e XX. Rio de Janeiro:
Jorge Zahar Editor, 1997. 187
EDUCATION in Barbados Information Handbook. In: BARBADOS: The Planning & Research Section
Ministry of Education, Youth Affairs & Culture, 2000. Disponível em:
<http://www.mes.gov.bb/UserFiles/File/Education_in_Barbados.pdf>. Acesso em: 08 set. 2011. 188
BARBADOS, 2002, p. 339-340.
87
por uma pequena elite de plantadores, comerciantes, em grande parte de ascendência
europeia; outra classe, um pouco maior, formada por contadores, advogados, médicos,
jornalistas e professores de ascendência diversa. Um grande número de trabalhadores do
campo e de empregados domésticos de ascendência africana formam a populosa classe
baixa.189
Sendo assim, a classe de professores se enquadra na classe média da qual Eva faz
parte. Logo, ela detém certo prestígio social, porém, sua cor e gênero não a qualificam para
lecionar na escola masculina de elite. Evidência deste prestígio é o fato de que Eva, mesmo
após a falência econômica, continua sendo respeitada e lembrada respeitosamente como
professora. A comunidade continua cumprimentando-a, juntamente com Edna, sempre de uma
forma respeitável.
Após o casamento, Eva e Simmons passam a morar no vilarejo, na casa de pedra coral
sólida, que é grande o suficiente para as dez crianças que vieram em quinze anos. Uma
faleceu ao nascer, outras duas, com oitos meses de vida. Simmons prospera e Eva, apesar
dessas experiências maternas, está feliz na sua sólida casa, com sua boa mobília de mogno e
seus sete filhos, dois meninos e cinco meninas, além de uma funcionária que a ajuda. A sua
casa é confortável e o mobiliário em mogno indica certa posição social, o que leva Eva a não
exercer mais a sua profissão, passando a se dedicar apenas a sua família.
No entanto, a vida de Eva começa a seguir outro destino, pois seu marido, dominado
pela bebida, leva a família à falência e nunca mais consegue recuperar a boa fase financeira.
A situação piora com a morte de Simmons e, consequentemente, abala o prestígio familiar.
Inicia a decadência da família, ocasionando sua desintegração. Ao início do conto, a casa se
encontra aos pedaços e o relacionamento familiar está bastante afetado, especialmente, entre
Edna e Eva. As relações entre mãe e filha são bastante distantes. Edna não conversa muito
com a mãe e esta sofre por não poder ajudá-la.
Edna é uma mulher alta, de meia idade, cabelos longos, soltos e pele clara, embora
sangue misto. Em sua juventude, foi uma mulher desejável, mas orgulhosa e arrogante, o que
a fez desprezar outros pretendentes. Depois, há uma desilusão amorosa, que a abala muito.
Com o passar dos anos, sente-se abandonada, e começa a se encontrar com homens de
diferentes classes, para grande vergonha de Eva, pois isso é do conhecimento de todo o
vilarejo. O declínio de Edna simboliza também o de sua família, pois, assim como ela, a sua
mãe não se veste nem come melhor do que os trabalhadores da fazenda, os quais formam o
189
BARBADOS. Countries and their cultures. s.d. Disponível em: <http://www.everyculture.com/A-
Bo/Barbados.html>. Acesso em: 08 set. 2011.
88
povo da aldeia. O nível de conforto doméstico não é alto. É devido às lembranças de um
amável alfaiate e do antigo prestígio à professora que os vizinhos, frequentemente, ao parar
para cumprimentá-las na varanda, presenteiam-nas com alimentos, como uma forma de ajudá-
las.
Pode-se dizer que o espaço ocupado por Eva e Edna não lhes oferece mais condições
físicas de sobrevivência. A casa está desmoronando; do mobiliário, poucas peças boas restam.
O declínio da ambiência física espelha o da família que ali se abriga. A conexão entre lar e
família está, também, afetada. Outro indicador de decadência familiar é a desintegração social
e psíquica de Edna que, depois de desprezada pelo pretendente, começa a se prostituir. Já
agora seu corpo deixa de ser belo como outrora. Os adjetivos empregados para descrevê-la
assim o demonstram: ―sagging body”, “tormented flesh”; por outro lado, ―garish mask” e
““skimpy dresses‖ sugerem a vistosa maquiagem e forma de vestir das prostituas.190
Conforme o narrador, Edna costuma retornar quando o sol está alto, às vezes depois do
primeiro canto do galo, frequentemente bêbada. Esse cenário faz pensar que Edna se prostitui
por opção, uma vez que sofre uma grande decepção no passado ao ser abandonada pelo
homem que amava, passando a desvalorizar-se, e a aceitar essa depreciação do negro por
parte do branco. De acordo com Thomas Bonnici, nas sociedades pós-coloniais, o sujeito e o
objeto pertencem inexoravelmente a uma hierarquia em que o oprimido é fixado pela
superioridade moral do dominador.191
Pode-se pensar que Edna se vale da prostituição para poder se sentir, pelo menos por
um momento e em sua fantasia, mulher de um branco. Fanon, em seu livro Pele negra,
máscaras brancas, comenta como as mulheres negras desejam um amante ou um namorado
branco, como uma forma de embranquecer e salvar a raça, não no sentido de preservar a
originalidade da porção do mundo onde elas cresceram, mas para assegurar sua brancura. É
fundamental não sombrear de novo a tez, por isso, é preciso escolher para seu relacionamento
o menos negro. As mulheres de cor, as desgrenhadas, se atormentam em pensar ―em uma
noite maravilhosa, um amante maravilhoso, um branco‖. É preciso que elas compreendam,
um dia, que os brancos não se casam com uma mulher negra, mas aceitam correr o risco,
porque precisam da brancura a qualquer preço.192
Os negros adotam, assim, uma atitude de
―mania‖, quando a cultura estrangeira, ou do Outro, é tida como superior. No caso, há rejeição
de suas origens e dos irmãos de cor.
190
HENFREY, 1994, p. 51-52. ―flacidez corporal, corpo atormentado, maquiagem extravagante, vestidos
provocativos.‖ 191
BONNICI, 2000, p. 17. 192
FANON, 2008, p. 57-59.
89
O discurso colonial consistia em fazer com que o colonizado acreditasse que era um
ser inferior e sem cultura e submeteu milhões de pessoas a acreditarem na existência de uma
cultura superior. Nesse discurso, estava incluída a mulher, a qual era vista como subalterna e
sem voz. Sendo assim, ela foi duplamente colonizada. Para Bonnici, ―a dupla colonização é a
subjugação da mulher nas colônias, objeto do poder imperial em geral e da opressão patriarcal
colonial e doméstica‖.193
A mulher era intelectualmente inferiorizada e estava sujeita a todo
tipo de exploração e dominação.
Esse tipo de abuso e opressão é perceptível na cena em que Eva percebe que a filha
tem na face contusões e que os seus lábios estão inchados. Edna é agredida e aceita essa
agressão, tanto que na noite seguinte retorna ao local de costume. A mãe segue a filha e a vê
prostituindo-se. Com marcas de tristeza no rosto, percebe sua decadência, mais uma etapa da
degradação familiar. Chocada, Eva desmaia. É carregada para casa por um vigia noturno de
uma plantation, chamado Hooper, e mais dois homens. Ao se despedirem de Edna, Hooper
usa as palavras: ―Goodnight, Miss Simmons!‖,194
como tentativa de mascarar a situação, pois
esses mesmos homens que utilizam os serviços de Edna, agora, de forma velada, a censuram.
Observa-se uma assimilação da imagem de poder pelos personagens, Hooper, um homem
branco, além de demonstrar desprezo, dá ordens à mulher negra, Edna.
Recorde-se como Michael Ferber registra, em seu dicionário de símbolos, a noite
como a escuridão que tudo precede ao vazio ou caos.195
Embora ―good night‖ seja a expressão
convencional usada para despedida à noite, parece haver um sentido irônico em night, noite.
