237
UNIVERSIDADE ESTADUAL DO CEARÁ CENTRO DE HUMANIDADES PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM LINGUÍSTICA APLICADA ANDREZZA ALVES QUEIROZ REFERENCIAÇÃO E POLIDEZ EM CARTAS DE AMOR: O RESGATE DA HISTÓRIA DE JAYME E MARIA POR MEIO DA (RE)CONSTRUÇÃO DO SELF E DO OUTRO FORTALEZA-CE 2015

UNIVERSIDADE ESTADUAL DO CEARÁ CENTRO DE … Alves.pdf · andrezza alves queiroz referenciaÇÃo e polidez em cartas de amor: o resgate da histÓria de jayme e maria por meio da

Embed Size (px)

Citation preview

UNIVERSIDADE ESTADUAL DO CEAR

CENTRO DE HUMANIDADES

PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM LINGUSTICA APLICADA

ANDREZZA ALVES QUEIROZ

REFERENCIAO E POLIDEZ EM CARTAS DE AMOR: O RESGATE DA

HISTRIA DE JAYME E MARIA POR MEIO DA (RE)CONSTRUO DO SELF E

DO OUTRO

FORTALEZA-CE

2015

ANDREZZA ALVES QUEIROZ

REFERENCIAO E POLIDEZ EM CARTAS DE AMOR: O RESGATE DA HISTRIA

DE JAYME E MARIA POR MEIO DA (RE)CONSTRUO DO SELF E DO OUTRO

Dissertao apresentada ao Programa de Ps-

Graduao em Lingustica Aplicada, do Centro

de Humanidades da Universidade Estadual do

Cear, como requisito parcial para obteno do

ttulo de Mestre em Lingustica Aplicada. rea

de concentrao: Linguagem e Interao.

Orientadora: Prof. Dr. Maria Helenice Arajo

Costa.

FORTALEZA-CE

2015

Dados Internacionais de Catalogao na Publicao

Universidade Estadual do Cear

Biblioteca Central do Centro de Humanidades

Bibliotecrio Responsvel Doris Day Eliano Frana CRB-3/726

ANDREZZA ALVES QUEIROZ

Queiroz, Andrezza Alves.

Referenciao e Polidez: o resgate da histria de Jayme e Maria

por meio da (re)construo do self e do outro [recurso

eletrnico] / Andrezza Alves Queiroz. 2015.

1 CD-ROM. 230 f. : il. (algumas color.); 4 pol.

CD-ROM contendo o arquivo no formato PDF do trabalho

acadmico, acondicionado em caixa de DVD Slim (19 x 14 cm x 7

mm).

Dissertao (mestrado acadmico) Universidade Estadual do

Cear, Centro de Humanidades, Programa de Ps-Graduao em

Lingustica Aplicada, Fortaleza, 2015.

rea de concentrao: Linguagem e Interao.

Orientao: Prof. Dra. Maria Helenice Arajo Costa.

1. Texto. 2. Referenciao. 3. Polidez. 4. Cartas de amor. I.

Ttulo.

Dedico este trabalho ao amor de Jayme e

Maria.

AGRADECIMENTOS

A Deus, por sempre alimentar a f que me move.

minha mezinha, Valdsia, por todas as oraes, por acreditar sempre nessa filha teimosa e

por compreender como ningum o silncio que faz parte de mim.

Ao meu paizinho, Luiz Carlos, pelo orgulho que sempre teve dos meus primeiros textos e por

saber, antes de mim mesma, o caminho certo que eu deveria seguir.

Natacha, minha irm, por segurar as pontas em casa durante minha seleo para o

mestrado e durante a escritura desta dissertao.

Ao Victor, meu irmo, por atender todos os meus pedidos prontamente e por me ajudar a

alimentar a implicncia que nos acompanha desde crianas e que nos diverte tanto.

minha Profa querida, Helenice, por quem eu tenho um carinho imenso e um respeito

profundo. Obrigada por acreditar desde o comecinho em mim. Obrigada por contribuir para

que eu seja uma pessoa melhor. Obrigada pela companhia constante nesta difcil caminhada

dissertativa.

Alana, Maninha e Raquel, minhas catirobas queridas, pela amizade sincera e verdadeira,

por me ouvirem sempre que eu precisei, por me apoiarem incondicionalmente desde a

graduao. P.S.: Um agradecimento adicional Alana pela gentileza em revisar este trabalho

e pelas sugestes preciosas.

Benedita, pelo carinho, pelos presentes cheirosos, pela ateno com que sempre me trata,

pela polidez que lhe to peculiar, por ser essa pessoa maravilhosa que eu admiro tanto.

Eduarda, pelo apoio carinhoso nos momentos difceis e pela torcida vibrante que me deu

fora para seguir em frente.

Hivilinha, pela amizade divertida que me mata de rir e pela ajuda inestimvel no momento

que tive problemas com meu computador.

s pessoas maravilhosas do GEENTE, Benedita, Alana, Poly, Jariza, rika, Charliana,

Eleildo, Eliana, Idlia, Joana, pelos conhecimentos divididos e pela amizade solidria.

Profa Letcia Adriana, pela confiana que deposita em mim e por fazer parte de momentos

importantes da minha trajetria acadmica, a defesa da monografia, a qualificao e a defesa

de mestrado.

Profa Margarete, pelas contribuies valiosas na banca de qualificao e por aceitar

participar da defesa deste trabalho.

profa Laura Tey, pela gentileza e cortesia de aceitar o convite para a suplncia deste

trabalho.

Keiliane, pela pacincia e pela doura em me atender sempre que eu precisei e por ter me

deixado te arrancar risos com a implicncia que eu criei para nos divertir. P.S.: Ainda no

comprei outro pen drive.

Ao PosLA, pela oportunidade de fazer parte do programa.

Capes, pelo apoio financeiro.

profa Clia Regina dos Santos Lopes e doutoranda Rachel de Oliveira Pereira pela

organizao do Acervo Jaime-Maria Casal dos anos 30 (1936-1937).

equipe do Laboratrio de Histria do Portugus (LaborHistrico), Profa Clia Regina dos

Santos Lopes, Profa Mrcia Cristina de Brito Rumeu, Profa Silvia Regina de Oliveira

Cavalcante, Profa Juliana Barbosa de Segadas Vianna e Prof. Leonardo Lennertz Marcotulio

pela generosidade em compartilhar um rico acervo documental que nos permitiu conhecer a

linda histria de Jayme e Maria.

Cartas de Meu Av

A tarde cai, por demais

Erma, mida e silente

A chuva, em gotas glaciais,

Chora monotonamente.

E enquanto anoitece, vou

Lendo, sossegado e s,

As cartas que meu av

Escrevia a minha av.

Enternecido sorrio

Do fervor desses carinhos:

que os conheci velhinhos,

Quando o fogo era j frio.

Cartas de antes do noivado

Cartas de amor que comea,

Inquieto, maravilhado,

E sem saber o que pea.

Temendo a cada momento

Ofend-la, desgost-la,

Quer ler em seu pensamento

E balbucia, no fala

A mo plida tremia

Contando o seu grande bem.

Mas, como o dele, batia

Dela o corao tambm.

(Manuel Bandeira)

RESUMO

Nesta pesquisa, entendendo o texto como um multissistema que compreende mltiplos

sistemas interativos (BEAUGRANDE, 1997, 34), nosso propsito resgatar a histria de

um casal de namorados dos anos trinta, Jayme e Maria, por meio da (re)construo do self e

do outro, nas cartas de amor trocadas entre eles, noventa e duas ao todo, as quais compem o

corpus Acervo Jaime-Maria, hospedado na pgina virtual Laboratrio de Histria do

Portugus Brasileiro (Labor-histrico PB). Para cumprir esse propsito, recorremos s

contribuies de textos dos campos tericos da referenciao (MONDADA; DUBOIS, 2003;

MARCUSCHI, 2007) e da polidez (GOFFMAN, 2011; LEECH, 2005), alm de textos

tericos acerca do contexto (HANKS, 2008; BENTES; REZENDE, 2008) e do gnero

epistolar (BIBER, 1988; VIOLI, 2009). No tratamento dos dados para a anlise, procedemos

inicialmente organizao do corpus em um apndice, composto pela sequncia completa de

cartas, dispostas cronologicamente; ao lado de cada carta, destacamos as expresses de

tratamento utilizadas pelo escrevente para se referir ao outro. A anlise est dividida em trs

partes: na primeira, registramos os resultados do levantamento quantitativo, no corpus

completo, de todas as expresses de tratamento utilizadas por Jayme e Maria para se referir ao

outro; na segunda, tratamos das trs fases que supomos constiturem a histria do casal de

namorados. Para a reconstituio desses episdios, tomamos como foco da anlise uma

amostra de oito cartas que, segundo entendemos, ofereciam pistas para inferncias que

favoreceriam a construo da narrativa; e na terceira parte, discutimos mais trs episdios

dessa histria, os quais, embora no faam parte direta da cronologia dos momentos

reconstrudos na segunda parte da anlise, consideramos importantes para complementar a

caracterizao desses personagens. Os resultados demonstraram que as reconstrues

ocorridas intra e intertextualmente garantiram a nfase das predicaes na construo dos

referentes. Alm disso, por um lado, as inferncias permitiram amplificar a materialidade do

discurso, o que favoreceu o resgate da histria dos personagens e, por outro, a polidez

lingustica contribuiu para a interpretao dos dados, tornando mais acessveis os discursos

dos interlocutores.

Palavras-chave: Texto. Referenciao. Polidez. Cartas de amor.

ABSTRACT

In this research, understanding text as a multi-system which comprises multiple interactive

systems (BEAUGRANDE, 1997, 34), our purpose is to recover the story of a loving couple

from the Thirties, Jayme and Maria, through the (re)construction of self and of other, in the

love letters exchanged between them, a total of ninety two, which compound the corpus

"Acervo Jaime-Maria ", hosted by the virtual page Laboratrio de Histria do Portugus

Brasileiro (Labor-histrico PB). In order to fulfill this purpose, we resorted to contributions

of texts from the referenciation (MONDADA; DUBOIS, 2003; MARCUSCHI, 2007) and

politeness theoretical fields (GOFFMAN, 2011; LEECH, 2005), as well as theoretical texts

about context (HANKS, 2008; BENTES; REZENDE, 2008) and the epistolary genre (BIBER,

1988; VIOLI, 2009). The treatment we gave the data for the analysis consisted initially of the

corpus organization in an appendix, made up of the complete following of letters,

chronologically arranged; next to each letter, we highlighted the expressions of treatment used

by the writers to refer to each other. The analysis is divided in three parts: in the first part, we

documented the results of the quantitative survey, of the whole corpus, of all expressions of

treatment used by Jayme and Maria to refer to each other; in the second one, we dealt with

three phases that constitute, we suppose, the loving couples story. In order to reconstitute

these episodes, we assumed as the focus of our analysis a sample of eight letters that,

according to what we understand, offered clues to inferences that benefited the construction of

the narrative; and in the third part, we discussed three more episodes of this story, which,

although are not actual part of the chronology of reconstructed moments in the second part of

the analysis, we considered important to complement these characters characterization. The

results demonstrated that the reconstructions in the text and the reconstructions between the

texts ensured the emphasis of predications on the construction of referents. In addition, on one

hand, the inferences allowed amplifying the materiality of discourse, which endorsed the

recovery of the characters story and, on the other hand, the linguistic politeness contributed

to the interpretation of the data, which made the speakers utterances more accessible.

