Unheimliche Wunderkammer Da Bibliotheca Abscondita

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AdrianadeCastroDiasBicalho

OUnheimlicheWunderkammerdaBibliothecaAbscondita

BeloHorizonte EscoladeBelasArtesdaUFMG 2007

AdrianadeCastroDiasBicalho

OUNHEIMLICHEWUNDERKAMMERDABIBLIOTHECA ABSCONDITA

Dissertao apresentada ao Programa de Ps GraduaoemArtesdaEscoladeBelasArtes daUniversidadeFederaldeMinasGerais,como exigncia parcial para obteno do ttulo de MestreemArtes

rea de concentrao: Arte e Tecnologia da Imagem

Orientador:Prof.Dr.StphaneHuchet

BeloHorizonte EscoladeBelasArtesdaUFMG 2007

Bicalho,AdrianadeCastroDias,1973 OUnheimlicheWunderkammerdaBibliothecaAbscondita/Adrianade CastroDiasBicalho.2008. 165f:il. Orientador:StphaneHuchet Dissertao(mestrado)UniversidadeFederalde MinasGerais,EscoladeBelasArtes,2007 1.GabinetedecuriosidadesSc.XVIXVIITeses2.Estranhamento Teses3.ColecionadoresecoleesSc.XVIXVIITeses4.Livrosartsticos TesesI.Huchet,Stphane,II.UniversidadeFederaldeMinasGerais. EscoladeBelasArtesIII.Ttulo.

Prof.Dr.StphaneHuchet

Assinatura:__________________________________________________________

Prof.Dr.____________________________________________________________

Assinatura:__________________________________________________________

Prof.Dr.____________________________________________________________

Assinatura:__________________________________________________________

DEDICATRIA

ClariceeMarcoAurliograndessonhadoresdefechaduras,poetasdosmveis, guardiesdashistriasdasGavetas.

AGRADECIMENTOS

Agradeoainfindapacinciadosquemeacompanharamdepertoedelonge,cederam idias, palpites, runas romnticas e seu tempo, enviaram livros e impossveis fotocpias, emprestaram computadores, levaram e buscaram, resgataram arquivos e, quandonecessrio,seguraramaminhamo.

minhafamlia:Alcione,Ana,Bruna,LilianeCarlosHenrique.

Aomeuorientador,Prof.Dr.StphaneHuchet,eaosmeusprofessoresdoprogramade mestradodaEBA/UFMGpelailuminao,eZinaPawlowski,pelagentilezaeateno.

sinmerasbibliotecaseprojetosdedigitalizaodemanuscritoselivrosraros,que generosamentedisponibilizaramseusinestimveisacervosonline.

RESUMOSopersonagensmudososPertencesProcessoseObrasqueestoasereunirnaTerceiraEdio do Primeiro Catlogo de Pertences Privilegiados do Unheimliche Wunderkammer da BibliothecaAbscondita,olivroobjetoquecuriosamentetantopontodepartidacomotambm coroa o fim desta etapa de investigao em arte. Atados por uma mesma Propriedade, em princpio intangvel ao juzo, serviramse Processos e Obras das histrias que contaram os PertencesPrecursoresparatrazerconscinciaessaPropriedade,desvelarosmtodosdessa unio,bemcomoinventarsuaprprianarrativa.Empreendeuseentoumaestranhaepopiade descobrimentosavessas,dolugardoexticotornadoordinrioaolugardarazotransfigurada emcaprichoextravagante,ondefiguraramcoleesecolecionadoresrenascentistasebarrocos,a Mirabilia tornada Unheimliche eoserrosadmitidoscomoprocedimentosdeinvestigao.A exemplodemuitosdosrelatosdeviagensemaravilhasdossculosXVIeXVII,cumpriuseo percursodoviajanteimvel,cujocaminhofoipavimentadocomosretalhosdeoutrostantos discursosou,naseventuaislacunasquesefizerampresentes,imaginaorestouatarefacoser aspontesnecessrias.

ABSTRACT ProcessesBelonginsandWorksaresilentcharactersthatarecongregatedintheThirdEditionof the First Catalogue of Privileged Belongings of the Unheimliche Wunderkammer of the BibliothecaAbscondita,thebookobjectthatcuriouslyisasmuchasstartingpointasalsocrown theendofthisstageofinquiryinart.TiedforonesameProperty,inprincipleintangibletothe judgment,ProcessesandWorksservedthemsevesofthestoriesthatPrecursoryBelongingshad toldtobringtotheconsciencethisProperty,torevealthemethodsofthisunion,aswellas inventingtheyownnarrative.Onewasundertakenthenintoastrangereverseepicofdiscovery, fromtheplaceoftheexoticturnedtousual,totheplaceofthereasontranfiguredinafancy whim,whererenascenceandbaroquecollectionsandcollectorsappear,theMirabiliabecome Unheimlicheandtheadmittederrorsturnintoinquiryprocedures.Likemanystoriesofjourneys andwondersofXVIandXVIIcenturies,onefulfilledthewayoftheimmovabletraveller,whose pathwaspavedwiththeremnantsofothersasmanyspeechesor,intheeventualgaps,tothe imaginationremainedthetasktosewthenecessarybridges.

PALAVRASCHAVE:Artesvisuais;Gabinetedecuriosidades;Colees;Colecionadores; Wunderkammer;Museus; Unheimliche;Maravilhoso;Surrealismo;Runasromnticas;PeterGreenaway;JanSvankmajer; JorgeLuizBorges;RodolfoII;AthanasiusKircher;ThomasBrowne;UlisseAldrovandi.

LISTADEILUSTRAES

Figura 01. Pgina 09 da Terceira Edio do Primeiro Catlogo de Pertences Privilegiados.Acervodaartista(2005).

Figura02.Estudosparakinora.Acervodaartista(2005).

Figura 03. Estudos para Gabinetes de Instncias Prerrogativas. Acervo da artista (2005).

Figura04.EstudosparaGabineteArtificialia.Acervodaartista(2006).

Figura 05. Livro dos Ttulos de Captulos Assim Como Foram Encontrados em SanatoriumPodKlepsidra.Acervoparticular(2005).

Figura06.PomeobjetdeAndrBreton(1941).MAURIS,2002,p.219. Untitled(soapbubbleset)deJosephCornell(1936).HARTIGAN,2003,p.74. Minas4deFarnesedeAndrade(1978).NAVES,2002,p.185.

Figura07.EscritriodeAndrBreton(semdata).MAURIS,2002,p.215.Estdiode JosephCornell(planogeraledetalhe,semdata).HARTIGAN,2003,cdrom.Atelide FarnesedeAndrade.COSAC,2005,p.190191.

Figura 08. Frontispcio de Dell'historia naturale (1599), catlogo da coleo de FerranteImperato.MAURIS,2002,p.1011. Figura09. TerceiroCaptulodeNotasSublinhadasdoSegundoInventrioInventado

emsuaPrimeiraEdioEncabulada.Acervodaartista(2003).

Figura 10. Magdalena Ventura, seu filho e marido, de Jos de Ribera (1631). KENSETH,1991,p.52.

Figura 11. Frontispcio do Museo Cospiano anesso a quello del famoso Ulisse Aldrovandi, catlogo da coleo de Ferdinando Cospi (1677). MAURIS, 2002, p. 146147.

Figura12.FrontispciodoMusaeumKircherianum,catlogodacoleodeAthanasius Kircher(1709).BUONANNI,1709,p.02.

Figura13. Frontispciodo MuseumWormianum (1655),catlogodacoleodeOle Worm.MAURIS,2002,p.1819.

Figura14. Taadechifrederinoceronte,feitaporNikolausPfaffparaacoleodo ImperadorRodolfoIIdeHabsburgo(1611).MAURIS,2002,p.172.

Figura15. Kunstschrank (semdata)deGustavusAdolphus(hojenaUniversidadede Uppsala).MAURIS,2002,p.60.

Figura16.CaixacatpricadeAthanasiusKircher.KIRCHER,1678,p.38.

Figura17.RinocerontedeOnmonstersandmarvelsdeAmbroisePar.PAR,1983,p. 168.

Figura18.Blemmas(aocentro).VolumeVI,Tomo2,Animali.ALDROVANDI,acervo daBibliotecaUniversitriadeBolonha.

Figura 19. Drago da coleo de Ulisse Aldrovandi. Volume IV. ALDROVANDI, acervodaBibliotecaUniversitriadeBolonha.

Figura 20. Pginas do Mira Calligraphiae Monumenta (1561?). HENDRIX; VIGNAUWILBERG,4548,1997a.

Figura 21. Preparado anatmico de Frederik Ruysch, fotografado por Rosamond Purcell.GOULD;PURCELL,2000,p.24.

Figura22.GravurasdetableauxconfeccionadosporFrederikRuysch.DreamAnatomy, U.S.NationalLibraryofMedicine.

Figura23.Storyfromabook(1999),fotografiadeJoelPeterWitkin.PARRY,2001,p. 117.

