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UNIVERSIDADE REGIONAL INTEGRADA DO ALTO URUGUAI E
DAS MISSÕES Reitor Luiz Mario Silveira Spinelli Pró-Reitora de Ensino Rosane Vontobel Rodrigues Pró-Reitor de Pesquisa, Extensão e Pós-Graduação Giovani Palma Bastos Pró-Reitor de Administração: Nestor Henrique de Cesaro Câmpus de Frederico Westphalen Diretora Geral Silvia Regina Canan Diretora Acadêmica Elisabete Cerutti Diretor Administrativo Clóvis Quadros Hempel Câmpus de Erechim Diretor Geral Paulo José Sponchiado Diretora Acadêmica Elisabete Maria Zanin Diretor Administrativo Paulo Roberto Giollo Câmpus de Santo Ângelo Diretor Geral Gilberto Pacheco Diretor Acadêmico Marcelo Paulo Stracke Diretora Administrativa Berenice Beatriz RossnerWbatuba Câmpus de Santiago Diretor Geral Francisco de Assis Górski Diretora Acadêmica Michele Noal Beltrão Diretor Administrativo Jorge Padilha Santos Câmpus de São Luiz Gonzaga Diretora Geral Sonia Regina Bressan Vieira Câmpus de Cerro Largo
Diretor Geral Edson Bolzan
ACTA NOVOS OLHARES: DA FORMAÇÃO DE PROFESSORES À
FORMAÇÃO DE LEITORES
1ᵒ a 3 de Setembro de 2015
Frederico Westphalen - RS ORGANIZAÇÃO DO EVENTO PPGL – Programa de Pos-Graduação - Mestrado em Letras COMISSÕES DE ORGANIZAÇÃO Coordenação geral: Ana Paula Teixeira Porto Denise Almeida Silva Luana Teixeira Porto Secretária Geral do Evento: Cláudia Maira de Oliveira 1 COMISSÃO DE PROGRAMAÇÃO CIENTÍFICA 1.1 Coordenação Técnico-Científica: Denise Almeida Silva, Ana Paula Teixeira Porto, Luana Teixeira Porto, Maria Thereza Veloso 1.2 Coordenação de palestras Ana Paula Teixeira Porto, Denise Almeida Silva e Luana Teixeira Porto 1.3 Coordenação de Sessão de Apresentação de Trabalhos: Denise Almeida Silva, Ana Paula Teixeira Porto, Luana Teixeira Porto 1.4 Coordenação de Editoria Científica: 1.4.1 Recepção de trabalhos Ana Paula Porto e Cláudia Maira de Oliveira 1.4.2 Anais Ana Paula Teixeira Porto, Cláudia Maira de Oliveira, Denise Almeida Silva, EmanoeliBallinPicolotto e Luana Teixeira Porto 1.5 Coordenação de Certificação: Franciele Bisello e Caroline Piovesan 2 COMISSÃO DE INFRAESTRUTURA: 2.1 Coordenação de Imprensa e Protocolo: Jeane Cristina da Luz 2.2 Coordenação de Informática: Mauricio Sulzbach 2.3Coordenação de Recepção: Marinês Vosta e Emanoelli Ballin Picolotto 2.4 Coordenação de Coffee-Break: Fatima Aquino e Cláudia Maira de Oliveira 2.5 Coordenação de Exposição e Venda de Livros: Tani Gobbi dos Reis 2.6 Coordenação de Divulgação Externa: Marines Ulbriki Costa, Adriane Ester Hoffmann e Laísa Bisol
UNIVERSIDADE REGIONAL INTEGRADA DO ALTO URUGUAI E
DAS MISSÕES CÂMPUS DE FREDERICO WESTPHALEN
PRÓ-REITORIA DE PESQUISA, EXTENSÃO E PÓS-GRADUAÇÃO DEPARTAMENTO DE LINGUÍSTICA LETRAS E ARTES
ACTA NOVOS OLHARES: DA FORMAÇÃO DE PROFESSORES
À FORMAÇÃO DE LEITORES
Organizadoras Ana Paula Teixeira Porto Emanoeli Ballin Picolotto
Luana Teixeira Porto
Frederico Westphalen 2016
Este trabalho está licenciado sob uma Licença Creative Commons Atribuição-NãoComercial-SemDerivados3.0 Não Adaptada. Para ver uma cópia desta licença, visite
http://creativecommons.org/licenses/by-nc-nd/3.0/. Organização: Ana Paula Teixeira Porto, Emanoeli Ballin Picolotto, Luana Teixeira Porto Revisão metodológica: Ana Paula Teixeira Porto Diagramação: Diego Bonatti Capa/Arte: Philipe Gustavo Portela Pires Revisão Linguística: Responsabilidade dos(as) autores(as)
N848a
Novos olhares (2016 : Frederico Westphalen, RS)
Acta Novos Olhares [recurso eletrônico]: da formação de professores à
formação de leitores / Organizadoras: Ana Paula Teixeira Porto ... et al. –
Frederico Westphalen : URI – Frederico Westph, 2016.
238 p.
Compilação dos melhores trabalhos apresentados (texto completo).
ISBN: 978-85-7796-178-8
Sistema requerido: Adobe Acrobat Reader
Modo de acesso: <www.fw.uri.br/site/publicacoes>
1. Literatura. 2. Estudos literários. I. Porto, Ana Paula Teixeira. II.
Picolotto, Emanoeli Ballin. III. Porto, Luana Teixeira. IV. Título.
CDU 82.09
Bibliotecária Gabriela de Oliveira Vieira
Catalogação na Fonte elaborada pela Biblioteca Central URI/FW
O conteúdo de cada trabalho bem como sua redação formal são de responsabilidade
exclusiva dos(as) autores(as).
URI - Universidade Regional Integrada do Alto Uruguai e das Missões Prédio 9
Câmpus de Frederico Westphalen Rua Assis Brasil, 709 - CEP 98400-000 Tel.: 55 3744 9223 - Fax: 55 3744-9265
E-mail: [email protected], [email protected]
Impresso no Brasil Printed in Brazil
SUMÁRIO
APRESENTAÇÃO .................................................................................................. 7
EIXO 1: Literatura, história e memória
MACABÉA NA TRILHA DOS MACABEUS BÍBLICOS ........................................... 9
Alcione Salete Dal’Alba Pilgel; Márcia Ivana de Lima e Silva
NARRATIVA E VIOLÊNCIA EM “A GENTE COMBINAMOS DE NÃO MORRER” 33
Andriéli Santos da Rosa; Denise Almeida Silva
O NEGRO NA NARRATIVA AFRICANA DE CASTRO SOROMENHO ................39
Claudia Maira Silva de Oliveira; Ana Paula Teixeira Porto
A MANTA DO SOLDADO, DE LÍDIA JORGE: A CONSTRUÇÃO DA IDENTIDADE
..............................................................................................................................49
Minéia Carine Huber; Ilse Maria da Rosa Vivian
A RELAÇÃO ENTRE A QUESTÃO DA MULTICULTURALIDADE E O CONTO ‘O
TERCEIRO E ÚLTIMO CONTINENTE’ .................................................................64
Deise Josene Stein
“JAVALIS NO QUINTAL”, DE ANA PAULA MAIA: VIOLÊNCIA E AMORALIDADE
..............................................................................................................................75
Diego Bonatti; Ana Paula Teixeira Porto
ESTAR À MARGEM E SEUS REFLEXOS: UMA LEITURA COMPARATISTA DOS
CONTOS “JAVALIS NO QUINTAL”, DE ANA PAULA MAIA E “O FETO”, DE
JOÃO MELO .........................................................................................................86
Emanoeli Ballin Picolotto; Ana Paula Teixeira Porto
IDENTIDADE E RACISMO EM “ANA DAVENGA” ................................................97
Liliane Gloria Martinelli Zatti; Denise Almeida Silva
MULHER-MÃE EM “VOZES MULHERES”, DE CONCEIÇÃO EVARISTO .........103
Maira Cristina Franzmann Pereira; Denise Almeida Silva
UMA PROPOSTA DE LEITURA DAS POESIAS DE SERGIO NAPP: O GAÚCHO
À MARGEM NO AMBIENTE CITADINO .............................................................110
Vanice Hermel; Laisa Veroneze Bisol; Adriana Folle
Acta Novos Olhares: da formação de professores à formação de leitores
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EIXO 2: Comparatismo e processos culurais
“BEM SERTANEJO”: UMA ANÁLISE DOS CENÁRIOS UTILIZADOS NO
QUADRO.............................................................................................................120
Katiele Cristiane Zingler; Larissa Bortoluzzi Rigo
PRIMEIRA PÁGINA: ANÁLISE DOS RECURSOS TÉCNICOS E DOS CRITÉRIOS
DE NOTICIABILIDADE DA FOTOGRAFIA PRINCIPAL DAS CAPAS DO JORNAL
NOVOESTE DE MARAVILHA-SC .......................................................................131
Larissa Bortoluzzi Rigo; Lysian Jhane Finger
JUREMIR MACHADO: UM CRONISTA DE SEU TEMPO ..................................150
Luciane Volpatto Rodrigues; Larissa Bortoluzzi Rigo
A REPRESENTAÇÃO DA VIOLÊNCIA SOCIAL: UMA ANÁLISE COMPARATISTA
ENTRE A OBRA FÍLMICA ALEMÃO E O CONTO “ANGU DE SANGUE” ..........168
Lilian Raquel Amorim de Quadra; Michele Neitzke
O VIÉS DA LEITURA EM UM ESTUDO COMPARATIVO DO CADERNO 2 DO
JORNAL O ESTADO DE S. PAULO ...................................................................175
Tonie Maria Gregory dos Santos; Tatiane Milani; Larissa Bortoluzzi Rigo
EIXO 3: Literatura, linguagens e ensino
CADEIAS REFERENCIAS EM TEXTOS DO GÊNERO ARTIGO DE OPINIÃO .191
Ana Lucia Gubiani Aita; Thainá Ariane Agostini Markosk
DIÁLOGO ENTRE LITERATURA BRASILEIRA E AFRICANA COM O USO DO
RECURSO TECNOLÓGICO HAGÁQUÊ ............................................................201
Ana Paula Teixeira Porto; Daiane Samara Wildner Ott
A PONTE PELA QUAL PRECISAMOS PASSAR ...............................................211
Bernadete Queiroz dos Reis Guerra
PAI CONTRA MÃE: RELEITURA DRAMÁTICA PARA GOSTAR DE LER .........220
Deisi Daiane Gehrke
FORMAÇÃO DE LEITORES DE LITERATURA NO ENSINO MÉDIO: ANÁLISE
DE UMA PROPOSTA DIDÁTICA DO PORTAL DO PROFESSOR ....................233
Jéssica Casarin; Luana Teixeira Porto
APRESENTAÇÃO
Em setembro de 2015, foi realizada a nona edição do evento Novos
Olhares, tradicional curso de extensão voltado a professores e estudantes da área
de Letras e afins. Promovido pelo Mestrado em Letras – área de concentração em
Literatura Comparada da Universidade Regional Integrada do Alto Uruguai e das
Missões - URI de Frederico Westphalen/RS, o curso teve como tema central
questões relacionadas à formação de professores e à formação de leitores,
entendendo-se que a leitura está ligada de forma especial ao trabalho
desenvolvido com alunos nas escolas de Educação Básica.
Em sua programação de atividades, o evento contou com a realização de
palestras seguidas de debate com o coordenador da mesa e com o público,
formado especialmente por alunos e mestrandos de Letras e professores das
redes públicas e privadas da região. A fim de atender necessidades da
comunidade local e ampliar a contribuição do Mestrado em Letras na qualificação
dos professores, no turno da tarde, o curso contemplou oficinas voltadas à
discussão de práticas de leitura, as quais foram ministradas por egressos do
Mestrado em Letras da universidade e mestrandos. Essas atividades
proporcionaram ampla interação entre as pesquisas realizadas no curso e a
inserção destas na comunidade regional.
Além disso, o curso Novos Olhares ainda oportunizou que acadêmicos de
graduação, mestrandos, pesquisadores e professores apresentassem resultados
parciais ou finais de suas pesquisas em sessões de comunicação. Essas
apresentações resultaram em duas publicações: os resumos dos trabalhos
apresentados no evento foram publicados em Anais; e os trabalhos completos
aprovados mediante avaliação estão reunidos em uma publicação específica, a
deste Acta. Desta forma, esta publicação reúne trabalhos distribuídos em três
eixos centrais: Literatura, história e memória; Comparatismo e processos
culturais; e Leitura, linguagens e ensino.
A todos uma boa leitura.
Acta Novos Olhares: da formação de professores à formação de leitores
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MACABÉA NA TRILHA DOS MACABEUS BÍBLICOS
Alcione Salete Dal’Alba Pilgel Márcia Ivana de Lima e Silva
RESUMO Este estudo se propõe a uma análise intertextual do romance A hora da estrela, de Clarice
Lispector, e os Livros dos Macabeus, do Antigo Testamento, com base na teoria da literatura de
Bakhtin, Julia Kristeva e tantos outros. Para que se efetive tal análise, pretende-se fazer uma
releitura dos textos com base na recuperação das teorias da intertextualidade (HELENA, 1977).
Diante disso, este trabalho quer ser um incremento aos estudos críticos sobre A hora da estrela,
de Clarice Lispector, no sentido de contribuir para ampliação da interpretação e análise da obra
dessa grande autora brasileira. Há na obra A hora da estrela a renovação da arte e do
pensamento modernista. Além disso, a linguagem bíblica é semelhante à linguagem da autora,
uma vez que esta não respeita a ordem dos acontecimentos. O texto de Clarice Lispector é
intertextual – recupera a história dos Macabeus – Macabéa segue a trilha dos Macabeus Bíblicos
– dialoga com os Macabeus, do Antigo Testamento.
Palavras-chave: Macabeus. A Hora da Estrela. Interrtextualidade. Literatura.
ABSTRACT This study proposes an intertextual analysis of the novel A Hora da Estrela, written by Clarice Lispector and The Book of Macabees, from Old Testament. Based on the theory of Literature in Light of Bakttin, Julia Kristeva and many others. In order to actualize this analysis, it was intended to make a rereading the texts based on the recovery of the intertextuality theories (HELENA, 1977). Thus, this work wants to be an increase to critical studies on A hora da estrela, by Clarice Lispector, in order to contribute to expansion of the interpretation and analysis of the work of this great Brazilian. There is in the work A hora da estrela the renewal of the art and the modernist thought. Besides, the biblical language is similar to the language of the author, since it does not respect the order of events. The Clarice Lispector's text is intertextual – it recovers the history of the Maccabees – Macabéa follows the trail of Biblical Maccabees – dialogues with the Maccabees, from the Old Testament.
Keywords: Maccabees. A hora da estrela. Intertextuality. Literature.
“Eu toco piano de ouvido, nunca estudei. Aliás eu vivo ‘de ouvido’, vivo de ter ouvido uma voz quente no passado e de ter descido do trem quase antes dele parar [...]”(Extraído dum dos últimos fragmentos manuscritos de Clarice – REMATE DE MALES, p. 60, 1989)
Introdução
Essa epígrafe possibilita-nos dizer que é provável que a autora tivesse
aprendido muito da cultura judaica do seu pai, que lia diariamente a Bíblia:
[...] As ligações da escritora com seu passado são profundas. A comunhão com o sagrado se manifesta de diferentes modos no seu texto, através da linguagem: a presença de Deus, o universo feminino nas suas ligações com uma tradição religiosa e cultural.(REMATE DE MALES, p. 107, 1989).
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Todo Judeu sabe o sentido de sua história, principalmente a função dos
pais judeus: “Você as inculcará em seus filhos[...]”(Dt.6,4-9).
Nas associações acerca da Bíblia e o Romance as figuras mais
relacionadas ao romance A Hora da Estrela são os opressores, os oprimidos e os
mártires. Essas associações entre a Bíblia e o romance observamos em:
Macabéa – não tem identidade – nem força – não luta contra as injustiças do
mundo. Macabeus –lutavam contra o poder dominante dos Gregos; eram fiéis ao
princípio do Monoteísmo, teimosos e corajosos – ideal rememorado na oração –
catáter religioso da resistência judaica.
Por isso, objetivamos evidenciar as relações entre o romance A Hora da
Estrela, de Clarice Lispector (1977), ano do último livro (oitavo romance) da
escritora e do último romance publicado em vida e a História dos Macabeus
Bíblicos, do Antigo Testamento.
No ano em que partia Clarice, tendo em vista que um “sopro de vida” –
compilação de fragmentos- ela concede à TV Cultura uma entrevista, em janeiro
de 1977, menciona que o livro é: ”a história de uma moça, tão pobre que só comia
cachorro quente. Mas a história não é isso, é sobre uma inocência pesada, de
uma miséria anônima”.
No enredo o namorado nordestino ao perguntar o nome dela revela o que
Clarice concede nesta entrevista: “E se me permite, qual é mesmo sua graça? _
Macabéa. _Maca, o quê? _Bea, foi ela obrigada a completar. _ Me desculpe, mas
até parece doença, doença de pele” (p. 43).
Clarice capturou o “ar meio perdido” do nordestino, na cidade do Rio de
Janeiro.
Os livros dos Macabeus não formam uma só história contínua, mas
descrevem ambos o mesmo período: sedo que 1MC vai de 17 até 134; 2MC de
175 até 161 A.C.
Na arquitetura do texto de 1MC,o texto está dividido em quatro partes
maiores, cada uma delas marcada pela presença de um “ator principal” diferente:
Cap. 1 e 2: Matatias; do Cap. 3,1 até o Cap.9,22: Judas – o Macabeu. Do Cap.
9,23 até 12,53: Jônatas; Cap. 13 a 16: Simão. Matatias, o pai, é o sujeito da
resistência. Da sua família nasce o movimento de resistência judaica, diz ele: “[...]
eu, meus filhos e meus parentes continuaremos vivendo de acordo com a Aliança
dos nossos antepassados”(1Mc 2,20).
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O enredo, o conflito, aLuta relaciona-se à maneira de lutar “reunir” todos os
que não aceitam os “males”. Objetivo da Luta: “Libertar o povo e a terra”.
OsGrupos em conflito: Nações X Israel.Nações: representam os “sem-lei”, os
iníquos, traidores da lei – provocaram uma bruta opressão: econômica, política e
ideológica do povo, sustentada pela força militar e pela violência.Israel – são os
que resistem até o martírio, mas não renegam a lei.
A arquitetura do texto A Hora da Estrela, de Clarice Lispector dá-se no
processo de composição, que a obra vai inscrever-se como síntese de um projeto
de escritura na medida em que, pela primeira vez, a autora toma como
protagonista de um romance um personagem saído das classes populares – a
exemplo da Literatura Realista / Naturalista – denúncia de injustiças contra os
despossuídos, fruto da desigual distribuição de renda.
A temática da palavra que recobre o silêncio de que é feita Macabéa e a
escrita sobre ela pode ser observada em: “Juro que este livro é feito sem
palavras. É uma fotografia muda. Este livro é um silêncio. Este livro é uma
pergunta”. (p. 21)
O tema entrelaça-se ao foco narrativo, por meio de um processo de
nascimento - doloroso e de configuração das três instâncias basilares da ficção
romanesca: o personagem, o narrador e a narração. Desvio na transparência
Real/Literatura, ao mostrar o “parto” desta personagem no seio mesmo do
ficcional, do inventado, do fingido. Dessa forma, Macabéa adquire uma
contundência poucas vezes encontrada na Literatura de tipo Realista. O crítico
Benedito Nunes já nos advertia para as 3 histórias que se conjugam no romance:
“Jogo Narrativo”.O círculo autoral em A Hora da Estrela resolve-se na instância do
ESTILO.
A uma certa altura da narrativo para desespero do narrador Rodrigo S. M.,
escreve: “Sim, estou apaixonado por Macabéa, a minha querida Maca,
apaixonado pela sua feiura e anonimato total, pois ela não é para mim” (p. 68).
Infelizmente á assim, Rodrigo é Clarice disfarçada, e, “matando” Macabéa,
concede à sua personagem à “hora da estrela”: “a “hora da estrela” é a nossa
morte, pois nesse momento o ser humano deixa de ser invisível às pessoas que
percebem que ele existe, apenas quando não existe mais” (p. 68).
O Jogo Narrativo, através do narrador Rodrigo S. M.personagem. As
iniciais do nome Rodrigo (S.M), caracterizam essa situação – Sobre Macabéa/
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Sob Macabéa.A primeira história: Macabéa; a segunda história, é a história do
narrador interposto que reflete sua vida na da personagem dentro de uma relação
ambígua que ele mantém com seu personagem. As iniciais do nome Rodrigo
(S.M), caracterizam essa situação – Sobre Macabéa/ Sob Macabéa.A terceira
históriaé constituída pela situação tensa e dramática. A intertextualidade teórica
ocorre através do procedimento da Intertextualidade parodística, Clarice segue a
trilha dos Macabeus, revisitando a História.
A análise centra-se nos temas: 1- O Nome; 2- A temática social; 3- A
morte.
1- Macabéa tem nome sugestivo, com associação histórica ou bíblica. O
Narrador Rodrigo evidencia essa pista quando diz: “Embora a moça anônima da
história seja tão antiga que podia ser uma figura Bíblica” (p. 58). Ela também quer
saber por que o namorado se chama Olímpio.
2- Macabéa – símbolo de todos os oprimidos e ratifica o princípio da
resistência do povo Macabeu. No entanto, há um esvaziamento de sentido nessa
existência de Macabéa visto que ela NÃO LUTA, esquiva-se do mundo sem
conhecer o mundo das palavras e seu significado. Exilada no Rio de Janeiro
numa sociedade que é toda feita contra ela.
Exilados no Templo de Sião, os Macabeus também se defrontavam com o
exílio temporal, histórico e cultural frente a Terra Prometida, mas estes ainda se
sustentavam sobre seus heróis épicos e o caos nutre-se com a LUTA contra os
gregos. Macabéa e Olímpio – nordestinos, tentam sobreviver, ascender
socialmente no R. J. embora não sejam aliados, ele a humilha e rejeita-a e vê
nela a representação do grupo oprimido: “_ Você, Macabéa, é um cabelo na sopa,
não dá vontade de comer. Me desculpe se eu lhe ofendi, mas sou sincero. Você
ficou ofendida? (p. 60).
Ouvir isso do namorado, um nordestino conhecido como um “cabra
safado”, Olímpio deve tê-la ofendido, quem não ficaria? Esse fato provocou uma
explosão nela e no dia seguinte substituiu o batom rosa pelo vermelho, queria
parecer-se com Marilyn Monroe, no banheiro da firma, na qual trabalhava como
datilógrafa pintou-se. No entanto Glória – sua colega de trabalho – riu-se dela:
“[...] _ Ser feia dói” (p. 62).
3- A Morte – A vida na morte sustenta a vida macabaica: Eleazar diante da
tortura é um modelo de resistência: “O criador do mundo na sua misericórdia lhes
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devolverá o espírito e a vida se vocês agora se sacrificarem pelas leis dele” (2Mc
7, 1-23).
Macabéa na hora da morte torna-se ESTRELA – explode em VIDA na hora
da MORTE. É na morte que Macabéa torna-se estrela na hora da morte. Na
cultura judaica a estrela (no tarô – origem judaica) aparece quando a pessoa
entende e aceita a sua situação como parte de desígnios superiores à sua mera
individualidade, parte de um plano maior em que ela aceita e se sente
perfeitamente integrada: “Então ali deitada – teve uma úmida felicidade suprema,
pois ela nascera para o abraço da morte [...] Agarrava-se a um fiapo de
consciência e repetia mentalmente sem cessar: Eu sou, eu sou, eu sou” (p103).
Na entrevista mencionada à TV Cultura, Clarice menciona que outra
inspiração para a trama do livro foi uma visita a uma cartomante, na época –
1977, a qual previra e só lhe falara coisas boas. Então ela imagina “como seria
engraçado se na saída, ela fosse atropelada por um táxi”.
Observamos a Vida materializada de 2MC (2,2) O DENTE DE OURO de
Olímpio simboliza a vontade de ser rico: “Este dente lhe dava posição na vida”,
fazendo lembrar no segundo Livro dos Macabeus que os judeus foram avisados,
alertados CONTRA uma VIDA MATERIALISTA: “Dando-lhes a Lei, Jeremias
mandou que não esquecessem os mandamentos do Senhor, nem deixassem o
próprio pensamento se desviar, ao verem as imagens de ouro e prata, ou seus
enfeites”(2Mc 2,2).
Macabéa na Trilha dos Macabeus Bíblicos
Assim, apresentaremos dois exemplos ilustrativos, que lembram o eixo de
intertextualidade existente entre dois textos: Os Livros I e II dos Macabeus e o
romance A hora da estrela, da autora modernista Clarice Lispector, cuja escrita foi
em parte provocada por aquele. Ela utiliza a história dos Macabeus como pano de
fundo de sua criação, mas a desconstrói.
Aparentemente, no plano do enredo, os textos abordam o mesmo tipo de
mito, porém se opõem no nível do discurso, introduzindo a dúvida, o
questionamento. A heroína Macabéa se desconstrói, enquanto a narrativa épica
passa à paródia. Isto é, os Livros dosMacabeus constituem-se numa narrativa
épica, enquanto A hora da estrela é anti-épica. Portanto, Macabéa perfaz uma
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trajetória “gauche” em relação em relação à perspectiva histórica do povo
macabeu. Nesta acepção Macabéa parodia os heróis macabeus através de sua
pseudo-resistência.
Uma das marcas fundamentais da Literatura é esse diálogo, ou conversa,
que um texto faz com outros que existiram antes. Cada novo texto é feito de
restos de construções de seus antecessores.
Identificar a presença de um texto num novo texto é uma maneira de tornar
explícito que o texto contém na sua forma e estrutura um empreendimento
coletivo, isto é, contém um processo de produtividade literária em que não é mais
possível ler um texto como se fosse um discurso individual. Assim, há um grau de
parentesco entre os textos e pode-se dizer que eles dialogam entre si. Nesse
sentido, chega-se à noção de intertextualidade que, na acepção de Laurent
Jenny: “Designa não uma soma confusa e misteriosa de influências mas o
trabalho de transformação e assimilação de vários textos, operando por um texto
centralizador, que detém o comando de sentido (CARVALHAL. 1992, p. 51).
Retomando as propostas de Bakhtin, Julia Kristeva concebeu e nomeou a
teoria da intertextualidade. Segundo a autora: “todo texto se constrói como um
mosaico de citações, todo texto é absorção e transformação d textos; ele é uma
escritura-réplica (função e negação) de outro (dos outros) texto(s). (PERRONE.
1990, P. 94).
Observa-se que Bakhtin e Kristeva definem a literatura como um vasto
sistema de trocas no processo de produtividade do texto literário. A literatura se
produz, pois, num constante diálogo de textos.
Assim, o processo de escrita é visto como resultante do processo de leitura
de um texto literário anterior, que se constrói como absorção ou transformação de
outros textos. Dessa forma, o objetivo dos estudos de intertextualidade é
examinar de que modo ocorre essa produção do novo texto, os processos de
absorção e transformação e integração de elementos alheios na criação do novo
texto. Para Kristeva, as “fontes” só interessam para que se possa verificar o grau
de “influência”, em seu sentido de exercer poder sobre um outro.
Sempre escrevemos sob um pouco de influência, tendo em vista que um
texto é feito de fragmentos originais, montagens singulares, referências,
acidentes, reminiscências, voluntários, nomes, marcas necessárias da passagem
de uma mesma ideia de um autor para outro. Sob esse aspecto, a história da
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literatura é a história das repetições, do já-escrito. Segundo Barthes, o texto
moderno é essa “citação sem aspas”. Assim sendo, o texto é só uma série de
citações anônimas.
Nada vem do nada, por isso Literatura é influência, e se ela é influência é
porque é intertextual. A palavra “influência” vem do latim influere, “fluir para
dentro” bem como “interações ou a ação exercida por obras ou personalidades
literárias sobre outras”. (CARVALHAL. 1992, p 87).
Segundo Paul de Man, “influência”, afinal, é uma metáfora, que “dramatiza
uma estrutura linguística numa narrativa diacrônica”. (Palavras da crítica, 1992.
p.227).
Nada se diz que não tenha antes sido dito uma primeira vez por outrem.
Vale reconhecer o novo no antigo e reatar uma continuidade de sentido através
das descontinuidades estilísticas ou históricas. Os vestígios e os materiais antigos
são objeto de reorganizações, de reinscrições. Proust ressalta que é preciso
entender: “Em primeiro lugar, que o material da escritura é sempre de
empréstimos e que conta pouco por si só; em seguida, que a literatura não é
imitação, mas sim transmutação. (SCHNEIDER. 1990. p. 89).
Esse exemplo demonstra que cada escritor cria seus precursores. Por isso,
a relação de um escritor com aqueles que o influenciaram é inteligível às avessas.
A crítica literária é ávida em encontrar os antecedentes, as “influências” de uma
obra.
O texto autêntico e novo é, de fato, uma transformação mediante a simples
imersão dos fragmentos apropriados num novo texto. Texto novo superposto ao
antigo. Escrever é apagar o já escrito. Compor, recompor.
A influência literária, como a própria identificação, é o meio e, ao mesmo
tempo, o obstáculo à constituição de uma verdadeira identidade. Todos aqueles
que leem, escrevem sob um pouco de influência decorrente de uma lenta
frequentação, de um contágio prolongado entre o que se lê e o que se escreve.
Ao ler um autor em demasia, acabamos, sem querer, escrevendo, como ele,
sobre tudo se escrevemos sobre ele. O leitor torna-se autor, retoma, completa,
prolonga suas leituras.
Se em cada escritor há um romance das influências, chegaríamos ao
seguinte paradoxo: quanto mais um autor é influenciado em profundidade e
extensão, tanto mais original ele é. Essa originalidade está ligada a um arranjo
Acta Novos Olhares: da formação de professores à formação de leitores
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novo, minha identidade a partir de outros discursos, tem-se todos os outros
discursos (colcha de retalhos). Parte-se dos discursos que se tem ao redor e dá
uma configuração original.
Segundo Haroldo Bloom, todo poeta sofre uma “angústia da influência”. O
autor caracteriza as influências como “males benéficos”, pois as influências
dinamizam o processo de evolução literária e não ameaçam a originalidade;
nesse contexto a influência deixa de ser negativa e acrescenta que “não é a
influência que faz um poeta menos original: às vezes o faz mais original, embora,
não necessariamente o melhor. (CARVALHAL, 1992. p. 60).
Segundo Lichlemberg, um dos grandes sábios da Influência Poética: “A
contrariedade, o se fazer exatamente o oposto, também é uma forma de
imitação[...]. (BLOOM. 1991. p. 63).
Fica implícito que a Influência Poética é um oximoro, isto é, uma figura que
consiste em reunir palavras aparentemente contraditórias. “Seja eu, mas não eu”.
É Rosseau que nos diz “que homem algum poderia gozar de sua própria
individualidade se não contasse com o auxílio dos outros [...]. (BLOOM. 1991.
p.106).
Segundo Michel Foucault:
As fronteiras de um livro nunca são bem definidas: por trás do título, das primeiras linhas e do último ponto final, por trás de sua configuração interna e de sua forma autônoma, ele fica preso num sistema de referências a outros livros, outros textos, outras frases: é um nó dentro de uma rede. (UTCHEON, 1991, p. 167)
A partir disso, a obra literária, os textos literários se constroem a partir de
textos literários, não literários, orais, pré-existentes. Assim, compreende-se bem o
papel que a imaginação desempenha na criação do texto literário. Por
conseguinte, há absorção de textos e transformação de textos em outros textos.
Nessa medida a literatura se caracteriza por sua função paródica, pois utiliza-se
das várias linguagens já existentes e cria uma nova linguagem.
Em relação ao termo “intertextualidade”, acrescenta Julia Kristeva:
O termo “intertextualidade” designa essa transposição de uma (ou vários) sistema(s) de signos noutro, mas como este termo foi frequentemente tomado na acepção banal de “crítica das fontes” dum texto, nós preferimos-lhe um outro: transposição, que tem a vantagem de precisar que a passagem duma a outro sistema significativo exige uma
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nova articulação – da possibilidade enunciativa e denotativa. (UTCHEON, 1991, p . 13)
Ao adotarmos o procedimento de transposição de um texto noutro texto,
estaremos transcrevendo algo que alguém já disse. O processo de escrita é visto
então, como resultante também do processo de leitura anterior.
Se qualquer texto remete de forma explícita para outros e assim sucede
com todos os textos que deixam transparecer a sua interrelação, a obra literária
tem conluio com a intertextualidade que está explícita ao nível do conteúdo formal
da obra.
Em 1928 Oswald de Andrade propõe a Antropofagia cultural que, em
muitos pontos, coincide com a teoria da intertextualidade, já que a Antropofagia é
o desejo do Outro, a abertura e a receptividade para o alheio. Essa devoração
proposta por Oswald, é uma devoração crítica, que está clara na metáfora da
Antropofagia, por assumir a escolha e a transformação do velho em novo. A
representação do velho mundo conhecido em meio a lugares nunca visitados.
Será aqui válido mencionar que a importância de Macabeus para o pensamento
de Clarice é imensa, mas qualificada por uma leitura vigorosa e resistente a ponto
mesmo de desviar, ou intervir, em muitos pontos, a direção da influência.
A presença efetiva dos Livros I e II dos Macabeus na obra A hora da
estrela, ocorre através do procedimento de paródia, na medida em que Clarice
resgata-os, atualiza-os, reescreve-os no seu momento histórico o texto
antecessor, modificando-o, subvertendo-o. Por isso, falar de paródia é falar da
intertextualidade das diferenças, porque paródia é, segundo Affonso Romano de
Sant Anna, “uma representação daquilo que havia sido recalcado. Uma nova e
diferente maneira de ler o convencional. É um processo de liberação do discurso.
É uma tomada de consciência crítica”. (p. 31).
A paródia envolve imitação ou mimetismo de outros estilos e incorpora
suas singularidades e idiossincrasias para criar uma imitação que simula o
original. É a produção do diferente sobre o semelhante. É repetição com um
distanciamento crítico, irônico. Caracteriza-se por um duplo paradoxal que é, ao
mesmo tempo, continuidade e mudança.
Ao confrontarmos os textos, observamos que Clarice, ao parodiar os Livros
dos Macabeus, está introduzindo uma significação oposta à significação da
palavra de outrem.
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Entre os dois textos, há uma relação intertextual parodística, pois ocorre a
interversão da situação dramática, isto é, o esquema das ações da narrativa é
modificado. Essa interversão é uma figura da intertextualidade e é encontrada,
particularmente, na intertextualidade parodística.
Há também mudança de nível de sentido já que as palavras são retomadas
no contexto num novo nível de sentido. Dessa forma, as figuras da
intertextualidade oferecem um vasto campo de exploração do texto. Assim Clarice
Lispector aproveita parodicamente a história-moldura dos Macabeus bíblicos.
A linguagem é constituída a partir de outras, pressupõe diálogo e interação
constante com o texto literário precedente, daí dialógica. Assim, o dialogismo
bakhtiniano designa a escritura como intertextualidade, como leitura do “corpus”
literário anterior, face a esse dialogismo surge a noção de “ambivalência da
escritura”, que quer dizer a inserção da história da sociedade no texto e vice-
versa. O texto como absorção de e réplica a outro texto.
Tanto a história como a literatura proporcionam os intertextos nos textos
que são objeto d nosso estudo. Por isso, ambas têm seu sentido e seu valor e
fazem parte dos sistemas de significação de nossa cultura. Através do
procedimento da intertextualidadeés do procedimento da intertextualidade
parodística, Clarice segue a trilha dos Macabeus, revisitando a história.
Há fortes razões para aproximarmos Os Livros I e II dos Macabeus de A
hora da estrela, de Clarice Lispector. A primeira delas é que Macabéa, a heroína,
tem nome sugestivo, com a associação histórica ou bíblica, revelado uma
inclinação judaica. Ela sintetiza em seu nome a saga do povo macabeu, já que os
nomes têm um significado na cultura judaica do seu pai, que lia diariamente a
Bíblia:
[...]as ligações da escritora com seu passado são profundas. A comunhão com o sagrado se manifesta de diferentes modos no seu texto, através da linguagem: a presença de Deus, o universo feminino nas suas ligações com uma tradição religiosa e cultural. (REMATE DE MALES, 1989, p. 107).
Todo judeu sabe o sentido de sua história. Observa-se nestas citações a
função dos pais judeus:
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Ouça, Israel! Javé nosso Deus é único Javé. Portanto, ame a Javé seu Deus com todo seu coração, com toda a sua alma e com toda a sua força. Que estas palavras, que hoje eu lhe ordeno, estejam em seu coração. Você as inculcará em seus filhos, e delas falará sentado em sua casa e andando em seu caminho, estando deitado e de pé. Você também as amará em sua mão como sinal, e elas serão como faixa entre seus olhos. Você as escreverá nos batentes de sua casa e nas portas da cidade. (Dt. 6, 4-9)
Clarice, sendo judia, segue a tradição religiosa e cultural judaica. O
narrador Rodrigo evidencia a pista de que a autora dialoga com os macabeus
bíblicos quando diz “Embora a moça anônima da história seja tão antiga que
poderia ser uma figura bíblica”. (p. 46).
A segunda razão que aproxima os textos ora analisados é a inserção da
temática social. Em A hora da estrela o social é bem evidente porque se vê em
Macabéa um “símbolo de todos os oprimidos”. A autora nessa obra faz uma
opção pelo realismo e o engajamento, enfatizando os temas da pobreza e da
injustiça social. Comprova-se em:
[...] a esta história falta melodia contabile. E tem fatos. Apaixonei-me subitamente por fatos sem literatura – fatos são pedras duras e agir está me interessando mais do que pensar, de fatos não há como fugir. [...] Transgredir, porém, os meus próprios limites me fascinou de repente. E foi quando pensei em escrever sobre realidade, já que ela me ultrapassa. (p. 30)
Essa afirmação sustenta o realismo do livro. O que significa uma literatura,
uma arte, que tira a sua energia não mais de uma estética do belo, mas da
“feiura”, que tira o seu princípio de um sentimento contraditório, contrariado de
“alegria e dor”.
O itinerário da personagem Macabéa ratifica o princípio da resistência do
povo macabeu, mas sendo outra, vital para a própria sobrevivência. Ela é uma
personagem anônima que presentifica uma realidade de resistência no
anonimato. Por isso, há um elo entre seu nome, seu mundo e o mundo dos
macabeus.
No entanto, há um esvaziamento de sentido nessa existência de Macabéa,
visto que ela luta contra “uma sociedade que é toda feita contra ela”. Persiste na
vida simplesmente porque existe: “Chegou à conclusão que na verdade ninguém
jamais a ofendera, tudo que acontecia era porque as coisas são assim mesmo e
não havia luta possível, para que lutar? (p. 56).
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Conformada, Macabéa não luta, esquiva-se do mundo sem conhecer o
mundo das palavras e seu significado: “_Olhe, você não reparou até agora, não
desconfiou que tudo o que você pergunta não tem resposta? [...] Acho que não
preciso vencer na vida. (p. 66).
Clarice inspira a sua arte com uma dimensão da mulher como ser social,
mas um ser que como vemos em Macabéa de A hora da estrela, luta contra as
várias formas de repressão (sexual, econômica, cultural e psicológica), que ainda
existem no nosso mundo.
Macabéa transforma-se em sombra, heroína da sombra e de si mesma,
tornando-se uma caricatura à resistência modelar do povo macabeu. Macabéa
parodia os heróis macabeus, já que a temática da resistência é parodisticamente
subvertida.
(...) limito-me a contar as fracas aventuras de uma moça numa cidade toda feita contra ela. Ela que deveria ter ficado no sertão de Alagoas com vestido de chita e sem nenhuma datilografia, já que escrevia tão mal, só tinhaaté o terceiro ano primário. [...] Talvez anordestina já tivesse chegado à conclusão de que a vida incomoda bastante, alma que não cola nem no corpo, mesmo alma rala como a sua. (p. 29)
Vinda do Nordeste para o Rio de Janeiro, longe de sua terra e de sua
infância, exilada do mundo e de si mesma: “ela era calada por não ter o que dizer
mas gostava de ruídos” (p. 49).
Estar no Rio de Janeiro é estar isolada, alienada do conhecimento e do
entendimento das coisas. Observa-se em:
Tinha o que se chamava de vida interior e não sabia que tinha. Vivia desi mesmo como se comesse as próprias entranhas [...] A maior parte do tempo tinha sem o saber o vazio que enche a alma dos santos [...] Não sabia que meditava pois não sabia o que queria dizer a palavra. Mas parece-me que sua vida era uma linga meditação sobre o nada. (p. 53)
A forma de ser de Macabéa, exilada da palavra e do contexto histórico-
social, se ocupa e se resolve no vazio. Coleciona anúncios de antigos jornais,
preenchendo seu tempo. Ao mesmo tempo, em que coleciona as imagens
transmitidas nos recortes de jornais, há o preenchimento de uma carência afetiva
de Macabéa, donde se exclui que ela não pode sair de si mesma, distante que
está do seu ser, via imagem neutra dos anúncios do jornal. Ao existir através de
anúncios de jornais, a protagonista se redime da necessidade da existência além
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da orgânica: “Embora só tivesse nela a pequena flama indispensável: um sopro
de vida. Era apenas fina matéria orgânica. (p. 55).
A história da Bíblia também faz referência à expressão “um sopro de
vida em: “O Senhor Deus formou, pois, o homem do barro da terra, e inspirou no
seu rosto um sopro de vida, e o homem tornou-se alma (pessoa) vivente” (Gn
2,7).
No exílio, ela é toda desamparo e abandono: “A nordestina se perdia
na multidão. Na Praça Mauá, onde tomava o ônibus fazia frio e nenhum agasalho
havia contra o vento. (p. 56).
Em meio à cidade grande, a protagonista se aparta inclusive do
tempo: “Irremediável era o grande relógio que funcionava no tempo. (p. 57).
Exílio temporal, histórico, social, verbal e psíquico estabelecem em
Macabéa o paradigma de um caos das proporções do não-ser: “Foi talvez essa
uma das poucas vezes em que Macabéa viu que não havia para ela lugar no
mundo. (p. 84).
Exilados do Templo de Sião, os Macabeus também se defrontavam
como exílio temporal, histórico e social frente a sua terra prometida. Se ao
nordeste corresponder-se o deserto dos Macabeus, entender-se-á que o exílio de
Macabéa é mais doloroso do que o do povo macabeu, porque aquele não aspira a
Deus e ocorre em meio as mais variadas circunstâncias que compõe o caos da
pólis. Os Macabeus se sustentam sobre seus heróis épicos, e o seu caos nutre-se
com a luta contra os gregos. Talvez o elo que ligue a personagem àquele povo
seja mesmo a resistência passional frente a uma sociedade que se impõe com
uma força brutal contra ela e a própria sociedade:
A revolução burguesa moderna ostenta um traço que a faz única na história: sua impotência para consagrar os princípios em que se fundamenta. Com efeito, erigiram-se mitos e religiões seculares, que desmoronam, mal são tocados pelo ar vivo da história. (PAZ, 1982, p. 179).
Por isso, na modernidade, o mito dos Macabeus não subsiste nem a seu
plano mítico, nem a seu plano heroico, pois Macabéa não tem intenções de ser
nem um, nem outro. Não chega a ser: “_Você Macabéa é um cabelo na sopa, não
dá vontade de comer.’ (p. 78)
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No mito histórico os macabeus não se submetem ao poder olímpico de Zeus Olímpico, o personagem, não consegue submeter Macabéa, porque nãp a entende. Suas linguagens não se encontram: “_ Eu gosto tanto de parafuso e prego... _ Você também só sabe é mesmo chover!”. (p. 60)
Refugiada na sua linguagem de menos, Macabéa arrisca o conhecimento
de Olímpo:
_Eu não entendo o seu nome _ disse ela [...] _ Não faz mal, não faz mal, não faz mal [...] A gente não precisa entender o nome. [...] Por que esse espanto? Você não é gente? Gente fala de gente. _Desculpe mas não acho que sou muita gente. [...] É que não me habituei. [...] É que só ser impossível. (p. 60-65).
Segundo Bakhtin:
Cada ideia dos heróis de Dostoiévski – “o homem do subsolo” – e outros, sugere desde o início uma “réplica” de um diálogo não concluído. Essa ideia não tende para o todo sistêmico monológico completo e acabado. Vive em tensão na fronteira com a ideia de outros, com a consciência de outros. É a seu modo episódica e inseparável do homem. (Bakhtin, p. 26)
A réplica deste “diálogo não concluído” é exemplar em A hora da estrela
exatamente quando Macabéa e Olímpo intentam uma espécie de namoro:
_ Pare de falar porque você só diz besteira! Diga o que é do teu agrado. _Acho que não sei dizer. _Não sabe o quê? _ Hein? (p. 65).
Seus diálogos equivocados distanciam-se das pessoas. Ela se esconde
ainda mais quando fala. Na fronteira com as ideias dos outros Macabéa vive de
não-ser. Não sendo, seus diálogos tomam a forma de um monólogo e caem no
vazio. O outro é um espelho no qual se reflete o seu não-ser. O seu exílio no
caos.
Os dois nordestinos, Macabéa e Olímpo, tentam sobreviver e ascender
socialmente no Rio de Janeiro. No entanto, não são aliados, pois Olímpo humilha
e rejeita Macabéa e vê nela a representação do grupo oprimido de onde deseja
escapar:
Pareciam por demais irmãos, coisa que – só agora estou percebendo – não dá para casar [...] só sei que eram de algum modo inocentes e
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pouca sombra faziam no chão[...] e ali acomodados, nada os distinguia do resto do nada. Para a grande glória de Deus. (p. 63-64)
Assim, Macabéa e Olímpo apesar da diferença “íntima”, um vencedor e um
perdedor, são construídos de forma e posição relativas considerando lugar de
origem, miséria, marginalidade na cidade grande.
Olímpo deixa-se seduzir pela sociedade de consumo e ambiciona subir na
vida, custe o que custar. “(...) Mas um dia vou ser muito rico – disse ele que tinha
uma grandeza demoníaca: sua força sangrava” (p. 62). Por isso, prefere Glória, a
falsa loura, que representa uma classe social diferente.
Glória, ao contrário, era “carioca da gema”, valiosa porque pertencia “ao
ambicionado clã do sul do país” e era bem alimentada, com pai, mãe e comida
quente na hora, “o que fazia dela material de boa qualidade”. (p. 76).
Os nomes das personagens, Macabéa e Glória, são contrastantes com a
dimensão de pequenez social que os caracteriza.
A vontade de ser rico é simbolizada pelo dente de ouro de Olímpo “este
dente lhe dava posição na vida”, fazendo lembrar no Segundo Livro dos
Macabeus que os judeus foram avisados, alertados contra uma vida materialista:
Dando-lhes a Lei, Jeremias mandou que não esquecessem os mandamentos do
Senhor, nem deixassem o próprio pensamento se desviar, ao verem as imagens
de ouro e prata ou seus enfeites. (2 Mc 2,2).
Assim também é na sociedade capitalista, na qual o sexo, a raça, a classe
social são usados para manter a hegemonia. No entanto, ao mesmo tempo em
que são dramatizados os conflitos sociais, ilustra-se como é resistente o espírito
humano perante as forças de repressão social no Brasil. A hora da estrelaé um
grito de protesto contra a injustiça social. São evidentes os aspectos politizantes
do romance, visão esta que era normalmente ausente na obra de Clarice
Lispector. Pela primeira vez, a autora toma como protagonista de sua obra um
personagem saído das classes populares.
As figuras que estão mais relacionadas ao romance A hora da estrela são
os opressores, os oprimidos e os mártires. Enquanto que Macabéa não tem
identidade nem força para batalhar contra as injustiças deste mundo; os
Macabeus lutavam contra o poder dominante dos gregos. Eram fiéis ao princípio
do monoteísmo, teimosos e corajosos: “Eles vêm contra nós cheios de insolência
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e injustiça, para eliminar a nós, nossas mulheres e nossos filhos, e levar tudo que
temos. Nós porém lutamos por nossa vida e nossas leis”. (1Mc 3,20-21).
Segundo Freud:
Como sabemos, de todos os povos que viveram ao redor da bacia do Mediterrâneo na Antiguidade, o povo judeu é quase o único que ainda existe em nome e também em substância. Ele enfrentou infortúnios e maus tratos com uma capacidade sem precedentes de resistência; desenvolveu traços caracterológicos especiais e, incidentalmente, granjeou a sincera antipatia de todos os outros povos. Ficaríamos alegres em compreender mais a respeito da fonte dessa viabilidade dos judeus e a respeito d como suas características estão vinculadas à sua história. (FREUD, 1969, p. 126)
Pode-se asseverar que foi Moisés quem imprimiu esse traço significativo
no povo judeu. Ele elevou a sua autoestima, assegurando-lhe ser o povo
escolhido de Deus. Essa autoestima, tornou-se parte de sua fé religiosa: “[...] Eu
não obedeço as ordens do rei. Obedeço as determinações da lei que foi dada a
nossos antepassados através de Moisés” (2Mc 7,30). Acredita-se que é a Moisés
que esse povo deve não só sua tenacidade de vida mas também muito da
hostilidade que experimentou. Moisés deu aos judeus não apenas uma nova
religião, como também o mandamento da circunscisão, que segundo Freud:
(...) A circunscisão é o substituto simbólico da castração que o pai primevo outrora inflingira aos filhos na plenitude de seu poder absoluto, e todo aquele que aceitava esse símbolo demonstrava através disso que estava preparado para submeter-se à vontade do pai, mesmo que esta lhe impusesse o mais penoso sacrifício. (FREUD, 1969, p. 126
A fé ou a fidelidade manifestada pelos Macabeus à Lei de Moisés encontra
o seu equivalente na firmeza, fidelidade de Macabéa. Ela não se adapta a um
mundo onde predominam a mentira, a infidelidade, a corrupção. A luta macabaica
se alimentava de um ideal rememorado na oração. Assim o povo que luta torna-
se invencível devido ao caráter religioso da resistência judaica. Preferiam morrer
do que trair as próprias convicções. Eleazar é o modelo da resistência:
Já quase morto, em meio às torturas, Eleazar ainda falou entre gemidos: “O Senhor, que possui a santa sabedoria, sabe que eu, podendo escapar da morte, suporto em meu corpo as dores cruéis da tortura, mas em minha alma estou alegre porque sofro por causa do temor a ele”. E assim passou desta para a outra. Sua morte deixou, não só para os jovens, mas também para todo o restante do povo, exemplo memorável de heroísmo e virtude. (2Mc 6,30-31)
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Eleazar e os que morreram na luta são considerados fiéis, portanto dignos
da ressurreição, mostram que o impulso fundamental dos heróis é dar sua própria
vida pela causa do povo. Assumindo essa causa, diz Simão: Todos os meus
irmãos morreram pela causa de Israel; sobrei somente eu” (1Mc 13,4).
A eficácia repousa na força de Deus, presente na ação do povo. Por isso a
morte não se apresenta como sinal de derrota. Aqui aparece a crença na
ressurreição, o que introduz a morte como terceira razão de aproximação dos
textos. Veja-se um exemplo que salienta o caráter religioso da resistência judaica:
Aconteceu também que sete irmãos foram presos junto com sua mãe. Espancando-os com relhos e chicotes, o rei pretendia obriga-los a comer carne de porco, que era proibida. Um deles, falando em nome dos outros, disse: “O que você quer perguntar ou saber de nós? Estamos prontos a morrer, antes que desobedecer às leis de nossos antepassados (...) Da assadeira subia grande volume de fumaça. E os seus irmãos com a mãe se animavam entre si para enfrentarem corajosamente a morte, dizendo “o senhor Deus nos observa e certamente terá compaixão de nós, conforme afirmou claramente Moisés no seu cântico: Ele terá compaixão de seus servos” (...) Extraordinariamente admirável, porém, e digna da mais respeitável lembrança, foi a mãe. Ela vendo morrer seus sete filhos, num só dia, suportou tudo corajosamente, esperando no Senhor. Ela encorajava cada um dos filhos, na língua dos seus antepassados. Com atitude nobre e animando sua ternura feminina com força viril, assim falava com os filhos: “Não sei como vocês apareceram no meu ventre. Não fui eu que dei a vocês o espírito e a vida, nem fui eu que dei forma aos membros de cada um de vocês. Foi o Criador do mundo, que modela a humanidade e determina a origem de tudo. Ele na sua misericórdia, lhes devolverá o espírito e a vida, se vocês agora se sacrificarem pelas leis dele”. (2Mc 7, 1-23)
Observa-se que o autor ressalta os mártires de Israel e detém-se na
descrição dos suplícios. Assim como muitos em Israel ficaram firmes e se
mostraram irredutíveis em não comerem nada de impuro. Preferiram morrer a
contaminarem-se com alimentos e profanar a Aliança Sagrada.
A fé na ressurreição também fica evidente quando um dos filhos que
estava sendo torturado, antes de morrer falou: “Você, bandido, nos tira desta vida
presente, mas o rei do mundo nos fará ressuscitar para uma ressurreição eterna
de vida, a nós que agora morremos pelas leis dele. (2Mc 7,9).
A morte da personagem Macabéa também indica a esperança de Macabéa
por uma vida nova: “Macabéa separou um manto com a mão trêmula: pela
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primeira vez ia ter um destino. Madama Carlota (explosão) era um ponto alto na
sua existência. (p. 94).
A esperança é reavivada por Madama Carlota:
Eis que (explosão) de repente aconteceu: o rosto da Madama se acendeu todo iluminado: _ Macabéa! Tenho grandes notícias para lhe dar! [...] Macabéa começou (explosão) a tremelicar toda por causa do lado penoso que há na excessiva felicidade. (p.95)
A tomada de consciência por parte da protagonista lhe revela o fato de que
o seu nascimento se dá no instante da queda:
Batera com a cabeça na quina da calçada e ficara caída, a cara mansamente voltada para a sarjeta. E da cabeça um fio de sangue inesperadamente vermelho e rico [...] ficou inerme no canto da rua, talvez descansando das emoções, e viu entre as pedras do esgoto o ralo capim de um verde da mais tenra esperança humana. Hoje, pensou ela, hoje é o primeiro dia de minha vida; nasci. [...] (p. 99) Então – ali deitada – teve uma úmida felicidade suprema, pois ela nascera para o abraço da morte [...] Agarrava-se a um fiapo de consciência e repetia mentalmente sem cessar: Eu sou, eu sou, eu sou. (p.103)
Por outro lado, a queda e o repentino nascimento esbarram na morte da
personagem: “Até tu, Brutus?!”.
A morte da personagem Macabéa, contudo, termina com a esperança do
narrador: “Até tu, Brutus?!” enuncia a traição da personagem ao narrador, que
seguindo “uma oculta linha fatal”, dá-se conta de que a protagonista o mata:
“Macabéa me matou. [...] Meu Deus, só agora me lembrei que a gente morre. Mas
– eu também?! (p. 105-106).
Macabéa e Rodrigo S. M. encaminham a escritura para o seu ápice final.
Como Macabéa, a escritura se fecha num determinado instante: o instanto do sim,
o que torna a escritura, de certa maneira, um movimento circular. O “sim” do final
do romance: “Tudo começou com um sim” (p. 25).
O ser de Macabéa explode em vida na hora da morte. Só morrendo
Macabéa torna-se estrela. A vida na morte sustenta a vida macabaica: “[...] Pois
na hora da morte a pessoa se torna brilhante estrela de cinema, é o instante de
glória de cada um e é quando como no canto coral se ouvem agudos sibilantes.
(p. 440).
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A análise de A hora da estrela e dos Livros I e II dos Macabeus permite
concluir a respeito dos pontos mais importantes que serviram de base para as
discussões propostas.
Transgredindo a linearidade do romance, a personagem Macabéa mata o
narrador e a escritora, tornando-os cúmplices do seu objeto. A vida na morte
sustenta a vida macabaica. A explosão da personagem determina, sobremaneira,
o reatamento de Macabéa na ordem do “cosmos”. Ela que não era só pode existir
não-sendo. Seu caos se reordena na sua explosão final: a morte.
Por isso, Clarice intenta menos à caricatura do que à paródia histórica do
povo macabeu. Nesse sentido, a prosa desta autora é denunciadora, provocativa
e transgressora. Porém, é importante ressaltar que é uma transgressão que reata
o significado do texto aos significado da História. A recorrência ao tema do exílio
traz para A hora da estrela um momento consagrado na leitura dos seus
antepassados. Isso vem confirmar o pensamento de Leyla Perrone-Moisés de que
a “obra literária não é um fato consumado e imóvel mas algo em movimento;
porque ela traz inscritas em si as marcas de sua gênese, dos diálogos, absorções
e transformações que presidiram o seu nascimento”. Clarice, ao explicar a gênese
do romance a partir de uma encomenda do editor, fala ao leitor de uma verdadeira
“descoberta da realidade’, isso concorre para a leitura realista.
Ao longo do livro, há uma verdadeira luta de classes que se estabelece
entre a narradora-narrador e sua personagem Macabéa: ”(...) o que escreverei
não pode ser absorvido por mentes que exijam e ávidas de requintes (...)”. (p.30).
Assim, para contar a sua história, o narrador-narradora teria de entrar na
pele de seu outro de classe, por isso Clarice incorpora Macabéa na sua forma.
Narrar Macabéa é narrar-se. E é prosseguir a busca tão antiga do próprio rosto no
espelho e da superação do eu no outro: “Vejo a nordestina se olhando no espelho
e – um ruflar de tambor – no espelho aparece o meu rosto cansado e barbudo.
Tanto nós nos intertrocamos”. (p.37).
O narrador se questiona constantemente sobre os rumos da história que
ameaça permanentemente não se completar. E aqui tampouco a metalinguagem
se isola do contexto, do espaço e do momento históricos em que se processam a
narração e o narrado. Clarice não poderia ignorar os rumos da ficção brasileira
“(...) o que escrevo um outro autor escreveria (...)”. Passagens como essa
confirmam a intertextualidade que se estabelece aí. Citando Kristeva, “todo texto
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se constrói como um mosaico de citações, todo texto é absorção é transformação
de textos, ele é uma escritura-réplica de outros textos.” (POÉTIQUE. 1979. p. 13).
Nesse sentido, o texto de Clarice é intertextual. Macabéa segue a trilha dos
macabeus bíblicos – dialoga com os Macabeus, do Antigo Testamento..
Nos Livros I e II dos Macabeus, bem como em A hora da estrela a prática
da metalinguagem é incorporada ao processo narrativo como dimensão relevante.
A feitura do texto é concomitante à “conversa crítica” sobre o seu fazer. Observa-
se, respectivamente em:
Vou falar sobre o que aconteceu com Judas Macabeu e seus irmãos, sobre a purificação do Templo grandioso e a consagração do altar. Falarei também das guerras contra Antíoco Epífanes e seu filho Eupátor. Contarei as aparições celestes que tiveram aqueles que corajosamente realizaram as maiores proezas em favor do judaísmo. Eles eram poucos, no entanto, conseguiram recuperar o país inteiro, perseguiram multidões de inimigos violentos, retomaram o Templo, que é famoso no mundo inteiro, libertaram a cidade de Jesusalém e colocaram novamente em vigor as leis que estavam sendo abolidas. É que o Senhor, com toda a consideração, foi muito misericordioso para com eles. Tudo isso é contado por Jasão de Cirene em cinco livros, mas nós tentaremos resumir tudo num livro só. (2Mc 19-23)
(...) a esta história falta melodia contabile. E tem fatos. Apaixonei-me subitamente por fatos sem literatura – fatos são pedras duras e agir está me interessando mais do que pensar, de fatos não há como fugir. (...) Transgredir, porém, os meus próprios limites me fascinou de repente. E foi quando pensei em escrever sobre a realidade, já que ela me ultrapassa. (p. 30-31).
Nota-se que os textos constituem-se como lugar de reflexão do seu próprio
fazer enquanto fazer textual – falam do próprio fazer textual. Os livros servem
para indicar seus esclarecimentos. Assim, a linguagem exerce uma função
metalinguística. Nessa medida a literatura se caracteriza por sua função paródica,
pois utiliza-se das várias linguagens já existentes e cria uma nova linguagem.
Falar de paródia é falar da intertextualidade das diferenças.
Há na obra A hora da estrela a renovação da arte e do pensamento
modernista; uma ruptura com o tradicional, pois o narrador abre a possibilidade
para que o leitor crie sua Macabéa. Dirige-se também constantemente ao leitor,
na tentativa de estabelecer certa cumplicidade com este. A personagem é
mostrada “por dentro”. Nessa visão interna tem-se acesso ao estado interior da
personagem através de um ponto de vista de um narrador onisciente. “Pergunto
eu: conheceria ela algum dia do amor a seu adeus? Conheceria algum dia do
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amor os seus desmaios? Teria a seu modo o doce vôo? De nada sei. Que se há
de fazer com a verdade de que todo mundo é um pouco triste e um pouco só.”
(p.56). Além dessa abordagem estética, há as abordagens filosófica e social que
se apresentam de forma imbricada no livro.