Keywords: Text. Referenciation. Politeness. Love letters.

LISTA DE FIGURAS

Figura 1 - Acesso aos corpora do Projeto Para uma Histria do Portugus Brasileiro ........... 43

Figura 2 - Acesso ao Acervo Jayme-Maria Casal dos anos 30 (1936-1937) ........................ 44

Figura 3 - Acesso s correspondncias trocadas entre Jayme e Maria ..................................... 45

Figura 4 - Acesso s cartas para download............................................................................... 46

Figura 5 - Acesso aos arquivos na verso doc/pdf.................................................................... 47

SUMRIO

1 INTRODUO...................................................................................................... 7

2 REFERENCIAL TERICO................................................................................ 12

2.1 A REFERNCIA E A REFERENCIAO: DISCUTINDO O PERCURSO

TERICO ...............................................................................................................

12

2.1.1 A Categorizao .................................................................................................... 14

2.1.2 A Recategorizao ................................................................................................. 16

2.1.3 A Intersubjetividade ............................................................................................. 18

2.2 POLIDEZ LINGUSTICA: DISCUTINDO AS PERSPECTIVAS TERICAS

..................................................................................................................................

21

2.2.1 O trabalho de face de Goffman ............................................................................ 22

2.2.2 Polidez Lingustica: Brown e Levinson (1987) ................................................... 23

2.2.3 Polidez Lingustica: Leech (2005) ........................................................................ 25

2.3 A EMERGNCIA E A INCORPORAO: CONTEXTUALIZANDO AS

PISTAS ...................................................................................................................

28

2.3.1 O que contexto? .................................................................................................. 28

2.3.2 O social e o histrico: ampliando o ato localizado ............................................. 31

2.3.2.1 Sculo XIX: antecipando as mudanas ................................................................... 32

2.3.2.2 Sculo XX: disseminando as mudanas .................................................................. 33

2.4 UMA PALAVRA SOBRE O GNERO CARTA .................................................. 36

3 PROCEDIMENTOS METODOLGICOS ....................................................... 41

3.1 TIPO DE PESQUISA ............................................................................................. 41

3.2 CONTEXTO DA PESQUISA ................................................................................ 42

3.3 PROCEDIMENTOS DE COLETA DA PESQUISA ............................................. 43

3.4 CRITRIOS DE ANLISE .................................................................................... 49

4 PERCURSO DE (RE)CONSTRUO DOS SUJEITOS: RESGATANDO

UMA HISTRIA DE AMOR ..............................................................................

51

4.1 O TRATAMENTO ENTRE JAYME E MARIA: CARACTERIZANDO O

CORPUS .................................................................................................................

51

4.2 A HISTRIA DE JAYME E MARIA: CONSTRUINDO O SELF E O OUTRO.. 59

4.2.1 Primeira Fase: o preldio ..................................................................................... 60

4.2.1.1 Momento 1: a viagem, a chegada e a permanncia de Maria ................................. 60

4.2.1.2 Momento 2: a negociao e a consolidao dos sujeitos ........................................ 66

4.2.2 Segunda Fase: o clmax ......................................................................................... 80

4.2.2.1 Momento 3: a perseguio ao relacionamento de Jayme e Maria .......................... 80

4.2.3 Terceira Fase: o desenlace .................................................................................... 87

4.2.3.1 Momento 4: a calmaria representada pela subjetividade lrica de Jayme ............... 87

4.3 JAYME E MARIA: COMPLEMENTANDO A CARACTERIZAO DOS

PROTAGONISTAS ................................................................................................

95

5 CONSIDERAES FINAIS ............................................................................... 103

REFERNCIAS .................................................................................................... 108

APNDICES .......................................................................................................... 113

APNDICE A - Correspondncia entre Jayme e Maria (verso adaptada) .......... 115

APNDICE B - Correspondncia entre Jayme e Maria (acervo completo) ..........

124

7

1 INTRODUO

Os estudos lingusticos atuais, nos mais diversos quadros tericos, postulam que a

linguagem no um retrato ou uma imagem especular do mundo e que as palavras no

funcionam como etiquetas dos objetos ou das entidades a que se referem. A linguagem,

atividade sociointerativa de carter cognitivo e histrico, constitui-se em uma forma de ao

que se desenvolve entre os indivduos na sociedade, permitindo que estes se entendam.

A partir dessa perspectiva, que estabelece entre linguagem e mundo uma relao

no biunvoca, mas configurada por aes conjugadas, social e cognitivamente

(MARCUSCHI, 2007, p. 41), possvel perceber que as entidades discursivas no so

dotadas somente de uma dimenso sinttico-semntica. Pelo contrrio, seus sentidos tambm

so apreendidos atravs do entorno sociocognitivo e pragmtico motivado pelos participantes

da interao. O texto, ento, seria definido pelos seus contextos de uso situados e socialmente

partilhados.

Em nossa pesquisa, trabalhamos com o gnero epistolar, mais especificamente

com cartas de amor do incio do sculo XX. A nosso ver, esse dilogo escrito, nas palavras

de Violi (2009, p. 45-46), travado em fins de uma poca bastante representativa para a histria

do Brasil, contribui para reforar o que diz Barros (1996, p. 28): a relao entre os locutores

no apenas funda a linguagem e d sentido ao texto, como tambm constri os prprios

sujeitos produtores do texto.

Seguindo essa tica, nossos primeiros contatos com essas cartas de amor foram

unicamente voltados para o estudo da (re)construo do self e do outro. O carter particular

dessas missivas foi um dos aspectos que favoreceu nosso olhar sobre as formas de fazer

referncia ao self e ao outro, uma vez que os resultados geralmente apontavam para a

construo e a reconstruo de referentes que contribuam para manter viva a afetividade

negociada entre o casal. No entanto, devido ao contedo amoroso das cartas e ao contexto

histrico e social em que estavam imersos nossos personagens, esbarrvamos inevitavelmente

em um tratamento, alm de afetuoso, polido. Dessa forma, inquietou-nos sobremaneira saber

em que intensidade as possveis marcas lingusticas de polidez permeavam a subjetividade

dos remetentes.

A partir desse ponto, sentimos a necessidade de buscar o apoio de algumas ideias

provenientes da teoria da polidez para ajudar-nos a interpretar de forma proveitosa o que

parece ter ocorrido na troca comunicativa estabelecida entre nossos personagens, na medida

em que, como coloca Kerbrat-Orecchioni (2006, p. 76), as marcas de polidez exercem

8

presses muito fortes sobre a produo dos enunciados. Desse mergulho pragmtico,

emergiu nosso trabalho de concluso do Curso de Bacharelado em Letras, intitulado

Estratgias de polidez lingustica em cartas de amor. Nessa pesquisa, verificamos,

observando o trato polido dos participantes, quais as principais estratgias de polidez

lingustica usadas pelos missivistas para manter o equilbrio da interao e discutimos

possveis propsitos especficos relacionados a esses usos. Conclumos, a partir da anlise de

uma amostra de vinte cartas, que a presena substancial das estratgias de polidez postuladas

por Brown e Levinson (1987) nessas correspondncias funcionava como um recurso para

manter o vnculo afetivo entre os interlocutores e para afastar qualquer ao que pudesse

ameaar esse seu relacionamento amoroso. Nosso problema de pesquisa atual constitui uma

tentativa de ampliar esse estudo que iniciamos ainda na graduao.

Motivados pelos Estudos sociocognitivos do texto e pela Pragmtica, mais

especificamente, pela Referenciao e pela Polidez, estabelecemos como nosso objetivo geral

resgatar a histria de Jayme e Maria, por meio da (re)construo do self e do outro nas cartas

de amor trocadas entre esse casal de namorados dos anos trinta, utilizando para nossa anlise

pressupostos tericos da Lingustica Textual, principalmente voltados Referenciao, e da

Pragmtica, com nfase na Polidez. Essas cartas foram retiradas da pgina virtual Projeto

para a Histria do Portugus Brasileiro (PHPB). Guiados pela tese de que a negociao

intersubjetiva interfere na construo dos referentes, tomamos como objeto de anlise essas

missivas, cientes de que, ao analisarmos as expresses referenciais presentes nesses textos,

especialmente as expresses de tratamento afetuoso, podemos perceber os referentes

ganhando contornos especficos dentro do contexto em que esses usos foram negociados.

Apesar de reconhecermos que j existem diversos estudos especializados em

referenciao (SOUSA, 2005; CIULLA, 2008; CUSTDIO FILHO, 2011) e em polidez

lingustica (PAIVA, 2008; TEIXEIRA, 2011, PAIVA, 2013), percebemos que h uma

carncia de trabalhos que explorem a amplitude do texto recorrendo a esses dois campos

tericos. Reconhecemos, no entanto, que, dentro do campo da Lingustica Textual, existem

alguns trabalhos de aplicao do fenmeno da referenciao que, assim como o nosso,

assumem uma perspectiva sociocognitiva1 do texto, como, por exemplo, a investigao de

1 De acordo com Salomo (1999, p.64, grifo da autora), na abordagem sociocognitiva, a linguagem

operadora da conceptualizao socialmente localizada atravs da atuao de um sujeito cognitivo, em

situao comunicativa real, que produz significados como construes mentais, a serem sancionadas no fluxo

interativo. Em outras palavras, o sinal lingustico (acompanhado no s pela gramtica, mas tambm pelos

esquemas conceptuais e pelas molduras comunicativas) conduz o processo de significao diretamente no

contexto de uso.

9

Oliveira (2012), em que a autora destaca o processo criativo de algumas peas de divulgao.