Figura24.EstudosparaestreosdosJardinsnasGavetasdosGabinetesdeInstncias Prerrogativas.Acervodaartista(2006).

Figura25. Galinhalanosade Ornithologiae,VolumeII,LivroXIV.ALDROVANDI, acervodaBibliotecaUniversitriadeBolonha.

Figura 26. Sem Ttulo (sem data), de Farnese de Andrade. NAVES, 2002, p. 159. Marfinstorneados,coleodeDresden.MAURIS,2002,p.123.

Figura27. L'Admirationavectonnement,gravurade ExpressionsdesPassionsde l'Ame,deCharlesLeBrun(1727).KENSETH,1991,p.24.

SUMRIO INTRODUO CAPTULO1DosProcedimentosdosPertencesPrivilegiados1.1.DecomoBorgesouvevozesnaleituradeKafka 1.2. OndeoPrimeiroCatlogodosPertencesPrivilegiadosemprestadeBorges ojuzodos precursoresdeKafkaeanunciaseusprocedimentos 1.3. Das qualidades dequatrodos PertencesPrecursoresEmblemas encontrados naTerceira EdiodoPrimeiroCatlogoeseuparentescocomosoutrosPertencesPrecursores,comos PertencesObrasecomosPertencesProcessos

12 2324 25

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CAPTULO2DoPertencePrecursorMaior2.1.OndeumambrosacoinventrioestaatiaracuriosidadedospolmataseoPertence PrecursorMaiorcontasuahistria 2.2.OTerminoriummusaeumdifinitoriumparaoMuseummuseorum:ondehumacoleode nomesdecolees 2.3. Onde colecionase maravilhas que existem e no existem: catlogos de colees, HypnerotomachiaPoliphilieoMusaeumclausum 2.4. Ondereveladocomoo wunderkammer ea BibliothecaAbscondita emprestaram seus nomes

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CAPTULO3DoPrimeiroExerccio3.1. Do Primeiro Exerccio: onde os humores dos colecionadores so emblemas para as estratgiaspatolgicasdecolecionismo 3.2.Oenciclopedistacolrico 3.3.Otaumaturgofleumtico 3.4.Oimperadormelanclico 3.5.Oalegoristasanguneo

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85 86 91 96 100

CAPTULO4DosErrosMetodolgicosdoPrimeiroCatlogo4.1.Doslugaresdoserros:ondetrscrocodilosmaisdois,PierreMenardeotmulodeuma princesachinesatomamchediscutemparentesco

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4.2.DoprimeiroerrometodolgicodaTerceiraEdiodoPrimeiroCatlogo:ondedescobrese porque classificaes, taxonomias, chuvas de peixes, cclopes, sereias, Saodowaoth e tuberculoseexistemenoexistemeondeUlisseAldrovandicriagalinhas 4.3. Do segundo erro metodolgico da Terceira Edio do Primeiro Catlogo: quicunque sciverit catenam qua mundus inferior jungitur superiori cognoscet misteria naturae & mirabiliumpatratoremaget

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CAPTULO5DoLaodasIdias,ondehenohesqueletosdesereias5.1. Do Lao das Idias, onde h um esqueleto de sereia guardado no fundo da gaveta: o Unheimliche 5.2.DoLaodasIdias,ondehjardineirosquecultivamesqueletosdesereia:aMirabilia 5.3. Do maravilhosounheimliche comooLaodasIdias:ondehenohesqueletosde sereias

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CONSIDERAESFINAIS BIBLIOGRAFIA

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INTRODUO

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Ondehumpresunosopreldioao UnheimlicheWunderkammer da Bibliotheca Abscondita

OConvidadoemvisitaao Unheimliche Wunderkammer da BibliothecaAbscondita tomado,aprincpio,porumacegueiraincontornvel;aoseuredor,umainauditaplatia deobjetosindistintosassistemaoseuestuporeligeiraperdadehorizontequenesse intervalocomprometeoseujuzoespacial.Engolfadopelaconflunciadeestmulos, momentneamenteemancipadodeseujuzo,abandonadoirresponsabilidadedeseus sentidos que esto a promover festivamente uma sncope sinestsica, o Convidado despencavoluntariamente,talqualoafogado,quenoltimointervalodeconscincia antesdecumprirseudestino,abraaasguasresignado.Ederiva,nofundodeseu oceanonegro,talvezreencontre,dispostoscomoosrestosdeumnaufrgio,osobjetos queagoraoobservamdedentroparafora.Urgequeaofinaldestedramticointerstcio sensvel,quenoduramuitomaisqueumsuspiro,queoConvidadoagarresearazoe situesenovamentenomundo.Podereleentoabandonarseaoexamedecadauma daquelascriaturas,quevezououtrasolicitamnoaafogarsenovamente.

Conspiram silenciosas as coisas. Nenhum objeto talhado para monopolizar o Convidado:aocontrrio,debraosdados,todosrogamsuaatenciosaconsiderao.

Onde apresentada A Terceira Edio do Primeiro Catlogo de Pertences Privilegiadoseseuspeculiarespredicados

chamadodeATerceiraEdiodoPrimeiroCatlogodePertencesPrivilegiadosdo UnheimlicheWunderkammerdaBibliothecaAbsconditaolivroobjetoquecuriosamente tantopontodepartidacomotambmcoroaofimdestaetapadeinvestigaoemarte.

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AprincpiooCatlogohigienicamentepresumiaseocadernodeatividadeseprojetos destainvestigaomas,imodestoque,tomouparasitodasasatenesepassouareter irremediavelmentetodoofluxodecoisas:anotaesconstrangidas,artefatoscriaturas, fracassoscontentes,texturaspretensiosasemrunas,errosretumbantes,procedimentos olvidados,nomesfabulososdeanimaisreais,aparelhosvetustos,idiasprecrias,co incidnciasesdrxulasetambmobrasaseformar.Ganharamvisibilidadeoselementos recorrentes nessas obras, precursores e processos em princpio vergonhosamente inarticulveis,quandoentounidosnoCatlogoprincipiaramaconstituirumcernepara acriaodeumcontextoedeumprocedimentodeinvestigaooserrosreencarnaram comopropsitosemotivaese,descrevendoumatrajetriacircular,tantoagregaramas partculas das imediaes como perderam parte de sua impertinncia, e por fim desviaramsecada vezmenos de seus desgnios, rendendose a rbitas constantes e admiravelmenteobvolvidas.

OCatlogoumcolecionadoravarentoetambmumparadoxoaomesmotempo objetoeinstrumentodepesquisa.Aoavolumaremseascoisasneleretidas,tomououm estadoquasemrbidodepolicladiaeaslinhasquenelevicejaramirromperamdeuma pginaaoutra,porfimconvergindoemvielasquelogopropalaramcaminhospossveis. Deumadessaspossibilidadessugeridas,deuseestainvestigao.

Mas quando comease a esquadrinhar seu contedo, o caminho que espirala nas pginasdoCatlogoaindaumaindicao,umvestgio,umincio.Noumitinerrio bemacabadoeprontoparaserpercorrido,cujasveredasestoprofusamentesinalizadas clarasdefinidasaocontrrio,ummapaquesefazaopercorrereseconfiguraa medidaqueocaminhopercorridoeleprecisaserinventado.Seagorafossepossvel desenharestecaminho,eleseassemelhariaaumahlixmole,cujoscrculosalternamos

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tamanhosdeseusdimetroseeventualmenteseemaranham,masgiramemtornodeum mesmocentro,atadosporumamesmaPropriedade,emprincpiointangvelaojuzo. TrazerconscinciaessaPropriedadeedesvelarosmtodosdessauniofoiopropsito destainvestigao,concebidanamedidaemqueinventavaseosseusprocedimentos. MasnofindaoCatlogonesteprimeirodesenhohelicoidalestaapenasumadesuas leituras. A cada leitura e leitor, uma outra figura se manifesta ao esprito e so incontveisostextospossveis.

DosPertencesPrivilegiadosesuascategoriasfuncionais

So chamados de Pertences Privilegiados trs categorias de objetos encontrados no PrimeiroCatlogo:PertencesPrecursores,PertencesProcessosePertencesObras.Em umaprimeiraanlisepanormicanohqueseencontrarclarasdiferenasentreum Pertenceeoutro.Defato,asdistinessefazemnoUnheimlicheWunderkammer,que olugardeencarnaodosPertencesObras,etalveztambmnopresenteescrito.

OsPertencesObrassodesenlacesdosPertencesProcessos,masnosepodedizerque sosuasmanifestaesconclusivas,jqueemmuitasocasiesasobrasqueiniciamos processos. No h portanto uma seqncia de procedimentos a ser obedecida, na verdadeosPertencesPrivilegiadosmovemseemcrculos,referindoseunsaosoutros todootempoe,devezemquando,atseesquecemaqualcategoriapertencem.