Macabéa é, também, descrita por Rodrigo S. M., personagem-narrador,
que narra a história da nordestina, narrando-se a si mesmo. As iniciais do
sobrenome caracterizam essa relação ambígua que ele mantém com sua
personagem: Sobre Macabéa, Sob Macabéa, porque, ao mesmo tempo em que é
dono dela é por ela influenciado.
A linguagem bíblica é semelhante à linguagem da autora, uma vez que se
pode notar que não respeita a ordem dos acontecimentos. Interessa-lhe apenas
mostrar que a luta de Judas Macabeu e seus companheiros conta com o auxílio
divino –Deus está presente na luta, por conseguinte os torna invencíveis “e
percebeu que os hebreus eram invencíveis, porque o Deus Todo-poderoso lutava
ao lado deles. (2Mc 11,13).
Também em:
(...) Os soldados de Esdrin já estavam exaustos de tanto lutar. Então judas invocou o Senhor suplicando-lhe que se mostrasse aliado e comandante dessa batalha. Em seguida, lançou o grito de guerra na língua materna e cantando hinos lançou-se de surpresa contra os soldados de Górgias, obrigando-os a fugir. (2Mc 11,36-37)
Nessas condições, é difícil reconstituir a evolução exata dos
acontecimentos, pois a narrativa não se apresenta de forma linear. Antes é,
também, um mosaico temporal.
Conclui-se este trabalho afirmando que, analisar os Livros I e II dos
Macabeus e o romance A hora d estrela, foi mais que uma tarefa prática e um
exercício de prazer, foi uma experiência de enriquecimento pessoal,
reconhecendo que poderá servir como ponto de partida para uma análise mais
complexa da questão.
Considerações Finais
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Este estudo se propôs a uma análise intertextual do romance A hora da
estrela, de Clarice Lispector e os Livros dos Macabeus, do Antigo Testamento.
Com base na teoria da Literatura à luz de BAKHTIN (1991) - Julia Kristeva,
CARVALHAL (1992); SANT’ANNA (1991); PERRONE-MOISÉS (1990) e tantos
outros. Para que se efetivasse tal análise, pretendeu-se fazer uma releitura dos
textos com base na recuperação dessas teorias da intertextualidade HELENA
(1977).
Diante disso, este trabalho pretendeu ser um incremento aos estudos
críticos sobre A hora da estrela, de Clarice Lispector, no sentido de contribuir para
ampliação da interpretação e análise da obra dessa grande autora brasileira. Há
na obra A hora da estrela a renovação da arte e do pensamento modernista; uma
ruptura com o tradicional, pois o narrador abre a possibilidade para que o leitor
crie sua Macabéa. Dirige-se também constantemente ao leitor, na tentativa de
estabelecer certa cumplicidade com este. A personagem é mostrada “por dentro”.
Nessa visão interna tem-se acesso ao estado interior da personagem através de
um ponto de vista de um narrador onisciente.
Além dessa abordagem estética, há as abordagens filosófica e social que
se apresentam de forma imbricada no livro. Macabéa é, também, descrita por
Rodrigo S. M., personagem-narrador, que narra a história da nordestina,
narrando-se a si mesmo. As iniciais do sobrenome caracterizam essa relação
ambígua que ele mantém com sua personagem: Sobre Macabéa, Sob Macabéa,
porque, ao mesmo tempo em que é dono dela é por ela influenciado. A linguagem
bíblica é semelhante à linguagem da autora, uma vez que se pode notar que não
respeita a ordem dos acontecimentos. Interessa-lhe apenas mostrar que a luta de
Judas Macabeu e seus companheiros conta com o auxílio divino – Deus está
presente na luta, por conseguinte os torna invencíveis “e percebeu que os
hebreus eram invencíveis, porque o Deus Todo-poderoso lutava ao lado deles.
(2Mc 11,13). Nessas condições, é difícil reconstituir a evolução exata dos
acontecimentos, pois a narrativa não se apresenta de forma linear. Antes é,
também, um mosaico temporal.
Ao concluirmos este trabalho ressaltamos que, analisar os Livros I e II dos
Macabeus e o romance A hora da estrela, foi mais que uma tarefa prática e um
exercício de prazer, foi uma experiência de enriquecimento pessoal,
reconhecendo que poderá servir como ponto de partida para uma análise mais
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complexa da questão.O texto de Clarice Lispector não esgota as possibilidades
de análise e interpretação. É intertextual – recupera a história dos Macabeus -
Macabéa segue a trilha dos Macabéus Bíblicos – dialoga com os Macabeus, do
Antigo Testamento.
As ideias veiculadas no livro Pedagogia do Oprimido, de Paulo
Freire estão relacionadas aos livros dos Macabeus – os Macabeus foram
crescendo no poder e esquecendo os ideais da luta, o verdadeiro objetivo: libertar
o povo e a terra. No romance A Hora da Estrela, de Clarice Lispector são
questionados os valores da sociedade moderna.
REFERÊNCIAS
BAKHTIN, MiKhail. Problemas da poética de Dostoiévski. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1981. BÍBLIA SAGRADA. São Paulo: Paulus, 1990. BLOOM, Harold. Cabala e crítica. Rio de Janeiro: Imago, 1991 (Biblioteca Perre Menard). BORELLI, Olga. Clarice Lispector: esboço para um possível retrato. Rio de Janeiro: Nova Fonteira, 1981. CARVALHAL, Tânia Franco. Literatura comparada. São Paulo: Ática, 1992. COTRIM, Gilberto. História geral: para uma geração consciente. São Paulo: Saraiva, 1992. ECO, Umberto. Como se faz uma tese. São Paulo: Perspectiva, 1995. FREIRE, Paulo. Pedagogia do oprimido. Rio de Janeiro: Paz e terra, 1978. FREUD, Sigmund. Moisés e o monoteísmo: esboço de psicanálise e outros trabalhos. Rio de Janeiro: Imago, 1996. HELENA, Lucia. Nem musa, nem medusa: itinerários da escrita de Clarice Lispector. Niterói: EDUF, 1997 (Coleção Ensaios; 6). HUTCHEON, Linda. Poética do pós-modernismo: história, teoria, ficção. Rio de Janeiro: Imago, 1991. JOBIM, José Luís. Palavras da crítica. Rio de Janeiro: Imago, 1992 (Coleção Piere Menard).
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LISPECTOR, Clarice. A hora da estrela. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1993. NUNES, Benedito. O drama da linguagem: uma leitura de Clarice Lispector. São Paulo: Ática, 1996. PERRONE-MOISÉS, Leyla. Flores da escrivaninha. São Paulo: Companhia das Letras, 1990. SÁ, Olga de. A escritura de Clarice Lispector. Petrópolis: Vozes, 1979. SANT’ANNA, Affonso Romano de. Paródia, paráfrase & Cia. São Paulo : Ática, 1991. Www.recanto das letras. Com. br/artigos 3797440. Acessado em: set. 2015.
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NARRATIVA E VIOLÊNCIA EM “A GENTE COMBINAMOS DE NÃO MORRER”
Andriéli Santos da Rosa Denise Almeida Silva
RESUMO Este trabalho analisa o conto “A gente combinamos de não morrer” de Conceição Evaristo, publicado em Olhos d’água (2014). A narrativa enfatiza a violência a que estão sujeitos moradores de periferia, ressaltando sua quase morte em vida. Chama a atenção no conto a forma peculiar como a narrativa é construída, através da alternância de três vozes narrativas: a de Dorvi, personagem principal, a de sua esposa, Bica, e a de sua mãe, Dona Esterlinda. Sobrepostas, essas vozes apresentam diferentes pontos de vista, tecendo, em seu conjunto a história de Dorvi, o qual, apesar de seu pacto de sobrevivência, acaba tombando vítima da marginalidade. Inicialmente, buscam-se aportes teóricos para pensar a construção das vozes narrativas: Reis (1995), Leite (2007); a seguir procede-se à análise do conto, comentando-se ainda, a violência a que esses personagens estão quotidianamente expostos, e como esta é expressa e sentida por cada uma das vozes, para comentar a violência são utilizados conceitos de Ginzburg (2012) e Pellegrini (2008).
Palavras-chave: Conto. Conceição Evaristo. Violência. Vozes Narrativas.
ABSTRACT This paper analyzes the short story "A gente combinamos de não morrer" by Conceição Evaristo, published in Olhos d’água (2014). The narrative emphasizes the violence that the residents of the outskirts are subjected, emphasizing his near-death in life. It draws attention to the story story the peculiar way the narrative is constructed, by alternating three narrative voices: Dorvi, the main character, his wife, Bica, and his mother, Dona Esterlinda. Overlapping, these voices have different points of views, weaving, as a whole the story of Dorvi, which, despite his pact of survival, ends up tumbling victim of marginality. Initially, are sought theoretical contributions to create the construction of narrative voices: Reis (1995), Milk (2007); then proceeds the analysis of the short story, also commenting the violence to which these characters are daily exposed, and how it is expressed and felt by each of the voices, to comment on violence are used concepts from Ginzburg (2012) and Pellegrini (2008). Keywords: Tale. Conceição Evaristo. Violence. Narratives voices.
Introdução
A comunicação analisa o conto “A gente combinamos de não morrer” de
Conceição Evaristo, publicado em Olhos d’água (2014). A narrativa enfatiza a
violência a que estão sujeitos moradores de periferia, ressaltando sua quase
morte em vida, ou seja, sua constante expectativa de morte: cooptados por
traficantes, e às suas ordens, sua vida pode acabar a qualquer momento, mesmo
que, como o protagonista do conto em vão – prometam a si e aos seus não se
deixarem apanhar pela morte. Chama a atenção no conto a forma peculiar como
a narrativa é construída, através da alternância de três vozes narrativas: a de
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Dorvi, personagem principal do conto, a de sua esposa, Bica, e a de sua mãe,
Dona Esterlinda. Sobrepostas, essas vozes apresentam diferentes pontos de
vista, tecendo, em seu conjunto a história de Dorvi, o qual, apesar de seu pacto
de sobrevivência, acaba tombando vítima da marginalidade. Inicialmente,
buscam-se aportes teóricos para pensar a construção das vozes narrativas: Reis
(1995), Leite (2007); a seguir procede-se à análise a conto, comentando-se ainda,
a violência a que esses personagens estão quotidianamente expostos, e como
esta é expressa e sentida por cada uma das vozes.
De acordo com Pellegrini (2008, p. 42) a violência surge como constitutiva
da cultura brasileira, como um elemento fundante a partir do qual se organiza a
própria ordem social, e que interfere também na experiência criativa e nas
expressões simbólicas. Evidencia-se, também, uma história de representação da
violência na literatura brasileira. Na atualidade, evidencia-se um novo realismo, o
qual se caracteriza “[...] acima de tudo pela descrição da violência entre bandidos,
delinquentes, policiais corruptos, mendigos, prostituta, todos habitantes do baixo
mundo” (PELLEGRINI, 2008, p. 44).
Nesse viés, questiona-se se a literatura pode fazer algo contra a violência
ou, até mesmo, servir como denúncia social de uma classe que sofre exclusões e
deslocamentos e enfrenta cotidianamente a violência/marginalidade. Para
Ginzburg (2012, p. 7) alguns textos literários permitem observar as possíveis
motivações que levam personagens a matar, ou a realizar atos agressivos.
Permitem, também, perceber que os episódios de violência resultam em impacto
em outros que tinham conexões afetivas com os que foram agredidos.
A violência é algo comum na experiência humana, um fenômeno que
provoca danos a outras pessoas: a palavra pode ser empregada de diferentes
maneiras, com referência à violência simbólica, mas também apontando para a
violência psicológica, a humilhação, a violência física, entre outras. O impacto por
ela causado remete a campos de desumanização e hostilidade, pelo que
Ginzburg comenta que se trata “[...] de uma palavra que é chamada para se falar
frequentemente de situações difíceis de descrever, de extremo horror, de níveis
de sofrimento que não deveriam existir” (2012, p. 10).
Neste conto em específico, objetiva-se analisar a representação da
violência e do narrador, pois é ele quem delimita a perspectiva que o leitor terá
diante da narrativa, é dele o ângulo pelo qual conhecemos as histórias relatadas.
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Ao relacionar a reprodução da violência e sua interação com o foco narrativo,
Ginzburg (2012, p. 31) estabelece situações entre quatro tipos de narrador:
o narrador que se coloca à distância dos acontecimentos e expõe fatos de violência como se não tivesse neles nenhuma participação ativa; o narrador que é vítima de violência, e que sofreu uma situação traumática, e pode utilizar a linguagem para tentar configurar o que aconteceu consigo; o narrador que se constitui como um agente de violência, e que concretiza situações de agressividade; e o narrador que tem uma construção complexa, oscilando entre posições discursivas (primeira e terceira pessoa).
Considerando o fato de que o narrador é um dos objetos de análise neste
trabalho, é importante aprofundar um pouco mais as reflexões a seu respeito.
Leite (2007, p. 37), ao seguir a classificação de Friedman, destaca que “o
narrador-testemunha dá um passo adiante rumo à apresentação do narrado sem
a mediação de uma voz exterior”. Este narra em 1ª pessoa, e apresenta-se como
um “eu” interno a narrativa; é alguém que testemunha um fato para o leitor. Outro
narrador, definido pela autora é ainda o “narrador, personagem central que não
tem acesso ao estado mental das demais personagens” (2003, p. 43). Este narra
de um centro fixo e é limitado aos seus pensamentos, percepções e sentimentos.
Há, ainda, a onisciência seletiva múltipla: “aqui o que se perde é o alguém que
narra. Não há propriamente narrador. A história vem diretamente através da
mente da personagem, das impressões que fatos e pessoas deixam nelas”
(LEITE, 2007, p. 47).
Ainda cabem as categorias de Barthes, aqui retomadas a partir de Reis
(1995, p. 371): o narrador homodiegético que, “[...] tendo vivido a história como
personagem, [...] retira dessa experiência as informações que faculta”; o narrador
autodiegético, ou seja, “[...] uma entidade que, tendo atravessado experiências e
aventuras várias, relata, a partir de uma posição usualmente amadurecida, o devir
de sua existência caso em que o narrador é também protagonista; e o narrador
heterodiegético, o qual como o nome sugere, não é parte da história. No dizer de
Reis, tende “a adoptar uma atitude demiúrgica em relação a história que conta,
surgindo dotado de uma autoridade que normalmente não é posta em causa;
predominantemente o narrador heterodiegético exprime-se na terceira pessoa”
(1995, p. 370).
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Para o benefício do leitor não conhecedor do conto, apresenta-se a seguir
um breve resumo, evidenciando o alternar das vozes e a expressão das
diferentes formas de agressão física, psicológica e estrutural a que os
personagens estão sujeitos. Já inicialmente Dorvi registra uma situação de
violência, o “pipocar dos tiros” (2014, p. 99), e faz com sua esposa, Bica, o
combinado de não morrer. Assumindo a voz narrativa, Bica, a seguir, narra a
morte de Idago, irmão de Dorvi, assassinado ao sair de casa: “vacilou, dançou”
(2014, p. 101). Desenrola-se, assim, aos poucos o contexto de medo e retaliação
em que qualquer um que tenha “a língua solta” e fale o que não deve está sujeito
à morte, atmosfera da qual Dona Esterlinda, mãe de Idago e Dorvi, busca fugir
através do mundo mais róseo oferecido pelas novelas. Não estranha, pois, que,
ao retomar a fala, Dorvi revele o seu desejo de fugir da favela e viver com a
esposa e o filho em um lugar sossegado, onde não haja dor e violência. O
envolvimento de Dorvi com dívidas dos traficantes é revelado, e sua coragem
manifesta quando afirma “vou matar, vou morrer” (2014, p. 107). No fim do conto,
Bica se aflige com o sumiço de Dorvi e relembra o pacto de sobrevivência mútua:
“a gente combinamos de não morrer”. Contudo, junto com outras pessoas, o
protagonista também é assassinado, e sua esposa escreve para enfrentar a dor,
como “uma maneira de sangrar. Acrescento: e de muito sangrar, muito e muito...”
(2014, p. 109). Nesta fala, fica evidente sua dor e seu sofrimento pela repetição
de palavras, que enfatizam o tamanho de sua dor.
Vê-se, pois, que a narrativa apresenta três vozes que, condicionadas pela
consciência e inseridas na história, desenvolvem o ponto de vista com uma
focalização interna, isto é, ativada do interior ou no interior dos personagens. Os
narradores em criados por Conceição Evaristo neste conto são narradores
autodiegéticos. Eles narram histórias que viveram como protagonistas e mostram
para o leitor seus medos e angústias em relação à morte e à violência da favela
em que vivem. Na qualidade de narradores-testemunha, vítimas da violência
(embora Dorvi, cooptado pelos traficantes, oscile entre vítima e agente), esses
personagens agudamente expõe seus modos de enfrentar a dor, seja através do
pacto de não morrer, seja pela fuga ao universo oferecido pelas novelas, ou até
mesmo através da purgação pela escrita – caso de Bica, que escreve como forma
para aliviar a dor provocada pela morte do marido. Há, ainda, alternância dos
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narradores autodiegéticos com um narrador heterodiegético, que por vezes
introduz ou comenta a narração daqueles que vivenciaram os fatos que narram.
Pensando-se a focalização proposta por Leite (2007), percebe-se que o
conto tem três narradores-protagonistas - Bica, Dorvi e Dona Esterlinda - narram
de um centro fixo, limitado quase que exclusivamente às suas percepções,
pensamentos e sentimentos. Estes narradores narram sua percepções, medos e
sentimentos em relação à criminalidade a que estão vulneráveis no ambiente em
que vivem. Bica, por exemplo, se expressa tendo como centro o medo da morte
“Não sei porque o medo, pensou Bica. Se ao menos o medo me fizesse recuar,
pelo contrário, avanço mais e mais na mesma proporção desse medo” (p.100).
Dorvi narra sua história tendo como foco central o pacto de não morrer: “[... o
prazo dele está terminando e o meu também [...] eles me catarão debaixo da saia
da minha mãe, se preciso for. E a gente combinamos de não morrer. Que merda,
selamos agora a própria morte” (Como Bica, por exemplo, que narra tendo como
centro o medo da morte “Não sei porque o medo, pensou Bica. Se ao menos o
medo me fizesse recuar, pelo contrário, avanço mais e mais na mesma proporção
desse medo” (EVARISTO, 2014, p. 100). E Dorvi que narra sua história tendo
como foco central o pacto de não morrer “o prazo dele está terminando e o meu
também [...] eles me catarão debaixo da saia da minha mãe, se preciso for. E a
gente combinamos de não morrer. Que merda, selamos agora a própria morte”
(EVARISTO, 2014, p. 106). Esse tipo de narração introduz no texto uma
multiplicidade dos medos e angústias dos personagens, intensificando a violência
a que estão expostos.
Percebe-se, ainda, entre uma voz e outra, uma onisciência seletiva, que
narra a partir de um ângulo central. Aonisciência central é aquela voz
heterodiegético (que não é personagem da história, que não é parte dela), um
narrador em terceira pessoa não identificado que acentua entre universo diegético
e narrador uma alteridade em principio irredutível.
Evidencia-se, assim, no conto “A gente combinamos de não morrer”, uma
narrativa acerca da descrição da violência entre moradores da favela, e de seus
agentes, e a forma como tal violência abala a estrutura familiar, e a cada um dos
adultos que a integram. A violência é intensificada através da sempre presente
ameaça de morte, e de sua efetiva presença, a qual provoca um abalo na
estrutura familiar: a morte de Idago e Dorvi muda o rumo nas vidas de Bica e
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Dona Esterlinda. A alternância entre essas vozes-testemunhas e a de um
narrador heterodiegético (mas que, contudo, não se distancia da violência que
atinge os protagonistas) empresta ao conto uma dramática urgência, amplificando
os efeitos da violência a que tais protagonistas estão expostos, dia após dia.
Desse modo, o texto cumpre uma importante função social, magnificando a
desumanização e violenta hostilidade a que está sujeita significativa parcela da
população brasileira.
REFERÊNCIAS
EVARISTO, Conceição. A gente combinamos de não morrer. In: EVARISTO, Conceição. Olhos d’água. Rio de Janeiro: Pallas Fundação Biblioteca Nacional, 2014. 116p. p. 99-109. GINZBURG, Jaime. Literatura, violência e melancolia. Campinas, SP: Autores Associados, 2012. ISBN 978-85-7496-256-6. LEITE, Ligia Chiappini Moraes. O foco narrativo. 11 ed. 1. imp. São Paulo: Ática, 2007. 96p. ISBN 978-85-08-10789-6. PELLEGRINI, Tânia. No fio da navalha: literatura e violência no Brasil de hoje. In: DALCASTEGNÈ, Regina (org). Ver e imaginar o outro: alteridade, desigualdade, violência na literatura brasileira contemporânea. São Paulo: Editora Horizonte, 2008. REIS, Carlos. O conhecimento da literatura: INTRODUÇÃOaos estudos literários. 2. ed, reimp. Coimbra: Gráfica de Coimbra, 1995. ISBN 978-972-40-0824-0.
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O NEGRO NA NARRATIVA AFRICANA DE CASTRO SOROMENHO
Claudia Maira Silva de Oliveira Ana Paula Teixeira Porto
RESUMO
O presente trabalho busca analisar o romance africano Terra Morta, de Castro Soromenho, a fim de identificar a relação existente entre literatura e história, evidenciando a representação da realidade social sob a perspectiva do personagem negro. Este estudo visa analisar as situações problemáticas e conflituosas enfrentadas pelos nativos angolanos especificamente, a imagem de servidão e abusos sofridos pela mulher angolana. O estudo de caráter bibliográfico, pautado em referenciais da Sociologia da Literatura, aponta a desvalorização e imposições violentas para com as mulheres africanas, as quais são recorrentes durante todo o romance. Além disso, salienta que a mulher negra é vista apenas como um objeto de satisfação dos brancos, colonizadores.
Palavras-chave: Terra Morta. Mulher. Castro Soromenho.
ABSTRACT
This study aims to analyze the African novel Terra Morta, Castro Soromenho in order to identify the relationship between literature and history, showing the representation of social reality from the perspective of the black character. This study aims to analyze the problems and conflictive situations faced by Angolan natives specifically, servitude image and abuses suffered by the Angolan women. The bibliographical study, based on references of the Literature Sociology, says the devaluation and violent impositions towards African women, which are recurrent throughout the novel. Furthermore, it stresses that the black woman is seen only as a white Satisfaction object settlers.
Keywords: Terra Morta. Woman. Castro Soromenho.
Introdução
O presente artigo busca apresentar reflexões a cerca do escritor africano:
Fernando Monteiro de Castro Soromenho nasceu em 1910 em Moçambique,
porém passou toda a infância e adolescência em Angola, exceto alguns anos que
estudou em Portugal. Na sua trajetória de vida, percorreu vários países, entre eles
França, Estados Unidos e Brasil, uma experiência que contribuiu para que a
bagagem cultural do escritor fosse ampliada e influenciasse também nas
publicações de suas obras, formatadas especialmente em formato narrativo.
O escritor, que se destaca pela produção de poesias, contos e romances,
tem como característica marcante em suas obras o cunho documental, é
importante destacar que muitos elementos de suas histórias coincidem com
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dados estatísticos da época, quando Angola ainda era colônia de Portugal,
denotando um elo de sua literatura coma história angolana no período colonial.
Um exemplo disso é a referência ao número de habitantes, à presença de
brancos e negros no espaço angolano, além dos nomes de algumas localidades,
como a vila do Camaxilo onde se desenrola a narrativa do romance Terra Morta
que, segundo Mourão (1978), realmente existiu.
Castro Soromenho utiliza em sua obra a linearidade dos fatos e na
construção de personagens, com predominância de planos e alguns com
tendência a redondo. A linguagem de suas narrativas é simples e baseada na
oralidade, o que confere à obra do escritor uma fácil compreensão e um
estabelecimento claro com a história de Angola. Conforme Dutra (2013) é
importante manter a observação sobre o fazer literário, pois o fato histórico
acompanha a literatura. Terra Morta, por exemplo, mostra através dos
personagens a decadência da colonização portuguesa em Angola nas décadas
de 20 e 30, como se explicita no enredo, e ressalta a situação de miserabilidade
dos administradores portugueses, reproduzindo o contexto de Angola colonial.
Considerando essas observações acerca de alguns traços que singularizam
a obra de Castro Soromenho, este artigo contempla reflexões sobre a forma com
que o escritor representa o contexto social de seu país através da literatura,
elegendo-se como corpus de análise a obra Terra Morta Morta (1945), que é
conhecida como um dos romances que compõe a trilogia do Camaxilho,
juntamente com A chaga (1970) e Viragem (1957). Nessas obras, o autor
estabelece relações entre literatura e história de Angola, destacando as relações
de exploração e violência do colonizador português para com o sujeito angolano.
Além disso, Soromenho aponta nesses romances as relações desiguais entre
colonizador e colonizado e a difícil realidade dos sujeitos marginalizados em
especial o nativo e a mulher angolana.
Neste trabalho será destacada a relação existente entre literatura e
história, sendo possível evidenciar uma representação da realidade social no
romance angolano, permitindo aos leitores conhecerem situações problemáticas e
conflituosas enfrentadas pelos nativos angolanos.
O neorrealismo, na literatura portuguesa como na angolana - cuja principal influência é a teoria política marxista -, através da escrita de Castro Soromenho pressupõe uma atitude problematizadora engajada e
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crítica do autor em face das mazelas sociais. O recorte da realidade é fundamentalmente problematizado como base de uma denúncia social e depende da intervenção responsável do autor sobre a situação narrada visando identificar nela, sobretudo, processos de alienação e desumanização priorizando sujeitos sociais coletivos (OLIVEIRA, 2011, p. 800)
Este trabalho contemplou as seguintes problemáticas a serem trabalhadas:
a)Qual é a relação existente entre literatura e história na obra Terra Morta? b)
Como Castro Soromenho apresenta as relações entre o colonizado, nativo
africano, e o colonizador, português branco, no romance? c) De que forma
Soromenho se utiliza do romance para representar o período pré-independência,
em Angola? d) Quais os conflitos são mais frequentes e evidenciados nas obras,
quando se trata da relação entre o negro, especificamente a mulher, e o branco?
O objetivo central deste trabalho é analisar, a partir do contexto literário e
social da triologia do Camaxilo, a constituição dos personagens, a ambientação
dos espaços descritos, as situações e também as problemáticas que permeiam o
romance Terra morta, a fim de compreender a relação que se estabelece entre a
literatura e história e como o escritor o faz.
A fim de alcançar os objetivos propostos, esta pesquisa dar-se-á através de
análises e interpretações da obra Terra Morta a partir da perspectiva da sociologia
da literatura, baseando-se também em pesquisas bibliográficas acerca da
literatura africana de expressão portuguesa, das relações entre literatura e história
e também as relações que o romance estabelece com a história de Angola, no
período pré-colonial.
O artigo está estruturado da seguinte forma: inicialmente será apresentada
uma perspectiva crítica de reflexão sobre os diálogos entre literatura e sociedade
para, a partir disso, verificar de que forma o sujeito angolano é apresentado em
Terra morta, em seguida será analisado de que forma o colonizador português é
descrito e qual sua função e por fim será estudada a imagem de servidão e
exploração sexual para com a mulher angolana.
Antônio Candido (2006), afirma que a arte é social, pois sofre influência
direta do contexto de sua produção, além de apresentar relações com a realidade.
A literatura também é considerada uma das mais belas artes, sendo, para
Candido, “uma estilização formal da linguagem”, ou seja, é uma linguagem
elaborada que traz consigo aspectos que fazem parte da estética escrita e
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também que apresentam características muito próximas do real, conforme
destaca Antônio Candido na obra Literatura e sociedade (2006, p. 56).
Em perspectiva semelhante a de Candido, Bakthin(1990) também postula a
perspectiva dialógica da linguagem literária e as possibilidades de interação de
uma obra com a sociedade. Segundo Bakthin (1990), o romance estabelece
relação com as próprias experiências do autor e também com o contexto sócio-
histórico em que o texto está inserido. Para o teórico a literatura é uma
representação implícita do contexto social e histórico, de determinado grupo, ou
até mesmo biográfico do autor.
Correlacionando essas possibilidades de leitura literária, pode-se identificar
que no romance Terra Morta, Castro Soromenho apresenta algumas
características que fazem parte de seu contexto: mesmo pertencendo à elite e
sendo filho de um administrador, o autor representa sujeitos marginalizados de
Angola em suas narrativas, dando voz à população oprimida, pois a maioria dos
personagens angolanos do romance provém desse contexto. Por meio dessas
personagens, o escritor denuncia a exploração portuguesa no país africano ainda
colônia de Portugal, também mostra os percalços do seu povo, representando
todos os tipos sociais da época, entre estes os administradores portugueses, a
mulher angolana, os mulatos, os sobas e sipaios através de uma narrativa
realista.
Através do romance Terra Morta (1948), Soromenho tem como proposito
representar problemáticas vivenciadas pelos nativos, colonizadores, mulatos e a
mulher angolana antes de Angola tornar-se independente de Portugal,
destacando a condição das mulheres vítimas por excessivas explorações.
Conforme destaca (SANTOS, 2008) o sujeito angolano era associado à
coisificação, ou seja, os habitantes nativos eram tratados como objetos,
especialmente a mulher negra que era considerada unicamente como fonte de
prazer e exploração, seres de cama, mas não de sala; para a autora a mulher
angolana era importante apenas sexualmente, mas para esposas era necessário
que a mulher fosse branca, assim como eles, os colonizadores.
Nesse contexto, era comum haver abusos sexuais por parte do português,
sendo a angolana capaz de unicamente satisfazer seus desejos sexuais,
cozinhar, lavar e procriar filhos mestiços que em sua maioria eram rejeitados
pelos próprios pais, pois eram poucos aqueles que amparavam os filhos e
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proporcionavam a chance de estudar em Portugal. A desvalorização e imposições
violentas para com as mulheres africanas são recorrentes durante todo o
romance, além disso, o fato da mulher ser tratada apenas como um objeto de
satisfação dos brancos é tratada com naturalidade pelo narrador conforme
destaca Stringhini (2010):
podemos dizer que a mulher negra tem sido vista com uma imagem que não esconde os valores impostos pela brutalidade da dominação e subordinação diante da tirania da colonização, dando uma visão catastrófica de exploração do corpo da mulher como um objeto sexual do homem branco. (STRINGHINI, 2010, p. 95)
Além da ideia de exploração e desigualdade com a mulher, o romance trata
questões como a estereotipação do nativo, que sempre é tratado de forma
desigual e inferior, em nenhum momento recebe alguma posição de destaque ou
respeito, sempre é considerado inferior e não digno de tudo que o cerca. Um
exemplo de interiorização da imagem negativa do negro é quando o personagem
Pancário duvida da conduta do filho mestiço, pois acredita que o mesmo deseja a
sua morte para poder gastar seu dinheiro, como se a cor interferisse na conduta
negativa do indivíduo, o fazendo capaz de trair a própria família por dinheiro.
Apesar das humilhações sofridas pelas mulheres negras, estas sentiam-se
gratas aos brancos por terem com eles filhos e viverem ao seu lado. Esse é o
caso da personagem negra Francisca, que diz ao filho mulato que este não é
qualquer um porque é filho de branco (SOROMENHO, 2001). Nesse sentido,
notam-se a gratidão e o orgulho de Francisca por ter um filho do administrador
português José Calado, isto faz com que seu filho não seja qualquer negro nativo,
e sim descendente de europeu. Mourão explicita essa condição de inferioridade
do angolano:
[...] embora em certas situações o colonizador passe a estar numa situação bastante desfavorável, de qualquer ponto de vista, sempre estará melhor que o colonizado, pois a situação dominante que exerce o coloca sempre, em qualquer circunstância, em primeiro plano. No plano teórico e global a afirmação de Albert Memmi é correta, mas nem sempre se aplica a certos casos particulares. No caso da trama romanesca de Terra Morta ou de Viragem a situação dos comerciantes brancos, por oposição aos negros, colocados cada qual no contexto do seu grupo, não difere muito e mesmo a dos “brancos do governo” instalados no posto de Cuango. É lógico que apesar de todas, é o branco quem manda e o negro quem obedece. (MOURÃO, 1978, p.91)
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Neste fragmento Mourão (1978), explicita que os portugueses são
representados na grande maioria das vezes em condições de miséria, devido às
crises, porém o negro angolano nunca está em condição menos desfavorável que
o branco. Mesmo estando em condições difíceis, jamais são colocados no mesmo
patamar do negro: o branco sempre é representado com superioridade e é digno
de respeito absoluto; somente os brancos eram capazes de ocupar papel de
representatividade e destaque na sociedade desta época, o que se verifica no
papel exercido na administração e no comércio; porém, durante a narrativa é
latente o descontentamento dos portugueses, em viverem situações que
causavam descontentamento, pois não havia atrativos e nem condições que
assegurassem uma vida digna, conforme cita Vale (2004) a seguir:
Paralelamente à destruição da gente africana, ocorre a degradação do português, debilitado por ter que se submeter às adversidades circunstanciais no sertão da colônia, bem como pela perda do sentido de vida, que o leva ao aviltamento da alma. (VALE, 2004, p. 114)
Em Terra Morta é evidente a degradação do colonizador português, apesar
de ter extensas propriedades e receber os impostos dos nativos, não era o
suficiente para sua sobrevivência e riqueza, pois a seca e a infertilidade do solo
não permitia com que obtivessem lucros. Dessa forma tinham que comer e viver
da mesma forma com que os negros viviam, como fica claro no dialogo entre Zé
Paulino e Lorenço: “Vivemos praqui como negros, comendo pi-rão com eles. Foi o
que a gente ganhou” (SOROMENHO, 1979, p. 138).
No enredo do romance, existia uma única forma de os negros ocuparem
uma posição superior aos demais. Quando eram promovidos à posição de capitas
e cipaios, eram homens negros que colocavam em prática exigências dos
portugueses, suas funções eram de supervisionar os demais negros angolanos.
Tinham como dever colocar em prática exigências e imposições portuguesas,
muitas vezes castigavam fisicamente seus próprios irmãos nativos, ou seja,
incorporavam as ideologias e os valores sociais de europeu, como se essa prática
fosse justa e correta. Nessa perspectiva, Mourão afirma que:
[...]Além de alguns auxiliares brancos – secretário, aspirante – cujo o número varia consoante a importância do posto, tem a sua disposição
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uma “polícia civil” negra enquadrada no topo pelos sipaios – que usam farda – e por seus capitas – que apenas usam um cofió. Sipaios e Capitas são representantes do branco, mas não se impõe como tal. Seus companheiros os consideram renegados, mas aspiram a essa posição que, no contexto local, é a máxima posição que podem aspirar. Não são respeitados, mas temidos. Seu status aumenta, mas não a consideração. Sempre que há que procurar um negro, que não pagou o imposto, que vendeu algodão a um comerciante livre, ou fugiu do contrato, lá vai o sipaio com os capitas em busca do criminoso. (MOURÃO,1978, p. 93)
Caso as tarefas não fossem cumpridas conforme as exigências cabiam aos
capitas e sipaios punir os escravos angolanos, chama a atenção o fato destes não
se sentirem como negros, mas sim brancos. Vale ressaltar que castigavam seu
próprio povo para serem reconhecidos pelos colonizadores, pois era o máximo de
reconhecimento que conseguiam adquirir. Um exemplo disso é o fragmento a
seguir, que mostra uma situação em que fica explicita a função do sipaios: “[...]
foram capinara estrada eram vigiados pelos capitas, para não ganharem os
caminhos cruzados das florestas, onde se acostumam esconder dos brancos e
dos sipaios. (SOROMENHO, 2001, p.42). Fica evidente a situação de escravidão
a qual os angolanos eram submetidos, eram obrigados a trabalhar, enquanto isto
os capitas e sipaios, representantes da administração, os supervisionavam no
caso de não cumprirem as tarefas e, se então os negros fugissem, eram punidos
fisicamente. A obra chama a atenção para a alienação inconsciente do angolano:
mesmo sabendo que são explorados, consideram o europeu como modelo.
Entre uma das problemáticas é a condição de servidão do africano, como
se este não fosse merecedor de respeito e digno de ser considerado ser humano,
como explicita Soromenho no artigo de Jahn “Negamos no Negro o homem que
ele é, sem sequer pensarmos que ao negá-lo também negávamos como
homens”(SOROMENHO apud JAHN, 2010). Negou-se tanto o negro até o fato de
ele não ser mais pessoa, homem, afinal ser humano, e o texto literário do autor
representa essa condição.
A obra é narrada por um narrador onisciente neutro cuja linguagem é
bastante
direta e com descrições por vezes minuciosas, como se houvesse a
intenção de compor um “retrato” do mecenário e da vida dos personagens. O livro
dá ênfase aos portugueses casavam-se com negras, como é o exemplo da
relação entre João Calado e a negra Francisca, e desse relacionamento nasce
um filho mulato, assinalando o processo de miscigenação racial decorrente do
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processo de colonização portuguesa. Após a morte de Calado, Francisca e o filho
têm todos os bens confiscados pelos administradores, pois não se admitia que
uma negra e um mulato, mesmo sendo esposa e filho, tomassem posse do que o
português havia conquistado, cabendo aos demais administradores apoderarem-
se de tudo.
Os acontecimentos relatados pelo narrador são regados por violência,
exploração, mentira, sofrimento e racismo para com negros e mulatos, como
explicitado em Terra Morta: “[...] Rebenta-lhe as unhas! Depois de surrado, as
mãos inchadas a escorrem sangue, o sipaio caiu de borca na varanda da
Administração, a gemer com a boca no chão. É para outra vez ouvires as ordens
do branco[...]” (SOROMENHO, 2001). É um excerto que mostra o castigo que o
negro recebe por não ter seguido as ordens do administrador.
Terra Morta, além de apresentar cunho documental, também explicita
denúncias da violência colonial e os abusos do colonizador para com o nativo
angolano, em muitos fragmentos da obra nota-se a comparação do negro com
animais, que não tem capacidade de pensar e portar-se como gente. Um dos
fragmentos que comprovam esta ideia é a voz do narrador, que faz uma crítica a
postura de Joaquim Américo como pode-se visualizar no seguinte fragmento: “−
Eu não os defendo por serem negros, porque para mim a cor e a raça não
contam, mas sim como homens que são tratados como animais, como bestas,
nada mais.” (SOROMENHO, 2008.p. 245). Américo viera do Brasil, onde
participara na revolução de São Paulo contra a ditadura. (OLIVEIRA. s/d)
Considerações Finais
Após a análise da obra de Castro Soromenho, pode-se concluir que o
escritor busca representar a problemática colonial, dar voz aos sujeitos à margem
da sociedade angolana, denunciar os abusos como as cobranças de impostos e a
escravidão, o que permite caracterizar a obra como narrativa realista. Além disso,
visa à representação de brancos, mulatos e portugueses através dos
personagens, conflitos, além do ponto de vista utilizado pelo narrador, conforme
destaca Mourão (1978).
Pode-se observar que Soromenho aborda a realidade do povo; o narrador
do romance da ênfase além da cobrança de impostos, as explorações
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portuguesas, a escravidão e a forma com viviam os angolanos, bem como se
organizavam. Segundo Inocência Mata (apud FONSECA, MOREIRA, 2007) a
triologia do Camaxilo pode ser considerada como conjunto de romances da
colonização, pois dá vida a personagens, situações, problemas e vivências da
época.
Após o estudo da obra de Castro Soromenho, pode-se afirmar que o
mesmo não se valeu de grandes recursos literários, pois nitidamente percebe-se
que o romance Terra Morta segue uma linearidade dos fatos, ou seja, apresenta
início, meio e fim, a linguagem é simples, por vezes baseada na oralidade, não
apresenta cunho predominantemente crítico e reflexivo, mas sim documental.
Porém o livro não se torna menos importante para a formação cultural e literária
de Angola, uma vez que permite compreender como era constituída a sociedade
a época e como eram os sujeitos colonizados.
REFERÊNCIAS
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OLIVEIRA, Ana Rita. Terra Morta: um contributo para a história do trabalho colonial. Revista Editora Abril, v. 1, n. 1, p. 53-61, s.d. Disponível em revista em: <http://ubiletras.ubi.pt/wp-content/uploads/ubiletras04/oliveira-ana-rita-contributo-trabalho-colonial.pdf>. Acesso em: 28 jun 2015. OLIVEIRA,Susan A. de. Terra Morta: perspectivas da historiografia literária e da história social de Angola. Seminário Internacional História do Tempo Presente, Florianópolis, v. 1, n. 1, p. 789-804, 2011. Disponível em: <http://sobrecs.files.wordpress.com/2012/03/253-502-1-pb4.pdf>. Acesso em: 22 fev. 2015. SANTOS, Lisiane Pinto dos. Relações de Trabalho em Terras sem fim, Gabéus e Terra Morta: universos que se tocam. 2008. 213f. Tese (Programa de Pós-graduação em Letras - Universidade Federal do Rio Grande do Sul). Porto Alegre, 2008. Disponível em:<http://www.lume.ufrgs.br/handle/10183/15350?locale=pt_BR> Acesso em: 28 jun. 2015. SOROMENHO, Castro. Terra Morta. Porto: Campo das Letras, 2001. STRINGHINI,Viviane C. M. S. Heranças da escravidão na narrativa Ponciá Vicêncio, de Conceição Evaristo. Revista Eletrônica Literatura e Autoritarismo, Santa Maria, Nov. 2010. Acesso em: 20 nov. 2013. VALE, Regina Célia. Poder Colonial e Literatura: as veredas da colonização portuguesa na ficção de Castro Soromenho e Orlando da Costa. 2004. 303f. Tese (Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas – Universidade de São Paulo). São Paulo, 2004. Disponível em: http:<//www.teses.usp.br/teses/disponiveis/8/8156/tde-19042005-141030/pt-br.php.> Acesso em: 20 jun. 2015.
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A MANTA DO SOLDADO, DE LÍDIA JORGE: A CONSTRUÇÃO DA IDENTIDADE
Minéia Carine Huber Ilse Maria da Rosa Vivian
RESUMO A literatura contemporânea traz à tona, em suas narrativas, os dramas de personagens com crise de identidade, decorridas de problemas familiares, históricos e sociais. Dessa forma, este estudo tem por objetivo investigar como esses personagens utilizam suas memórias e as memórias de outros para constituírem sua própria identidade. Essa investigação será feita a partir do romance A manta do soldado, da escritora portuguesa Lídia Jorge. A narrativa está inserida no contexto português da segunda metade do século XX, período em que Portugal passa por profundas mudanças, as quais aparecem na trajetória dos personagens do romance. Para esse estudo, buscou-se embasamento teórico acerca da relação entre história e ficção e de como a memória e a identidade participam da vida dos sujeitos e marcam para sempre, de forma positiva ou negativa, a existência dos personagens da narrativa.
Palavras-chave: Narrativa. Identidade. Memória. Lídia Jorge.
ABSTRACT The contemporary literature brings out, in its narratives, the dramas of characters with identity crisis, elapsed from family, historical and social problems. Thus, this study aims to investigate how these characters use their memories and the others’ memories to constitute their own identity. This investigation will be made from the novel “A manta do soldado”, by the Portuguese writer Lídia Jorge. The narrative is inserted in the Portuguese context of the second half of the Twentieth Century, during which Portugal is undergoing profound changes, which appear in the trajectory of the characters of the novel. For this study, one sought theoretical basis regarding to the relationship between History and fiction and how the memory and the identity participate in the individuals’ life and mark forever, positively or negatively, the characters’ existence of the narrative. Keywords: Narrative. Identity. Memory. Lídia Jorge.
INTRODUÇÃO
Este trabalho apresenta um estudo da construção da identidade do sujeito
na narrativa portuguesa A manta do soldado, de Lídia Jorge, a qual apresenta
uma personagem protagonista sem nome. Essa personagem busca, através de
memórias que ela própria tem de seu passado e das memórias de seus familiares
e conhecidos, um embasamento necessário à constituição de sua identidade.
Essa busca incessante existe porque a personagem não encontra seu espaço no
ambiente em que vive.
A dificuldade da personagem em constituir sua identidade se deve ao fato
de ela ter sido criada sem a presença de seu pai verdadeiro e, nas oportunidades
em que convivia com ele, chamava-o de tio. Isso acontece porque seu pai não
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aceitou casar-se com sua mãe, preferindo sair pelo mundo. Entretanto, apesar
dos relatos negativos sobre o pai, ela sempre o aceitou do jeito que ele era. Este
fato deixa marcas profundas na personagem, o que contribui para a incessante
busca de seu lugar entre as pessoas de sua convivência.
A trama apresentada permite que seja feito o estudo sobre a identidade
dessa personagem não nomeada, através de suas memórias e de seus familiares
e conhecidos. Nesse processo de construção da identidade pessoal, os discursos
dos outros estarão ancorados em memórias, que tornam possível o repasse de
informações ao sujeito em busca de sua identidade. Essa memória vinda dos
outros, a memória coletiva, não é a única que contribui nesse processo; há,
também, a memória individual, na qual o próprio sujeito recorre ao passado, por
meio da rememoração, para reforçar suas lembranças.
Para compreender a busca pela identidade, da personagem não nominada,
no romance A manta do soldado, de Lídia Jorge, o objetivo geral consiste em
pesquisar como ocorre a construção da identidade pessoal, através da memória
individual e coletiva, no romance português, a fim de descobrir a influência das
diferentes memórias na constituição da pessoa, como sujeito inserido em
determinado espaço. Para isso, busca-se investigar por que as memórias,
individual e coletiva, influenciam na construção da identidade e analisar como a
busca pela identidade pode marcar a trajetória de um indivíduo.
1. O cenário português: a relação entre história e ficção
O romance estudado, A manta do soldado, publicado em 1998,
originalmente com o título O vale da Paixão, é da escritora Lídia Guerreiro Jorge,
nascida em 18 de junho de 1946, em Boliqueime, de uma família rural. As obras
da autora apresentam uma intensa relação com o contexto social, político e
histórico de Portugal, conforme afirma Kelm: “a absoluta e incessante conexão
com o entorno nacional é uma das mais fortes características da obra de Lídia
Jorge” (2012, p. 148). Isso ocorre porque a autora traz para seus romances o
processo histórico de mudanças, a cultura presente e as inquietações de uma
sociedade em processo de transição do patriarcalismo e modelo rural para a
liberdade de direitos e evolução globalizante.
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Quando discutida a relação entre história e ficção, é necessário considerar
como ponto de partida o dado que ambas são formulações da linguagem.
Segundo Santos (1996), as manifestações e o entendimento da história e da
ficção ocorrem no âmbito da linguagem. Um dos pensadores sobre esse tema foi
Aristóteles (1992), que, ao abordar a literatura, na qual está inserida a ficção, o
teórico consagra a fórmula: a literatura não tem compromisso com a verdade, mas
com o arranjo convincente de seus elementos. Ela precisa parecer e não ser
verdadeira. Dessa forma, diferencia-se da história, pois esta é caracterizada pelo
comprometimento com a veracidade dos fatos.
O romance possui a tendência de estreitar a relação e os desdobramentos
entre a ficção e a história, pois a forma como é constituído torna possível a
relação. No romance A manta do soldado não é diferente, uma vez que ocorre ao
longo da narrativa uma intrínseca relação entre a ficção e a história de Portugal,
sendo inclusive expressa essa relação nas próprias personagens: a filha/sobrinha,
não nominada na narrativa, Walter, o aventureiro e Francisco Dias, o patriarca
retrógrado.
A produção literária sempre está inserida em determinado contexto social e
histórico. Assim, a obra analisada apresenta as características da sociedade
portuguesa em determinado contexto histórico, com suas inquietações quanto às
mudanças pelas quais está passando: a decadência do modelo essencialmente
agrícola e patriarcal e a consolidação das inovações e a perda, por parte de
Portugal, de sua hegemonia enquanto descobridores e colonizadores. Essa
decadência pode ser explicitada em:
Já nada disso existia. Então o que vinha fazer o trotamundos àquela casa? [...] Mas quando chegou ao fim, hesitou em fechar a carta. Releu-a. A sua mão tremeu. Era como se tivesse acabado de revelar a si mesmo o estado da sua lavoura, firmado em papel e tinta. Seria verdade o que acabava de escrever? Seria que a sua casa, a sua empresa, a sua reputação de império poupado e produtivo se tinha reduzido àquela decadência? (JORGE, 2003, p. 96).
Do excerto, denota-se um país em que o modelo patriarcal e agrícola já
não é próspero, e que é inevitável o novo e a modernização. Percebe-se que a
propriedade rural do patriarca e autoritário Francisco Dias estava já reduzida a um
pedaço de terra que não gerava lucro, e essa percepção é acentuada pelo fato de
ser o próprio Francisco que reconhece essa decadência estabelecida em sua
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propriedade, que faz referência a um modelo português que também já não se
sustenta mais.
A constante conexão com o entorno nacional português é uma das fortes
características da obra de Lídia Jorge. Em seus textos, estarão presentes as
dimensões pessoais, sociais, históricas e culturais vividas desde meados do
século XX em Portugal. Sendo assim, na obra estão retratadas as tensões entre a
tradição e os novos tempos. Segundo Kelm
Os três personagens-agentes: Francisco Dias (o Portugal autoritário, rural, resistente à modernização), Walter Glória Dias (o Portugal viajor mítico, reavaliado) e a filha de Walter (a consciência e corpo que se constroem e se resgatam – pela sublevação no nível comportamental – como legitimidade familiar e feminina) podem ser lidos como referenciais de momentos históricos e posicionamentos que continuam a vazar na representatividade ficcional portuguesa (2012, p. 156).
A partir da passagem percebe-se um conflito social e histórico,
representado pelas três personagens, que são indispensáveis para o desenrolar
da história do romance. A primeira, Francisco, é o chefe de família, que vê seu
império desmoronar, pois o modelo de produção por ele adotado já não possui
mais sustentação no contexto da época. A segunda, Walter, é a representação do
novo, da liberdade, da abertura para novas discussões. E a terceira, a filha d
Walter, é a que está perdida nesse ambiente em transformação e sofre as
consequências desse processo.
2 A memória como construção da identidade do sujeito
As obras literárias sempre apresentaram diversos aspectos da construção
do sujeito como estes sendo donos de sua própria história; porém, são em obras
mais contemporâneas que esses aspectos ganham força, embasados pela forma
de vida cada vez mais isolada, com dificuldades de relacionamento e, também,
ancorados em desejos de certos grupos sociais, como as mulheres, que buscam
mais espaço no meio social.
E um desses aspectos, relacionado à busca do sujeito pela sua própria
história, remete à construção da identidade, analisada neste trabalho, através da
personagem não nominada, a filha de Walter, que busca seu reconhecimento no
ambiente em que vive, por não se sentir pertencente aquele espaço. Sobre a
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construção da identidade, entende-se, com Stuart Hall, que se trata de um
processo em permanente construção, pois o movimento do sujeito
[...] torna-se uma “celebração móvel”: formada e transformada continuamente em relação às formas pelas quais somos representados ou interpelados nos sistemas culturais que nos rodeiam. É definida historicamente, e não biologicamente. O sujeito assume identidades diferentes em diferentes momentos, identidades que não são unificadas ao redor de um “eu” coerente. (2005, p. 13)
As discussões a respeito da constituição da identidade vêm ganhando
destaque, uma vez que cada ser humano possui uma identidade, que representa
a subjetividade que cada sujeito abriga no íntimo de seu ser. Do trecho acima,
percebe-se que a identidade sofre a influência do meio, ela pode mudar com o
tempo ou ser transformada. A identidade é individual, cada sujeito está, sempre,
a constituir a sua, uma vez que ela nunca se encontra acabada. Conforme Hall:
[...] a identidade é realmente algo formado, ao longo do tempo, através de processos inconscientes, e não algo inato, existente na consciência no momento do nascimento. Existe sempre algo “imaginário” ou fantasiado sobre sua unidade. Ela permanece sempre incompleta, está sempre “em processo”, sempre “sendo formada”. (2005, p. 38)
Todo sujeito envolto em uma crise de identidade sofre com os julgamentos
alheios e individuais, que influenciam na constituição do sujeito como dono de seu
próprio destino. Esses julgamentos são inevitáveis, ainda mais quando se trata de
um sujeito perdido, que se torna vulnerável, sobre o qual recairão muitos
comentários, conforme afirma Strauss:
A identidade está associada às avaliações decisivas feitas de nós mesmos – por nós mesmos ou pelos outros. Toda pessoa se apresenta aos outros e a si mesmo, e se vê nos espelhos dos julgamentos que eles fazem dela. As máscaras que ela exibe então e depois ao mundo e seus habitantes são moldadas de acordo com o que ela consegue antecipar desses julgamentos (1999, p. 29).
Sendo assim, o sujeito precisa superar os julgamentos para conseguir
seguir adiante em sua vida. Esses julgamentos influenciam na imagem que ela
passa à sociedade e acompanham o sujeito na busca por sua própria história. O
julgamento torna essa busca mais difícil, pois exige que o sujeito saiba
administrar os relatos que chegam até ele.
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Para manter vivas as recordações, é necessário, conforme Maurice
Halbwachs (2006), elaborar estratégias de conservação e mecanismos de
lembrança. Em A manta do soldado, a personagem não nominada recorre a estas
lembranças e tenta mantê-las vivas. Lembranças estas que viveu em um passado
distante, e que a menina ouviu de outras pessoas, e que, mesmo sendo
negativas, a respeito de Walter, seu pai de sangue, ela não se importa e acredita
que este não lhe deve nada. Com isso mantém uma imagem de Walter, na qual
ela mesma se espelha. Isso pode ser observado no extrato:
Sim, na noite da chuva, fazia muito tempo que ela tinha herdado essas narrativas. Não eram rudes. Apenas eram. Herdara as narrativas, simplesmente, tal como eram. Walter só de passagem tinha a ver com esse lastro de imagens. Ela sabia. Walter passava-lhes ao lado (JORGE, 2003, p. 72).
Denota-se do trecho que a filha de Walter não se importava com o que de
negativo falavam a seu respeito. O que ela fazia era manter a lembrança de seu
pai viva, da forma que imaginava ser correta, sem cobrá-lo, sem culpá-lo. Ao
manter essas lembranças, a filha ficava amarrada a uma imagem idealizada de
um pai ausente, o que acarretava em um distanciamento com as pessoas e uma
dificuldade de se relacionar.
É através da memória que os outros ajudam o sujeito na reconstrução das
lembranças, pois ele poderá utilizar essas memórias para construir uma imagem
do que não sabe ou do que lembra vagamente, mas que é importante para a sua
busca, e seu percurso por descobrir-se. Com relação a isso, afirma Le Goff:
A memória, como propriedade de conservar certas informações, remete-nos em primeiro lugar a um conjunto de funções psíquicas, graças às quais o homem pode atualizar impressões ou informações passadas, ou que ele representa como passadas (2003, p. 419).
O sujeito em busca da identidade necessita da memória para construir as
lembranças. Para a sua memória individual aproveitar a memória dos outros, o
testemunho não basta, é necessário que a memória individual se complemente de
alguma forma com a coletiva, pois:
Não basta reconstituir pedaço a pedaço a imagem de um acontecimento passado para obter uma lembrança. É preciso que esta reconstrução funcione a partir de dados ou de noções comuns que estejam em nosso
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espírito e também no dos outros, porque elas estão sempre passando destes para aqueles e vice-versa, o que será possível somente se tiverem feito parte e continuarem fazendo parte de uma mesma sociedade, de um mesmo grupo (HALBWACHS, 2006, p. 39).
O indivíduo que busca reconhecer-se terá o auxílio dessa memória
coletiva, embora, muitas vezes, não concorde com os discursos que são
passados, mesmo que esses discursos auxiliem para evocar seu próprio passado.
Nesse trajeto para constituir-se como sujeito de sua própria história, este irá
recorrer à memória. E a memória coletiva se dará pela reconstrução de eventos,
experiências e momentos específicos, e sendo visível através dos discursos
proferidos pelas pessoas, como se comprova em:
Naturalmente que Francisco Dias não falava para ela. Talvez ela nem ouvisse. Quase muda, não falava, não ouvia, não sabia, era indiferente que ouvisse ou não, a sobrinha de Walter. Mas, por vezes, Alexandrina dirigia-se secretamente, só a ela, a filha de Walter. A mulher do manajeiro dizia – “Ah! O grande problema do seu tio não eram os pássaros, não, eram as mulheres. Ele desunhava-se por elas e elas morriam por ele, isto é que era...” Suspendia, virava-se, baixava a voz, para acrescentar – “Mas depois aconteceu uma coisa horrível...” (JORGE, 2003, p. 67-68).
A partir do fragmento, percebe-se que a personagem não nomeada, a
filha/sobrinha de Walter, aquela sem identidade própria, que não possui um lugar
seu no ambiente em que vive, pelo contrário, ela é indiferente aos outros. E o que
ela ouve sobre Walter, seu pai verdadeiro, é negativo, e isso a faz sentir mais à
margem ainda da sua família e da própria vida.
3 A manta do soldado: a construção do “eu”
A obra A manta do soldado, publicada em 1998, da escritora Lídia Jorge
apresenta como protagonista uma personagem não nominada marcada por uma
história de vida sem existência própria, e que busca constituir sua identidade em
meio a todos os relatos negativos que a envolvem. Segundo Strauss até mesmo
os nomes das pessoas estão carregadas de significados. Para o autor,
Um nome pode revelar muita coisa, tanto de quem o deu quanto de quem o porta; se formos observadores, descobriremos que ele diz milhares de coisas. [...] Todo nome é um recipiente; nele estão vestidas
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as avaliações conscientes ou involuntárias de quem o nomeia (STRAUSS, 1999, p. 35).
Nesse sentido, a personagem, por não ser nominada na narrativa, não
pertence, portanto, a nenhuma categoria, é solta, sem espaço, sem importância,
mal constituída, inacabada e precisa ir em busca de ser reconhecida no ambiente
em que vive.
Ambientada, a narrativa, na fictícia Valmares, em Portugal, apresenta a
trajetória de uma família rural, cujo patriarca, Francisco Dias, delega poderes
sobre seus descendentes e tenta a todo custo manter seu império agrícola,
mesmo este sendo ultrapassado. Ao fazer isso, Francisco extingue toda e
qualquer possibilidade de os integrantes de sua família ter voz e participar das
decisões para o andamento da propriedade e dos negócios.
É narrada ora em primeira, ora em terceira pessoa, mas sempre na
perspectiva da protagonista, neta do patriarca Francisco Dias, filha legítima de
Maria Ema e Walter, mas quem a criou como pai e a quem deve chamar de pai é
o irmão mais velho de Walter, Custódio, o coxo, que sofre de uma paralisia. Essa
forma narrativa comprova-se em:
Como poderia Walter ter dito, dia antes, durante a noite da chuva, que não lhe havia dado nada? Herdei a vivência rumorosa do que sucedeu antes do silêncio. Tornei-me herdeira da imagem dum amor, duma paixão envolvida no seu desencontro, e no entanto alta. (JORGE, 2003, p. 132)
Percebe-se que o discurso oscila entre a primeira e a terceira pessoa. O
que torna a situação dos envolvidos na história sofrida e angustiante é o fato de
Walter, que era o filho mais novo dos Dias, ser um aventureiro, não se submeter
às ordens de seu pai como seus irmãos e viver desenhando pássaros em sua
manta de soldado, pois havia se alistado. Quando engravidou Maria Ema, não
aceitou cumprir seu papel de homem, conforme julgava correto seu pai, preferindo
ir para a Índia, já nem mais como soldado, e sim como cabo.
Francisco Dias, como julgava ser um homem de honra, teve a ideia de
fazer Custódio, seu filho mais velho casar com Maria Ema e reparar o erro feito
pelo irmão caçula. O patriarca “sentia-se bem com a sua inteligência e a sua
honra” (JORGE, 2003, p. 76). Mas essa atitude, dita inteligente por Francisco,
deixou marcas profundas nessa família, pois a criança que nasceu, a filha legítima
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de Walter, mas que deveria chamá-lo de tio, era alguém que nunca encontrou seu
espaço no ambiente da família, pois considerava que o próprio nascimento teria
sido a desgraça da família. Em sua imaginação:
[...] eu era a filha dum acaso, dum ímpeto, dum desencontro de viagem, duma bruteza da juventude, da exuberância do corpo. Não eu não existiria, só existiriam os meus três irmãos, filhos deles, do juízo deles e do amor deles, e assim, no carro, teria existido mais espaço [...]. Era culpada, responsável, duma responsabilidade mais funda do que a culpa, porque nascida dum estado criado antes de mim mesma, uma condição herdada que me fizera à imagem e semelhança da própria culpa. (JORGE, 2003, p. 134)
A partir do trecho, evidencia-se a culpa da filha de Walter pela desgraça de
sua família e de sua própria desgraça e infelicidade. O carro a que se refere a
personagem é de Walter, que vem visitar a família em janeiro de 1963,
representando o progresso e a mudança que se iniciava, quando apenas
restavam, na fazenda o patriarca, Custódio, Maria Ema, os três filhos do casal e a
filha de Walter, que contava com aproximadamente 15 anos na época. Todos os
outros filhos de Francisco Dias já haviam emigrado para as Américas.