Em seu estudo, ela volta-se para o processo sociocognitivo de criao e no apenas para o

produto final de divulgao, o que revela o olhar amplo da pesquisadora sobre o texto. Outra

investigao que tambm merece ser elencada a de Santos (2013). A autora, assim como

Oliveira, assume que as negociaes no envolvem apenas aspectos imediatos, mas tambm

abrangem aspectos mais amplos do texto.

Observamos, assim, que as pesquisas das autoras demonstram a mesma

peculiaridade da nossa: a ampliao dos sentidos do texto, no entanto precisamos ressaltar que

o diferencial dessas pesquisas e a do nosso trabalho so as posturas tericas. Oliveira (2012)

associa os estudos de referncia aos estudos em Semitica e Design, Santos (2013) estabelece

a aliana entre a perspectiva terica da referenciao e os estudos lingusticos que se

interessam pelo ciberespao e pela sociocognio, enquanto o nosso estudo est assentado no

campo dos estudos sociocognitivos do texto, mas tambm est pautado no territrio da

polidez. Diante dessa breve exposio, convm destacarmos que no nossa inteno

questionar a eficincia dessas pesquisas. Pelo contrrio, estamos na verdade conferindo o

merecido crdito s pesquisas que assumem a perspectiva sociocognitiva de texto e

enaltecendo essa peculiaridade que tambm faz parte de nosso trabalho.

Frisamos que, alm das contribuies do campo da referenciao, tambm

necessrio situar nossa investigao dentro do campo da polidez, o outro eixo terico em que

buscamos subsdios para entender algumas especificidades dos discursos de nossos

interlocutores. Dentro desse campo terico, destacamos o trabalho de Paiva (2008). Em sua

pesquisa, a autora faz uma anlise de como os participantes de uma sala de bate-papo utilizam

as estratgias e regras pragmticas de polidez lingustica e com que finalidade eles operam

esses usos.

Embora Paiva inove ao analisar a polidez lingustica em ambientes virtuais, uma

vez que a maioria das pesquisas sobre esse tema se restringem s interaes face a face,

destacamos que nossa pesquisa traz o diferencial de estudar a polidez em uma interao

assncrona. Acreditamos, portanto, que nosso objeto de estudo constitui uma forma distinta de

interao, visto que a distncia sentida afetivamente pelos interactantes, o que os obriga a

utilizar diversos recursos lingusticos na construo de uma cenografia que os presentifique.

Alm desse diferencial, salientamos que a polidez, em nossa pesquisa, est menos presa s

categorias postuladas pelos tericos clssicos da polidez, como Brown e Levinson (1987), e

mais empenhada em explicitar o dito e alcanar o implcito do discurso.

10

Evidenciamos ainda que nossa perspectiva de texto nos fez olhar para nosso

corpus de forma diferenciada da de outras investigaes, como Silva (2011), Lopes (2012) e

Silva (2012), que tambm o utilizaram como objeto de estudo. Dentre essas pesquisas,

apontamos a de Silva (2012), em que a autora faz uma incurso filolgica a fim de analisar os

aspectos grafemticos das cartas de Jayme e Maria. Entendemos, ento, que nossa proposta

permitiu evidenciar mais aspectos do que os destacados pela pesquisadora, uma vez que

estamos cientes que outros elementos, alm da materialidade, tambm contribuem para

ampliar a compreenso da histria de nossos protagonistas. Um desses elementos, ressaltado

em nossa pesquisa, o processo inferencial que nos possibilita preencher as lacunas presentes

nas cartas dos participantes e reconstruir a histria deles.

Nossa proposta se justifica, ento, no s pelo lugar que ela ocupa entre os

estudos do campo da referenciao e da polidez, mas tambm pelo fato de ela ampliar um

estudo, mencionado anteriormente, que iniciamos ainda na graduao. Pensamos que esse

dilogo entre a referenciao e a polidez nos permitiu ver os dados as cartas de amor sob

uma perspectiva ampla, que combina diversos aspectos sociocognitivos e entra em sintonia

com a tendncia atual de texto como evento dinmico e multissemitico. Sendo o texto um

construto multidisciplinar, no h como fugir interface da Lingustica de Texto com as

diversas cincias que do conta do estudo da linguagem. sob a perspectiva da necessidade

de colaborao entre diferentes campos de estudo para tentar dar conta do objeto complexo e

multifacetado que o texto, que julgamos pertinente esta pesquisa, a qual se prope olhar para

essas cartas de namorados do incio do sculo passado sob as lentes da Referenciao e da

Polidez lingustica.

Com base nas relaes que estabelecemos entre esses fundamentos tericos e a

partir do percurso que desenvolvemos at aqui, orientamo-nos, ao longo da investigao pelas

seguintes questes:

Como os atores sociais categorizam e recategorizam a si e ao outro ao longo

da troca de correspondncias?

Quais marcas de polidez esto envolvidas na construo desses atores sociais?

As escolhas referenciais e as marcas de polidez entrelaadas na tessitura

textual contribuem para contar a histria dos atores sociais?

De que forma a ampliao do texto possibilita o resgate da histria dos

protagonistas?

11

Para tentar responder a esses questionamentos, organizamos esta dissertao em

cinco captulos. No primeiro captulo, que constitudo por estas consideraes introdutrias,

explicitamos o problema, a relevncia e o objetivo principal de nosso estudo, alm das

questes de pesquisa.

No segundo captulo, apresentamos o referencial terico ao qual nosso trabalho

recorreu, abordando alguns conceitos fundamentais da Referenciao, da Teoria da Polidez,

do Contexto e do Gnero em foco, a Carta Pessoal, que fundamentaro a anlise do material

que selecionamos.

No terceiro captulo, descrevemos, de forma pormenorizada, as aes

desenvolvidas durante o percurso do nosso trabalho com o intuito de demonstrar a

autencidade de nossa fonte e esclarecer como foi feita a seleo das cartas que utilizamos em

nossa anlise.

No quarto capitulo, tomando por base as contribuies de Costa (2000, 2001,

2007a), Custdio Filho (2011), Marcuschi (2007), Ariel (2001), Bakhtin (1997, 2006),

Beaugrande (1997), Pinker (2008), Goffman (1975, 2011), Leech (2005), Hanks (2008), Del

Priore (2006), Violi (2009), procedemos anlise dos dados. Iniciamos este captulo com uma

apresentao geral das formas de tratamento encontradas nas cartas de cada personagem. Em

seguida, debruamo-nos sobre a anlise de oito cartas de amor trocadas entre o casal de

namorados, tentando, de um lado, explicitar como acontecem a categorizao e

recategorizao do self 2 e do outro, e de outro lado, avaliar quais as marcas de polidez

deixadas durante a construo dos sujeitos. Na ltima seo deste captulo, selecionamos trs

episdios adicionais da histria de Jayme e Maria para complementar a caracterizao desses

personagens.

No quinto e ltimo captulo, tecemos nossas consideraes finais sobre o trabalho.

Ao final dessas consideraes, apresentamos as referncias citadas em nosso

trabalho e, em seguida, exibimos um apndice com as cartas selecionadas para nossa anlise,

organizadas em sequncia cronolgica.

2 As noes de self e outro s quais fazemos referncia sero melhor explicitadas no segundo captulo.

12

2 REFERENCIAL TERICO

Escolhemos nossas palavras com cuidado porque elas

tm de realizar duas tarefas ao mesmo tempo: transmitir

nossas intenes e manter ou renegociar nossos vnculos

com os outros.

(PINKER, 2008, p. 477).

Como o nosso estudo envolve principalmente dois eixos tericos, julgamos

necessrio reservar espao para ambos ao explanar os principais conceitos que compem o

nosso quadro terico. Assim, organizamos este tpico em quatro sees, que contemplam os

dois lados da questo. Na primeira seo, que trata do eixo terico da Referenciao,

discorremos sobre os fenmenos da categorizao (MONDADA; DUBOIS, 2003; VARELA;

THOMPSON; ROSCH, 2003; MARCUSCHI, 2007), da recategorizao (CUSTDIO

FILHO, 2011; CAVALCANTE, 2013; SILVA; CUSTDIO FILHO; LEITE, 2007) e da

intersubjetividade (SAUSSURE; 2006; BENVENISTE, 2006; MEAD, 1973; BAKHTIN,

1997). Na segunda seo, que versa sobre o eixo terico da Polidez, tratamos do trabalho de

face desenvolvido por Goffman (2011), o modelo de polidez postulado por Brown e Levinson

(1978; 1987) e a perspectiva da polidez de Leech (2005). Na terceira seo, discutimos sobre

a noo de contexto postulada por Hanks (2009) e sobre o contexto social e histrico (DEL

PRIORE, 2006) em que viveram Jayme e Maria. Na quarta seo, discorremos de forma breve

a respeito do gnero carta com base nas contribuies de Biber (1988) e Violi (2009).

2.1 A REFERNCIA E A REFERENCIAO: DISCUTINDO O PERCURSO TERICO

A questo da referncia tem interessado muitos estudiosos nos mais diversos

quadros conceituais. Segundo Mondada e Dubois (2003, p. 23), A literatura cientfica

atravessada por grande nmero de divergncias entre a linguagem ou o conhecimento humano

e o mundo, entre os nomes, seus sentidos comuns, seus usos, seus conceitos e as coisas.

Apesar dessas discordncias que eclodem no campo de estudos da linguagem, saliente a tese

no representacionista da linguagem, na qual a relao linguagem-mundo no vista como

biunvoca, mas configurada por aes conjugadas, social e cognitivamente. (MARCUSCHI,

2007, p. 41).

Costa (2007a), assumindo uma perspectiva pragmtico-discursiva, qual nos

filiamos, argumenta que a linguagem construda nas atividades sociais. A lngua, assim,

13

consoante Koch (2009, p. 33), seria um lugar de interao entre sujeitos ativos que

constroem e so construdos pelo discurso.

Essas breves reflexes so apenas para constar que a viso de referncia com que

estamos lidando alinha-se com a proposta levantada por Mondada e Dubois (2003), segundo a

qual,

[...] no lugar de partir do pressuposto de uma segmentao a priori do discurso em

nomes e do mundo em entidades objetivas, e, em seguida, de questionar a relao de

correspondncia entre uma e outra parece-nos mais produtivo questionar os

prprios processos de discretizao. [...] no lugar de pressupor uma estabilidade a

priori das entidades no mundo e na lngua, possvel reconsiderar a questo partindo

da instabilidade constitutiva das categorias por sua vez cognitivas e lingusticas,

assim como de seus processos de estabilizao (MONDADA; DUBOIS, 2003, p.

19).