Naobrigaodesefazeremlegtimos,osPertencesObraseosPertencesProcessosso aterrorizados pelo Verbo: quando legendados esmaecem, quando obrigados a se pronunciar,emudecem.EJorgeLuisBorgesostranqiliza(1999a,p.11):

16 Amsica,osestadosdefelicidade,amitologia,osrostostrabalhadospelo tempo, certos crepsculos, e certos lugares querem dizer algo, ou algo disseramquenodeveramosterperdido,ouestoprestesadizeralgo;essa iminnciadeumarevelao,quenoseproduz,talvezofatoesttico.

Asuavozinauditaesualegitimidadeestonoqueso,noque,semafadigadarazo, produzemnoespritoatravsdossentidosamediaodoVerboporvezespodeinum losemumformatoestticoquesefazpassarporcertezacristalina,masquedefatono capazdeosalcanar.

Depossedacinciadainaptidodaspalavrasquandodaformaodeuminterposto entreprticaeteoriafomentadoapartirdomomentoemqueoCatlogotranscendeuo registro burocrtico de atividades este escrito no aspirou traduzir em palavras a investigao,ouapenasenumerarseusprocedimentos,masobjetivounelasubmergir,ou ainda, contaminaresercontaminadofezseinvenoeatmesmoelemento.No pareceu razovel que a escrita operasse como elucidao de um sentido, como justificativa ou legenda, como traduo de uma essncia hermtica, que fosse uma consideraoouinterpretaoaplicadaposteriormentee,domesmomodo,nohaveria depretenderseumconceitoanteriorprtica,queatransformasseemilustrao.H umsentidoasertocado,queestruturouomovimentopeloqualdeuseaobra,umjuzo quelhepertinenteemsuaformaescrita.Humasintaxeeumidiomaqueencarnaa criaonapalavraeviceversa,equeantesdefuncionarcomotexto,assinaladopelo modusoperandi destefazer,eassimtalhaoVerbocomoferramentapeculiaraosseus propsitos.NaspalavrasdePareyson(1989,p.31),

[...]deveseconcluirque,seaarteconhecimento,elaonomodoprprioe inconfundvelquelhederivadoseuserarte,demodoquenoqueaarte

17 seja,elaprpria,conhecimento,ouviso,oucontemplao,porque,antes,ela qualificademodoespecialecaractersticoestassuaseventuaisfunes.

Portanto,oscaminhospropostospeloVerbonoestodefinitivamentegradeados,h simumaescritafactvel,quesegundoGrossman(2002,p.XIII)maisprximatalvez dapoesiaedacrnicaedefinitivamenteatadaaofazerartstico.OsPertencesdaterceira categoria funcional, a de PertencesPrecursores podem operar como as vozes, consentidas pelas marcas das semelhanas, das demais categorias de Pertences: ao manifestarem as suas qualidades possvel aproximarse de obras e processos sem viollos.SuafalasednoidiomaprpriodosPertencesPrivilegiados nopoisa faladaHistriaouafaladaFilosofiaouafaladaCrticaemboraconvoquesetodos estesdiscursosnatessituraenateceduradestetextode/emaproximao1.Nessasfalas foramsublinhadasasmarcasque,desobedientesaotempoeeaoespao,assinalaramas semelhanas, as analogias eas afinidades entre obras,procedimentos e precursores. Empreendeuseentoumaestranhaepopiadedescobrimentosavessas,dolugardo exticotornadoordinrioaolugardarazotransfiguradaemcaprichoextravagante.A exemplo de muitos dos relatos de viagens e maravilhas dos sculos XVI e XVII, cumpriuse o percurso do viajante imvel, cujo caminho foi pavimentado com os retalhosdeoutrostantosdiscursosou,naseventuaislacunasquesefizerampresentes, imaginaorestouatarefacoseraspontesnecessrias.

Para enunciar os achados desta investigao foram observadas as indicaes das semelhanas com os PertencesPrecursores apregoadas por obras e processos, emprestando de Borges uma idia (e outras tantas ilustraes) que veio a se tornar mtodo.Assim,umalcidaseqnciacircularde gruposdePertencesPrecursoresse1 DeacordocomGrossman(2002,p.XIII),associadoaoatocriativo,otextodoartistadiferedos demaisporsuaflexibilidadeestrutural,metodolgicaeterica.

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desdobrou e se manifestou, dos trabalhos de artistas contemporneos s runas romnticassurrealistasedestas,scoleesparticularesdossculosXVIeXVII,que curiosamentetendemaabarcarosoutrosdoisprimeirosconjuntosdeprecursores.

NoprimeirocaptulocomentaseaidiadeBorgesecontasecomoelasetransfigurou emmtododeinvestigao.ApresentamsePertencesPrecursoresemblemticoseseus parentescos com os PertencesProcessos, com os PertencesObras e com outros PertencesPrecursores.LtambmosPertencesPrecursoresencontramesedesdobram noseuPrecursorMaior:compareceoprimeiroindciodascoleesparticulares,que porfimvmacontertodososoutrosPertences.Aseguir,nosegundocaptulo,hum passeiopanormicosobreessePertencePrecursorMaior,ouseja,ocolecionismodos sculosXVIeXVII.Lsocontadasassuashistriasecircunstncias,seusnomes, seus formatos, seus modos de operao e seus personagens de modo a emprestar, quandopossvel,asuafalaobraseprocessos.Noterceirocaptulohumexerccioque sobrepe a antiga teoria dos humores aos colecionadorespersonagens, e estes se desdobramememblemasparaartistascolecionadoreseparasuasobrascolees.

Dos Pertencentes Privilegiados, sua Propriedade inaudita e suas categorias metodolgicas:Jardim,Relgio,Gaveta

ContaCalvino(1990,p.4344)queKublaiKhantenta,sozinho,construirumacidadea partirdasaparasdascidadesvisitadaseimaginadasporMarcoPoloeaomercador viajanteadescreveparatestarsuasqualidades deedificadordecidadesinvisveis existiriatalcidade?MarcoPoloalertaosoberanoquenosefazemcidades(oucoisa alguma)semataroslaosdasidias:

19 [...]dasinmerascidadesimaginveis,devemseexcluiraquelasemqueos elementos se juntam sem um fio condutor, sem um cdigo interno, uma perspectiva,umdiscurso.[...]Ascidades,comoossonhos,soconstrudas pordesejosemedos,aindaqueofiocondutordeseudiscursosejasecreto, queassuasregrassejamabsurdas,assuasperspectivassejamenganosas,e quetodasascoisasescondamumaoutracoisa.

NosopoisosPertencesObrasePertencesProcessosacidadeimaginadaporKublai Khan,isto,aparasflutuantesdePrecursores.EnososuneoCatlogohneles umamesmaPropriedadepreexistente,umamarrilhoemprincpioinexprimvel o Catlogonaverdadeosuneemrazodelaeacabaporaexplicitar.Emboapartedo tempoquasedifana,comoqueumvultoesmorecidoquecultivamtodososobjetos, mas quando esta Propriedade se manifesta ao esprito ofaz tenazmente e causa ou ambiciosamente pretende causar um certo deslocamento ou transtorno nas sensibilidades.NoCatlogofoichamadaprovisoriamentedeOLaodasIdiasesveio de fato a dizer seu(s) nome(s) nas histrias quecontaram os PertencesPrecursores. Nelas foichamadade mirabilia (maravilha)etambmde unheimliche (estranhamente familiar,emtraduoaproximada)eemrazodassuasmuitasecuriosassemelhanas, avistouse uma suspeita seriam estas propriedades uma mesma impresso, experimentadaemdistintoscontextos?

Pois inauguram a mirabilia e o unheimliche as categorias onde os Pertences so classificadospelosmtodosqueempregamparasuscitarnoespritoaadmirao:alguns so mquinas temperamentais, que s funcionam quando olhadas (e, extraordinariamente,nemsemprefuncionam);outrossocriaturaspossveis,tornadas irreaispelaspalavras(eaocontrrio);eaindahaquelesquesomaiorespordentrodo queporfora.Sorriemetravestemsedecertezasascategoriasmetodolgicas:Relgio,

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Jardim,Gaveta.

NoJardimestoosanimaisfabulosos,osanimaisdaArcadeNoeosextravagantes nomesesistemasqueaRazoinventouparaestesanimais.Tambmlestoasdemais criaturasvivasemortas,oshbridosqueaimaginaodoshomensconfeccionaapartir destascriaturaseoslugaresenlabirintadosparaguardlas:oszoolgicos,osatlas,as enciclopdias,asnomenclaturas,astabelastaxonmicasemorfolgicas,ataxidermia, ascoleesdehistrianatural.

Os Relgios so aparelhos que solapam a percepo e ainda que claramente muito asseados e austeros em seus mecanismos, parecem escarnecer das certezas e eventualmente confundemse com desvairos. Alguns so caixas com mecanismos ocultos,outrosrevelamomecanismoporvezesconfusodapercepodoshomens.

AsGavetassoosobjetosmaiorespordentrodoqueporfora,queseabremparadentro, como as caixas com segredos, os armrios, os livros, as prprias gavetas. Quando olhados,osobjetosdestacategoriasedesdobramemoutrosvestbulosqueseligama escadariasoucorredoresondemaisportasegavetasfindamemcmodostorepletos degavetasquenosesabeaocertoseunmeroousuaexatalocalizao.AsGavetas cultivamcegamenteapoliopia.