É a partir dessa visita que se desenvolve a narrativa e residem as
lembranças da protagonista sem nome. Walter traz um carro e leva todos para
passearem, mas o espaço no veículo é pouco, por isso a afirmação da
protagonista de que se ela não existisse haveria mais espaço. Essa visita é o eixo
que trás o anterior e o posterior, é a noite-chave, repleta de significações,
responsável por conservar a tensão do que há por ser desvelado, segundo Kelm
(2012). Isso se comprova em:
Como na noite em que Walter Dias visitou a filha, de novo os seus passos se detêm no patamar, descalça-se rente à parede com a agilidade duma sombra, prepara-se para subir a escada, e eu não posso dissuadi-lo nem detê-lo, pela simples razão de que desejo que atinja rapidamente o último degrau, abra a porta sem bater e entre pelo limiar apertado, sem dizer uma palavra. [...] De outro modo, Walter não teria subido nem teria entrado no interior do quarto. (JORGE, 2003, p. 7)
A visita que Walter faz à Valmares, em 1963, na qual fica alguns dias com
sua família, convivendo com a filha, é importante, pois é nela que irá acontecer a
ida de Walter até o quarto da filha/sobrinha para lhe dizer que sente muito e que
“Sei muito bem que te troquei pela Índia, e afinal a Índia não te merecia, nem a
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viagem para lá e para cá te merecia” (JORGE, 2003, p. 13). Walter vai, em
silêncio, até o quarto da sobrinha para dizer que lhe dará herança, muitos bens,
que lhe dará um futuro promissor e que pagará tudo o que ele acreditava estar
devendo para a filha. Mas para a filha isso não importava, pois ela já tinha sua
maior herança, e ela:
continuava completamente surpreendida, pois sabia que não era assim, e quis mostrar como não era assim, como estava rodeada de objetos e seres deixados por ele, imagens, ideias e fundamentos, tecidos e desenhos, os suficientes e adequados, provenientes dele, e se tinha desejado aquele encontro, era só para lhe explicar como vivia com ele, na ausência dele, por tudo isso que possuía. Queria dizer-lhe que não lhe devia nada. (JORGE, 2003, p. 14)
Também, nessa noite, olharam-se ambos no espelho para notarem suas
semelhanças e lembrarem-se da primeira visita que Walter havia feito à família.
Mesmo sem conseguir falar nada, a filha estava emocionada com aquele
momento, e, se pudesse falar, diria ao pai que ele sempre está com ela, que ele
nunca a abandonou, pois tinha lembranças e objetos dele, que o mantinha vivo na
memória da filha de forma idealizada. No momento em que se olhavam no
espelho:
Então ele disse-lhe – “Repara no que ali está!” E aproximando-se dela, tentou que os dois entrassem na cercadura do espelho. – “Repara, repara!” – dizia ele, levantando a voz, tornando perigosa a noite, fazendo-a sentir-se criminosa pelo risco que todos corriam. Mas o que surpreendia é que ele falasse como se não soubesse que se tratava dum momento que se repetia. – “Meu Deus, como nos parecemos!” – dizia Walter, rodando o vidro do candeeiro, ignorando a fotografia que havia deixado a Maria Ema. (JORGE, 2003, p. 29)
No espelho, repararam as semelhanças, e a menção à fotografia deixa
claro que essa não foi a única visita que Walter fez a Valmares. Muito antes,
quando sua filha, ou sobrinha, como convencionaram falar, tinha
aproximadamente 3 anos de idade Walter os visitou. A filha de Walter guarda essa
semelhança, tanto que, depois de adulta, passa a agir como o pai legítimo. Ela
não obedece a mãe, começa a sair primeiro com o Dr. Dalila, um médico, bem
mais velho que ela, e depois com outros vários homens, como se comprova em:
Ela nem vai, ela só regressa [...]. Já em oitenta, Maria Ema dizia à janela que a filha ia ficar sozinha, que não tinha habilidade para manter o
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mesmo homem, nem tinha sorte nenhuma porque não tinha Deus por seu lado. Gritava isso junto dela, dizia que não queria mais escândalos, mais homens, não desejava conhecer mais rostos, não queria trocar o nome deles, aliás, para não trocar o nome deles, nem perguntava quem eram. (JORGE, 2003, p. 201-202)
A partir do excerto, percebe-se que a filha fazia o mesmo que Walter, como
se, fazendo isso, ela estaria construindo-se a si mesma, a partir do que seu pai
também era e fazia. O próprio Francisco Dias acreditava que ela se parecia com
Walter, pois “ainda discutem, ainda se enraivecem, ainda se insulta, são iguais”
(JORGE, 2003, p. 201). Quando tinha aproximadamente 20 anos, todos
acreditavam que “já se havia transformado na filha legítima do soldado Walter”
(JORGE, 203, p. 33), por todas as atitudes que tinha que eram semelhantes às
dele.
O fascínio pelo pai não é eterno. O primeiro sinal ocorre quando confessa
ao Dr. Dalila que possui o antigo revólver Smith do soldado Walter embaixo da
cama e que se sentia protegida por ele. O Dr. Dalila pede que o jogue fora e ela
atende a esse pedido, como se já não necessitasse da proteção do pai, oferecida
pelo revólver.
Quando os irmãos Dias começaram a mandar cartas “tratava-se duma
carta envenenada. Lembro-me daquelas letras de Adelina” (JORGE, 2003, p. 187)
da América para Valmares, depois de anos permanecerem em silêncio, parece
que estão combinados. O que os Dias fazem, já com a filha de Walter bem adulta,
é tocarem em assuntos que deveriam ficados esquecidos, queriam uma vingança
contra Walter. Os filhos de Francisco Dias “começaram a escrever sobre a pessoa
de Walter, sobre a intocável imagem de Walter. Acuso os irmãos Dias de tentarem
delapidar a herança deixada à sobrinha por Walter Dias, através dessas cartas”.
(JORGE, 2003, p. 176). E conseguiram delapidar, pois a sobrinha começou a
perder seu encanto por Walter.
Nesse momento, ela começa o enfrentamento com o real, e passa a
perceber o traçado de sua própria existência às avessas. Como, por tanto tempo,
pode viver alimentando uma imagem do pai que não era da forma imaginada, que
deixou uma parte de sua vida passar permanecendo presa a algo que não lhe
trouxe nada de bom, apenas a faz isolar-se e desviar-se de condutas corretas. A
filha de Walter agora pensa:
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[...] que para si mesma, em certas noites de chuva, a história da humanidade era menos importante do que a história do seu pai, por indigno que fosse pensá-lo, quanto mais dizê-lo, ainda que o fizesse em voz baixa. E era por isso que ela desejava que Walter, a quem tinham dado a alcunha de soldado, tivesse morrido perto dum campo de batalha. (JORGE, 2003, p. 207).
Após toda a idealização, mais de trinta anos ignorando o que falavam de
Walter, a filha/sobrinha conscientiza-se que tudo foi ilusão. Sua existência era
vazia, porque acreditava em um pai que não a criou, que abandonou sua mãe, e
depois de perceber isso acredita que seria melhor se ele tivesse morrido para
congelar o que de bom teria para se lembrar dele, não abrindo espaço para todos
os erros que ele cometeu. Para ela
Não precisava que ele tivesse sido um herói, [...] Invejava os mortos cujos corpos nunca tinham voltado a casa e de quem não se sabia nada, nem tinha restado coisa nenhuma, nem a ponta duma fivela. Na crueldade dos trinta anos, ela queria que Walter nunca tivesse aparecido a preencher o dia glorioso de sessenta e três, a perturbar a paz do coxo [...] e caminhando sobre a camada fina das pétalas brancas e rosadas das flores das amendoeiras [...] percebia que não podia continuar a viver se não aniquilasse a vida de Walter. (JORGE, 2003, p. 208)
A filha de Walter começa seu trabalho de pesquisa e escrita para aniquilar
a figura do pai, para isso iniciou a escrever sobre ele. “Escreveu três narrativas
para atingir Walter” (JORGE, 2003, p. 210), ou seja, o que queria era se liberar
para poder ser ela mesma, descobrir-se como pessoa e encontrar seu espaço. Ao
dirigir-se ao país em que ele está, entrega-lhe as três narrativas que fez sobre ele.
Eram narrativas pesadas, e ele não as entendia ao longo da leitura até que lê os
títulos, entre eles o principal “O Soldadinho Fornicador”, e fica furioso, pois “a sua
manta era um lugar sobre o qual havia desenhado os seus pássaros e feito o que
lhe tinha apetecido fazer. Ninguém tinha nada a ver com isso” (JORGE, 2003, p.
224), isso prova ele não se arrependia do que havia feito de sua vida.
A protagonista sem nome consegue libertar-se da imagem idealizada que
ela mesma criara desde criança. Era difícil para ela acreditar que
Ele tinha passado a vida inteira a desenhar, tinha gasto o seu tempo e a sua reputação a desenhar pássaros por onde ia passando, e agora queria dizer lhe que havia sido para nada? [...] “Não tenha ilusões, foi sempre para meu prazer, para mais nada...” (JORGE, 2003, p. 226).
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Dessa passagem, depreende-se a indignação e o desgosto da filha, ainda
mais quando ele lhe diz: “não quero que aprendas comigo. Não tenho nada para
te ensinar...” (JORGE, 2003, p. 227). Com isso, a filha tem a certeza de que
nunca descobriria quem era se continuasse sua devoção a Walter. Agora ela
poderia ficar em paz, pois inquietara-o para sempre e havia apagado a imagem
desse pai que apenas a afundava, que a fez perder boa parte de sua vida com
uma ilusão.
Agora ela estava em paz, seu espaço no seio da família e da sociedade
seria possível constituir de forma consciente. O último suspiro de Walter foi,
meses depois da visita da filha, ter enviado à sobrinha sua manta de soldado com
o dizer: “deixo à minha sobrinha, por única herança, esta manta de soldado”
(JORGE, 2003, p. 235). Ele sentia pelo que havia acontecido, mas para aniquilar
totalmente esse pai, ela enterra a manta. Manta essa que representava a vida que
seu pai teve, uma vida sem regras, com romances sobre a manta, manchando
inclusive sua pátria, por ser um objeto de soldado.
Então sim, para seu bem e pela paz gerada pelo aniquilamento de seu pai,
agora a filha de Walter estava livre da referência idealizada de seu pai e poderia
se encontrar e se sentir pertencente ao ambiente em que vivia, se descobrindo a
si mesma e buscando se relacionar com as pessoas. Com isso, o percurso de
constituição de identidade e a busca pelo reconhecimento tornam-se possíveis
para a personagem.
Considerações finais
A relação entre a história e a ficção, proporcionada pelas obras literárias, e
vislumbrada em A manta do soldado, torna possível aos leitores aprofundarem o
conhecimento dos fatos e envolverem-se neles. A ficção não tem o compromisso
de ser real, mas se assemelha à realidade, através da verossimilhança, de tal
forma que torna possível a visão mais crítica da realidade, pois além de expor os
fatos, também apresenta a complexa composição de sujeitos e de situações que
permitem até mesmo a construção de consciências mais críticas sobre os fatos
históricos.
A manta do soldado insere-se, nesse aspecto, na medida em que
apresenta em sua narrativa um país, no caso Portugal, que passa por
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transformações históricas, econômicas, culturais e sociais. Transformações essas
que deixam nas personagens uma marca muito forte. Na obra, estas são
representadas pela família Dias, que começa a desintegrar-se do modelo
patriarcal, figurado por Francisco Dias. Essas mudanças são demarcadas na
figura de Walter, como aquele que deseja ser livre, e de sua filha, ou sobrinha,
como deveria ser chamada. Retratam a incerteza perante o novo, a figura da
mulher e a consciência ou não do pertencimento ao universo em que vive.
Essa dúvida de pertencer ou não ao seu ambiente deve-se ao fato da
personagem protagonista, que não possui nome na narrativa, buscar sua própria
identidade, uma vez que, sua existência é insignificante, é rejeitada por todos de
sua família. Essa personagem vai constituindo-se através das memórias que ela
tem e as que ela adquire, ouvindo de seus familiares e serviçais. Ela não se
importa se estas não são memórias positivas, pois mantém em seu imaginário a
figura idealizada do pai Walter.
Sua existência passa a ser possível quando consegue confrontar o pai, e
assim ela fica bem, pois se liberta daquilo que por anos a consumia, fazendo
manter lembranças de momentos que fora ela mesma que insistia em manter. O
elo final é cortado quando Walter manda a sua manta de soldado para a sobrinha
como herança, mas ela a enterra.
Essa manta, que marcou a trajetória de Walter, era uma metáfora dos
romances que ele viveu. Era a representação de uma vida promíscua, de um
soldado que teve, por muito tempo, a sua imagem idealizada no imaginário da
filha. Filha essa que ele não assumiu, que abandonou e por isso teve uma
existência nebulosa, no escuro.
Ao fim deste trabalho, descobre-se que as personagens, desse romance,
necessitam das memórias, suas e dos outros, para constituir suas identidades.
Mas também essas personagens precisam, por sua própria conta, desamarrarem-
se daquilo que idealizam e não faz parte de nenhuma memória. A memória,
individual e coletiva, revisitada pelo sujeito, assim, é fundamental para que o eu
se concretize e passe a ter sua existência reconhecida no meio em que vive.
REFERÊNCIAS ARISTÓTELES. Poética. São Paulo: Ars Poética, 1992.
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BAKHTIN, Mikhail. Questões de literatura e de estética: a teoria do romance.São Paulo: L&PM, 1990. FIORIN, José Luiz. INTRODUÇÃOao pensamento de Bakhtin. São Paulo: Ática, 2006. GAGNEBIN, Jeanne Marie. Lembrar escrever esquecer. São Paulo: Ed. 34, 2006. HALBWACHS, Maurice. A memória coletiva. São Paulo: Centauro, 2006. HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade. Tradução: Tomaz Tadeu da Silva, Guaracira Lopes Louro. 10. ed. Rio de Janeiro: DP&A, 2005. JORGE, Lídia. A manta do soldado. Rio de Janeiro: Record, 2003. ______. Apresentação do romance O vale da paixão. Publicações Dom Quixote, 1998. Disponível em. <http://biblioteca.cm-seixal.pt/Documentao/Projectos/Conversas%20com%20a%20Escrita/O%20Vale%20da%20Paix%C3%A3o.pdf.> Acesso em 25 mai 2015. KELM, Miriam Denise. A identidade e a história portuguesas: duas constantes revisitadas na obra de Lídia Jorge. Revista do Programa de Pós-Graduação em Letras: Santa Maria, v. 22, n. 45, p. 147-163, jul./dez. 2012. Disponível em <http://cascavel.ufsm.br/revistas/ojs-2.2.2/index.php/letras/article/view/12212/7606>. Acesso em 25 mai 2015. LE GOFF, Jacques. Memória. In: _____. História e memória. 5 ed. Campinas, SP: Editora da UNICAMP, 2003. p. 419-476. SANTOS, Pedro Brum. Teorias do romance: relações entre ficção e história. Santa Maria: Ed. UFSM, 1996. SILVA, Augusto Santos. A mudança em Portugal, nos romances de Lídia Jorge: esboço de interpretação sociológica de uma interpretação literária.Sociologia, Revista da Faculdade de Letras da Universidade do Porto, Vol. XXIV, 2012, pág. 11-33. Disponível em <http://ler.letras.up.pt/uploads/ficheiros/10756.pdf>. Acesso em 25 mai 2015. STRAUSS, Anselm L. Espelhos e Máscaras - A Busca de Identidade. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 1999. Disponível em <http://books.google.com.br/books?id=Yfadk-yY3LwC&pg=PA11&lpg=PA11&dq=Anselm+L.+Strauss+artigos&source=bl&ots=cth7htNq_o&sig=ROsHOaoDdfeaDt1fUqhEMeq7EaQ&hl=pt-BR&sa=X&ei=Gs9sVNbiJ4ScgwSo7YD4DQ&ved=0CE4Q6AEwBw#v=onepage&q=Anselm%20L.%20Strauss%20artigos&f=false>. Acesso em 19 nov. 2014.
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A RELAÇÃO ENTRE A QUESTÃO DA MULTICULTURALIDADE E O CONTO ‘O TERCEIRO E ÚLTIMO CONTINENTE’
Deise Josene Stein
RESUMO O presente trabalho busca relacionar a questão da multiculturalidade com o conto ‘O terceiro e último continente’ da escritora Jhumpa Lahiri. A cultura é a base de qualquer sociedade, neste processo a identidade é o fruto da inter-relação entre os indivíduos que compreende inserção na sociedade. Nota-se que, com o desenvolvimento das cidades, as sociedades foram crescendo e em seu interior inúmeras culturas coexistem. Desse modo, autores tratam as sociedades como complexos multiculturais onde a tolerância parece ser a norma fundamental e necessária para uma convivência harmoniosa. O conto escolhido retrata exatamente este processo, ou seja, o processo de aculturação e de reconhecimento diferenças culturais em uma mesma sociedade. Diante deste cenário, duas noções também podem ser debatidas, a noção de identidade e a noção de diferença. Palavras-chave: Identidade. Diferença. Multiculturalidade. Jhumpa Lahiri.
ABSTRACT This paper seeks to relate the issue of multiculturalism with the tale 'The third and last continent' of Jhumpa Lahiri writer. Culture is the foundation of any society in the process identity is the fruit of the inter-relationship between individuals comprising integration into society. To note that with the development of cities, societies were growing and inside numerous cultures coexist. Thus, authors treat societies as multicultural complex where tolerance seems to be the fundamental and necessary standard for a harmonious coexistence. The story portrays chosen exactly this process, ie, the process of acculturation and recognition of cultural differences in a society. In this scenario, two notions can also be discussed, the notion of identity and the notion of difference. Keywords: Identity. Difference. Multiculturalism. Jhumpa Lahiri.
INTRODUÇÃO
O tema em questão, a multiculturalidade, tornou-se nos últimos anos um
ponto de reflexão para compreender o desdobramento no processo de
globalização. Isso tudo, porque em tão pouco tempo a comunicação encurtou
distâncias e produziu um cenário sem precedentes. Até meados do século
passado não era tema de debate das ciências sociais, como no caso, da
sociologia e da antropologia.
O fato é que com a globalização da comunicação os espaços, territórios
formadores de comunidades culturais foram perpassados por aspectos externos a
sua história enquanto sociedade. Inicialmente isso parece não ter significado,
contudo, no decorrer dos últimos anos assistimos de modo desenfreado, um
deslocamento na compreensão do sujeito – do eu. As identidades antes
fundamentadas nas comunidades culturais, protegidas por seus territórios, agora
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sentem-se ameaçadas por culturas majoritárias que impõem seus ritmos de vida e
suas formas de pensar.
Em tão pouco tempo é possível acessar inúmeras notícias, formas de vida,
formas de se alimentar ou mesmo formas de se vestir. Este arcabouço de
informações é despejado diante dos indivíduos com uma velocidade preocupante,
tal fenômeno provoca a fragilidade da identidade do sujeito, que não possui mais
padrões fixos, mas uma flexibilidade de identificações, em algumas
circunstâncias, identidades até antagônicas.
Para promover uma reflexão sustentável sobre o tema em questão
iniciaremos o trabalho reconstruindo alguns pontos do conto “O terceiro e último
continente”, de Jhumoa Lahiri. O segundo passo é reconstruir os conceitos de
identidade, para isto, recorremos ao pensador Stuart Hall. Para fechar o debate
retomamos a questão do nosso estudo com base em alguns autores que buscam
conceituar o multiculturalismo.
1 Os males da pós-modernidade
A modernidade, enquanto processo histórico, suplantou novas questões ao
ambiente social. Tal fato é observado na formação das sociedades, que em
tempos anteriores, eram apenas pequenas comunidades ou vilarejos. Nesta
passagem, vários elementos tornaram-se questões problemas, como é o caso do
multiculturalismo. É frente a este aspecto que a autora do livro “Intérprete dos
Males” escreve sobre os males da pós-modernidade, conceituando como o
deslocamento da identidade do sujeito. Para tanto, resumo o conto, “o terceiro e
último continente”.
O último capítulo da obra de Jhumpa Lahri, “Intérprete de Males”, inicia
com a história do próprio narrador, que, na tentativa de alcançar uma vida melhor,
passa por três continente diferentes. Relatando a realidade da família em sua
terra natal, Índia, o narrador parte inicialmente para a Inglaterra e, posteriormente,
para os Estados Unidos.
O narrador deixa claro sua relação com suas origens, pois mesmo tendo
saído de sua cidade, casa-se com uma jovem que reside próximo a sua família,
em Calcutá. Nota-se, em seu casamento a manutenção da cultura, que agrega
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todos os traços existentes do seu contexto. Um exemplo disso, é o casamento
acertado entre as famílias, algo comum na cultura indiana.
Um convite para um emprego nos Estados Unidos leva o narrador a buscar
neste outro continente melhorar as condições de vida. Observa-se tal questão na
seguinte frase: “o salário era bom e bastante para garantir o sustento de uma
esposa” (p. 197). A vida de ambos no novo continente é retratada no conto como
um processo de adequação à nova cultura.
O ritmo de vida que a nova cultura propõe ao narrador impõe um processo
de desconstrução da identidade descrita em sua comunidade de origem. A
expressão “todo mundo quer chegar em primeiro lugar” (p. 197), é um exemplo
deste processo. Nas páginas posteriores o narrador descreve, “uma semana
depois eu já estava mais ou menos adaptado” (p. 199).
A adaptação é um dos principais fatores de sobrevivência do narrador em
sua nova cultura. Assim, a alimentação, o trabalho, a forma de se vestir e o
objetivo de vida acabam por ser reconstruídos.
Um trecho relevante a ser destacado é o encontro do narrador com a
mulher que lhe aluga um quarto. O encontro é formado por um cenário rico em
detalhes que fomentam a relação entre diferentes identidades. Vejamos: quando
o narrador chega à casa ele é atendido por uma mulher “extremamente velha” e
“pequenina”, ao entrar em casa, a dona pede para trancar a porta e passar a
corrente na maçaneta. Notoriamente, o encontro entre os personagens do conto
dá uma impressão do encontro entre as culturas distintas, pois, ao telefone a
mulher lhes parecia mais nova e um tanto maior. Aos olhos do narrador, a outra
cultura perpassa uma expectativa, contudo, ao se aproximar, a realidade mostra-
se diferente. O fato de trancar a porta e passar a corrente é uma referência à
insegurança da própria identidade que, no encontro, pode ocorrer breves
aculturações.
Neste mesmo cenário, outro elemento nos chama a atenção os americanos
haviam realizado a primeira expedição à lua, tal evento, era esplendido para a
‘velhinha’, porém para o narrado, era apenas mais um fato. Percebe-se, assim,
um distanciamento entre as identidades culturais que perfazem cada sujeito.
O conto desenrola-se com a vinda da esposa para os Estados Unidos.
Inicialmente, o choque cultural é externado pelo autor do conto, quando retrata
que a moça, esposa do narrador, chorou por vários dias, com saudades de sua
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família. Em algumas partes do texto, o narrador frisa a seguinte questão, “mesmo
estando junto por um tempo, somos estranhos para nós” (p. 205). Tal relação de
diferença é em última instância a desarmonia entre as culturas e a aceitação do
diferente.
O processo de inserção na nova cultura é demorado, porém não tarda a
acontecer. Este fenômeno é observado na descrição do narrador ao afirmar que
este novo continente tornou-se a sua nova casa. Assim, de tempos em tempos,
eles viajam para a Índia visitar seus familiares.
Para alavancar a reflexão de alguns pontos, gostaria de deixar para um
debate posterior, a saber: o encontro entre o narrador e a figura da mulher que lhe
alugou um quarto; a chegada ao novo continente e a relação com a sua esposa,
2 O descentramento do sujeito moderno
A conceituação do sujeito pelos pesquisadores das ciências social levou
em conta o processo sociológico da individualização. É perceptível esta manobra
teórica nas formulações de G. Mead e, posteriormente, Habermas. Neste sentido,
tomamos por base a conceituação do pensador Stuart Hall, e, partimos de sua
obra A Identidade cultural na pós-modernidade, pois é uma das primeiras
vertentes que buscam significativamente debater a questão da identidade.
O autor apresenta logo na primeira página a pretensão de sua obra, a
saber: explorar algumas questões sobre a identidade cultural na modernidade
tardia e avaliar se existe uma ‘crise de identidade’, em que consiste essa crise e
em que direção está indo.
O autor afirma ainda que as formulações da sua obra são pesquisas
provisórias, portanto abertas à contestação. Para o autor, um ponto relevante
deve ser destacado, o conceito de identidade é complexo e muito pouco
compreendido. Assim, as ciências sociais contemporâneas carecem de
explicação coerente sobre o conceito de identidade. Nota-se, frente ao cenário
descrito, que o autor encontra um vasto campo de pesquisa e reflexão.
É importante lembrar que o autor escreve a obra na década de noventa,
onde a globalização inda não tinha uma significativa intensidade. Assim, com o
advento da globalização da comunicação observam-se grandes rupturas nas
culturas e consequentemente nas identidades.
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Ora, o exposto no parágrafo anterior pode ser alavancado no próprio texto
do autor quando afirma que as teorias sustentadas pelas ciências sociais
acreditam que as identidades estão entrando em colapso. As mudanças sociais
das últimas décadas fragmentaram a identidade sólida que as comunidades
através de suas culturas mantinham. Os fortes laços de pertença a determinadas
culturas foram sendo quebrados através de novos processos de socialização, tal
fenômeno será tratado posteriormente neste trabalho.
Hall faz a estruturação das três concepções de identidade construída ao
longa da história da ciência social, a saber: o sujeito do iluminismo, o sujeito
sociológico e o sujeito pós-moderno. A partir destas acepções de sujeito o autor
demonstra a estrutura conceitual da identidade.
Para o autor, o iluminismo construiu uma concepção baseada na pessoa
humana como um indivíduo totalmente fechado, dotado de capacidades
específicas e diferenciais. Talvez a expressão mais explícita deste processo seja
a imagem do Homem Vitruviano, produzido por Leonardo da Vince. Algumas
características deste indivíduo são a capacidade de razão, capacidade de
consciência e capacidade de ação. Tais elementos são individualistas, formando
uma identidade do “eu” essencialmente centrada nas características individuais.
Em contraponto, a noção de sujeito sociológico é amplamente difundida
nas ciências sociais e também aceita por diversos autores. Tal noção parte do
princípio que a cultura ou o ambiente entorno do sujeito formam
consideravelmente a identidade do mesmo. Assim, a interação entre sociedade e
sujeito tem como consequência a formação do “eu”, a identidade, portanto, é fruto
da relação interior exterior.
Já a concepção de sujeito pós-moderno defende que a identidade não é
fixa ou permanente. O sujeito assume identidades diferentes em momentos
diferentes, por vezes contraditórias, ou mesmo, contextuais. Para o autor, ocorre
a inexistência de uma identidade “eu” coerente, que represente as estruturas
históricas de sua cultura.
Com base nas definições de Stuart Hall é possível traçar uma reflexão sob
os aspectos da identidade e da diferença conceituando adequadamente a
questão da multiculturalidade.
3 A questão da multiculturalidade: a identidade na diferença
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O tema da identidade reconstruído até o momento começa a formar um
cenário carente de explicação. Por mais que inúmeros autores busquem uma
construção conceitual adequada, está por vezes é unilateral e não alcança o real
tema em questão.
Sob este olhar, parto neste momento, de dois textos que irão auxiliar em
muito na compreensão da muliculturalidade, a saber: “A produção social da
identidade e da diferença” e “A inclusão do outro”. Ambos os textos tratam de
modo adequado as questões levantadas anteriormente.
Inicialmente, abordo o texto de Tomaz Silva intitulado “A produção social
da identidade e da diferença”, este autor trata de conceituar adequadamente a
questão do multiculturalismo. Outro autor que trata a questão referida é Jürgen
Habermas, que em seu trabalho, “A inclusão do outro”, esta busca no campo
político uma solução frente ao contexto multicultural.
O autor Tomaz Silva, em seu texto “A produção social da identidade e da
diferença”, inicia o seu trabalho alertando para a ausência de uma teoria da
identidade e da diferença. Para o autor, as questões do multiculturalismo
tornaram-se temas de inúmeros debates, contudo, deixam escapar, talvez a
matriz de pensamento, a saber: o conceito sobre identidade e diferença (2000,
p.73).
Para conceituar adequadamente, o primeiro passo é construir o conceito de
identidade e de diferença. Para tanto, voltamos ao texto de Silva, que afirma:
[...] A identidade é simplesmente aquilo que se é: “sou brasileiro”, “sou negro”, “sou heterossexual”, “sou jovem”, “sou homem”. A identidade assim concebida parece ser uma positividade (“aquilo que sou”), uma característica independente, um “fato” autônomo. Nessa perspectiva, a identidade só tem como referência a si própria: ela é autoconhecida e auto-suficiente. (2000, p. 74).
A conceituação determinada até este ponto pode ser definida assim:
identidade, aquilo que se é, já a diferença pode ser entendida como o estranho,
aquilo que não se é ou não faz parte de mim. Por isso, identidade e diferença são
elementos coexistentes. Mas, o autor não se dá por satisfeito com tal
caracterização, assim, assume uma postura mais radical e afirma que ambas, a
identidade e a diferença são resultados do mesmo processo, onde a pertença do
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eu e a não pertença são produzidas ao mesmo tempo. Nesta interpretação, a
origem está na diferença, pois se fundamenta no processo de diferenciação.
Para esclarecer a ideia levantada, o autor recorre à linguagem para
explicar de que modo a noção de identidade e diferença são frutos de um mesmo
processo, e mais, a relação entre as culturas são expressas por figuras de
linguagem que imprimem formas e sentidos a determinados atos de fala. Isso
esclarece alguns pontos já levantados, ou seja, cada sociedade possui uma
cultura, esta possui uma linguagem, significação para as coisas, assim, o
processo de produção simbólica e discursiva tem por resultado a identidade e a
diferença.
Então faz sentido relacionar os conceitos de identidade e de diferença com
a questão do poder, pois os grupos sociais são formados por conglomerados de
símbolos que determinam a identidade do grupo. Salvaguardar a simbologia do
grupo social é defender a identidade do grupo;, tal fenômeno tem como
consequência uma disputa no âmbito da esfera pública social, a perspectiva de
externalizar e manter suas formar grupos de simbologia. Em contrapartida, o
processo de convivência social é fundamentalmente permeado por disputas de
espaço, ou mesmo, de poder.
Historicamente, a questão do poder na sociedade é também uma disputa
pela hegemonia de uma identidade ou forma de vida. Nota-se tal fenômeno na
pertença ou não de um grupo social. Neste sentido, a sociedade é cotidianamente
divindade por grupos que são estruturados por símbolos, mantidos através de
uma linguagem, e fundamentados em um modo de vida. Neste sentido, tem-se
nas relações sociais a questão do poder. Dito doutro modo, as relações sociais
estão permeadas por questões de poder tal fator fomenta disputas por espaços e
direitos na esfera pública.
Para o autor, o problema situa-se da seguinte forma:
Na disputa pela identidade está envolvida uma disputa mais ampla por outros recursos simbólicos e materiais da sociedade. A afirmação da identidade é a enunciação da diferença traduzem o desejo dos diferentes grupos sociais, assimetricamente situados, de garantir o acesso privilegiado aos bens sociais. A identidade e a diferença estão, pois, em estreita conexão com relação de poder. (SILVA, 2000, p. 81).
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Nota-se que o poder está presente justamente na diferenciação entre
identidade e a diferença. Assim, traduzem declarações sobre quem pertence e
sobre quem não pertence em determinados grupos sociais (SILVA, 2000, p. 82).
Para este pensador o processo de poder na estruturação da identidade é uma
divisão binária, isso significa, que entre as culturas é possível à existência de uma
divisão de classes de modo simétrico ou assimétrico. Contudo, caso haja
assimetria, em muitos casos, sempre é expressa como forma de privilégio,
enquanto um recebe a carga positiva, ou simbologia de admiração, outro recebe a
carga negativa e uma simbologia de pejorativo (SILVA, 2000, p. 83).
Com base nas considerações feitas até o momento é possível lançar mão
de algumas considerações em relação ao conto descrito na primeira parte do
nosso trabalho. Para Silva, a identidade é constituída de pertença a um grupo
social que utiliza de artefatos linguísticos para nomear os objetos, este
simbolismo é fundamental para que os sujeitos da comunidade possam interagir e
compreender, contudo, os sujeitos que não pertencem a este grupo sentem-se
diferentes aos outros. Assim, no conto, quando a mulher (velhinha) exclama
‘esplendido’ para com o feito dos americanos, o narrador sente-se diferente à
mesma, pois tal evento para ele não tem sentido algum.
Em um momento do conto, o narrador destaca o fato de fazer algumas
refeições típicas da sua cultura, este fato demonstra que, o narrador volta-se as
suas características culturais, mas, já está se adequando a nova forma de vida. O
mesmo acontece com a utilização de indumentário típico da cultura indiana
quanto este encontra-se inserido em outra cultura. Nesse sentido, o conto é um
importante texto para explorar as noções de identidade e da diferença sob o olhar
do multiculturalismo.
Para entender adequadamente a questão, considero outro trabalho sobre a
questão da identidade e da diferença, é a obra de Jürgen Habermas, sob o título:
“A inclusão do outro”. Em seu estudo, o autor aborda sob o ângulo da política a
questão do multiculturalismo, principalmente no capítulo quinto de seu trabalho,
intitulado: “Inserção – inclusão ou confinamento?”.
A questão central do trabalho são as chamadas minorias inatas. O autor
atribui esta categoria às culturas que são desprovidas de direitos ou mesmo
marginalizadas pelo processo político (HABERMAS, 2002, p. 166).
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A raiz do problema se encontra presente nas sociedades democráticas,
uma vez que “[...] quando uma cultura majoritária, no exercício do poder político,
impinge às minorias a sua forma de vida, negando assim aos cidadãos de origem
cultural diversa uma efetiva igualdade de direitos”. (HABERMAS, 2002, p. 164).
Segundo o autor, o problema das minorias inatas é explicado pelo seguinte
fato: mesmo sendo considerados cidadãos (sujeitos de direito) as minorias são
amputadas de suas relações de origem de direito. Contudo, cabe ressaltar que,
se o direito intervém em questões desta natureza, ou seja, determinar a forma de
vida dos indivíduos tem-se uma valorização forte do sentido republicano, ou
sentido ético. Assim, para fortalecer este entrelaçamento sem recorrer aos
fortalecimentos de uma cultura majoritária é fundamental as “[...] reflexões
pragmáticas e de interesses negociáveis - valorizações fortes, que dependem de
tradições intersubjetivamente compartidas, mas culturalmente especificas”. (2002,
p. 165).
Tal alternativa é uma forma de empreender colaborativamente o
entendimento entre as diferenças entre as identidades que formam o corpo de
cidadãos de um Estado. “Em geral, a discriminação não pode ser abolida pela
independência nacional, mas apenas por meio de uma inclusão que tenha
sensibilidade para a origem cultural das diferenças individuais e culturais
específicas”. (HABERMAS, 2002, p. 166).
Para Habermas, a coexistência com igualdade de direitos das diferentes
comunidades étnicas, confissões religiosas e formas de vida não pode ser obtida
forçosamente fragmentando a sociedade. O multiculturalismo deve fortalecer a
existência de grupos culturais diferentes, onde tenham a liberdade para exercitar
sua identidade, sem com isso, comprometer a existência de uma cultura comum
(2002).
[...] diversos caminhos para se chegar a uma inclusão “com sensibilidade para as diferenças”: a divisão federativa dos poderes, uma delegação ou descentralização funcional e específica das competências do Estado, mas acima de tudo, a concessão de autonomia cultural, os direitos grupais específicos, as políticas de equiparação e outros arranjos que levam a uma efetiva proteção das minorias. Através disso, dentro de determinados territórios e em determinados campos políticos, mudam as totalidades fundamentais dos cidadãos que participam do processo democrático, sem tocar nos seus princípios. (HABERMAS, 2002, p. 166).
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Para o autor, membros de todos os grupos culturais devem poder participar
efetivamente da competição por recursos na proteção de interesses do grupo.
Assim, através de uma arena política compartilhada é possível eximir o poder e
fortalecer a participação de todos no reconhecimento das diferenças culturais.
4 Considerações finais
O desafio das sociedades atuais é proceder de modo adequado frente à
complexidade social, ou seja, fortalecer as relações sociais entre as culturas sem
prejudicar as demais culturas.
Este aspecto é um reflexo da crescente atividade de pesquisa sobre as
relações sociais na pós-modernidade. Por isso, Stuart Hall descreve a formação
de identidade neste mesmo período. Tal obra é muito próxima do conto
apresentado no início deste trabalho.
Ao analisarmos o conto tendo como referência a obra de Hall, é possível
perceber nos personagens do conto uma disparidade na questão da identidade. É
possível afirmar que o narrador possui uma identidade pós-moderna, na
classificação de Hall, já a mulher (velhinha) possui uma identidade de caráter
sociológico. Tal relação é ainda mais acentuada quando levamos em conta a
noção de Silva sobre a identidade.
Tomando por base a conceituação de Silva sobre a identidade e a
diferença, observou-se a importância da linguagem para perfazer a estrutura
basilar dos grupos sociais. Então, fica claro que as relações dos personagens do
conto estão em constante diferenciação (estranhamento) entre si. Por isso, a
questão da multicultaralidade transcende os limites das sociedade pós-modernas.
Nota-se que a globalização da informação carrega consigo ideologias das
sociedades dominantes, e, assim, em pequenos territórios encontramos várias
culturas distintas, que lutam por poder ou as vezes apenas para a sobrevivência
da mesma.
É possível afirmar que a multiculturalidade é uma questão política, pois a
cada momento, novas diferenças são construídas com base em ideologias de
grupos sociais diferentes. Neste aspecto, a tolerância parece ser uma saída frente
a complexidade das diferenças sociais.
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Caso se busque algo mais concreto para o tema em questão é relevante
observar os noticiários sobre as adversidades entre as culturas no momento atual.
Cabe ressaltar, que talvez, todo o debate construído até o momento seja
infrutífero se não aceitarmos as diferenças das identidades. Em última instância, o
“outro”, o diferente pode ser um problema para a harmonia social.
REFERÊNCIAS HABERMAS, Jürgen. A inclusão do outro: estudos de teoria política. Tradução de George Sperber. São Paulo: Loyola, 2002. HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade. Tradução de Tomaz Tadeu da Silva, Guacira Lopes Louro, 11. ed. Rio de janeiro: DP&A, 2006. LAHIRI, Jhumpa. Intérprete de males. Tradução de Paulo Henrique Britto. São Paulo: Companhia das letras, 2001. SILVA, Tomas Tadeu. A produção social da identidade e da diferença. In: _______. Identidade e diferença: a perspectiva dos estudos culturais. Petrópolis: vozes, 2002. p. 73 – 102.
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“JAVALIS NO QUINTAL”, DE ANA PAULA MAIA: VIOLÊNCIA E AMORALIDADE
Diego Bonatti Ana Paula Teixeira Porto
RESUMO A violência torna-se cada vez mais representativa na sociedade contemporânea, permeando as
relações sociais, e até mesmo, a forma dos indivíduos pensarem e agirem. O ato de viver
contempla também lutar contra as diversas situações que reduzem a raça humana ao nada, ao
banal e ridículo, dessa forma, o conto de Ana Paula Maia - Javalis no quintal - publicado na obra
Geração Zero Zero apresenta uma estética paralela ao nojo, à náusea, num ambiente em que a
violência e a morte são aspectos sociais comuns, demonstrando valores morais extremamente
frágeis, muito presentes na sociedade. O personagem Eulálio sente-se julgado a todo o momento
por não ter conseguido matar nenhum javali - o animal invasor do espaço natural da história- por
isso sente medo e até pânico ao pensar na possibilidade de não ser aceito no ambiente onde
impera a lei da brutalidade para resolução de problemas. Ao construir a narrativa a autora deixa
bem claro que para ser inserido socialmente num lugar como aquele, é preciso demonstrar
coragem e matar alguma criatura para ter sossego e sanar a “dívida social”. O ambiente do conto
é rural e hostil, composto por matas e personagens intelectualmente limitados e de certa forma
grosseiros.
Palavras-chave: Violência. Morte. Ana Paula Maia. ABSTRACT Violence becomes increasingly representative in contemporary society, permeating social relations, and even the way individuals think and act. The act of living includes also fight against the various situations that reduce the human race to nothing, the banal and ridiculous, thus the tale of Ana Paula Maia - Boars in the backyard - published in the book Geração Zero Zero presents a parallel aesthetic to disgust, nausea, in an environment where violence and death are common social, demonstrating extremely fragile moral values, very present in society. The Eulálio character feels judged all the time for failing to kill any boar - the attacker animal countryside of history- so afraid or to panic at the thought of the possibility of not being accepted in the environment where the law of brutality to problem solving. When building the narrative the author makes it clear that to be socially housed in a place like that, it needs to show courage and kill any creature to have peace and heal the "social debt". The tale of the environment is rural and hostile, composed of forests and intellectually limited characters and in a coarse manner.
Keywords: Violence. Death. Ana Paula Maia. Introdução
A violência é um fato social muito lembrado dentre os elementos que
ameaçam a vida em seus vários aspectos (social, comunitário, pessoal,
coorporativo...), visto que hoje os indivíduos são “socialmente agredidos”, vítimas
de um processo de “animalização” do ser humano causado pela frieza nas
relações interpessoais e degradação moral intensa. As características acima
citadas podem, facilmente, ser percebidas, por exemplo, em obras literárias de
Rubem Fonseca, escritor que aborda a violência de forma “crua”, ligando o
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processo de selvageria ao ambiente, num período em que o relato de percepções
interiores cede lugar às narrativas curtas e dramáticas.
Quando pensamos na representação da violência na literatura, observamos
que o processo de deterioração humana fica evidente à medida que a
personagem fica à margem de várias situações hostis, como, por exemplo, a
agressão física, preconceitos, discriminação, assaltos, roubos, insultos, frieza nas
relações interpessoais, situações estas impostas pelo meio social através da
coerção moral. Por meio dessa perspectiva, a escritora Ana Paula Maia cria, no
conto “Javalis no quintal”, a imagem de deterioração moral e social do sujeito que,
a qualquer custo, quer ser aceito socialmente, sendo esta uma das características
advindas da contemporaneidade.
Nesse processo de representação, a marginalização do homem é
recorrente em obras literárias contemporâneas, uma vez que grande parte delas,
ao abordarem o tema, denunciam a realidade obscura estampada diariamente
nas manchetes de jornais de maneira superficial e sensacionalista. Por outro lado,
a literatura, ao se aproximar de temas sociais periféricos, mas muito presentes na
vida de milhares de pessoas, faz com que o leitor reflita sobre questões de
marginalização, a fragilidade nas relações entre homem e ambiente e, sobretudo,
põe em discussão valores como a ética e o respeito.
Partindo-se de tais considerações, apresenta-se uma análise do conto
“Javalis no quintal”, de Ana Paula Maia, no qual se narra a história de
personagens perturbados que vivem ambientes atípicos (no caso um abatedouro
situado em espaço rural). As personagens escolhidas para representar a trama
são caracterizadas pela vulnerabilidade social, suas ações são conduzidas pela
opinião alheia, além de terem do medo da não aceitação/integração social. O
conto em questão apresenta a estética do medo e da brutalidade, estética criada
com o auxílio de vocabulário imoral, o que ajuda a compor as cenas de morbidez
espetacularização, insistentemente cobiçadas pela escritora. No conto, também
fica evidente a conexão de seres humanos através da recíproca agressão e
estupidez.
Dessa forma, este artigo objetiva refletir sobre a representação da violência
e da amoralidade no conto “Javalis no Quintal”, de Ana Paula Maia, bem como os
fatores que contribuem para a caracterização da mesma. Além disso, visa a
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contrapor os fatos apresentados na obra com o atual estágio da sociedade
brasileira, no que diz respeito à degradação e diminuição do ser humano ao nível
de coisa. Sobretudo, é necessário identificar o impacto da obra sob o ponto de
vista da construção do discurso e quais mecanismos foram utilizados para
destacar as cenas de violência.
Este artigo será composto de duas partes. A primeira consistirá na revisão
de bibliografias que retratam a violência e a marginalização do homem na
literatura; a segunda dará prioridade à análise do conto sob a perspectiva da
violência como fator ligante de seres humanos, tanto na agressão para defesa,
quanto na supressão de sentimentos na sociedade brasileira contemporânea.
A violência na literatura
Conforme Nicolaci-da-Costa (2002, p. 193), as transformações sociais
ocorridas nos séculos XVIII e XIX alteraram drasticamente a organização social e
ideológica do mundo. O período denominado Revolução Industrial mudou a
sociedade de tal forma que o homem foi substituído por máquinas, produzindo,
assim, mais riqueza em menos tempo e de forma mais barata. Entretanto, o fato
culminou para o aglomerado social de desempregados famintos, que passaram a
competir uns com os outros pela sobrevivência, justificando o abandono do
pensamento coletivo, e a vivência em comunidade passou a ser um ato
involuntário mediado pela individualização. Nesse processo, a violência surge
como sinal distintivo dessa era.
A violência, como dado singular do mundo contemporâneo, também é
representada da literatura. Porto (2013) revela que a importância do tema
violência na literatura é proveniente das mudanças sociais de uma época,
ressaltando o aspecto simbólico da literatura como denúncia dos problemas
sociais. Segundo a autora,
Ao se construir uma leitura e interpretação das narrativas da violência, convém destacar que as relações entre violência e literatura, no campo dos estudos literário, têm sido evidenciadas de modo mais intenso a partir dos anos 1990 pelos trabalhos acadêmicos voltados para a chamada “literatura de testemunho”que focalizam de modo especial, as relações entre literatura e história, dando ênfase a episódios históricos
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marcados pela violência, como o das ditaduras militares. (PORTO, 2013, p.195).
É por isso que os temas violência, agressão, marginalização,
amoralidade e outros tantos relacionados à denúncia e ênfase em aspectos
de exclusão e condições de precariedade humana são frequentemente
usados para a construção da história, uma vez que “traduzem” o mundo da
fragmentação social, exclusão e subjugação dos indivíduos pertencentes à
sociedade.
O uso da violência na literatura enfatiza a possibilidade de
representação da sociedade, através da qual os escritores exploram os
mais variados aspectos, que abrangem desde a comoção e envolvimento,
até o medo e a revolta. Logo, os efeitos da violência como tema principal
de obras literárias exercem, em alguns textos, a função de instigar o leitor a
olhar em volta, e reforçam a ideia humanizadora da literatura. É nessa
perspectiva que Pelegrini (2005, p. 142) explicita que
A literatura, como sabemos, ao imobilizar ou fixar a vida por meio do
discurso, transforma-a em representação. Nesse sentido, como ela
permite fazer também uma espécie de teste dos limites da palavra
enquanto possibilidade de expressão de uma dada realidade, em se
tratando de uma matéria como essa, a exploração das possibilidades de
transgressão ditada pelas situações mais extremas – o sexo, a violência,
a morte – cria temas “necessários” para o escritor (não mais para o
etnógrafo) que, por meio deles, garante um interesse narrativo (para o
leitor) escorado na antiquíssima catarse aristotélica, em que o terror e a
piedade, a atração e a repulsa, a aceitação e a recusa são movimentos
inerentes à sedução atávica atraindo para o indizível, o interdito, para as
regiões desconhecidas da alma e da vida humanas.
Com base nos escritos de Pelegrini (2005), é possível notar que o assunto
violência/amoralidade instiga o interesse dos leitores, despertando a emotividade
e servindo de objeto de julgamento, reflexão e denúncia, culminando assim para a
o efeito subjetivo de interpretação da obra e consequente e sensibilização do ser
humano.
Ao estabelecer conexões com a realidade de milhares de pessoas que
ficam à margem de tudo, vítimas da vulnerabilidade social e escassez de
princípios, a literatura cumpre seu papel social à medida que expõe realidades
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exteriores à da maioria da população. Assim sendo, o ambiente de crimes,
obscenidades e de atmosfera densa, é a realidade expressa através de termos e
da própria ligação indivíduo-sociedade.
Evidenciando que a literatura se relaciona diretamente com a sociedade e
os fatos que nela acontecem, Pokulat (2014, p. 238.), ressalta a arte literária
como representação de um tempo desmedido e avassalador:
Considerando que a literatura representa a sociedade, ao mesmo tempo em que a sociedade pode se ver e se (re)fazer pela literatura, entendemos que essas representações literárias contemporâneas, nascidas nesse tempo de transformações aceleradas e voláteis, merecem ser pesquisadas a fim de conhecermos a sociedade em que vivemos para nela nos reconhecermos e, sobretudo, refletirmos sobre nossas relações com a mesma
Por consequente, a expressão de personagens e os ambientes que
representam todo um contingente populacional regrado por atos de violência
permitem que o leitor se enxergue representado na obra ou pelo menos vislumbre
a sociedade contemporânea, ou por outro lado interaja com a estética abordada.
Dessa forma, ao incitar a interação entre o texto e o mondo nele projetado, pode-
se chegar à humanização do homem.
A representação do tempo e da agressão/subjugação do ser humano na
literatura brasileira não é recente. É representado por temas basicamente
históricos, como o descobrimento do Brasil, e a exploração indígena e ambiental
por parte dos portugueses. A escravidão, branca e preta, haja vista que os negros
foram trazidos à força para construir o país, enquanto o povo europeu chegou
aqui com promessas de riqueza e fartura abundantes, exemplifica essa
representação. Também a ditadura militar inspirou um dos temas que até hoje
gera histórias, devido à violência por parte daqueles que deveriam proteger e
representar todos os brasileiros, sem distinção. Por outro lado há a guerra diária,
construída pelo tráfico, corrupção, assaltos, fome, prostituição, desespero, contas
a pagar, péssimas condições de vida, etc. que motivam essa representação da
violência nos textos literários e outros objetos de arte em geral.
Portanto, segundo Pelegrini (2005, p. 134) a violência é parte integrante da
sociedade brasileira desde a época colonial, a qual retrata a ordem social,
localização histórica, medição entre tempo e grau de socialização, por meio da
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representação do ser humano como reflexo de todas as ações acorridas ao longo
do tempo na sociedade.
A violência propriamente dita nem sempre é representada de maneira
explícita (com cenas de sangue e morte), também é feita pela opressão
psicológica, o que revela a fragilidade do ser humano no século XXI, o temor das
opiniões e julgamentos alheios, compõem para o cenário de atemorização e
confusão mental muito presentes hoje. É o que fica destacado por Pellegrini ao
pontuar que
Já se percebem, portanto, as linhas de força de uma questão no mínimo complexa, envolvendo aspectos econômicos, sociais e culturais, que estão na base do que nesse caso se apresenta como linguagem, seja ela verbal ou imagética. Uma dessas linhas, talvez a mais importante, e da qual se pode partir, é aquela que trata da história da representação da violência na literatura brasileira, entendendo-se violência, aqui, como o uso da força para causar dano físico ou psicológico a outra pessoa, o que, forçosamente, recai na problemática do crime. PELEGRINI (2005, p. 134).
Por fim, o escritor, ao se propor a escrever sobre violência e temas
relacionados, pode manifestar a crítica, explorar o aspecto questionador do leitor,
priorizando o impacto e o choque através de temas “politicamente incorretos”, que
forçam o leitor a pensar um pouco mais sobre o que está ao seu redor. Dessa
forma, através da representação de personagens com características muito
semelhantes às da realidade, vê-se na literatura um elo para uma leitura da
realidade social.
Considerando esses pressupostos, é possível pensar na narrativa de Ana
Paula Maia. Como seu conto pode representar a violência da sociedade
brasileira? Como é essa articulação na narrativa? Que função social o conto pode
trazer nessa perspectiva?
Violência: agressão do agredido em conto de Ana Paula Maia
O conto “Javalis no quintal” publicado por Ana Paula Maia em maio de
2011 na coletânea de contos Geração Zero Zero é um objeto rico para se pensar
nas relações entre violência e literatura. Ele apresenta aspectos peculiares, que
causam, além de repulsa, diversas percepções do homem contemporâneo,
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associado a um animal que mata os sentimentos, enterra a autoestima e age
facilmente sob pressão exterior.
No conto, a autora usa a “estética” do javali para representar a força,
brutalidade, e robustez personificada, uma vez que o animal é um porco
selvagem, segundo Brechara (p.755, 2011). Os javalis assemelham-se
fisicamente aos porcos, entretanto, diferem-se destes pelo temperamento “forte”
ou perigoso, bem como pelas presas que possuem, as quais podem ferir e matar,
perceptível no fragmento:
[...] são considerados espécies exóticas invasoras.O corpo desses animais é robusto, assim como seus membros; sendo cobertos por pelos longos e rígidos, de tonalidade que varia entre o ruivo e o castanho, apresentando-se com listras longitudinais no caso de indivíduos mais jovens. O focinho é longo, e as orelhas são orelhas ovais e repletas de pelos. Além disso, possuem dois pares de presas.Além disso, podem ser perigosos, caso sejam desafiados sem o devido cuidado, uma vez que suas garras são extremamente cortantes. Em razão de tal atributo, e de sua força, poucos são os animais que se submetem a enfrentar um javali selvagem. (ARAGUAIA, 2015, p. 1, grifos nossos).
Portanto, na história, o animal é invasor do espaço dos seres humanos,
mesmo, que não pondo risco direto à vida daqueles, o javali é visto com uma fúria
e ganância não condizente com o mal que causa. O fato citado justificará, mais
tarde, a afirmação de que os personagens do conto se tornaram tão selvagens
quanto os animais.
O ambiente apresentado no conto é rural no qual o protagonista é Eulálio
Marvim, o filho de um ex-caçador que sofre coerção moral para matar javalis. Ao
voltar a morar no interior, ele percebe que o respeito naquele lugar só é
conquistado através da morte de um animal, no caso o javali. Matando um animal
bruto e feroz, ele mostraria que é tão perigoso/corajoso quanto o outro. O
personagem possui pensamentos desconexos que permeiam o medo da não-
aceitação, vergonha e busca pela paz ou “quitação de débitos morais”. Ele sente-
se perturbado a todo o momento, porque é comparado com o pai, lembrado pelo
sucesso e glória nas caçadas, mas, como filho, nunca realizara tal feito. Após
ceder às pressões exteriores, Eulálio sai em caçada, porém não mata um javali, e
acaba matando um homem, um velho conhecido na região. O fim do conto traz
uma cena paralela à redenção, no qual o protagonista – Eulálio – é morto por
aqueles dos quais mais tinha medo, os javalis.
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O enredo é composto pela descrição de cenas grotescas, como a da morte
de um homem, a qual é estruturada com frieza impressionante, dando caráter
banal à cena e ao fato, conforme destacado pelo narrador: “Abre uma perfuração
no pescoço do velho e enterra dois dedos que deslizam rápido, besuntados de
sangue morno”. (MAIA, 2011, p. 177). Ainda, a autora usa de vocabulário vulgar
para traduzir os pensamentos do protagonista. “Eulálio Marvim descobriu que o
cheiro do mato molhado e da bosta fresca lhe dão uma sensação de bem-estar
incomparável.”(MAIA, 2011p. 166), resultando, assim na construção de uma
história com enredo denso e marcado pela sucessão de cenas ou vocabulário
explicitamente cruel. Por outro lado, a violência é vista de forma explícita no
tratamento dos personagens, tanto no uso de vocabulário amoral, quanto no
menosprezo para com o outro. “É só um retardado, pensa Eulálio Marvim. Pobre-
diabo de garoto mais idiota.” (MAIA) p.170, revelando traços contemporâneos de
personagem-individualidade e rejeição do diferente.
Partindo da perspectiva da estética de construção do conto, quanto ao uso
do animal javali, a localização e a proximidade do animal com o homem (Javalis
no quintal), este objetiva demonstrar o perigo fazendo parte do ambiente,
compondo o cenário, dando tom à narrativa e ritmo. A ameaça de ataque
relaciona-se diretamente com o protagonista, de forma que o deixa vulnerável,
frágil e angustiado.
Pode-se afirmar que os javalis, no conto, têm a função de representar as
opiniões e ameaças da sociedade, dos outros homens, uma vez que o medo e a
importância dadas aos javalis são desmedidas. Também, os. Javalis, ao ficarem
em uma posição incisiva, mas intangível, dão ao personagem a sensação de
tragédia eminente, como se ele não pudesse fugir daquela trama de vontades
alheias, medos, raivas, ele se vê cercado por todos os lados, como se o pavor
estivesse no ar. Por meio dessa construção perturbada de personagem e
ambiente Ana Paula Maia representa a confusão mental e desespero.
A fim de construir um ambiente ficcional mórbido, Ana Paula Maia liga os
personagens pelo comum acordo de morte e ódio aos javalis, ainda que irracional
e sem motivo aparentemente necessário, visto que os animais não punham a vida
dos homens em risco, diretamente.
À medida que o conto se desenrola, é perceptível que o personagem
Eulálio não sente vontade de matar os javalis, mas cede à pressão exterior, já
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que, na sociedade apresentada há o dever moral de matar um javali para obter
respeito, e sanar a “divida moral social”. Se ele não promover a morte de um
javali, não será um “homem”, o que denota não apenas a perspectiva
conservadora e machista do grupo social, como também a valorização da
violência ao animal. Para ser homem respeitado na comunidade, ele precisa
matar um javali:
[...] meu filho J.P. apanhou um na semana passada. Mostrou que já é homem...para ser homem respeitado nessas bandas, você precisa saber matar. E matar sempre que for preciso, sem pestanejar. Tudo de que Eulálio Marvim precisa é de um javali morto. (MAIA, 2011, p. 171,grifos nossos)
Destaca-se também o forte caráter psicológico da obra, pois os medos e
pensamentos desconexos do protagonista revelam que o medo da não-aceitação
é um fator que preocupa o protagonista e o impede de viver tranquilamente.
Eulálio se auto-agride, já que, após sucessivas investidas do meio exterior quanto
à necessidade de matar, fazem-no aceitar o fato e se punir a cada instante,
pensando, temendo e lamentando o fato de não ter o troféu de sua honra sob
seus pés.
Abaixo segue a passagem que traduz a aflição e desespero de Eulálio pela
morte do animal - solução de seus problemas:
[...]Eulálio Marvim nunca conseguiu matar um javali... Sabe que não é um caçador como a maioria dos homens desta região... Agora Eulálio Marvim precisa ao menos de um javali morto na caçamba de sua caminhonete... Quando conseguir um desses, sua vida neste lugar será sempre um sossego. Enquanto não abater seu próprio javali não o deixarão em paz.(MAIA, 2011 p 170, grifos nossos).
O final da história é trágico e dramático, o protagonista acaba matando um
homem, na tentativa de acertar um Javali, e o que mais impressiona é a decepção
de Eulálio ao perceber que matou um homem ao invés do animal. O pouco
sentimentalismo de Eulálio para com o cadáver são as lembranças de que aquele
era mais um dos caçadores da região, que viveu por longos anos fora e agora
voltava para ali ficar. Logo após, ele ouve ruídos pelo mato, e sabe que seu final
está próximo. É atacado por um bando de Javalis enfurecidos, e deixa-se abater
naturalmente, sem relutar, ou correr, vai morrendo aos poucos, enquanto os
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animais furam-no e põem à vista suas vísceras. Ele morre sem sentir pena de si
mesmo, como se fosse merecedor do futuro trágico que o aguardava.
Conclusão
O conto choca à primeira leitura pela brutalidade das cenas apresentadas e
o caráter nojento e antiético. O resultado da obra é então a violência como
supridor dos sentimentos - deixados de lado na contemporaneidade – que
cederam lugar ao medo do sentimento de diferença e especulação. A reflexão de
que o protagonista é composto por cada um que machuca, fere e maltrata para se
defender do mundo. demonstra claramente a animalização do ser humano, que
passa agir como tal, após ter a vida em sociedade fragmentada de tal forma que
não importa viver ou sentir, apenas ser o necessário. O diálogo na obra é muitas
vezes reflexivo, ou seja, o personagem pensa consigo mesmo, evidenciando a
não integração social, o isolamento e de certa forma o desassossego, daquele
que tem seus pensamentos envoltos de fatos negativos relacionados ao javali,
mesmo que este não o tenha feito nenhum mal, isto revela que as ações e
pensamentos são, sobretudo, irracionais. Portanto, a morte no conto é algo social,
a violência e a opressão de seres humanos é a conexão de todos os homens que
se tornaram tão animais quanto os javalis.
Fica evidente, após o término da leitura do conto, a função psicológica
presente na obra, pois, ao propor a discussão de temas periféricos da sociedade,
a narrativa de Ana Paula Maia concretiza uma de suas funções, que é a de
promover reflexão acerca do que é abordado na obra, sendo possíveis
questionamentos do tipo: é verossímil o que está sendo representado nesta obra?
Em que medida o(s) fato(s) apresentado(s) está(ao) presentes no cotidiano?
Quem é o sujeito representado na história? Qual é o ambiente retratado? Essas
perguntas incitam o leitor a refletir sobre cenas como as do conto: o medo de ser
rejeitado socialmente; o estímulo à violência, representado com a morte de javalis
e assassinato do homem; a frieza humana. Pensando nos personagens, tem-se
um sujeito que pode ser visto como uma vítima do meio hostil em que vive e,
portanto, sem forças suficientes para rebelar-se, vê-se limitado a “repetir” padrões
comportamentais violentos.