Seguindo esse caminho alternativo, entendemos que as entidades discursivas no

apresentam uma segmentao pronta, mas se elaboram durante a interao, transformando-se

a partir dos contextos. Segundo Mondada e Dubois (2003, p. 27), essas entidades discursivas

demonstram uma instabilidade que lhes inerente, e mesmo um referente considerado esttico

pode ser decategorizado, tornado instvel, evoluir sob o efeito de uma mudana de

contexto ou de ponto de vista. Para as autoras, a instabilidade caracteriza o modo normal e

rotineiro de entender o mundo e, lana, assim, a desconfiana sobre toda descrio nica,

universal e atemporal. A instabilidade, assim, no estaria somente na relao entre palavras e

coisas, mas tambm entre as categorias, no interior das prticas discursivas e cognitivas.

No primeiro caso, das variaes entre as palavras e as coisas por estas designadas,

pode ocorrer instabilidade tanto no eixo sincrnico como no diacrnico. Como

observam as autoras, os falantes de uma lngua encontram sempre, num determinado

momento da histria, mltiplas categorias para identificar algum ou algo; a deciso

por uma delas fica a cargo de quem produz e compreende (co-produz, neste ltimo

caso) o discurso. Por outro lado, certas categorias podem dar lugar a outras, ao longo

da histria cultural. Fenmenos podem ser recategorizados, por exemplo, em razo

do desenvolvimento das cincias, que passam a interpret-los sob novos pontos de

vista (COSTA, 2007a, p. 69-70).

Esse constitui um ponto relevante quando nos voltamos para as cartas de Jayme e

Maria. Na correspondncia trocada entre esse casal, os referentes, primeira vista, parecem

assumir certa estabilidade aprisionada no tempo em que os textos foram escritos. No entanto,

transcorridos anos desde a escritura dessas cartas, observamos que os sentidos que inferimos

da interao entre os namorados resultado no somente das impresses deixadas por Jayme

14

e Maria na superfcie textual, mas tambm reflexo da nossa observao como pesquisadores

e do entorno scio-histrico que envolvia os personagens no incio do sculo XX.

Sendo assim, a referenciao no seria simplesmente a representao especular

das entidades discursivas, mas seria, acima de tudo, construda sociocognitivamente medida

que os sujeitos interagem com a realidade. Ao produzir um texto, um determinado sujeito vai

fazer escolhas lingusticas para que o seu projeto de dizer, consoante Bakhtin (1997), seja

concretizado com xito. Essas escolhas no sero simplesmente lexicais, mas vo envolver,

conforme Marcuschi (2007, p. 69), uma rede lexical situada num sistema sociointerativo

que vai possibilitar a produo de sentidos.

Destaca-se, ento, que o sujeito passa a ter um papel ativo nas prticas lingusticas

e cognitivas. Nesse ponto, nas palavras de Mondada e Dubois (2003, p. 20), podemos

entender que o sujeito no solitrio face ao mundo, mas negocia intersubjetivamente a

construo dos objetos cognitivos e discursivos.

Sendo assim, a construo referencial seria algo que transpe as fronteiras

lexicais, como postula Marcuschi (2007) e como demonstram em suas pesquisas Costa

(2007a), Custdio Filho (2011), Oliveira (2012) e Santos (2013). Em razo disso e tendo em

vista o foco de nossa anlise, que recai principalmente sobre as formas usadas por Jaime e

Maria para se referirem um ao outro, julgamos importante discutir nosso ponto de vista acerca

dos conceitos de categorizao, de recategorizao e de intersubjetividade.

2.1.1 A Categorizao

Tendo em vista a posio que assumimos no tpico anterior, iniciamos este tpico

compactuando com as ideias de Mondada e Dubois (2003, p. 28), quando enfatizam que as

categorias no so dadas e nem evidentes, mas so o resultado de reificaes prticas e

histricas de processos complexos, compreendendo discusses, controvrsias, desacordos.

Dessa forma, podemos dizer que a categorizao, assim como a referenciao, no um

fenmeno estvel, mas sim um processo que pode mudar sincrnica e diacronicamente.

Afinal, como coloca Ciulla (2008, p. 31, grifo da autora),

[...] todo ato de referir implica, tambm, categorizar, pois ao escolher uma

expresso, entre todas as opes que julgar adequadas, incluindo-se a as invenes,

adaptaes e transformaes, o falante privilegia alguns aspectos e algumas

semelhanas de famlia em detrimento de outros, de acordo com as discriminaes

(ou abstraes ou generalizaes, etc.) que a palavra escolhida pode comportar

naquela situao de uso.

15

As variaes do discurso, ento, segundo Mondada e Dubois (2003), seriam

interpretadas tendo em vista mais a pragmtica da enunciao do que a semntica dos objetos.

De acordo com Marcuschi (2007, p. 98), no fcil estabelecer as fronteiras entre traos

semnticos e traos de conhecimento enciclopdico ou cultural. Necessita-se, ento, de uma

teoria de categorias globais que no estabelea traos definidos, mas que sugira

conhecimentos globais.

Em Salomo (1997, p. 32), a autora enaltece, baseada em Fillmore (1975), a

importncia de possibilitar a mediao entre o conhecimento-do-mundo acumulado como

memria social (modelos culturais) e/ou pessoal e a sua ativao numa perspectiva singular,

definida para o evento comunicativo em desenvolvimento. Em outras palavras, para a autora,

uma mesma informao pode selecionar diferentes esquemas semnticos, dependendo do

contexto interpretativo. Dessa maneira, a especificidade do enquadramento prevalece-se da

informao estruturalmente armazenada ativada segundo as contingncias comunicativas

locais. (SALOMO, 1997, p. 32).

Sob uma viso atuacionista, a percepo no seria embutida no mundo e limitada

por ele, mas ela tambm contribuiria para a atuao desse mundo circundante (VARELA;

THOMPSON; ROSCH, 2003, p. 178). Assim, as entidades discursivas tanto constituem o

mundo como so moldadas por ele. Ressaltamos ainda que, consoante o posicionamento

assumido por esses autores, embora mente e mundo surjam juntos, esse processo no se d de

forma arbitrria. Segundo os autores, o nvel bsico da categorizao proposto por Rosch et

al. (1976), por exemplo, parece ser o ponto no qual a cognio e o ambiente tornam-se

simultaneamente atuados. O objeto aparece para o observador proporcionando certos tipos de

interaes, e o observador utiliza os objetos com seu corpo e mente da forma proporcionada.

(p. 180). J sob uma viso antropolgica, o conhecimento seria articulado por meio das trocas

que ocorrem entre a mente, a sociedade e a cultura e no em apenas uma delas ou mesmo em

todas. O conhecimento no preexiste em qualquer lugar ou sob qualquer forma, mas atuado

em situaes particulares. (p. 182).

Assumindo uma abordagem discursiva das categorias, Mondada e Dubois (2003)

postulam que as categorias so construdas pelos sujeitos em suas prticas discursivas nas

quais negociam verses do mundo. Para as autoras, que enfatizam a noo de prototipicidade

de Rosch, os nomes enquanto rtulos correspondem aos prottipos e contribuem para sua

estabilizao ao curso de diferentes processos (MONDADA; DUBOIS, 2003, p. 42), visto

que, em um primeiro momento, eles correspondem s unidades discretas da lngua (p. 42) e,

16

em um segundo momento, passam a ser compartilhados socialmente at evolurem para uma

representao coletiva, chamada geralmente de esteretipo. (p. 42).

Apesar de reconhecerem que a prototipicidade defendida por Rosch pode

contribuir para a anlise da categorizao, Mondada e Dubois (2003) fazem duas crticas: a

primeira diz respeito concepo reducionista da lngua como nomenclatura, o que no se

adequa ao posicionamento defendido por elas, e a segunda refere-se necessidade de

conceber os esteretipos a partir de um nvel intersubjetivo e no a partir de um nvel

puramente subjetivo. Segundo Costa (2007a), o que podemos entender a partir da crtica de

Mondada e Dubois

[...] que elas reconhecem o papel da lexicalizao na estabilizao da lngua. O que

essas autoras condenam so, na verdade, as explicaes baseadas em pressupostos

da lingstica cognitiva. Conforme afirmam, Numerosos lingistas j observaram

que as unidades lexicais estabilizam convencionalmente os significados das palavras

numa comunidade lingustica. Apenas previnem que a evoluo dos prottipos e

das significaes das palavras para esteretipos no se baseia mais em propriedades

realistas ou de valores de verdade, mas na codificao social dos modos de falar e de

representar o mundo. (COSTA, 2007a, p. 73).

Seguindo o mesmo vis de Mondada e Dubois (2003), Marcuschi (2007, p. 89)

defende a tese de que no existem categorias naturais, uma vez que no existe um mundo

naturalmente categorizado. Conforme esse estudioso, a realidade mundana no est

segmentada da forma como a concebemos e as coisas no esto no mundo da maneira como

as dizemos aos outros, mas o que dizemos construdo discursivamente. Para o autor, a

forma como dizemos as coisas aos outros reflexo de nossa atuao lingustica sobre o

mundo, uma vez que o processo de categorizao apresenta uma dimenso discursiva.

Estabelecendo-se a construo de categorias como um processo dinmico e

discursivo, caminhamos rumo construo de uma realidade na qual o sujeito e os processos

interativos constituem pontos centrais. As categorias, ento, segundo Mondada e Dubois

(2003, p. 35), esto ligadas dimenso constitutivamente intersubjetiva das atividades

cognitivas. Quando interagimos, nossos enunciados so produzidos colaborativamente, mas

tambm podem ser construdos, alimentados e enriquecidos por diferentes interlocutores.

2.1.2 A Recategorizao

Considerando que em nosso estudo estamos observando as formas como nossos

sujeitos, Jayme e Maria, constroem a si mesmos e ao outro, e a forma como ns os

17

reconstrumos por meio do discurso, pareceu-nos pertinente tratar tambm do fenmeno da

recategorizao. Em Cavalcante (2013), a autora explica que a recategorizao se trataria da

possibilidade que uma determinada entidade discursiva tem para passar por mudanas ao

longo do texto. Essas modificaes estariam relacionadas s intenes do produtor do texto,

sejam elas: emotivas, expressivas, poticas, dentre outras. Nas cartas de Jayme e Maria, as

escolhas lingusticas empreendidas por esses sujeitos facilitaram, para ns, o entendimento do

slido vnculo afetivo que unia o casal e tambm refletiram o desvelo de um para com o

outro. Percebemos, ento, que nossos sujeitos tentavam recategorizar a si e ao outro a fim de

enaltecer o sentimento que os impulsionava.