Todos os PertencesObras, Processos e Precursores se dirigiram alegremente s categoriasmas, desobedientemente(ePrivilegiadosqueso),insistiramemocupar doisoumaislugaresaomesmotempo,efoiimpossveldissuadlos OJardim,O Relgio,AGaveta(ounaturalia,artificialia,curiosa?)soerrosporquescoisasno permitido ocupar dois lugares ao mesmo temponos espaos e nas classificaes,e

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tambm porque o erro a natureza real do exerccio artificioso de classificar. O PrimeiroCatlogo,contrariado,resignouseeemprincpioignorouapromiscuidadedos Pertencesmas,aseguir,tomouodesurpresaumacertaadmiraoporqueoqueeraerro irremedivelveioasefazerpossibilidadedeinvestigaoafinal,todoo Catlogo edificadoemumaempreitadaquefreqentementeseparececomoerro:abuscapor parentescosesemelhanas.

No quarto captulo so examinados esses dois erros metodolgicos do Catlogo: a insistentemanifestaodesemelhanaseastaxonomiasinventadase,poroutrolado,as fragilidadesdasdiferenasedastaxonomiaslegitimadas. Contasecomoesseserros revelaramseaoCatlogocomoobjetodeumaveementerejeiocega,cujaambioera obumbrarastnuesordenaesdomundoeaomesmotempoiluminarcomumanica possibilidadederazotodasasfrestasescurasdeondeaimaginaopoderiaespreitar. Descobrese que de fato, no incio da Era Moderna, determinados contextos e circunstncias fundaram o sistema de racionalidade que permitiu a edificao das colees particulares, sistema este que agora est definitivamente contido nos erros metodolgicosdoCatlogo,enatrajetriainfindaenauseantementeautoreferenteque ldesenhamosPertences.

NoquintocaptulocontasedaPropriedadedosPertencesquandoaindabemvindae mesmo indispensvel ao saber cultivado pelos colecionadores e de sua possvel encarnao posterior como o repulsivo e sedutor unheimliche indicase como os distintoscontextosecircunstnciaspoderiamtransfigurarapaixocartesiananoquase pesadelo freudiano. L tambm encontramse as condies e procedimentos compulsrios s invocaes contemporneas do maravilhoso/unheimliche, as conspiraesdequefoiobjetoeasconspiraesqueorquestrou.

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OfinaldopresenteescritonoencerraainvestigaotalqualosPertencesGavetas,se abreemmaisgavetas,caixas,escadariasecmodoseretornaaoinciodoPrimeiro Catlogo, onde na verdade h um convite para uma visita ao Unhemliche Wunderkammer da Bibliotheca Abscondita e, pretensiosamente, especulase os seus possveisendereos.Defato,anunciaseumprximoambiciosoexerccio,ondenoh exatamente respostas e concluses, e sim mais perguntas: como se comportaro os Pertences Privilegiados? se comportaro os Pertences Privilegiados? qual lugar comportaos Pertences Privilegiados do UnheimlicheWunderkammer da Bibliotheca Abscondita?

CAPTULOI

DosProcedimentosdosPertencesPrivilegiados

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1.1DecomoBorgesouvevozesnaleituradeKafka

ComeaBorgesseupequenotexto Kafkaeseusprecursores (1999a,p.9698)ainda crdulonasingularidade(quejulgaumtantoespetacular)daobradoautornascidoem Praga.Masamedidaemqueseestreitaessaconvivncia,Borgesacreditaouvir,vindas dedentrodaobradeFranzKafka,asvozesdeoutrosescritores,ouainda,reconheceros hbitosdoautordeAMetamorfoseemoutrostextos.IdentificaoparadoxodeZenoem O Castelo, o tom do poeta chins Han Yu nas palavras de Kafka, o absurdo e os extravaganteslabirintoscircularesdeduasparbolasdeKierkegaard,deumpoemade RobertBrowning,deumcontodeLonBloyedeumcontodeLordDunsanynaqueles tramadosemobrascomoOProcesso,OVeredicto,AConstruo.

ConcluiBorgesquetodosestesescritos,emalgumamedida,separecemcomKafka (eventualmenteatmaisqueoprprioKafka);massurpreendentemente,nemsemprese parecementresi.EsseparentescoportantosestnaobradeKafka,isto,noexistiria foradelasemtornodoautorseatameespiralamessassemelhanas.Borgespretende apurificaodapalavraprecursor,nosentidodeeliminarquaisquerrivalidadesque possamnelaexistirpoisacreditaquecadaescritorcriaseusprecursores(BORGES, (1999a, p. 98), isto , estabelece relaes em sua obra que de outra forma no aconteceriam.EcoaestaconceponaqueladeFoucault(2002,p.6768)dequeo poeta aquele que, por sob as diferenas nomeadas e cotidianamente previstas,reencontraosparentescosdascoisas,suassimilitudesdispersadas. Sobossignosestabelecidoseapesardestes,ouveumoutrodiscurso,mais profundo,quelembraotempoemqueaspalavrascintilavamnasemelhana universaldascoisas:aSoberaniadoMesmo,todifcildeenunciar,apagana sualinhagemadistinodossignos.

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NohquesepensarpormqueKafkaencarnaBrowningouquesuaversomais recente,ouqueaprimoraasidiasdeFearandScruplesemseutextonosetratada evoluodaobra,domesmoescritooudeumatradio.Osprecursores,nosentidoque lhes atribuiu Borges (ou as similitudes reencontradas pelo poeta das quais fala Foucault),ssedescortinampercepoporquevieramaconvergirnoartistaounasua obra, ondeasdistinesestabelecidas apriori nomaisoperam, poisdocontrriose manteriamnoscompartimentosdomundoquelhesforamdesignados.

1.2OndeoPrimeiroCatlogodosPertencesPrivilegiadosemprestadeBorgeso juzodosprecursoresdeKafkaeanunciaseusprocedimentos

Dentro do Terceira Edio do Primeiro Catlogo emaranhavamse os Pertences Privilegiados:asObrasnosseusProcessos,osPrecursoresnasObraseosProcessosnos Precursores. Permaneciam todos mudos e acuados pela ameaa das legendas, que principiavam a mutillos com o Verbo. Embora bruxuleassem os indcios de parentesco, a Cegueira das Certezas no acreditava apropriada a unio das pontas desatadasdasObras,ProcessosePrecursoreseproibiaqualquerconversaoentreeles poiseracertoquequaisquerdiscursosqueproferissemseriamilegtimos,acomear pelofatodequenofalavamcompalavras,coisaquedecididamenteaCegueirano consideravanatural.Borgesentocordialmenteemprestouoseujuzodosescritosde Kafka ao Catlogo, que o fez procedimento (mas no se empenhou muito em desemaranharascoisasumasdasoutrasporquegostavamuitodafiguraqueformavam).

ProcedeuentooPrimeiroCatlogodaseguintemaneira:autorizoualicenciosidadedos Pertences,desdequeasObraseosProcessosindicassemoseuparentescoincgnitoe assuassemelhanasdissimuladascomosPrecursoresquehaviamconvidadoparamorar

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dentro do Catlogo. Estes PertencesPrecursores por sua vez deveriam enumerar e esclarecer,acimadequalquercegueiraoucerteza,assuasqualidadeseassuashistrias, porque,assimcomopreconizouBorges,dessaformaseriapossvelouvirnelestambm afaladasObrasedosseusProcessos.OCatlogoapontouPertencesPrecursoresquede algumaformaestabelecemconversasabscnditascom outrostantosPertencesouque nelessedesdobrampataentochamlosdeemblemas1.Eisoquedisseramquatrodos PertencesPrecursoresEmblemas:

1.3DasqualidadesdequatrodosPertencesPrecursoresEmblemasencontrados na Terceira Edio do Primeiro Catlogo e seu parentesco com os outros PertencesPrecursores,comosPertencesObrasecomosPertencesProcessos

Napgina9(figura01)humakinora.Akinoraumpequenoaparatodomstico paraaexibiodecartesdefigurasemseqncia,oqueemrazodofenmenoda persistncia da viso2, promove a iluso de movimento. Foi inventada pelos irmos Lumire, patenteada em 1896 (HERBERT, 2001, p. 01) e esquecida pouco tempo depois,juntodevriosoutrosobjetosdeconstruoefuncionamentosemelhantescomo oflipbook3,osquaisconvencionousenomeardebrinquedospticosouartefatospr cinema.compostaporumcilindrocentralencerradoemumacaixacomumapequena abertura.Ocilindro,ondesoafixadososcartes,ligadoaumamanivelaoumotor quepromoveomovimentodasfiguras,queporsuavezobservvelpelaaberturana1 Apalavra emblema usadaaquideacordocomadefiniodeJooAdolfoHansen(2006,p.227): formaalegricaconstandodecorpo(imagem)ealma(discurso),extremamentecomumnossculos XV,XVIeXVII. 2 Deacordocomateoriadapersistnciadaviso,oolhohumanocapazdereterasimagensporuma pequenafraodetempodemaneiraque,aoseexibirimagensemseqncia,temseailusode movimento(LUCENA,2002,p.34). 3 Oflipbookconsisteemumaseqenciadeimagensencadernadasque,aoservistaaumadeterminada velocidade,promoveailusodemovimento.