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Ao construir essa perspectiva de leitura, observa-se a importância do
conto. Parece que ele se propõe a representar a sociedade brasileira, destacando
questões de valor e estimulando o leitor, mesmo que mais inexperiente, a “abrir
os olhos” e perceber que o enredo do conto não é apenas ficcional, porque pode
remeter àquilo que acontece todos os dias. Portanto, o conto tem como ponto
central a representação de uma sociedade brasileira alicerçada em práticas de
violência que muitas vezes são ignoradas como tal pelos sujeitos que as
exercitam.
REFERÊNCIAS
ARAGUAIA, Mariana. "Javali (Sus scrofa)"; Brasil Escola. Disponível em <http://www.brasilescola.com/animais/javali.htm>. Acesso em: 16 out. 2015. BRECHARA, Evanildo. Dicionário escolar da Academia Brasileira de Letras: língua portuguesa. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 2011. p. 755. NICOLACI-DA-COSTA, Ana Maria.Revoluções Tecnológicas e Transformações Subjetivas. Psicologia: Teoria e Pesquisa, v. 18, n. 2, p. 193-202, Maio/Ago. 2002 .Disponível em <http://www.scielo.br/pdf/ptp/v18n2/a09v18n2.pdf> Acesso em: 22 nov. 2015.
MAIA, Ana Paula. Javalis no quintal. In: RODRIGUES, Nelson (Org.). Geração Zero Zero. Rio de Janeiro: Editora Língua Geral, 2011. p.165–182. POKULAK, Luciane F. A espetacularização da violência na literatura contemporânea: uma breve reflexão. In: CALEGARI, Lizandro et al (Orgs). Literatura e outras Linguagens. Frederico Westphalen, Editora da URI, 2014. p. 237-263. PORTO, Luana. Representação da violência no conto brasileiro contemporâneo: uma leitura de Rubem Fonseca, João Gilberto Noll e Caio Fernando Abreu.In: GOMES, Gínia M (Org). Literatura brasileira contemporânea: geografias. Frederico Westphalen: Editora da URI, 2013. P. 193-210. PELLEGRINI, Tânia. As vozes da violência na cultura brasileira contemporânea. Crítica Marxista, São Paulo, Ed. Revan, v.1, n.21, 2005, p.132-153. Disponível em <www.ifch.unicamp.br/criticamarxista/arquivos.../critica21-A-pelegrini.pdf.> Acesso em: 3 out. 2015.
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ESTAR À MARGEM E SEUS REFLEXOS: UMA LEITURA COMPARATISTA DOS CONTOS “JAVALIS NO QUINTAL”, DE
ANA PAULA MAIA E “O FETO”, DE JOÃO MELO
Emanoeli Ballin Picolotto Ana Paula Teixeira Porto
RESUMO No âmbito da literatura contemporânea, eis que surgem autores preocupados em representar, a partir de suas escritas, a classe menos favorecida que vive à margem da sociedade. Duas literaturas distintas e ao mesmo tempo repletas de semelhanças é o que sustenta o corpus deste estudo: de um lado Ana Paula Maia, autora brasileira de contos, ensaios e romances, se preocupada em mostrar o homem comum, marginalizado e inferior pela sua profissão; do outro João Melo, autor de literatura africana, escreve contos, crônicas, poemas e ensaios, mostrando a opressão existente no país, especialmente as más condições de vida da população. Considerando a produção literáriade cada autor e seus respectivos contextos de produção, este trabalho apresenta uma análise dos contos “Javalis no quintal”, de Ana Paula Maia, publicado em 2011 em uma coletânea de contos chamada Geração Zero, e “O feto” que faz parte do livro Filhos da Pátria, escrito em 2001 e publicado no Brasil em 2008 por João Melo.Em “Javalis no quintal” encontramos, através de um narrador em 3º pessoa a história de Eulálio Marvim, que é criticado pelo amigo Adamâncio por nunca ter matado um javali, pois segundo a cultura da região um homem não é considerado homem se durante sua vida não matar um javali. Já em “O feto” visualizamos um narrador-personagem feminino que conta como aconteceu o seu aborto e porque fez isso. Ela está dando explicações sobre seu feto que está jogado no lixo e o que a levou entrar para a prostituição aos 13 anos de idade e a sair do interior e mudar-se para a capital Luanda. O objetivo desta investigação é comparar os contos já citados, tendo como referência a forma como ambos representam a dura realidade da sociedade marginalizada, e para isso a pesquisa irá se desenvolver através de análises e interpretações dos contos literários, baseando-se em pesquisas bibliográficas acerca da literatura brasileira contemporânea e a literatura africana de expressão portuguesa bem como acerca da violência na literatura. Os resultados mostram que os contos dos escritores João Melo e Ana Paula Maia, a partir de uma narrativa linear e de prosa poética, possuem semelhanças na forma, na escrita e principalmente na temática utilizada pelos autores.
Palavras-chave: Literatura contemporânea. Literatura africana. Comparação. João Melo. Ana
Paula Maia. ABSTRACT In the contemporary literature area, new authors rose, worried with representing, in their writings, of the impoverished class that lives on the sideline of society. Two different, and at the same time full of similarities, literary works make the corpus of this work: on one hand there is Ana Paula Maia, a Brazilian short stories, essays and novels author, who is worried on portray the ordinary man, the one who is sidelined and lower in society because of his profession; on the other hand there is João Melo, African literature author who writes short stories, crônicas (chronicles), poems and essays, portraying the current oppression in an African country, mainly the poor life conditions of that population. Taking into account the writings both authors and their respective production’s realities, this work exposes an analysis of the short stories “Javalis no quintal” (“Boar at the backyard”), from Ana Paula Maia, published in 2011 and present in the short stories collection called Geração Zero (Zero generation), and “O feto” (“The fetus”), which is part of the book Filhos da Pátria (Fatherland’s children), written in 2011 and published in Brazil in 2008 by João Melo. In the short story “Javalis no quintal” we are told, through a third person narrative mode, the story of Eulálio Marvim, who is criticized by his friend Adamâncio because he has never killed a boar, due to a man is not considered a man if he didn’t kill a boar during his life. On “O Feto” we have a first-person narrative told by a female who tells how her abortion happened and why did she do it. She is explaining about her fetus, which is being put on the garbage, and why she joined prostitution with 13 years old and went to the capital Luanda at that time. The purpose of this work it to
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compare those two texts, having as its basis the way both narratives represent the tough sidelined society’s reality. For this, the research includes analysis and reading interpretations of the two short stories, basing the research in bibliographical texts about Brazilian contemporary literature and the African literatures written in Portuguese, as well as some writing about violence in literature. The results exposes the studied short stories from João Melo and Ana Paula Maia, both having linear narrative and poetic prose, have similarities in form, writing, and mainly in the thematic the authors write about in their texts. Keywords: Contemporary literature. African literature. João Melo. Ana Paula Maia.
Introdução
Permeada por um espaço em que há a representação da sociedade atual
moderna, a literatura brasileira contemporânea possui como característica retratar
sujeitos desprovidos de dinheiro, conhecimento e principalmente cultura, estes
vivem a margem da sociedade em busca de melhores condições de vida. De
acordo com Pelegrini (s.d) nesse tipo de literatura proliferam textos rotulados
como marginais e que trazem consigo um viés de denúncia e revolta sobre a
sociedade que nos cerca.
No âmbito da literatura contemporânea eis que é possível encontrar duas
literaturas diferentes, mas repletas de semelhanças: de um lado Ana Paula Maia,
autora que faz parte da literatura brasileira, ainda pouco conhecida, escreve
contos, ensaios e romances, utilizando também de seu blog para publicar suas
escritas. Iniciou seus trabalhos em 2003 representando em suas narrativas a forte
realidade que permeia a sociedade brasileira contemporânea, dando ênfase aos
sujeitos excluídos e inferiores que usam da violência como forma de
reconhecimento moral. A partir da leitura de Ana Paula Maia é possível ser visto
uma espécie de painel crítico literário da sociedade atual, levando o leitor a uma
reflexão acerca da contemporaneidade.
Do outro lado João Melo, autor da literatura africana, com uma produção
literária baseada em contos, crônicas, poemas e ensaios. Representa em suas
narrativas a opressão existente no país, especialmente as más condições de vida
da população. Segundo Camargo (2010) nas obras desse autor intensificam-se as
referências às desigualdades sociais, porque ele traz pessoas com relatam suas
dificuldades ao leitor e buscam novas formas de sobrevivência. Na obra do
escritor, pode ser vista uma espécie de painel da história recente de Angola,
acentuando-se a perspectiva da marginalização social.
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Considerando a produção literária desses autores, este trabalho tem como
corpus de análise os contos “Javalis no Quintal”, de Ana Paula Maia, publicado
em 2011 na coletânea de contos Geração Zero Zero, organizada por Nelson de
Oliveira, e “O feto”. de João Melo, escrito em 2001 e publicado no Brasil em 2008
na coletânea de contos nomeada Filhos da Pátria. Em ambas antologias, os
autores representam pessoas comuns, que utilizam de artifícios não bem vistos
pela sociedade para conseguirem melhores condições de vida.
Em “Javalis no Quintal” o enredo gira em torno do dia a dia do personagem
principal denominado Eulálio Marvim, que, ao receber a visita do amigo
Adamâncio, é questionado sobre o porquê nunca ter conseguido matar um javali.
A partir dessa visita Eulálio começa a refletir sobre suas atitudes e percebe que
está sendo pressionado pela sociedade que o cerca a cometer práticas brutais.
Nessa narrativa encontramos um narrador em 3° pessoa que faz comentários
sobre a vida e mudanças de atitude do personagem central, que é visto pela
sociedade onde vive como um fracassado por nunca ter conseguido matar um
javali.
Já em “O feto”, o enredo gira em torno de um narrador–personagem
feminino que retrata minuciosamente como aconteceu o seu aborto e o porquê de
ter feito isso. É possível perceber nessa narrativa um discurso direto, onde a
pontuação e até mesmo regras de escrita não são respeitadas, é como se a
escrita fosse transformada em um desabafo por parte da personagem principal
que leva o leitor a perceber a angústia que se encontra a jovem menina. A partir
do seu discurso é possível entender que a moça está dando explicações sobre o
seu feto que está jogado no lixo e ainda o que a levou entrar para a prostituição
com apenas 13 anos de idade.
A partir desses contextos narrativos, o objetivo deste estudo é apresentar
uma análise comparatista dos contos “Javalis no Quintal”, de Ana Paula Maia e “O
feto”, de João Melo. A pesquisa desenvolve-se através de análise e
interpretações dos contos literários, a partir do método da literatura comparada,
baseando-se em pesquisas bibliográficas acerca da literatura contemporânea,
literatura brasileira e africana, bem como acerca da marginalização social e da
violência na literatura brasileira.
Para alcançar o objetivo do estudo, o trabalho será dividido da seguinte
forma: primeiro busca-se analisar cada conto literário e como estes representam a
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dura realidade da sociedade marginalizada, a partir do discurso do narrador;
depois analisam-se as relações presentes nas narrativas de Ana Paula Maia e
João Melo, chegando então as considerações finais.
Representação da Sociedade Contemporânea Marginalizada nos contos
“Javalis no Quintal”, de Ana Paula Maia e “O feto”, de João Melo
O primeiro conto a ser analisado é “Javalis no quintal”, no qual podemos
perceber através do personagem principal Eulálio Marvim um sujeito que sofre
uma pressão psicológica pela sociedade que o cerca. Seu amigo Adamâncio
ilustra esse preconceito relativo ao fato de Eulálio nunca ter conseguido matar um
javali com as próprias mãos.
O conto inicia com Adamâncio, chegando à casa de Eulálio em uma
camionete Ford que possui na caçamba um animal morto que a metros de
distância é percebido pelo cheiro de carne podre. Esse cheiro de carne pobre faz
com que, a partir da leitura do conto, o leitor entenda que se trata de algo que
satisfaz o olfato de Adamâncio, conforme o fragmento a seguir, onde através do
narrador é possível identificar o que está em cima da camionete Ford: “[...] Eulálio
Marvim pode imaginar o que está sobre a caçamba. Isto não o agrada nem um
pouco. Muito menos o cheiro de carne podre”. (MAIA, 2011, p. 165). Como
podemos perceber no início da narrativa, Eulálio possui certo nojo de animais
mortos, demonstrando horror ao ver aquele ser morto na caçamba da camionete.
A prática de matar animais é uma das temáticas recorrentes nos conflitos
de Eulálio, sendo ainda uma constante personagens que fazem parte das escritas
de Ana Paula Maia. Esse conto alude que quem não cometer dessa prática não
será considerado um homem de verdade. No fragmento a seguir, o narrador em
3º pessoa destaca o porquê da visita de Adamâncio ao amigo Eulálio com o
animal morto na caçamba: “Pois é isso que ocorrerá. Sujeitos como Adamâncio
não deixariam de lembrá-lo de suas obrigações como homem e cidadão local”.
(MAIA, 2011, p. 165). Fica claro nesse fragmento que só é considerado um
cidadão local o homem quem cometer dessas práticas brutais, das quais Eulálio
não gosta, mas se sente pressionando pelas pessoas que os cercam.
No conto em análise, identificamos uma sociedade machista que acredita
ser fundamental a morte de um animal para provar que um ser é homem e se
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enquadrar no status de cidadão local, indo ao encontro do que afirma Porto
(2015): os espaços que permeiam essas narrativas de Ana Paula Maia são
acentuados pela brutalidade e marginalização a que são submetidos os sujeitos
que ali estão inseridos. Essa perspectiva está evidente no fragmento a seguir,
onde o narrador faz questão de lembrar que Eulálio precisa matar um javali:
“Quando conseguir um desses, sua vida neste lugar será para sempre um
sossego. Ele sabe que enquanto não abater seu próprio javali não o deixarão em
paz” (MAIA, 2011, p.170). Através da leitura do conto é possível perceber que há
uma necessidade por parte de Eulálio em matar o animal, porém isso vai contra
os seus preceitos éticos e morais, ele demonstra não querer cometer essa
violência que aparenta ser sem nenhuma necessidade, mas apenas por prazer.
No que diz respeito ao narrador do conto “Javalis no Quinto” podemos dizer
que se trata de um narrador em 3° pessoa do tipo narrador onisciente intruso, de
acordo com denominação de Norman Friedman (apud LEITE, 2007). Para
Friedman esse tipo de narrador narra à vontade, podendo expor seu ponto de
vista a qualquer momento, sabe de tudo e todos que estão ao seu redor, pois “seu
traço é a intrusão, ou seja, seus comentários sobre a vida, os costumes, os
caracteres, a moral, que podem ou não estar entrosados com a história narrada”
(FRIEDMAN apud LEITE, 2005, p.27). No conto analisado, podemos observar
que esse narrador sabe e faz comentários sobre a vida de seus personagens e
até mesmo em certo ponto da narrativa se questiona sobre as atitudes de
personagens cujas histórias vêm narrando:
Nem mesmo para um narrador onisciente é possível conhecer todos os segredos de seus personagens. Eles, entre pensamentos silenciosos, retornam de seus estreitos abismos e podem surpreender até o seu narrador. (MAIA, 2011, p. 172).
A partir do fragmento acima, podemos perceber que a vida de Eulálio
Marvim está tão confusa que até mesmo o narrador onisciente que deveria saber
tudo sobre a obra em que está narrando, se encontra confuso com as mudanças
de atitudes do seu personagem principal, pois até certo ponto da narrativa Eulálio
Marvim demonstra não querer cometer a violência contra os animais, tem receio,
medo, não se sabe ao certo o que ele está pensando.
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No decorrer do conto é possível perceber que Eulálio não se sente um
homem de verdade pelo fato de nunca ter conseguido cometer o crime da morte:
“Eulálio Marvim sente-se um homem ao meio, e no meio da sala se mantém
meditando. No que medita não se pode dizer ao certo, pois os pensamentos são
silenciosos”. (MAIA, 2011, p. 172). Através desse fragmento, podemos perceber
que a vida de Eulálio era confusa, pois ora não quer cometer práticas brutais ora
fica pensando em comete-las para ser visto como um homem de verdade. Através
do personagem Eulálio visualizamos um sujeito que mudou suas atitudes para
satisfazer a sociedade que o cerca, pressionado deixou de acreditar no que
considerava correto e partiu para a violência buscando nessa um sentido para sua
vida.
Em “Javalis no quintal” é possível identificar um sujeito que, pressionado
pelas pessoas ao seu redor, acaba, assim como seus amigos, utilizando da
violência para tentar uma posição de destaque. Conforme afirma Porto (2015)
através de uma linguagem cuidadosa, a narrativa da autora pode ser vista como
uma crítica, já que “encontram-se nessas figuras uma legitimação de um mundo
brutal, violento e marginal”. (PORTO, 2015, p. 46). Através de seus personagens,
Ana Paula Maia representa a violência contra seres indefesos que não podem se
defender perante um ser humano com uma arma, como é o caso aqui no conto
dos javalis que diante de tantas pessoas querendo os matar acabam se tornando
inofensivos e morrendo para satisfazer e levantar o status social dos homens
locais.
Se esse conto brasileiro representa essa marginalidade, o africano
também. O segundo conto a ser analisado, “O feto”, de João Melo, traz como
principal temática o aborto, através de um narrador-personagem feminino que
conta como ocorrera seu aborto e os motivos que a levaram a cometer essa
prática e o porquê jogou o seu feto no lixo. Nesse conto “a personagem passa a
ser uma metonímia das adolescentes angolanas que fazem da prostituição o meio
de sobrevivência pelas ruas de Luanda”. (GEHLEN, 2012, p.146). Como veremos
no fragmento a seguir, a menina narra como foi o dia em que sua mãe pediu para
que ela se prostituísse:
[...] mas naquele dia me pôs outra vez no colo, me falou, filha e melhor você começar arrumar tua vida, de noite começa ir na cidade, arranja uns homens, traz algum dinheiro pra gente comer, e melhor, filha, e
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melhor, eu tinha treze anos, quase não tinha chuchas, os homens gostaram de mim, brancos, pretos, mulatos, tudo. (MELO, 2001, p.142).
De acordo com o fragmento a jovem menina passa a se prostituir a pedido
da mãe, para garantir a sobrevivência da família. É possível perceber também
que nesse conto há a representação da sociedade atual angolana, que ainda
depara-se com mulheres que se utilizam dessa forma para conseguir o sustento
da família. Segundo Gehlen (2010) a história dessa menina não se difere de
tantas outras marcadas pela guerra civil angolana, que precisam trabalhar para
tentar conseguir melhores condições de vida: “[...] eu vim do mato há pouco
tempo, fugida da guerra, se na verdade sou puta porque minha mãe me mandou,
pois estamos completamente sós e passamos fome quase todos os dias”
(MELO,2001, p.145).
No decorrer da narrativa, a jovem se utiliza de uma linguagem coloquial,
fazendo uso de palavrões que chocam o leitor para retratar sua trajetória de vida,
pois, ainda quando criança, junto com sua família precisou sair da sua casa no
mato por causa da guerra, segundo ela tudo no mato pegou fogo, inclusive seus
irmãos desapareceram na guerra. Dessa forma a jovem com seu pai e sua mãe
vieram para a cidade em busca de melhores condições de vida. Segundo Diniz
(2012) essa família migrou do interior do país para a capital em busca de
melhores condições de vida não por vontade própria, mas porque tiveram sua
família punida de maneira cruel, mal sabiam que em Luanda teriam que passar
por circunstâncias que a levariam para a criminalidade.
É possível perceber que a jovem é questionada por policiais, jornalistas,
sobre os motivos que a levaram jogar seu feto no lixo. Segundo Diniz (2012) a
participação das mídias aborrecia a garota, pois eles não estavam ali buscando
encontrar uma solução para a miséria, prostituição em que ela se encontrava,
mas sim debater sobre o aborto, o feto encontrado no lixo:
La estão todos a observar e julgar a ação da menina e não as condições que a levaram a praticar tal crime. Abismaram-se ao ver com quanta indiferença referia-se ao feto, mas não pararam para entender que ela tem uma vida marcada pela indiferença, trata-se de uma pessoa anônima, uma menina sem nome. (DINIZ, 2012, p.58).
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A menina estava somente sendo julgada pelo crime que cometeu, mas
ninguém enxergava os motivos que a levaram fazer esse crime, pois, como ela
mesma afirmou em vários pontos da narrativa, as coisas em Angola não andavam
bem: “[...] como está a vida em Angola e melhor morrer dentro de uma placenta
do que sobreviver e ter de sofrer como eu e minha mão estamos a sofrer. ”
(MELO, 2001, p.174). Neste fragmento visualizamos uma visão negativa de
Angola por parte da jovem, que não queria esse de futuro de miséria para seu
filho nem de prostituição para si mesma, achando melhor cometer o aborto a ter
que um dia ver seu filho nessa situação que ela se encontrava.
Em relação ao narrador da história, pode-se destacar que se trata de um
narrador-personagem, que conta e participa da narrativa, narrando em 1ª pessoa.
Nesse tipo de exposição, o “narrador, personagem central, não tem acesso ao
estado mental das demais personagens. Narra de um centro fixo, limitando quase
que exclusivamente às suas percepções, pensamentos e sentimentos.”
(FRIEDMAN apud LEITE, 2007, p. 43). Esse tipo de narrador traz ao leitor uma
maior aproximação com os fatos narrados.
No conto “O feto”, encontramos uma jovem menina, sem infância, sem
oportunidade de brincar, estudar, apenas com sonhos, que precocemente foram
acabados, pois precisou trabalhar cedo para o sustento da família, tornou-se,
tanto ela como sua mãe vítimas daquela sociedade que as julga sem se colocar
em seus lugares. A partir da leitura do conto é possível perceber que a narradora
só quer paz, viver a vida que tinha antigamente quando morava no mato, antes da
guerra, sem preocupar-se com nada, desejando fugir de tudo aquilo que está
acontecendo.
Relações presentes entre os contos “Javalis no Quintal” de Ana Paula Maia
e “O feto” de João Melo
Em ambos contos analisados, os autores utilizaram de uma linguagem
direta com palavras duras para retratar a vida de miserabilidade dos personagens.
No conto de Ana Paula Maia, é possível perceber que a autora usa de práticas
brutais e principalmente da violência para representar o dia a dia de seus
personagens. De acordo com Porto (2015) a violência que utiliza Ana Paula Maia,
em suas narrativas, aparece não apenas no enredo, “mas na própria tessitura
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narrativa que objetivamente narra a história de homens e animais violentos”.
(PORTO, 2015, p. 38).
Já na narrativa de João Melo a personagem feminina, cujo nome não é
mostrado, representa as mulheres angolanas, que precisam achar formas nem
sempre adequadas moralmente para adquirir o sustento da sua família. Dessa
forma, João Melo, através de uma escrita não linear e de fácil entendimento,
buscou mostrar a condição da mulher na sociedade angolana, fazendo com que o
leitor acredite “que é possível produzir uma literatura atual a partir da visão do
passado e de um presente ainda em construção” (COSTA, 2009, p. 05). Através
dessa perspectiva, o texto traz condicionamentos que levam o leitor a refletir
sobre essa temática tão recorrente na sociedade angolana contemporânea.
Os personagens principais que permeiam os contos analisados
representam sujeitos que estão inseridos na nossa sociedade atual
contemporânea, mostrando como esta é pretensa à marginalização e à violência
de diversas formas. Em “Javalis no Quintal” a narrativa é permeada somente por
personagens do sexo masculino e estes cometem atitudes brutais e de violência
contra os animais, característica está que é típica na escrita de Ana Paula Maia.
No conto de João Melo, por sua vez, é possível identificar o oposto: o autor traz
como personagem principal uma personagem feminina, há outras pessoas que
aparecem na narrativa, porém estas podem ser classificadas como personagens
secundárias. A narradora–personagem é quem acompanha o leitor, fazendo com
que este se choque com o discurso utilizado pela jovem.
Apesar de se situarem em países e contextos distintos, ambos autores
buscaram representar, em suas narrativas, a sociedade atual contemporânea.
Ana Paula Maia, em “Javalis no quintal” traz uma sociedade machista, violenta e
preconceituosa, onde se você não matar não será considerado um homem de
verdade, e acaba sofrendo pressões psicológicas de quem faz parte do seu meio.
João Melo em “O feto” traz sujeitos que estão inseridos em um contexto de
miséria e degradação, precisando abdicar de muitas coisas típicas de sua idade,
como é o caso da jovem menina, pois ela precisa se prostituir para adquirir o
sustento da família, assim como melhores condições de vida.
Os personagens dos contos em análise representam a história dos sujeitos
marginalizados que estão à margem da sociedade. Ambas narrativas mostram
retratos da sociedade, uma vez que os autores trazem em suas narrativas a
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realidade de forma direta e crua, através de diferentes personagens. O estilo de
escrita empregado pelos autores leva o leitor a se humanizar e a refletir sobre a
nossa sociedade, pois através da estrutura, temática e principalmente a
linguagem forte, provoca um estranhamento, até mesmo assusta o leitor, fazendo
com que este repense a sociedade ao seu redor.
REFERÊNCIAS CAMARGO, Patrícia. Luuanda e Filhos da Pátria: Leitura em Movimento. 2010. 126f. Dissertação (Mestrado em Letras. Universidade Federal Fluminense) Niterói, 2010. Disponível em: http://www.bdtd.ndc.uff.br/tde_arquivos/23/TDE-2010-05-31T120118Z-2531/Publico/Dissertacao%20Final%20Patricia.pdf . Acesso em: 04 out. 2015. COSTA, Maristela. Resenha Crítica sobre a obra Filhos da Pátria de João Melo. Resenha: (Centro Universitário Fundação Santo André). SantoAndré, 2009. Disponível em: <www.revistas.usp.br/crioula/article/download/54951/58599>Acesso em: 05out. 2015. DINIZ, Ana Maria Almeida Carneiro. Filhos da Pátria: a representação de identidades angolanas na literatura de Joao Melo. 2012. 113f. Dissertação (Mestrado em Letras. Universidade do Estado do Rio Grande do Norte). Pau dos Ferros, 2012. Disponível em: http://www.uern.br/controledepaginas/disserta%C3%A7%C3%B5es%202012/arquivos/1014dissertacao_de_ana_maria_carneiro_almeida_diniz.pdf . Acesso em: 03 out. 2015. GEHLEN, Rejane Seitenfuss. Angola sob a Contística pós-colonial de João Melo. 2010. 162f. Dissertação (Mestrado em Letras. Universidade Regional Integrada do Alto Uruguai e das Missões). Frederico Westphalen, 2010. Disponível em: http://www.fw.uri.br/NewArquivos/pos/dissertacao/32.pdf . Acesso em: 05 out. 2015. LEITE, Ligia Chiappini Moraes. O foco narrativo. São Paulo: Ática, 2007. MAIA, Ana Paula Maia. Os javalis no quintal. p. 165-179. In: OLIVEIRA, Nelson de (Org.).Geração Zero Zero. Rio de Janeiro: Geral, 2011. MELO, João. Filhos da Pátria. Lisboa: Caminho, 2001. PELEGRINI, Tânia. As vozes da violência na cultura brasileira contemporânea. Artigo. Crítica Marxista. Disponível em: http://www.academia.edu/1303728/As_vozes_da_viol%C3%AAncia_na_cultura_brasileira_contempor%C3%A2nea . Acesso em: 03 out. 2015.
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PORTO, Ana Paula Teixeira. O sentido de estar à margem: a narrativa de Ana Paula Maia. In: GOMES, Gínia Maria (Org.). Século XXI: perspectivas para a literatura brasileira. Frederico Westphalen: URI, 2015. p. 35-48.
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IDENTIDADE E RACISMO EM “ANA DAVENGA”
Liliane Gloria Martinelli Zatti Denise Almeida Silva
RESUMO Este trabalho objetiva analisar as oscilações indenitárias entre bandido x esposo/pai presentes no conto “Ana Davenga”, de Conceição Evaristo. O conto questiona a adoção preconceituosa de rótulos através dos quais o individuo é definido em uma perspectiva única e, pois, naturalizado, quando na verdade, uma pessoa apresenta várias posições identitárias, nenhuma delas necessariamente única ou absoluta. Para Ana, sua mulher, Davenga não é um criminoso, mas, sim, seu marido e pai do filho que ainda gesta; para seus companheiros, é um líder. Já para a polícia, Davenga não apresenta nenhuma dessas posições identitárias, e é considerado apenas como bandido. O trabalho busca base conceitual em definições de identidade de autores associados aos estudos culturais (Silva, Woodward, Hall, Munanga), bem como nas definições de racismo providas por Munanga e Sant´Anna.
Palavras-chave: Identidade. Preconceito. Racismo. “Ana Davenga”. Conceição Evaristo.
ABSTRACT This work aims to analyze the oscillation of identity between bandit x husband / father present in the short story "Ana Davenga" by Conceição Evaristo. The short story questions the prejudiced adoption of labels through which the individual is defined in a unique perspective and therefore naturalized, when in fact a person has multiple identities positions, none of them necessarily unique or absolute. To Ana, his wife Davenga is not a criminal, but rather, the father of her son wet to be born; for his companios, he is a leader. As for the police, Davenga presents no such identity positions, and is considered only as a bandit. This researche is based on conceptual definitions of identity of authors associated with cultural studies (Silva, Woodward Hall, Munanga) as well as racismsettingsprovided by Munanga and Sant'Anna.
Keywords: Identity. Prejudice.Racism."Ana Davenga". Conceição Evaristo.
Neste trabalho é analisado o conto “Ana Davenga” (2014), de Conceição
Evaristo. O conto trata de identidade cultural, em contexto em que preconceito e
racismo são evidenciados.
O conceito de identidade cultural refere-se a uma das formas pelas quais o
indivíduo organiza seu pensamento quanto a seu estar no mundo. Compara-se ao
outro, do que resulta uma compreensão de si através da atribuição de
características contrastantes ou semelhante a seus outros. Como Woodward
enfatiza: “A identidade depende da diferença. Nas relações sociais, essas formas
de diferença – a simbólica e a social – são estabelecidas, ao menos em parte, por
meio de sistemas classificatórios” (2000, p.40). Por outro lado, como diz o filósofo
francês Émile Durkheim “[...] sem símbolos, os sentimentos sociais teriam uma
existência apenas precária” (WOORWARD, 2000, p.40). Assim, atribui-se
significado sígnico aos objetos da experiência, aos quais se atribui especificidade
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e diferença dependendo de estão sendo vistos e do contexto inseridos. De forma
didática, Woodward explica, tomando como exemplo a esfera da cotidianidade e
do sagrado: “[...] o pão que é comido em casa é visto simplesmente com um
elemento da vida cotidiana, mas, especialmente preparado e partido na mesa da
comunhão, torna-se sagrado, podendo simbolizar o corpo de Cristo.” (2000, p. 40-
41).
É, pois, necessário haver diferenças para chegar-se a um conceito de
identidade, tendo em vista que, se fôssemos todos iguais não haveria com quem
ou com o quê comparar nossas diferenças, assim dificultando o processo.
Por outro lado, é necessário, ainda, ressaltar que a atribuição identitária
representa, na verdade, posições segundo as quais um indivíduo é chamado à
ação. Um mesmo indivíduo pode ocupar posições diversas, ou até contraditórias,
como pai e marido, chefe e bandido,segundo, em ocasiões e em situações
diversas, situe-se em cada uma dessas polaridades:
A complexidade da vida moderna exige que assumamos diferentes identidades, mas essas diferentes identidades podem estar em conflito. Podemos viver, em nossas vidas pessoais, tensões entre nossas diferentes identidades quando aquilo que é exigido por uma identidade interfere com as exigências de uma outra. (SILVA, 2000. p.31-32).
Essa tensão identitária é vivida, por exemplo, pelo protagonista do conto
enfocado nesta comunicação, como se analisa decorrer deste estudo. Este
trabalho prioriza analisar como os personagens apresentam identidades
contraditórias, segundo são vistos por suas famílias e por si mesmos ou pelos
policiais, e como questões relativas a posição social e raça influem na atribuição
identitária.
O fato de Davenga ser negro e morar na favela, faz com que os policias,
que mais tarde o surpreendem de forma violenta, já tenham uma preconcepção
de que o mesmo é um criminoso baseando-se por sua aparência e por sua
condição social. É muito clara a questão do preconceito racial contra o
personagem, pois a situação identitária em que estava inserido era de marido:
estava na cama com sua mulher. Porém, quando a polícia entra no quarto,
identifica Davenga como criminoso.
Davenga é tratado com agressividade e desconfiança pelos policiais, pois
os mesmos conhecem sua ação como traficante. Esse conhecimento, agravado
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ainda por sua condição social de morador da favela e pela cor da pele, negra, não
só predispõe a polícia contra ele como contra todos os que a ele se associam,
fossem eles igualmente traficantes ou não.
Davenga e sua companheira são mortos de forma cruel, durante uma festa
de aniversário totalmente pacífica – comemoram, naquele dia, o aniversário de
Ana Davenga. A polícia não vê necessidade de explicações: invade a casa, e
dispara não somente contra Davenga – o que ainda poderia ser classificado como
autodefesa, mas também contra Ana:
[...] de cabeça baixa, sem encarrar os dois policiais a sua frente, Davenga pegou a camisa e desse gesto ouviram muitos tiros. Os noticiários depois lamentavam a morte de um dos policiais em serviço. Na favela, os companheiros de Davenga choravam a morte do chefe e de Ana, que morrera ali na cama, metralhada protegendo com as mãos um sonho de vida que ela trazia na barriga” (EVARISTO, 2014. p. 30).
Na visão dos policiais, Davenga não é nada além de um bandido que
precisa ser eliminado; já sua família e o próprio Davenga têm uma percepção
diferente das que lhes é imposta. Como fica muito claro no trecho acima citado,
para Ana, que é esposa de Davenga, ele é seu homem, futuro pai de seu filho
ainda no ventre. Para os comparsas, Davenga é líder; para suas esposas é o
homem que lhes traz esperança e amparo, às vezes incerteza:
Davenga mandava que ela fosse entregar dinheiro ou outras coisas para as mulheres dos amigos dele. Elas recebiam as encomendas e mandavam perguntar quando e se seus homens voltariam. Davenga às vezes falava do regresso as vezes não. (EVARISTO, 2014. p.26).
Outro tema presente no conto é a questão do racismo sofrido pelos
personagens. O que está presente na ação do racismo é a “intolerância contra
aquele que é diferente. Essa diferença é considerada como ameaçadora da
especificidade do grupo” (MUNANGA, 1998, p. 44) e pode ser “aplicada” a vária
grupos. Como Munanga explica, “A partir dos anos 70 apareceram diferentes
formas derivadas da palavra ‘racismo’ – racismo antijovens, antivelhos,
antiimigrantes, antimulheres,etc.” (1998, p. 44). Todas essas formas de
discriminação estão ainda presentes na sociedade, o que é definitivamente
inaceitável, mas como esse tipo de atitude faz parte do cotidiano também pode
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ser encontrado em obras literárias que relatam a realidade dos chamados
marginalizados.
No conto, o racismo pode ser percebido nas ações tomadas pelos policiais
em relação a Ana, Davenga, e seus companheiros. Nos últimos parágrafos do
conto, Ana, Davenga, seus comparsas e respectivas mulheres estavam na festa
de aniversário de Ana, uma festa pacífica; Ana e Davenga estavam no quarto, em
sua cama. A polícia invade o local: “[...] a porta abriu violentamente e dois policiais
entraram de armas nos punhos” (EVARISTO, 2014, p. 30), sem nenhuma
justificativa aparente, pois, como mencionado anteriormente, estavam todos em
uma festa de aniversário pacífica. Age de forma agressiva, apontando as armas
não só para Davanga como para sua mulher: “Outro policial do lado de fora
empurrou a janela de madeira. Uma metralhadora apontou para dentro de casa,
na mira de Ana Davenga. Ela se encolheu levando a mão na barriga, protegendo
o filho”. (EVARISTO, 2014, p.30).
Toda essa ação pode ser justificada pelo comportamento racista e
preconceituoso dos policiais: a polícia sabia das atividades ilícitas de Davenga,
mas no momento em que foi abordado não haveria necessidade de tamanha
violência, pois ele e Ana não apresentam perigo aos policiais: “...Davenga [estava]
vestido com a pele que Deus lhe deu. Uma pele negra ...” (EVARISTO, 2014,
p.30).
Davenga é negro, mora na favela, seu trabalho é questionável, a sociedade
o trata com base na sua posição social, como se o fato de ser negro e pobre o
fizesse menos importante que a classe branca elitizada da sociedade. Essa
situação pode muito bem ser qualificada como preconceito, o conceito que é
caracterizado por Munanga como “[...] uma opinião preestabelecida, que é
imposta pelo meio época e educação. Ele regula as relações de uma pessoa com
a sociedade.” (1998, p. 62).
Davenga, Ana e seu filho foram mortos por atitudes violentas e racistas por
parte dos policiais. Sua falta abre um vazio na comunidade onde moram: “Na
favela, os companheiros de Davenga choravam a morte do chefe e de Ana, que
morrera ali na cama, metralhada protegendo com as mãos um sonho de vida que
ela trazia na barriga” (EVARISTO, 2014. p. 30). Ana, que não estava diretamente
envolvida nas atividades ilícitas de Davenga, acabou também sendo morta.
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A visão preconceituosa dos policiais de que todos os negros são iguais,
acabou, assim, tirando a vidas de inocentes, apenas por generalizar um
pensamento racista. Por outro lado, a ação dos policiais pode até ser justificável
com referência a Davenga, pois este se abaixa para pegar a camisa, “[...] de
cabeça baixa, sem encarrar os dois policiais a sua frente, Davenga pegou a
camisa e desse gesto ouviram muitos tiros.” (EVARISTO, 2014. p. 30). Os
policiais podem até ter atirado como uma forma de defesa, pois não sabiam das
intenções de Davenga, mas não haveria necessidade de tantos tiros, e tiros
também em Ana, que não representava nenhuma suspeita ou perigo para os
policiais.
A representação do racismo e preconceito no conto tem o intuito de relatar
a realidade e a agressividade com que são tratados os marginalizados, já que a
literatura tem um cunho social e, através da fruição artística, leva à reavaliação
crítica da sociedade.
A forma com que os policias tratam as pessoas negras e pobres, que sãs
as relatados no conto, leva a crer que eles não merecessem as mesmas
oportunidades, respeito e igualdade que a sociedade predominante possui.
Percebeu-se, ainda, no conto em questão, que a identidade contraditória pode ser
percebida muito claramente, pois os personagens são rotulados pela sociedade
hegemônica – representada pela polícia – de forma que faz com que fiquem
presos somente a um tipo de identidade quando, na verdade, há muito mais do
que apenas a visão da policia. Respondem a outras posições identitárias,
nenhuma delas necessariamente única ou absoluta, pois a cada situação em que
se encontram novas identidades lhes são atribuídas, algumas delas
contraditórias, segundo se relacionam com suas famílias, amigos, companheiros
de trabalho, ou, ainda, segundo pensam a si mesmos.
Referências
EVARISTO, Conceição. Ana Davenga. In: EVARISTO, Conceição. Olhos d´água. Rio de Janeiro: Pallas, 2014. p. 21-30. HALL, Stuart; WOODWARD, Kathryn. Identidade e diferença: a perspectiva dos estudos culturais. In: SILVA, Tomaz Tadeu da (org) 5. ed. São Paulo: Vozes, 2000.
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MUNANGA, Kabengele. Negritude: usos e sentidos. 3. ed. Belo Horizonte: Autêntica, 2012. SANT'ANA, Antônio Olimpio de. história e conceitos básicos sobre o racismo e seus derivados. In: MUNANGA, Kabengele. (org.) Superando o racismo na escola. Brasília: Ministério da Educação, Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade, 2005.
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MULHER-MÃE EM “VOZES MULHERES”, DE CONCEIÇÃO EVARISTO
Maira Cristina Franzmann Pereira
Denise Almeida Silva
RESUMO Em contraste com o modo como a literatura e cultura brasileira têm apagado a mulher negra do papel de mulher-mãe, capaz de se afirmar como centro de uma descendência, Conceição Evaristo confere destaque em sua obra à mulher e, especialmente à mulher- corpo-matriz, a qual, através de sua própria prole – e não dos filhos de seus senhores brancos - contribui para a construção da história e sociedade brasileira. Esta comunicação analisa o poema “Vozes-mulheres” observando como este apresenta uma sequência de cinco gerações de mulheres negras. Tem como narradora uma mãe, que relembra sua própria mãe, avó e bisavó e, ainda, dialoga com sua filha. Em sua fala, fica clara a forma com que o negro contribuiu, também, para a história do Brasil, rememorando sua travessia no navio negreiro, sua servidão sob a escravidão de direito e a de fato, que se perpetua, bem como a esperança de libertação plena e digna para uma futura geração. Assim, ao início do poema, relembra a bisavó, ainda criança, confinada em um navio, e sofrendo privações; lamenta a perda de sua infância. A avó nasce em um ambiente repressor e, sem ter escolha, obedece aos “brancos-donos”, por medo. A mãe, que já não é denominada como escrava conhece uma vida de servidão e não tem seu trabalho reconhecido, tampouco valorizado, sempre vivendo à margem de uma sociedade contaminada por seus preconceitos e vaidades. A mulher do presente – o eu-lírico que se expressa no poema – não compreende e não aceita o fato de ainda sofrer com a violência e com a fome, sendo ela tão capaz quanto qualquer pessoa, e tendo tanto a oferecer como qualquer um. Finalmente enfoca a filha, que reúne em si a bagagem emocional reprimida de todas as gerações anteriores, seus anseios e suas mágoas. É também a filha que tem a liberdade de pensar e agir, construir sua vida sem perder sua identidade, coisa que não foi permitida as outras gerações. Palavras-chave: Mulher. Mãe. “Vozes-Mulheres”. Conceição Evaristo. Poema.
ABSTRACT In contrast to the way Brazilian literature and culture have erased the black woman's role of woman-mother, through which she establishes herself as the center of descendancy, Conceição Evaristo gives emphasis to the women and especially to the woman-body-matrix in her work. It is through her body´s offspring - and not through children of her white masters – the black woman contributes to the construction of Brazilian history andsociety. This paper analyzes the poem "Vozes Mulhers" observing how it presents a sequence of five generations of black women. Its narrator is a mother, who remembers her own mother, grandmother and great-grandmother, and also talks to her daughter. In her speech, the way the black women also contributed to the history of Brazil is clear. She is reminiscing about her crossing onboard a slave ship, her slavery under legal slavery and its disguised form after abolition, which remains until today, and about her hope of real freedom for the future generation. Thus, at the beginning of the poem the lyrical self recalls the great-grandmother as a child confined on a ship, and suffering privations; she mourns the loss of her childhood. The grandmother was born in a repressive environment, without choice; and for fear, she obeyed her white owners. The mother, who is no longer called a slave, knows a life of servitude and does not have her work neither recognized nor valued, always living on the margins of a society infected by its prejudices and vanities. The present day woman – the lyrical self who speaks in the poem – that the negro still suffers, in spite of being as capable as anyone else, and, like everyone else, having so much to offer. Finally, the lyrical self evokes her daughter who carries in herself the sum of the repressed emotional violence suffered by her predecessors, their hopes and suffering. It is also the daughter who has the freedom to think and act, to build her life without losing her identity, something that was not allowed to previous generation.
Keywords: Woman. Mother. “Vozes – Mulhers”. Conceição Evaristo. Poem.
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Introdução
Em contraste com o modo como a literatura e cultura brasileira têm
apagado a mulher negra do papel de mulher-mãe, capaz de se afirmar como
centro de uma descendência, Conceição Evaristo confere destaque em sua obra
à mulher e, especialmente à mulher-corpo-matriz. No papel de mãe, a mulher
negra, através de sua própria prole – e não dos filhos de seus senhores brancos –
assume o papel de efetiva construtora, com sua progênie, da história e sociedade
brasileira.
A “cor” do romance brasileiro e o apagamento do afro-brasileiro na
literatura canônica
Inicialmente, a fim de demonstrar o apagamento da figura da mulher negra
de nossas letras, situamos o negro na literatura brasileira, tomando como base a
pesquisa de Regina Dalcastagné a respeito da “cor” do romance brasileiro, seus
autores e personagens. A estudiosa pesquisou 130 romances, publicados em
primeira edição entre 1965 e 1979, pelas editoras: Civilização Brasileira e José
Olympio - não necessariamente as maiores, mas sim as mais influentes da época.
Destes 90% dos autores eram brancos e 7% de cor não definida. No
prosseguimento da pesquisa, foram estudados 258 romances, publicados em
primeira edição entre 1990 e 2004, dos quais 93,9% dos autores brancos, 3,6 de
cor não identificada e apenas 2,4% de não brancos. No que diz respeito às
personagens, de 1990 a 2004, 56,6% dos romances não apresentam
personagens brancos e somente 1,6% dos romances não há personagens
brancos. Sendo assim, dos 1245 personagens somente 98 são negros, 73,5%
dos quais são pobres, o que leva Dalcastagné a concluir que “[...] a literatura
segrega os negros nos segmentos de menor renda, mais do que a realidade. ”
(DALCASTAGNÈ, DUARTE, 2011, p. 318). A tais personagens são atribuídas,
como principais ocupações: 20,4% bandido/contraventor, 12,2% empregado
doméstico e 9,2% escravo.
Considerando o exposto anteriormente, aparentemente existe uma
intenção de apagamento do povo africano mantenho-o aparte, tornando-o
inexpressivo, desconsiderando suas contribuições para a construção cultural do
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país. Sua perspectiva social é diferente do restante da sociedade, por causa de
seu passado escravo e do preconceito ainda existente, porém velado.
A ausência de personagens negros na literatura não é apenas um
problema político, mas um problema estético. Pois, no que se refere à estética,
dificilmente um autor branco - o qual é predominante em nossa literatura – tenha
tido experiências similares àquelas vividas pelos descendentes africanos. Uma
vez que a cor de uma personagem não está apenas em sua descrição física, mas
sim nas marcas psicológicas e emocionais deixadas por uma sociedade que
rechaça uma pessoa apenas pelo tom de sua pele. Por isso, “Usar um “modelo”
branco e fazer dele uma personagem negra [...] não resolve, porque ser negro em
uma sociedade racista, não é apenas ter outra cor, é ter outra perspectiva social
(nos termos de Iris Marion Young) ” (DALCASTAGNÉ, 2011. p. 322).
Observando os dados de Dalcastagné podemos observar que existe um
modelo de romance, o modelo “branco”, hegemônico, que difere da expressão e
conteúdo do romance negro. A população afro-brasileira construiu uma
identidade, que a torna singular e quando um escritor tem a habilidade de retratar
a realidade vivida pelo negro ele cria uma obra que mostra ao leitor uma
perspectiva diferente da usual, convidando-o a refletir.
Considerando suas vivências específicas como mulher e negra, Conceição
Evaristo afirma:
Em síntese, quando escrevo, quando invento, quando crio a minha ficção, não me desvencilho de um corpo-mulher-negra em vivência e que por ser esse o meu copo, e não outro, vivi e vivo experiências que um corpo não negro, não mulher, jamais experimenta. (EVARISTO, In. SILVA, 2011. p. 132)
MULHER-MÃE EM "VOZES-MULHERES"
No que se refere à personagem, a mulher negra ainda é retratada como um
objeto, uma matriz produtora de mão de obra. A ela é negada a figura de mãe de
seus próprios filhos e a maneira mais comum de conferir à mulher negra a figura
materna é como a mãe-preta que cuida da prole dos senhores brancos. Por isso a
representação literária não é um retrato fiel do passado destas mulheres, uma vez
que muitas vezes foram elas o esteio da família, como provedoras de sustento e
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mantiveram sua identidade cultural viva, através da transmissão oral de valores e
costumes, já que em tempos antigos era proibido ao negro ler e escrever.
A limitação imposta pelo impedimento de instrução dos negros transformou
a tradição oral em importante ferramenta de registro de experiências e de
transmissão de identidade cultural. No poema em estudo, foi através da tradição
oral que a memória das vivencias do povo africano escravizado e sua
descendência foi transmitida e mantida. Nesse sentido,
[...] é preciso observar que a família representou para a mulher negra uma das maiores formas de resistência e de sobrevivência. Como heroínas do cotidiano desenvolveram suas batalhas longe de qualquer clamor de glórias. Mães reais e/ou simbólicas, como as das casas de Axé, foram e são elas, muitas vezes sozinhas, as grandes responsáveis pela subsistência do grupo, assim como pela manutenção da memória cultural no interior do mesmo. (EVARISTO, 2005. p. 4)
Esta função, de provedora familiar e mantenedora da herança cultural, por
elas assumida foi uma forma de sobrevivência. Assim sendo, mesmo empregadas
em funções simples e árduas, tendo suas vozes caladas, estas mulheres foram
mães, centro de uma descendência que a literatura faz questão de ocultar.
Contudo, o poema “Vozes-Mulheres” se opõe ao silenciamento/apagamento da
mulher negra na literatura hegemônica, conferindo destaque à figura materna e
enfatizando sua presença e de seus próprios filhos em diferentes espaços e
épocas, colaborando sempre para a construção.
A primeira geração que é apresentada no poema é representada pela
bisavó, que trazida, ainda criança, da África nos porões de um navio se dá conta
de que sua infância não será como ela esperava que fosse. A ela não é mais
dado o direito de gozar infância livre e despreocupada; pelo contrário,
experimenta sofrimento e privações nos porões do navio negreiro. Com sua
delicada voz infantil, como ela poderia se fazer ouvir?
A voz de minha bisavó ecoou criança nos porões do navio. Ecoou lamentos De uma infância perdida (EVARISTO, 1990, sp.)
Contudo, os lamentos da infância perdida ecoam ainda aos ouvidos de
suas descendentes, as quais, pelas gerações por vir, experimentariam diferentes
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formas de privação e escravidão. Aquela menina que viajou nos porões do navio,
se fez mulher-mãe, momento marcante e feliz para qualquer mulher. Não, porém
para aquelas que já não são mais donas de si, que foram escravizadas e tratadas
como um ser inferior, como apenas um objeto, força de trabalho e corpo gerador
de mão de obra, desprovido de inteligência, linguagem e cultura. Para estas só
resta obediência aos seus senhores, evitando assim castigos e garantindo a sua
sobrevivência. Calou sua voz ao mundo, porém esta retumbou forte no íntimo de
sua alma, ecoando toda angústia, dor e violência por ela sofrida.
A voz de minha avó ecoou obediência aos brancos-donos de tudo. (EVARISTO, 1990, sp.)
Sua mãe, por outro lado, já não é escrava, mas mesmo assim tem a
servidão como única alternativa, pois como descendente de escravos, ela não é
reconhecida como parte integrante da sociedade branca e racista, sendo obrigada
a viver à margem da mesma e a aceitar serviços subalternos para garantir o
sustento da família. Perpetua-se, assim, uma nova forma de escravidão: seu
ambiente de trabalho é ainda o fundo das casas alheias; de seu tem apenas a
submoradia na favela. Engana-se, porém, quem pensa que esta mulher-mãe é
ingênua, ela muito vê e ouve. Não tarda a perceber seu valor e o valor de seu
trabalho, o quanto é explorada e oprimida, por aqueles que “brancos”. Estes,
embora pareçam limpos por fora, estão imundos no interior, contaminados com
orgulho, desprezo e arrogância, lhe causando imensa revolta.
A voz de minha mãe ecoou baixinho revolta No fundo das cozinhas alheias debaixo das trouxas roupagens sujas dos brancos pelo caminho empoeirado rumo à favela. (EVARISTO, 1990, sp.)
Já o Eu-lírico, custa a aceitar que, apesar de tanto tempo transcorrido, de
tantas batalhas travadas contra a discriminação, ainda agora é vítima de uma
sociedade que reluta em romper com um passado vergonhoso de violência,
humilhação e desigualdade. Uma sociedade onde a cor da pele tem mais
importância do que a qualificação, massacrando a dignidade e a identidade de um
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povo, mantendo-o no anonimato, submetido a subempregos, mal remunerados
e/ou perigosos:
A minha voz ainda ecoa versos perplexos com rimas de sangue e fome. (EVARISTO, 1990, sp.)
Entretanto, sua filha carrega consigo as experiências de todas as gerações
passadas, que tiveram suas vozes sufocadas e suas mãos amarradas pelo medo,
pela necessidade e pela injustiça. Mãos calejadas que ajudaram a erguer um
País. Vozes abafadas que cantavam para amenizar a dor e o sofrimento. Estas
vivências foram a ela transmitidas como forma de resgate cultural, memória e
identidade de um povo forjado na adversidade, lutador e persistente. Mas existe
esperança no futuro, pois ela acredita que sua filha terá a oportunidade de fazer
suas próprias escolhas e se fazer ouvir. Liberta pelo conhecimento de uma
história de opressão, e pela consciência de suas implicações sociais e políticas, a
filha há de assumir a voz nega, antes abafada, mas não emudecida. Esta,
ecoando do interior do navio, da casa-grande, e das cozinhas – símbolo de todo o
tipo de subemprego e confinamento – chega a essa quinta geração de mulheres:
A voz de minha filha recolhe em si a fala e o ato. O ontem - o hoje - o agora (EVERISTO, 1990, sp)
Assim empoderada, essa mulher, no agora, assumirá o ato libertário,
ressonância das vozes-mulheres que a antecederam, e que lhe repassaram ecos
de vida-liberdade os quais, espera-se, a filha efetivamente gozará e proclamará
(“Na voz de minha filha/ se fará ouvir a ressonância o eco da vida-liberdade. ”
(EVARISTO, 1990, sp.). Então, mulher, futura mãe, será capaz de lutar pelos
seus direitos, fazer suas próprias escolhas, e ocupar um lugar digno na sociedade
sem constrangimentos e com plena liberdade de ser o centro de uma
descendência, Mulher-Mãe.
Referências
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DALCASTANGNÉ, Regina. A personagem negra na literatura brasileira contemporânea. In: DUARTE, Eduardo de Assis, FONSECA, Maria Nazareth Soares (Org.). Literatura e afro descendência no brasil - antologia crítica. Belo Horizonte. Editora UFMG. 2011. v.4 - (Humanitas). DALCASTAGNÈ, Regina. Literatura brasileira é coisa de branco? Reginahttp://revistacult.uol.com.br/home/2012/12/literatura-brasileira-e-coisa-de-branco/>Acesso em 16 set. 2015. EVARISTO, Conceição. Vozes-mulheres. In: Cadernos negros, v.13. São Paulo: Quilombhoje, 1990. Disponível em: <http://www.educacaopublica.rj.gov.br/cultura/prosaepoesia/0151.html/>. Acesso em: 16 set. 2015. _______. In: ALEXANDRE, Marcos Antônio (Org). Representações performáticas brasileiras: Teorias, práticas e suas interfaces. Belo Horizonte - MG: Mazza Edições, 2007. _______. Gênero e Etnia: uma escre(vivência) de dupla face. – 2005. Disponível em:http://nossaescrevivencia.blogspot.com.br/2012/08/genero-e-etnia-uma-escrevivencia-de.html/>. Acesso em: 23 set. 2015 SILVA, Denise Almeida; EVARISTO, Conceição (Org). Literatura, história, etnicidade e educação: estudos nos contextos afro-brasileiros, africano e da diáspora africana. Frederico Westphalen: URI, 2011. SCHNEIDER, Liane; MACHADO, Charlinton (Org.). Mulheres no Brasil - Resistência lutas e conquistas. João Pessoa: Editora Universitária/UFPB,2006
UMA PROPOSTA DE LEITURA DAS POESIAS DE SERGIO NAPP: O GAÚCHO À MARGEM NO AMBIENTE CITADINO
Vanice Hermel Laisa Veroneze Bisol
Adriana Folle RESUMO Este estudo objetiva investigar a importância que o espaço ocupa nas composições de Sergio Napp, não apenas pela geografia ou ainda pela caracterização da cultura à que está associado, mas pela influência que essa ambientação tem na formação e, porque não, na ação do elemento humano. Ainda pretendemos perceber o perfil do gaúcho, compreendido não como o indivíduo nascido no Rio Grande do Sul, mas como elemento oriundo do campo, habitante originalmente ligado à vida rural típica do pampa. Consideraremos em nosso estudo que a canção, a partir da utilização de imagens simbólicas já cristalizadas no imaginário social por meio de outros gêneros textuais e instâncias artísticas, recupera os antigos valores preconizados na sociedade sul-rio-grandense, os quais o gaúcho canta, glorifica e rememora. Palavras-chave: Leitura. Literatura. Poesia. Gaúcho.
ABSTRACT This study aims to investigate the importance of the space occupied in the compositions of Sergio Napp , not only by geography or by the characterization of the culture to which it is associated , but by the influence that this setting has the training and , why not, the action of the human element . Still intend to realize the Gaucho Profile, understood not as a person born in Rio Grande do Sul, but as an element coming from the field, resident originally linked to the typical rural life of the pampa . We will consider in our study that the song from the use of symbolic images have crystallized in the social imaginary through other genres and artistic instances , recovers ancient recommended values in South Rio Grande society , which the gaucho sings , glorify and recalls . Keywords:Reading. Literature. Poetry. Gaucho.
Introdução
Sérgio Napp nasceu em 03 de julho de 1939 na cidade de Giruá/RS.
Formou-se em engenharia, tornou-se professor universitário e continuou
procurando caminhos, tanto através da literatura, escrevendo de tudo e sobre
tudo, tendo publicações em jornais de Porto Alegre, São Paulo e Rio de Janeiro,
como também através da música, participando e sendo premiado em diversos
festivais.
Sua trajetória começa em 1959, quando recebeu o primeiro prêmio em
poesia. Depois, em 1964, teve grandes nomes da música brasileira gravando
suas composições: Elis Regina com “Meus olhos”, Tito Madi com “Pra que
mentir”, Marisa Barroso com “Vou ficar com você”. Desde esse tempo, Napp
seguiu conquistando títulos, ora pela escrita literária, em crônicas, ora pela
música. Em 1981, recebeu o grande prêmio Calhandra de Ouro no Festival
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Califórnia da Canção Nativa de Uruguaiana/RS, com a música “Desgarrados”.
Essa composição foi resultado de uma parceria com Mario Barbará, e obteve, até
o ano de 2014, mais de 40 gravações; foi ainda, lançada em 1993, na Alemanha.
Napp participou da criação do Grupo Canto Livre que, em pouco tempo, se
transformou no principal grupo vocal gaúcho, tendo o seu primeiro Lp gravado
ainda no ano de 81. Em 1982, foi considerado o melhor letrista do estado pelo
jornalista e crítico Juarez Fonseca. Entre 1987-1991, Napp foi diretor da Casa de
Cultura Mario Quintana, publicou seu livro de contos Para voar na boca da noite
eainda teve participações em antologias da poesia, incluindo até participação na
antologia bilíngüe de contos Marcosul/sur, com lançamento simultâneo no Brasil
e Argentina, pela editora Tchê. Nos anos de 1992 e 93, Sérgio Napp escreve
novelas, além de poesias, crônicas e contos.
No ano de 1999, lança Claridade, um cd com a sua trajetória urbana, em
que descreve Porto Alegre, canta o amor não correspondido. Lança mais tarde,
em 2001, o cd Nos palcos da vida, com a interpretação do Grupo Canto Livre,
tendo apoio do Funproarte, através da Secretaria Municipal de Cultura de Porto
Alegre. As composições que compõem esses CDs demonstram a renovação da
música regionalista com relação à apresentação e ao arranjo musical, mas a letra
conserva ainda elementos da vertente regional, desde o cavalo, o espaço cantado
e o sonho – tempo bom marcado pelo passado.
O gaúcho à margem: o ambiente citadino
Podemos afirmar que Sérgio Napp foi um dos mais profícuos autores do
Rio Grande do Sul, tendo publicado, em mais de 40 anos de carreira, literatura
infantil, juvenil, adulta, crônica e poesia, reunidos em mais de 15 livros. É letrista
premiado e tem mais de cem trabalhos gravados por artistas locais, nacionais e
internacionais.
Em suas composições, principalmente na canção “Desgarrados”,
evidenciamos que o espaço ocupa um lugar de destaque, não apenas pela
geografia ou ainda pela caracterização da cultura à que está associado, mas pela
influência que essa ambientação tem na formação e, porque não, na ação do
elemento humano. Ainda percebemos o perfil do gaúcho, compreendido não
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como o indivíduo nascido no Rio Grande do Sul, mas como elemento oriundo do
campo, habitante originalmente ligado à vida rural típica do pampa.
Para exemplificar a importância do espaço organizaremos nossa análise,
de modo a contemplar como são abordados na canção os elementos que
lembram o campo e os elementos que lembram cidade. Inicialmente, percebemos
o gaúcho vislumbrado por um olhar de fora, que lastima a atual decadência do
gaúcho proletarizado. O título “Desgarrados”, sugere esse distanciamento do eu
lírico, que assume o papel de expectador, pois os desviados do seu rumo, ou
ainda extraviados são “eles”, portanto, os outros. A letra da canção propõe a
comparação dos ex-trabalhadores do campo aos animais desgarrados da cidade,
tudo isso sem deixar claros os reais motivos pelos quais esses gaúchos vieram
para a cidade.