Como signo do fim de um ciclo, a noite, com sua escuridão, pode simbolizar o declínio dos
Simmons, Além disso, na experiência cotidiana, geralmente à noite, em pequenas
comunidades tradicionais, as moças solteiras, senhoritas, costumam permanecer nas suas
casas juntamente com suas famílias se recolhendo cedo da noite, o que não acontece com
Edna. A palavra ―senhorita‖ é uma forma abreviada originada de ―Mistress‖, palavra usada no
Reino Unido na década de 1600. A palavra é usada como um título para mulheres solteiras e
também era tradicionalmente utilizada para tratar as mulheres jovens, em geral as menores de
dezoito anos, especialmente aquelas que pertenciam às famílias de classe alta. Era também
usada pelos alunos para tratar os professores na escola na cultura britânica.196
Existe, ainda, a
tradução de ―Mistress‖ como amante, usada na década de 1600, o que pode ser uma forma de
193
BONNICI, 2005, p. 53. 194
HENFREY, 1994, p. 54. ―Boa noite, Senhorita Simmons!‖ 195
FERBER, 2007, p. 132.
196
ORIGIN of Miss and Ms. In: DIFFEN. s.d. Disponível em:
<http://www.diffen.com/difference/Miss_vs_Ms>. Acesso em: 10 set. 2011.
90
sarcasmo por parte de Hooper ao se referir a Edna como senhorita, já que todos tinham
conhecimento de que ela era uma mulher vulgar. Há um declínio econômico e emocional que
pode ser interpretado como mais uma forma de violência. Não se trata de violência física, mas
verbal, através da disfarçada censura: ― ‗I hope you going stay home and look after the old
lady now!‘ he said‖.197
Edna é condenada por se prostituir e abandonar a mãe, esquecendo-se
de seus valores de mulher e filha, deixando de se comportar realmente como uma ―miss‖,
senhorita.
Em ―Goodnight Miss Simmons‖, pode-se dizer que há a formação e a deformação de
lar, pois no passado Eva tinha o controle sobre o espaço, isto é, tinha o domínio sobre ele, o
que não acontece agora, já que não tem mais autoridade sobre Edna e muito menos o seu
respeito e preservação de valores. Também o relacionamento familiar foi afetado, não só com
a filha, mas com os demais filhos. Não parecem manter contato e muito menos visitá-la; Eva
guarda apenas na memória momentos vividos com eles e com os netos. Essa perda de controle
sobre o lar pode-se associar ao desmoronamento físico da casa, simbolizando não apenas a
falência da família e a ausência de conforto, mas também a perda da afetividade e dos elos
familiares.
Eva, aos oitenta anos de idade, tem cabelos brancos, e sua rotina é passar o tempo
sentada numa cadeira de balanço sobrevivente de um par que ela e o marido tinham comprado
há mais de meio século antes, quando se casaram. A adoção de rotinas representa estratégia de
sobrevivência, que lhe permite tornar o seu espaço um lar, ajudando-a a preservar sua
referência familiar no tempo e no espaço. A cadeira é uma referência do seu passado; toda vez
que Eva senta-se nela, preenche a sua necessidade de refúgio e vai trazendo à memória o seu
lar pessoal e o seu lar coletivo, isto é, todas as experiências ligadas com a família e com a
comunidade.
Porém, o lar de Eva vai aos poucos se desconstruindo e a decadência da família deixa
claro que é difícil a um negro conseguir se manter na sociedade, é muito mais comum ser
visto à margem, como Edna. A frase ―These pale-skinned, near-white people appeared to
have squandered the advantages that accrued to them naturally in that colour-marked
society‖198
exemplifica esse preconceito racial. Aos negros, embora de pele clara, atribui-se
falta de competência para administrar vantagens que lhes advêm pela semelhança da cútis
com a do branco.
197
HENFREY, 1994, p. 54. ― ‗Eu espero que você fique em casa e cuide da velha senhora agora!‘ ele disse‖. 198
Ibidem, p. 48. ―Essas pessoas de pele clara, quase brancas, pareciam ter desperdiçado as vantagens que
conseguiram naturalmente em uma sociedade marcada pela cor‖.
91
Pode-se dizer ainda que atualmente, no lar de Eva, não se percebe a presença da
qualidade geográfica de enraizamento, a qual se refere ao indivíduo se sentir pertencente ao
lugar. Isso ocorre, porque ela não se identifica mais com o lugar, não estabelece mais relações
de afetividade e familiaridade, nem bem-estar e sociais, pois há uma distância entre Eva e
seus filhos. Vive precariamente, já que vive na miséria e a reputação da família também está
afetada pelas atitudes de Edna; apenas sobrevivem, dão continuidade a sua existência. Além
disso, sabe que a exclusão social que sempre existiu hoje está mais presente, pois a situação
econômica reforça a dicotomia entre o dentro e o fora, os aceitos e os excluídos. Sendo assim,
Eva desmaia ao dar-se conta de que não apenas a sua casa está aos pedaços, mas o seu lar,
como o simboliza o abuso final por que passa Edna.
3.3.2 Coming Home
A migração, a nação e o significado da identidade na diáspora têm estado entre os
temas dominantes da literatura caribenha contemporânea. Em ―Coming Home‖, June Henfrey
apresenta a migração como tema central. Analisa-se, nesse conto, a trajetória da protagonista
Hilda, em seu deslocamento entre Barbados e a Inglaterra, e em seu retorno para o país de
origem. Estuda-se o duplo deslocamento por que a personagem passa, pouco à vontade tanto
na metrópole quanto na volta a seu país natal, que difere daquele que deixara anos antes.
O movimento diaspórico vivido pela protagonista instiga questionamentos: como é
narrada a experiência de deslocamento, a construção de um lar (dimensão privada) fora do lar
(dimensão pública)? Que experiências são rejeitadas e quais levam à marginalização? Assim,
o conto oferece privilegiado contexto para a análise da desconstrução do conceito de lar em
contextos migratórios, quando o senso de enraizamento, elemento fundamental para a
formação do conceito de lar, é extremamente desafiado. O relacionamento de Hilda com seu
país de origem é renegociado. Como Laura Huttunen observa a propósito de contextos
migratórios, para a população migrante, o conceito de lar pode ter muitos pontos de referência
no espaço global, porque tal população necessita se adaptar ou negociar novos vínculos e
possibilidades de relacionamento com o país de adoção, ainda que não abandone ou esqueça
suas origens; ao passado, é dado um significado no contexto do presente.199
A imaginação literária permite articular uma consciência da diáspora e da nação ao
nível das experiências vividas, através das distintas modalidades de migração. Desse modo,
199
HUTTUNEN, 2005, p. 180.
92
cada geração tem abordado ângulos diferentes das questões de lar e exílio, da migração e das
identidades diaspóricas, ou da recriação de novas identidades nos contextos dos estados-nação
tanto antes como depois da independência política.200
A migração para Londres tem produzido
ondas de deslocamento, articuladas por elementos de diversas gerações em luta por uma
identidade caribenha na diáspora. Para os/as escritores/as da primeira geração diaspórica, que
migraram para os centros coloniais da Europa e dos Estados Unidos em busca de
reconhecimento, o significado de migrar como sujeito colonial, relacionado a questões acerca
da identidade nacional, era uma das preocupações prioritárias. Nesses trabalhos, a realidade
do racismo no centro colonial e a lógica da rejeição e recriação da identidade em um novo
lugar são temas marcantes de suas narrativas, assim como a relação entre lar/pátria e exílio.
Em uma geração posterior, à que pertence Henfrey, mormente constituída por escritoras
mulheres, meditações acerca da pátria fazem-se paralelas à discussão de problemas de gênero,
em romances em que a figura da mulher, a infância, o processo de envelhecimento são
frequentemente tematizados.201
―Coming Home‖ parece ser uma reavaliação ficcional da experiência da geração
Windrush, já que a viagem de Hilda à Inglaterra, nesse conto, rememora a experiência
histórica da migração em massa de colônias negra para a Inglaterra, cujo marco inicial foi a
chegada do navio SS Empire Windrush. A 22 de junho de 1948, este navio aportou em Tilbury
Dock, Essex, após viajar por 8.000 milhas, do Caribe para Londres. Carregava 492
passageiros da Jamaica, Trinidad, Tobago e outras ilhas, que chegaram à ―pátria-mãe‖,
desejando iniciar vida nova na Inglaterra.202
Vieram motivados por um anúncio em um jornal
jamaicano, oferecendo transporte barato naquele navio para quem quisesse trabalhar na Grã-
Bretanha.203
Os migrantes, convocados devido à necessidade de trabalhadores não
especializados, foram dispersos por todo o país para as áreas em que seu trabalho era
necessário: nos fornos e forjas das indústrias transformadoras que foram se expandindo, como
porteiros, faxineiros, motoristas e enfermeiros - trabalhos que pagavam tão mal que poucos
brancos os queriam.204
200
DAVIES, Carole Boyce. Black Women Writing and Identity. Migrations of the Subject. London and New
York: Routledge, 1994, p. 751. 201
DAVIES, Carole Boyce. Mulheres caribenhas escrevem a migração e a diáspora. Estudos Feministas,
Florianópolis, p. 754, set./dez. 2010. 202
PHILLIPS, Mike. Windrush - The Passengers. In: BBC History. mar. 2011. Disponível em:
<http://www.bbc.co.uk/history/british/modern/windrush_01.shtml>. Acesso em: 28 ago. 2011. 203
HISTORY. Empire Windrush 1947. In: THE OCEAN Liners. s.d. Disponível em:
<http://www.oceanlinermuseum.co.uk/Empire%20Windrush%20History.html>. Acesso em: 08 jul. 2011. 204
PHILLIPS, 2011.