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caixa.Essescilindroscomfiguraspodemsertrocadose,atasprimeirasdcadasdo sculoXX,foramproduzidosalgumascentenasdediferentesconjuntosdefigurasem movimentoparakinoras.

Aocontrriodasprojeescinematogrficas,quepodemexibirummesmofilmepara uma grande audincia, a kinora e seus muitos parentes como o mutoscpio4, o fenakistoscpio5,okinetoscpio6,soexperinciasparticularespoisspodemservistos porumapessoadecadavez.Oseuefeitoencantadoreporvezesdesconcertantemostra como os sentidos dos homens podem ser facilmente ludibriados a partir de um mecanismosimples,imagensemmovimentoparecemsurgirdedentrodopapel.Poderia sepensarqueessaimpressoaconteceemrazodoefeitoespetaculardeumimprovvel movimentosuave,fluidoerealistanasuperfciedopapel,queseopesingelezado mecanismodoaparatooquetalvezfosseverdadenosculoXIX.Masoquedefato parece lembrar os estados onricos, causar admirao e perturbar as certezas do espectadoralongadatafamiliarizadocomocinema,aprecariedadedosmovimentos, oinesperadonoqueconhecido,aincertezadevereaomesmotemponover,oqueo leva a olhar para dentro de si e interrogar seus processos perceptivos. Este efeito, produzidoporumarealidadequesecomportaestranhamente,sedesdobranoresultado perceptivoprocedentededeterminadosfilmesem stopmotion7,especialmenteosque4 Inventado por Herman Casler em 1894, o mutoscpio era uma espcie de kinora mais robusta, destinadoaousoemespaospblicos,ondecompetiacomo kinetoscpiodeThomasEdison com vantagens,poiseradeproduomaisbarataeexibiaumaimagemmaior(HENDRICKS,1964,p. 1921).FoiainspiraodosirmosLumireparaainvenodakinora(HERBERT,2001,p.1). 5 Criadoporvoltade1832porJosephPlateau,ofenakistoscpioconsisteemdoisdiscos,umcom figuraseooutrocomfrestas,afixadosaummesmoeixo.Ailusodemovimentoproduzidaquando osdiscossogiradoseasfigurasobservadasatravsdasfrestas(LUCENA,2002,p.3435). 6 InventadoporThomasAlvaEdisonem1891,okinetoscpioumaparelhoparaaexibiodefilmes queconsisteemumacaixacomumpequenoorifcionoseutopo.Aoinvsdecartescomfiguras,no seuinteriorhumalongatiradeimagensimpressasemfilmeflexvelperfuradoquemovidaporum aparatomecnico(LUCENA,2002,p.39). 7 O stopmotion consiste na filmagem de objetos inanimados quadro a quadro, cujas posies so modificadas progressivamente, de tal maneira que, quando o conjunto de imagens exibido a

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voluntariamentesublinhamatcnicaenfatizandoaartificialidadedosmovimentos.No Catlogo,essaafinidadetornouparentesakinoraeosfilmesdosgmeosQuay(1947) edeJanSvankmajer(1934),tambmPertencesPrecursores.

Aperplexidadepromovidapelaincertezaevacilaodavisoeaconseqentequalidade onricatambmestopresentesemoutroPertencePrecursorqueseligakinora,que afotografiaestreo.Paresdeimagensligeiramentediferentessocapazesde,sevistos atravsdeumaparatoespecfico,oestereoscpio,causaraimpressodequesetemuma visotridimensionaldosobjetosfotografados.Ofenmeno,chamadodeestereopse,foi descritoprimeiramenteem1838porSirCharlesWheatstoneedeuorigemaumasrie de aparelhos para a produo e visualizao de imagens tridimensionais, bastante popularesdemeadosdosculoXIXatametadedosculoXX(HANLIN;CORPUZ, 2003, p. 12). O efeito de tridimensionalidade em muitas ocasies no se faz imediatamente,necessrioqueoolharseajusteparaquesepossaver.Dessaforma,o resultadodafotografiaestreoseaproximadasimagensemmovimentona kinora,ou seja,oefeitoesperadoestaomesmotempopresenteeausenteedependeinteiramente doaparelhodepercepodoobservador.Essaangstiavisualpotencializadaquandoa visotridimensionaleminentemasnosefaz,isto,quandoaposiodasimagensno estereoscpiopropositadamenteincorreta.Estguardadaemalgumasdasgavetasdos GabinetesdeInstnciasPrerrogativasessaafliodoolhar;afotografiaestreooque permitequesejaescritoo TratadodeJardinsnasGavetas,obraapcrifapresentena BibliothecaAbscondita.

Tambmumaparato(ouumdeterminadopontodevista)oquepermitever(enover) o que est oculto nas anamorfoses. A anamorfose se d quando figurasdeterminadavelocidade,temseailusodemovimento.

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matematicamentedistorcidastransformamseemsegredosocultos,masquepodemser reconstitudasporespelhospiramidais,cilndricosoucnicos(STAFFORD;TERPAK, 2001,p.29),ouainda,pelaposiodoobservador. Seuexemplomaisconhecidoa pintura OsEmbaixadores (1533) deHansHolbein,cujaposiodoobservadorpode revelarqueaestranhamanchadiagonalnoquadrodefatoumcrnioocultoouum secretocomentriomordazdopintor.Aanamorfoseuma perspectivadepravada,ao mesmotempoumprodgiotcnicoparaademonstraodeprincpioslgicos,eum mecanismopotico,quedesvelaaincertezadaviso,postoquereneaomesmotempo ascinciasocultaseasteoriasdadvida(BALTRUSAITIS,1996,p.8).Aanamorfose estnodocumentrioemstopmotiondosgmeosQuaychamadodeAnamorphosis:De ArtificialiPerspectiva (1991)etambmocultaerevelaumemblemticocrocodilono UnheimlicheWunderkammer.

Comoobjetivodeexperimentaressestranstornosdavisoproporcionadosporestes aparatos e procedimentos esquecidos, foram produzidos PertencesProcessos como IntervalosInteirosdeTempoSomemdePassagemnoCaminho,quesoflipbooks,eos EstudosparaKinora(figura02).EsseseoutrosPertencesProcessos(figuras03e04) germinaram PertencesObras, isto , as formas presentes no Unheimliche Wunderkammer:nasgavetasdostrsGabinetesdeInstnciasPrerrogativasencontram se imagens estereoscpicas e uma kinora; no gabinete Artificialia h um aparelho semelhanteaokinetoscpio,queexibeumfilmesuper8em stopmotion,cujomotivo central so as muitas maneiras inventadas, ritualizadas, ineficazes e estilizadas para marcarotempo.

NaTerceiraEdiodoPrimeiroCatlogo,oPertencePrecursorkinorafoiclassificado comoRelgio.

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Napgina18hoZoo.Zoo,azedandtwonoughts(Zoo,umzedoiszeros)umfilme de1985dirigidopelobritnicoPeterGreenaway(1942).Nessefilmehumahistria, maselanoexatamenteimportanteporqueparaGreenawayocinemanoservepara contlas(GREENAWAY,1998,p.14).Naverdade,osempreendimentosflmicosde Greenawayemnadaseparecemcomasnarrativascinematogrficasconvencionaise estoplenamentecientesdeseusuporte.Nosepodetratarasuaobraatravsde,por exemplo,anlisescinematogrficastradicionaisdoselementosconstitutivos,isto,

[...]maisadequadoverotrabalhodePeterGreenawaycomoumacontnua exploraoetransgressodoslimitesdarepresentao.Astaxonomiasque usamos para ordenar nosso estoque de conhecimento; as tecnologias que modelamasculturas;osedifciosqueexibemeoperamnossosartefatos;os cdigosestticos,moraisepolticosqueprescrevemoquepodeeoqueno podeserrepresentadoedequemaneiras:todossoescrutinados,viradosde cabeaparabaixonumatentativadeabrirnovosespaoseproduzirnovos significados(ELLIOT;PURDY,1997,p.81).

SotrsasfigurasiniciaisqueinspiraramZoo(segundoGreenaway[1998,p.13],as melhores coisas vm em trs): um pequeno filme, um gorila e uma fotografia emprestada8.OpequenofilmemostradonaBBCHorizonregistra,natcnicadetime lapse9,adecomposiodeumrato,porfimdevoradoporcaramujos.Ogorilapertencia aozoolgicodeRotterdametinhaapenasumaperna.Nafotografia,osjmencionados gmeos idnticosStepheneTimothyQuayladeiamumamulherquesorriconfiante (GREENAWAY,1998,p.13).