Os elementos que descrevem a cidade demonstram o motivo pelo qual
eles estão desgarrados. Evidenciamos, no início da canção, a localização de um
ambiente citadino, a perda da referência ao campo, ao verde, ao céu azul, pois
“eles” estão “nas calçadas”, “nas esquinas”, sem função gloriosa, ou mesmo
humanizadora: agora “são pingentes das avenidas”, ou seja, são insignificantes e
por isso são colocadas à margem da sociedade. Depois, seguem-se os elementos
que lembram o trabalho: “fazem biscates”, “carregam lixo”, “juntam baganas”
demonstram que os novos afazeres, o trabalho na cidade, os degradam. Assim,
podemos afirmar que nessa primeira estrofe não há marca identitária que revele o
gaúcho tradicionalmente glorificado na vertente regional:
Eles se encontram no cais do porto pelas calçadas Fazem biscates pelos mercados, pelas esquinas, Carregam lixo, vendem revistas, juntam baganas E são pingentes das avenidas da capital Eles se escondem pelos botecos entre cortiços E pra esquecerem contam bravatas, velhas histórias E então são tragos, muitos estragos, por toda a noite Olhos abertos, o longe é perto, o que vale é o sonho
Observamos que a fuga da realidade vivida, nessa nova espacialização, se
dá no ato de contar as “bravatas”, “das velhas histórias”; aqui podemos identificar
a relação da canção com o gaúcho e seu hábito de contar suas bravuras, suas
glórias.
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Depois, o último verso da primeira estrofe: “Olhos abertos, o longe é perto,
o que vale é o sonho” demonstra a resistência do sujeito, pois mesmo de “olhos
abertos” ele continua sua tentativa de esquecimento da realidade. Essa
resistência se dá através do sonho e da rememoração.
No espaço citadino, através de um jogo de vocabulário, o próprio vento,
assim como as pessoas, encontra-se “desgarrado” e, nesse sentido, podemos
aproximar o vento e o sujeito afirmando que ambos estão “sem rumo”,
“extraviados” nessa nova espacialização. Ainda, vento e o gaúcho não podem
voltar no tempo: “Sopram ventos desgarrados, carregados de saudade/Viram
copos viram mundos, mas o que foi nunca mais será”.
Depois, os elementos relacionados ao campo revelam a identidade peculiar
do sujeito gaúcho, uma vez que são recuperados os arsenais que compõem a
imagem do habitante do pampa, no qual evidenciamos a fixação às coisas da
terra e à socialização. Tais elementos não expressam melancolia, tudo é
tranquilo, de forma que é possível repensar a “harmonia” e também a “democracia
rural” evidenciada por Zilberman (1980) no texto regionalista, com referência à
partilha de atividades por estancieiros e vaqueanos. Em “Desgarrados”, essa
harmonia é identificada pelo companheirismo entre os homens que, junto ao
palheiro aceso, comiam, contavam causos, e preparavam o cavalo para as lides
do dia. Além disso, observamos, que diferentemente do trabalho na cidade,
percebido como degradante, as lidas campestres humanizam o homem, que a
elas se entregar está em comunhão com seu semelhante:
Cevavam mate, sorriso franco, palheiro aceso Viraram brasas, contavam causos, polindo esporas, Geada fria, café bem quente, muito alvoroço, Arreios firmes e nos pescoços lenços vermelhos
O lenço vermelho aponta categoricamente para a figura do gaúcho mítico,
construído nas interações sociais e guerreiras, da mesma forma que, é construído
um imaginário de como era a vida no campo antes de o gaúcho deslocar-se para
a cidade. O passado é, ainda, lembrado pelos costumes atrelados ao
divertimento, como o “jogo de osso”, muito praticado na fronteira, e que consiste
em arremessar um osso; pela “cancha reta”: lugar preparado para corrida de
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cavalos e pela fartura de comida: “Jogo do osso, cana de espera e o pão de
forno/O milho assado, a carne gorda, a cancha reta”.
É nessa época de fartura e divertimento que os gaúchos: “Faziam planos e
nem sabiam que eram felizes”, mas agora, desgarrado, o gaúcho longe do
campo, distante de sua cultura e de sua gente rememora esses momentos. Desse
modo, evidenciamos que esse desgarrar-se culturalmente é marcado na letra da
canção, a qual acaba denunciando o êxodo rural, ao mesmo tempo em que,
revela um saudosismo em relação ao passado, à vida no campo, aos costumes
gaúchos.
A composição “Retirante”, de autoria de Sérgio Napp, interpretada por
Mario Barbará, mostra um gaúcho que, no seu habitat campeiro, ao invés de se
sentir livre e identificado com os elementos do espaço, julga-se quase um escravo
que tem “as mãos calejadas”. Vendo-se como um “burro de carga”, ele relembra
que, mesmo existindo um espaço de amplidão, nenhuma parte deste espaço lhe
pertence, recordando ainda a dicotomia: ele tem, mas não possui. O seu fascínio
não está associado ao espaço citadino, às luzes da cidade; anseia por vida, por
liberdade e demais valores que lhes são significativos e, que o campo não mais
lhe oferece:
Eu tenho as mãos calejadas Algumas rugas no rosto Aqui sou burro de carga E nem sou dono de mim Eu tenho todo o espaço Que os olhos podem tomar Mas não consigo um pedaço Que seja meu pra plantar Não me fascina o luzeiro Que eu possa achar na cidade Eu busco um prato de vida E um gosto de liberdade
Observamos que o deslocamento do campo para a cidade torna palpáveis
algumas dicotomias que se relacionam às estruturas sócio-econômicas: liberdade
versus escravo, ser versus não ser, as quais são trazidas na composição pelas
marcações “aqui” e “lá”: “aqui”, no campo, “sou mero instrumento”, portanto,
escravo, denotando, ainda, um indivíduo que não se sente adaptado ao seu meio
de origem, a ponto de não se sentir “como igual”; “lá”, na cidade, o trabalho
poderá lhe humanizar, diferentemente do que observamos nas demais canções
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analisadas em que a degradação estava sempre relacionada à cidade. Nessa
composição, a lida campestre baseada na exploração econômica é que degrada o
homem:
O que me leva é o desejo De me enxergar como igual Aqui sou mero instrumento Usado por serventia Nas safras eu me alimento Do gado sou dependente Lá fora, por meu trabalho Talvez eu venha a ser gente.
Notamos um gaúcho despido dos ornamentos românticos e da aura mítica,
pois esse não leva “sonhos na mala” nem os costumeiros “vícios de valentia”,
como se ele pudesse se despir das influências de seu espaço, de seus costumes
“De corpo e de coração” quer abrir-se a uma nova possibilidade de vida, na qual
ele deseja deixar de ser peão, para ser operário. Notamos, ainda, que a cidade é
o ambiente que poderá vir a lhe conferir um status identitário mais digno “No
espelho das avenidas”:
Não levo sonhos na mala Nem vícios de valentia Eu sei, me espera uma adaga Que pode matar-me um dia Me jogo inteiro assim mesmo De corpo e de coração No espelho das avenidas Operario, e não peão
Novo disco com músicas regionais é gravado no ano de 2002- Mala de
garupa, momento em que seus sucessos são regravados e outras canções são
lançadas. A música que dá nome ao álbum narra a saída do homem do campo, o
gaúcho, o qual se desloca para a cidade. Em sua jornada rumo ao cenário
citadino, o gaúcho traz consigo uma mala de garupa, a qual nos remete à imagem
dos antigos tropeiros, do centauro dos pampas em suas campereadas, nas quais
portava a mala de garupa para poder levar seus utensílios, enfim, seus pertences,
como é narrado na primeira estrofe. Nesse primeiro momento, ele carrega junto
aos seus apetrechos, “um bilhete pra cidade”:
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Nesta mala de garupa fumo em rama e um baralho Uma faca na bainha com a qual eu dou meus talhos Vai num canto escondida uma ponta de saudade Rapadura e erva mate e um bilhete pra cidade
No entanto, na segunda estrofe, os pertences carregados pelo gaúcho não
são somente os para uso no seu cotidiano, os quais apontam para uma nova
leitura da “mala de garupa”, a qual nos permite associar à “bagagem” do homem
do Sul com a sua cultura, tradição e costumes, os quais são trazidos para a
cidade e os identificam. Mesmo que o gaúcho não tenha o fracasso como motivo
de sua mudança, ele já carrega “uma ponta de saudade”, “sonhos guardados”,
“um pedaço de esperança” e “mais um tanto de alegria”.
Novamente, evidenciamos a identificação com os antigos tropeiros, não
somente pelo uso da “mala de garupa”, mas também pelo fato do gaúcho recordar
“um punhado de caminhos” e “outras tantas geografias”:
Lá no fundo guardo um sonho desses que jamais vingou Uma funda e uma isca da pandorga o que sobrou Um punhado de caminhos e outras tantas geografias Um pedaço de esperança mais um tanto de alegria
No final da canção, essa associação da “mala de garupa” com a bagagem
da vida do gaúcho fica mais evidente, pois ele traz em suas lembranças os
“estragos”e “feridas”. O gaúcho inclui também, em sua “mala” os seus “retalhos”,
os seus amores vividos e as lidas praticadas:
Vai um sol já meio gasto e uma rosa esquecida Um lugar onde refaço meus estragos e feridas Dentro dela meus retalhos meus amores minhas lidas Nesta mala de garupa vai a vida, vai a vida
Sérgio Napp lançou novos discos e regravou suas antigas canções das
raízes gaúchas, o último foi gravado no ano de 2010 com a interpretação de Mário
Barbará. Esse disco, denominado Vivências, traz canções como “Mala de
garupa”, “Retirante” e uma, em especial, “Portas do sonho”, que retoma, pelo viés
da saudade e do sonho, o “camperear pelas coxilhas” o “abrir trilhas” e, ainda traz
a liberdade associada aos elementos do campo.
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Notamos nessa composição um retorno onírico às raízes, ao seio de
origem para a retomada de uma cultura, associada à liberdade e à alegria de
camperear pelas coxilhas, as quais remetem à imagem do monarca: “quando abro
as portas do sonho/ sinto o gosto de liberdade/ pés descalços, camisa aberta/
mesas postas pelas varandase uma dor roendo meu peito/ se fazendo sem ter
razão/ deve ser a dona alegria/ campereando pelas coxilhas”.
Durante o sonho, são narrados também os lugares que lembram a vida no
campo, entre a natureza e onde a alegria “redomava” o coração do gaúcho: entre
avencas e samambaias/ pelas sangas, abrindo trilhas/ maneirosa dona alegria/
redomando meu coração. Para o eu-lírico, o ato de abrir as portas do sonho é se
permitir ousar e retomar do passado a magia dos “ventos de rebeldia”. A vida se
aproxima a um galope e a saudade é tão forte que fere “é punhal que se crava
lento”. A composição recupera os elementos característicos que compõem a vida
do gaúcho: o fato de galopear, a música através da gaita e da viola, a liberdade
através do voo livre do coração do gaúcho pela sua própria história:
É a vida em seu galope me envolvendo redemoinho É punhal que se crava lento e abre em festa meu coração geme gaita, chora, a viola corta firme punhal de prata espanta o medo, abre asas e voa livre o meu coração um grande abraço.
Ao lermos as poesias de Sérgio Napp, evidenciamos o cantar das coisas
do pago, que se dá em meio ao deslocamento do campo. Em todas as
composições analisadas, “Desgarrados”, “Retirante”, “Mala de garupa” e “Portas
do sonho”, encontramos a saudade do passado, o canto dos costumes
campeiros, a vida no campo, narrados por meio de uma linguagem rebuscada se
comparada com outras canções regionalistas gaúchas.
Além da linguagem, também observamos que a temática do êxodo rural,
evidenciada pela imagem do gaúcho à margem na sociedade no ambiente
citadino, que remonta o passado, recuperando seu antigo viver e seus afazeres,
ou até mesmo do gaúcho que não carrega “vícios de valentia”, que busca novo
sentido para a vida na cidade deixa de lado o gaúcho fortalecido outrora na
guerra, por meio de narrativas que exaltavam a força, a hombridade, a
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individualidade. Assim, podemos afirmar que em Sérgio Napp evidenciamos o
distanciamento do narrar da violência banal, uma vez que, a violência que se
delineia é a que o gaúcho está disposto a enfrentar para encontrar a liberdade,
como a miséria e o risco de vida no ambiente citadino.
REFERÊNCIAS
NAPP, Sérgio. Desgarrados. In: Canto Livre: nos palcos da vida. Nascente Discos, 2001. ______. Portas do sonho. In:____ Vivências. Nascente Discos, 2010 ______. Retirante. In:____. Mala de Garupa. Nascente Discos, 2002. ______. Mala de garupa. In:____. Mala de Garupa. Nascente Discos, 2002. TEIXEIRA, Múcio. Os gaúchos. Rio de Janeiro: Leite Ribeiro & Maurílio, 1920. WISNIK, José Miguel. Sem receita: ensaios e canções. São Paulo: Publifolha, 2004. ZILBERMAN, Regina. A literatura no Rio Grande do Sul. Porto Alegre: Mercado Aberto, 1980. (Série Revisão). ______. Literatura gaúcha: temas e figuras da ficção e da poesia do Rio Grande do Sul. Porto Alegre: L&PM, 1985.
“BEM SERTANEJO”: UMA ANÁLISE DOS CENÁRIOS UTILIZADOS NO QUADRO
Katiele Cristiane Zingler Larissa Bortoluzzi Rigo
RESUMO Este trabalho possui o objetivo de desvendar o papel desempenhado pelos cenários no cumprimento do propósito de contar a história da música sertaneja, objetivado pelo quadro “Bem Sertanejo”, exibido no “Fantástico”. Para tanto, quanto aos aspectos metodológicos, realizamos uma análise de conteúdo das veiculações, em que observamos este elemento nos três primeiros episódios do quadro, juntamente com uma entrevista concedida por Michel Teló – apresentador do mesmo – a este estudo. A partir de nossas observações, destacamos como resultados, a relação entre cenários e entrevistas na construção das narrativas, que agiu como um instrumento para o desenvolvimento dos personagens em cena, além de auxiliar no relacionamento entre os mesmos, e de aproximá-los à realidade da audiência. Palavras-chave: Bem Sertanejo. Cenários. Música Sertaneja.
ABSTRACT
Thais article has theobjective of revealingthe role ofscenariosin fulfilling the purposeof telling thehistory of countrymusic,objectifiedbyframe"Bem Sertanejo", displayed in"Fantástico". To this end,asthe methodologicalaspects, we conducted a content analysisof theplacements, wherewe seethis elementin the first threeepisodesof the picture,along withan interviewbyMichelTeló-presenterof it -to this study.Fromour observations, we highlight as a result, the relationship between scenes andinterviewsin the construction ofnarratives, which acted asan instrumentfor the developmentof the characterson stage,besides helpingin the relationshipbetween them, andbring them closerto realitythe audience. Keywords: Bem Sertanejo. Scenarios. Countrymusic.
Introdução
A música sertaneja destacada nos meios de comunicação e constante em
festas, que percebemos atualmente, nem sempre foi assim. Pelo contrário,
conforme Antunes (2012), ela enfrentou um longo processo até chegar ao gosto
popular. Questões referentes a esta trajetória foram abordadas no quadro “Bem
Sertanejo”, apresentado pelo cantor Michel Teló e exibido no programa
“Fantástico”, da Rede Globo de Televisão, o qual serviu de base para o presente
artigo, que se trata da análise dos cenários apresentados no mesmo.
O principal objetivo desta pesquisa é desvendar a forma e objetivos da
escolha dos cenários, e como estes contribuíram na narrativa. Nosso trabalho
centrou-se nas três primeiras veiculações da série, que contou com 12
apresentações.
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Nosso corpus foi dividido em dois blocos, objetivando a melhor
compreensão dos conteúdos. A primeira parte é constituída do referencial teórico,
no qual apresentamos a estrutura teórica de nossa pesquisa.Após há a
metodologia, e na sequência a segunda parte do trabalho, constituída pela efetiva
análise, e considerações finais. Desta forma, passamos agora a Fundamentação
Teórica.
1 O papel dos cenários na construção do telejornalismo
Os cenários1 são recursos visuais utilizados nos mais diversos segmentos
televisivos, como novelas, séries e telejornais. As narrativas se desenvolvem em
espaços específicos, denominados como cenários, que ajudam a contar a
história, criando uma ambientação aos acontecimentos. Tal como pontua Cardoso
(2009, p. 25):
[...] O cenário cumpre, na televisão, as mesmas funções que já vinha cumprindo no teatro: (1) cooperar com a configuração do espaço cênico; (2) representar os espaços e tempos específicos nos quais se encontram as personagens e/ou apresentadores; (3) auxiliar na evolução do ator/apresentador em cena; (4) atuar como elemento de significação que, na articulação sincrética com os outros elementos da cena, transmite ao telespectador uma mensagem.
De acordo com o autor supracitado, os cenários são fundamentais para o
desenvolvimento das cenas. Eles servem como uma base para os
atores/apresentadores - ou pessoas que estejam naquele local -, e trazem
consigo significações, que nos ajudam a compreender o processo atrelado à
cena, e adentrar ao mundo dos personagens2.
Assim, podemos afirmar que os cenários são importantes para a
compreensão do público, e desenvolvimento das entrevistas, na relação entre
entrevistador e entrevistado, criando um ambiente confortável para que o
entrevistado desenvolva seus pensamentos com naturalidade. Os cenários
podem ainda, criar uma aproximação com o telespectador, para que este possa
1De acordo com Santini (2012) o cenário pode ser entendido como um elemento que, agregado a
outros componentes visuais - como por exemplo, o figurino, demarca os personagens no tempo e espaço. 2Nesse sentido, o termo “personagens” não significa somente os atores de cenas, mas, sim,
àqueles que estiverem usufruindo dos cenários. Podem ser designados pelo termo “personagens”, o repórter e o entrevistado, já que estão dentro do espaço delimitado pelo cenário.
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se sentir integrado aos acontecimentos. Compreendemos assim, conforme já
mencionado, que os cenários são fundamentais para a construção das narrativas
televisivas, e possuem relação direta com as entrevistas, constituindo-se como
base para que elas se desenlvovam, integrando entrevistados, entrevistador e
telespectador em um ambiente confortável e significativo.
2 História da Música Sertaneja3
Originada de instrumentos árabes, a viola chegou ao Brasil com os
portugueses, e com o passar dos tempos e a miscigenação dos povos, cópias do
instrumento foram elaboradas, surgindo a viola caipira. A partir do século XVIII, os
tropeiros difundiram o instrumento pelo interior do Brasil, e com ela começaram a
ser criadas canções feitas por pessoas do campo. Porém, no final do século
seguinte, com o crescimento populacional e financeiro, de cidades como São
Paulo, a população passou a idealizar costumes europeus, e a tratar o caipira e
sua música de forma preconceituosa.
A partir de 1940, a expressão “música sertaneja4” passa a ser utilizada. O
cantor e compositor Diogo Mulera foi o responsável pela criação do termo.
Segundo ele, os tangos, rancheiras e boleros gravados pelas duplas não eram
música caipira, mas sertaneja. Neste período surgiu a primeira dupla feminina do
Brasil, as Irmãs Castro. A parceria entre Tonico e Tinoco também inicia neste
período, e aliando seu talento com a expansão do rádio, eles fizeram com que a
música sertaneja ultrapassasse as fronteiras de São Paulo, estabelecendo-se em
Minas Gerais, Mato Grosso, Paraná e Goiás.
A partir dos anos 1960, a música sertaneja passa por mais dificuldades. O
país estava em desenvolvimento e trazia à população uma crescente identificação
com questões urbanas. Fora do Brasil, Elvis Presley e Beatles arrastavam
multidões consigo, influência que aqui, resultou no movimento da Jovem Guarda,
quando o rock and roll passou a ser destaque. Além disso, o advento da Bossa
Nova, na década de 50, e a expansão da televisão, que diminuiu a força do rádio
3Os dados expostos neste subcapítulo têm como principalsubsídio teórico, o livro “De Caipira a
Universitário” (ANTUNES, 2012) 4Entendemos música sertaneja como um estilo musical advindo do caipira, com o incremento de
novos instrumentos e temáticas.
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(onde o sertanejo5 tinha espaço), fizeram com que a música sertaneja passasse
por um período quase de estagnação. O crescente êxodo rural, relacionado ao
“Milagre Econômico” do Regime Militar nos anos 70, também foi um fator
importante, a população mais urbana se identificava com a modernidade trazida
pelos novos movimentos, e o estilo da maioria das duplas ainda não havia
alterado.
A renovação do gênero chegou com Leo Canhoto e Robertinho. A primeira
dupla sertaneja a conquistar um disco de ouro adotou um estilo diferente, com
visual despojado, além da utilização de instrumentos como a guitarra elétrica,
traziam em suas canções temáticas mais urbanas, e elementos de música
romântica.
Na década de 80, inicia-se uma divisão entre música sertaneja romântica e
de raiz (ligada a temas rurais). Em 1982, com o lançamento de “Fio de Cabelo”,
por Chitãozinho e Xororó, o estilo consolida sua entrada nas rádios FM e
conquista novos públicos.
No final dos anos 2000, com o advento do sertanejo universitário, o estilo -
em constante renovação - é fixado de vez nas paradas nacionais e internacionais.
Reunidos em ambientes universitários, jovens cantores passaram a fazer e
interpretar canções com temáticas que envolvem festas, faculdade e o amor, que
por vezes, recebe tratamento descompromissado. Entre os precursores do
movimento, estão João Bosco e Vinícius, Fernando e Sorocaba, César Menotti e
Fabiano, Victor e Leo e Jorge e Mateus.
As novas duplas atingem grande sucesso com a população jovem, que
ainda era a mais resistente ao gênero, e penetram nas mais diversas mídias.
Donos de um estilo novo, que muitas vezes mescla o sertanejo com outros
estilos, muitos dos novos sertanejos adotam visual mais despojado.
Percorrido o caminho de fundamentação teórica, encerrado com a
contextualização da evolução da música sertaneja – de grande importância para a
compreensão de nosso produto - passamos a abordagem dos procedimentos
utilizados.
3 Procedimentos Metodológicos
5Sertanejo, no sentido de estilo musical, de música sertaneja.
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Para a realização do processo de análise dos cenários do quadro “Bem
Sertanejo”, consideramos os três primeiros episódios da série, referentes à sua
primeira temporada, lembrando que ele foi separado em dois períodos de
exibição, cada um com seis episódios. Iniciamos nosso trabalho, por meio de
pesquisas bibliográficas em livros e meios eletrônicos.
Formulada nossa base teórica, partimos para a análise dos cenários
utilizados no quadro. Buscando a efetivação de nossos propósitos realizamos a
filmagem com aparelho de celular das veiculações, para desta forma, segmentar
e avaliar os vídeos ponto a ponto. Além disso, efetuamos o envio de questões
para entrevista, via e-mail, com o idealizador e apresentador do quadro, obtendo
o retorno de sua assessoria de imprensa. O material respondido regressou com
respostas em primeira pessoa, atribuídas a Michel Teló - estas questões foram
utilizadas para a obtenção de mais subsídios para nossa análise.
4 Análise dos cenários
Neste capítulo, apresentamos as análises dos cenários utilizados nas
primeiras veiculações do quadro. Na sequência, trazemos as conclusões obtidas
com tal pesquisa.
4.1 Programa 1: Jorge e Mateus
O primeiro programa da série, apresenta a dupla Jorge e Mateus como
personagens principais, e tem como tema o “Sertanejo Universitário”. Jorge e
Mateus falam de suas influências, carreira, da mistura com outros gêneros, e
sobre estarem à frente de um Trio Elétrico6. Há também, falas de Michel Teló,
contando alguns de seus objetivos com a veiculação do quadro, a participação de
um empresário da dupla e o depoimento de João Bosco e Vinícius, apontados por
Jorge e Mateus como sua fonte de inspiração no início da carreira.
6Trata-se de uma estrutura musical montada sobre um caminhão. A criação é algo típico do
carnaval na Bahia, onde o ritmo predominante é o axé. Disponível em: <http://www.suapesquisa.com/carnaval/carnaval_salvador.htm>.
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A entrevista acontece em uma casa. Entrevistador e entrevistados estão
sentados em cadeiras altas, que nos remetem a banquetas, percebemos ao fundo
uma televisão e na lateral um espaço que nos lembra a área de festas de uma
residência. Tal ambiente traz uma sensação maior de aproximação com o
telespectador - por ser algo caseiro, ao qual pode sentir-se integrado -, além de
ser um espaço habitual aos entrevistados. Essas prerrogativas são confirmadas
por Michel Teló em entrevista a este estudo: “A ideia foi que cada convidado se
sentisse à vontade, em casa, e assim passar a verdade do momento. Então, cada
um escolheu onde queria gravar, onde se sentia bem”.
A partir do exposto, percebemos que o cenário utilizado teve por objetivo a
familiarização dos entrevistados e audiência, não constituindo um ambiente pré-
elaborado, preparado exclusivamente para a gravação. Servindo, desta maneira,
como auxílio aos personagens em cena, função atribuída aos cenários por
Cardoso (2009).
Há ainda, durante a construção do episódio, a inserção de imagens de
DVD’s, que por vezes são trazidas como comprovação de falas. Percebemos
também, a apresentação de imagens de festas quando se fala da nova fase da
música sertaneja, e dos Trios Elétricos em que a dupla Jorge e Mateus se
apresenta. Nas duas situações, temos depoimentos de participantes destes
eventos. São jovens que tem falas como:
-“O sertanejo tá na moda” -“O sertanejo invadiu o Brasil”
Neste caso, percebemos que os cenários cumprem a segunda função
mencionada por Cardoso (2009), a de expor o espaço e o tempo no qual estão
localizadas as personagens. Ou seja, as falas se referem a música sertaneja,
especificamente a sua fase atual - que possui linguagem voltada ao público jovem
-, e acontecem em cenários de festas, em que as canções tocadas são deste
estilo, e o público predominante é desta faixa etária. Além disso, as falas nos
parecem ter como objetivo a demonstração da popularidade da música sertaneja,
e sua afirmação com a parcela jovem, e em ambientes urbanos, já que se passam
em cenários perceptivelmente provenientes de cidades, como no exemplo dos
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Trios Elétricos, que acontecem em grandes centros, como Salvador e Rio de
Janeiro.
4.2 Programa 2: Chitãozinho e Xororó
O segundo episódio apresenta Chitãozinho e Xororó como personagens
principais. A partir do trabalho de Chitãozinho e Xororó a música sertaneja
conquista novos espaços, então, surge a importância de tratar sua trajetória no
episódio que aborda a popularização do gênero. E, para percorrer este caminho,
acontece a inserção de depoimentos, e a recuperação de pequeno fragmento de
entrevista concedida por Tinoco, da dupla Tonico e Tinoco, ao “Globo Rural”, em
maio de 2012.
Na casa de Chitãozinho, entrevistador e entrevistados circulam
naturalmente no ambiente familiar dos entrevistados. Há cenas na cozinha,
sentados à mesa e em ambiente que nos remete a uma varanda, no qual estão
acomodados em poltronas, com folhagens ao fundo. O que nos reporta a Cardoso
(2009), o autor nos diz que, dentre outras funções, o cenário é importante no
desenvolvimento do ator em cena. Ou seja, no contexto analisado, o ambiente da
entrevista serve como apoio para que os personagens atuem confortavelmente.
Tal situação ocorre como no primeiro episódio, já que ambos os encontros
acontecem em cenários íntimos aos artistas, sem a produção de um espaço.
A veiculação do episódio é finalizada com imagens do DVD “Do Tamanho
do nosso amor” - da dupla Chitãozinho e Xororó - gravado em 2013 no Wood’s,
em São Paulo. A casa noturna é frequentada por um público predominantemente
jovem e de considerável poder aquisitivo7, Chitãozinho (2015 apud G1, 2015)8
trata sobre essa questão: "A plateia não foi de convidados, queríamos os
frequentadores da casa". Acompanhando estas imagens, o quadro traz uma fala
de Michel Teló:
7Informação que pode ser percebida na descrição da casa noturna, em seu site: Sofisticação, essa
é a palavra que resume o Wood´s São Paulo. Um ambiente para o paulistano exigente, que busca por diversão, gente bonita e requinte. O sertanejo para o público seleto, com excelência em serviços e uma arquitetura diferente de tudo o que você já viu. Venha se surpreender! Disponível em: <http://www.woodsbar.com.br/saopaulo>. 8Chitãozinho e Xororó buscam som 'moderno' em DVD feito em 'balada'. Disponível em:
<http://g1.globo.com/musica/noticia/2013/11/chitaozinho-e-xororo-buscam-som-moderno-em-dvd-feito-em-balada.html>.
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-“Eles profissionalizaram definitivamente o sertanejo e trouxeram status a um estilo que até então era só restrito aos circos e às rádios. E a turma que torcia o nariz, não gostava muito não, eles não tinham muita alternativa a não ser aceitar. Não é à toa que diversas gerações sonham até hoje, ser Chitãozinho e Xororó”.
Fala que é comprovada com imagens da casa noturna, lotada de jovens
cantando em coro “Evidências” - sucesso da dupla, que aparece emocionada no
palco. Algo que cumpre com a quarta função atribuída aos cenários por Cardoso
(2009), a atuação como elemento de significação, transmitindo ao telespectador
uma mensagem. Em nossa compreensão, essa prerrogativa visa a ideia de
comprovação do alcance do gênero musical, bem como da capacidade - do
gênero, e da própria dupla - na renovação e ampliação de seu público.
4.3 Programa 3: Daniel e Rick
O terceiro programa da série apresenta como tema, compositores da
música sertaneja. São mencionados nomes de responsáveis por clássicos do
gênero, e para contar isso, o quadro traz a história musical do cantor Daniel,
desde os tempos da dupla com João Paulo9, dificuldades do início da carreira e
grandes sucessos, até chegar aos dias de hoje. A carreira de Daniel, alavancada
a partir de uma composição de Rick, serve como exemplo da importância do
trabalho dos compositores. Sendo assim, além de Daniel, o cantor e compositor
Rick, também é chamado para a conversa, e o depoimento de César Augusto,
outro compositor de renome é apresentado.
A entrevista acontece em um cenário típico rural, com árvores e cavalos.
Os personagens estão sentados sobre altos bancos de madeira, que nos
remetem a banquetas. Seguindo a análise de Cardoso (2009) identificamos que
este cenário cumpre com as funções de auxílio no desenvolvimento dos
personagens - já que estes sentem-se confortáveis em um ambiente de sua rotina
-, além de atuar como transmissor de mensagens, algo que, a nosso ver, passa a
identificação com o campo, reforçando a identidade dos artistas como sertanejos -
lembrando a origem rural deste gênero musical. Em tal contexto, notamos que as
9 A parceria entre João Paulo e Daniel aconteceu entre os anos de 1980 e 1997, quando foi
interrompida pela morte de João Paulo em um acidente de carro.
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características abordadas influem positivamente na condução da entrevista, que
acontece como uma conversa habitual.
5 Considerações Finais
Este trabalho teve como principal objetivo desvendar o papel
desempenhado pelos cenários no cumprimento do propósito de contar a história
da música, do quadro “Bem Sertanejo”, veiculado no programa “Fantástico”, da
Rede Globo.
A partir da observação dos cenários utilizados nos três primeiros episódios
da série, percebemos que ambos apresentaram características comuns em
termos de cenários.
Os cenários não foram pré-moldados para atender a requisitos da
veiculação. Tratam-se de espaços já existentes e da rotina dos entrevistados, que
tiveram como principal função deixá-los a vontade. Algo tratado por Cardoso
(2009), o estudioso nos diz que mesmo que o cenário desempenhe papel de
significação, não é a principal atração. Ou seja, acontecem relações entre cenário
e demais elementos, como os atores, os quais os cenários devem valorizar,
colaborar com a atuação.
A relação entre cenários e entrevistas na construção das narrativas agiu
como um instrumento para o desenvolvimento dos personagens em cena, além
de auxiliar no relacionamento entre os mesmos, e de aproximá-los à realidade da
audiência. Esta construção, facilitou o cumprimento do objetivo do quadro, já que,
relevantes informações chegaram até a audiência de maneira simples e
contextualizada, expandindo desta forma, questões referentes ao gênero.
REFERÊNCIAS A CASA. Disponível em: <http://www.woodsbar.com.br/saopaulo/informacoes>. Acesso em: 8 maio 2015. ANTUNES, E. De Caipira a Universitário. São Paulo, SP: Editora Matrix, 2012 BARBOSA, M.; LAIGNIER, P.; RODRIGUES, I. Da Viola Ao Teclado: Uma Análise da Transição da Música Sertaneja da Década de 80 até os Dias Atuais. Ouro Preto, jun. 2012. Intercom Sudeste. Disponível em:
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PRIMEIRA PÁGINA: ANÁLISE DOS RECURSOS TÉCNICOS E DOS CRITÉRIOS DE NOTICIABILIDADE DA FOTOGRAFIA PRINCIPAL
DAS CAPAS DO JORNAL NOVOESTE DE MARAVILHA-SC
Larissa Bortoluzzi Rigo Lysian Jhane Finger
RESUMO Este trabalho tem por objetivo analisar os recursos técnicos e os critérios de noticiabilidade da fotografia principal das capas do jornal Novoeste de Maravilha-SC, nas edições dos meses de abril e maio 2014. No desenvolvimento desta pesquisa, o estudo considera, em um primeiro momento a reflexão teórica do material bibliográfico e documental de Sousa (2004-2005), Erbolato (2004), Lage (2001). Ao examinar cada fotografia das capas, observamos que são poucos os elementos técnicos. Também questionamos os critérios de noticiabilidade, sendo de pouca variedade e utilizados de forma repetida, trazendo informativos de mesmo contexto e sem novidade no conteúdo.
Palavras-chave: Fotojornalismo. Capa de Jornal. Recursos Técnicos. Critérios de Noticiabilidade.
ABSTRACT This work aims to analyze the technical resources and the newsworthiness criteria of principal photography of Novoeste newspaper covers Wonder-SC, in the editions of April a May 2014. In the development of this research, the study finds, in the first time theoretical reflection of bibliographic and documentary material de Sousa (2004-2005), Erbolato (2004), Lage (2001). By examining each photo of the covers, we found that there are few technical elements. Also we question the newsworthiness criteria, with little variety and used repeatedly, bringing informative same context, without new content. Keywords: Photojournalism. Cover Journal. Technical resources. Newsworthiness criterion.
Introdução
Essa pesquisa tem como propósito analisar os recursos técnicos da
fotografia principal e os critérios de noticiabilidade de um meio de comunicação
impresso. Por esse prisma, serão utilizados como objeto de estudo duas edições
do jornal, no período de dois meses, neste caso, abril e maio de 2014. O veículo
escolhido, o Jornal Novoeste, tem circulação semanal aos sábados nos
municípios da Região Oeste pertencentes à microrregião da SDR10 da cidade de
Maravilha - SC.
Por meio de estudos bibliográficos acerca das teorias de jornalismo e
fotojornalismo a análise de conteúdo teve como propósito observar a fotografia
10
O jornal circula em: Bom Jesus do Oeste, Flor do Sertão, Iraceminha, Modelo, Romelândia,
Saltinho, Santa Terezinha do Progresso, São Miguel da Boa Vista, Tigrinhos e também em Cunha
Porã.
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principal da capa do jornal e avaliar e mencionar os recursos técnicos11 que foram
usados para o registro da imagem12, com base em livros e artigos proferidos pelos
estudiosos da área, tais como Sousa (2004-2005), Erbolato (2004), Lage (2001),
Noblat (2010), Lima (1989) entre outros. Ainda, nesta perspectiva, diagnosticar o
valor-notícia13, conforme o que os teóricos do jornalismo impresso defendem. O
estudo foi feito a partir da análise objetiva da fotografia das capas que ilustram os
periódicos coletados para a pesquisa.
Deste modo, a pesquisa faz-se necessária, pois, a primeira página é o
carro-chefe dos veículos impressos, é ela que chama a atenção do leitor, o
familiariza com o veículo, além de informar as manchetes principais que serão
encontradas no restante do jornal. Nessa esteira, pretendemos analisar o
conteúdo das fotografias principais das capas dos jornais, as técnicas utilizadas e
apurar os critérios de noticiabilidade, baseando a pesquisa nos padrões do
fotojornalismo, como qualidade da informação, foco da notícia, importância do fato
noticiado para o público-alvo e repercussão na sociedade.
Fotografia e Recursos Técnicos
O significado de fotografia vem do grego que traduz escrever (grafia) com
luz (foto), “até a palavra já está atrelada a escrita, enquanto para os japoneses é
shan-shin, a imagem real. Talvez esta seja a grande especialidade da fotografia,
porque a imagem que tem um contato físico, concreto, químico, com o real. É um
fragmento do real. Tem uma carga mágica desse real” (PAIVA 1989, p. 148 apud
GURAN 2002, p. 15). Diante disso a mágica de registrar cenas, pessoas,
ambientes, objetos e tudo o que esta aos olhos do fotógrafo, segundo Sousa
(2004, p. 35): “é possível devido aos fenômenos decorrentes do comportamento
da luz [...]”.
11
Recursos técnicos são elementos que constituem a fotografia, estes são os planos, enquadramentos, composição. Conforme Sousa (2005): “[...] ainda a considerar os elementos específicos da linguagem fotográfica, como a relação espaço-tempo, a utilização expressiva da profundidade de campo, da travagem do movimento e do movimento escorrido, etc”. (p. 334) (grifos do autor). 12
Utilizaremos a palavra imagem como sinônimo de fotografia. 13
Para Sousa (2005) “[...] a seleção de assuntos a noticiar não depende unicamente de escolhas subjetivas, há mecanismos que se sobrepõem à subjetividade jornalística. Entre eles estão os critérios de noticiablidade (ou de valor-notícia), que são aplicados pelo jornalista [...], no momento de avaliar os assuntos que têm valor como notícia”. (p. 30).
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Para Sousa (2005) os recursos técnicos são usados nas imagens para
gerar sentido, em seu livro traz como linguagem fotográfica. Essas técnicas
elementares são apresentadas como: Enquadramento, planos e composição; O
foco de atenção; Relação figura - fundo; Equilíbrio e desequilíbrio, Elementos
morfológicos (grão, massa ou mancha, pontos, linhas, texturas, padrão, cor e
configuração); Profundidade de campo; Movimento; Iluminação; Lei do
agrupamento; Semelhança e contraste de conteúdos; Relação espaço – tempo;
Processos de conotação fotográfica barthesianos (trucagem, pose, objetos,
fotogenia e esteticismo); Distância; Sinalização.
Enquadramentos, Planos e Composições em Fotografias para Sousa
Um dos primeiros elementos que contribui para dar sentido à mensagem
fotojornalística é o enquadramento, que conforme Sousa (2005, p. 337): “o
enquadramento corresponde ao espaço da realidade visível representado na
fotografia”. Como dito pelo estudioso é o fotógrafo que escolhe o enquadramento
para as fotográficas. Porém Sousa (2005) também apresenta o reenquadramento,
que é quando cortamos parte da cena que está sendo fotografada, ou seja,
deixamos de fora do enquadramento objetos, pessoas ou coisas das quais é
decidido pelo fotografo como não mais importante. Nas palavras de Sousa (2005,
p. 337): “reenquadrar uma fotografia é um gesto frequente do fotojornalismo, pois
assim pode concentrar-se a atenção do observador no motivo e retirar da imagem
elementos que desviem o olhar do que é importante”. E para a concretização do
enquadramento é usado os planos. Os planos são os enquadramentos, ou seja,
são pessoas e objetos enquadrados dentro da fotografia, nesta perspectiva pode-
se imaginar uma janela e vermos o que está dentro dela. “A fotografia é uma
unidade de significação precisamente porque se consubstancia num plano”
(SOUSA 2005, p. 337). Há vários tipos de planos em fotografias, os apresentados
por Sousa (2005) são seguintes:
• Planos gerais: os planos gerais são planos abertos, fundamentalmente informativos, e servem principalmente para situar o observador, mostrando uma localização concreta. São muito usados para fotografar paisagens e eventos de massas (as pessoas podem-se diluir no conjunto, mas podem também parecer personagens colectivas, com personalidade, forma e peso). Os planos gerais também podem servir,
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por exemplo, para fotografias em que o próprio cenário é a “personagem” (como o peso dos arranha-céus sobre as pessoas); • Planos médios: os planos médios servem para relacionar os objectos/sujeitos fotográficos, aproximando-se de uma visão “objectiva” da realidade; • Grandes planos: os grandes planos enfatizam particularidades (um rosto, uma janela...), sendo frequentemente mais expressivos do que informativos, embora também sejam menos polissémicos do que os planos gerais, já que estes últimos possuem mais elementos para consumo do observador. Fala-se dos ângulos de tomada de imagem, ou seja, ao ângulo que a máquina fotográfica forma com a superfície, como se fossem planos. (p. 337) (grifos do autor).
E além do plano de enquadramento, há o ângulo que define os planos.
Este ângulo é feito pelo fotografo e a câmera, chamado pelo teórico como ângulos
de tomada de imagem, que é “o ângulo que á maquina fotográfica forma com a
superfície” Este são corporados nos planos gerais, médios e grandes. Aos
apresentados por Sousa (2005) são:
• Plano normal: a tomada da imagem faz-se paralelamente à superfície, oferecendo uma visão “objectivante” sobre a realidade representada na fotografia; • Plano picado: a tomada de imagem faz-se de cima para baixo, tendendo a desvalorizar o motivo fotografado; • Plano contrapicado: a tomada de imagem faz-se de baixo para cima, tendendo a valorizar o motivo fotografado. (p. 337) (grifos do autor).
A técnica da composição, por Sousa (2005, p. 338) é “quando se fala da
informação que é acrescentada ao enquadramento, quando se fala dos elementos
da imagem e da forma como esses elementos competem pela atenção do leitor”.
Deste modo Sousa explica que para compor uma fotografia é só enquadrar o
motivo principal no centro, esta atitude de enquadrar o objetivo da informação,
para Sousa, é uma forma de composição.
Em fotografias retangulares a técnica usada é a da lei dos terços, sustenta
Sousa (2005, p. 338) que “é uma forma clássica de definir composições
fotográficas e pictóricas. Consiste em dividir a imagem em terços verticais e
horizontais, formando nove pequenos retângulos”, da mesma forma estes pontos
onde a linhas se cruzam são os pontos de atração visual, que é usado para
colocar o tema principal. Nesta perspectiva há tantas outras regras citadas por
Sousa, com a intenção de destacar o objetivo da imagem, em que deve se manter
o foco a atenção principal: “a regra dos terços não é a única forma de compor
uma imagem. É possível, entre variadíssimas outras soluções, conseguir
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composições eficazes dividindo a fotografia em metades ou em quartos e
colocando o tema num desses espaços” (SOUSA, 2005, p. 339).
Critérios de Noticiabilidade
Para Wolf (2006) as apurações das notícias são feitas por meio de
seleções dos fatos, os escolhidos são os que têm mais relevância perante os
interesses dos leitores em relação à notícia. Declara Sousa (2005) que estas
escolhas se denominam como “ação pessoal” de quem as classifica. No caso dos
jornais cabe ao jornalista do veículo que por experiência ou intuição decide qual
notícia deverá ser publicada. Sob essa óptica Sousa (2005) argumenta que:
As principais tarefas do jornalista ainda estão relacionadas com as suas mais tradicionais funções: selecção e hierarquização de acontecimentos susceptíveis de terem valor como notícia; transformação desses acontecimentos em notícias; difusão das notícias. (p. 30).
Este argumento de Sousa permite deduzir que os jornalistas precisam estar
envolvidos e atualizados com os acontecimentos pertinente do mundo, precisam
saber qual a notícia o leitor irá procurar se interessar em ler. Por outro viés, Sousa
(2005) ressalva que além do extinto do jornalista há classificações de notícias que
são feitas por critérios. Nas palavras do autor:
Os critérios de noticiabilidade não são rígidos nem universais. Por outro lado, são, frequentemente, de natureza esquiva, opaca e, por vezes, contraditória. Eles funcionam conjuntamente em todo o processo de fabrico e difusão das notícias e dependem da forma de operar da organização noticiosa, da sua hierarquia interna e da maneira como ela confere ordem ao aparente caos da realidade. (p. 31).
Tais referências permitem inferir que Sousa (2005) menciona a ideia que
este valor-notícia pode ser medido por mecanismos que sobrepõe à subjetividade
jornalística, os chamados critérios de noticiablidade, tal aspecto é determinante na
elaboração de uma teoria, reforçada pelo autor:
[...] a seleção de assuntos a noticiar não depende unicamente de escolhas subjetivas, há mecanismos que se sobrepõem à subjetividade jornalística. Entre eles estão os critérios de noticiablidade (ou de valor-notícia), que são aplicados pelo jornalista [...], no momento de avaliar os assuntos que têm valor como notícia (p. 30).
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Em suas contundentes observações Sousa (2005) também explica que os
critérios de noticiabilidade mudam ao longo do tempo, pois assuntos que
retoricamente não seriam publicados, hoje, têm força e valor e por isso passam
estampar as folhas dos jornais.
Nesta esteira Sousa (2005) apresenta em seu livro uma lista de critérios
que podem ser seguidos para definir se o acontecimento tem valor para ser
noticiado. Vale aqui ressaltar que mesmo que estes critérios são referidos no livro
para “noticias em formato de texto”, pode ser levado em conta para “noticias na
mensagem fotografia”, pois fotografia jornalística também informa, por tanto é
notícia. Retomando, esta lista em primeira instância foi criada por Galtung e Ruge
(apud SOUSA, 2005 p. 30), os quais foram os primeiros autores a chamarem a
atenção para a importância de existir critérios de noticiabilidade para avaliar a
relevância dos fatos registrados e que são apurados pelos jornalistas. Ela é
transcrito por dez mecanismos, que será mostrado a seguir:
1- Proximidade: é quando por proximidade de local (região cidade ou
bairro), tendências (moda e gostos), relações, culturas e costumes a notícia
atingir o leitor, mais interesse ele terá em lê-la. “Quanto mais próximo ocorrer um
acontecimento, mais probabilidades tem de se tornar notícia. A proximidade pode
assumir várias formas: geográfica, afectiva, cultural, etc.” (SOUSA, 2005, p. 31).
2- Momento do acontecimento: são assuntos com instantaneidade e
atualizados. Será mais procurado pelos leitores, um exemplo disso é furo de
reportagem, que de acordo com o Manual de Redação Folha de São Paulo (2006,
p. 26) é: “[...] em geral a informação exclusiva [...]”. “Quanto mais recente foi um
acontecimento, mais probabilidades tem de se tornar notícia.” (SOUSA, 2005, p.
31).
3- Significância: é a quantidade maior de pessoas que atingir em um
grupo. Dessa forma, tornará a notícia mais importante e irá repercutir e abranger
a sociedade com mais prevalência. “Quanto mais intenso ou relevante for um
acontecimento, quantas mais pessoas estiverem envolvidas ou sofrerem
consequências, quanto maior for a sua dimensão, mais probabilidades tem de se
tornar notícia. Além disso, quanto menos ambíguo for um acontecimento, mais
probabilidades tem de se tornar notícia.” (SOUSA, 2005, p. 31).
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4- Proeminência social dos sujeitos envolvidos: é dar ênfase a
certas pessoas por serem conhecidas e envolvidas na sociedade, quanto mais se
destacar por poder ou classe mais chances de interesse pelos leitores em ler a
notícia, exemplo disso são os políticos ou líderes. “Quanto mais proeminentes
forem as pessoas envolvidas num acontecimento, mais hipóteses ele tem de se
tornar notícia.” (SOUSA, 2005, p. 31).
5- Proeminência das nações envolvidas nas notícias: é dar ênfase
a uma nação por ser conhecida ou que se destaca internacionalmente, assim terá
mais chances de ser publicada, pois a notícia irá percutir. “Quanto mais
proeminentes forem as nações envolvidas num acontecimento internacional, mais
probabilidades ele tem de se tornar notícia.” (SOUSA, 2005, p. 31).
6- Consonância: é quando mais proporciona e satisfaz o leitor, quanto
mais atingir seus gostos e interesses, exemplos seria por profissão, esporte,
cultura ou religião. “Quanto mais agendável for um acontecimento, quanto mais
corresponder às expectativas e quanto mais o seu relato se adaptar ao medium,
mais probabilidades tem de se tornar notícia.” (SOUSA, 2005, p. 31).
7- Imprevisibilidade: são acontecimentos que quanto mais estiver
calcado em conteúdo provocador e excepcional, algo inusitado e anormal, fora do
comum e do cotidiano das pessoas, mais os leitores se interessaram em ler.
“Quanto mais surpreendente for um acontecimento, mais hipóteses terá de se
tornar notícia.” (SOUSA, 2005, p. 31).
8- Continuidade: é quando a notícia já foi revelada, mas traz uma
carga maior de informações quando noticiada mais de uma vez, para isso terá
mais profundidade e detalhamentos nos relatos, pois a primeira notícia dará
continuidade à próxima que impulsionará o leitor a seguir a notícia. “Os
desenvolvimentos de acontecimentos já noticiados têm grandes probabilidades de
se tornar notícia.” (SOUSA, 2005, p. 31).
9- Composição: em que quanto mais conteúdo geral e variado possui
a informação, mais probabilidade de ser noticiado. “Quanto mais um
acontecimento se enquadrar num noticiário tematicamente equilibrado, ou seja,
num noticiário com espaço para diversos temas, mais probabilidades tem de se
tornar notícia.” (SOUSA, 2005, p. 31).
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10- Negatividade: notícias de tragédias e catástrofes geram certa
curiosidade nos leitores, assim acabam sendo mais procurada por eles. “Quanto
mais um acontecimento se desvia para a negatividade, mais probabilidades têm
de se tornar notícia.” (SOUSA, 2005, p. 31).
Em que pesem as ideias sustentadas por Sousa, é preciso acrescentar
que, após a lista dos critérios de noticiabilidade dos pioneiros Galtung e Ruge
apresentado no livro de Sousa (2005), houve tantos outros autores que avaliaram
os critérios para medir a importância de uma notícia, mas todos seguem a lógica
de que os fatores que cativam os leitores, a buscar as notícias são com as
mesmas intensidades sinalizadas por Sousa (2005), isto é, pelos mecanismos da
oportunidade, proximidade e atualidade, interesse público, importância e impacto,
dramatização e sensacionalismo.
Análises e interpretações: uma reflexão sobre as primeiras páginas
Para analisar as fotografias principais das capas dos jornais do Novoeste
realizamos um estudo específico de conteúdos da área do jornalismo. Desta
forma, o livro do teórico Sousa (2005) “Elementos de Jornalismo Impresso” foram
de grande aproveitamento para assim, podermos entender os elementos de
fotojornalismo, estes que permeiam os recursos técnicos que constroem
informações acerca de uma fotografia.
Para a leitura de conteúdo da fotografia primeiro realizamos a descrição da
imagem relatando cenários, locais, pessoas, objetos, cores entre outras
aparições. Após, optamos por mencionar os elementos do jornalismo que foram
encontrados na fotografia os descrevendo como são visualizados. Abaixo de cada
descrição utilizamos também tabelas para simplificar o recurso técnico que a
fotografia apresentou. Já para analisar os critérios de noticiabilidade foi preciso a
leitura dos dados contidos na legenda de cada fotografia, as legendas
enquadraram-se como objeto de reflexões justamente por serem um elemento
indissociável da foto, assim a partir dessa avaliação podemos afirmar qual critério
coube à fotografia. Abaixo da análise obtida utilizamos também tabelas para
simplificar qual critério a fotografia apresentou.
Para a definição da fotografia principal consideramos aquela que teve o
maior tamanho na página ou que se encaixou como notícia e não como uma
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imagem de publicidade e divulgação. Iniciamos assim, a análise das fotografias
que dará conta do resultado dessa pesquisa.
Mês de Abril
Jornal Novoeste, 05 de Abril de 2014
Descrição do conteúdo da fotografia:
Nesta edição a capa foi diagramada com a fotografia principal em
tamanho médio, ocupando a metade do tabloide. Nela podemos identificar sete
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pessoas, sendo que algumas não aparecem de forma total e sim somente parte
dos seus corpos e da vestimenta. Todos são do sexo masculino e três deles estão
em destaque, praticando o gesto de mãos atadas. Ainda é possível observar que
o primeiro homem (da esquerda para a direita) está com a mão apoiada sobre o
ombro do segundo homem à frente, que sorri. O cenário é externo, durante o dia,
com paisagens de céu azul e galhos de árvores. Os objetos expostos são um
memorial de inauguração e uma placa metálica com o emblema da bandeira de
Santa Catarina. Em evidência podemos perceber que sobre a fotografia está
diagramada a logomarca da Cooperativa de Créditos Sicredi14 e isso se repete
sequencialmente em todas as outras fotografias.
Recursos técnicos encontrados na fotografia
Para obter melhores resultados acerca do objeto de estudo desta pesquisa,
é preciso a explanação dos elementos encontrados na fotografia, para assim,
podermos considerar se há conteúdo e qualidade de informação na fotografia
analisada. Nesse sentido, os componentes estudados estão calcados nos
estudos do teórico Sousa (2005), que apresenta os elementos do enquadramento
e planos, foco de atenção, relação figura – fundo, profundidade de campo e
movimento.
No que tange ao elemento do enquadramento podemos afirmar que a
fotografia está enquadrada nos planos médios. Conforme as ideias do autor
Sousa (2005, p. 337): “os planos médios servem para relacionar os
objectos/sujeitos fotográficos, aproximando-se de uma visão “objectiva” da
realidade”. Desta forma, os indivíduos aparecem da barriga até a cabeça, assim,
destacando as pessoas e o memorial de inauguração, não mostrando um cenário
completo em que estão localizadas.
Em relação ao elemento do ângulo, Sousa (2005) explica que são feitos
pelo fotógrafo e a câmera, ou seja, é o ângulo que á maquina fotográfica forma
em relação ao assunto da imagem. Mas são três os tipos de ângulos, os
chamados planos normais, planos picados e planos contrapicado. Em especifico a
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Não iremos mencionar em cada edição do jornal para não se tornar repetitivo, porém pode ser
visualizada a logomarca da Cooperativa Sicredi em todas as fotografias de capa do jornal.
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esta fotografia, percebemos o plano normal, que segundo Sousa (2005, p. 337) “a
tomada da imagem faz-se paralelamente à superfície, oferecendo uma visão
“objectivante” sobre a realidade representada na fotografia”, pois este plano é
feito quando o fotógrafo está posicionado na mesma altura que o assunto
fotografado, assim tornando o ângulo reto e um efeito de igualdade, tal como
propõe a fotografia em questão.
No que concerne o elemento do foco de atenção, segundo o percuciente
parecer de Sousa (2005, p. 340, grifos do autor) “o fotojornalista deve, deste
modo privilegiar sempre uma zona da imagem que funcione claramente como
foco de atenção, e que deve ser, obviamente, o motivo principal”. E no caso
desta fotografia o foco está direcionado em específico nas mãos, fazendo com
que o observador olhe diretamente para o gesto das mãos, o que representa a
união, aliança em torno dos milhões que a obra envolve.
No que se refere ao elemento de relação figura-fundo, Sousa (2005)
ressalva “o que se coloca em primeiro plano, nos planos secundários e no
plano de fundo torna-se, assim, extremamente importante, quer para dar força
visual à imagem, quer para realçar certos conteúdos” (p. 342) (grifos do autor). E
em específico a esta fotografia os três primeiros homens estão em primeiro plano,
as outras pessoas, o memorial de inauguração e a placa metálica com o emblema
da bandeira de Santa Catarina estão nos planos secundários e em plano de fundo
o céu e partes de galhos de árvores.
No respectivo elemento de profundidade de campo, Sousa (2005) reflete
que a profundidade de campo é “à distância entre os pontos nítidos mais
próximos e mais afastados do ponto focado” (p. 350). E nesta fotografia não foi
encontrado este elemento, pois não há continuidade de informação, afunilamento
ou alguma distância de um ponto para outro. Além disso, as informações estão
em apenas uma cena.
Na ideia do elemento do movimento, Sousa (2005, p. 350) (grifos do autor)
afirma que o “fotojornalista pode escolher travar o movimento ou fazer um
‘escorrido’”, em específico nesta imagem o efeito do movimento é travado, por
mais que as pessoas estejam representando uma ação, isso porque, estão
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praticando um movimento com as mãos, a fotografia está congelada, pois não
aparece o uso de efeitos15 que transmite o movimento com rabiscos ou borrões.
Critérios de Noticiabilidade expostos na fotografia
Para melhor refletir acerca do objeto de estudo desta pesquisa, é
necessário ainda a inserção dos critérios de noticiabilidade expostos na fotografia,
isso porque, através desses critérios é possível medir o valor-notícia do conteúdo
da fotografia. Nesse sentido, o que nos orienta são as legendas das fotografias.
Na foto da edição nº 1149 a legenda está descrita: “Com o asfaltamento da BR
282 ao Distrito de São José do Laranjal (Iraceminha) e a Paial, o governador
Raimundo Colombo (C), o ex-secretário de Infraestrutura e agora deputado
estadual Valdir Cobalchini, e o ex-governador e atual senador Luiz Henrique da
Silveira fecham promessa de pavimentar todos os acessos às cidades
catarinenses. Inauguração será às 11h de hoje (5)”.
No que concerne à exposição da legenda, é possível analisar os critérios
de noticiabilidade de acordo com o viés proposto por Sousa (2005) que se refere
aos mecanismos da proximidade, momento do acontecimento, significância,
proeminência social dos sujeitos envolvidos, proeminência das nações envolvidas
nas notícias, consonância, imprevisibilidade, continuidade, composição e
negatividade. Ao analisar está fotografia podemos encontrar dois mecanismos
como critérios de noticiabilidades: o que se refere a proximidade e a proeminência
social dos sujeitos envolvidos.
Ao relacionar o critério de proximidade, entendemos que este se refere
quando por proximidade de local (região cidade ou bairro), tendências (moda e
gostos), relações, culturas e costumes a notícia atingir o leitor, mais interesse ele
terá em lê-la. Nas palavras de Sousa (2005) “quanto mais próximo ocorrer um
acontecimento, mais probabilidades têm de se tornar notícia. A proximidade pode
assumir várias formas: geográfica, afetiva, cultural, etc.” (p. 31). E no caso desta
fotografia em especial, o assunto noticiado pode atingir as pessoas das cidades
do Distrito de São José do Laranjal (Iraceminha) e a Paial, as informando da
inauguração que acontecerá naquele dia.
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Estes efeitos, como mencionado, são realizados com o comando da velocidade na câmara fotográfica.
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Já na relação do critério da Proeminência Social dos Sujeitos Envolvidos,
eles estão presentes na fotografia porque este se dirige a notícias que dão ênfase
a certas pessoas por serem conhecidas e envolvidas na sociedade, quanto mais
se destacar por poder ou classe, mais chances de interesse pelos leitores em ler
a notícia, exemplo disso são os políticos ou líderes. Para Sousa (2005) “quanto
mais proeminentes forem às pessoas envolvidas num acontecimento, mais
hipóteses ele tem de se tornar notícia.” (p. 31). E nesse sentido, tanto na
fotografia quanto na própria legenda o destaque é para o governador Raimundo
Colombo, deputado estadual Valdir Cobalchini, senador Luiz Henrique da Silveira,
lembrando que todos são políticos conhecidos socialmente por todo o Estado.
Mês de Maio
Jornal Novoeste, 03 de Maio de 2014
Descrição do conteúdo da fotografia
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A fotografia do Novoeste está em tamanho médio, ocupando um terço da
capa. Nela podemos identificar quatro pessoas, um homem e três mulheres,
sendo que duas delas estão sentadas de frente para a câmara do fotógrafo,
olhando para seus computadores que estão em cima de uma mesa. A mulher
sozinha está sentada, mas de costas para o fotógrafo. O homem que também
está sozinho encontra-se mais atrás. O cenário é interno, dentro de uma sala,
com objetos como cadeiras, mesas, computadores, matérias para escritórios,
armários e um painel de um mapa geográfico.
Recursos técnicos encontrados na fotografia
No que concerne ao elemento do enquadramento, podemos constatar que
a fotografia analisada está enquadrada em plano geral. Nas considerações de
Sousa (2005) diferente dos planos médios “os planos gerais são planos abertos,
fundamentalmente informativos, e servem principalmente para situar o
observador, mostrando uma localização concreta” (p. 337). Exatamente o que
ocorre na imagem analisada, pois é mais aberta, situando o observador, já que
está mostrando toda a sala e as pessoas que se encontram nela.
No elemento do ângulo da fotografia, podemos observar que está no plano
picado, pois como já mencionado, este plano é feito quando o fotógrafo está em
uma posição mais alta que as outras pessoas, ou seja, o fotógrafo quando
registrou está imagem parece que estava apenas em pé e enquanto os outros
estavam sentados isso ocasionando um pouco de elevação da câmera perante as
pessoas sentadas. Assim, podemos mencionar que a imagem foi registrada de
cima para baixo, não debaixo para cima e nem mesmo paralelo às pessoas.
No elemento do foco de atenção, podemos constatar que nesta fotografia
não há algo nos chame a atenção, que se contrasta
1, que nos faça ligeiramente olhar com mais intensidade do que o restante, o foco
de atenção é disperso2 e geral.