Silva e Custdio Filho (2013, p. 61) defendem que so os possveis acrscimos

postos aos referentes, explcitos ou no, que vo colaborar para a progresso referencial.

Sendo assim, nesse ponto, julgamos pertinente lembrar tambm a posio de Jaguaribe (2007,

p. 232) de que a recategorizao pode ser considerada como um processo mental por meio

do qual os objetos-de-discurso vo sendo reavaliados pelo falante. Esse processo, ento, que

tambm compreende uma dimenso social, realiza-se com o intuito de atender ao propsito

comunicativo do falante.

Nesse mesmo vis, Leite (2007) demonstra a preocupao de atestar a atividade

referencial como proveniente de aspectos que extrapolam o puramente verbal da superfcie

textual. Nessa investigao, o autor enfatiza as relaes entre diversas pores de

materialidade lingustica e os elementos que se situam alm da superfcie textual. Consoante

Silva e Custdio Filho (2013, p. 70), as observaes de Leite (2007) so pertinentes, uma vez

que demonstram a possibilidade de integrao de vrios elementos do texto para a

construo de objetos de discurso, o que favorece o conceito de texto como um construto

dinmico, cujas partes se integram para construir sentidos.

Acreditamos, ento, que Jayme e Maria interagem colaborativamente na

construo e na reconstruo de entidades discursivas. Interessa-nos observar no apenas as

(re)construes do self e do outro, ocorrendo intratextualmente nas cartas, mas tambm o

modo como tais construes se do ao longo da progresso comunicativa. Fica evidente,

assim, que, ao optarmos por uma proposta sociocognitiva, estamos conferindo importncia

interao e negociao pblica durante as prticas discursivas, tendo em vista que o

processo de significao emerge nos contextos de uso.

18

2.1.3 A Intersubjetividade

A perspectiva sociocognitiva de linguagem e mundo qual estamos filiados, nos

permite concordar com a ideia do Crculo bakhtiniano (SOBRAL, 2013, p. 24) de que o

sujeito no seria um fantoche das construes sociais, mas um agente, responsvel por

seus atos e responsivo ao outro. Essa noo de sujeito nos possibilita evidenciar o que vimos

tratando at aqui, que os referentes so (re)elaborados dinamicamente durante a interlocuo

cooperativamente desenvolvida.

Sendo assim, podemos avanar um pouco mais e afirmar com Marcuschi (2007, p.

108, grifos do autor) que a lngua no um retrato e sim um trato do mundo, isto , uma

forma de agir sobre ele. Essa perspectiva de linguagem, ento, envolve a participao de um

sujeito colaborativo e cooperativo durante o processo interativo. Desse modo, ao assumirmos

um posicionamento sociocognitivista, parece-nos importante retomar algumas diferentes

vises de sujeito em alguns estudos especializados para esclarecer a percepo de sujeito

qual estamos fazendo referncia em nosso estudo.

Em sua obra Curso de Lingustica Geral, Saussure (2006, p. 22) argumenta que a

lngua a parte social da linguagem, exterior ao indivduo, que, por si s, no pode nem cri-

la nem modific-la; ela no existe seno em virtude duma espcie de contrato entre os

membros da comunidade. Dessa forma, para o autor, as relaes sociais pareciam no

interferir na linguagem.

Tentando ampliar a teoria saussuriana do signo, Benveniste introduz, no centro

das preocupaes lingusticas, a questo do sujeito, a partir de uma abordagem enunciativa da

linguagem. (BRAIT, 2006, p. 39). Para o autor,

Aquele que fala se refere sempre pelo mesmo indicador eu a ele-mesmo que fala.

[...] Assim, em toda lngua e a todo momento, aquele que fala se apropria desse eu,

este eu que, no inventrio das formas da lngua, no seno um dado lexical

semelhante a qualquer outro, mas que, posto em ao no discurso, a introduz a

presena da pessoa sem a qual nenhuma linguagem possvel. [...] Por outro lado,

este eu na comunicao muda alternativamente de estado: aquele que o entende o

relaciona ao outro do qual ele signo inegvel; mas, falando por sua vez, ele assume

eu por sua prpria conta (BENVENISTE, 2006, p. 68-69, grifo do autor).

Entretanto, apesar do avano empreendido por Benveniste, Cardoso (2003)

destaca que um dos problemas da reflexo do autor seria a subjetividade. Isto porque o sujeito

para Benveniste (2006, p. 84) seria algum que se apropria do aparelho formal da lngua e

enuncia sua posio de locutor por meio de ndices especficos, de um lado, e por meio de

19

procedimentos acessrios, de outro. A crtica da autora, ento, seria direcionada para a

fugacidade da enunciao: o ato enunciativo seria engendrado independentemente do jogo

de influncias sociais condicionantes, ou seja, seriam ignorados os lugares sociais de onde

falam os interlocutores. (CARDOSO, 2003, p. 81).

Contrrio concepo de lngua como objeto abstrato e percepo de sujeito

como detentor do sentido, Bakhtin prope conceber um sujeito que, sendo um eu-para-si,

condio de formao da identidade subjetiva, tambm um eu-para-o-outro. (SOBRAL,

2013, p. 22). Bakhtin, dessa forma, posiciona-se contra qualquer atitude monolgica ou

modelo monolgico do mundo. Para o autor, a subjetividade seria constituda no denso

caldo do simpsio universal, sendo a alteridade e a intersubjetividade, portanto,

absolutamente indispensveis. (FARACO, 2009, p. 76). Dessa forma, a proposta defendida

pelo Crculo bakhtiniano envolve sempre considerar a situao social e histrica do sujeito,

tanto em termos de atos no discursivos como em sua transfigurao discursiva, sua

construo em texto/discurso. (p. 23).

Frente s ideias mencionadas at aqui, compactuando com Santos (2013, p.15),

acreditamos que o referente j nasce intersubjetivo, at porque no processo de construo

desse referente o sujeito age com base em experincias e aprendizados socioculturais. Dessa

maneira, sob essa perspectiva sociocognitivista, o sujeito vai se constituindo

intersubjetivamente, construindo, imerso na interao, a si e ao outro. Isso nos permite

defender o argumento de Donald Davidson, extrado de Marcuschi (2007, p. 129, grifo do

autor), de que a intersubjetividade o fundamento da objetividade. Se nem o mundo nem a

linguagem apresentam uma estabilidade a priori e nem esto discretizados definitivamente, a

estabilidade e a discretizao deve resultar da interao lingustica entre dois sujeitos. Dito de

outra forma, ter uma vida mental organizada ter uma vida social e intersubjetivamente

fundada. (p. 137).

Acreditamos, assim como Santos (2013), que a viso abrangente de sujeito, de

linguagem e da natureza do sentido postulada por Bakhtin pode ser relacionada com a

concepo de sujeito sociocognitivo defendida por Marcuschi e assumida por ns em nossa

pesquisa. Seguidora da perspectiva sociocognitivista, Salomo (1999, p. 72) nos auxilia na

defesa do fato de que no h como separar interpretao-do-mundo, representao-de-si e

escolha da linguagem. Sendo assim, sem um sujeito para inferir e suprir informaes

implcitas, a enunciao seria incompreensvel. Para a autora, ento, [...] fazer sentido (ou

interpretar) necessariamente uma operao social na medida em que o sujeito nunca

20

constri o sentido-em-si, mas sempre para algum (ainda que este algum seja si mesmo). (p.

71, grifo da autora).

Tendo em vista a noo de representao postulada por Goffman (1975), Salomo

(1999, p. 72, grifo da autora) enfatiza que toda interpretao seria uma espcie de encenao

dramtica. Para ela, [...] a experincia social no prescinde da semantizao primria, que

corresponde ao investimento do sujeito em especfico papel comunicativo, configurado frente

sua audincia, num trabalho de mtua determinao, atravs do qual se constri a face.

Em outros termos, isso sugere que as pessoas ou os atores sociais, nas palavras de Goffman

(1975), medida que participam de um encontro dramtico, esto inseridos em uma

moldura, adotando dentro dela um papel comunicativo particular que exercem para si e

para os outros. (SALOMO, 1999, p. 71, grifo da autora).

A face3 definida por Goffman (2011, p. 13) como o valor social positivo que

uma pessoa efetivamente reivindica para si mesma atravs da linha que os outros pressupem

que ela assumiu durante um contato. De acordo com o autor, o self, que seria uma construo

social, tambm pode ser percebido como face. Para estudar essa construo social, Goffman

utiliza o termo self, cunhado por Mead (1973 apud GOULART; BREGUNCI, 1990, p. 53,

grifos das autoras), como

[...] um processo social, compondo-se de duas fases distinguveis: o eu e o mim. O

eu a parte comportamental do self e consiste na reao do organismo s atitudes

dos outros; o mim a srie de atitudes organizadas dos outros que cada pessoa

adota, como self que tem conscincia. Logo, o homem precisa introjetar o outro, o

social, para desenvolver o self. Mas uma pessoa dotada de self reflexiva, crtica e

pode envolver-se em interaes que resultam em escolhas que divergem das

definies de seu grupo. Neste sentido, ela capaz de fazer transformaes sociais.

O conceito de self adotado por Mead esclarece, portanto, como o desenvolvimento

ou a socializao do homem ao mesmo tempo o vincula sociedade e o libera desta.

Em outras palavras, conforme Mead (1973), o self no unicamente biolgico,

no nasce com o indivduo. O self desenvolve-se por meio do contato social, reflexo da

experincia social. Uma situao social implicaria, ento, um eu e um mim que so,

essencialmente, elementos sociais. Esse posicionamento de Mead (1973), refletido nos

estudos de Goffman (2011), de certa forma, invoca a colocao de Bakhtin de que o sujeito

seria construdo ao interagir com o outro. De acordo com o autor,

3 Na traduo de 2011 da obra Ritual de interao: ensaios sobre o comportamento face a face de Goffman, o

termo fachada utilizado para fazer referncia face. Em nosso trabalho, optamos por esse ltimo termo, face,

do original em ingls.

21

[...] a experincia verbal individual do homem toma forma e evolui sob o efeito da

interao contnua e permanente com os enunciados individuais do outro. uma

experincia que se pode, em certa medida, definir como um processo de

assimilao, mais ou menos criativo, das palavras do outro (e no das palavras da

lngua). Nossa fala, isto , nossos enunciados [...], esto repletos de palavras dos

outros, caracterizadas, em graus variveis, pela alteridade ou pela assimilao,

caracterizadas, tambm em graus variveis, por um emprego consciente e decalcado.