8 Nosonorooriginal:atape,anapeandaborrowedphotograph(GREENAWAY,1998,p.13). 9 A tcnica de timelapse (lapso temporal) consiste em registrar em filme processos lentos e imperceptveiscomoadecomposiodefrutaseanimais,odesabrochardefloresouomovimentodas nuvensnocueexiblosemgrandevelocidadedemaneiraatornlosvisveisaoolhohumano.

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A exemplo dos outros filmes de Greenaway, Zoo formalmente estruturado sobre sistemas de organizao: as vinte e seis letras do alfabeto; os oito estgios evolucionriosdaseleonaturaldeDarwin;onmerodecrescentedeobrasautnticas deJohannesVermeer;asetapasdoprocessodedecadnciadoscadveres;umasriede trezedocumentrioschamadaLifeonEarth:ANaturalHistorybyDavidAttenborough, produzidaem1979pelaBBC,equetratadavariedade,classificaoeevoluodas espcies.Repetemseessessistemasunsnosoutroseportodasascenasdofilme:o documentrionosanimaisdozoolgico;aclassificaocientficanaorganizaodos animasdozoolgicoeestesnoalfabeto;osfilmesemtimelapsenodocumentrioeeste nocursodanarrativa.Essarepetiodeordenaesofuscaanarrativaatalpontoqueo filme se transforma em um jogo de encontrar analogias. Nesse jogo, Greenaway evidenciaaartificialidadedossistemasdesaberedasclassificaes,cdigos,valorese organizaesqueossustentam.umaestratgiasemelhantedaenciclopdiachinesa deBorges,quetantotranstornouFoucaultemAspalavraseascoisas(2002):

Essas ambigidades, redundncias e deficincias lembram aquelas que o doutorFranzKuhnatribuiacertaenciclopdiachinesaintitulada Emprio CelestialdeConhecimentosBenvolos.Emsuasremotaspginasconstaque osanimaissedividemem(a)pertencentesaoimperador,(b)embalsamados, (c) amestrados, (d) leites, (e) sereias, (f) fabulosos, (g) ces soltos, (h) includosnessaclassificao,(i)queseagitamcomoloucos,(j)inumerveis, (k)desenhadoscomumfinssimopinceldeplodecamelo,(l)etctera,(m) que acabaram de quebrar o vaso, (n) que de longe parecem moscas (BORGES,1999a,p.94).

Em Zoo,Beta, afilha deAlba, constri umpequeno zoolgico deinsetos onde os animaissoagrupadosporsuascoreseseocupatambmemencontrarexemplosde

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nomes de animais para cada letra do alfabeto. A sintaxe arruinada por Borges e Greenawaydespertaaaterradorapossibilidadedaexistnciadeoutrossistemaspara organizaromundooupior,adafragilidadedequalquersistema10.Assim,oPertence Precursor Zoo convocatodaumasriedesistemasdeclassificaoilegtimos,oude relaesnefastas,comooseguintePrecursorencontradoemCortzar(2002,585;589):

10) CORPORAO NACIONAL DOS ESTABELECIMENTOS RURAIS (todos os estabelecimentos rurais da Cria Maior de animais e todos os empregadosemgeraldosditosestabelecimentos).(CriaMaioroucriaode animais corpulentos: bois, cavalos, avestruzes, elefantes, camelos, girafas, baleias,etc.);[...] 12)CORPORAONACIONALDECASASCRIADORASDEANIMAIS (todososestabelecimentosdaCriaMenordeanimais,etodososempregados emgeraldosditosestabelecimentos).(CriaMenoroucriaodeanimaisno corpulentos:porcos,ovelhas,cabras,cachorros,tigres,lees,gatos,lebres, galinhas,patos,abelhas,peixes,mariposas,ratos,insetos,micrbios,etc.)[...] 33) CORPORAO NACIONAL DOS BEATOS GUARDADORES DE COLEESESUASCASASDECOLEO(todasascasasdecoleo,e idemcasasdepsitos,galpes,arquivos,museus,cemitrios,prises,asilos, institutosdecegos,etc.,etambmtodososempregadosemgeraldosditos estabelecimentos). (Colees: um arquivo guarda expedientes em coleo; umcemitrioguardacadveresemcoleo;umaprisoguardapresosem coleo,etc).

A exemplo destes PertencesPrecursores, o PertenceObra Gabinetes de Instncias Prerrogativas emprestadeFrancisBacon(15611626)umadasetapasdeseurigoroso10 HorrorqueapareceemZooquandoocisnefogedozoolgico(seusistemasdeclassificao)ecausao acidenteouquandooscaramujos(quemaisdistantesdarazonaescalaevolutivanopoderiamestar), aofinaldapelcula,sabotamameticulosatentativaderegistro dadecomposiodeseusprprios corposempreendidapelosgmeosDeuce.

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mtodo emprico de investigao da natureza e o inverte, transformandoo de procedimentodeexclusoemprocedimentodeincluso,queestruturaumaclassificao inventada para os Pertences, cultiva as semelhanas e analogias e promove a sobreposiodesentidos.DeacordocomateoriadainduodeBacon,oqueofilsofo chamou de primeira vindima da investigao cientfica se cumpre quando so produzidosdadosdeexperimentaesprticasacercadedeterminadofenmeno,quea seguirsointerpretadosemumsistemadetbuascomparativas:aprimeiraetapaa constituio de uma tbua de presena ou afirmao, onde so anotadas todas as manifestaesdedeterminadofenmeno;asegundaetapaaconfecodeumatbua deausnciasoudenegao,ondeseverificaquandoofenmenoestudadonoocorre; naterceiraetapadeveseconstruirumatbuadegraduaesoucomparaes,parase anotar todas as variantes possveis do fenmeno (BACON; ANDRADE, 1979, p. XVIII).Apartirdessesdados,Baconenumeraoutrasnoveprticascomplementaresde investigao(BACON;ANDRADE,1979,p.133134),dasquaisdefatosesclareceas InstnciasPrerrogativas,queso27fatoresquedefinitivamentedistinguemumacoisa de outra e decisivamente direcionam a investigao em determinado sentido. No PertenceObraGabinetesdeInstnciasPrerrogativas,as27instnciasprerrogativasso 27gavetasdecriadosmudosempilhadas,ecadaumadelasporsuavezcontmtambm outrosPertencesclassificadoscomoGavetas...

OliverDeuce,umdospersonagensgmeos,aoinciode Zoo,apontaosperigosdos eventos anlogos11, como o seu poder de determinar os fatos e de encerrar em um crculoinfinitotodasascausaseosefeitos:umacoisaremeteaoutra,queremeteauma terceiraqueporsuavezsevoltaprimeira.Seriamesmoumacidenteproduzidopelo acasoqueumamulherchamadadeAlbaBewick,dirigindopela Swan'sWay,usando11 Comoseconstataaofinaldofilme,umdessesperigosseaproximartantodoquesemelhantea pontodenomaisexistirdistinoentreumeoutro,queoqueacontececomosgmeosDeuce.

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plumasbrancas,fosseatropeladaemseuFordMercurybrancodeplacaNID26B/W porumcisnebrancoemfrenteaozoolgicoequetaldesastrevitimariaasduasesposas de irmos gmeos zologos? Os maridos Oliver e Oswald Deuce parecem enclausuradosnaregiocinzentadohomembarroco,entrearazoiluminista,postoque socientistas(eaperdadasesposassconfortadapeloprocedimentocientfico,ou seja, o registro meticuloso da decomposio dos corpos dos animais), e a suspeita constantedequehnomundoligaesclandestinasentreascoisas,cujaconjuraoou combinao pode desencadear desastres (ou prodgios) essa ligao subterrnea incessanteentreeventosecoisaspois,segundoFoucault (2002,p.4142), ocrculo quedescrevemassemelhanasquefundamosaberdosculoXVI:

Asemelhanajamaispermaneceestvelemsimesma;sfixadaseremetea uma outra similitude que, por sua vez, requer outras; de sorte que cada semelhana s vale pela acumulao de todas as outras, e que o mundo inteiro deve ser percorrido para que a mais tnue das analogias seja justificadaeapareaenfimcomocerta.pois,umsaberquepoder,que deverprocederporacmuloinfinitodeconfirmaesrequerendoseumass outras.