No elemento de relação figura-fundo há uma mulher de costas que está no
primeiro plano, as outras duas mulheres e os computadores estão em planos
secundários e o homem, os armários, estão como plano de fundo.
1A palavra contraste significa quando algo se sobressair em relação a outros aspectos.
2A palavra disperso refere-se a espalhado, dispersivo, desatento e desprovido de atenção.
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No elemento da profundidade de campo, podemos afirmar que existe
profundidade de campo, porém não muito contínua, e nem com relevância no
conteúdo da informação, apenas segue o assunto mostrando aos fundos armários
com documentações. E percebível um pequeno afunilamento que segue dos
lados até o centro e fundo da fotografia. E como elemento do movimento, é
percebível que a fotografia está congelada.
Critérios de Noticiabilidade expostos na fotografia
Em continuidade com a análise dos critérios, na foto da edição nº 1153
a legenda está descrita: “Cartório Eleitoral de Maravilha fará plantões nos dias 5,
6 e 7, das 9h às 19h, para facilitar o andamento e o comparecimento dos
cidadãos que necessitam fazer a solicitação de alistamento, transferência ou
mudança do local de votação. Quem perder o prazo não poderá mais fazer esses
procedimentos. Em Flor do Sertão, os munícipes que precisaram regularizar a
situação terão transporte gratuito, oferecidos pela prefeitura”.
No que abrange os dados da legenda, é possível apontar os critérios de
noticiabilidade de acordo com o viés proposto por Sousa (2005), desta forma,
encontramos dois mecanismos como critérios de noticiabilidades, são os critérios
da proximidade e da composição.
O critério da proximidade, como já mencionamos, ocorre porque o
assunto noticiado irá atingir as pessoas por localidade, neste caso os leitores da
cidade de Maravilha e Flor do Sertão, foram os atingidos pela notícia.
No que apresenta o critério da composição, Sousa (2005) pondera que
“quanto mais um acontecimento se enquadrar num noticiário tematicamente
equilibrado, ou seja, num noticiário com espaço para diversos temas, mais
probabilidades tem de se tornar notícia.” (p. 31). Como as ideias de Sousa (2005)
mostram quanto mais conteúdo geral e variado possui a informação, mais
probabilidade de ser noticiado. E neste caso o assunto reflete em conteúdos de
eleições, sendo de contexto geral e variado, abrangendo o maior número de
pessoas, visto que, a partir dos 16 anos, as pessoas já podem votar, tema
abordado pela notícia.
Considerações Finais
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As fotografias como grande atrativo nos jornais ofertam um detalhamento
que cativam o interesse do leitor a entender a cena, o ato ou a ação do qual
originou a notícia. Elas são próximas à realidade e não forçam a imaginação do
seu observador, apenas o conduzem a um pensamento repentino do
acontecimento. Transmitindo informação como cores, formas, detalhes;
sentimentos como dor, felicidade, tristeza, entusiasmo; movimentos como gestos,
expressões, ações. Considerações que talvez na escrita não pudessem ser
entendidas ao certo ou se pensar em algo parecido. Nesse sentido, é imperioso
considerar que o leitor/observador daquela fotografia tire suas próprias
conclusões a perceber a expressão do rosto da pessoa fotografada ou até mesmo
as ações e movimentos da multidão registrada ou a circunstância que o local
aparentou. Valores dos quais os jornalistas não tem permissão de concluir com
suas próprias indagações se não tem dados ou fontes oficiais. Apenas o
fotojornalista pode transmitir ao fotografar com originalidade, técnica, ética e
criatividade. Para tanto Sousa (2005) relembra que:
As fotografias [...] assumiram um papel determinante na ancoragem gráfica; tornaram-se comuns as fotografias de pessoas em grande plano (substituindo os desenhos) e as fotografias de acontecimentos, em alguns casos detalhadas, portadoras de ação e emocionantes. [...] as fotografias [...] sofriam variações no tamanho consoante a importância dos temas a que se referiam, mas as fotografias tenderam a aumentar de tamanho. (SOUZA, 2005, p. 252).
Aportando-se das ideias de Sousa (2005) de que a imagem transmite ação
e emoção ao observador é possível perceber a importância que tem a escolha da
fotografia que estampa as capas dos jornais. Por isso aquelas imagens que estão
propostas a serem usadas na capa, precisam além de passar por critérios de
noticiablidade como os que foram resgatados de Sousa (2005) que são os
mecanismos da proximidade, momento do acontecimento, significância,
proeminência social dos sujeitos envolvidos, proeminência das nações envolvidas
nas notícias, consonância, imprevisibilidade, continuidade, composição e
negatividade. Também necessitam informar todos os detalhes das cenas,
destacar cada símbolo ou propósito e como citado pelo autor, transmitir ação e
emoção da realidade exposta. E estes sentimentos são feitos e produzidos
durante o click, pela escolha do ângulo, pela posição em que o fotógrafo e a
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câmera estão na cena, ocorre ao uso dos elementos, aqueles que construíram a
cena real de vida para o quadrado moldado da fotografia. Estes elementos são os
enquadramentos, ângulos, relação figura fundo, foco de atenção, profundidade de
campo e movimento, entre outros, são os que transmitem conteúdo, aqueles que
geram sentido na linguagem fotográfica conforme os estudos de Sousa (2005).
Outra importância em relação à fotografia da capa é a decisão do seu tamanho na
hora da diagramação, a opção das cores e se a imagem será impressa em cores
ou preta e branca.
Outro aspecto que merece importância é o uso de profundidade de campo
nas imagens, como o nome mesmo diz, profundidade de conteúdo e informação.
E no caso das capas analisadas são poucas as técnicas de profundidade em
fotografias das quais seriam ideais para trazer mais informação à notícia.
Já com referência ao elemento de relação figura fundo o fotojornalista pode
classificar por meio de seu click qual imagem quer que o observador olhe por
primeiro, por segundo e assim por diante, fazendo com que este entenda o
cenário total e com um entendimento diferenciado daquelas fotografias das quais
não tiveram cuidado com este elemento, assim criando para o observador
desatenção à símbolos, objetos e marcas relevantes para a informação.
Como elemento do foco de atenção, poderia ter sido mais planejado nas
imagens para ser usado como um macete e transmitir informações que muitas
vezes passam dispersas aos olhos do observador, pois ao clicar no momento
certo, os fotógrafos com alma de jornalista criam um foco principal ao qual é o
motivo da cena e será o mais notável, fazendo com que os olhos percorram até o
foco principal.
Quanto ao uso do enquadramento, um elemento como ressalta Sousa
(2005) de cenários, pessoas e objetos que estão enquadrados em forma de um
retângulo que a câmera cria e registra ao seu comando. É percuciente ainda
relatar que no estudo das imagens podemos perceber nomes diferentes de
autorias das fotografias, mostrando que nem todos são fotógrafos especializados
do jornal. E muitas imagens foram creditadas como divulgação, mostrando, que
foram extraídas de outras mídias, não sendo próprias do veículo. Nesse sentido, é
importante reiterar que quando as fotografias são da redação do impresso da qual
está sendo divulgada a notícia o jornal transmite mais credibilidade aos leitores,
demonstrando que estavam presentes no acontecimento e que tem uma equipe
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de profissionais especializados, preparados e participativos que se interessam
com o conteúdo que está sendo veiculado ser de qualidade e ineditismo.
Outro quesito explícito na página do jornal, fora a publicidade constante da
logomarca da Sicredi, diagramada em todas as fotografias principais das capas,
em tamanho considerado. Transmitindo uma publicidade subliminar aos olhos do
leitor que como Sousa mesmo menciona com fundamentos na psicologia de
Gestalt, em que os leitores ao observarem uma imagem não visualizam partes
dela, e sim, o primeiro relance o observador vê um todo da imagem. “Percebemos
contextualmente configurações globais e não unidades dispersas, ou seja,
percebemos conjuntos organizados de sensações” (SOUSA, 2005, p. 341).
Assim, é possível perceber que a logomarca da Sicredi não fora observada como
uma figura de publicidade em destaque no jornal e sim como algo que fazia parte
da imagem impressa no jornal.
Depois de todas essas ponderações acerca do corpus dessa pesquisa é
possível inferir ao leitor que este estudo pode possibilitar outras construções que
devem gerar reflexões. Por isso, ressaltamos que este trabalho possibilita a
construção de pesquisas dentro do campo da análise com outros temas que
podem ser feitos com os estudos do fotojornalismo, capa de jornal, recursos
técnicos e dos critérios de noticiabilidade. Pois há outros autores que levantam
ideias diferentes e também relevantes destes conteúdos.
REFERÊNCIAS
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JUREMIR MACHADO: UM CRONISTA DE SEU TEMPO
Luciane Volpatto Rodrigues Larissa Bortoluzzi Rigo
RESUMO Este trabalho tem como objetivo analisar os textos de Juremir Machado da Silva, publicados no jornal Correio do Povo, para entender como o narrador reconstrói a realidade social por meio do hibridismo entre o jornalismo e a literatura e comprovar que os elementos que o narrador utiliza são constituintes da crônica. Esta análise parte, inicialmente, de um referencial teórico que aborda a trajetória do conceito de “crônica” desde a Mitologia Clássica com Bender e Laurito (1993). Logo, sob a ótica de Pereira (2004), com o passar do tempo esse conceito sofreu modificações. Num outro momento, refletido à luz teórica de Melo (2003), analisa a crônica nos espaços dos jornais. O método utilizado é análise de conteúdo. A partir disso, as análises revelam que os textos do escritor pautam de elementos característicos da crônica, e, podem ser considerados como crônica.
Palavras-chave: Crônica. Jornalismo. Literatura. Hibridismo.
ABSTRACT This work aims to analyze the Juremir Machado texts da Silva, published in the newspaper Correio do Povo, to understand how the narrator reconstructs the social reality through hybrid between journalism and literature and prove that the elements which the narrator uses are constituents chronic. This analysis is initially a theoretical framework that addresses the concept of path "chronic" since the Classical Mythology with Bender and Laurito (1993). Thus, from the perspective of Pereira (2004), over time this concept was modified. In another time, reflected the theoretical light Melo (2003), analyzes the chronic spaces in the newspapers. The method used is content analysis. From this, the analysis reveals that writer's texts guided the characteristic features of chronic, and can be considered chronic.
Keywords: Chronicle. Jornalism. Literature. Hybridity.
Introdução
A proposta desse estudo consiste em identificar os elementos narrativos da
crônica que tecem o hibridismo entre o jornalismo e a literatura, relacionando-os a
reconstrução pela realidade social que se pauta o jornalismo com a exploração
dos recursos literários que contribuem para a representação dos fatos cotidianos.
Assim, nesse contexto, analisamos as crônicas de Juremir Machado, publicadas
no jornal Correio do Povo, no período entre fevereiro e março de 2015, sendo que
em fevereiro estudamos a crônica de sábado e em março a crônica de domingo
sendo que as escolhas foram aleatórias.
O jornalista, escritor e professor Juremir Machado escreveu sua primeira
crônica no jornal Correio do Povo em 1° de setembro de 2000 intitulada “Teoria
geral da afetação”. Ao acompanharmos seu trabalho profissional como
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colaborador do jornal impresso Correio do Povo percebemos o quão esse escritor
gaúcho se aproxima da realidade social e busca, a partir disso, construir um
discurso com mais sentido e reflexão aos fatos narrados. Dessa forma, o uso dos
recursos estéticos da literatura enriquece suas produções, porque, além de
recontar o cotidiano, o escritor recria a realidade, o que oferece mais condições
ao leitor para se impor perante o mundo em que vive. Nessa perspectiva,
abordamos os traços singulares de Juremir Machado evidentes nas suas
crônicas, como a linguagem coloquial, a subjetividade3 e o constante diálogo com
o leitor por meio das quais busca instigá-lo à interpretação dos fatos cotidianos.
Nessa pesquisa, são adotados referenciais teóricos que contextualizam a
crônica em diferentes períodos históricos. Iniciamos com a caracterização do
conceito de “crônica” no início da Mitologia Clássica, quando esta era vista
apenas como um breve relato de eventos em ordem cronológica do tempo.
Mostramos que esse conceito, com o passar do tempo, sofreu modificações.
Dentro dessa trajetória, no Brasil as características da crônica se propagaram,
pois os cronistas encontraram nos recursos literários novas formas de construir
suas narrativas para recontar o cotidiano. Num outro momento, analisamos a
crônica nos espaços dos jornais como gênero jornalístico. Acerca disso,
explanamos suas características nesses meios, e, por meio do hibridismo entre a
literatura e o jornalismo, a contribuição desses no processo narrativo da crônica.
Posterior a esse subsídio teórico, passamos a explanar acerca dos
processos metodológicos com base na análise de conteúdo. Logo, seguimos na
análise e, por fim, as considerações finais dessa reflexão. Iniciamos então, com o
arcabouço teórico.
1 Contexto histórico da crônica até a modernidade
1.1 Conceito do termo “crônica” em diferentes períodos da história
3 Entendemos a subjetividade em detrimento da objetividade, ou seja, a forma de utilização da
linguagem, justamente como forma do narrador se posicionar acerca dos acontecimentos na qual se refere.
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Dentro do contexto da crônica, para entender melhor sua conceituação,
vamos analisá-la na Mitologia Clássica, expondo suas características desde a
origem, até chegar a uma definição do seu significado atual.
A origem do conceito etimológico da palavra “crônica” surgiu do Deus
Cronos4 na Mitologia Clássica, o qual é a representação do tempo5. Por essa
vertente, de acordo com Bender e Laurito (1993), a palavra grega chronos
significa “tempo”. Partindo dessa premissa, a crônica tem caráter de produção
meramente informativa e histórica no momento em que narra, pois o cronista
relata os acontecimentos históricos de acordo com o seu ponto de vista. Bender e
Laurito (1993) citam como exemplo os registros feitos por Fernão Lopes6 no
século XIV em Portugal.
De acordo com essas características supracitadas, os registros de cada
época estavam intimamente ligados ao contexto histórico que uma determinada
sociedade vivia. Assim, como exemplo no Brasil, Pero Vaz de Caminha, o
escrivão da armada de Pedro Álvares Cabral, descreve em uma carta7 suas
impressões ao rei D. Manuel sobre as descobertas do Brasil em 1500. Caminha
conta, detalhadamente, o que encontra nas terras descobertas, e retomando a
ideia de que a crônica é um registro do passado, a carta escrita por Caminha
relata isso, o seu ponto de vista sobre o que estava observando em uma terra
4 Filho de Urano (o Céu) e de Gaia (a Terra), destronou o pai e casou com a própria irmã, Réia.
Urano e Gaia, conhecedores do futuro, predisseram-lhe, então, que ele seria, por sua vez, destronado por um dos filhos que gerasse. Para evitar a concretização da profecia, Cronos passou a devorar todos os filhos nascidos. Grávida, mais uma vez, Réia conseguiu enganar o marido, dando-lhe a comer uma pedra ao invés da criança recém-nascida. E assim, a profecia realizou-se Zeus, o último da prole divina, conseguindo sobreviver, deu a Cronos uma droga que fez ele vomitar todos os filhos que havia engolido. E liderou uma guerra contra o pai, que acabou sendo devorado por todos os filhos. (BENDER e LAURITO, 1993). 5 A lenda de Cronos é a de que o tempo, em sua passagem fatal, engole tudo o que é criado e
tudo o que é criatura. (BENDER e LAURITO, 1993). 6Em 1434, Fernão Lopes, por ordem do então rei D. Duarte, foi nomeado cronista-mor do Reino,
com a atribuição de fazer os registros dos feitos dos antigos reis de Portugal até o reinado de D. Duarte. (BENDER; LAURITO, 1993, p. 12). 7Trecho da carta que Caminha conta a D. Manuel detalhes aparentemente insignificantes, tais
como: “(...) E daqui mandou o Capitão a Nicolau Coelho e Bartolomeu Dias que fossem em terra e levassem aqueles dois homens e os deixassem ir com seu arco e setas. Aos quais mandou dar a cada um uma camisa nova, uma carapuça vermelha, e um rosário de cordas brancas de osso, que lês levaram nos braços, e cascavéis e campainhas. E mandou com eles para ficar lá um mancebo degredado, criado de D. João Telo, a quem chamam Afonso Ribeiro, para andar lá com eles e saber de seu viver e maneiras. E a mim mandou que fosse com Nicolau Coelho”. (JORGE de SÁ, 1999, p. 06).
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nova a destinatários que receberiam esse texto, somente um tempo depois. Por
essa vertente, percebemos que o conceito da crônica foi se ampliando, pois não
somente narrava os fatos, mas começara a relatá-los de acordo com a
representação do modo de vida em sociedade. Portanto, a crônica passou a
reproduzir os fatos, utilizando recursos literários que oferecem ao cronista novas
formas de construir a história.
Dessa forma, no passar dos anos, o termo “crônica” mudou de sentido em
sua evolução, porém não perdeu vínculos com o aspecto etimológico da palavra,
que é o resgate do tempo. Para elucidar essa afirmativa, Bender e Laurito (1993,
p.11) enfatizam que “a crônica está sempre ligada à ideia contida no radical que a
designa: assim, seja um registro do passado, seja um flagrante do presente, a
crônica é sempre um resgate do tempo”. Desse modo, mesmo designada como
registro de eventos cotidianos ou passados, de qualquer forma a crônica está
ligada ao tempo.
A trajetória histórica da crônica, em diferentes períodos, passou por
transformações tanto nas características quanto no modo de produção dos
cronistas e essas mudanças explanamos no próximo item.
1.2 A evolução da crônica com o passar dos séculos
No começo de sua história, a crônica era construída apenas como um
breve relato de eventos. Na sua estrutura, o mais importante era a organização
cronológica dos eventos e não havia a preocupação em interpretar a narrativa dos
fatos. Nesse contexto, Pereira (2004) defende a ideia de que:
A noção de crônica, enquanto mero relato cronológico dos eventos sociais, tem uma extensão semântica muito pobre. Nesse sentido, ela ficaria cada vez mais incompreensível haja vista que a noção de tempo se torna distinta quando buscamos interpretá-la através da evolução de sociedades diferentes (p. 17)
Acerca dessa afirmativa, podemos pensar que a crônica, como mero relato
narrado cronologicamente, não conseguiria representar os diferentes tempos que
a sociedade vive. As mudanças na sociedade, sejam elas políticas, culturais ou
econômicas, evoluem de geração em geração, e o modo de viver e pensar
influencia diretamente no comportamento das pessoas. Portanto, os fatos
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narrados apenas cronologicamente não poderiam construir e interpretar de forma
satisfatória essa evolução.
Nessa mesma vertente, o conceito antigo de crônica como registro de fatos
históricos continuou na concepção moderna e se estruturou a partir do século XIX
com o advento da literatura jornalística, que está ligada aos folhetins8.Para
Bender e Laurito (1993, p. 15-16), “há duas espécies de folhetins no século XIX: o
folhetim-romance e o folhetim-variedades”. O primeiro se refere aos textos de
ficção, antecedendo as radionovelas e telefones do século XX: os romances em
capítulos. Alguns romances mais conhecidos que foram publicados na imprensa
em forma de folhetim foram: O Guarani, de José de Alencar, O Ateneu, de Raúl
Pompéia, O triste fim de Policarpo Quaresma, de Lima Barreto, são alguns
exemplos. O segundo – folhetim-variedades – se detinha em publicar matérias
variadas dos fatos que registravam a vida cotidiana das comunidades, do país, e
até do mundo. Nessa perspectiva, os escritores da época recorriam à imprensa
para publicar suas narrativas. Grandes contribuidores nas produções de folhetins
do século XIX foram Raúl Pompéia, Manuel Antônio de Almeida, José de Alencar
e o Machado de Assis.
A partir dos anos 1930, outros escritores desenvolveram novas formas do
narrar literário, e, deram assim, uma dimensão especial à crônica. Foram: Carlos
Drummond de Andrade, Rubem Braga, e Fernando Sabino os principais
mentores. Dentro desse contexto, o que o cronista detinha era a necessidade de
encontrar nuances estéticos para produzir à narrativa. Pereira (2004, p. 43) deixa
claro que “isso torna o cronista uma espécie de ‘artista’ no espaço jornalístico, por
que ao invés de emprestar seu talento à capacidade de informação, busca
construir outro universo de significados para interpretar os fatos sociais”. Dessa
forma, no século XIX a crônica conquista um espaço e adquire sua autonomia
estética. Como ressalta Pereira (2004):
O cronista do século XIX começa a reestruturar seus escritos, fazendo com que o texto não traga apenas as marcas do literário como sinônimo de evolução da crônica, mas busca novas formas de expressão para
8 Era uma seção nos rodapés das páginas dos jornais reservada para o registro de
acontecimentos e comentários sobre os mais diferentes assuntos. Além disso, o folhetim quebrava a rotina e o estilo pesado do jornal tradicional. Melo (2003) contribui para dizer segundo a definição de Coutinho, de que o berço do folhetim começou em dois de dezembro de 1852, em que Francisco Otaviano, inaugura a seção “A Semana”, no Jornal do Comércio, do Rio de Janeiro.
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obter unidade estética no exercício da crônica, avançando diante da concepção historicista e da necessidade de revelar fatos (p. 23).
Assim, os cronistas do século XIX tentam compreender o funcionamento da
sociedade para narrar os fatos, pois eles percebem que não é possível fazer isso
sem se aproximar das experiências vividas das pessoas em um determinado
momento. Como diz Pereira (2004, p. 24), “o cronista não terá mais a obrigação
de agrupar os fatos em função de um tempo preestabelecido”. Sendo assim, ele
percebe que é impossível contar a história em ordem cronológica dos fatos, e
busca na literatura9 recursos para construir suas ideias, reflexões e impressões
pessoais daquele momento narrado.
Nessa perspectiva, os cronistas encontram possibilidades de reconstruir os
enunciados dentro do espaço jornalístico para mostrar novas visões de mundo ao
leitor. Com isso, utilizando novas linguagens para construir o cotidiano, o cronista
prolonga o tempo da narrativa jornalística.
A crônica moderna configura-se como gênero eminentemente jornalístico. Suas características fundamentais são: fidelidade ao cotidiano, pela vinculação temática que mantém em relação ao que está acontecendo, aqui e agora; crítica social, que corresponde entrar fundo no significado dos atos e sentimentos do homem. (MELO, 2003, p. 157).
A definição que Melo constrói sobre o gênero “crônica” nos meios
jornalísticos é formada com base nas características de que os fatos são gerados
a partir do cotidiano e recriados além da capacidade de apenas contá-los, mas de
reconstruí-los por meio de recursos da linguagem literária.
Assim, podemos observar que a crônica vai se redefinindo com o passar
dos séculos, pois encontra novas maneiras de narrar. Porém, ao mesmo tempo,
precisa se readequar aos novos sistemas dos meios impressos, isso porque se no
meio jornalístico, no século XIX, o folhetim ocupava uma pequena parte do jornal,
a crônica moderna se torna mais curta e são poucos assuntos comentados.
Nesse aspecto, Bender e Laurito (1993) salientam:
Nos tempos atuais, dificilmente essa multiplicidade de assuntos estaria delimitada numa única seção do jornal. Isso porque, com a evolução da imprensa, o abrangente folhetim de variedades do século XIX foi
9 Evidenciamos o recurso da Literatura, pois, entendemos que a linguagem literária está envolta de maior
subjetividade.
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desaparecendo, para dar lugar a seções especializadas de articulistas, comentaristas, analistas e críticos, ou seja, jornalistas também especializados em determinadas matérias. Entre eles, o que se chama hoje de cronista, o especializado em tudo ou nada. Melhor dizendo, aquele escritor-jornalista que, ao mesmo tempo, prende e solta a sua imaginação criadora num espaço específico e bem caracterizado da imprensa diária ou periódica. (p. 22).
Desde o período do folhetim até a crônica moderna podemos notar como
esse gênero se desenvolve com o tempo, e as características que vão a
redefinindo. Nesse sentido, podemos citar o autor que compõe o corpus dessa
pesquisa: Juremir Machado. Ocupando-se da proposição de Laurito e Bender
(1993), podemos afirmar que pode ser chamado de “escritor-jornalista” (p.22), já
que Juremir procura trabalhar os mais variados temas em suas produções, seja
política, economia, saúde, cultura, social ou temais gerais, tendo a liberdade de
reconstruí-las numa mesma ou em diferentes seções espalhadas pelo jornal
impresso. Assim, como poucos, tornou-se um escritor10 especializado em vários
assuntos utilizando os processos e recursos disponíveis na literatura para compor
seus textos e transpor ao leitor maneiras mais críticas de interpretar os
acontecimentos do dia a dia.
Assim, ao longo de seu percurso histórico, a crônica foi definindo-se em
busca de novos fazeres literários, a fim dos cronistas encontrarem novos
significados para o entendimento da realidade de determinadas épocas. Nessa
perspectiva, a seguir, abordamos as transformações ao longo dessa trajetória.
1.3 O hibridismo da literatura e o jornalismo nos espaços jornalísticos
O jornalismo e a literatura se conectam no momento que o primeiro tem
como base a informação, mas se utiliza da linguagem literária para demonstrar
outras formas de percepção sobre os fatos sociais.
No século XIX, por meio da construção da narrativa pelo hibridismo que
permeia pelo jornalismo e pela literatura, a presença dos escritores no jornalismo
informativo no Brasil começou a se tornar atraente, e consequentemente, a
literatura sofreu a influência do jornalismo na maneira com que os cronistas
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A produção textual desse narrador se aproxima da “crônica-ensaio”, que de acordo com Lago (1990), apresenta uma visão crítica dos fatos sociais e se aproxima do ensaio pela argumentatividade de análise e reflexão.
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aproximaram-se das questões sociais para produzir suas narrativas. Em tal
perspectiva, os textos informativos e textos opinativos se configuraram para
construir novas formas do fazer jornalístico nos espaços dos jornais. Dentre os
cronistas modernos do século XXI, podemos citar alguns, como Martha Medeiros,
Luis Fernando Veríssimo, Carlos Heitor Cony além das narrativas de Juremir
Machado, os quais constroem por meio desses dois campos de conhecimento,
novos modelos de discursos para retratar a realidade e a condições sociais.
Entretanto, Pereira (2004) ressalta que as produções, nos diferentes
espaços do jornal, precisam seguir distintos critérios para construir as narrativas,
pois algumas devem ser mais objetivas e diretas do que outras. Dessa forma, o
cronista não depende da linguagem que o jornalismo impresso utiliza para
reconstruir os fatos. Ele usa os vários recursos da linguagem para reproduzir suas
narrativas, acrescentando outros modos como a subjetividade e o ponto de vista
no fazer jornalístico para recontar os acontecimentos. Seguindo essa ideia,
Pereira (2004, p. 141) declara que “a crônica dá um novo tempo narrativo no
interior dos jornais, acrescenta relações semânticas que enriquecem a linguagem
referencial do jornalismo informativo”.Conforme analisa o autor, a crônica pode
ser definida como uma categoria que propõe recriar novos significados às duras11
técnicas de produção que o jornalismo utiliza, e, assim, fazer com que o leitor
busque encontrar sentidos para os fatos narrados. Isso acontece pela liberdade
que a crônica possui de apresentar uma multiplicidade de discursos e amplos
significados para recriar os acontecimentos na narrativa. Pereira (2004, p. 143),
portanto ressalta “(...) o cronista moderno, antes de tudo, é um problematizador
do espaço jornalístico”. Ou seja, o cronista moderno encontra novos métodos de
produção para transformar o espaço de produção jornalística em algo que dê
mais sentido, reflexão aos fatos narrados.
Nessa vertente, podemos afirmar que tanto a literatura quanto o jornalismo
contribuem para reproduzir a realidade da vida cotidiana na tentativa de
compreendermos melhor o mundo em que vivemos. O jornalismo como forma de
recontar os fatos de maneira objetiva, mas incrementado pelos artifícios de
11
Na teoria de construção dos textos jornalísticos empregada pelas instituições, o jornalista pré cisa seguir regras marcadas pela objetividade, exatidão, veracidade, e imparcialidade. Como diz Melo (2003), o jornalista se move circulando entre o dever de informar, registrando honestamente o que observa, e o poder de opinar que pode ser ou não aceita pela instituição em que atua.
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linguagem da literatura concede uma nova configuração à construção dos textos.
Acerca dessa ideia, Melo (2003) salienta que a crônica possui um espaço
privilegiado do relato do poético, tornando-se um recurso de intervenção social
incessante dos jornalistas que se ocupam do território do real e se expressam por
meio da poesia. Sendo assim, o jornalista tem a possibilidade de encontrar nos
nuances estéticos da literatura ou da poesia, novas dimensões para produzir a
narrativa, e, assim, gerar sentidos para que a sociedade possa interpretar e
compreender os acontecimentos.
Assim, Beltrão (1980 apud Melo, 2003, p. 157) propõe classificações
quanto às tipologias de crônica e quanto ao tratamento que lhe dá o cronista. A
partir disso, separa em: crônica geral que trata de assuntos variados; a crônica
local que traz a opinião pública de uma determinada comunidade; a crônica
especializada que aborda temáticas referentes a um determinado campo
específico; a crônica sentimental que tem como intenção influenciar a ação
desenvolvida na narrativa; e a crônica satírico-humorística que tem como objetivo
criticar, ridicularizando ou ironizando fatos, ações, personagens assumindo feição
caricatural.
Para sustentar essa ideia, Baldam e Segatto (1999, p. 40) discorrem que “o
texto sempre expressa, traduz, sugere ou induz alguma forma de percepção,
compreensão, entendimento, representação ou fabulação.” Ou seja, a relação
entre os acontecimentos e os sujeitos inseridos numa realidade produz sentidos
que permitem conhecer, informar, dando a possibilidade de ampliar as condições
dos sujeitos se constituírem perante ao mundo em que vivem. A crônica é um
exemplo disso. No espaço jornalístico, ela possui uma independência estética,
pois tem a liberdade de explorar várias linguagens para reproduzir os fatos
noticiosos sem se restringir a um só gênero, mas utiliza tanto o recurso
jornalístico que aborda acontecimentos factuais, quanto o recurso literário que
permite construir e reconstruir os fatos cotidianos de maneira criativa. Assim, a
partir das características da crônica explanadas, a seguir, veremos a metodologia
utilizada para desenvolver esta pesquisa.
2 Procedimentos Metodológicos
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Para a realização deste trabalho, são adotados procedimentos de análise
da forma e do conteúdo das narrativas de Juremir Machado no jornal Correio do
Povo entre os meses de fevereiro e março de 2015, sendo que analisamos os
dias, sábado e domingo, respectivamente totalizando duas crônicas estudadas.
Para isso, são adotados referenciais teóricos de textos que abordam a forma de
análise do conteúdo.
Nessa perspectiva, a análise de conteúdo ajuda a entender sobre a
construção da narrativa da crônica. Dessa forma, Herscovitz (2007, p. 125)
caracteriza a análise de conteúdo como “um método eficiente e replicável que
serve para avaliar um grande número de informação manifesta cujas palavras,
frases, parágrafos podem ser reduzidas a regras explícitas com o objetivo de
fazer inferências lógicas sobre as mensagens”.Nessa vertente, analisamos como
Juremir Machado desenvolve sua narrativa por meio do hibridismo entre os
elementos jornalísticos com a intenção de contextualizar um acontecimento e
estabelecer outros modos de interpretação explorados pelos recursos estéticos da
literatura. Nesse sentido, ao explorar esses elementos dentro da narrativa o
consideramos como um cronista.
Além disso, de acordo com McCombs (2004 apud JORGE, 2007), “essa
análise permite obter uma amostra aleatória da informação contida nos meios de
comunicação, evitando distorções como as que poderiam acontecer em uma
coleta seguida”. Nesse contexto, utilizamos esse método para perceber como
decorre essa “construção” no uso dos elementos jornalísticos e literários
presentes na elaboração dos textos nos diferentes períodos analisados.
Entretanto, pela extensão da pesquisa, não teríamos como analisar todos os
meses, então, optamos por dar conta do objetivo geral da pesquisa que é
evidenciar que o texto do autor pode ser considerado como crônica e não coluna.
Para desenvolver as análises, iniciamos com o referencial teórico sobre o
conceito “crônica”, sua evolução no contexto histórico e a ligação do hibridismo
entre o jornalismo e a literatura para dar subsídios ao relacionar aos textos de
Juremir Machado. Dentre essas características, em cada análise investigamos a
presença desses elementos e, para fundamentar cada um deles, utilizamos
autores que dão veracidade às informações encontradas.
Por fim, é possível perceber que a análise do conteúdo das narrativas
propostas permite criar múltiplas interpretações no momento em que as
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mensagens que o narrador emite ao transparecer uma ideia estabelecem
relações com o receptor considerando que o objetivo é investigar como o narrador
estrutura a linguagem, a quem ele se dirige, com quais intenções possibilitando a
demonstração de dados significativos numa abordagem qualitativa da narrativa no
período analisado. A seguir, explicitamos o resultado dessa pesquisa.
3 Análise dos Resultados
Análise 1
No texto “Mostra a tua cara”, publicado dia 7 de fevereiro de 2015, o
narrador explica sobre o evento cultural “Teatro Net” que são apresentações
culturais que acontecem no Teatro Tereza Rachel no Rio de Janeiro e que no
musical “Cazuza” conta a história de vida desse cantor, compositor e poeta
brasileiro. Além disso, o narrador relaciona os problemas políticos que o país
vivencia atualmente ao que Cazuza retratava em suas músicas quando
questionava o sistema político brasileiro e as dificuldades sociais de uma época.
Por meio da descrição da crônica, encontramos elementos no decorrer do
texto como a contextualização de eventos sociais, a representação de um
personagem que marcou a história cultural do país, um jogo de argumentação
para a interpretação dos fatos, a intertextualidade, o ponto de vista refletido pelo
escritor, a utilização de figuras de linguagem para estruturar o discurso além da
interação com o leitor.
Nesse contexto, Melo (2003) revela que a crônica é um dos gêneros que
assume feição eminentemente opinativa, explicitando juízos de valor, buscando
influenciar o público a que se dirigem. Podemos então referenciar o fragmento
“Está faltando ideologia, criatividade e um Cazuza na parada.” para demonstrar a
opinião do jornalista-narrador que de forma representativa se posiciona para
caracterizar o personagem, relacionando-o ao contexto do país para ligar a ideia
de que Cazuza foi um grande compositor e crítico diante as problemáticas sociais
sendo que o narrador induz que o país precisa de mais “Cazuzas” assim, no
sentido de que esse personagem foi referência na história cultural do Brasil.
Nessa perspectiva, encontramos elementos argumentativos na crônica
que, conforme analisa Koch (2008), o ato de argumentar é visto como o ato de
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persuadir, envolvendo a subjetividade e sentimentos. A partir disso, o narrador
utiliza recursos satírico-humanísticos que podemos perceber no trecho “A cara do
Brasil está suja. A Lava-Jato quase não dá conta de lavar tudo.”, como o
jornalista-narrador critica metaforicamente com certo humor o escândalo político
quando se refere ao grande esquema de lavagem de dinheiro e desvio
envolvendo a Petrobrás, grandes empreiteiras do país e políticos. Nesse excerto,
o narrador relaciona esse trecho a outro quando diz que “O número de belas
canções de Cazuza é impressionante. A música dele tinha pegada e atitude. Está
faltando (...) um Cazuza na parada.” no sentido de que faltam indivíduos ou a
própria sociedade em conjunto criarideologias para “limpar” os problemas do
Brasil.
De acordo com essa premissa, podemos analisar o processo de
comunicação que o narrador constrói com o leitor, que, como ressalta Pereira
(2004, p.138), “o exercício da crônica é uma constante reelaboração dos temas
que trazem ao leitor uma carga de significados fora da ‘temporalidade’ dos
jornais”, o que percebemos no fragmento “A cara do Brasil é um grande negócio.
Só nós não somos sócios. Povo serve para alimentar e pagar o pato.” quando o
narrador responde a um trecho da música original de Cazuza “Brasil, qual é o teu
negócio?/ O nome do teu sócio/ Confia em mim.”, quando referencia a sociedade
como os mais prejudicados pela consequência da corrupção no país, pois todos
os cortes em vários setores da economia afetam diretamente a população.
Com a intenção de instigar a percepção dos leitores pelo assunto
abordado, Koch (2008) afirma que o argumento orienta o discurso a determinadas
conclusões. Dessa forma, o narrador traz na crônica fragmentos das músicas de
Cazuza como: “Brasil/ Mostra tua cara/ Quero ver quem paga/ Pra gente ficar
assim”, “Não me convidaram/ Pra essa festa pobre/ Que os homens armaram/ Pra
me convencer/Toda essa droga/ Que já vem malhada antes de eu nascer”, “Meu
heróis morreram de overdose/ Meus inimigos estão no poder”. Essas são
mensagens que representam a época em que Cazuza viveu de crises nos
partidos políticos e na queda da ditadura militar. Nessa perspectiva, o título da
crônica “Mostra a tua cara” reflete a composição da música “Brasil” de Cazuza
que o narrador constrói para questionar a situação política que como Cazuza, a
sociedade vive atualmente. Aqui, podemos relacionar a intertextualidade, que
segundo Compagnon (1996, p. 85), “apela para a competência do leitor, já que,
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numa citação, se fazem presente dois textos cuja relação não é de equivalência,
nem de redundância”. Por esse excerto, o leitor precisa estar atento e reconhecer
essa interpretação para entender o contexto inserido quando o narrador constrói o
título em alusão a música de Cazuza.
Percebemos, então, que o jornalista-narrador constrói uma relação entre a
cultura do cantor Cazuza e as suas proposições sociais observadas nas letras de
suas músicas. Nas suas composições, Cazuza busca constantemente uma
ideologia pra viver, na qual podemos fazer alusão à música “Ideologia”. Assim, em
seu discurso criou uma ideologia crítica que funde em ideais políticos, valores
morais e a luta por uma sociedade menos desigual que assim o consagrou como
um dos maiores compositores do país. Dessa forma, o narrador tem a
possibilidade de reconstruir, por meio do hibridismo, os acontecimentos factuais
do jornalismo que retrata a realidade social com um jogo de linguagens da
literatura que permite um tom subjetivo de opinar para confrontar e instigar novos
olhares acerca do assunto abordado, dando possibilidades de interpretações aos
leitores sobre as causas e consequências sociais que Cazuza tanto ressalta em
suas letras musicais.
Análise 2
No texto intitulado “Governo Atolado”, publicado no dia 01 de março de
2015, o narrador conta os momentos difíceis que o Brasil está vivendo no governo
de Dilma Rousseff. Entre eles, os protestos dos caminhoneiros sendo que uma
das reclamações é o aumento do diesel no país num momento que há queda dos
preços do petróleo. Outra polêmica envolve a economia do país, à qual o escritor
faz duras críticas ao escândalo de corrupção envolvendo pessoas que trabalham
na maior empresa produtora de petróleo do mundo, a Petrobrás. Além disso,
houve corte de gastos em vários setores da economia no país, principalmente na
educação.
De acordo com a descrição do texto, podemos pontuar a presença de
elementos característicos da crônica, como a contextualização de um
acontecimento de relevância social, o uso da linguagem coloquial, a utilização dos
recursos literários para melhor interpretação dos fatos sociais e a subjetividade
representativa do narrador. Em tal perspectiva, podemos referenciar Melo (2003)
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quando relata que uma das características da crônica é a fidelidade ao cotidiano
por manter relação ao que está acontecendo aqui e agora. Nesse contexto,
percebemos nos trechos “O diesel está muito caro numa época de queda dos
preços do petróleo e da roubalheira da Petrobrás” e “O Ministério da Educação
(MEC) cortou 64,6% das 11 mil bolsas previstas para a edição desse ano do
programa Jovens Talentos para Ciência.” a maneira de contextualização dos fatos
presentes e a presença da intertextualidade ao trazer dados sobre contexto
explicitado que se pauta o jornalismo como função de informar e esclarecer ao
leitor.
Além disso, o narrador busca novos significados, por meio das metáforas,
para retratar osfatos. Por esse viés, Melo (2003, p.156) revela que “os cronistas
realizam uma tradução livre da realidade principal, acrescentando ironia e humor
à chatice do cotidiano”. Sob essa perspectiva, nos fragmentos “Só pode ser o
efeito dos 7 a 1 que levamos da Alemanha.” e “Que tempos fantásticos!”
encontramos a linguagem metafórica no momento em que o narrador faz uma
comparação subentendida quando resgata o placar da Copa do Mundo de 2014
quando Brasil perdeu de 7 a 1 para Alemanha relacionado-os aos gastos
excessivos que o governo brasileiro realizou para a preparação da Copa do
Mundo no Brasil além dos esquemas de corrupção nesse período. Essas
prerrogativas podem ser contextualizadas, quando, no contexto atual, faz
referência aos cortes de gastos na educação, a aprovação de passagens aéreas
a cônjuges de deputados, ao desvio de verbas públicas pelos parlamentares entre
outros escândalos no sistema político e econômico do Brasil.
Dentro desse contexto, Koch (2008) traz a ideia de que o subentendido dá
às suas palavras um dado sentido em que orienta a interpretação para uma certa
leitura. Dessa forma, percebemos que o narrador constrói um título bastante
sugestivo, “Governo Atolado”, para caracterizar e provocar a sociedade a refletir
acerca do momento complicado em que o país se encontra.
Com a caracterização da subjetividade presente no discurso da crônica,
Koch (2008) estabelece a ideia de que toda a atividade de interpretação presente
no cotidiano da linguagem fundamenta-se na suposição de que quem fala tem
certas intenções ao comunicar-se. Assim, percebemos no fragmento “Para tentar
sair do buraco negro, o governo quer atolar os menos aquinhoados ceifando
direitos trabalhistas com o apoio aos velhos cães de guarda da mídia lacerdista.” -
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que se refere no sentido de apoio do jornalista Carlos Lacerda que no passado
fez campanha contra o governo do Partido dos Trabalhadores, representado hoje
pela presidente Dilma Rousseff, e também na época do presidente Getúlio
Vargas, JK, e Jango quando esses estavam no comando do país. Esses dados
não ficam evidentes na crônica - que o narrador critica as formas com que o
governo conduz os problemas do país em que o mais prejudicado se torna a
sociedade.
Para estruturar o discurso, Sá (1999, p. 11) traz a ideia de que “o
coloquialismo deixa de ser a transição exata de uma frase ouvida na rua, para a
elaboração de um diálogo entre o cronista e o leitor”. Nessa relação, encontramos
no fragmento “Para convencer a plebe a engolir o pepino, insinua que vai taxar
grandes fortunas e acabar com o fator previdenciário”. Na expressão “engolir o
pepino”, observamos que o narrador se refere ao termo em um tom coloquial para
criticar como a sociedade tem que aceitar as situações problemáticas que o
governo se insere. Com isso, esse diálogo com o leitor por meio de uma
linguagem mais próxima do cotidiano permite a aproximação do narrador-leitor e
ao tema proposto na realidade.
Ao fim, as características das crônicas presentes no decorrer da narrativa
estabelecem relação com o hibridismo entre o jornalismo e a literatura a ponto de
retratar um acontecimento factual presenciado pela sociedade, mas, além disso,
propor novas formas de linguagem como a literária para desenvolver um diálogo
mais próximo do leitor e por meio da subjetividade do jornalista-narrador construir
outras percepções mais reflexivas acerca do tema proposto.
4 Considerações finais
Com base nos pressupostos desse trabalho, analisamos como Juremir
Machado reconstrói a realidade social por meio do hibridismo entre o jornalismo e
a literatura e percebemos que o escritor se pauta do jornalismo, que se ocupa em
informar aos leitores os acontecimentos abordados, mas se apropria dos recursos
da literatura para instigar outras formas de interpretação dos fatos sociais.
Para subsidiar essa pesquisa, utilizamos referência de autores que
contribuem para explicitar a crônica no contexto histórico, suas características e o
encontro da crônica entre o jornalismo e a literatura. Em conseguinte, com o
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passar do tempo, observamos que a crônica foi definindo-se pela maior liberdade
de explorar os elementos linguísticos dentro da narrativa, e não somente relatar
os eventos sem a preocupação de interpretar os fatos sociais como se
configurava a crônica no início histórico na Mitologia Clássica.
De acordo com as análises realizadas, percebemos que Juremir Machado
retrata em suas crônicas os acontecimentos cotidianos da sociedade e entre os
assuntos abordados estão a explanação de acontecimentos históricos e a crítica
ao sistema político do país. Nas crônicas analisadas, percebemos que as
temáticas se repetem em torno de temáticas de relevância social, que, como
revela a Teoria do Agendamento, é a forma de selecionar na agenda pública, os
assuntos mais importantes. Entre os fatos explicitados, o narrador critica as
problemáticas sociais com a intenção de instigar o senso reflexivo dos leitores.
Além disso, o escritor utiliza a linguagem coloquial, os elementos estéticos da
literatura, as figurações de ironia, metáforas e a subjetividade para desenvolver
argumentos diante da realidade social.
Dessa forma, a partir dos textos do jornalista narrador percebemos o quão
ele representa a realidade em que vivemos quando revela as problemáticas do
país como a corrupção, a queda da economia, os cortes de gastos em vários
setores, a falta de compromisso dos políticos com o povo entre outras variadas
temáticas sendo que no decorrer das análises observamos que o narrador critica
de maneira contínua essas consequências sociais. Além disso, mostra que o
Brasil precisa de grandes mudanças no governo para resolver ou amenizar os
problemas políticos, econômicos e sociais na qual o país se encontra.
Com essas investigações, observamos a importância desse estudo no
momento em que a crônica transforma a realidade social quando se apropria das
diversas linguagens - tanto jornalísticas quanto literárias – para construir a
narrativa e a produção jornalística quando traz novos significados por meio desse
hibridismo entre o jornalismo e a literatura para atrair os leitores e, de certo modo,
se afastar dos métodos do jornalismo diário. Assim, a crônica estabelece relações
ao relatar os acontecimentos cotidianos, mas, vai além ao momento em que traz
elementos ao texto que permite reflexões sobre fatos que o jornalismo tradicional
não mostra e que o senso comum não vê.
Outros estudos que possam contribuir dentro do contexto do gênero
crônica são os textos do jornalista e escritor brasileiro, Carlos Heitor Cony,
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colunista da Folha de São Paulo, que se pauta das características do hibridismo
entre o jornalismo e a literatura para construir suas narrativas. Tal como Juremir
Machado, Carlos Heitor Cony aponta em seus textos assuntos de relevância e
crítica social e nesse meio utiliza elementos como a linguagem coloquial, o
subjetivismo e a interação com o leitor característicos da crônica o que os justifica
como objetos de pesquisas.
REFERÊNCIAS
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A REPRESENTAÇÃO DA VIOLÊNCIA SOCIAL: UMA ANÁLISE COMPARATISTA ENTRE A OBRA FÍLMICA ALEMÃO E O CONTO
“ANGU DE SANGUE”
Lilian Raquel Amorim de Quadra Michele Neitzke
RESUMO Este trabalho aborda a representação da violência social em diferentes obras artísticas associando, no processo de interpretação dois textos. Objetiva-se, neste estudo, comparar a violência social em diferentes contextos. Para desenvolver esta proposta foi abordada a pesquisa bibliográfica e o método comparatista da Literatura Comparada que fundamenta o cotejo de obras artísticas de natureza distinta. A análise comparatista envolve o exame de dois objetos: o literário e o fílmico. Para isso, são cotejados o filme Alemão dirigido por José Eduardo Belmonte e o conto “Angu de sangue” do livro Angu de Sangue de Marcelino Freire. O estudo está aparado teoricamente em preposições de Henry Remak, comparatista americano e em autores que discorrem sobre a violência social.
Palavras-chave: Alemão. Angu de Sangue. Comparatismo.
ABSTRACT This work addresses the representation of social violence in different artistic works involving, in the process of interpretation, two texts. The objective in this study is to compare social violence in different contexts. To develop this work, it was used the comparative method of Comparative Literature underlying the comparison of artistic works of different nature. The comparative analysis involves the examination of two objects: the literary and filmic. It was compared the movie Alemão, directed by José Eduardo Belmonte and the tale Angu de Sangue, from the writer Marcelino Freire. The study is theoretically trimmed in prepositions Henry Remak, American comparatist.
Keywords: Alemão. Angu de Sangue. Comparatism.
Introdução
A violência não é um tema novo nos debates que discorrem de narrativas
literárias e não literárias, e as quais se encaixam no contexto brasileiro
contemporâneo, pois como comenta Aléssio (2004, p.1), “Esse tema tem
despertado grande interesse tanto do ponto de vista acadêmico, na medida em
que se constitui objeto atual de debates entre intelectuais, quanto no âmbito
social, uma vez que se constitui em fonte de preocupação para a sociedade como
um todo”. Uma vez que, a violência é constituinte da cultura brasileira, como um
elemento fundador a partir do qual se organiza a ordem social, como nos afirma
Pelegrini (2004, p.134),
a história brasileira, transposta em temas literários, comporta uma violência de múltiplos matizes, tons e semitons, que pode ser encontrada
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assim desde as origens, tanto em prosa quanto em poesia: a conquista, a ocupação, a colonização, o aniquilamento dos índios, a escravidão, as lutas pela independência, a formação das cidades e dos latifúndios, os processos de industrialização, o imperialismo, as ditaduras...
Nesse sentido, a cultura brasileira já vem desde suas origens
transportando a violência de várias formas, desde seu espaço urbano comenta
Silva (2014, p.1), “o espaço urbano brasileiro é marcado por forte desigualdade,
tanto na distribuição da população quanto nas atividades econômicas e também
culturais. Esses fatores, somados a outras mazelas como prostituição, drogas,
tráfico e corrupção assinalam os desníveis sociais no Brasil”.
Assim, pretende-se com este trabalho abordar a representação da violência
social a partir de dois objetos, o conto “Angu de sangue” de Marcelino Freire e a
obra fílmica Alemão, a fim de abordar de que forma a violência aparece nas
narrativas, e como os sujeitos são constituídos. Para desenvolver esta proposta
foi abordada a pesquisa bibliográfica e o método comparatista da Literatura
Comparada de linha americana que fundamenta o cotejo de obras e autores de
natureza distinta, pois como comenta Remak (1994, p.175), a “literatura
comparada é o estudo da literatura além das fronteiras de um país específico é o
estudo das relações entre, por um lado, a literatura, e, por outro, diferentes áreas
do conhecimento e da crença”, permitindo uma compreensão mais completa da
literatura como um todo.
Nesse sentido, levando em consideração, os pressupostos da literatura
comparada e de autores que discorrem a cerca da violência social, o primeiro
objeto, abordado nesta analise comparatista, é o filme Alemão. Escrito por Gabriel
Martins, com direção de José Eduardo Belmonte. O filme foi lançado em 2014 e
tem como cenário social e político a invasão da polcíia e do exército, bem como a
instalação das Unidades de Polícia Pacificadora – UPPs, nas favelas da cidade
do Rio de Janeiro. Sobre o filme, Carlos (2014, p.1) nos comenta que,
As imagens factuais que abrem, encerram e surgem ao longo de “Alemão” evidenciam um dos aspectos essenciais do filme, mesmo que um texto posto no início alerte que a trama é uma obra de ficção, o contexto da ação recorre à ancoragem em fatos verídicos. A vantagem disso é atrair o público que acompanhou com sede se sangue o cerco e a invasão do Complexo do Alemão, no Rio, em novembro de 2010 e lança-lo numa ratoeira na qua a violência é onipresente, mas não espetacularizada como acontece de hábito na TV.
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A atenção do filme focaliza, mais precisamente, nos fatos que antecedem a
invasão no Complexo do Alemão, uma das maiores favelas do Rio de Janeiro
atualmente. Durante todo o filme, as notícias que são apresentadas na televisão
são notícias verdadeiras, as quais passaram na realidade na época dos ocorridos.
A trama gira em torno de cinco policiais infiltrados na favela: Branco, Samuel,
Carlinhos, Danilo e Doca, representados pelos respectivos atores Milhem Cortaz,
Caio Blat, Marcello Melo Jr.,Gabriel Braga Nunes eOtávio Müller. Logo no inicio
do filme suas identidades são reveladas em decorrência das notícias de invasão
da polícia no morro, e, assim, são obrigados a permanecer escondidos dos
traficantes que ainda dominam o local, os quais tem como chefe principal Playboy
(Cau Reymond).
A trama se passa no porão de uma pizzaria de propriedade de Doca, local
escolhido para acobertar a real identidade do policial e também local de encontro
entre os policiais infiltrados. Este espaço acaba servindo de abrigo quando suas
identidades são descobertas pelos traficantes e lá permanecem até a última cena,
momento este em que os traficantes descobrem o esconderijo e atacam os
policiais.
A violência representada no longa, demonstra uma realidade que assola as
favelas brasileiras. Além de muita pobreza, os morros são comandados por
violentos traficantes, que usam e abusam do seu poder para ameaçar a
população com a finalidade de atingir seu objetivo que é a venda de drogas. Além
disso, percebe-se que todos os integrantes da favela são pessoas jovens, tendo
até mesmo crianças, isso é decorrente da falta de perspectiva de vida na
comunidade violenta, pois nunca se tem conhecimento do amanhã, podendo os
integrantes estarem mortos devido a confrontos com policiais ou até mesmo
outros traficantes.
Percebe-se no filme as recorrentes cenas de violência, representadas
basicamente pela linguagem forte e agressiva que é utilizada tanto policiais
infiltrados, quanto pelos traficantes e outros moradores do morro. Exemplo disso é
uma cena bastante chocante, no qual é apresentada o momento em que um
colega policial, tentando entrar no morro para salvar seus companheiros, é
abordado pelos traficantes e torturado até a morte, nesta cena, mesmo não sendo
mostrada as imagens de forma clara, temos a partir dos sons do sofrimento do
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policial e em seguida o som de um disparo de arma de fogo, fazendo alusão ao
momento da morte do mesmo.
Seguindo a mesma temática temos no conto “Angu de Sangue”, o mesmo
grau de violência, tanto na forma de linguagem quanto na ação do personagem
principal. O conto esta inserido no livro, Angu de Sangue, publicado em 2000, do
autor brasileiro Marcelino Freire. O livro é uma reunião de dezesseis contos que
tem como base temas como a violência, a exclusão social, sujeitos a margem da
sociedade. Sobre o livro Pereira (2013, p. 1) nos comenta que:
Assim como existe a variedade de vozes no conjunto de contos que compõem o Angu de sangue, existe a variedade de formas de expressão da violência. Não se trata apenas da agressão cotidiana, mas também da violência verbal, da violência física, do abandono e, por fim, da estilização da violência por meio da representação de cenas (escritas ou sob a forma de imagens que compõem a obra) que adquirem um aspecto de normalidade frente a um cotidiano caótico e de desamparo social.
É neste contexto de violência urbana que o conto se ampara, a narrativa
inicia com um suposto assalto em um semáforo na cidade de São Paulo. No
decorrer da narrativa percebe-se que os papeis se invertem e que a vítima, na
verdade, era o bandido, o qual naquele momento do assalto já havia assassinado
a sua namorada em um momento de extrema violência, ou seja, em um primeiro
momento identifica-se uma pessoa de bem que está sendo assaltada, entretanto
no discorrer da narrativa percebemos que aquele mesmo jovem, naquela mesma
noite, já havia assassinado sua namorada, e posteriormente assassina também o
ladrão do semáforo, uma vez que o leva até o apartamento da jovem moça afim
de conseguir entregar mais dinheiro ao ladrão.
A linguagem do conto é informal e acessível, podendo identificar de forma
violenta o horrível dia a dia das pessoas em um grande centro urbano. Mesmo a
narrativa sendo construída a partir do jovem assaltado, o assaltante e a jovem
possuem algumas falas, sendo redigidas pelo narrador. A linguagem, ainda,
mescla-se entre as ações exercidas pelo protagonista e os seus pensamentos e
memórias a respeito do conturbado relacionamento amoroso com Elisa. Notamos
essa linguagem entrelaçada, no decorrer de toda a narrativa como é o caso do
seguinte trecho:
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A gente não entra (nem sai) da vida de uma pessoa assim, bruscamente. De uma esquina para outra tudo pode acontecer. Dei a carteira, saquei o cartão de crédito. Ele só quer o meu dinheiro, Elisa. Você é quem me ama. Não sou rico, mas sou dono do seu coração, não valho um tostão. Ninguém vale um tostão nessas horas, nenhum centavo (FREIRE, 2000, p. 69).
Sendo a narrativa construída em primeira pessoa, temos uma aproximação
com a obra, o que aumenta a violência, pois até mesmo nos pensamentos o
narrador predomina uma postura fria em relação aos acontecimentos, como se o
assalto e o assassinato fossem um fato corriqueiro e contínuo. Uma vez que ao
final da narrativa, ele retorna ao semáforo, a espera de um novo assalto, ou seja,
o jovem, o qual não possui nome, inicia e termina com a mesma cena, dentro de
um carro no semáforo de um grande cidade brasileira Tal afirmação percebemos,
a partir do trecho,
Por que não fujo? Batida de porta, correria, talvez a polícia, talvez só agora o vizinho teha ouvido o tiro. Corri ao quintal, liguei o carro, sumi até o próximo semáforo. Foi quando um homem estranho se aproximou, vejo que ele está mal-intencionado, vai querer entrar no meu carro, aproveitar que sinal esta fechado, Elisa, vai querer acabar outra vez com a minha vida (FREIRE, 2000, p. 74).
Percebemos a partir do conto que a violência é marcada pela pressão e
opressão que diariamente os brasileiros vivem, identificado na fala do jovem:
"Quando o bandido entrou e meu carro, eu pensava em Elisa, nervoso, tentava
esquecer o inferno que foi a nossa briga. Nem tive tempo de fugir do ladrão, nem
de escapar daquele pensamento. Preso no sinal de tra ̂nsito” (FREIRE, 2000, p.
69) Ainda o fato, do assalto se passar em uma cidade também aproxima a obra a
realidade uma vez que representa a condição de violência social, e urbana a qual
os brasileiros estão inseridos.
Outro fato que nos faz pensar a questão da violência a partir do conto é a
violência contra a mulher, quando entre os pensamentos, o jovem narrador relata
sobre a briga que acontecerá minutos antes do assalto no semáforo. Percebemos
a fragilidade da jovem que sem poder se defender é morta friamente. Notamos no
trecho:
Calma, calma, era tudo o que eu queria ter tido, calma. Busquei fôlego. Procurei pela parede apertar a luz da casa. Ascendi s sala destroçada, revirada, jogada num abismo. Minha nossa! Os móveis como espelhos
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quebrados. Travesseiros espumados. Paredes manchadas. Parecia que tinha passado por ali uma quadrilha, um rede-moinho, uma rajada de balas. Eu fui um monstro. Filho da puta, gritava Elisa. Filho da puta, a sua voz possuindo, como verme o meu pensamento.
Com base na teoria comparatista de linha americana a qual permite o
cotejo de obras distintas, percebemos que as obras possuem distanciamentos e
similaridades uma vez que são de natureza distintas, sendo uma, a obra literária e
outra de natureza fílmica, ambas aproximam-se quanto à temática que é a
violência social, a linguagem forte e violenta e em relação à mulher, uma vez que
nas duas narrativas as mulheres são deixadas em segundo plano e até mesmo,
são as vítimas da violência dos protagonistas e ainda por representarem cenas
cotidianas do contexto social brasileiro.
No caso do filme, percebemos a partir de algumas cenas reais, as quais
foram passadas nos telejornais da época, a situação em que se encontrava a
ocupação do morro do Alemão no Rio de Janeiro, e mesmo sendo uma obra
fictícia, notamos uma preocupação em representar a violência extrema a qual se
estabelecia entre os cinco policiais infiltrados e os bandidos do morro. Já no
conto, percebemos a partir da situação principal, um assalto no semáforo a
violência dos grandes centros, uma vez que os assaltos acontecem em grande
número neste espaço e ainda sobre a agressão a mulher. Na construção do
texto, as frases curtas, recurso este que aproxima o leitor a obra a partir da
oralidade do texto.
Estas realidades representadas tanto no conto quanto no filme, são o
reflexo do espaço urbano caótico, onde diariamente as pessoas lutam pela
sobrevivência de forma agressiva e sem se importar com o sofrimento alheio.
Referências
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GINZBURG, Jaime. Crítica em tempos de violência. São Paulo: Edusp, 2010. PELLEGRINI, Tânia. No fio da navalha: literatura e violência no Brasil de hoje. In: DALCASTAGNÈ, Regina (org.). Ver e imaginar o outro: alteridade, desigualdade, violência na literatura brasileira contemporânea. São Paulo: Horizonte, 2008. p. 41-56. ______As vozes da violência na cultura brasileira contemporânea. Crítica Marxista. 2004, p. 132 – 158. Disponível em:<http://www.ifch.unicamp.br/criticamarxista/arquivos_biblioteca/critica21-A-pelegrini.pdf> Acesso em: 21 set. 2015. PEREIRA, Marcio Roberto, BARBOSA, Sidney. Angu de sangue: mensagens e imagens sobre o desamparo social. Revista de Letras Dom Alberto. v. 1, jan./jul. 2013 Disponível em http://alb.com.br/arquivo-morto/edicoes_anteriores/anais17/txtcompletos/sem19/COLE_3562.pdf Acesso em: 29 junho 2015. SILVA, Denise Almeida; STACKE, Ana Alice P. da Silva. A representação da violência no espaço urbano contemporâneo em contos de Marcelino Freire. Antares: Letras e Humanidades. vol. 6 , n°11, 2014.