As palavras dos outros introduzem sua prpria expressividade, seu tom valorativo,

que assimilamos, reestruturamos, modificamos (BAKHTIN, 1997, p. 313-314,

grifos do autor).

Nesse processo de reconstruo e reelaborao, o eu torna-se nico. Por meio

dessa unicidade, podemos enaltecer a ideia de Faraco (2009, p. 21), para quem o eu e o outro

constituem, cada um, um universo de valores, uma vez que cada enunciado carrega os

valores dos sujeitos envolvidos na interao.

Sendo assim, as definies de self e outro que estamos assumindo em nossa

pesquisa esto alinhadas com as perspectivas de Bakhtin e de Goffman. Isto porque

acreditamos que nossos sujeitos foram construdos socialmente durante a progresso intra e

intertextual das correspondncias. Esse enriquecimento social dos sujeitos nos despertou para

a noo de contexto de Hanks (2008). Para ele, o contexto abrange a produo de sujeitos e a

condio de possibilidade para a intersubjetividade. (p. 192). Em vista disso, julgamos

necessrio discutir a polidez lingustica na prxima seo, visto que acreditamos que o

tratamento polido, de certa forma, est envolvido na produo discursiva de nossos sujeitos.

Como j mencionamos anteriormente, para Goffman (2011), o valor social que

cada indivduo assume para si chamado pelo autor de face. Por meio desse conceito de face,

o autor articula a teoria da face ou trabalho de face. Segundo Paiva (2008), o trabalho de face

seriam as aes realizadas com a finalidade de mitigar ou evitar conflitos, ou seja, os eventos

cujas implicaes simblicas ameaam aqueles que esto imersos na interao. Esse trabalho

de face desenvolvido por Goffman ser melhor explorado na subseo 2.2.1.

2.2 PRINCPIOS DE POLIDEZ LINGUSTICA: DISCUTINDO AS PERSPECTIVAS

TERICAS

Para versar sobre algumas contribuies do campo da polidez lingustica,

dividimos este tpico em trs subsees. Na subseo 2.2.1, discutimos o trabalho de face

desenvolvido por Goffman (2011), que, de certa forma, subsidiar a anlise de nossos dados.

J na subseo 2.2.2, apresentamos brevemente o modelo de polidez lingustica proposto por

Brown e Levinson (1978; 1987). Isto porque este constitui o modelo de maior destaque no

22

campo da polidez, visto que a teoria desses autores se tornou base para diversos estudos sobre

polidez lingustica.

Na subseo 2.2.3, ressaltamos as ideias de Leech (2005) acerca do fenmeno da

polidez lingustica na busca de estabelecer nosso posicionamento sobre esse assunto A

justificativa para a abordagem dos estudos de Leech (2005) reside na importncia, dada por

esse autor, no apenas figura do falante (self), como ocorre no modelo de Brown e Levinson

(1978; 1987), mas tambm figura do ouvinte (other) ou de uma pessoa que exera influncia

na interao. Para ns, importante evidenciar a polidez lingustica, uma vez que ela aparece

imbricada nos discursos de nossos sujeitos e contribui expressivamente para a inferncia dos

sentidos negociados durante a dramatizao desses sujeitos.

2.2.1 O trabalho de face de Goffman

De acordo com Goffman (2011), quando um sujeito est em um processo

interativo, j existe algum tipo de vnculo social estabelecido, previamente, entre ele e seus

possveis interlocutores. Com o intuito de manter a harmonia da interao, qualquer escolha

lingustica feita de forma cooperativa e equilibrada, conforme o interesse de ambas as

partes. Para evitar a quebra desse equilbrio, o falante4 pode tentar neutralizar os atos

ameaadores de face, adotando estratgias discursivas que favoream a interao.

As pessoas esto, conforme Goffman (2011, p. 14), constantemente, participando

de encontros sociais, e, durante essas interaes, o indivduo assume uma determinada forma

de agir, ou seja, assume um padro de atos verbais e no verbais por meio dos quais expressa

sua viso da situao. Ento, para construir esse padro de atos verbais, ele mantm uma

determinada face. Essa face, segundo o autor, a imagem do self delineada em termos de

atributos sociais aprovados; em outras palavras, o self seria uma construo social que

podemos criar, manter ou perder, conforme as nossas intenes em relao a ela. Ainda de

acordo com o autor, a interao5 social constitui uma espcie de ritual, que no necessita

4 Estamos usando os termos falante e ouvinte em seu sentido mais amplo, abrangendo o interlocutor em

qualquer modalidade discursiva. 5 A interao, para Goffman (1975, p. 23), seria a influncia recproca dos indivduos sobre as aes uns dos

outros, quando em presena fsica imediata. Uma interao pode ser definida como toda interao que ocorre em

qualquer ocasio , quando, num conjunto de indivduos, uns se encontram na presena imediata de outros. No

entanto, acreditamos que suas ideias tambm podem ser utilizadas para documentos escritos, como, por exemplo,

o corpus de nossa pesquisa, uma vez que, ao assumirmos uma perspectiva sociocognitiva, entendemos que os

elementos lingusticos, junto com outras diversas semioses, servem como instrues para a composio da

cena social.

23

especificamente do contato face a face para ser realizado, e, muitas vezes, traz marcas do

carter ritualstico das relaes sociais (GOFFMAN, 2011).

Os rituais de conversao seriam compostos por trs fases: a fase de iniciao, a

fase de manuteno e a fase de fechamento. Durante essas fases, o interlocutor est sujeito a

sofrer algum ato ameaador de face e, dessa forma, quando detecta uma ofensa, busca, entre

suas prticas sociais, uma ao adequada para a situao que oferece perigo face. Goffman

(2011) identifica, ento, trs tipos de movimento para evitar atos ameaadores que poderiam

ser realizados pelo falante e poderiam prejudicar as faces do interlocutor, do prprio falante

e/ou de outros indivduos envolvidos na ao.

O primeiro movimento o processo de evitao, quando o falante minimiza o

efeito de certos atos ameaadores, tratando o interlocutor com o respeito que gostaria que lhe

fosse dado; o segundo movimento o intercmbio, quando uma sequncia de atos se

movimenta para que no final se restabelea o equilbrio da interao; e o terceiro movimento

o processo corretivo, quando o falante tenta corrigir uma falha com o intuito de restaurar o

equilbrio da interao (GOFFMAN, 2011, grifo nosso). Esse ltimo movimento engloba

outros quatro movimentos, que so: o desafio, a oferta, a aceitao e o agradecimento. Assim,

a polidez lingustica estaria presente em todos os movimentos citados, uma vez que os

interlocutores tencionam diminuir os conflitos para atingir o equilbrio no ritual.

Por meio do trabalho de face, Goffman (2011) apresenta como os valores pessoais

relacionados ao self operam ao longo do processo interativo e determinam as escolhas

lingusticas do falante. Esse trabalho de face desenvolvido por Goffman (2011) inspirou no

somente trabalhos que lidam com a construo da identidade nas interaes face a face, o que,

para ns, constitui um ponto valioso, uma vez que estamos lidando com a (re)construo de

Jayme e Maria, mas tambm estudos que tratam da polidez lingustica, como, por exemplo, o

estudo de Brown e Levinson ([1978] 1987), no qual o conceito de face introduzido por

Goffman serviu para implementar diversas estratgias de polidez. Como em nossa pesquisa

utilizamos algumas contribuies do campo da polidez lingustica, o trabalho de face de

Goffman (2011) constitui um assunto relevante para que possamos acompanhar, na seo 2.2,

a discusso desse eixo terico.

2.2.2 Polidez lingustica: Brown e Levinson (1978; 1987)

Ao construir um modelo de polidez, Brown e Levinson (1987) tomaram como

referncia o Princpio de Cooperao de Grice e recorreram noo metafrica de face,

24

instituda por Goffman (1967), para tratar do funcionamento das relaes humanas nos rituais

de interao. A partir disso, analisaram as semelhanas das estratgias lingusticas

empregadas por falantes de trs lnguas diferentes: ingls, tzetal (lngua maia falada na

comunidade de Tenejapa, no Mxico) e tmil (lngua falada no sul da ndia) e, em seguida,

analisando essas estratgias, elaboraram uma teoria da polidez cujo intuito seria mostrar que

os interlocutores usam certos recursos para tentar evitar provveis conflitos durante a

interao

A partir do pressuposto de que todo ser humano tem uma imagem pblica que

tenta preservar, Brown e Levinson (1987) propem uma teoria da imagem. Conforme esses

autores, essa imagem ou face apresenta dois lados: a face negativa e a face positiva. A face

negativa seria o desejo de qualquer membro de uma sociedade de que suas aes no sejam

impedidas e de que seu territrio seja respeitado pelos outros. J a face positiva refere-se ao

desejo que todo ser humano tem de que suas aes sejam aprovadas pelos demais

interlocutores.

Considerando cada face, Brown e Levinson (1987) desenvolveram um conceito de

polidez construdo sobre as noes de polidez negativa (territrio) e polidez positiva

(aprovao). A polidez positiva mostra a face positiva do ouvinte e seu principal objetivo

aproximar os participantes da interao de forma que estes possam compartilhar seus

interesses. J a polidez negativa tenta assegurar que o falante conhea e respeite a face

negativa do interlocutor, de maneira que no interfira na liberdade de ao deste. Dessa

forma, o objetivo da polidez negativa manter o territrio e tentar evitar uma aproximao

desnecessria entre os participantes da interao.

No processo interativo, Brown e Levinson (1987) tambm apontam a noo de ato

ameaador de face ou Face-Threatening Acts (FTAs), ou seja, uma ao verbal que pode

arranhar uma ou ambas as faces do interlocutor. O sujeito, ainda conforme os autores, ao

tentar prevenir esse ato ameaador de face, vai introduzir estratgias para diminuir uma

possvel ameaa. Ao suporem que determinados atos de fala ameaam a imagem de um

determinado interlocutor, esses linguistas reconhecem um conjunto de estratgias que

minimizam os efeitos dos FTAs. Tais estratgias sero apropriadas s intenes

comunicativas do falante e podem ser enunciadas de trs formas: on record; off record; e bald

on record.

A descrio do modelo de Brown e Levinson constitui uma referncia obrigatria

para as pesquisas que lidam com a polidez, muito embora alguns pontos desse modelo tenham

inspirado revises, tentativas de reformulaes e at mesmo crticas. Apesar de advogar que o

25

modelo de Brown e Levinson (1987) pode ser ampliado e aperfeioado, Kerbart-Orechioni

(2006), por exemplo, reconhece que uma das limitaes desse modelo o fato de os autores

focalizarem apenas os atos ameaadores de face, o que favorece uma viso pessimista da

interao, em que os sujeitos esto constantemente sob ameaa de algum tipo de FTA.