93
Diferentemente da migração, em que o sujeito geralmente tem a intenção de fixar-se
em um novo espaço, para James Clifford, a linguagem da diáspora está associada ao
deslocamento de pessoas que sentem um atrelamento com o lar anterior, o qual deve ser forte
o suficiente para resistir ao esquecimento e distanciamento e surge para substituir, ou pelo
menos complementar, o discurso de uma minoria. As comunidades diaspóricas transmitem
uma forte diferença, constituem um ―povo‖ que mantém suas raízes históricas; vivem,
portanto, numa tensão às experiências de viver a localidade, mas relembrar ou desejar outro
lugar.205
Formas diaspóricas de pertencimento, memória e (des)identificação são
compartilhadas por essas populações, que atravessam vastos oceanos e barreiras políticas, mas
buscam manter os laços com o país de origem, facilitados devido aos modernos meios de
comunicação e transporte, que reduzem as distâncias e facilitam o tráfego, legal e ilegal, entre
os lugares do mundo.206
A tensão entre perda e esperança, enraizamento e deslocamento, pode ser identificada
em várias situações vividas pelas personagens de June Henfrey, analisadas a seguir. Na
esperança de prosperar na ―pátria-mãe‖, Hilda, juntamente com outros jovens, alguns de
outras ilhas, embarca numa interminável e úmida viagem até a estação londrina de
Paddington. Embora tivesse sido maravilhoso reencontrar Linton, uma dúvida surge quando
ela toma conhecimento de que o lugar onde ele vive que, além de ser pequeno, é dividido com
outras pessoas.
Ao chegar à Inglaterra, a jovem, assim como o namorado, é acolhida por outros
caribenhos que já tinham chegado anteriormente. Em comunidades transnacionais, a família é
ampliada, isto é, funciona como uma rede e local de memória que permite manter vivo no
exterior um forte senso associativo com a terra de origem.207
Dessa forma, a assistência dada
por ilhéus com mais experiência na Inglaterra não somente provê proteção e abrigo, ainda que
precários, como é forma de manter forte identificação com as culturas de origem. No conto, o
espírito de solidariedade se faz presente, e a divisão do espaço com os outros inquilinos,
apesar do desconforto, é o que dá a migrantes como Hilda e Linton a força para viver naquele
país e suportar a desilusão, o preconceito e a saudade da sua terra natal. A propósito, recorda-
se como a situação vivida pela protagonista faz lembrar algumas das características que
William Safran atribui à diáspora: a consciência e solidariedade do grupo, importantemente
205
CLIFFORD, 1994, p. 310-12. 206
Ibidem, p. 304. 207
HALL, 2009, p. 26.
94
definidas por relacionamento contínuo com a terra natal, e a crença de que não são e talvez
possam ser aceitos no país anfitrião.208
Mais tarde, o casal tem filhos e se muda para um lugar maior, mas não consegue
desfrutar felicidade naquele país, pois sempre se sentem estrangeiros, vivendo sob a injustiça,
a exclusão e o preconceito. Assim, não têm oportunidade de desenvolverem um sentimento de
lar com relação àquele lugar. O sofrimento e a tristeza já fazem parte de seu dia-a-dia. O
trabalho de Hilda como faxineira do hospital só lhe permite limpar ao seu redor, nunca lhe dá
a oportunidade de sentir a vida com prazer, ao contrário, só vive para trabalhar. Além disso,
suporta diariamente o preconceito e a discriminação, ao perceber que as pessoas preferem
ficar em pé a sentarem ao seu lado no ônibus. Seu marido, Linton, perde o direito a uma
posição melhor no seu trabalho por ser negro, o que o deixa profundamente nervoso e
revoltado, contribuindo para se irritar facilmente com os filhos, pois a dor da injustiça remoi
seus pensamentos.
Para James Clifford, a percepção da diáspora pode ser constituída positivamente,
através de identificação com o mundo político, cultural e histórico – como se dá entre os
descendentes de brasileiros e comunidades brasileiras na América, por exemplo - e
negativamente, por experiências de discriminação, perda e exclusão.209
Este último é o caso
de Hilda. O preconceito racial presente nas situações diárias vivida pela personagem, seja no
ônibus, no trabalho ou nas ruas - quando Hilda, juntamente com outra mulher negra, quase foi
apedrejada por dois garotos brancos, situação essa que a marcou profundamente – deixa-a
perplexa. Olhares cheios de censura e malevolência não poderiam deixar de fazê-la sentir-se
senão como estranha naquele lugar. Com a atitude dos garotos, Hilda toma consciência de que
cria uma ilusão em relação à Inglaterra. Gradualmente, percebe que o trabalho de limpeza no
hospital não serviria como trampolim para outras ocupações mais privilegiadas, mas seria
uma ocupação permanente, pois naquele país, ser faxineira era tudo o que se pensava que ela
teria capacidade de fazer, tudo o que lhe era permitido fazer.
Hilda entende que não apenas ela está vivendo num lugar no qual não pode ter
segurança, mas toda a sua família. Ela e seu marido preocupam-se com seus filhos, porque
não têm esperanças de que, com eles, as coisas possam ser diferentes. Por isso, sempre
lembram sua terra natal, embora para as crianças, muitas vezes, se tornasse entediante, já que
falar sobre Barbados é algo muito distante para eles. No entanto, a Inglaterra, mesmo sendo
hostil, não parece causar estranhamento algum à segunda geração. Ao contrário, não sentem
208
SAFRAN apud CLIFFORD, 1994, p. 304-305. 209
CLIFFORD, 1994, p. 311-312.
95
qualquer constrangimento em desconhecer suas origens. Para os pais, tal atitude é
desconcertante, porque, em sua experiência, não ser branco naquele país faz diferença, sendo
um significante de exclusão e marginalização.
David Sibley explica que espaço e sociedade estão implicados na construção de
fronteiras do eu, mas o eu está projetado para dentro da sociedade e do espaço. O eu, o outro
e os espaços, ao mesmo tempo em que são criados, são definidos através de projeção e
introjeção. As fronteiras da sociedade são continuamente redesenhadas para distinguir
aqueles que pertencem, e aqueles que, por alguma diferença de cultura, são considerados fora
do lugar.210
Hilda e sua família são avaliados como diferentes. São negros, não nascidos na
Inglaterra, o que os determina como menosprezados e subalternos. O racismo submete-os a
um processo de estranhamento.
Zilá Bernd considera que ―Em princípio, racismo é a teoria que sustenta a
superioridade de certas raças em relação a outras, preconizando ou não a segregação racial ou
até mesmo a extinção de determinadas minorias‖.211
De acordo com Homi Bhabha, a
diferença do objeto de discriminação é constituída como sendo espontânea, de tal forma que é
tornada imediata e simultaneamente visível e natural: ―a cor como sinal cultural/político da
inferioridade e da degeneração, a pele como sua identidade natural‖.212
No mundo colonial, o
africano e o ameríndio estavam no último degrau da escala racista e classista, ou seja, o
trabalhador colonizado no contexto da produção capitalista europeia tinha de ser índio, negro
ou afrodescendente.213
Conforme define Thomas Bonnici: ―o europeu, julgando-se parâmetro
de civilização e educação, não apenas estratifica as raças, mas também coloca o outro como
diferente e, portanto, não civilizado e sem cultura‖.214
Nesse contexto, percebe-se que a
migração levou as populações periféricas para o centro (a metrópole) e restabeleceu a
alteridade como elemento constitutivo da identidade.