O VIÉS DA LEITURA EM UM ESTUDO COMPARATIVO DO CADERNO 2 DO JORNAL O ESTADO DE S. PAULO
Tonie Maria Gregory dos Santos Tatiane Milani
Larissa Bortoluzzi Rigo
RESUMO O presente artigo, resultado do estudo sobre jornalismo cultural (GOMES, 2009; GADINI, 2004), faz uma análise comparativa do Suplemento Literário do jornal O Estado de S. Paulo. Para tanto, essa pesquisa perpassa pelos conceitos de jornalismo especializado (TAVARES, 2009), e Cadernos de Cultura (PIZA, 2009; CARDOSO, 2010). A pesquisa observa as temáticas e a linguagem utilizada, levando em conta o público a que se dirigem e a representatividade do gênero opinião. Por meio da Análise de Conteúdo (BARDIN, 1977), é possível observar que há diferenças nas narrativas na relação balizadora entre editor/período. Desta forma, percebe-se que a partir de 2010, o viés configurativo de leituras se volta mais ao entretenimento, deixando o caráter informativo e interpretativo das narrativas em segundo plano.
Palavras-chave: Jornalismo Cultural. Suplemento Literário. Narrativas. O Estado de São Paulo.
ABSTRACT This article, result of the study on cultural journalism (GOMES, 2009; GADINI, 2004), makes a comparative analysis of the journal Literary Supplement O Estado de S. Paulo. To this end, this research permeates the concepts of specialized journalism (TAVARES, 2009), and cultural primers (PIZA, 2009; Cardoso, 2010). The survey looks at the issues and the language used, taking into account the public they target and the representativeness of its kind opinion. Through Content Analysis (Bardin, 1977), it can see that there are differences in the narratives in balizadora relationship between editor/period. Thus, it is clear that from 2010, the configuratively bias readings becomes more entertainment, leaving the informative and interpretive character of the background narrative. Keywords: Cultural journalism. Literary Supplement. Narratives. The State of São Paulo.
Considerações iniciais
As fronteiras epistemológicas, sobretudo, as suas delimitações, foram alvo
de estudos na área acadêmica nos séculos XIX e XX. Dentre essas reflexões,
uma proposição significativa é que um dos campos que pode conjugar elementos
em distintos enfoques, é a narrativa1. Nesse sentido, a inspiração para esse artigo
vem de reflexões nas narrativas do jornal O Estado de São Paulo em torno das
temáticas que se relacionam ao jornalismo cultural, história e literatura.
O corpus, compreendido por O Estado de São Paulo, além de ser um jornal
de referência, como fora mencionado, encontra-se - por se tratar de um veículo
1 O conceito é reconhecido pela proposição de Medina (2006) enquanto parte integrante do social:
“Sem essa produção cultural – narrativa – o humano ser não se expressa, não se afirma perante a desorganização e as inviabilidades da vida” (p. 67).
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impresso - no hall de qualidades como confiabilidade, credibilidade e eficácia. O
estudo foi publicado na obra de Sérgio Luiz Gadini, Interesses cruzados: a
produção da cultura no jornalismo brasileiro. O estudioso destaca quatro
levantamentos feitos por distintas instituições que atestam as características
supracitadas em jornais. A pesquisa realizada pelo instituto DataFolha, em cinco
capitais, São Paulo, Rio de Janeiro, Belo Horizonte, Salvador e Porto Alegre, em
2003 apontou a imprensa como, “a instituição com maior poder de influência e
maior prestígio, (...) numa lista de 12 instituições apresentadas e que incluía, além
da imprensa, presidência da república, ministérios, bancos e clubes de futebol”
(GADINI, 2009, p. 20).O autor destaca ainda outro estudo, dessa vez organizado
pela Ordem dos Advogados do Brasil, que revela que a credibilidade dos jornais
só perde para a Igreja. O que se pode confirmar com base nesses dados é a
importância que os dispositivos impressos possuem frente ao social.
Assim, considerando a interlocução, sobretudo, em reflexões que abarcam
a percepção do jornalismo enquanto construção social. Gadini (2009) elucida: “Ao
configurar uma forma singular de produção de conhecimento, o jornalismo torna-
se um mecanismo possível de construção social da realidade contemporânea” (p.
122) .Por esse viés, no sentido de produção, relacionado ao fazer jornalístico, e
tomando como confluência o campo do jornalismo e seus âmbitos culturais,
históricos e sociais, a proposta deste artigo é perceber se há diferença na
estrutura do Caderno 2, em especial nas temáticas e linguagens utilizadas por
cada um dos recorrentes nas narrativas jornalísticas dos Cadernos de Cultura do
jornal O Estado de São Paulo. Assim, a temática que envolve essa reflexão está
calcada nas confluências entre o Jornalismo e sua especificidade voltada ao
âmbito Cultural, a Literatura e a História, nas observações das edições dos
cadernos, de 2003 a 2011 com o editor Dib Carneiro Neto, e de 2011 a 2015 com
o editor Ubiatan Brasil.
Sobre as construções metodológicas, optamos pelas observações
qualitativas em torno da Análise de Conteúdo, de acordo com o que propõe
Bardin (1977). O percurso delineado por essa reflexão inicia pela construção
teórica, seguida pela análise em torno do objeto e por fim as considerações finais.
Iniciamos então, pela conceituação em torno que é Jornalismo Cultural.
1 Conceitos acerca do Jornalismo Cultural
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A conjectura dessa reflexão está relacionada a construção de pelo menos
três campos: o jornalístico, o literário e por fim, a uma das ramificações que estão
imbricadas a estes, o jornalismo cultural. Sobre o jornalismo, este se refere, como
já explicitado, a Berger e Luckmann (2004), enquanto processo de construção
social. Já as relações que compreendem o jornalismo cultural estão atreladas as
proposições indicativas de Piza (2003). O autor observa, que o conceito esteve,
desde sua origem, relacionado a marca da crítica, primeiro literária, e após as
demais manifestações da arte e o seu entrelaçamento com a produção. “Até a
virada para o século XX, o jornalismo era feito de escasso noticiário, muito
articulismo político e o debate sobre livros e artes” (PIZA, 2003, p. 19). O autor
continua afirmando que após a modernização da sociedade, aconteceram
também transformações na imprensa: “o jornalismo moderno passou a dar mais
importância para a reportagem, para o relato de fatos, não raro sensacionalista, e
começou a se profissionalizar” (PIZA, 2003, p. 19). Junto a esse processo de
profissionalismo e transformações, também os Suplementos Literários acabaram
por se reconfigurar, e exatamente o processo de produção que interessa a essa
reflexão. Com apoio dessas informações, e para a configuração em torno desses
sentidos, é necessário entender os conceitos que perpassam pelo jornalismo
cultural, iniciando então, pela sua base, o jornalismo especializado.
1.1 Jornalismo Especializado
Ao explorar as concepções em torno do jornalismo cultural contemporâneo,
é necessário entendê-lo através de seus vínculos. Com efeito, há de se ressaltar
a importância de reflexões acerca do jornalismo especializado, isso porque,
através de seus processos, caracteriza-se como um dos ramos do grande âmbito
do jornalismo cultural.
Guardadas proporções, o jornalismo especializado é uma forma de
elaborar e produzir textos que tem em seu interior uma determinada coerência, e
como o nome o caracteriza, uma peculiaridade. O periodismo especializado pode
ser visto como um tipo de jornalismo, espaços denominados especializados, que
podem ser divididos por temáticas. Essas grandes áreas temáticas, são
assinaladas pelas editorias. (TAVARES, 2009).
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Antes de chegar as editoriais, e para melhor relacionar a importância dos
estudos voltados ao jornalismo especializado, torna-se relevante trazer dois
conceitos: informação e acontecimento. Segundo Maurice Mouillaud (2002), a
informação está diretamente ligada ao acontecimento. Nessa perspectiva, quando
o jornalismo possui uma informação sobre determinado acontecimento, a
transforma em notícia, fechando assim o clico proposto, já que cada notícia, de
acordo com suas particularidades, estarão dispostas em uma editoria.
Junto a esse processo de disposição das notícias, pode-se dizer que o
jornalismo atua basicamente com um falar especializado, já que passa a ser um
interlocutor dentro da sociedade, “mediando temporal e espacialmente o próprio
tecido da trama social” (TAVARES, 2007, p. 2). Portanto, os discursos produzidos
são consequentes “de um processo de produção intimamente relacionado aos
processos e práticas sociais que o envolvem” (TAVARES, 2007, p. 2). Desta
forma, o jornalismo além de interlocutor, passa a estar imbuído por reflexos em
torno do social, justificando assim, as novas significações. Nas palavras do autor:
[...] no momento em que se foca um jornalismo propriamente temático e não temas que permeiam as notícias do “grande jornalismo” inaugura-se a busca por uma nova dinâmica de produção de informação e por seus novos sentidos e significados. (TAVARES, 2007, p. 13).
O que Tavares traz à tona, é que quando o jornalismo é pensando pelo
viés de temáticas, como também, quando são produzidas informações voltadas a
estas especificidades, o leitor passa a produzir novas interpretações. A partir
disso, as notícias não serão voltadas meramente ao jornalismo no geral, mas sim,
focadas em temas mais específicos. Por esse viés de interpretação, é possível
mencionar a importância, primeiro, de se considerar o processo de produção das
notícias, e por fim, de eleger suas especificidades.
As designações em torno do conceito de jornalismo especializado, podem
ainda ser mencionadas por um jornalista uruguaio, que se destacou, a partir da
geração de 1980: Héctor Borrat. O estudioso promoveu desde então, novas
formas de pensar, próximo a perspectiva já explicitada, de relacionar o âmbito
jornalístico enquanto um sistema de ação social. Dentro dessas prerrogativas,
Borrat (1993), menciona três caracterizações sobre o periodismo especializado:
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[...] 1) la coherencia interna de esos textos, 2) la correspondencia de sus afirmaciones con la realidad, y 3) la pertinencia de los conceptos, las categorías y los modelos de análisis aplicados, fuere cual fuere el tipo de texto y el tipo de lenguaje escogidos, el tipo de periódico donde esos textos se publican y el tipo de audiencia al que preferentemente se dirijen (p. 83).
O autor explica ainda, que o periodismo especializado pode estar presente
em qualquer tipo de texto. “En cambio, no constituyen notas características del PE
un determinado tipo de texto, o de lenguaje, o de periódico, o de audiencia. El PE
puede encontrarse en cualquier tipo de textos (narrativos, descriptivos,
argumentativos)”. (BORRAT, 1993, p. 83).
Seguindo pelas reflexões de Borrat (1993) e contribuindo para a elucidação
em torno do jornalismo especializado, Bahia (2009) aponta para o conceito,
enquanto uma técnica em torno do tratamento da notícia. Leitura análoga é
realizada por Gomes (2009, p. 3):
Os jornais têm buscado dar conta da crescente complexificação da sociedade atual através da criação de editorias especializadas e cadernos segmentados. A tendência, denominada “segmentação” ou “cadernização”, faz com que ganhem em visibilidade conteúdos que há muito tempo frequentam as páginas da imprensa.
Assim, resumidamente, enquanto produção que visa o tratamento
relacionado ao produto jornalístico, observa-se o gênero cultural como um tipo de
jornalismo especializado que visa às produções em torno dessas peculiaridades,
voltadas ao cultural.
1.2 O Jornalismo Cultural e os Cadernos de Cultura
Como uma das possíveis ramificações dentro do âmbito jornalístico, o
jornalismo cultural2 nasce historicamente no final do século XVII. (TAVARES,
2009). Os jornais pioneiros que cobriam obras culturais foram The Transactions of
the Royal Society of London e News of Republic of Letters, datados de 1665 e
2Faro (2006, p. 12) entende que o jornalismo cultural, além de seu aspecto informativo e
mercadológico, se relaciona a uma “instância de categorias valorativas e históricas, negociadas entre os vários sujeitos que a produzem”. Nesse sentido, compreende-se como designação a esse vocábulo, as estruturas em torno de notícias que estejam configuradas aos gêneros culturais, tais como, os Suplementos Literários.
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1684. Com base nessas informações, Burke (2004, p. 76) pontua: “[...] difundiam
informações sobre novas descobertas, óbitos de acadêmicos e também livros
novos. A resenha de livros foi uma invenção do fim do século XVII. Dessa
maneira, uma forma de impresso anunciava e reforçava a outra”.
Se a nível mundial, a presença dos Cadernos Culturais ocorre ainda no
século XVII, no Brasil, essa tendência, só aparecerá a partir o século XX. Pode-se
nesse contexto, citar como exemplo, os jornais, Correio Brasiliense e Armazém
Literário, e a primeira revista As Variedades e Ensaios de Literatura. Para Gomes
(2009), “ambas as publicações pareciam livros – tanto o jornal [...] quanto a
revista” (2009, p. 12). A linguagem mais voltada a literatura se deve ao fato desse
início de configurações em torno dos Cadernos estar relacionada mais ao âmbito
literário, já que era comum nessa trajetória dos periódicos, trazer em seus
espaços resumos de livros e uma linguagem mais aproximativa, o que a
relacionava ainda, com as revistas.
Seguindo o percurso histórico, a partir dos anos 1950, jornais brasileiros
como O Estado de São Paulo, Jornal do Brasil, Última Hora e Diário Carioca
estabeleceram as organizações em torno das publicações de Suplementos
Literários. Dentre estes, é possível destacar o percurso histórico e social do
Suplemento Literário de O Estado de São Paulo, cujas publicações compreendem
o corpus dessa reflexão.
O Suplemento Literário viria a ser considerado o modelo de todos os
cadernos culturais que o sucederam. Ele fora projetado em 1956 por Antonio
Candido de Mello e Souza e dirigido durante dez anos por Décio de Almeida
Prado, entre 1956 e 1966 (LORENZOTTI, 2007).O surgimento do Suplemento
esteve entrelaçado com as relações sociais e históricas vivenciadas pelo Brasil,
tal como pontua Lorenzotti (2007, p. 10).
Os anos 1950 e 1960 foram extremamente férteis na produção cultural no País, que desfrutava de um período democrático e desenvolvimentista. Seus frutos revelaram-se em todos os setores da vida brasileira. Naquela época, surgiram suplementos literários em quase todos os grandes jornais diários: O Estado de S. Paulo e o Jornal do Brasil lançaram os seus no mesmo ano, 1956. É a época da INTRODUÇÃO de novas técnicas de produção e de administração na imprensa, além da nova linguagem que privilegiava a notícia em detrimento da opinião.
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Como um modelo a ser seguido, e contanto com nomes de escritores
renomados da época, o projeto gráfico e editorial do Suplemento foi pensando e
idealizado por Antonio Candido e Décio de Almeida Prado como um Caderno
voltado a suprir os preceitos da literatura enquanto arte. (LORENZOTTI, 2007)
Englobando assim, o conceito de jornalismo especializado, sobretudo por optar,
no sentido da produção jornalística, por questões mais voltadas ao cultural.
Sobre a acepção cultural, é necessário aludir às configurações propostas
por Gadini (2005). Ele acentua o fato da conceituação do termo estar carregada
por uma contradição. “O jornalismo cultural existe numa tensão entre o
contingente (o efêmero e cotidiano, próprio do jornalismo) e o permanente (mais
duradouro, próprio ou geralmente associado ao universo da cultura) ”. (GADINI,
2005, p. 103-104). Justamente por essa ambivalência, o termo assumiu distintos
papeis e configurações ao longo dos anos. Essa prerrogativa pode ser melhor
explicitada pelo contexto social, o setor cultural passou ao longo dos anos por
diversas transformações, e do mesmo modo, a representação desse conceito foi
marcada por esse contexto nos periódicos.
Por esse viés que é configurado pelas mudanças, é possível observar que
o jornalismo cultural, entendido enquanto produção imbuída pelo universo cultural
foi se transformando gradativamente. Essas transformações também foram sendo
percebidas e acompanhadas pelo Suplemento Literário de O Estado de São
Paulo, e é no sentido dessas mudanças, que podem estar relacionadas também
ao corpo editorial, que essa reflexão objetiva alcançar.
2. Procedimentos metodológicos
Tendo em vista o objetivo da nossa pesquisa, descobrir as mudanças que
ocorreram com a troca dos editores Dib Carneiro Neto - 2003 a 2011 - e Ubiratan
Brasil - 2011 a 2015 –, nas reportagens do Caderno 2 do jornal O Estado de São
Paulo, apresentaremos como subsídio metodológico, a Análise de Conteúdo (AC).
À vista disso, utilizaremos para este trabalho os conceitos de Bardin (1977) e
Herscovitz (2007) sobre AC.
Herscovitz (2007) diz que a Análise de Conteúdo pode ser definida como
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[...] método que recolhe e analisa textos, sons, símbolos e imagens impressas, gravadas ou veiculadas em forma eletrônica ou digital encontrados na mídia a partir de uma amostra aleatória ou não dos objetos estudados (HERSCOVITZ, 2007, p. 126).
Bardin (1977) complementa afirmando que,
[...] a análise de conteúdo pode ser empregada em estudos exploratórios, descritivos ou explanatórios. Os pesquisadores que utilizam a análise de conteúdo são como detetives em busca de pistas que desvendem os significados aparentes e/ou implícitos dos signos e das narrativas jornalísticas, expondo tendências, conflitos, interesses, ambiguidades ou ideologias presentes nos materias examinados (HERSCOVITZ, 2008, p. 127)
Com os objetos estudados têm-se o propósito de fazer inferências sobre
seus conteúdos e formatos, ajustando-os em categorias previamente testadas.
Para Bardin (1977), a Análise de Conteúdo desenvolve-se em três fases:
(a) pré-análise; (b) exploração do material; e (c) tratamento dos dados, inferência
e interpretação. Neste trabalho, estas três fases foram divididas da seguinte
maneira:
a) Pré-análise: Definição do mês e dos dias que seria realizada a pesquisa.
Leitura das matérias do Caderno 2, fazendo apontamentos de possíveis itens
para serem analisados mais tarde;
b) Exploração do material: Leitura aprofundada das matérias selecionadas.
Nesta etapa, foram levantas todas as informações relevantes, as temáticas
abordadas, a linguagem utilizada, o público-alvo e a opinião contida em cada
matéria. O levantamento foi feito a fim de compreender as diferenças que
ocorreram com a troca dos editores Dib Carneiro Neto (2003 a 2011) e Ubiratan
Brasil (2011 a 2015).
c) Tratamento dos dados, inferência e interpretação: Nesta última fase,
interpretou-se todas as informações que foram apuradas nas outras fases. Os
resultados obtidos foram averiguados para, posteriormente, entender as
diferenças que ocorreram com a troca dos editores. Foi neste item que
encontramos as respostas das temáticas abordadas, da linguagem, o público-alvo
que as matérias se dirigem e em quais matérias havia opinião.
3. Analisando a troca de editores no Caderno 2
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Para a presente pesquisa fez-se necessário selecionar um mês compatível
com o trabalho. Desta forma, optou-se em analisar o primeiro fim de semana de
março. A opção pelo mês de março ocorreu por ser um dos primeiros meses do
ano. Baseando-se que os meses de janeiro e fevereiro possam ter narrativas
voltadas a eventos periódicos do ano como férias e atrativos ligados a esse
período, consideramos, março como o período proposto para iniciar as
observações.
O período analisado ficou consolidado pelo balizador das trocas dos
editores Dib Carneiro e Ubiratan Brasil, entre os períodos de 2003 a 2011 e 2011
a 2015, respectivamente. Observamos assim, 23 edições do Caderno 2,
estritamente sábado e domingo. Apenas um domingo não teve edição e dois fins
de semana iniciaram no domingo, por isso, dois sábados não fazem parte das
reflexões pontuadas nessa análise.
Analisou-se o público alvo do Caderno 2, o qual identifica-se como público
adulto, predominantemente, elitizado. Visto que, a grande parte das matérias
eram voltadas às temáticas específicas, como óperas, Oscar, música erudita,
entre outras. Como podemos analisar o exemplo a seguir:
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As temáticas do Caderno 2 foi mais um ponto analisado nesta pesquisa.
Percebeu-se que as temáticas foram mudando gradativamente, verificando que
esta mudança se deu com mais força no ano de 2010. Num primeiro momento, as
temáticas eram voltadas ao cotidiano e aleatórias, contendo assuntos típicos de
um caderno cultural que abrange pontos mais gerais sobre este tema. Em
seguida, passou-se a ter temáticas voltadas a celebridades e entretenimento,
mudando, também, a linguagem, a qual tornou-se mais descontraída.
Nas matérias analisadas, identificou-se que a opinião dos autores está
presente na maioria delas, em especial, nas colunas. Isso pode ser justificado
pelo fato dos autores colocarem o seu ponto de vista sobre um determinado
assunto, como, livros, espetáculo, obra de arte, etc. Desta forma, o autor passa a
colocar a sua própria identidade e opinião em suas publicações. Pode-se
observar no modelo:
O período do primeiro editor é marcado por textos grandes, como por
exemplo, reportagens. Já no segundo momento, com Ubiratan Brasil, os textos
são divididos em pequenos blocos. A seguir tem-se um modelo que justifica esse
fato:
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Uma das sinalizações do segundo período é a forma como os assuntos
eram distribuídos na página. Nos espaços em que é abordado o tema
celebridades, ele é distribuído em pequenos textos, cada um contendo uma
celebridade. Verifica-se no exemplos:
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Nas edições analisas dos dois períodos percebeu-se que a linguagem
utilizada de forma coloquial se encontra nos textos de colunas, como na coluna de
Veríssimo:
Contudo, a linguagem geral das matérias é uma linguagem padrão do
jornalismo. Como no modelo:
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4. Considerações finais
No decorrer da pesquisa e processo de análise para este artigo foi possível
perceber que, a partir desse viés configurado por mudanças, o Jornalismo
Cultural foi se transformando gradativamente. Tais modificações podem ser
percebidas com a troca dos editores Dib Carneiro Neto e Ubiratan Brasil,
principalmente, no que se refere às temáticas abordadas nas publicações.
Presume-se, por meio dos estudos trazidos que, no momento em que o
Jornalismo é pensado e produzido pelo viés das temáticas, o leitor passa a inferir
novas interpretações. Nesse sentido, as alterações estão relacionadas também
ao corpo editorial.
Seguindo esse mesmo sentido, a linguagem teve alterações, pois passou a
ser mais descontraída. Percebeu-se esta mudança especialmente nas colunas.
No que tange a linguagem, é possível notar que elas se referem mais aos temas
propostos pelo Caderno. Nas colunas, o leitor pode observar uma linguagem
voltada ao coloquial, com expressões do cotidiano e mais voltado à linguagem
não formal. Já o restante dos conteúdos fica separado por temáticas, no aspecto
que envolve celebridades. O layout da página contribuiu para melhores leituras
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em torno dos temas, sendo separados por boxes, o que delimita os assuntos e
torna mais fácil a compreensão.
Com relação à troca de editores, as temáticas foram pensadas com viés
social, assim, essas mudanças podem ser observadas nas páginas do Caderno 2.
No primeiro momento, as matérias eram abordadas de forma aleatória com
diversos temas, como livros, peças de teatro, premiações, obras de arte. Com a
troca de editor a partir de 2011, as temáticas aparecem em predominância com
temas voltados ao entretenimento, como música e livros.
Já se tratando dopúblico-alvo do Caderno 2, considera-se que o mesmo é
voltado para um público diversificado, pois as publicações são focadas para todos
os públicos, desde o infantil até o público idoso. Observa-se isso principalmente
nos guias que trazem informações sobre eventos para todas as faixas etárias.
Ademais, considera-se que na maioria das matérias há prevalência de opinião.
Isso se justifica pelo fato do autor colocar, de certa forma, a sua identidade
naquilo que produz.
REFERÊNCIAS BAHIA, Juarez. Jornal, História e Técnica: história da imprensa brasileira. 4 ed, São Paulo, Árica, 1990. BARDIN, L. Análise de contéudo. Lisboa: Edições 70, 1977. BERGER, P. L; LUCKMANN, T. A conservação e a transformação da realidade subjetiva. In: A construção social da realidade: tratado de sociologia do acontecimento. 25. ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 1985. p. 195-215. BURKE, Peter. Uma história social da mídia: de Gutenberg à Internet. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2004. BORRAT, H.Hacia una teoría de la especialización periodística. 1993. Disponível em:<https://www.google.com.br/url?sa=t&rct=j&q=&esrc=s&source=web&cd=1&cad=rja&uact=8&ved=0CB0QFjAAahUKEwjRwa6ZqoXHAhUJS5AKHahfAn4&url=http%3A%2F%2Fwww.raco.cat%2Findex.php%2FAnalisi%2Farticle%2Fdownload%2F41185%2F94919&ei=j2S7VZG-EomWwQSov4nwBw&usg=AFQjCNFyGM9ex-RnbSfUalvdGxGfmhP_Gw&bvm=bv.99261572,d.Y2I>. Acesso em: 29 jun. 2015. p. 79-84. FARO, J. S. Nem tudo que reluz é ouro: contribuição para uma reflexão teórica sobre o jornalismo cultural. Comunicação & Sociedade, v. 27, n. 45, p. 143-163,
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CADEIAS REFERENCIAS EM TEXTOS DO GÊNERO ARTIGO DE OPINIÃO
Ana Lucia Gubiani Aita Thainá Ariane Agostini Markosk
RESUMO Este artigo apresenta um recorte dos resultados obtidos na pesquisa o fenômeno referenciação e as cadeias referenciais: construindo sentidos no gênero artigo de opinião. Este estudo mostra um instrumento útil para melhor compreender os conteúdos referenciais que circulam no gênero artigo de opinião. Na análise importantes cadeias referenciais foram retomadas para a construção do modelo textual, através das estratégias como: o uso de pronomes, uso das elipses, rotulações, recorrências de termos, as repetições, o paralelismo e a paráfrase. Diante da complexidade e da riqueza que é o estudo da referenciação e as cadeias referenciais, pode-se confirmar que é um guia seguro, na complexa teia de reflexões sobre compreensão e na produção de textos. Palavras-chave: Cadeias referenciais. Referenciação. Artigo de opinião
ABSTRACT This article presents part of the results obtained in the reasearch "referencing phenomenon and referential chains: building senses in the genre op-ed". This study shows a useful instrument to better understand the referential content circulated opinion piece in the genre. In analyzing important referential chains were taken up for the construction of textual model, using strategies such as the use of pronouns, use of ellipses, rotulations, recurrences of words, repetition, parallelism and paraphrase. Given the complexity and wealth which is the study of referral and referential chains, one can confirm that a sure guide in the complex web of reflections on understanding and production of texts. Keywords: Chains reference. Referencing. Opinion article.
Introdução
Este estudo apresenta os resultados obtidos na pesquisa o fenômeno
referenciação e as cadeias referenciais: construindo sentidos no gênero artigo de
opinião. Nele mostra- se uma das muitas formas de se trabalhar com a
textualidade, ou seja, a referenciação e as cadeias referenciais, uma ferramenta
útil, capaz de permitir o desenvolvimento de habilidades de leitura e de escrita,
uma vez que, ainda, os alunos apresentam dificuldades nestas duas modalidades.
Desta forma, teóricos da linguística- LT, e em especial, aqueles que lidam com o
texto, tem se inserido nestes estudos sociocognitivos. Eles apresentam às
aplicações práticas das teorias em análise de textos concretos, com a temática,
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processos e estratégias de referenciação presente nos mais variados gêneros.
Nesta, mesmo escopo de estudos sobre textualidade, as cadeias referenciais
(CRs) têm merecido atenção dos estudiosos, pois a construção e o rastear delas
facilitam a compreensão do texto, porque, por meio das CRs é possível
observar como ocorre a dinâmica dos processos de referenciação.
Neste estudo é mostrado como é possível sanar algumas das dificuldades
que os alunos encontram na interpretação e produção textual. Isto pode ser
explicado, da seguinte forma: ao tentar integrar porções textuais à medida que se
avança na leitura, constroem-se, frequentemente cadeias referenciais, porém não
se percebe a complexidade do funcionamento delas, bem como não se tem
consciência dos mecanismos para se saber como acessar, instalar, reativar ou
desativar os referentes à medida que se avança na leitura ou escrita de uma
texto. Monitorar o funcionamento e a funcionalidade da construção das cadeias
permitirá ao aluno conectar as informações acrescentadas aos referentes ao
longo das sentenças e dos parágrafos, numa rede dinâmica, tornando mais visível
o processamento discursivo textual, e por isso, facilitando a compreensão e a
escrita do texto.
Este artigo mostra um instrumento útil para melhor compreender os conteúdos
referenciais que circulam no gênero artigo de opinião e crônicas, para testar um
aparato teórico-metodológico de caráter exploratório e descritivo da referenciação
e das CRs, entendendo os mecanismos de referenciação que concorrem para
que os objetos do discurso se modifiquem em toda a sua extensão, pois todos os
referentes num texto são evolutivos, e mais à sua identidade, pode constituir-se
por duplicidade de papéis.
Assim, este estudo analisa, através de uma abordagem textual, como é possível,
descobrir alguns dos processos que configuram a arquitetura semântica-
discursiva que pressupõe a ativação, a reativação e a desativação dos referentes
no universo textual.
2. Referenciação e as estratégias de progressão referencial
Para a realização das análises do estudo proposto, aprofundaram-se os
conhecimentos teóricos feitos por (Koch, 2006, 2010) e Roncarati (2010) sobre
referenciação e as cadeias referenciais. Neste artigo mostram-se a análise de
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5(cinco) textos que serão apresentados de forma fragmentada, mostrando como
se formaram as cadeias referenciais e quais as estratégias de referenciação,
mais utilizadas pelo autor do texto, para construção de sentido do texto.
Sabe-se que existem diversas estratégias referenciais, neste relatório mostra-se
apenas as estratégias de progressão referencial e sequencial, que apareceram de
forma significativa dos textos: uso de pronomes ou elipses; bem como os
mecanismos de sequenciação: repetição de termos; paralelismos; paráfrase.
2.1Referenciação
Para esclarecer melhor a análise, retoma-se e alia-se às teorias de Koch
(2006,p123.) que denomina referenciação como “as diversas formas de
introdução, no texto, de novas entidades ou referentes (pessoas, coisas, animais
lugares, eventos, propriedades, predicações entre outros)”. As entidades são
elementos designadores e a referenciação, um caso geral de operação desses
elementos como diz Koch, (2006) Assim, há progressão referencial, quando
novos referentes são retomados mais adiante, servindo de base para a
INTRODUÇÃOde novos referentes.
Em 2010, Roncaratti propicia aos estudiosos da LT, a operacionalidade da
cadeia referencial (CR) como uma produtiva abordagem para os estudos de
referenciação. Diz a autora, p. que a CR se desenvolve no percurso do texto, a
partir da progressão referencial ou sequencial, isto é, a partir da identificação,
preservação, continuidade e retomada dos referentes textuais. A progressão
referencial é essencial tanto para a formação de Crs quanto para a evolução do
objeto do discurso na trama textual. A seguir mostram-se como as cadeias
referenciais podem evoluir nos discursos e como elas podem ser retomadas.
2.2 Cadeias referenciais retomadas por pronomes
O uso de pronomes dentro do processo de referenciação acontece pela
colocação das formas gramaticais que exercem funções de pronomes. O ato de
atribuir as formas pronominais como elo coesivo dentro da referenciação foi
descrita como pronominalização, que pode ser tanto anafórica, quanto catafórica.
Na pronominalização anafórica classificam-se os elementos contextuais que
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precedem ao referente dentro do discurso. Já na pronominalização catafórica,
classificam-se os elementos cotextuais que procedem ao referente dentro do
discurso. Na exofórica os elementos se encontram fora do texto. As retomadas
catafóricas e exofóricas não constam nessa análise em virtude de não
aparecerem de maneira significativa nos textos.
Para Koch( 2006,p.131) “ a referenciação realizada por intermédio de
formas pronominais foi sempre descrita na literatura linguística como
pronominalização (anafórica ou catafórica de elementos co-textuais).”
A seguir quadro com as retomadas anafóricas pronominais.
QUADRO 1- Retomadas anafóricas
Textos Cadeia
Referencial
Pronome anafórico
“O cão negro da
depressão”
“um bom
amigo”
“[...] um bom amigo, um ótimo jornalista,
[...]. Ele prefere não se [...]”.
“Um livro uma
história”
O Sergio Faraco [ ...] em Skarpeare, em jogo de sinuca e titanic [ ...] Ele as frases
“O milagre” “uma árvore ” “[...]uma árvore de casa.[...]. Suas raízes emergem do solo [...]
“Uma causa pra
viver”
“Raquel” “Agora me ocupo de Rachel. Ela tem irmãos adotivos negros,[...
“Como é realmente
o Brasil”
“Um soldado “[...]um soldado,não raro ele dispensado
2.3 Cadeias referenciais retomadas por elipses
Elipse é a omissão do termo ou uma frase que se subentende pelo
contexto. Segundo Antunes (2005, p. 119) “(...) a elipse é considerada, na
perspectiva do texto, uma espécie de reiteração, sem contar com outros efeitos
que ela provoca, como a concisão e a leveza de estilo”.
Abaixo, exemplos de elipses.
QUADRO 2- Elemento Elíptico
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Textos Cadeia
Referencial Elemento elíptico
“Onde encontrar a
liberdade”
“Malcom X” “[...]ϕ Era líder de uma ativa quadrilha de
assaltos a residências, aqui, em
Boston. [...]”
“Fazer com amor” “Cafuringa” “[...]ϕ Jogava uma partida de veteranos e machucou o braço [...] ϕ Começou a
doer,.[...]”
“O verdadeiro
amor”
“Stefanie e
Stephano”
“[...] Não foi a atração física que os ϕuniu, nem as afinidades, nem o desejo ou qualquer outro sentimento tenha.[...]”
“A bola na
avenida”
“A velha” “[...] A velha não parecia ouvi-los. ϕ Continuava imóvel, nem olhar.[..]”
“Os medrosos” “medo” “[...]Medo não é o oposto da coragem. O
medo não é ruim; ϕ é bom, alerta. [...]”
2.4 Cadeias Referenciais e a progressão por Sequenciação
De acordo com Koch,
a progressão sequencial contribui significativamente para a construção do sentido em um texto uma vez que ela se constitui de um conjunto de recursos que realizam algum tipo de recorrência, de modo a produzir um efeito de insistência. A autora destaca, ainda, que. Aquilo que é dito fica como “martelando” na mente do leitor, tentando levá-lo a concordar com nossos argumentos ”(2010,p.159)
Nesse sentido a pesquisadora acima referida apresenta a ação de quatro
mecanismos sequenciais que são comumente usados durante a escrita de um
texto, responsáveis pela formação de elos coesivos: repetição, paráfrase,
paralelismo e recorrência de tempos verbais.
2.4.1 Cadeias Referenciais retomadas por repetição
De acordo com Kock ,
Muitos textos são construídos tomando como base a repetição, que produz, nesses casos, não só efeitos estilísticos, mas, sobretudo, argumentativos. Daí a presença constante desse recurso em peças oratórias e textos em geral que se destinem a persuadir os interlocutores. (2010, p. 161)
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Exemplos de repetições no quadro abaixo.
QUADRO 3- Repetições
Textos Cadeia
Referencial
Exemplos de repetições
“Da escola pra
casa”
“escola para
casa”
“[...] O menino Denner levou uma facada no coração quando ia da escola para casa, em Porto Alegre.” “Da escola para casa..[...]”
“Uma causa
para viver”
“ Raquel” “[...].Rachel, esse o nome dela, Rachel é meio que o oposto de Michael Jackson [...]”
“Noticias de um
velório”
“A frase” “[...],Pois uma vez o Faraco decidiu escrever um livro sobre Shakespeare. Criterioso como é, compreendeu que precisava saber mais sobre o mundo de Shakespeare,.. [ ...]”
“Um livro, uma
história”
“Livros” “[...]Dizia ter livros para me dar, muitos livros. Livros para me dar![...]”
“O poder do
dedo”
“Carlitos” “[...]Carlitos, ponta-esquerda do Rolo
Compressor.[...] Carlitos era tão pequeno . [...]
2.4.2 Cadeias Referenciais retomadas por paralelismo
Consiste na à organização de ideias e expressões de estrutura idêntica, ou
seja, a repetição sucessiva da mesma estrutura sintática, preenchida por
elementos lexicais diferentes. Seu princípio é facilitar a leitura do enunciado e
proporcionar clareza à expressão
Em Koch (2006, p. 122), faz-se menção ao paralelismo sintático, onde a
progressão, de acordo com a autora,
[...] constrói-se, nesse caso, com a utilização de uma mesma estrutura sintática, preenchida a cada vez com itens lexicais diferentes. O paralelismo sintático é, frequentemente, acompanhado de um paralelismo rítmico ou similicadência. Muito comum na poesia, é encontrado também principalmente na prosa, sobretudo com função retórica ou persuasiva.”
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A seguir exemplos de paralelismo:
QUADRO 5- Exemplos de Paralelismos
Textos Cadeia
Referencial
Exemplos -Paralelismos
“Onde encontrar a liberdade”
“Malcolm X” “[...]Malcolm X, falei que escreveria mais sobre Malcolm X, e vou, e começo contando que Malcolm X, antes de se tornar ícone mundial do movimento negro, foi gigolô amador, assaltante profissional, traficante de drogas por conveniência e adicto convicto. [...]”
“O verdadeiro amor”
“O amor” “[...]O amor que salta obstáculos, que vence dificuldades, que enfrenta a rotina dos dias, que janta junto e acorda sorrindo, que entende os erros, conhece as fraquezas, enterra ressentimentos, perdoa sorrindo, comemora chorando e segue em frente, sempre e sempre, esse é o verdadeiro amor.”
“Frank e Ava” “O romance de Frank e Ava”
“ [...]Ambos tinham apetites titânicos por comida, bebida, cigarros, diversão, companhia e sexo. Ambos amavam jazz e os homens e as mulheres,[...] o faziam. Ambos eram politicamente liberais. Ambos eram ... [...]”
“No dia da mulher o homem é superior”
“as mulheres”
“Não acredite nessa balela feminista de igualdade[...]. Não somos iguais. Não acredite no sonho dourado do Lepo Lepo. Você pode ser lepolepado, você pode ser uma vítima [...]”
“Queria escrever sobre o tomate”
“Homens" “[...]. Homens com essa sensibilidade, com essa inventividade, com esse gênio, só homens assim seriam capazes da grande criação: Molho de Tomate. [...]”
2.4.3 Cadeias referenciais retomadas por parafraseamento
Antunes (2005, p. 62) destaca que:
A paráfrase constitui, assim, um recurso reiterativo bastante significativo, pois propicia a clarificação de um conceito, de uma informação, de uma idéia por meio de uma nova formulação desses itens. Constitui um recurso coesivo, isto é, promove a ligação entre dois segmentos textuais, uma vez que alguma coisa é dita outra vez, em outro ponto do texto, embora com palavras diferentes.
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Parafrasear consiste em reproduzir as ideias e conteúdos de um texto, livro ou
narrativa, dando-lhes uma interpretação, tornando-os mais perceptivos ou
atribuindo-lhes uma nova interpretação. É através da paráfrase que explicamos
ou esclarecemos para o leitor o que foi dito anteriormente, a fim de evitar
incompreensões.
A seguir, as ocorrências de paráfrases como recurso sequencial-explicativo:
QUADRO 6 - Retomadas por paráfrase
Textos Cadeia Referencial
Exemplos de Parafraseamento
“Fazer com amor”
“anteontem” “[...] já ter falado "antiontem", o que me causa arrepios, porque "anti" ontem seria algo oposto ao ontem. Ou seja: o amanhã.[..]”
“Como é realmente o Brasil”
“As leis” “[...].Não que as leis não sejam boas. [ ..]. Mas as leis não são cumpridas. Quer dizer: são cumpridas, mas apenas por aplicação práticar quem está dentro da lei.”
“Tragam o Especíco Pessoa”
“O Especíco Pessoa”
“[ ...] Parece que ele ficou bastante satisfeito ao ver os engarrafamentos e tudo mais. Quer dizer: conflito aberto.”
“Mulheres nuas”
“A cabeça do santo”
“[...] , e ela dançou outra vez, para êxtase real. Quer dizer: não é de hoje que homens têm perdido a cabeça [...]”
“Como é realmente o Brasil”
“leis” “[...] A Constituição do Brasil é avançada.[...]. Quer dizer: são cumpridas, mas apenas por quem está dentro da lei.[...]”
3. Considerações Finais
O estudo aprofundado do pressuposto teórico das cadeias referenciais e as
estratégias de referenciação, bem como a aplicações práticas das teorias em
analise de artigos de opinião e das crônicas do Colunista do Jornal Zero Hora,
David Coimbra, mostram que é possível estudar e testar um aparato teórico-
metodológico de caráter exploratório e descritivo da referenciação e das CRs,
para entender os mecanismos de referenciação que concorrem para que os
objetos do discurso se modifiquem em toda a sua extensão, pois todos os
referentes num texto são evolutivos, e mais à sua identidade, pode constituir-se
por duplicidade de papéis.
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A pesquisa através das análises do gênero artigo de opinião torna-se
propicio, para explorar as potencialidades aplicativas das cadeias referenciais
como um mecanismo linguístico cognitivo e sociointerativo, para entender como a
fabricação das cadeias facilita a compreensão dos processos de ativação do
discurso, pois nele aparecem nas análises várias cadeias referenciais num só
texto.
Na análise, observou-se, e descobriram-se alguns dos processos que
configuram a arquitetura semântica- discursiva que pressupõe a ativação, a
reativação e a desativação dos referentes do universo textual. No
desenvolvimento do texto, importantes cadeias referenciais foram retomadas para
a construção do modelo textual, através das estratégias que fizeram o texto
progredir como o uso de pronomes, que acontece pela colocação das formas
gramaticais que exercem funções de pronomes, já no uso das elipses, se oculta
um item lexical, um sintagma, uma oração ou todo um enunciado, facilmente
recuperáveis pelo contexto, noutras palavras, seria uma substituição por zero. E
mais, no decorrer do estudo, observou-se a grande frequência do uso de
elementos de sequenciação do texto escrito, presentes nos textos de David. Há
recorrência quando o texto avança realizando certo efeito de insistência, levando
o leitor a concordar com o que foi escrito. A repetição trata-se de uma recorrência
de termos, já o paralelismo consiste na repetição sucessiva da mesma estrutura
sintática. E por fim, o parafraseamento ocorre quando o autor explica ou
esclarece ao leitor o que foi dito anteriormente.
Diante da complexidade e da riqueza que é o estuda da referenciação, e
em especial as cadeias referenciais, um guia seguro, na complexa teia de
reflexões, implicadas na temática: compreensão e na produção de textos. No
caso dos artigos de opinião e as crônicas de David Coimbra, do Jornal Zero Hora,
analisados neste trabalho, apresentam-se um grande número de elementos
propícios para o estudo em questão. Percebeu-se que ao longo do texto foram
criadas cadeias referenciais, e por vezes estas não foram retomadas, ou foram
retomadas com novos referentes que estavam associados de alguma forma ao
referente já estabelecidos. Apareceram referentes novos que foram formando
outras cadeias. Este foi um estudo que mostra de maneira singela, o quanto
ainda, tem que se descobrir sobre o fenômeno textual: referenciação e cadeia
referencial. Esta ferramenta ou análise da referenciação e as cadeias referenciais
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permitiu melhor compreender os processos da arquitetura semântico-discursiva
dos textos, bem como desenvolver habilidades e capacidades reflexivas sobre a
produção e compreensão de textos.
REFERÊNCIAs
Antunes, Irandé, Análise de textos: fundamentos e práticas. São Paulo: Parábola Editorial, 2010. (Estratégias de ensino; 21). _________ Lutar com palavras: coesão e coerência .São Paulo: Editorial, 2005. Koch, Ingedore Grunfeld Villaça. Desvendando os segredos do texto .São Paulo: Cortez, 2002. _______e Elias, Vanda Maria. Ler e compreender: os estudos do texto. 2. Ed. São Paulo: Contexto, 2006. ______Ler e escrever: estratégias de produção textual. 2. Ed. São Paulo: Contexto, 2010. _____ Referenciação e discurso.Edwiges Maria Morato, Anna Christina Bentes (orgs). – São Paulo: Contexto, 2005. Roncaratti, Claudia. As cadeias do texto: construindo sentidos. São Paulo: Parábola Editorial, 2010. http://wp.clicrbs.com.br/davidcoimbra
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DIÁLOGO ENTRE LITERATURA BRASILEIRA E AFRICANA COM O USO DO RECURSO TECNOLÓGICO HAGÁQUÊ
Ana Paula Teixeira Porto Daiane Samara Wildner Ott
RESUMO O objetivo deste trabalho é oferecer uma proposta pedagógica interativa, por meio do software HagáQuê, que se utiliza do recurso tecnológico para despertar o gosto pelo contato com o texto literário, explorando aspectos relativos à leitura crítica por meio da produção de histórias em quadrinhos. Para isso, o trabalho uniu literatura brasileira e africana utilizando dois contos de forma a mostrar a importância do diálogo com outras literaturas de língua portuguesa e relacionando obras de contextos diferentes, mas com a mesma temática, neste caso, a relação do homem com os animais. Ao desenvolver este estudo, evidencia-se a urgência de que as aulas de literatura ofereçam o contato com o texto literário, privilegiando as habilidades de interpretação e reflexão em que o aluno consiga relacionar a literatura com sua realidade.
Palavras-chave: Leitura. Literatura. Tecnologia. Ensino.
ABSTRACT The objective of this study is to provide an interactive educational proposal, through HagáQuê software, which uses the technological resources to awaken a taste for contact with the literary text, exploring aspects of critical reading through the production of comic books. For this, the work joined Brazilian and African literature with tales, the two tales consider the importante dialogue with other literature of Portuguese and linking works from different backgrounds but with the same theme, in this case, man's relationship with animals. In developing this study highlights the urgent need for the literature classes offer contact with the literary text, focusing on skills of interpretation and reflection in which the student can relate literature to their reality. Keywords: Reading. Literature. Technology. Education.
Introdução
As pesquisas recentes mostram que houve uma grande queda de leitores
no Brasil e que mesmo o ensino de Literatura no Brasil não tem valorizado o
hábito da leitura, o que tem influenciado diretamente na qualidade do ensino.
Retratos da Leitura no Brasil3 (2014) revela que houve uma queda significativa
nos hábitos de leitura dos brasileiros, sendo 7,4 milhões de leitores a menos do
na pesquisa anterior, em 2007. Indica ainda que apenas 50% da população são
leitores.
O mesmo estudo mostra ainda que os alunos leitores, em sua maioria, têm
lido revistas, jornais ou livros indicados pela escola. Além disso, o uso dos livros
em papel tem perdido espaço pelos ebooks – livros digitais. Esses dados
mostram que o trabalho de resgate da leitura deve ser grande e que o uso dos
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computadores tornou-se cada vez maior, tendo que se pensar no computador
como um aliado do ensino.
Há, diante disso, uma grande preocupação em resgatar o contato com o
texto literário, incentivando o hábito de leitura e escrita em sala de aula. Esses
dados anunciam ainda, que é necessário imbricar ao ensino de literatura novas
ferramentas que consigam envolver o aluno, instigando seu contato com o texto
literário. Pensa-se que, diante de um contexto cercado pela tecnologia, é
necessária a evolução da escola em relação às suas metodologias de ensino e
que esses métodos aproximem a realidade do aluno ao contexto de
aprendizagem.
Diante deste contexto, toma-se como necessário que o professor procure
meios para incentivar a formação de leitores, em nossos tempos, viabilizando o
acesso ao livro ou mesmo ao texto literário, e incluindo as ferramentas
tecnológicas no processo de ensino, já que têm trazido facilidade e rapidez na
propagação de textos.
1. Ensino de Literatura no Brasil e formação do leitor
Há uma grande preocupação com o ensino de Literatura no Brasil, isso
porque tem se observado, além do desinteresse pela leitura, a falta de aceitação
desta disciplina, que tem como foco a formação integral do ser, sendo
indispensável ao homem o contato com os textos literários, como afirma Candido
(2002). Segundo o autor, destaca-se a função humanizadora e social da literatura,
que é “a capacidade que ela tem de confirmar a humanidade do homem”
(CANDIDO, 2002, p.77) e que a literatura “exprime o homem e depois atua na
própria formação do homem” (CANDIDO, 2002, p.80).
O autor identifica ainda, que o sonhar, imaginar, fantasiar fazem parte da
vida humana e são ações que não são vazias, pois remetem à realidade do
homem: a busca pelo entendimento de si, do mundo, dos problemas sociais que o
cercam e de soluções para eles. Assim, o autor afirma que a literatura atua não
somente pela capacidade de satisfação em relação à fantasia, mas também
completa sua função humanizadora pela formação da personalidade do indivíduo,
atribuindo a isso, uma função psicológica da Literatura. Malard (1985) também
defende o ensino da literatura por sua prática social e diz que “o melhor caminho
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para se aprender a Literatura é a leitura”. Segunda a autora, o ensino de literatura
deve ser focado na leitura e não nos escritores, na história ou em resumos e
críticas de obras.
Diante desta visão da literatura como prática social de interação e
formação do ser humano, é necessário repensar as práticas pedagógicas e criar
metodologias que incentivem a leitura de textos literários e formação de leitores
não somente no âmbito escolar. A respeito disso, Regina Zilberman (2005) mostra
uma perspectiva atual para o ensino de Literatura nas Licenciaturas, repensando
a metodologia do ensino de literatura sob o olhar da temática e não da história,
como fundamentada até então.
Zilberman (2005) afirma que a forma arcaica de ensinar literatura
permanece em nossas universidades e é, por isso, que o professor não sabe
ensinar literatura de forma diferente. A autora caracteriza nosso ensino de
literatura da seguinte forma: ensino fundamentado na perspectiva histórica e
tomado de forma cronológica para estudar a evolução de cada período literário,
fazendo um aluno pensar que um período literário é superior a outro. E por fim, a
divisão das literaturas por nacionalidades, isolando a literatura brasileira da
portuguesa e até mesmo da africana; criando um sentimento de oposição e
marginalização com as literaturas oriundas de Portugal ou da África.
Neste repensar a literatura, Zilberman (2005) destaca como importante que
se incluam nos currículos o ensino por meio de temáticas, e ainda se estudem
obras de língua portuguesa, incluindo Literatura Africana, Portuguesa e Brasileira.
Essa proposta, segundo a autora, tem como finalidade a aproximação dos
contextos, o diálogo entre obras e a valorização da cultura e tradição, que em
muitos aspectos se aproxima nos países de língua portuguesa.
As propostas oferecidas pela autora também não distinguem a
nacionalidade dos autores, gêneros literários, autores e obras do cânone literário,
visto que busca relacionar variados gêneros, épocas, autores, nacionalidades ou
regionalidades dentro do tema proposto. Assim, como Zilberman tem proposto, a
literatura deve ser vista sob uma nova perspectiva, que contribua para difusão do
conhecimento e da reflexão crítica.
Entende-se que, o ensino de Literatura deve ter como objetivo primordial o
contato com o texto literário e aproximação do texto com o contexto social em que
o aluno está envolvido, assim como defendido Malard (1985). Desta forma, o
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ensino de Literatura pode avançar, alcançando a sua função social e resgatando
valores da sociedade.
Diante dessa necessidade de inserir o aluno no ambiente literatura,
destaca-se ainda, que é necessário inovar nas metodologias de ensino para
aproximação do aluno e contato com o texto literário. É a partir disso que se
começa a pensar no uso das ferramentas tecnológicas em aula, como
promovedor de motivação e envolvimento por parte do aluno durante as aulas.
Moran (2000) aborda essa temática, por vezes perturbadora, o autor aborda o uso
das tecnologias como um grande avanço para a educação, mas não como
ferramenta única de aprendizagem.
Em concordância as ideias de Moran, Kenski (2012) revela-se a favor do
uso das tecnologias, pois promovem a interatividade. A autora salienta que a
interatividade tornou-se essencial ao homem, e as aulas, como fonte de busca
pelo saber, podem apropriar-se dela para manter as relações de aprendizagem. É
pensando nisso que, se propõe o desenvolvimento de práticas de ensino onde o
aluno esteja motivado a participar e a construir seus conhecimentos e para isso, é
preciso que o professor também tenha um olhar acolhedor sobre as ferramentas
que a tecnologia nos disponibiliza.
Diante das considerações aqui apontadas, evidencia-se a necessidade de
trazer as ferramentas tecnológicas para a sala de aula, a fim de auxiliar na
motivação do aluno e inseri-lo no mundo da leitura de forma agradável e natural.
Pensando nisso, foi selecionado o software HagáQuê para uma proposta de
mediação de leitura literária e formação de leitores. As informações sobre o
software e contribuições para o ensino de Literatura serão abordadas na próxima
seção.
2. Contribuições do software educacional HagáQuê para a formação de
leitores literários
A ferramenta HagáQuê é um programa desenvolvido pela UNICAMP e tem
como objetivo facilitar a criação de histórias em quadrinhos, além disso, busca
promover as aulas pois trata-se da criação de histórias e do aprendizado das
habilidades que envolvem os meios digitais. Segundo informações contidas no
Tutorial do HQ o programa: “Foi desenvolvido de modo a facilitar o processo de
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criação de uma história em quadrinhos por uma criança ainda inexperiente no uso
do computador, mas com recursos suficientes para não limitar sua imaginação.”
(Tutorial do HQ, p.1)
O uso deste recurso tecnológico foi escolhido para a criação e o
desenvolvimento de aulas criativas, pois é um software que propicia tanto ao
aluno quanto ao professor um contato interativo e lúdico durante as atividades de
produção textual. Pensando que a habilidade de escrita deve ser incentivada e de
forma que o aluno sinta-se não somente cobrado, mas um verdadeiro autor, que
possua um objetivo e um público a destinar seu texto, propõe-se a criação de
histórias em quadrinhos por meio de um programa especializado.
O programa é de fácil acesso, podendo ser baixado gratuitamente no site
da UNICAMP – Universidade criadora do projeto e posterior desenvolvimento do
Software. Após baixado e aberto, a tela inicial já terá os espaços próprios para os
quadrinhos. O programa disponibiliza ao criador da história opções de cenário e
de balões de fala, pensamento, narrador, entre outros. Além de fornecer figuras e
sons, ou possibilitar, acesso direto do programa à internet e aos arquivos do
computador, pesquisando imagens, sons ou até mesmo criando-os.
Depois de pronta, a história pode ser salva, aberta, impressa e até mesmo
publicada na internet e todas essas ações podem ser feitas neste mesmo Menu.
Durante o processo de criação das histórias, o aluno pode editar imagens,
recorrer a alguns recursos como aumentar e diminuir o tamanho das figuras, girar,
mudar a posição da foto, transferir a imagens para trás do balão de fala ou de
outras imagens, enfim, fazer as adaptações necessárias para a criação do texto.
É um ótimo meio para usar a criatividade e despertar o interesse pela
aprendizagem eletrônica e discursiva.
Sobre sua capacidade auxiliadora de práticas leitoras, partindo de uma
atividade lúdica, Bim (2001) apud Zancanaro (2011) explica que o Hagáquê parte
de uma atividade lúdica para a transmissão de conhecimentos, auxiliando no
desenvolvimento cognitivo, afetivo e psicomotor das crianças. Ou seja, o software
não se utiliza apenas da criatividade da criança, mas através dela produz novos
conhecimentos, fazendo relações com a área afetiva, psicológica e motora.
Da mesma forma, mas agora com base nas ideias de Alonso e Santarosa
(2006), Zancanaro (2011) explica que a leitura envolve processos cognitivos e
atividades socioculturais: a leitura constitui-se no instrumento que permite o
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acesso à cultura e ao conhecimento, enquanto a escrita constrói o pensamento
lógico, organizando e estruturando a informação que gera o conhecimento.
Constata-se, através dessas proposições, que a atividade de escrita exige
mais conhecimentos da criança do que a leitura apenas, porém não se pode
deixar de notar que ambos são atos dependentes um do outro e que ambos
devem ser exercitados. Diante disso, encontra-se no HagáQuê uma ferramenta
que auxilia essas habilidades, dando suporte para o desenvolvimento da
criatividade do autor, que, em contato com o texto, pode usar seus
conhecimentos, sua cultura e suas vivências para criar novas histórias.
3. Literatura brasileira e africana: leitura comparada a partir de um tema
gerador
Esta seção tem como objetivo mostrar de forma sucinta como se pode
relacionar obras de literatura brasileira e africana a partir de uma temática, ou
seja, um tema gerador que seja abordado em um conto brasileiro e em u conto
africano. Assim, a partir de temáticas que aproximam os textos pode-se tornar a
formação do leitor e as aulas de literatura mais reflexivas, interessantes.
O objetivo geral dessa atividade é formar leitores críticos que saibam
realizar cotejos entre dois textos literários produzidos em contextos diversos (um
brasileiro e um africano), usando a ferramenta HagáQuê para externalizar
reflexões sobre a leitura. De forma específica, busca-se: Ampliar conhecimentos
sobre textos da literatura brasileira e africana, partindo da leitura literária para
refletir sobre o contexto social e cultural que envolve ou envolveu cada povo e
conhecer aspectos relacionados ao país e ao escritor de cada conto; Relacionar
textos criados em contextos diferentes, Brasil e África, sensibilizando o aluno para
a reflexão sobre a relação de domínio entre o homem e o animal, fazendo-o
pensar sobre as questões sociais enfatizadas pela literatura ; Desenvolver
habilidades relacionadas à produção textual a partir do software educacional que
propicia a interação e análise crítica do aluno.
Quanto a habilidades a serem desenvolvidas, segundo a Matriz de
Referência do ENEM, destacam-se que o cotejo de contos pode contemplar: H12
- conhecer diferentes funções da arte, do trabalho da produção dos artistas em
seus meios culturais; H15 - Estabelecer relações entre o texto literário e o
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momento de sua produção, situando aspectos do contexto histórico, social e
político; H17 - Reconhecer a presença de valores sociais e humanos atualizáveis
e permanentes no patrimônio literário nacional; H22 - Relacionar, em diferentes
textos, opiniões, temas, assuntos e recursos lingüísticos; H28 - Reconhecer a
função e o impacto social das diferentes tecnologias da comunicação e
informação.
A atividade proposta destina-se a alunos do primeiro ano do Ensino Médio,
porque, a partir dessa etapa, em geral o aluno entra em contato com a disciplina
específica de Literatura, na qual já deve ter uma noção da função social da
literatura e prazer em ler textos literários para assim crescer como leitor crítico.
A metodologia destas atividades está pautada em métodos interativos de
leitura e produção textual, visando à colaboração dos alunos para a construção
dos sentidos atribuídos aos contos lidos e ainda produzindo textos que revelam
sua posição frente ao assunto abordado. O tempo previsto para a atividade é de
seis aulas de 50 minutos, podendo variar de acordo com cada turma. Para o
desenvolvimento dessa atividade de leitura literária, são definidos sete passos
conforme descrito no quadro abaixo:
QUADRO 1 – Sequência da aula
Atividades/ Passo a passo da aula
Exposição do que será realizado Aula
1 – Motivação Ativar o conhecimento prévio dos alunos por meio de perguntas sobre o tema gerador, explorado nos dois contos selecionados
1
2 - Assistir a um vídeo Discutir sobre o contexto 1
3 - Leitura e atividades sobre o conto africano.
Leitura oral do conto e análise do mesmo por meio de atividades orais e escritas, refletindo sobre o contexto social de Angola.
2
4 - Leitura e atividades sobre o conto brasileiro.
Leitura silenciosa do conto brasileiro e análise do texto por meio de conversa.
3
5 – Atividades escritas Análise do conto por meio de atividades escritas
4
6 – Produção textual Produção de uma HQ por meio do software HagáQuê.
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Como avaliação da atividade, sugere-se que seja feita avaliação da
produção da HQ a partir de um quadro avaliativo em que fiquem claros, ao aluno
e ao professor, os critérios que serão analisados no desenvolvimento do texto.
Desta forma, entende-se que a avaliação torna-se justa e que o aluno poderá criar
sua HQ atendendo aos princípios de reflexão crítica literária e desenvolvendo as
habilidades propostas pela atividade.
Alguns itens são necessários para fundamentação e criação dos critérios
avaliativos, são eles: seguir a temática proposta; dialogar sua HQ com os contos
lidos, estabelecendo relação de comparação entre as obras; habilidades em
relacionar criticamente literatura com realidade, promovendo situações de
transformação de valores sociais; capacidade de criar um enredo lógico e
harmonioso; relacionar essas duas formas de linguagem, adequando a história ao
gênero histórias em quadrinhos; estabelecer a ligação entre o texto de maneira
coesa e coerente, de modo que o leitor entenda a história; correlação entre a
linguagem utilizada e o contexto apresentado na história; uso correto das
palavras: grafia e acentuação.