Alm de admitirmos esse posicionamento da autora, tambm destacamos que o

modelo de Brown e Levinson (1987), conforme Dias (2010), no pareceu evidenciar a

complexidade dos aspectos sociais, culturais e situacionais das interaes, uma vez que, para

os autores, o contexto situacional e social estaria restrito relao esttica entre as variveis

poder relativo (P), distncia social (D) e grau de imposio (R) do FTA. Essa uma das

razes que demonstra a inadequao do modelo de Brown e Levinson (1987) para nossa

pesquisa, visto que esses aspectos sociais, culturais e situacionais, por serem dinmicos, esto

sujeitos a constantes negociaes e, por essa razo, acabam interferindo na construo da

subjetividade de Jayme e Maria.

Concordando com Paiva (2008, p. 41), julgamos relevante mencionar tambm o

fato de que o modelo de Brown e Levinson (1987) nos pareceu reducionista e restrito s

estratgias de polidez, j que eles utilizaram grficos e at mesmo uma frmula para medir a

polidez, o que, de certa forma, enaltece a lacuna do elemento humano em sua teoria. Dessa

forma, se em nosso estudo estamos alinhados com o pensamento de Bakhtin (2006, p. 115) de

que A palavra uma espcie de ponte lanada entre mim e os outros. Se ela se apia sobre

mim numa extremidade, na outra apia-se sobre o meu interlocutor, acreditamos que as

estratgias de polidez de Brown e Levinson no seriam suficientes para dar conta das diversas

instrues semiolgicas (SALOMO, 1999, p. 69) que nos guiam no processo

interpretativo das missivas de Jayme e Maria.

Em decorrncias de todas as restries mencionadas at aqui, buscamos as

contribuies de Leech (2005), descritas na subseo 2.2.2, para auxiliar a anlise de nossa

amostra e, dessa forma, ampliar a compreenso do que acontece na interao entre os sujeitos

de nossa pesquisa.

2.2.3 Polidez lingustica: Leech (2005)

Alm dos estudos de Brown e Levinson (1987), outras pesquisas, como a de

Leech (1983; 2005), figuram como ponto de partida para diversos trabalhos que tratam da

polidez lingustica. Assim como os primeiros, o trabalho desenvolvido por Leech, Principles

of Pragmatics, em 1983, tambm recebeu crticas. Essas crticas diziam respeito ao fato de a

26

proposta em questo (1) basear-se no modelo do Princpio Colaborativo de Grice, que foi

muito criticado devido obscuridade e sobreposio das mximas; (2) apresentar muitas

mximas; e (3) apresentar exemplos voltados para as sociedades ocidentais, comprometendo,

assim, seu carter universal. Essa ltima crtica ao autor, que veio da parte de diversos

pesquisadores, teve como foco o uso que ele fez de exemplos exclusivamente em lngua

inglesa para validar seu princpio.

Em virtude dos problemas detectados em sua teoria, Leech publica, em 2005, o

artigo Politeness: is there an East-West divide?, no qual prope modificaes ao modelo da

dcada de oitenta. Sobre essa nova proposta do autor, concordamos com o que afirma Cunha

(2009), que Leech (2005) opta por um posicionamento nem to universalista do uso da

polidez, como o proposto por Brown e Levinson (1987), nem to relativista, como o

defendido por Matsumoto (1989 apud CHEN, 2010). Isto porque, por um lado, ainda

conforme Cunha (2009), a polidez poderia se manifestar de diferentes formas em diferentes

culturas, mas, por outro lado, ela tambm poderia refletir normas comuns compartilhadas por

diferentes lnguas e culturas. Como concordamos com as modificaes propostas por Leech,

esse segundo momento de sua teoria nos pareceu mais condizente com a perspectiva que

adotamos, visto que a identificao da polidez no precisa obedecer a critrios rgidos ou

estticos, como no modelo de Brown e Levinson (1987), mas ela pode variar nas diferentes

culturas.

Assim, para investigar as manifestaes da polidez em lnguas ocidentais e

orientais, Leech (2005) estabelece novas perspectivas para o seu modelo. Nesse momento, o

autor identifica, alm das escalas de custo e benefcio postuladas em seu estudo inicial, outras

duas escalas que contribuem para a definio da natureza da investigao para o pesquisador.

Essas escalas seriam: a escala absoluta de polidez e a escala relativa de polidez. Na primeira

escala, a interpretao das elocues aparece livre de informaes contextuais. Para o

estudioso, essa escala unidirecional e registra os nveis de polidez em termos

lexicogramaticais e de interpretao semntica dos enunciados. Em nossa pesquisa, de cunho

sociocognitivista, o uso dessa escala no seria adequado devido ao fato de no podermos

contar com elementos contextuais configuraria uma dificuldade para alcanar as

peculiaridades envolvidas no discurso de Jayme e Maria.

Sendo assim, a segunda escala, que trata das manifestaes lingusticas que so

sensveis aos aspectos contextuais e culturais, nos pareceu mais compatvel com o

posicionamento que estamos assumindo e, possivelmente, poder contribuir na anlise de

nossos dados. Para Leech (2005), essa escala bidirecional. Isso significa que alm dos

27

aspectos lingusticos, elementos como distncia social, situao e poder tambm podem

influenciar no julgamento de um determinado enunciado. O enunciado Could I possibility

interrupt?, que em tese seria interpretado como um pedido polido, poderia, por exemplo, ser

visto como um enunciado sarcstico em um contexto familiar, em que os membros

monopolizam a conversa. Esta escala, ento, registra a polidez como uma manifestao

superpolida, pouco polida e apropriada situao, tendo em vista o contexto.

Alm de tratar dessas escalas de polidez, Leech (2005, grifo nosso), assim como

Brown e Levinson (1987), argumenta que esse fenmeno tambm influenciado por variveis

socioculturais definidas pela distncia vertical entre falante e ouvinte, que envolve diferentes

fatores, como poder, idade, status, etc.; pela distncia horizontal entre falante e ouvinte, que

est relacionada intimidade, familiaridade, ao conhecimento, etc.; pelo peso ou valor, que

trata do real valor do que est em questo (favor, obrigao, pedido, etc.); pela fora dos

direitos e deveres socialmente definidos, que diz respeito funo social que orientada pelas

obrigaes e direitos ao assumir-se um determinado papel social (relaes entre pai e filho,

irmo e irm, etc.); e, finalmente, pelo auto-territrio e territrio do outro, que balizam se os

membros pertencem ou no a um determinado grupo.

Visto que, em nossa pesquisa, estamos lidando com sujeitos envoltos em um

contexto social bem especfico da histria do Brasil, pareceu-nos relevante, ento, considerar

as quatro primeiras variveis citadas anteriormente para, possivelmente, nos ajudarem em

nossa anlise. Nas cartas de Jayme e Maria, pudemos inferir a presena da distncia vertical

marcada, de certo modo, pelo status social de cada interlocutor; da distncia horizontal

sinalizada pela intimidade estabelecida entre o casal; e do peso determinado pelas

informaes que foram negociadas entre os namorados. Por meio da varivel fora dos

direitos e obrigaes, observamos que a relao entre Jayme e Maria sofre influncia dos

direitos e obrigaes que ambos tm ao assumir um determinado papel na interao. A ltima

varivel que mencionamos anteriormente, auto-territrio e territrio do outro, no nos pareceu

adequada para nossa cultura, visto que, segundo Paiva (2008), foi estipulada por Leech (2005)

para tentar compreender algumas relaes sociais existentes no Japo e na China.

Aps articular todos os conceitos que mencionamos at aqui, Leech (2005) sugere

que as suas mximas de polidez sejam repensadas, uma vez que o termo mxima, para ele,

pode ser mal interpretado. Desse modo, o autor prope um nico postulado chamado Grande

Estratgia de Polidez (GEP). Observamos, portanto, que nem todas as categorias articuladas

por Leech (2005) seriam teis para nosso estudo. Dessa maneira, selecionamos somente

aquelas que, de certa forma, se adequam nossa anlise.

28

Utilizamos, ento, as seguintes regras pragmticas postuladas por Leech (2005,

grifo nosso): generosidade, que trata dos atos comissivos, como, por exemplo, ofertas e

promessas; tato, que envolve os atos diretivos, como os pedidos; aprovao, que cuida dos

elogios e cumprimentos; modstia, que diz respeito avaliao pessoal, como, por exemplo,

autodepreciao; obrigao (do falante com o ouvinte), que trata das desculpas e dos

agradecimentos, como, por exemplo, o pedido de desculpas; concordncia e discordncia,

que, como o prprio nome diz, refere-se, por exemplo, s concordncias e s discordncias; e

simpatia, que versa sobre a expresso dos sentimentos, como, por exemplo, as congratulaes

e as condolncias.

Sendo assim, com Marcuschi (2007, p. 41), acreditamos que a significao surge

quando relacionamos conhecimentos encapsulados em palavras situadas em contextos de

uso. Para o autor, as lnguas no so cdigos com valores pr-estabelecidos e definidos.

possvel que um determinado item adquira novos contornos e receba cargas especficas num

contexto em que foi negociado o seu uso. (p. 135). Dessa maneira, julgamos pertinente

esclarecer, na seo 2.3, a qual contexto estamos nos referindo em nossa pesquisa a fim de

explicitar a importncia desse elemento para a anlise de nossos dados.

2.3 A EMERGNCIA E A INCORPORAO: CONTEXTUALIZANDO AS PISTAS

Assim como Salomo (1997, p. 72), admitimos, como j mencionamos

anteriormente, que no h como dissociar interpretao-do-mundo, representao-de-si e

escolha da linguagem. Sendo assim, sentimos a necessidade de explicitar a qual contexto

estamos nos referindo em nossa anlise e tambm de conhecer o contexto mais amplo que est

atrelado ao discurso de nossos personagens como forma de subsidiar a interpretao e a

compreenso da troca comunicativa entre Jayme e Maria.

2.3.1 O que contexto?

A noo de contexto parece ser uma das mais imprecisas com as quais os

estudiosos da linguagem so chamados a lidar. Dependendo da perspectiva terica assumida,

esse termo pode significar uma realidade mais ou menos estvel, mais ou menos abrangente,

mais ou menos interferente no uso da linguagem.

Diversos estudos, consoante Hanks (2008), nas ltimas dcadas tm se

preocupado com a relao estabelecida entre linguagem e contexto. Em consequncia do

29

amplo mbito desses estudos, surgiram vrias abordagens acerca do contexto. Dentre elas, por

exemplo, esto a teoria dos atos de fala, a teoria da relevncia e a anlise da conversao.