Hilda descobre, ao ver os filhos crescidos, que envelheceu num lugar do qual não
gosta, ficando-lhe claro que em Londres sempre haveria uma relação de poder, uma hierarquia
e jamais ela iria construir um espaço em que pudesse buscar uma identificação ou ter o seu
espaço cultural. Essa sensação de não pertencimento, de sentir-se deslocada, coloca-a em uma
fronteira de diferença, a partir da qual não consegue desenvolver relações de pertinência com
o espaço, pois sente-se desconfortável e discriminada.
210
SIBLEY, David. Geographies of Exclusion: Society and Difference in the West. New York: Routledge, 1999,
p. 86; 91. 211
BERND, Zilá. Racismo e anti-racismo. São Paulo: Moderna, 1994, p. 11. 212
BHABHA, Homi K. O local da cultura. Belo Horizonte: UFMG, 1998, p. 198. 213
BONNICI, 2005, p. 51. 214
Idem, 2000, p. 70.
96
Essa situação em que a protagonista e sua família vivem traz à mente o pensamento de
Dionne Brand, em A Map to the Door of No Return, quando fala sobre o efeito alienante e
transformador da cidade sobre o migrante:
Origins. A city is not a place of origins. It is a place of transmigrations and
transmogrifications. Cities collect people, stray and lost and deliberate arrivants.
Origins are rehabilitated and rebuilt here. A torturer in Chile becomes a taxi
driver, an English thief becomes a stock hawker, an Eritrean warlord becomes a
bycicle courier. An Indian businessman a security guard, a Hong Kong policeman a
waiter, a sixth-generation Ukrainian girl a murderer, a teacher from Caribbean a
housekeeper, a farmer from Azores a construction worker.
A city is a place where the old migrants transmogrify into citizens with disappeared
origins who look at new migrants as if at strangers, forgetting their own flights. And
the new migrants remain immigrants until they too can disappear their origins.215
Hilda, que tinha a intenção de se tornar uma professora ou uma enfermeira, de acordo
com o desejo da sua mãe, devido à falta de oportunidade, torna-se apenas uma faxineira na
grande metrópole. Seu desconforto na Inglaterra cresce e, com a morte de Linton, memórias
dolorosas vêm-lhe à mente. Em seguida, ela se aposenta; desperta-se a saudade do seu país de
origem. Lembra-se, aqui, a concepção de Bill Aschcroft de que, para a pessoa diaspórica,
―lar‖ difere de ―lugar‖, pois não está, geralmente, associado a um conceito espacial. Sua
concepção está profundamente arraigada na memória, muitas vezes, em uma ―comunidade
imaginada‖, longe no tempo e no espaço, e associada a um sentimento de perda
compartilhado com outros. Refere-se ao poder de sentido de ―lar‖ dentro da psique, um lar
ancestral, e também do poder de sua ausência.216
Um dos netos de Hilda, Claudette, menina curiosa, faz com que a avó se recorde do
passado ao responder seus questionamentos sobre Barbados. As lembranças, renovadas,
intensificam seu desejo de retornar à terra natal, da qual lembra como o seu lar. Nas conversas
com a neta, rememora sua mãe, a avó, o cuidado e a relação que tinha com ela; não se esquece
da parteira Gladys, da vizinhança, do gosto bom do peixe, podendo até sentir o seu tempero.
215
BRAND, 2001, p. 62-63. Origens. A cidade não é um lugar de origens. É um lugar de transmigrações e
transmogrificações. As cidades coletam pessoas dispersas e perdidas e recém-chegados que deliberadamente
aportaram. As origens são reabilitadas e reconstruídas aqui. Um torturador no Chile se torna um motorista de
taxi, um ladrão inglês se torna um camelô, um comandante eritreu se torna um mensageiro de bicicleta. Um
indiano de negócios, um guarda de segurança, um policial de Hong Kong um garçom, uma menina ucraniana da
sexta geração uma assassina, uma professora do Caribe uma governanta, um fazendeiro de Açores um
trabalhador de construção.
Uma cidade é um lugar onde os velhos imigrantes se transmogrifam em cidadãos com suas origens
desaparecidas, e olham para os novos imigrantes como se fossem estrangeiros, esquecendo suas próprias fugas.
E os novos migrantes permanecem imigrantes até que suas origens possam também desaparecer. 216
ASHCROFT, Bill. Post-colonial transformation. London and New York: Routledge, 2002, p. 155.
97
Uma vez que falta a Hilda a noção de pertencimento, sentindo-se social e espacialmente
constrangida, torna-se problemático seu enraizamento em Londres. Se, por um lado,
desenvolve familiaridade e conhecimento da metrópole, não tem controle sobre os espaços em
que circula e trabalha, e o preconceito dificulta a identificação pessoal com os mesmos. A
distância geográfica e afetiva aguça, então, o desejo pelo lar da infância e juventude. Desse
modo, pode-se dizer que Hilda não consegue desenvolver em Londres o senso de lar, porque
não reconhece nenhuma percepção positiva com o lugar.
Observa-se, no conto em análise, a associação entre memória e a reivindicação da
identidade cultural, pois é através desses momentos revividos que Hilda percebe que o Caribe
sempre foi o seu lar, e decide que é tempo de voltar. Segundo Maurice Halbwachs, através das
lembranças, o sujeito aprende a se situar na história, transportando-se imaginativamente ao
passado e relacionando a evocação com o presente. Esses pontos de referência tanto mais
fortes serão quanto mais estiverem vinculados a um espaço e tempo compartilhados com um
grupo.217
Assim, Hilda, através de suas lembranças da pátria natal, mantém o passado vivo, e
rememora os laços familiares e os espaços que os abrigaram, a fim de suportar a realidade
presente na pátria-mãe. Então, o senso de lar está vinculado à memória, e que a rememoração
da infância e juventude poderosamente influencia Hilda em seu desejo de retorno a Barbados.
Por outro lado, como Carole Boyce Davies escreve, a migração cria o desejo de possuir
um lar, o que, por sua vez, leva à reescrita desse lar. A saudade ou a falta de um espaço físico
a que se possa chamar de lar, como na condição ―sem teto‖, a rejeição do lar ou o intenso
desejo por ele podem levar a essa reescritura nostálgica e imaginativa.218
Afinal, como
repetidamente enfatizado, o grau de deslocamento do lar é crescente e diretamente influencia
tanto o desejo como a atribuição de sentido a ele.219
No entanto, como Shröder alerta, a nostalgia e a idealização tornam-se perigosas quando
usadas na tentativa de localizar o lar em algum lugar no passado, idealizando-o a tal ponto que
nunca mais poderá ser alcançado novamente pelo sujeito. Além disso, pensar o lar como um
lugar imutável, estático, restrito e fechado, é atribuir-lhe concepção exclusiva e limitada.220
Tais construções de lar tornam-se muitas vezes utópicas, e a noção de retorno é,
frequentemente, uma projeção escatológica ou utópica em resposta a uma presente distopia. A
alusão ajusta-se perfeitamente ao caso de Hilda, cujos sonhos de uma vida positiva e ideal na
Inglaterra estão completamente arrasados. Por outro lado, a idealização da terra de origem
217
HALBWACHS, 2006, p. 75-76. 218
DAVIES, 1994, p. 113. 219
TERKENLI, 1995, p. 327. 220
SCHRÖDER, 2006, p. 35.
98
pode resultar também em utopia, já que a imagem congelada na mente do migrante ignora
possíveis transformações, que podem vir a fazer com que venha a sentir-se deslocado em sua
própria terra.221
Esse é o desafio do personagem Hilda no momento do retorno a Barbados: a realidade
encontrada é confrontada com o conteúdo idealizado, alimentado pela memória e tantas vezes
revisitado pelos caminhos da imaginação. Hilda sente-se uma estranha na sua terra natal.
Tudo está muito diferente, o que a deixa bastante decepcionada, pois parece desconhecer
aquele lugar; inclusive a casa onde viveu não é mais a mesma. Ademais, convém ressaltar
que, ao migrar para a Inglaterra, foi num barco cheio de jovens assim como ela, agora retorna
de avião, sozinha e aposentada.
Essa situação requer a construção de uma nova identidade. Não é mais possível voltar
ao momento anterior à diáspora, da mesma forma que não é mais a mulher exilada numa terra
que não reconhece como sua. A identidade do personagem que retorna busca dar conta tanto
dos elementos conservados pela memória, como das experiências vividas na Inglaterra
(constituição da família) e da nova realidade encontrada na terra natal.