Em Zoo,ospersonagens(eosespectadores)investigamasmarcasqueassinalamos eventoseformamocrculodassemelhanas,demaneiraque,talcomoumsortilgio, determinam o destino da histria. 676, cuja raiz 26, o nmero que aparece no cronmetrodozologoOliverDeuce;26onmerodepinturasdeVermeervendidas porsuaviva;26estnaplacadocarrodeAlbaenaportadoapartamentodeOliver;26 soasletrasdoalfabetoingls;26onmerodefilhosdesejadosporAlba.Ocirurgio queamputaaspernasdeAlbaapsoacidentesechamaVanMeegeren,mesmonome dofalsrioquereproduziaasobrasdeVermeer;opassatempodomdicofotografar

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cenasidnticassobrasdopintor,que,acreditaele,pintavasmulheressempernas;sua mulher tem o mesmo nome da mulher de Vermeer, Catherina Bolnes. Mercrio, o mensageirodosdeusesdeasasnoscalcanharestambmamarcadocarrodirigidopor Alba e atropelado pelo cisne; Jpiter, Vnus e Mercrio o nome de uma pintura perdida, a segunda de tema mitolgico atribuda a Vermeer; envenenamento por mercrioacausadoabortosofridoporAlba. Mutiladossoogorila,Alba, Felipe Arcenciel(cujaspernasmecnicassousadasporAlba) eaprostitutaecostureira VenusdeMilo,obcecadaporzebras(quenodefatomutilada,masemprestaseu nome da famosa esttua grega que perdeu os braos). Podese ainda esmiuar indefinidamentelistrasegrades, stopmotion e timelapse,zebrasetigres,simetriae espelhos,pretoebranco,caramujos,homensedlmatas,tableauxvivantsenaturezas mortas,crculoseciclos...

NoPrimeiroCatlogo,soPertencesPrecursoresaparentadosdeZoo:asfotografiasque descrevemosmovimentosdoshumanosedosanimaisdeEdwardMuybridge(quepor suavezfuncionammuitobemcomoseqnciasparakinoras);asalegricasnaturezas mortas fotogrficas de JoelPeter Witkin (1939 ), encenadas com frutos, animais, cadveres e mutilados; os filmes em stopmotion dos gmeos Quay; as inmeras possibilidadestaxonmicasqueconviviamladoaladonossculosXVIeXVII;asobras deRosamundPurcell;oMtterMuseum;osatlasanatmicoseashistriasnaturais;as classificaeseanalogiasdosfilmesdeJanSvankmajer.TrsdosPertencesProcessos exercitamasanalogiastalcomoemZoo:umoLivrodosTtulosdeCaptulosAssim ComoForamEncontradosemSanatoriumPodKlepsidra (figura05);osegundoo sistemadeclassificaoRelgioGavetaJardiminventadoparaclassificarosPertences; o terceiro este texto. Alm dos Gabinetes de Instncias Prerrogativas, h outros PertencesObrasquebuscamevidenciarossistemasdeclassificaocomooHerbrio

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doJardimVermelho eo AtlasdeAnatomiadeCriadosMudos,ambospertencentes Bibliotheca Abscondita. O nmero 9 e suas estranhas propriedades12 exercem seus sortilgiosno UnheimlicheWunderkammer:hnovelivrosna BibliothecaAbscondita (entre eles,aTerceiraEdiodoPrimeiroCatlogo)evinteesetegavetas nostrs GabinetesdeInstnciasPrerrogativas.

OPertencePrecursorZooclassificadocomoGavetaecomoJardim.

Napgina27ho HistoriaNaturae,Suita, filmedirigidoporJanSvankmajer em 1967.FiliadoaoGrupoSurrealistaTchecodesde1963, Svankmajerformouumaobra quetranscendeastentativasdeengavetamento:noseenquadranascategoriasdefinidas pelo suporte, transita obliquamente atravs dos territrios da materialidade, conjura figuras,precursores,temposeespaosincomuns,numedifcioquerevelaseaomesmo tempoviolentamentesingularnasuaorganizaoesurpreendentementefamiliarnos seuselementos.

HistoriaNaturae,Suita,realizadonatcnicadeanimao stopmotion,estruturado pelas antigas categorias de classificao cientfica: Aquatica, Hexapoda, Pieces, Reptilia, Aves, Mammalia, Simiae, Homo.Emcadaumadessascategorias,asvrias formas de representao das criaturas como litografias, desenhos e espcimes empalhados bailam em uma colagem ritmada ao som de um determinado tipo de msica:foxtrot,bolero,blues,tarantela,tango,minueto,polca,valsa.

Historia Naturae, Suita iniciase com Vertumnus, pintura de Giuseppe Arcimboldo (15271593) de 1590, que representa a divindade romana da vegetao e da12 Porexemplo,asomadosvaloresabsolutosdoresultadodequalquernmeromultiplicadopor9 sempre9.

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metamorfose.Nessapintura,afigura deumrostomasculinoconstrudacomfrutos, floresevegetaisquesugeremaharmoniadasquatroestaes(KRIEGESKORTE,2005, p.44). De acordo com O'Pray (1995, p. 5354), a diviso de categorias em outras categoriasqueporsuavezsedividememmaiscategorias,artifciocomumnaspelculas deSvankmajer,tpicatambmdotrabalhodeArcimboldo.Defato,opintoritaliano constantereferncianostrabalhosdeSvankmajer,comoporexemplonosfilmesFlora, de 1989 e Moznosti dialogu, de 1982 o poeta checo13 compartilha tambm com Arcimboldo omtododeconstruode discursos visuais e universos imaginrios a partirdasobreposioereorganizaodeobjetosprosaicos.

Nos filmes,colagens edemais obras deSvankmajer,essesobjetos prosaicos quese transfiguramnoselementosquaseespectraisqueperfazemsuasassemblagesestticase animadas,parecemprovirsempredeummesmolugaroqueacolheosfragmentos esquecidosedescartadospeloshomens,osrepositriosdascriaturasobsoletascomoos stos,ospores,osarquivos,oscmodosrecnditosdascasasedasinstituies.So osobjetosimprofcuos,quenomaisfazempartedaconfiguraodosaberedousar,e quecomfreqnciasobreviveramaseusdonosenesseseusilncioeobsolescncia, na sua muda inutilidade que tanto os aproxima dos objetos de coleo 14, parecem beneficiadoscomumaanimaqueobservaosseusobservadoressoosfragmentosdo eclipse do gosto que Andr Breton (18961966) nomeou de runas romnticas e identificoucomomaravilhososurrealistanoseuprimeiroManifesto(BRETON,2001,13 Svankmajerpreferequeserefiramaelecomopoetasurrealistadoquecomoanimador,cineastaou artista(O'PRAY,1995,p.49),edizquenuncameconsidereiumanimadorporqueestouinteressado nonastcnicasdeanimaoouemcriarumailusocompleta,massimemtrazervidaosobjetos cotidianos(SAID;SVANKMAJER,2001). 14 DeacordocomBaudrillard(2000,p.94),nosepossuiumobjetoqueexerceumafunoprtica,a possessednoobjetoabstradodesuafunoerelacionadoaoindivduoassim,oobjetopuro, privadodefunoouabstradodeseuuso,tomaumestatutoestritamentesubjetivo:tornaseobjetode coleo.

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p.30). Breton, a exemplo de outros surrealistas, era um vido colecionador dessas runas.Reuniu,entreosmuitosartefatosdesuacoleo,objetoscomoumaraizde mandrgora na forma de uma pessoa, animais embalsamados, conchas, objetos etnogrficos da frica e Oceania, ossos e pedras com incises e um espelho que multiplicaasimagens(PUTNAM,2001,p.12).Aidentidadesurrealistadestesobjetos aparecenadescrioquefezBretondaexposioacontecidaemParisem1936:

AgaleriaCharlesRatton[...]nosconvidahojeparaumamostraprivadade sua exposio de objetos Surrealistas. Entre os mais de duzentos objetos listados no catlogo, poderemos encontrar objetos naturais, minerais (cristais de cem mil anos contendo gua), plantas (espcies carnvoras), animais(tamandugigante,ovopostoporumoexpyorhix),interpretaes de objetos naturais (um macaco entre samambaias) ou incorporados em esculturas,eobjetosinterrompidos(modificadosporforasnaturais,fogos, tempestades,etc.).Reveladosaquipelaprimeiravezaopblico,estovrios objetosdoestdiodePicasso,quetomamseulugar,historicamente,juntodos celebradosreadymades,ereadymadesassistidosdeMarcelDuchamp, tambm em exposio. Finalmente, os chamados objetos selvagens, os fetiches e mscaras das Amricas e da Oceania, selecionados da coleo particulardeCharlesRatton(BRETONapudMAURIS,2002,p.214)15.

NoPrimeiroCatlogo,ospoemasobjetodeBretonmantmumbviodilogocircular com outrosPertencesPrecursores ascolees deJosephCornelledeFarnesede Andrade(figura06)cujaspontasseatamemHistoriaNaturae,Suita.Osartistasno s compartilham a predileo por reorganizar e ressignificar determinadas runas romnticas,mastambmasarranjamemformatoespecficodecoleo,guardandoas emcaixas(caixafilme,nocasodeSvankmajer).Noformatocoleo15 BRETON,Andr.ArtigopublicadoemLasemainedeParis,em22demaiode1936.

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46 todososobjetospossudosparticipamdamesmaabstraoeremetemuns aosoutrosnamedidaemquesomenteremetemaoindivduo.Constituemse poisemsistemagraasaoqualoindivduotentareconstituirummundo,uma totalidade privada [...] Na coleo [...] triunfa este empreendimento apaixonadodeposse,nelaqueaprosacotidianadosobjetossetornapoesia, discursoinconscienteetriunfal(BAUDRILLARD,2000,p.9495).