Considerações Finais
Diante das deficiências apontadas para o ensino de Literatura e formação
de leitores no Brasil, desenvolveu-se uma prática mediadora de leitura, tendo
como objetivo um ensino pautado pela interatividade e contato com o texto
literário. Pensou-se na aproximação de obras de literatura brasileira e africana, tal
como proposto por Zilberman (2005), de forma a acrescentar visões diferentes
sobre a mesma temática sem restringir a leitura literária à produção nacional.
Dentre as potencialidades destacadas pela proposta, destaca-se a
possibilidade de diálogo entre textos produzidos em uma mesma língua, mas em
contextos diversos, a ampliação dos horizontes literários do aluno, não limitando a
formação do leitor apenas à literatura nacional, nem a uma progressão histórica.
Mas, como defende Zilberman (2005), uma leitura voltada para a perspectiva
temática, conectando textos das diferentes literaturas de língua portuguesa e
excluindo-se a seleção progressiva norteada por períodos literários ou momentos
históricos.
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Entende-se que as atividades desenvolvidas privilegiam a leitura dos textos
literários, voltando-se para uma reflexão crítica, apoiando-se no contexto social e
cultural que originou o texto. Tal como explicitou Malard (1985) se um texto é
escrito partindo da realidade, deve-se também apoiar-se nela para reflexão
literária. Além disso, a autora diz que criticidade está ligada ao conhecimento de
mundo que o aluno possui, portanto, esse conhecimento também é alicerce para
a formação do leitor.
Constata-se que a proposta relaciona obras de diferentes autores, criadas
em contextos diversos, mas que tratam de temas semelhantes e que podem
dialogar entre si. Ao se proporcionar esse diálogo, acredita-se que as aulas
proporcionam reflexões sobre uma temática universal, incitando a percepção da
função dos textos literários para a denúncia dos problemas sociais e
fundamentando conceitos necessários para o desenvolvimento moral do aluno.
Sobre a utilização da ferramenta HagáQuê, conclui-se que o software foi
proveitoso para a construção de textos, à medida que promove a interatividade –
defendido por Kenski (2012) – mediada pelo professor, o que resgata a ideia de
diversidade nas aulas e proporciona o contato com as tecnologias digitais, tão
comum aos alunos, nativos digitais em sua maioria. Também auxilia na
compreensão dos textos, possibilitando ao aluno relacionar a temática estudada
com a realidade, desenvolvendo assim, sua a criticidade frente a esse tema de
ordem social.
REFERÊNCIAS
BRASIL. Matriz de Referência do ENEM. Ministério da Educação: Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira – Brasília: 2012. Disponível em: <http://download.inep.gov.br/educacao_basica/enem/downloads/2012/matriz_referencia_enem.pdf>. Acesso em: 22 jul. 2015. CANDIDO, Antonio. Textos de Intervenção. Seleção, apresentações e notas de Vinicius Dantas. São Paulo; Duas Cidades: Ed.34, 2002. FAILLA, Zoara (Org). Retratos da Leitura no Brasil 3. 2012. Disponível em: <http://www.imprensaoficial.com.br/retratosdaleitura/RetratosDaLeituraNoBrasil3-2012.pdf>. Acesso em: 09 out. 2014. KENSKI, Vani Moreira. Educação e tecnologias: o novo ritmo da informação. Campinas, SP: Papirus, 2012.
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MALARD, Letícia. Ensino de Literatura no 2º grau: problemas e perspectivas. Porto Alegre: Mercado Aberto, 1985. MORAN. Ensino e Aprendizagem Inovadores com Tecnologias Audiovisuais e Telemáticas. In: MORAN, José Manue; MASETTO, Marcos T. BEHRENS, Marilda Aparecida. Novas tecnologias e mediação pedagógica. Campinas, SP: Papirus, 2000. p.11- 66. TUTORIAL DO HAGÁQUÊ. Disponível em: <https://ntmpassofundo.files.wordpress.com/2011/07/tutorial-do-hq1.pdf. Acesso em 15 out. 2014>. ZANCANARO, Edicarla Venturolli. Avaliação do Software Hagáquê, Auxiliando no Processo Ensino-Aprendizagem da Língua Portuguesa. Monografia (Universidade Aberta do Brasil).: Cuiabá/MT, 2011. Disponível em: <http://drupal.ic.ufmt.br/sites/default/files/field/pdf/Monografia/EdicarlaZancanaro.pdf>. Acesso em: 17 nov. 2014. ZILBERMAN. A Universidade Brasileira e o Ensino das Literaturas de Língua Portuguesa. In: BORDINI, Maria da Glória. REMÉDIOS, Maria Luíza Ritzel. Crítica do tempo presente: estudo, difusão e ensino de literaturas de língua portuguesa. Porto Alegre: Associação Internacional de Lusitanas: Instituto Estadual do Livro, 2005. p.232-244.
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A PONTE PELA QUAL PRECISAMOS PASSAR
Bernadete Queiroz dos Reis Guerra
RESUMO Neste artigo, buscamos socializar uma experiência metodológica desenvolvida na Escola Estadual
Técnica José Cañellas-FW., que teve como o objetivo “promover e estimular a prática da leitura e
da produção textual no ensino de Português, com os alunos dos terceiros anos do Ensino Médio
Politécnico”. A atividade foi realizada utilizando a estratégia do “ler o gênero carta aberta em
diferentes meios da mídia eletrônica”, tendo em vista que a rede tecnológica vem sendo um dos
principais meios de comunicação utilizados pelos estudantes e população em geral. A experiência
teve como título: “A Ponte pela qual precisamos passar” que implica em uso de um direito
fundamental ao cidadão brasileiro, e dela resultou no desenvolvimento de práticas discursivas com
interlocutores reais. A culminância ocorreu com produções individuais de uma carta aberta
relacionando a problemática da interdição da Ponte do Rio Uruguai, desde novembro de 2013,
com a ponte-meta de vida de cada um.
Palavras-chave: Direitos Humanos. Tecnologia. Carta Aberta. Interdisciplinaridade.
ABSTRACT In this article, we seek to socialize the methodological experience developed at Escola Estadual Técnica José Cañellas in FW, which had as the objective to "promote and encourage the reading and textual production practice in the teaching of Portuguese with the students from third grade at Polytechnic High School ". The activity was performed using the strategy "read the open letter genre in different means of electronic media," in order that technological network has been one of the main media used by students and the general population. The experience was titled: "The bridge through which we must pass" which implies the use of a fundamental right to a Brazilian citizen, and it resulted in the development of discursive practices with real actors. The culmination occurred with individual productions of an open letter relating the issue of ban on the Uruguay River Bridge, since November 2013, with the bridge-life goal of each. Keywords: Human Rights. Technology. Teaching methodology. Open Letter. Interdisciplinary.
Introdução
Este artigo apresenta o projeto de letramento aplicado na Escola Estadual
Técnica José Cañellas, Frederico Westphalen, no componente curricular Língua
Portuguesa, na Área do Conhecimento de Linguagens Códigos e suas
Tecnologias, através de estudos realizados em etapas, no período de maio a
junho de 2015, com alunos de terceira série do Ensino Médio Politécnico, através
de práticas discursivas.
Objetivou-se conhecer o gênero textual carta aberta. Para tanto, partiu-se
da realidade em que vivemos, de uma situação problema, ou seja, da interdição
da ponte do Rio Uruguai, em Iraí, questão, portanto, regional e também de nosso
interesse. As práticas do projeto foram alicerçadas no desenvolvimento de
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habilidades e competências linguísticas, desafios que precisam ir além dos
ensinamentos de sala de aula, para estabelecer conexões de competências na
leitura e escrita, sobretudo, numa situação real e regional.
Todas as etapas foram planejadas com base em sondagens, realizadas
para verificar a necessidade dos alunos. Nas atividades, utilizou-se a estratégia
do “ler o gênero carta aberta em diferentes meios da mídia eletrônica”, uma vez
que a rede tecnológica vem sendo um dos principais meios de comunicação
utilizados por estudantes e a população em geral. Logo, a metáfora utilizada A
Ponte pela qual precisamos passar, implicou em uso de um direito fundamental
ao cidadão brasileiro, e dela resultou o desenvolvimento de prática discursiva com
interlocutor real.
A produção de uma carta aberta foi relacionada à problemática da
interdição da Ponte do Rio Uruguai com a ponte-meta de vida de cada um. Isso,
porque é necessário a inserção, na escola, de práticas pedagógicas com
significados para a aprendizagem. Assim, esse ideal permeia as aulas de Língua
Portuguesa da Escola Estadual Técnica José Cañellas permitindo dar mais
sentido à educação enquanto direito humano fundamental.
Foi um projeto pensado, pois a incômoda interdição da ponte do rio
Uruguai,
desde novembro de 2013, ligação principal das microrregiões do Noroeste
sul-riograndense e Oeste catarinense. Além de situar-se no traçado da BR-158, e
marcar o quilômetro zero da BR-386, a ponte com mais de mil metros de
extensão sobre o rio Uruguai, ligando os estados do RS e SC, ocasionou
problemas para a economia das regiões e afetou mais de 60 municípios. Além do
mais, criou transtorno à vida de moradores de uma vasta região produtiva do Sul
do país, gerando pesados prejuízos econômicos. Com isso, a ligação entre esses
estados ficou comprometida no Extremo Sul do Brasil. A situação foiconsiderada
como um descaso nacional, porque deixou de passar, pela região mais de mil
carretas por dia, somados aos prejuízos no transporte com desvios aumentando
mais de 200 quilômetros de viagem por rotas de trechos longos e de difíceis
acessos, principalmente para o tráfego de cargas pesadas, sem contar os riscos.
Nesse contexto, a Escola Estadual Técnica José Cañellas, situada em área
urbana, de Frederico Westphalen, RS, incluída nesse rol de municípios afetados e
olhando ao seu redor, sensibilizada com a interdição da ponte, inseriu práticas de
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letramento à sua realidade, valorando seus sujeitos enquanto protagonistas e
agentes de sua comunidade sendo a maior responsável de promoção de eventos
dentro e fora dela para atingir sua função social, por meio de leitura e escrita,
sensibilizando autoridades responsáveis para a resolução do problema.
O projeto A ponte pela qual precisamos passar objetivou, desenvolver
práticas discursivas, com interlocutores reais, por meio do Gênero carta aberta,
uma vez que, foi oportuno trabalhar este gênero, com a intenção de orientar os
alunos para a vida. A produção textual foi de caráter argumentativo, empenhado
em promover uma discussão, permitir opiniões e reivindicações acerca da
interdição da ponte, por ser de caráter coletivo e relevante à comunidade regional.
A escola valorando seu currículo, incluiu prática de letramento com
pertinência pedagógica, pois promoveu assim, por meio da escrita, prática
discursiva, para os alunos desenvolver a capacidade crítica de expressar,
organizar ideias de argumentação, tendo como público-alvo interlocutor real numa
comunicação também real e necessária. Para tanto, as possibilidades materiais
de realização do projeto foram aquelas presentes no dia a dia da escola e na vida
de cada um, ou seja, textos, jornais, revistas, sites, data show, cadernos, sala de
multimídia, envolvendo alunos, professores, direção, coordenação pedagógica,
palestrantes, pais, outros segmentos e representantes da comunidade em que a
escola se insere.
O Projeto incluiu atividades de História, Geografia e Física, num estudo
histórico-geográfico da região. Incluído nele, pesquisas, notícias, entrevistas,
filmagens, debates, para favorecer a multimodalidade de letramento na matriz
curricular e privilegiar a interdisciplinaridade. E ainda, para evidenciar maior
clareza no trabalho, tornando-o consistente. A dinâmica das atividades foi através
de etapas, ou seja, pilares sustentados num cronograma estipulado, em que se
obedeceu aos aspectos de um bom projeto, com diagnóstico inicial filtrando o
interesse dos alunos pelo gênero, Assim, seguiu-se com as interfaces,
envolvendo cada aluno na produção escrita, para tornar público a situação da
interdição da ponte e os decorrentes prejuízos.
Além do projeto priorizar a produção e circulação da carta aberta, também
contribuiu para preparar e capacitar os alunos, com bons textos, para diferentes
situações quando vida vir os exigir.
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Fundamentação teórica
Para trabalhar o componente curricular Língua Portuguesa, na Área do
Conhecimento de Linguagens, Códigos e suas Tecnologias, foi preciso
sensibilidade e atenção para perceber a situação real e concreta inserida na
aprendizagem. Por isso, a intrigante pergunta como ensinar o ler e o escrever
hoje, se temos possibilidades alargadas com as diferentes inovações
tecnológicas? Então, para ensinar a escrever textos e a exprimir-se oralmente em
situações públicas escolares e extraescolares, precisa-se de um ambiente na
escola, que seja oferecido aos alunos múltiplas ocasiões de leitura, de fala e de
escrita, que desperte um senso, sobretudo argumentativo. Isto, acontece quando
ocorrem práticas com sequência didática organizada e para uma finalidade, fora
disso não há sentido, pois quando se propõe trabalhar um projeto de letramento é
necessário sistematizar, em torno de um gênero textual principal, seja oral ou
escrito, numa situação de comunicação real.
Assim, conhecendo o aluno e o espaço dele, privilegiou-se a comunicação
com informações para valorar o ensinar leitura/escrita, impondo-se novas práticas
pedagógicas, a fim de transformar alunos em cidadãos críticos e atuantes. Pois,
um projeto de comunicação se realiza com uma finalidade clara e concreta:
para capacitar o aluno para ler o mundo e seus implícitos numa multiplicidade de discursos, contextos, textos, enfim, num pluralismo cultural conectados a canais plurais de comunicação, advindos de múltiplas demandas nas informações e comunicações, dimensionando, por sua vez expressões multissemióticas (digital ou impressa), ou seja, situações com multiplicidade de linguagens (fotos, vídeos, gráficos, linguagem verbal oral ou escrita, sonoridades) que fazem (re) leituras e (re) significados de textos e contextos (ROJO, Roxane, 2012).
Dessa forma, a autora é clara porque afirma que atualmente a sociedade
depara-se, no cotidiano, com a multimodalidade, multissemiose ou multiplicidade
de linguagens, exigindo, portanto, multiletramentos, com capacidades e práticas
de compreensão e produção de cada uma delas. Em suma, exigência de novos
letramentos, obviamente novas práticas e habilidades, ou seja, visual, sonora,
digital, para uma nova pedagogia.
Portanto, multiletramentos propiciam mudar o que na escola, entende-se
por ensinar e aprender o que permite pensar e explorar a capacidade crítica, entre
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outras coisas, canalizando o trabalho com o uso das novas tecnologias de
comunicação e informação. Diante desse contexto, vale destacar que Roxane
Rojo (2012) também afirma que o trabalho do professor deve partir das culturas
de referência dos alunos e de gêneros, mídias e linguagens por eles conhecidos
para poder então, buscar enfoque pluralista, ético, crítico e democrático.
A pedagogia dos multiletramentos, conforme Roxane Rojo (2012), propicia
a formação de leitores e produtores criadores de sentido e transformadores. Em
outras palavras, a intenção é, a partir da exploração de gêneros multimodais e
multiculturais, que os alunos se tornem agentes na construção de significados,
mesmo com letramentos híbridos, interativos e colaborativos, considerando
hipertextos e hipermídias para trajetórias de leitura e escrita.
Assim, as palavras dessa autora reforçam que trabalhar com projeto
viabiliza integrar leitura e produção textual na formação para a cidadania, com
diferencial pedagógico e organização didática na escola. Nesse aspecto, a Língua
Portuguesa, como lugar de interação de sujeitos, enfoca o desenvolvimento de
competências e habilidades linguísticas que possibilitam ampliação de letramento
dos alunos. Entende-se letramento, portanto, também
como um conjunto de práticas sociais que usa a escrita, enquanto sistema simbólico e enquanto tecnologia, em contextos específicos, para objetivos específicos. Portanto, sendo a escola a mais importante agência de letramento em nossa sociedade, esta deve proporcionar aos alunos oportunidades e condições para que se insiram, com autonomia, em eventos de letramento os mais diversos, que impliquem o uso (leitura e produção) de gêneros textuais diversos numa perspectiva de formação cidadã. (Angela Kleiman, 2005).
Em vista disso, foi muito importante conhecer previamente as faces do
letramento aplicados na escola, considerado, neste projeto, pelo ensino do gênero
carta aberta para viabilizar o exercício da cidadania, pois, entende-se ser a escola
o lugar para melhor ampliar o conhecimento e fazer uso dele nas práticas sociais.
Com a aquisição deste conhecimento, o aluno torna-se, então, parte integrante de
uma sociedade em que a habilidade comunicacional é essencial para a formação
cidadã. Por isso, aprender escrever uma carta aberta é aprender a produzir um
texto de acordo com as relações existentes entre os sujeitos e, dessa forma
ampliar as competências leitora e escritora.
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A inserção de práticas de letramento, por meio do gênero carta aberta
busca permitir que o aluno produza texto e seja o autor deste texto, com o
objetivo de defender um ponto de vista e convencer o seu interlocutor, uma vez
que ensinar a escrever um discurso nesta esfera, viabiliza o convívio entre texto,
autor e interlocutor verdadeiros em situações de comunicação concretas e
necessárias associadas ao domínio de linguagem própria enquanto prática
discursiva aliada a um espaço de interlocução, por exemplo, do ensino na escola
e a exigência em diferentes situações da vida, visto como possibilidade de
concretude em situações reais de interação. Isso só é possível por meio de uma
proposta didática baseada em perspectiva e metodologia que promova, de fato, a
aprendizagem do gênero em foco, pois aproxima o real da comunicação,
integrando leitura, interpretação e a produção textual, tratadas num procedimento
que se constitui de sequência didática basilar para professor e aluno trabalharem
no projeto determinado.
Assim, trabalhar projeto de letramento na Língua Portuguesa, é
fundamental para a apreensão de saberes da linguagem, da leitura/escrita de
textos enquanto eixos norteadores do fazer pedagógico, ampliando competências,
sejam linguísticas do usuário-sujeito e o texto daí surge como resposta às
múltiplas necessidades humanas.
O gênero carta aberta, trabalhado, sem dúvida, tornou uma prática mais
significativa na escola porque sabemos, que dessa forma, vincula saberes na
atuação social, bem como deixa de ser o professor um depositário do saber e
torna-o coordenador do processo de aprendizagem formando cidadãos que não
só exigem direitos, mas também cumprem deveres, por meio da participação ativa
na sociedade, pois criam direitos e novas formas de relação social, estreitando
escola com situações de vida.
Constituiu-se, o presente projeto, de estratégias didáticas integradoras de
práticas de letramento ativas, permitindo, assim, que um trabalho de curto prazo,
com sequência didática, possibilitasse à Língua Portuguesa atender necessidades
dos alunos.
A aplicação do projeto, por estar inserido em área urbana, cidade pequena,
pouco miscigenada, não se percebeu preconceitos ditados no espaço da escola,
havendo certa homogeneidade dos alunos; portanto, houve uma convergência de
interesse no projeto quanto ao aprendizado. Porém, do ponto de vista linguístico,
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tratou-se questões ligadas à construção do texto escrito, quanto à pontuação,
ortografia, nexos oracionais, e eventuais desacordos de uma escrita padrão.
Não houve, portanto, quaisquer divergências culturais ou outras relações
que se estabeleceu opondo-se ao convívio no desenvolver das etapas, pois o
intuito do projeto visou o aprendizado do gênero discursivo carta aberta para
saber argumentar sobre o problema apresentado e possibilitar a produção de um
bom texto desse gênero num contexto real.
Considerações finais
As estratégias gerais para que houvesse a motivação e a adesão dos
alunos ao projeto foi a busca por identificar, na cidade ou região, um problema
para trabalhar, focando um fato real. De imediato, elegeu-se a problemática da
interdição da ponte como temática proposta para o projeto.
Na sequência, identificou-se o principal gênero carta aberta, com suas
particularidades, diferenciando-se de outros gêneros que fizeram parte do projeto.
Todas as ações foram realizadas numa interação individual e em grupo. Algumas
delas foram desenvolvidas na busca de conhecimentos sobre o problema que
afetou a região, como viagem para conhecer a ponte e o traçado nos desvios de
rota. Entrevista com engenheiros, registros de fotos e vídeos, pesquisas do que
foi noticiado sobre a interdição da ponte, em jornais, rádio, TV, internet, escritos e
em vídeos. Também, exposição no espaço escolar, do material produzido durante
as etapas. Tudo foi amplamente debatido e refletido.
Valorou-se, em cada etapa, de forma processual e contínua, individual e
coletivamente, a forma oral e escrita, vinculadas aos usos das tecnologias.
Nesse entendimento, no contexto do gênero carta aberta, trabalhou-se
como se dá a circulação e como é o perfil do interlocutor pertinente à estrutura
deste gênero, compreendendo marcas utilizadas de interlocução que contribuem
para a estratégia argumentativa. E, sobretudo, trabalhou-se os recursos
linguísticos adequados a esse gênero em função do perfil do interlocutor,
empregando adequadamente os operadores argumentativos e compreendendo
marcas de interlocução. Por fim, o projeto teve a produção de uma carta sobre a
problemática da interdição da ponte do Rio Uruguai vinculada a um interlocutor
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real, socializado, também, com a comunidade escolar e local, para a publicidade e
torna o ato um exercício de cidadania.
REFERÊNCIAS
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PAI CONTRA MÃE: RELEITURA DRAMÁTICA PARA GOSTAR DE LER
Deisi Daiane Gehrke
RESUMO O principal desafio dos governos, estabelecimentos de ensino e docentes, no meio escolar, é o de
levar o aluno ao aprendizado da leitura, escrita e cálculo. Tornou-se um desafio aparentemente
complexo para os educadores do século XXI assegurar ao educando a aprendizagem escolar e o
gosto pela leitura. Atualmente, está claro que a leitura é muitas vezesimposta aos alunos, não
existindo um incentivo real para despertar o gosto do educando em ler. Assim feita, a leitura torna-
se maçante e desinteressante, de modo que os alunos criam verdadeira aversão a essa prática.
São muitos fatores que precisam ser vistos e repensados nesse sentido. Assim, a transformação
das linguagens do texto narrativo, ”Pai Contra Mãe”, escrito por Machado de Assis ao texto
dramático, e as pesquisas histórico-sociais que visem a compor o cenário e o figurino de uma e
peça teatral, objetivando sua encenação, podem consistir formas criativas de tornar a leitura uma
prática prazerosa para os alunos.
Palavras-chave: Conto brasileiro. Leitura. Linguagem teatral. Machado de Assis.
ABSTRACT The main challenge for governments, schools and teachers in middle school, is to induce the
student to reading, writing and calculation. Has become an apparently complex challenge for
educators of the twenty-first century to ensure to students the school learning and school reading
habits. Currently, it is clear that reading is often imposed to the students and there is no real
incentive to awaken the taste of the student in reading. Once done, the reading becomes dull and
uninteresting, so that students create real aversion to this practice. There are many factors that
need to be seen and rethink this. Thus, the transformation of the languages of the narrative text,
"Father Against Mother," written by Machado de Assis to the dramatic text and the social-historical
research that aim to make the scenery and costumes for an impromptu, aiming their staging, may
consist creative ways to make reading an enjoyable practice for students.
Keywords: Tale of Brazil. Reading. Theatrical language. Machado de Assis.
INTRODUÇÃO
A prática teatral, desde seus bastidores, apresenta-se como mecanismo
que pode levar o educando a um nível maior de interpretação do objeto de leitura.
Por isso tudo, empreendemos a operacionalização de relações entre o texto
narrativo ”Pai Contra Mãe”, escrito por Machado de Assis, e a linguagem teatral.
Estabelecemos como tarefa colaborativa envolvendo o professor de Literatura
Brasileira e os alunos do VI Semestre do Curso de Letras da URI, campus
Frederico Westphalen, a adaptação dessa narrativa, visando a uma leitura crítica,
hábil para ultrapassar a mera apreensão do código linguístico. Sem desvínculo a
esse objetivo, mostramos que a adequada pesquisa histórica, ou seja, a
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contextualização de um texto, pode se revestir de importância, para seu
entendimento.
O trabalho efetivou-se, primeiramente, através de pesquisa bibliográfica.
Procedemos a leituras e releituras da obra literária sob estudo, apoiadas em
referencial teórico acerca do texto dramático e da narrativa ficcional curta, sobre a
linguagem teatral em diversos aspectos e o contexto que Machado tinha em vista.
Também realizamos montagens de cenário e figurino; ensaios técnicos, pesquisa
sobre recursos audiofônicos, trabalhos de sonoplastia etc. Portanto, objetivamos
auxiliar na formação de um público leitor atuante e crítico, adaptando o referido
conto e dando cumprimento a todos os passos necessários para colocar em cena
a peça teatral resultante de tal adaptação.
1. A Prática da Leitura em Sala de Aula.
Ocorre que a qualidade das leituras efetuadas pela maioria dos estudantes
em sala de aula, na maioria das vezes, é deficiente, constituindo-se por textos
normalmente encontrados nos livros didáticos. A leitura literária é de extrema
importância, por sua capacidade de despertar a criatividade do estudante, sua
imaginação, seu senso criador:
[...] uma prática de leitura não autoritária, nem automatizada, relaciona-se fundamentalmente ao conteúdo da opção política que a orienta, assim como à valorização da natureza intelectual que ela porta consigo. No Terceiro Mundo, onde se localizam as sociedades em transformação que ambicionam a formulação e exeqüibilidade de um modelo de desenvolvimento que garanta, de alguma maneira, sua autonomia, essa característica da leitura é vivida de modo ainda mais sensível. Pois, de seus resultados, poderá ter seguimento ou não o projeto de liberação, já que as decisões no plano de ensino pesam substancialmente no conjunto da sociedade, com as repercussões marcantes (ZILBERMAN, 1991, p. 27).
Segundo Marisa Lajolo (1994, p. 106), é à literatura, como linguagem e
como instituição, que se confiam os diferentes imaginários, as diferentes
sensibilidades, valores e comportamentos. Por tais meios, uma sociedade,
mesmo estratificada como a nossa, expressa e discute simbolicamente seus
impasses, desejos, utopias, numa tentativa de solução dos problemas. Através
dos séculos, a maioria das pessoas vem tendo acesso limitado à linguagem
escrita, mas, mesmo assim, os textos sempre desempenharam papel fundamental
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na história humana, não só em conteúdo, mas em forma. A escrita revela a
natureza das relações sociais na comunidade e a cultura em que é produzida.
Os textos revelam a estrutura social, cultural e religiosa da época em que
são escritos. Comunicar-se via textualidades exige mais do que a capacidade de
leitura de símbolos lingüísticos em uma página. O que um texto simplesmente diz
e o que comunica socialmente podem ser realidades e idéias completamente
distintas. O intercâmbio real entre um autor e um leitor é baseado num passado
social e cultural partilhado. A escola é um dos aspectos de participação social,
não o único. Os alunos têm vidas próprias fora dos bancos escolares; muitos
desempenham papéis já muito importantes em suas comunidades primárias. O
ensino de literatura precisa provocar novas vontades, pois atingidos dessa forma,
virtuais leitores podem alcançar o real gosto pela leitura.
No entanto, grande obstáculo para trabalhar com as funções básicas da
literatura é o não conhecimento, por parte do professor, do amplo acervo de
títulos a serem utilizados:
Qualquer modalidade de ensino depende, antes de tudo, do domínio que se tem do objeto a ser ensinado. Quando se trata de literatura, a experiência de leitura e o senso crítico do professor não podem ser substituídos pelo aparato metodológico, por mais aperfeiçoado e atualizado que este seja. Uma aula de literatura bem planejada parte não da metodização das atividades, mas do próprio conteúdo dos textos a serem estudados. Assim sendo, o professor precisa ter uma leitura prévia e compreensiva dos mesmos, se deseja proporcionar a seus alunos vias eficazes de fruição e conhecimento das obras e da história literária (BORDINI; AGUIAR, 1993, p. 28).
A leitura pelo professor é antecessora da leitura do aluno, mas a
interpretação nem sempre precisa ser a mesma. Esse pode atingir outros sentidos
com a leitura e, se conseguir comprová-los, não cabe ao professor questioná-lo.
Nos dias atuais, com todos os recursos audiovisuais existentes e com o poder e
presença cada vez maior da televisão e internet, é importante utilizar tais recursos
como aliados no incentivo à leitura. A formação de leitores críticos exige que
crianças e adolescentes convivam com diversos suportes como retroprojetor, data
show, mural, cartaz, CD, DVD, CD-ROM, dentre outros.
Compreender as diferentes linguagens e os discursos que são veiculados
por meio delas é indispensável ao processamento crítico da realidade e da
sociedade atuais. No entanto, a leitura preconizada nas escolas, muitas vezes,
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desprovida de sentidos pela simples decodificação fragmentária, acaba por matar
nos jovens o prazer de ler. Já nos mundos primitivos ou antigos, eram utilizadas
práticas como a dança, os rituais, desenhos nas cavernas e a música:
Ciberespaço: um hipertexto com Pierre Lévy (2000) apresenta quatro relações com o conhecimento, que, segundo ele, a humanidade desenvolveu ao longo dos anos:
O saber, antes da escrita, ritual, místico e encarnado por uma comunidade viva;
O saber ligado à escrita, o saber trazido pelo livro, fixado pela figura do comentador ou do intérprete;
O saber após o advento da imprensa, configurado pela biblioteca, em cuja organização se destaca a figura do sábio ou erudito;
O saber desterritorializado da biblioteca do hipertexto, encarnado novamente por uma comunidade viva enquanto espaço cibernético (SCHOLZE; RÖSING, 2007, p. 85).
A escola precisa desenvolver competências para entender, analisar, criticar
a imensidão de informações que estão presentes em seu dia-a-dia, que não
fazem parte dos currículos escolares. Como o objetivo deste trabalho é
proporcionar uma alternativa para fazer do aluno um competente leitor,
enfocamos a linguagem teatral como mecanismo eficaz de construção de
sentidos no ato de leitura. Acreditamos que, fundamentalmente, a busca de
ensino-aprendizagem é adquirida a partir da experiência vivenciada, e não
apenas ouvida e refletida. As experimentações teatrais levam os que delas
participam à vivência de novas situações, proporcionam a percepção de novas
emoções e acontecimentos sociais. Assim, permitem o crescimento dos
educandos, em seu nível de compreensão acerca do tema estudado,
preenchendo as lacunas deixadas por uma leitura anterior de dada obra.
2. A Releitura Dramática e o Despertar para Leitura
O uso do teatro possibilita a utilização de dois objetos de construção de
sentidos: a peça (o texto em si) e a encenação dramática. Entender a primeira
exige muita leitura e discussão sobre os contextos históricos em que as peças
foram escritas e os artifícios empregados pelos autores para tratarem de
problemas trazidos nos enredos. Dessa forma, elementos sociais e
conhecimentos de outras áreas são evocados para sustentar uma compreensão
maior e uma leitura mais ampla:
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A expressão teatral está tão profundamente imbricada na natureza humana e na condição humana, que é impossível estabelecer a fronteira de uma atividade mais genérica e o teatro propriamente dito. Pode-se perceber a dificuldade observando o lúdico jogo teatral presente quando crianças brincam de Papai e Mamãe, de Mocinho e Bandido ou mimetizando as relações entre animais – nesses jogos as crianças já estão assimilando papéis que poderão desempenhar na vida adulta – note que a palavra ‘papéis’ veio do teatro (ARAÚJO apud SCHOLZE ; RÖSING; 2007, p. 291).
Ao vivenciar os sentimentos e as emoções protagonizados por atores em
diferentes cenas, o espectador se identifica, pois em seu dia-a-dia constrói sua
história particular, desempenha também um papel em sociedade. Assistir a um
espetáculo leva a uma vivência de sentimentos e emoções. Em sala de aula, a
utilização da peça teatral para estimular a leitura é desafiante, mas muito positiva;
desencadeia um jogo entre as operações mentais e os sentimentos e as emoções
despertadas pelo texto dramático. Após o ato de ler em si, é feita a explicação das
marcas do texto teatral, a escolha de personagens, a identificação do tema em
questão e a avaliação de sua importância, assim como das reações das
personagens, o cenário, o tempo, as situações.
A leitura do texto teatral pode ser feita também em voz alta. O diálogo entre
personagens transmite modos de pensar, agir e sentir, conduzindo ao
entendimento da condição humana através da ampliação do imaginário. A
encenação proporciona sensibilização dos participantes envolvidos,
proporcionando-lhes o desenvolvimento da sua consciência crítica, pois, ao se
deparar com a realidade abordada em drama, o leitor/espectador aciona sua
emotividade, o que lhe auxilia na construção de sentidos do objeto de leitura, no
caso, o drama encenado. O processo de retirar cenas, personagens e outros
elementos do texto original e conceber sua montagem significa um exercício
prático de como transitar dos estágios da interpretação à compreensão dos temas
abordados.
Como texto artístico, e também literário, o texto dramático é uma forma
clássica, composta basicamente de falas de uma ou mais personagens,
individuais (atores e atrizes) ou coletivas (coros); destina-se primariamente a ser
encenado e não apenas lido. Até um passado relativamente recente, não se
escrevia teatro a não ser em verso, mas o panorama se modifica nos últimos
tempos. De qualquer forma, a imensa maioria das peças de teatro está baseada
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na dramatização, ou seja, na representação por meio de atores encarnando
personagens.
Para realizar a transformação do texto literário em texto dramático, é
fundamental que o aluno leia bem o primeiro e analise alguns de seus elementos,
como: o tema central, a forma como acontecem os diálogos, os espaços onde a
história se desenrola. Também se observam as características físicas e
psicológicas das personagens. É preciso verificar se existe a possibilidade de
transformar o texto, de maneira fácil, de identificar qual estrutura será utilizada
para a encenação: cenários, roupas, figurinos, atores e atrizes disponíveis. Além
disso, devemos deixar claro que o texto dramático tem um formato a ser seguido:
a) Tema; estrutura; ação (exposição, conflito e desenlace); espaço e tempo;
personagens (retrato e jogo das relações); registros de língua: cuidada, corrente,
popular; b) Compreensão oral: expressão verbal em interação.
A encenação em sala de aula, por ser de caráter simples, normalmente
com estruturas improvisadas, não exige grandes produções. O aluno precisa
identificar então as possibilidades de encenar o texto lido: de que forma o cenário
será montado? Como será transformado o discurso: se em diálogo, monólogo
etc? Também é necessário verificar quem poderia desempenhar cada papel, de
acordo com as características das personagens, ver-se que tipos de
equipamentos se farão imprescindíveis, onde conseguir os figurinos e demais
recursos físicos.
Depois de verificar a viabilidade de transformar a narrativa estudada em
texto dramático para ser levado a cena, de sua leitura e compreensão, da escolha
das personagens, dos arranjos referente a cenários, assim como da
operacionalização de outros detalhes, realizam-se os ensaios e a apresentação.
Aqueles que nunca tiveram contato com o palco apresentarão algumas
dificuldades, mesmo em peça para ser encenada na própria escola, entre seus
próprios colegas e professores. Surgem daí algumas alternativas para trabalhar
os atores, como oficinas de teatro, recurso que os professores têm à mão para
melhorar a postura e o comprometimento dos alunos. Obtendo-se êxito, pode-se
inclusive montar um grupo de teatro na escola.
Possibilidades existem as mais variadas, o mais importante disso tudo é
que o aluno leia o texto literário, analisando-o para transformá-lo, mas sem se
perder de vista sua fruição. Ao trabalhar o teatro em sala de aula, em oficinas, os
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atores, amadores, desenvolvem habilidades pessoais, desfrutam da liberdade de
criação e compreendem regras estabelecidas, necessárias ao desenvolvimento
do jogo. A aplicação de jogos teatrais se torna muito importante; a criatividade,
obtida por meio de vários elementos e recursos, converte-se igualmente em
grande auxiliar para o aprimoramento intelectual e social:
Charles Combs, autor que defendeu tese sobre a epistemologia piagetiana aplicada a uma análise da criatividade dramática, conclui que “... a criatividade dramática proporciona um meio de atividade adaptativa para a criança que influencia sua descentralização cognitiva, social e moral. Mais ainda, é uma atividade realizada no contexto das artes, mais especificamente do teatro. Como tal, ela proporciona prazer estático tanto quanto um desafio intelectual através do qual a criança, como criador, ator, platéia e crítico, utiliza seus esquemas cognitivos e afetivos para estruturar a realidade objetiva (SPOLIN, 2004, p. 12).
Os jogos teatrais transformam o teatro como imaginação em teatro como
realidade cênica; incrementam o sentido de cooperação e tornam o indivíduo
independente. Aos poucos, ele vai compreendendo a diferença entre história e
ação dramática. São atividades que levam à iniciação no palco, solucionam
problemas com marcação, personagem, emoção, tempo e as relações dos atores
com a platéia. Os jogos produzem transformações nos atores, pela consciência
direta e dinâmica de uma experiência em meio à qual, experimentações e
técnicas são construídas e reconstruídas.
No relato de nossa experiência, uma vez conhecidos os procedimentos
básicos à encenação de uma peça teatral, procedemos à leitura de alguns contos
do escritor carioca Machado de Assis, dentre eles, “Pai Contra Mãe”. Após sua
interpretação, analisamos se poderia ser encenada, observando: o grau de
dificuldade na organização do cenário e dos figurinos, a escolha das pessoas que
fariam cada personagem; os recursos disponíveis; o amadorismo das atrizes e
dos atores a representarem.
Preliminarmente, no estudo da obra machadiana, constatamos que vários
trabalhos do escritor fluminense servem de inspiração para outras obrasliterárias,
releituras, encenações e filmagens, apresentando variadas perspectivas de
leitura. A temática varia, desde o amor ao terror, revelando as sutilezas de
Machado como documentarista de época, crítico de costumes e investigador dos
mistérios da existência (Cf. GLEDSON, 2006, p. 46). Grande parte de suas
narrativas estão vinculadas à representação da história brasileira no século XIX:
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No mesmo lugar, argumenta-se que havia, consciente ou inconsciente, um plano para acompanhar esta história, desde o começo do século XIX até os primeiros anos da República. Se incluirmos Casa velha, Machado publicou seis romances na sua fase madura, que se agrupam facilmente em pares, dos quais o primeiro oferece uma visão diacrônica dos acontecimentos; o segundo focaliza, de forma mais sincrônica, uma crise central desse período; em Casa Velha, esta crise é o fim da Regência e a Maioridade, de 1839-40, em Dom Casmurro, a Lei do ventre Livre, de 1871, e em Memorial de Aires, a Abolição, em 1888 (GLEDSON, 2003, p. 294).
Machado escreveu “Pai contra Mãe” num período em que já não produzia
muitos contos, nos anos seguintes ao sucesso da coletânea Papéis avulsos: em
1905, foi publicado na Revista Brasileira. O referido conto traz sua visão acerca
da escravidão num Brasil monarquista e autoritário. A obra ficcional descreve os
instrumentos de tortura aos escravos, os feitores com seus ofícios e aparelhos
como representantes das instituições sociais. Aparece a figura do Capitão do
Mato, capturador dos escravos que fugiam na época, sendo sua ocupação caçar
o semelhante. A personagem de Cândido Neves, um desses capturadores, torna-
se central. Ao redor dela, giram todos os acontecimentos da estória narrada.
Na adaptação do conto “Pai contra Mãe” – de narrativa ficcional para texto
dramático –, fizeram-se necessários muitos ajustes, tais como 1) adequação da
linguagem, transformando a narrativa em diálogos; 2) organização de todos os
detalhes, como cenografia, figurino, sonoplastia etc; 3) organização e divisão das
personagens. A conversão das linguagens ocorreu através da sintetização de
algumas descrições, da transcrição do discurso indireto em discurso direto. Uma
vez que o texto dramático é feito para ação; praticamente todo o texto precisou
ser transformado em falas das personagens. Tomamos grande cuidado para que
o texto transformado não perdesse o sentido, para que nem a temática nem a
perspectiva fossem alteradas. Recorremos ainda ao auxílio de relatos e
descrições feitos por um locutor, a fim de não prejudicar o entendimento do
enredo da obra literária e de seu contexto histórico.
A falta de uma representação mínima do cenário de uma história prejudicaria
sua representação no palco a ponto de anular completamente o efeito almejado.
Isso porque sua falta, habitual para os antigos, hoje causaria estranheza e
rejeição. O ideal residiria na montagem de cenas simples, mas com o
indispensável para estimular a imaginação do espectador, devendo-se evitar tanto
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aquele cuja riqueza elaborada é cansativa, como também não ter acessório
nenhum. Apesar de a expressão “cenário” reunir tudo o que diz respeito à
ambientação de uma peça, inclusive, os efeitos cênicos obtidos com a utilização
de sons naturais, de música, iluminação e outros, a palavra, em seu uso mais
comum, refere-se à imitação, no palco, de ambientes internos como salas de
estar, escritório etc. ou externos, como rua, jardim, campos, e outros onde tem
lugar a ação. Tais imitações são obtidas com a utilização de painéis pintados,
estruturas sólidas em madeira, móveis e objetos reais ou fabricados pelos
técnicos da cenografia.
Um plano cênico montado em sala de aula, ou na escola, precisa ter
simplicidade devido à limitação de recursos, tanto financeiros como técnicos, e do
amadorismo, no caso de ser o primeiro contato prático com esse tipo de arte. Um
escritório pode ser criado utilizando-se apenas uma escrivaninha e um par de
cadeiras, mas também, estantes de livros, sofás, lâmpada de mesa, tapete,
telefone, luminárias, cortinas nas janelas etc. O grande detalhamento tem seus
problemas. Por exemplo, onde colocar elementos cênicos quando, na passagem
de um ato a outro, precisarão ser mudados? Quanto tempo será gasto nessa
mudança, principalmente, quando objetos muito pesados forem utilizados?
Um dos elementos básicos dos cenários mais baratos e fáceis de serem
mudados e guardados é o painel de lonas pintadas esticadas em um bastidor de
madeira. Costuma ser leve, mostrando pregas e ondulações, e se estufa com o
pouco vento de um ventilador; precisa estar firmemente fixado, o que pode ser um
problema até mais difícil de resolver do que a construção da própria estrutura. É
necessário manter a mão uma reserva dos materiais mais empregados nas
montagens: grampos, pregos, colas, fitas adesivas, tinta spray, pincéis atômicos,
papéis diversos, tesoura, canetas etc. Dessa forma, o trabalho de montagem
pode ser feito sem o risco de atraso, tanto na fase de criação e fabricação dos
objetos, como nas remontagens entre um ato e outro, no decorrer da
representação.
Considerando tudo isso, depois de o conto “Pai contra Mãe” ser adaptado
para texto dramático, foi dividido em cenas e começamos a analisar a viabilização
do plano cênico. Como a narrativa trata da escravidão, surgiu a idéia de usar
pinturas de Debret sobre o tema, além de imagens do Rio de Janeiro do século
XIX. Realizamos um cenário em slides de data show, para a parte inicial da peça,
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quando o narrador situa os espectadores do contexto histórico da obra literária.
Montamos um cenário básico, a consistir na sala da casa de Candinho, na rua e
na farmácia, com mesa, sofá, cadeiras etc. Tudo com simplicidade, mas
possibilitando a identificação, por parte dos espectadores, do espaço trabalhado.
O figurino também é essencial a uma produção artística, sendo o traje usado
por uma ou mais personagens. O figurinista desempenha papel muito importante
dentro da dramaturgia, pois dará vida à apresentação, devendo criar seu trabalho
de acordo com a personalidade de cada personagem, seu tipo físico e a época
em que se passa o texto a ser representado. O traje faz transparecer sentimentos,
vida, estética, movimento, posição social, épocas e lugares através de suas
formas, cores e texturas.
Estabelecido isso, o espectador, ao olhar o conjunto, identfica a personagem
dentro da peça junto com outros elementos em cena e assim, pode captá-la sem
que os sons estejam anunciados. O figurinista cria uma linguagem de formas,
cores, texturas, que transmite a época, a situação econômica política e social,
indica a região ou cultura, estilo da personagem, estação climática, aspecto
psicológico. Tais elementos fazem-se necessários a fim de comunciar o sentido
do espetáculo.
No caso da peça adaptada do conto “Pai contra mãe”, não houve um
figurinista exclusivo. Pesquisamos na internet, particularmente, no site Rio Antigo,
sobre a vestimenta usada no período abordado pela obra literária, e o figurino foi
montado por todos, cada um com sua colaboração, uma vez que não
dispunhámos de recursos financeiros para isso. Da mesma forma, na montagem
do cenário em slides, buscando as fotografias usadas para esse fim, pudemos
identificar as roupas usadas na época em representação.
Os recursos sonoros também influem numa encenação, juntamente com o
cenário, o figurino e a iluminação. Sualinguagem pode alterar-se ou manter-se de
acordo com esses outros elementos visuais. Assim sendo, valemo-nos do rap
“Navio negreiro”, composto por Caetano Veloso, a partir do poema de Castro
Alves, como música de abertura e no momento das apresentações dos slides em
data show, que correspondiam às mudanças de cena. Ao final do último ato,
utilizamos como cortina musical o samba-enredo apresentado pela escola de
samba carioca Estação Primeira da Mangueira no ano de 1988: “Cem anos de
liberdade, realidade e ilusão”.
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Depois de constatada a importância de cada um desses itens por parte dos
envolvidos, assim como após montarmos cenário e figurinos, deliberamos quais
atores fariam cada papel, de acordo com os perfis individuais.Foram realizadas
várias leituras do texto dramático, cada ator recebeu seu roteiro escrito, para
começar a decorá-lo e analisar qual a forma mais apropriada para se expressar.
Durante os vários ensaios, definimos outros detalhes, como o posicionamento no
palco em cada cena, o tempo da música de fundo em comparação com os slides
do cenário etc. Inicialmente, existiam algumas dificuldades com o texto, as quais
foram sendo superadas. Todos se dedicaram bastante e se envolveram com todo
o processo, desde a adaptação do texto a sua encenação. O trabalho resultou em
diversas apresentações muito bem sucedidas, durante o segundo semestre de
2008 e no decorrer de 2009, apesar dos poucos recursos visuais e sonoros.
Atores por um dia, elementos cênicos (cenários, iluminação, figurino etc) e
demais recursos encarregaram-se de transmitir emoções e releituras, viabilizando
ultrapassar os limites da decodificação e da compreensão do texto. Por isso, entre
outros métodos, práticas e técnicas frutíferas, que possam dar acesso ao
conhecimento, propusemos a exploração do fundo contextual de uma obra
literária. Tivemos por objetivo fundamentar a criação de cenários, figurinos e
sonoplastia, para encenar a peça teatral resultante da obra literária adaptada, o
que nos permitiu trabalhar o texto literário e suas possibilidades textuais por meio
de atividades colaborativas, lúdicas e acessórias, sem descuidar da obra literária
em si, nem de sua leitura.
Considerações Finais
A adaptação do conto “Pai contra Mãe” em texto dramático, e a
estruturação necessária para levá-la a cena, assim como os ensaios e as
encenações mesmas, possibilitaram grande crescimento intelectual e maturação
da turma que desenvolveu o projeto. Descobrimos reais talentos para o teatro, os
ensaios e as apresentações trabalharam igualmente a maneira de se expressar
diante do público, em todos os que deles participaram. Conseguimos inclusive
despertar a vontade de criação de um grupo teatral na universidade, como prática
artística em si e como estratégia para incrementar a comunicação e a postura dos
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futuros professores, do mesmo modo, o domínio sobre o medo de falar a um
público maior.
As atividades implicadas na transformação da linguagem narrativo-ficcional
em teatral possibilitaram, aos graduandos em Letras, o conhecimento de novas
metodologias e a revisão de suas práticas em sala de aula. Sob todas essas
formas, pudemos compreender a leitura como um processo criativo e prazeroso,
mas que também se revela capaz de provocar reflexões e desenvolver o espírito
crítico. Neste exercício, aluno e professor se tornaram cúmplices; ora a
desempenhar, ora a ensaiar, cada um, o papel do outro.
REFERÊNCIAS:
BORDINI, Maria da Glória; AGUIAR, Vera Teixeira. Literatura: a formação do leitor. 2. ed. Porto Alegre: Mercado aberto, 1993. CASTELLO, José Aderaldo. A literatura brasileira: origens e unidade. São Paulo: EDUSP, 2004. 2v. CASTRO ALVES, Antônio Frederico de. Navio negreiro. Intérprete: VELOSO, Caetano. In: VELOSO, Caetano. Livro. New York: Nonesuch, 1998. 01 Compact Disc. GLEDSON, John. Por um novo Machado de Assis. São Paulo: Schwarcz, 2006. LAJOLO, Marisa. Do mundo da leitura para a leitura do mundo. São Paulo: Ática, 1994. MACHADO DE ASSIS, Joaquim Maria. Pai contra Mãe. In: MACHADO DE ASSIS, Joaquim Maria. Relíquias de casa velha. Rio de Janeiro: Garnier, 1906. p 5-12. Disponível em: <http: www.dominiopublico.gov.br>. Acesso em: 08 jan. 2009. PALLOTTINI, Renata. INTRODUÇÃOà dramaturgia. São Paulo: Ática, 1988. RELEITURAS. Disponível em: <http://www.releituras.com>. Acesso em: 13 mar. 2009. SCHOLZE, Lia; RÖSING, Tânia M K. Teorias e práticas de letramento. Brasília: INEP; MEC, 2007. SPOLIN, Viola. O jogo teatral no livro do diretor. 2. ed. São Paulo: Perspectiva, 2004.
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TURCO, Hélio; Jurandir; Alvinho. 100 anos de liberdade, realidade ou ilusão? In: LIESA. Sambas-enredo das escolas de samba do Rio de Janeiro 1998. Rio de Janeiro: Liga das Escolas de Samba, 1998. 01 LP. ZILBERMAN, Regina. A leitura e o ensino da literatura. 2. ed. São Paulo Contexto, 1991. _______. A conquista do jovem leitor. Letras de Hoje, Porto Alegre, v. 40, n. 4, p. 23- 30, 2005.
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FORMAÇÃO DE LEITORES DE LITERATURA NO ENSINO MÉDIO: ANÁLISE DE UMA PROPOSTA DIDÁTICA DO PORTAL DO
PROFESSOR
Jéssica Casarin Luana Teixeira Porto
RESUMO Este trabalho aborda o ensino de literatura no Ensino Médio, verificando potencialidades e fragilidades do tratamento ao texto literário em uma proposta didática do Portal do Professor, sítio do Ministério da Educação e cultura para favorecer a prática docente. Os objetivos do estudo são analisar a proposta didática e verificar se sua metodologia favorece a formação de leitores. Para realizar a pesquisa, foi selecionada a proposta de Marta Pontes Pinto e Eliana Dias, “Seiscentismo ou barroco: origens e características”. A análise foi construída com o suporte crítico de trabalhos de autores como Maurício Silva e Ricardo Azevedo. Através do estudo, pode-se concluir que a atividade do sítio educacional possui aspectos positivos e negativos, e que tal plano de aula apenas propiciará a construção de leitores se o professor tiver uma formação de qualidade, que o permita complementar e adaptar as atividades. Palavras-chave: Portal do Professor. Formação de leitor. Literatura. Ensino Médio.
ABSTRACT This work approaches the education of literature in Average Ensino, verifying potentialities and fragilities of the treatment to the literary text in a proposal didactic of the Vestibule of the Professor, small farm of the Ministry of the Education and culture to favor the practical professor. The objectives of the study are to analyze the proposal didactic and to verify if its methodology favors the formation of readers. To carry through the research, it was selected the proposal of Marta Pontes Pinto and Eliana Dias, “baroque Seiscentismo or: origins and characteristics”. The analysis was constructed with the critical support of works of authors as Maurício Silva and Ricardo Azevedo. Through the study, he can yourself be concluded that the activity of the educational small farm possesss positive and negative aspects, and that such plan of lesson will only propitiate the construction of readers if the professor will have a quality formation, that allows it to complement and to adapt the activities. Keywords: Portal do Professor. Formation of reader. Literature. Average education.
INTRODUÇÃO
Este trabalho discute a importância de uma formação de leitores de
Literatura no Ensino Médio, verificando se uma proposta didática disponível no
site Portal do Professor, avaliada pelos leitores como ótima, pode contribuir para o
processo de construção de um aluno leitor que possua as competências
necessárias para ser um cidadão crítico e questionador. Os objetivos do estudo
são avaliar o plano de aula e as atividades propostas calcando-se nos Parâmetros
Curriculares Nacionais (PCNs) e demais leituras sobre leitura e literatura e
verificar se tal material é interessante para a formação de leitores e aplicável a um
contexto escolar de Ensino Médio.
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A escolha deste tema interessa por várias razões: a) é necessário valorizar
o ensino da disciplina de literatura como crucial para a formação de leitores; b) é
preciso avaliar se os planos de aula correspondem às exigências dos Parâmetros
Curriculares Nacionais; c) o profissional da área de Letras precisa analisar e dar
juízo de valoràs propostas didáticas disponíveis, avaliando sua importância para a
formação dos alunos; d) é urgente a necessidade de formar cidadãos com
autonomia para lerem textos e saberem interpretá-los e criticá-los;
Desenvolvimento
O ensino de literatura no Ensino Médio enfrenta hoje muitos desafios
relacionados a seu conteúdo e prática. Nota-se desde o pouco tempo semanal
destinado a disciplina e o despreparo dos professores até a falta de interesse dos
alunos pela disciplina, que muitas vezes é vista apenas como o estudo dos
períodos literários, já que não entram em contato efetivo com o texto, o que
acarreta prejuízos à formação leitora e pessoal.
Nessa perspectiva, é de extrema importância a discussão sobre a prática
pedagógica na disciplina de Literatura Brasileira no Ensino Médio, que deve ter
seu planejamento voltado não só à aprendizagem das escolas literárias, mas à
expansão dos limites culturais do alunato, oque pode ser proporcionado pela
leitura.
Para isso, buscou-se no Portal do Professor, um site vinculado ao governo
federal em que professores podem compartilhar suas experiências e planos de
aula com demais colegas, um plano de aula da disciplina de Literatura que
estivesse em destaque, considerada interessante. O planejamento escolhido foi
desenvolvido por Marta Pontes Pinto e Eliana Dias, e leva o nome
deSeiscentismo ou barroco: origens e características.
De acordo com a descrição da proposta, o aluno poderá aprender a
interpretar textos; posicionar-se sobre o significado da palavra barroco, suas
características e o momento histórico que propiciou o Barroco; comentar sobre a
forma, as figuras de linguagem, a mitologia, e a temática do Barroco;
econtextualizar com outras formas de arte produzidas no período Barroco.O
tempo destinado à prática são dez aulas de cinquenta minutos. Considerando-se
que atualmente a disciplina de Literatura possui, em seu currículo, uma aula
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semanal de cinquenta minutos, dez aulas é um período bastante longo para tratar
de apenas um período literário.
Na proposta, a aula deverá ser iniciada em um laboratório digital, para que
os alunos acessem o link descrito, que leva ao poema Pequei, Senhor, de
Gregório de Matos. Recomenda-se, então, que o professor leia o poema em voz
alta e entregue uma cópia para cada aluno. Segundo as autoras, essa primeira
parte serve para despertar o gosto pela leitura nos alunos.
Na segunda parte, de análise e compreensão, e estudo de vocabulário,
sugere-se que as atividades sejam feitas oralmente, em forma de discussão a ser
promovida e mediada pelo professor, para que o aluno tenha espaço para expor
sua visão. As discussões orais, de acordo com os PCNs (2000) são importantes
na formação do sujeito, já que a exposição de opiniões divergentes facilita a
construção de pontos de vista mais articulados e organizados, sem a imposição
de uma única resposta significativa para a formação de opiniões. Como afirma
Cabral (2008):
um exercício de interpretação, por mais rico e abrangente que seja, refere-se a uma ação solitária do leitor sobre o texto lido, de modo a retirar dele as informações necessárias que atestarão sua habilidade em encontrar sentido para as palavras ou revelar intenção do autor, de acordo com o que for proposto pelo elaborador do exercício. Ganha-se em destreza, mas perde-se um pouco nesse processo, tendo em vista a diversidade de ideias que uma discussão pode oferecer. [...] Ambas têm relevância e um professor experiente usa seu saber para desenvolvê-las e aplicá-las em momentos oportunos (CABRAL, 2008, p. 133).
Assim, apesar dos exercícios de atividades interpretativas serem
importantes para a construção de sentido, propostas de socialização, debate e
confronto de ideias são responsáveis pela formação de sujeitos críticos e
autônomos.
Em uma das questões, exige-se do aluno conhecer a Bíblia e realizar um
intertexto, necessitando competência para relacionar diferentes textos. De acordo
Silva e Fritzen (2012), a estratégia de relacionar textos de diferentes tipos de
códigos e suportes deve ser tratada no ambiente escolar para democratizar o
acesso a bens culturais e sociais variados.
Após a discussão oral, pede-se que os alunos acessem outro site, em que
encontra-se um texto relativamente longo sobre a arte barroca, estilo
predominante no final do século XVI até meados do século XVIII. Ao final, existe
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outra recomendação de site para os alunos verem pinturas de artistas da época.
Nesta etapa, verifica-se que não ocorre nenhum trabalho com textos literários,
apenas com textos informativos, o que pode ser maçante para os alunos, além de
não contribuir para a leitura por fruição e consequente formação de leitor.
Em seguida, as autoras recomendam que se entregue um roteiro com
questões relativas às informações do texto lido. As atividades desta parte não
exigem muitas competências do aluno, pois as respostas são facilmente
encontradas no texto, demandando apenas a cópia, sem reflexão.
Na atividade seguinte, o professor deve dividir a turma em sete grupos e
dar a cada um deles um dos temas que deverão ser estudados e apresentados
em seminário. As apresentações, de acordo com as autoras, deverão ser
baseadas emoutro texto informativo disponibilizado. Essa atividade, que poderia
configurar-se de maneira interessante e interdisciplinar, com pesquisa livre de
acesso à internet sobre textos literários do período Barroco como demanda os
PCNs (2000), em que se afirma que o uso de tecnologias deve permear o estudo
e a pesquisa na escola, constitui-se apenas como mais um trabalho de
“decoreba”. Para a preparação do trabalho em grupo e esclarecimento de
dúvidas, recomenda-se que duas aulas sejam disponibilizadas.
Após a apresentação do seminário, as autoras recomendam que o
professor apresente à turma a obra de Padre Antônio Vieira, a obra de Gregório
de Matos e termine a correção do poema Pequei Senhor. Considera-se o
ecletismo de temas de Gregório de Matos e recomenda-se que sejam realizadas
leituras de textos literários desse autor, porém, nenhum roteiro de leitura é
recomendado.
Após, mais uma lista de questões sobre o texto Pequei, Senhor, de
Gregório de Matos é disponibilizada. Esta contém atividades referentes à
estrutura do poema. Esse tipo de tarefa não colabora para a formação de leitores,
já que o texto literário é dissociado de sua qualidade artística e passa a ser visto
como um objeto a ser analisado, afirmam Silva e Fritzen (2012).A avaliação dos
alunos, segundo as autoras, deve ser processual e constante, verificando a
participação de cada um nas atividades.
Considerando tais constatações a respeito da proposta de prática
escolar analisada, verifica-se nessa aula a importância de contar-secom um
professor mediador e com boa formação voltada para leitura, já que a exploração
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de textos literários e o gosto pela leitura dependerão da adaptação e esforço de
cada docente. De acordo com Sousa (2006), na construção do aluno leitor, a
influência do professor é muito importante,o professor deve tornar o aluno crítico,
e tornar o conhecimento adquirido relevante e cabível ao contexto de vida do
educando, além de ser um leitor entusiasta compartilhe seu gosto pela leitura.
É pertinente apontar também o uso de tecnologias presente no plano de
aula. De acordo com Freire (2010), o professor deve saber lidar com a
diversificação de opções culturais vindas principalmente da tecnologia e utilizá-las
a seu favor, não se detendo apenas em uma, mas valorizando todas as formas, e
propondo assim uma aula mais dinâmica e criativa. Apesar da utilização desse
recurso, não houve uma abordagem muito criativa, pois seu uso deteve-se à
digitação de links para leitura de textos sobre o período, enquanto a internet
poderia proporcionar acesso à vídeos, jogos relacionados ao conteúdo, quizzes,
etc., que poderiam proporcionar um maior gosto pelas atividades de leitura.
A análise realizada neste trabalho sinalizou que apesar de avanços
ocorrerem considerando-se a metodologia utilizada, como uso de tecnologias,
realização de intertextos e debates, ainda existem deficiências tratando-se da
leitura do texto literário.
Considerações finais
A partir da análise do material didático, pode-se concluir que a atividade
possui pontos positivos, como o uso de intertextos, a opção de diálogos e debates
entre alunos e professor e o uso das tecnologias de informação. Porém, nota-se
que a metodologia utilizada não é consistente quanto ao uso limitado dos
recursos digitais, escassez de textos literários para leitura, atividades que
consideram os aspectos formais do texto. Acredita-se, dessa forma, que esse
plano de aula só proporcionará uma situação de formação de leitores se o
professor tiver uma formação de qualidade, que o permita adaptar e
complementar as atividades.
Com esse trabalho, pode-se avaliar também que práticas escolares que
contemplem a formação crítica do aluno são escassas, e que os professores
também necessitam de uma formação que desenvolva seu senso crítico e sua
metodologia na hora de escolher ou formular sua prática escolar.
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