Pode-se dizer que, tanto na partida quanto no retorno, a protagonista apresenta
sentimentos em comum: o da esperança e o da frustração. Em Londres, tem esperança de ser
bem sucedida e, no Caribe, de reconhecer a sua terra e as pessoas que ali vivem. A decepção a
faz conviver com o preconceito e a solidão na pátria-mãe e, no Caribe, leva-a a perder o senso
de lar, pois não tem mais domínio e controle sobre o seu espaço, nem laços comunitários e
familiares.
Segundo Hilda, voltar é bem diferente de ir, pois como estava tudo tão mudado, sentia-
se muito mais ―caribenha‖ em Londres do que em Barbados, que não reconhece, tantas são as
inovações: bancos na praia, mesas para piquenique, novo caminho para a praia, Shopping
Center completo com supermercado, farmácia e loja de roupas, competição com premiação,
na Páscoa, da desossa de peixes. Esse tipo de experiência é comum na vivência do migrante.
Ao entrevistar migrantes barbadianos que retornam para o Caribe, Mary Chamberlain percebe
que muitos sentem dificuldade em se religar às suas sociedades de origem, pois as mudanças
sofridas no espaço lhes dão uma sensação de ―não estar em casa‖.
Muitos sentem que a ―terra‖ tornou-se irreconhecível. Em contrapartida, são vistos
como se os elos naturais e espontâneos que antes possuíam tivessem sido
221
SAFRAN apud CLIFFORD, 1994, p. 305.
99
interrompidos por suas experiências diaspóricas. Sentem-se felizes por estar em
casa. Mas a história, de alguma forma, interveio irrevogavelmente.222
Pode-se ainda relacionar o desejo de retorno de Hilda para Barbados à metáfora do
ninho e da concha, presente na teoria de Gastón Bachelard. Segundo o autor, o ninho, para o
pássaro, é uma terna e quente morada. É uma casa de vida.223
Está associado à imagem de
descanso, de tranquilidade e simplicidade; uma ―casa‖ onde se volta ou se sonha voltar como
o pássaro volta ao ninho, como o cordeiro volta ao aprisco.224
Essa volta à terra natal, ao
ninho, desencadeia o devaneio da segurança, é um refúgio absoluto, e corresponde a voltar às
origens da casa onírica, pois a confiança nesse lugar é inata.225
A experiência da hostilidade
vivida por Hilda leva-a a sonhar em se defender dessa agressividade e desejar contemplar o
seu ―ninho‖: pensa que o bem-estar só poderia ser reencontrado no seu canto do mundo natal.
Curiosamente, descreve a construção original de sua casa em Barbados como se
assemelhando a uma concha: ―Over the years she had replaced the wood with stone,
gradually encasing the original building in an outer shell, in the time-honoured way of the
island.‖226
Assim, pode-se relacionar esse lugar de morada a um lugar de proteção, onde estão
―alojados‖ o inconsciente e as lembranças da protagonista. A imagem da concha está
associada à segurança, como já comentado na análise do conto ―The Gully‖. Contudo, esse
lugar de proteção não é vivido por Hilda exclusivamente na casa-concha de Barbados; a paz
que a ilha lhe proporciona pode ser comparada aos momentos passados em Londres, quando
Hilda transmitia amor, aconchego, proteção e segurança a seus pequenos londrinos, seus
netos.
De volta a Barbados, após os momentos iniciais em que vê desfeita a imagem que
congelara da ilha, aos poucos, Hilda vai se recuperando do seu isolamento, pois conhece
Vincent, um homem que também é solitário e começam a construir laços afetivos. A partir de
então, além de viver em um território que é seu, num espaço sob o qual tem controle e se
sente segura, não sendo discriminada, encontra em Vincent o relacionamento significativo de
que carece. A seu lado, começa a readquirir a sensação de tranquilidade ao vir para casa, não
precisando mais se apressar ao caminhar; agora descansa seus membros no calor. Ouve turista
falando em inglês na praia, mas não mais necessita temer palavras de desdém a ela dirigidas
naquela língua.
222
CHAMBERLAIN apud HALL, 2009, p. 27. 223
BACHELARD, 1988, p. 169-170. 224
Ibidem, p. 173-174. 225
Ibidem, p. 176-177. 226
HENFREY, 1994, p. 89. [...] Com o passar dos anos ela tinha trocado a madeira por pedra, gradualmente
revestindo a construção original com uma concha exterior, da maneira como sempre foi feito na ilha. [...].
100
Aos poucos, Hilda vai encontrando a alegria de viver, pois consegue reparar as rupturas
de sua história pessoal. A retomada de seus vínculos com a comunidade da ilha permite-lhe o
desenvolvimento da percepção de lar. Segundo Theano Terkenli, uma cidade ou vizinhança
representa lar para seus habitantes, porque seus conteúdos contêm representações de si, do
grupo e da sua cultura.227
Logo, esse espaço tem conotações fundamentais que funcionam
como referências importantes para o indivíduo, e os relacionamentos desenvolvidos são,
também, significativos.
Hilda reconstrói seu espaço, o seu senso de lar, de família estreita. Contudo, afasta-se de
Vincent para dedicar todo o seu tempo à neta Claudette, agora com dezesseis anos, que vem
para o Caribe para passar suas férias. A jovem se identifica rapidamente com a ilha,
admirando suas belezas e fazendo amizade com outros jovens da sua idade. Foram momentos
muito importantes vivenciados pelas duas gerações, pois um novo vínculo entre Hilda e
Claudette é formado, onde afeto, credibilidade e confiança são ampliados.
Com a partida da adolescente, a avó vive uma solidão que lhe tira a sensação de
liberdade que pensava ter encontrado na sua pátria natal, pois percebe que relações
significativas constituem um elo muito forte para tornar um lar expressivo. E o seu estava
incompleto, pois seus netos e filhos permanecem em Londres e a amizade de Linton fora
seriamente comprometida. Assim, a Inglaterra ainda se faz presente nos seus sonhos e não só
pelos anos tirados de sua vida, como pela família que lá deixa.
Pode-se dizer que Hilda consegue despertar em Claudette o orgulho pelas suas origens e
tradições, através da vivência em Barbados. Talvez agora Claudette consiga compreender sua
herança cultural. A carta de agradecimento da neta pelos maravilhosos momentos
compartilhados na ilha não demonstra apenas gratidão pelo lazer, mas, também, porque
descobre a sua história.
Percebe-se, dessa forma, que tanto a neta quanto a avó constroem uma noção de lar,
porque ambas têm relações de pertencimento e de identificação bem definidas, controle sobre
seu espaço, associando a família, pessoas e amigos. Para Daniel Miller, o lar não precisa ser o
destino da viagem, mas o lugar do qual se parte e para o qual se retorna pelo menos em
espírito. Esse retorno é uma viagem simbólica, constitutiva de significado que permitirá ao
indivíduo adquirir um senso de história e identidade.228
Nesse sentido, também o Caribe
torna-se um lar para Claudete.
227
TERKENLI, 1995, p. 327. 228
MILLER, Daniel. Home Possessions. New York: Berg, 2001, p. 88.
101
O título deste conto, ―Coming Home‖ (Volta ao lar), está relacionado a retorno, e pode
ser associado à atitude de Hilda de voltar para o seu lar, para a sua terra natal. Na concepção
de Gilroy, a diáspora é uma ―via de mão dupla‖,229
um movimento de ida e volta ao qual se
podem relacionar momentos de melancolia, de incertezas, lembranças, valores culturais e
esquecimentos. Tal movimento leva o indivíduo a se adaptar ao novo ambiente, conduzindo-o
a uma reflexão acerca de sua identidade, da sua cultura, que é diferente daquele país no qual
passa a viver. Assim, o movimento de ―ir‖ está associado tanto à esperança como a
decepções; quanto ao ―vir‖, pode-se conectar ao desejo do encontro da paz, da felicidade, do
reencontro com as raízes, embora por vezes, como acontece com Hilda, também possa trazer
desilusão.