Esses pontos de vista, ainda de acordo com o autor, partilham uma viso individualista, que

trata o contexto como um concomitante local da conversao e da interao, efmero e

centrado sobre o processo emergente de fala. (p. 171).

Sob uma perspectiva oposta, esto as abordagens baseadas em teorias sociais e

histricas de larga escala como, por exemplo, a descrio lingustica convencional e a anlise

crtica do discurso. Nessas abordagens globais, o contexto no est mais preso ao ato

localizado, mas se estende at as condies sociais e histricas que so anteriores produo

do discurso e que o restringem. (HANKS, 2008, p. 171-172). Sendo assim, notria a

existncia de uma contraposio entre essas duas perspectivas, o que pode ocasionar certa

dificuldade na articulao dos diferentes nveis de contexto.

De acordo com Salomo (1997), algumas abordagens funcionalistas, ainda

satisfazem-se com a limitao do contexto a um conjunto de variveis (sociais, situacionais,

espcio-temporais) estticas. Entretanto, para a autora, quando adotamos uma perspectiva

fenomenolgica acerca do contexto, entendido como modo-de-ao, constitudo socialmente,

sustentado interativamente e temporariamente delimitado [...], que realmente nos

comprometemos a enfrentar a irredutvel dinamicidade do processo de construo

conceptual. (p. 27).

Para evitar o posicionamento em um extremo local ou global, Hanks (2008),

compactuando com as ideias da antropologia lingustica, tenta estabelecer uma integrao

entre os diferentes nveis de anlise. Neste ponto, o autor destaca que as abordagens

individualistas seriam complementares s abordagens globais. Em outras palavras, o

discurso passaria a ser visto no s como uma anlise localizada dos indivduos e de suas

aes, mas tambm como uma anlise cuidadosa do que emerge em um escopo social e

histrico mais global.

Uma das motivaes para essa tentativa de integrao o fato emprico de que as

prticas de linguagem so formatadas pelos contextos e ajudam a format-los em vrios

nveis. (BENTES; REZENDE, 2008, p. 37). A outra motivao seria a patente inadequao

das abordagens dicotmicas, que, conforme Hanks, inevitavelmente distorcem a significao

dos traos contextuais e produzem um vcuo entre um nvel e outro. (p. 37). Sendo assim,

conforme o autor, o contexto seria

[...] um conceito terico, estritamente baseado em relaes. No h contexto que no

seja contexto de, ou contexto para. Como este conceito tratado depende de

30

como so construdos outros elementos fundamentais, incluindo lngua(gem),

discurso, produo e recepo de enunciados, prticas sociais, dentre outros.

(HANKS, 2008, p. 174).

Para lidar com essa nova abordagem, Hanks (2008) adota duas dimenses

contextuais denominadas emergncia e incorporao. A primeira dimenso diz respeito aos

elementos da enunciao que emergem da produo e da recepo de processos em curso,

envolvendo, dessa forma, a atividade mediada verbalmente, a interao, a co-presena, a

temporalidade, em um contexto restrito como um fato sensvel (em termos

fenomenolgicos), social e histrico. (p. 175). J a segunda dimenso trata da relao entre

os aspectos contextuais que dizem respeito ao enquadramento, centrao ou ao

assentamento do discurso em mbitos tericos mais amplos.

A primeira distino entre os diferentes nveis contextuais, postulada por Hanks

(2008), aquela entre a situao e o cenrio. Segundo o autor, a situao seria um campo de

possibilidades de monitoramento mtuo, o que acarreta a capacidade dos co-ocupantes

perceberem e prestarem ateno uns aos outros. (p. 177).

No entanto, Hanks assegura que a situao descrita como um campo de co-

presena no suficiente para descrever a interao. Dessa maneira, o autor julga necessrio

acrescentar situao social os julgamentos dos participantes sobre o que relevante e sobre

o que est acontecendo aqui e agora (BENTES; REZENDE, 2008, p. 39). Esse acrscimo

demonstra a mudana da situao para o cenrio social.

Com o intuito de enriquecer ainda mais esta discusso acerca do contexto, Hanks

(2008), com base na teoria de Karl Bhler (1990 [1934]) sobre o contexto, postula um campo

semitico. Esse campo transforma o cenrio interativo em um campo de signos que inclui os

gestos e outros aspectos perceptveis dos participantes, tais como a postura, o apontar, os

olhares diretos e o som da voz do falante, tudo isso orientando o foco de ateno subjetiva dos

participantes (BENTES; REZENDE, 2008, p. 40).

Com essa discusso, no entanto, Hanks no est sugerindo que a situao, o

cenrio e o campo semitico so independentes. Pelo contrrio, para o autor, o que existe

uma conexo entre essas trs formaes contextuais, uma vez que no existe situao

desligada de um cenrio, assim como no existe cenrio separado de semiose. essa relao

de implicao ordenada e de conexo que o autor descreve como incorporao.

A incorporao, entretanto, no se limita aos nveis postos at aqui. Nas palavras

de Bentes e Rezende (2008, p. 41), ao assumirmos que os nveis se interligam e partilham

propriedades uns dos outros, o que proporciona mudanas no nvel contextualizador, ou seja,

31

no horizonte operativo a partir do qual o nvel incorporado compreendido, podemos

afirmar que qualquer campo demonstrativo pode ser incorporado a um ou mais campos

sociais.

Segundo Hanks (2008), dessa forma, existe uma relao dinmica entre a

incorporao contextual e a formao dos agentes sociais que atuam nos contextos. Isso o

que observamos em relao a Jayme e Maria. Tendo em vista o contexto social em que nossos

protagonistas esto inseridos, acreditamos que eles, de certa forma, no so apenas sujeitos

naturais (p. 192), mas so produzidos pela sociedade patriarcal em que esto imersos. Nas

palavras de Hanks (2008), ento, a partir da perspectiva dos campos sociais, o contexto deixa

de ser concebido como uma srie de camadas da estrutura na co-presena intersubjetiva e se

torna a produo de sujeitos e a condio de possibilidade para a intersubjetividade. (p. 192).

Para observar melhor a produo de nossos sujeitos, articulamos no tpico

seguinte alguns esclarecimentos acerca do sculo XIX e sculo XX.

2.3.2 O histrico e o social: ampliando o ato localizado

Nesta seo, julgamos necessrio empreender uma breve discusso acerca do

cenrio social e histrico em que viveram nossos personagens. Como a troca das missivas foi

travada no final da dcada de trinta, exploramos esse contexto histrico e social desde o final

do sculo XIX at o incio do sculo XX, de forma a explicitar as mudanas e as influncias

que podem interferir na situao comunicativa dos sujeitos de nossa pesquisa. Isto significa

que concordamos com o que enuncia Hanks (2008) acerca do contexto. O autor, como j foi

dito na subseo anterior, trabalha com duas dimenses diferentes de contexto: a emergncia

e a incorporao. Sendo assim, podemos notar que, para Hanks (2008), existe, de um lado, a

emergncia de um contexto efmero entre dois interlocutores e, de outro, a incorporao desse

contexto imediato a um contexto mais amplo.

Convm lembrar, ento, que, ao considerarmos essa noo de contexto, estamos

voltados no apenas para a produo emergencial de nossos personagens, mas tambm para o

enquadramento do discurso desses sujeitos em quadros sociais e histricos mais amplos.

Dessa forma, parece-nos importante, para darmos continuidade a nossa discusso,

descrevermos, nesse tpico, os diversos desdobramentos que ocorreram durante o sculo XIX

e o sculo XX.

32

2.3.2.1 Sculo XIX: antecipando as mudanas

De acordo com Del Priore (2006, p. 132), a partir do sculo XIX, existiam duas

formas de encarar o amor: uma real, feita de namoros fortuitos e outra literria, que traz o

amor como um estado da alma. Nos livros, os cnjuges fariam suas escolhas movidos pelo

sentimento, mas, na vida real, essa escolha seguiria os critrios paternos e estaria presa a

interesses de classe. Na mesma esteira, Sacramento (2006, p. 319) afirma que no havia

oposio entre essas duas concepes amorosas, mesmo que o monoplio espiritual do

cristianismo tivesse bastante aceitao. Para a autora, o sculo XIX alterou o sentimento

amoroso, que adquiriu um carter mais humanizado, enquanto as obras literrias passaram a

representar o casamento como um jogo de interesses em que o poder do dinheiro impunha-se

mais fortemente. Apesar disso, alguns casamentos ocorreram aps o rapto das donzelas, o

que confirmava que as unies eram movidas pela afeio e no em obedincia aos pais.

Eram raros os contatos entre o casal durante o perodo que precedia a cerimnia,

uma vez que, na poca, a virgindade era a condio essencial para o casamento. Dessa forma,

a mulher resignava-se ao que lhe era imposto, j que moas que se casavam sem

consentimento dos pais seriam excludas da sociedade. Geralmente, a escolha dos pais era

movida pelo receio de que fosse escolhida uma nora fora de seu crculo social, o que

desestruturaria os bens da famlia, pois existia o cuidado de manter os grupos de mesmo nvel

econmico e social. Nesse perodo, o casamento seria uma avaliao pblica da posio da

famlia. Por isso, era necessrio evitar as ms alianas, uma vez que bons matrimnios, como

narram os romances de Jos de Alencar, seriam a melhor forma de ascender socialmente.

Desse modo, para a burguesia, a unio servia para proporcionar estabilidade, status e para

ampliar ou fundar negcios (DEL PRIORE, 2006).

Geralmente, as moas de classes mais abastadas casavam-se o mais cedo possvel

para evitar a alcunha de moa que chegara ao carit. Alguns fatores culturais e econmicos

foram responsveis por essa tendncia ao casamento precoce, tais como: a pouca educao e

instruo; a falta de um mercado de trabalho para as mulheres; a submisso aos familiares; a

procriao como objetivo principal do casamento; a maior sujeio feminina; e a pouca

importncia do amor na escolha do cnjuge.

Por outro lado, a partir do final do sculo XIX, essa realidade comearia a mudar,

j que as mulheres passam a casar mais velhas, ganham mais liberdade e adquirem educao

de todos os tipos.

33

2.3.2.2 Sculo XX: disseminando as mudanas

Na transio do sculo XIX para o sculo XX, conforme Del Priore (2006),

momento em que se consolidava a Repblica, o pas passava por mudanas provocadas pela

economia internacional. Durante esse perodo, ocorreram transformaes sociais e

econmicas que influenciaram o modo de viver e de pensar, provocando u