Para Hilda, o Caribe é o seu ninho, um signo de retorno, que lembra a descrição de
Bachelard da casa-ninho:
A casa-ninho nunca é nova. Poder-se ia dizer, de uma maneira pedante, que ela é o
lugar natural da função de habitar. A ela se volta, ou se sonha voltar, como o pássaro
volta ao ninho, como o cordeiro volta ao aprisco. Este signo do retorno marca
infinitos devaneios, pois os retornos humanos se fazem sobre grande ritmo da vida
humana, ritmo que atravessa os anos, que luta contra todas as ausências através do
sonho. Sobre as imagens aproximadas do ninho e da casa repercute um componente
de íntima fidelidade.230
Neste conto, percebe-se que o movimento diaspórico Barbados - Inglaterra afastou
Hilda e Linton apenas geograficamente da sua terra natal, pois eles a mantiveram em sua
memória. Aliada ao sentimento de ―não estar em casa‖ na Inglaterra, tal fidelidade contribuiu
para fortalecer seus elos de pertencimento com Barbados.
Em movimento diaspórico transnacional, Hilda e Linton escolhem ir para a Inglaterra,
onde pensam poder prosperar. Ocorre, porém, que a pessoa e/ou grupo diaspórico tem uma
cultura própria, que difere da cultura do país que a recebe, tendo, portanto, problemas de
adaptação no país hospedeiro, que comparam com seu lugar e cultura de origem, surgindo o
sentimento de não pertencer. Hilda idealiza um lar nessa nova pátria, tendo como referência
suas experiências na terra natal. Experiências de preconceito social e racial vividas pela
protagonista não fornecem uma base sólida para que ela desenvolva a percepção de lar, pois
com os sujeitos provenientes de movimentos migratórios há uma problemática em seu
relacionamento com o espaço público, especialmente quando há uma classificação entre ―nós‖
e ―eles‖, como acontece com Hilda e Linton. Essa diferenciação, fundamental na construção
229
GILROY, 2001, p. 21. 230
BACHELARD, 1988, p. 173-174.
102
de espaços, faz com que o sujeito se sinta pertencente ou não a um lugar. Como o casal não se
identifica com a pátria-mãe, não sente aquele espaço como seu lar.
O componente social, importante para a dimensão de lar, só é encontrado pela
protagonista ao retornar para a pátria natal, porque na Inglaterra, tal qualidade está
incompleta, já que este país não lhe permite relacionamento com a comunidade britânica. Em
Barbados, Hilda encontra valores nacionais, sua identidade cultural, experiências que lhe
permitem ter o controle do espaço, atribuindo-lhe segurança. Embora logo ao retornar
experimente estranhamento, devido às mudanças sofridas no decorrer do tempo, não deixa de
identificar seus vínculos com o lugar e de desejar reconstruir elos familiares, pois reconhece
seu lugar de nascimento, o que lhe dá a convicção de pertencimento e de enraizamento ao
lugar, associações fundamentais para que o indivíduo reconheça o espaço como seu lar.
103
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Esta investigação partiu do questionamento acerca da problematização do conceito de
lar no contexto da diáspora africana no Caribe, em especial em Barbados, como percebida
através das situações vividas pelos personagens que compõem as narrativas da coletânea
Coming Home and Other Histories, de June Henfrey. Da narrativa da travessia em navios
negreiros, à reiterada tematização da experiência escrava nas plantations, as narrativas
estendem à história pós-escracravocrata, quando, todavia, o negro ainda retém status inferior,
social e etnicametne discriminado, avançando ainda até o registro da migração negra à
Inglaterra na geração Windrush, em meados do século XX. A coletânea abraça, assim, séculos
da história de Barbados, e traz o negro à visibilidade através de contos em que é o
personagem principal.
Tanto a diáspora pré-transnacional como a transnacional estão presentes nos contos
analisados. A primeira é representada em ―The Gully‖, quando Quashebah, a protagonista,
lembra-se de momentos de dor e exaustão vividos na sua travessia, e em ―Love Trouble‖,
através das histórias que Rose contava a sua neta Sarah, acerca do modo como ela e seus pais
chegaram até a fazenda Grande Esperança. Em ―Cane Cutter‖ e em ―Freedom Come‖, a
experiência da travessia não está explícita, mas subentendida, pois vivem no período
escravocrata. A diáspora transnacional faz-se presente em ―Goodnight, Miss Simmons‖ e
―Coming Home‖. Há, ainda, a ocorrência da migração em reverso, representada, no universo
dos contos, pela emigração de caribenhos de Barbados para a Inglaterra personificada nas
personagens Hilda e Linton do conto ―Coming Home‖.
Na perspectiva da história de Barbados, os contos trazem, recorrentemente, a
representação da diáspora como um movimento de migração forçada, na qual milhares de
escravos foram transportados de diferentes ilhas, suportando e se submetendo às mais
desprezíveis situações que se possa imaginar. Esse processo de grande violência põe em
relevo o negro barbadense, objeto desta pesquisa, contrastando-o com o senhor branco.
Consequentemente, há a valorização de sua identidade cultural: ressaltar a visão desse negro
como diferente, objetificado, mera mercadoria e mão-de-obra, traz visibilidade a esse escravo
sofredor.
104
Nesse contexto, torna-se extremamente relevante para esta pesquisa pensar sobre
pertencimento à luz da diáspora, para compreender como a construção do sentido de lar é
afetada em tais circunstâncias. Características da diáspora, como, por um lado, o apego a
mitos ou memória da terra de origem, e a definição da identidade coletiva a partir desse
relacionamento e, por outro lado, a alienação no país de hospedagem e desejo de retorno
eventual permanente, estão presentes nos contos. Em ―Love Trouble‖, ―The Gully‖ e em
―Coming Home‖, ressalta-se o apego à terra de origem e o desejo de retorno. No primeiro
desses contos, embora Rose, a protagonista, jamais tenha estado na África, desenvolve
conhecimento do continente de onde vieram seus ancestrais por meio de histórias narradas
pelo avô. Quanto à alienação no país de hospedagem e desejo de retorno eventual, observa-se
em ―The Gully‖, ―Coming Home‖ e ―Freedom Come‖.
Outro aspecto observado foi a migração em reverso, isto é, a emigração significativa
da colônia para a metrópole, como Hilda e Linton, que migram de Barbados para a Inglaterra
na perspectiva de prosperar. Em ―Coming Home‖, Hilda e seu marido, Hilton, ao enfrentarem
experiências numa nova cultura, confrontam-se com uma linguagem diferente, de hostilidade
e exclusão, em uma sociedade dominada pelo racismo, que os submete a um processo de
estranhamento, desencadeando memórias da ‗casa‘ distante, da pátria natal. Tal sentimento
leva à experiência do desenraizamento em Londres, aguçando o seu desejo pelo lar da
infância e da juventude, que se mantém vivo na memória. Nesse conto, o lar não está
associado a um único lugar, pois Hilda desenvolve a dimensão de lar na Inglaterra e na pátria-
natal, visto que constrói uma família em Londres, onde deixa um forte vínculo afetivo, e em
Barbados, que reconhece como o seu lar, sentindo a convicção de pertencimento em relação à
terra onde nasceu.
June Henfrey permite analisar a diáspora como processo que confunde a mecânica
cultural e histórica do pertencimento, pois o vínculo com o lugar, assim como a posição e
consciência, é rompido. A chave da diáspora não se encontra na raça e, sim, nas formas geo-
políticas e geo-culturais de vida resultantes da interação entre sistemas comunicativos e
contextos incorporados, modificados e transcendidos. Em ―Goodnight, Miss Simmons‖, por
exemplo, ainda que ambientado no período pós-escravocrata, permanece o domínio do
território pelo branco. Alvos de preconceito, discriminação social e racial, os indivíduos de
cor negra desejam romper com suas próprias origens, negando sua identidade cultural para
serem aceitos, mesmo que de uma forma falsa, pelo branco. Em ―Love Trouble‖, Sarah rompe
com sua comunidade negra e com sua avó Rose, nega ou rejeita suas origens pra viver com o
branco. Em ―Freedom Come‖, alguns escravos negros também traem suas origens, só porque
105
possuem pele mais clara, tratando os outros escravos com superioridade para serem aceitos
pelo branco. ―The Gully‖ revela a situação de mulher escrava que se submete à exploração do
branco em troca de algum benefício; em ―The Cane Cutter‖, Reuben acredita ser valorizado
pelo branco, até que se liberta ao ―conversar com as canas‖.
Em ―Coming Home‖, a diáspora se confunde com um afastamento não só corpóreo,
mas também imaginativo, o qual desencadeia no sujeito um sentimento de ―não estar em
casa‖, questionando o pertencimento tanto no estrangeiro como em Barbados. Este
deslocamento imaginativo também pode ser observado em ―The Gully‖, no qual Quashebah
refugia-se no barranco e mais tarde em pensamento, para imaginar estar mais perto da África;
em ―Freedom Come‖, Nanny sonha com a liberdade para voltar à terra natal e, em ―Love
Trouble‖, a avó Rose, embora não conheça a África e viva com sua comunidade negra na
plantation, sonha com a terra de seus antepassados.
Essa variedade de contextos sócio-históricos proporciona situações diversificadas para
a análise da experiência de estar ou não no lar. Como exposto no capítulo 3, a acepção de lar
está associada não só à dimensão espacial, mas implica controle real sobre o espaço e
investimento contínuo sobre ele, através de dimensão histórica, i. e., a construção, ao longo do
tempo, de hábitos e rotinas, bem como através da construção de relações sociais
significativas. Em contos ambientados sobretudo nas plantations à época da escravidão, seria
de esperar que, desprovidos de liberdade, e desrespeitados como seres humanos, os escravos
dificilmente poderiam construir a dimensão de lar. É difícil pensar que seja possível a um
escravo considerar o lugar onde é menosprezado como a sua casa, ou viver em paz,
desenvolver valores familiares, afetos e de cidadania.
Este raciocínio parece se confirmar, à primeira vista, especialmente se lar for pensado
apenas a partir das conotações de lar em que a ideia partilhada comum é a de habitação e
afeto, e, a partir daí, afeto pelo lugar de moradia, em relação ao qual se mantém uma relação
especial ao longo da vida. Essas noções, implícitas na etimologia do termo a partir das línguas
indo-germânicas, não se confirmam em todos os contos.
Como os personagens vivem sob a condição de escravos, especificamente em ―The
Gully‖ e ―Freedom Come‖, a Casa Grande não lhes desenvolve um sentimento de lar, mas de
habitação. Esta é também a noção compartilhada por Reuben, em ―The Cane Cutter‖; no
mesmo conto, porém, para Silas, cuja história se desenrola após a escravidão, o lar não
compreende apenas habitação, mas se verifica sentimentos de afetividade e investimento no
local de moradia. Em ―Love Trouble‖, na casa partilhada com Bishop, Sarah alcança construir
apenas parcialmente o senso de lar quando se distancia de sua comunidade, já que vive
106
isolada, apenas convive com o amante e alguns empregados e, mais tarde, com os filhos. Já
para Rose, o local onde mora coincide com o senso de lar, sendo um lugar querido, em que
pode investir social e emocionalmente. Nos contos ―Goodnight, Miss Simmons‖ desintegra-
se, a par da ruína econômica, o senso familiar, e a casa de Eva passa a ser, também, mero
domicílio. Já em e ―Coming Home‖, a afetividade em relação ao local de habitação pode
apenas desenvolver-se quando Hilda retorna a sua terra natal, pois em Londres, mesmo
quando adquire casa, tendo, pois controle sobre ela, o preconceito não permite que se sinta
realmente pertencente.
Escravidão e preconceito também dificultam pensar em lar a partir das conotações
evidentes na etimologia latina, como domus, lugar de domesticidade, valores associados à
família, simplicidade e paz. Quando essa domesticidade e amor estão presentes, fazem
lembrar a proteção associada à concha e ao ninho, como em ―The Gully‖, ―The Cane Cutter‖
(Reuben), ―Love Trouble‖ e ―Coming Home‖.
Prosseguindo no raciocínio sobre lar a partir de suas raízes etimológicas, as noções de
construção, como em aedes, de lugar de descanso (mansio) ou ainda de permanência (maneo,
de onde deriva mansio) também apenas dificilmente se sustêm em presença da falta de
liberdade. O lugar se transforma em lar no momento em que há interação do indivíduo com o
meio ambiente, através de comportamentos pessoais e culturais, os quais irão atender aos seus
propósitos tornando-se símbolos de si mesmos. Este lar não precisa necessariamente estar
num local específico, mas deve estar associado ao estado de espírito, à liberdade de
pensamento e à percepção da identidade, além do sentimento de pertença. Apesar das
circunstâncias, os negros, representados como sofredores e discriminados, mas sempre como
agentes, constroem um lar, ainda que precário, mesmo em um barranco – a Quashebah e I-
Malachi, em ―The Gully, ou em meio às canas, como Reuben, em ―The Cane Cutter. Em
―Love Trouble‖, Rose, ao contrário da neta, Sarah, para quem o lar se confunde com
habitação, fundamentado em quatro paredes, constrói o lar na simplicidade das habitações dos
negros, mas na segurança e conforto de sua companhia.
Para Nanny, em ―Freedom Come‖, o lar é ainda uma projeção imaginativa; para
Hilda, em ―Coming Home‖, concretiza-se ao voltar à terra natal; até esse momento, deslocada
na Inglaterra, o lar permanece apenas em suas lembranças. Em ―The Cane Cutter‖, que
contrasta a situação do negro nos períodos escravocrata e pós-escravocrata, Silas, já liberto,
constrói apego a um espaço que pode chamar de ser, sobre o qual tem controle, e no qual
desenvolve relações significativas. Em ―The Cane Cutter‖, por exemplo, o lar é construído
nessas duas dimensões. Silas, juntamente com sua família, tem uma habitação com as
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características básicas para chamar de lar: controle sobre o espaço, pertencimento ao lugar,
relações de afetividade, familiaridade, bem-estar, sociais, repetição; o lar também é coletivo,
porque vem a ser delineado pela etnia, nacionalidade e parâmetros ideológicos, já que faz
parte de uma comunidade negra, na qual até a forma de trabalho é comunitária. O escravo
Reuben, contudo, não tem concepção de lar, pois essas dimensões não são identificadas:
caracteriza-se como um ser solitário, que se relaciona apenas com as canas.
Contrasta com o lar construído por Silas o extremo despojamento de um barranco, em
―The Gully‖, em que, contudo, percebe-se a construção de lar por Quashebah: mais tarde,
quando lhe é impossível desfrutar do espaço físico do barranco, este permanece em sua
imaginação. Anos mais tarde, o Rastafari I-Malachi, da mesma forma, faz do barranco seu lar
ate o dia em que lhe retiram de lá. Na quietude do barranco, ambos são capazes de construir
suas próprias rotinas, desenvolver apego ao lugar, avaliar ou construir relacionamentos e,
acima de tudo, ter o controle do espaço habitado.
Percebe-se a dinâmica lar/não lar nos contos, através das situações vividas pelos
personagens. Em ―The Gully‖, os protagonistas, Quashebah e I-Malachi, encontram o seu lar
no barranco. Embora temporário, lembra à escrava sua África natal: as árvores frutíferas, o
cheiro da terra e da vegetação, o som do mar, o som da água escorrendo por debaixo do solo,
a umidade, a tranquilidade, a sensação de liberdade remetem ao lugar em que passou seus
primeiros anos. Esse lugar especial contrasta com a senzala e a sociedade organizada, lugares
execráveis para esses personagens. Em contraste, para ambos, o barranco torna-se lar, porque
têm controle sobre o espaço, e desenvolvem afetividade para com o lugar vivenciado como
lugar de proteção, de refúgio. Essas características também podem ser detectadas em ―The
Cane Cutter‖, com Reuben e sua afinidade com as canas. Em ―Goodnight, Miss Simmons‖, a
dinâmica lar/não lar é estruturada a partir do contraste entre o tempo, em que a família era
próspera e unida, e a época presente, em que o conto se passa, quando já se estabelece a
decadência econômica e a desagregação familiar. Em ―Coming Home‖, essa dinâmica se dá
no contraste entre Barbados e Londres. Já em ―Freedom Come‖, há uma desconstrução do
conceito de lar, não há um desenvolvimento de afetividade e familiaridade, segurança,
controle sobre o espaço, sentimento de proteção e de pertencimento.
Como parte da dinâmica do processo de construção de lar, ou regiões-lar, percebe-se o
valor agregador da comunidade. O sentimento de desarraigamento leva-os ao
desenvolvimento do espírito solidário: unem-se em comunidades, como uma forma de
manterem os laços culturais e reforçarem os mitos de origem. Na narrativa ―The Cane
Cutter‖, Silas e a esposa vivem em uma comunidade negra, na qual o sistema de trabalho é
108
comunitário. Reuben é cuidado pelas escravas negras mais velhas depois que a sua mãe
morre. Rose, em ―Love Trouble‖, desperta na neta o desejo de viver à época da sua juventude,
quando mais forte era o espírito colaborativo entre os negros. Hilda é acolhida logo que chega
em Londres por outros caribenhos, assim como o seu namorado já o fora, em ―Coming
Home‖.
Enquanto Sarah e Eva constroem ou desconstroem o senso de lar com relação ao local
de domicílio, em outros contos, percebe-se que o lar não precisa estar fixo no espaço, ou
implica deslocamento para que seja construído. Este último é o caso de Quashebah e I-
Malachi e Hilda.
Para além da dimensão privada de lar, sua extensão pública de lar, associada à pátria
de origem, também se identifica nos contos. Essa dimensão coletiva de lar, associada ao ―país
de origem‖, ou lugar de nascimento, faz-se presente nos contos ―Love Trouble‖, ―The Gully‖
e ―Coming Home‖. Para Hilda, a ideia de lar está relacionada à terra natal, da mesma forma
que para Quashebah e Rose. Contudo, o referente difere: Hilda lembra-se de Barbado:
Quashebah e Rose evocam vivência de liberdade associada à África.
A análise de Coming Home ainda permite dizer que a memória está relacionada com a
concepção da palavra lar, pois remete a lembranças do passado que influenciam na formação
da identidade, sendo importantes referências para o indivíduo. A memória faz Hilda, Rose,
Quashebah, I-Malachi e Nanny lembrar do passado, às suas origens e lembranças da infância
ou relacioná-lo ao presente, permitindo-lhes reconstruir sua identidade cultural no novo
mundo.
A análise valeu-se do estudo imagológico para estudar o processo de socialização
resultante do encontro de duas culturas em confronto, quer na ambiência da escravidão quer
na imagem do negro como estrangeiro na Inglaterra. Nas histórias de Coming Home, June
Henfrey, o confronto da cultura negra com a dos brancos permite o exame da imagem do
negro na perspectiva de uma tomada de consciência do Eu negro em contraposição ao Outro,
branco já que os negros são os protagonistas dos contos e, embora representados como
sofrendo maus tratos e discriminação, assumem a postura de sujeito. Ademais, as experiências
vivenciadas pelos negros barbadenses, obrigados a viverem sob as ordens do branco, de
diferentes formas e não apenas no período escravocrata, narradas a partir da experiência do
negro, permitem outra visão da história centrada nos sujeitos marginais.
Em ―The Gully‖, por exemplo, a exposição do modo como Quashebah tem de se
sujeitar às vontades de Blackett, que se sente no direito de castigar-lhe ou exigir-lhe
obediência, chicoteando-a sem piedade, exemplarmente, diante dos outros escravos, provoca
109
no leitor admiração pelo negro e desprezo pelo branco. Percebe a protagonista como sujeito
ativo, que se mantém com coragem e preservando sua dignidade. O narrador apresenta o
sujeito negro como superior, não submisso, admirável e forte, ao contrário da imagem do
branco, passando este a ser o inferior e o desprezível.
No conto ―The Cane Cutter‖, Reuben, que não conhece outro mundo a não ser o das
canas, o mundo do branco, toma consciência de sua identidade, no momento em que percebe
ser visto pelo branco como mão de obra, fonte de renda. Em ―Freedom Come‖, Nanny não se
preocupa em salvar a família dos brancos da Casa Grande do incêndio durante a rebelião, pois
também se dá conta de que, apesar do tratamento cortês, é-lhe negado o bem maior, a
liberdade.
Através dos contos, há a representação de uma realidade cultural por meio da qual
June Henfrey revela e traduz seu próprio espaço cultural e ideológico. Essa autora negra, que
nasceu e cresceu em Barbados, ex-colônia britânica no Caribe, experimentou uma realidade
de extrema diversidade e fragmentação, oriunda do confronto entre as culturas europeias e
africanas e bem conhece o que significa sentir-se deslocado. Do ponto de vista narrativo, é
estabelecida uma imagem do observador impossível de evitar, pois se identifica o seu
pensamento, geração, país, cultura, espaço.
A autora é negra, barbadense. Ela representa a cultura que ―olha‖. Ao referir-se ao
―Outro‖, ao branco, coloca o seu mundo, a mundividência negra barbadense, como o lugar de
onde parte esse ―olhar‖ ou ―juízo‖. Percebe-se que Henfrey, em todas as narrativas, tem como
personagem central negros trabalhadores, corajosos, honestos, dignos, respeitáveis, alinhados,
bonitos, atraentes, corajosos, líderes, competentes, bem-sucedidos. Além disso, a autora
consegue fazer com que o leitor valorize a cultura do negro através das histórias dos
personagens, pois o percebe não como uma vítima que sofreu nas mãos do branco, mas como
um guerreiro, um ser forte, bravo, determinado, que também tem uma cultura da qual pode
orgulhar-se e a qual pode respeitar.
O leitor consegue entender as atitudes tomadas pelos negros sem recriminá-los, pois a
autora faz com que ele viva o personagem, isto é, se coloca no seu lugar assumindo a posição
do Eu, a cultura que olha. Sendo assim, compreende-se a atitude de Sarah em desejar ter sua
casa e, por isso, abandonar suas origens; Reuben, em assassinar a senhora Missie; Quashebah,
em praticar o aborto; I-Malachi, em querer organizar uma sociedade; Nanny, em não se
importar com a morte dos brancos; a prostituição de Edna; a propensão associativa de
Simmons, que esconder suas origens e viver no meio dos brancos, e a atitude dos pais de Eva,
110
que não valorizam Simmons. Entende-se, ainda, a revolta de Hilton e o desejo de retorno de
Hilda.
A partir do olhar de um outro, quatro atitudes fundamentais podem ser percebidas: a
mania, a fobia, a filia e o cosmopolitismo. Em ―Goodnight, Miss Simmons‖ e ―Love
Trouble‖, os personagens adotam a postura da ―mania‖, pois a cultura do estrangeiro é
apresentada como superior à cultura negra, de origem dos personagens, que veem o branco
como superior. ―The Cane Cutter‖ também apresenta essa atitude em Reuben, pois vive para o
branco. Na ―fobia‖, a realidade cultural estrangeira é concebida de forma negativa ou inferior
em relação à cultura de origem, originando uma sobrevalorização total ou parcial da cultura
de origem. É o que se percebe em ―The Gully‖, ―Freedom Come‖, ―Love Trouble‖ e ―Coming
Home‖, em que os personagens deixam claros a admiração pela sua terra natal e o orgulho
pelas suas origens e cultura. Ocorre a inversão do pensamento europeu colonizador; o espaço
privilegiado é a cultura negra e não a branca. Já na ―filia‖, em que a cultura estrangeira é vista
como positiva, prevalece a admiração mútua. Isso é perceptível, por exemplo, na avaliação de
Hilda do Caribe, que passa a avaliar positivamente tanto quanto a Inglaterra.
Já a atitude cosmopolita, em que não se apresenta qualquer valor positivo ou negativo,
de maneira imediata, e o ―estrangeiro‖ é visto como fazendo parte mais ou menos uniforme,
está presente no conto que faz um relato citadino ―Goodnight, Miss Simmons‖.
Aparentemente, a família Simmons tem lugar à sociedade, porém sofre preconceito quanto à
cor, não só do branco, como também, do negro. Essa subversão da aparente igualdade não
deixa de ser um comentário à real posição do negro em uma sociedade em que nuanças de
cor são bem marcadas.
A presente análise de Coming Home, a partir da construção e desconstrução de lar, e
seus temas correlatos – o deslocamento, o conflito na construção identitária, a exclusão, o
sentimento de não pertencimento, a migração forçada– não esgota as possibilidades
interpretativas da coletânea. Uma pesquisa nunca está terminada, sempre há o que acrescentar,
aprofundar. Assim, muitos caminhos analíticos, ainda, poderão ser buscados nessa obra, por
meio da investigação de vários elementos, tais como: o trauma consequente das violências
sofridas pela; os estereótipos sobre o negro; o preconceito não só entre brancos e negros, mas
também entre negros; a questão de gênero, centrada na mulher/homem negro; a análise da
função da memória nas narrativas, ou ainda o estudo centrado nas técnicas de construção da
narrativa.
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