Derunasromnticastambmfeitoo UnheimlicheWunderkammer: aexemplode Breton,Farnese,CornelleSvankmajer,busclaseidentificlaseemseguidaexercit lasearranjlasemcoleesdePertencentesumadaspredileesdoCatlogo,que tambmcuidadecontornaraquelasquesedegeneraramemornamentosestasltimas no so mais capazes de fazer oespritosoluar,noesto mais Privilegiadas pela Propriedade.NoCatlogo,ocolecionismopromscuorepresentadopelasfigurasdos atelisdeFarnese,deCornelledoescritriodeBreton(figura07).Essastrsfiguras, aindaqueestticas,parecemcuriosamenteconterummovimento,odasobrasedos pensamentosaseformar,emudamesedesdobramacadavezquesoolhadas.O crculodessasfigurassefechanaquelapinturadeArcimboldoqueabreapelculade SvankmajerpoderiasepensarVertumnuscomoumacoleo?

ApinturadeArcimboldoumretratoalegricodoimperadorcolecionadorRodolfoII de Habsburgo (15521612), a quem o filme de Svankmajer dedicado. Segundo Cardinal(1995,p.81), HistoriaNaturae,Suita estnamesmarbitaqueconcebeuo gabinete de curiosidades e, dentro do contexto investigado, o imperador citado principalmenteporsuaimensacoleo,cujamenofreqentementeacompanhada dosadjetivos excntrica, bizarra e extravagante. CobiaardentementeoCatlogotais gabineteseespecialmenteacoleodeRodolfoII,daqualemprincpiosoencontrados apenasvestgios,umououtroobjetoesparso.Aprimeiracoleoencontradanoentanto

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est retratada em uma gravura e pertenceu ao boticrio italiano Ferrante Imperato (15501625).

HistoriaNaturae,SuitaprodigiosamenteRelgio,GavetaeJardim.

Ento,napgina36,estagravurade1599queofrontispciode Dell'historia naturale, catlogodacoleoparticulardeFerranteImperato (figura08)esua primeira viso imediatamente conjura um antigo PertenceProcesso e um antigo PertencePrecursor.Chamadode TerceiroCaptulodeNotasSublinhadasdoSegundo Inventrio Inventado em sua Primeira Edio Encabulada (figura 09), o Pertence Processo faz a sugesto da figura inapreensvel de um certo gabinete em mogno castanho,dedimensoincertaeemcujasgavetashjardins.OPertencePrecursorum lugarinventadoporLewisCarrollevisitadoporAliceemAtravsdoespelhoeoque Aliceencontrouporl(1897).NalojinhadaOvelha,Alicetentaemvoapreendertudo oquev:

Podeolharparaasuafrente,eparaosdoislados,sequiser,disseaOvelha, masnopodeolharparatudosuavolta...amenosquetenhaolhosna nuca.[...] Alojapareciacheiadetodasortedecoisascuriosas...masomaisestranhode tudo era que, cada vez que fixava os olhos em alguma prateleira para distinguir o que havia nela, essa prateleira especfica estava sempre completamentevazia,emboraasoutrasemtornoestivessemcompletamente abarrotadas(CARROLL;GARDNER,2002,p.194).

Gardner(2002,p.194, n.11)comentaquealojainventadaporCarrollpareceter surgidodeumapassagemdosPensamentosdeBlaisePascal,dequemoautorera

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admiradorconfesso:Somos incapazes de conhecimento certo ou de ignorncia absoluta. Flutuamos num meio de vasta extenso, sempre derivando de maneira incerta, soprados para c e para l; sempre quepensamos que temos um pontofixoaquenossegurarefirmar,elesemoveenosdeixaparatrs;seo seguimos,elenosedeixaagarrar,escapole,efogeeternamente nossa frente.Nadapermaneceparadoparans.Essenossoestadonaturaleno entanto o estado mais contrrio a nossas inclinaes. Desejamos ardentemente encontrar um fundamento firme, uma base definitiva, duradoura,emqueconstruirumatorrequeseergaatoinfinito,mastodoo nossoalicercedesmorona(PASCALapudGARDNER,2002,p.194,n.11)16.

AmbososPertences,assimcomoagravuradeImperato,sofremde horrorvacui,ou seja,tmumquaserisvelpavordeespaosvaziosmasaoobsessivamentepreencher essesespaos,oquecausamumaespciedecegueiraintermitente,comoaqueestna angstiadaskinorasequetambmsefazpresentenasjmencionadasfotografiasdos locaisdetrabalhodeFarnesedeAndrade,JosephCornelleAndreBreton,bemcomona profusodecrculosdeanalogiasemZooaincertezadovereaincertezadosaberde quefalaPascal.AfiguradocatlogodeImperatoconvocaambas,tantopelaprofusode objetoscriaturas,como tambm pela suspeita que propaga deque oajuntamentol representado no est livre de critrios meticulosos de organizao, radicalmente diferentes porm daqueles que constituem o saber de agora. como o Emprio CelestialdeConhecimentosBenvolosdeBorges:aindaquecompletamentealiengena sestruturasdeorganizaoconhecidas,permiteentreverporvezesumaaterrorizante lgicainterna,capazdedesmantelarcertezasarraigadasedeconvidarrazoaquilo queantessepareciacomoerro.16 PASCAL,Blaise. Pensamentos.NacitaodeGardnernohrefernciaeditora,localedatade publicao.

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HnagravuradeImperatoumaoutraassustadorapropriedade:aindaqueemprincpio desconhecida do Catlogo, ela ao mesmo tempo estranhamente familiar a cada observao,elacapazdeseaparentardeumdosPertences,detalmodoquetodospara lconvergem,todosfiguraporfimseatam.EssagravuraumaGaveta,postoque inaugura o encontro do Catlogo com o PertencePrecursor Maior: as colees particularesrenascentistasebarrocas,queporsuavezsedesdobramemmaisportas, galerias, escadas e gavetas tambm capazes de conter todos os Pertences at ento presentesnoCatlogo.AgoraessascoleesparticularesdossculosXVIeXVIIso PrecursoreseassumemavozdosPertencesProcessoseObrasparaquedelessefaa umaaproximao.AseguirestahistriaquefoicontadaaoPrimeiroCatlogopelos seusentomaisrecentesPertences:

CAPTULOII

DoPertencePrecursorMaior

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2.1Ondeumambrosacoinventrioestaatiaracuriosidadedospolmataseo PertencePrecursorMaiorcontasuahistria

Umpossvelinventrio:1olivroilustradocontendotodosospeixesextravagantesde LeoneTartaglini;2umaserpentedeasascortadas;3umacosteladesereia;4uma hidrafeitacompartesdedragovoadorecabeasdevriosoutrosanimais;5plantas marinhas; 6 chifres deformados; 7 retratos em miniatura de prncipes, papas e cardeais;8trsbonecoshermafroditas;9mesaflorentinaempietraduracomglobo celeste;10ossosdeumgigante;11umcrocodilo;12moldesemgessodebraos humanosedepsdeanimais;13animaissemnome;14estruturasintrovertidasem marfimtorneado;15quatrocabeasdemaravilhasmarinhas;16chifrecadodocu; 17jogosdetabuleiro;18mineraispetrificadosquebrotamdosubsolonaformade animais e utenslios; 19 animais sem sangue; 20 ninhos de pssaros; 21 um onacratulus;22alguns orcadesanates,bastanteraros;23umasalamandra;24 manucodiata machoefmea; 25atraduodeLudovicoDomenichida Naturalis historia dePlnio;26mrmorecomfiguras;27bezerrocomduascabeas;28 cavalocomchifre;29ovummagicum;30bezerrocomcincops;31ovamonstrosa; 32mandrgora;33pigmeus;34zofitos;35carneirotrtaroecertospssaros quecrescememrvorescomofrutas;36pedraspreciosasformadasdentrodeanimais; 37ossosecaudadesereia;38gravurapublicadanoMicrographa(Londres,1665) descrevendodetalhesdacabeadeumamosca;39retratodeMagdalenaVentura,seu filhoemarido (figura10),deJosdeRibera(1631); 40 kunstschrank deGustavus Adolphus, executado por Phillip Hainhofer em 1625; 41 os doze volumes do Naturalis historia de Ulisse Aldrovandi; 42 caixa de perspectiva de Samuel van Hoogstraten; 43 iluminuras de insetos de Joris Hoefnagel; 44 oito figuras que personificamamorte,cadaqualesculpidaapartirdeumnicoblocodemadeira;45

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Selenographia (Danzig,1647),livroilustradoqueregistraasobservaescelestesde JohannesHevelius;46Mundussubterraneus(Amsterd,1665),tratadodeAthanasius Kircher sobre vulces; 47 Monstrorum historia (Bolonha, 1642), tratado sobre monstrosdeUlisseAldrovandi; 48retratodeAntonietaGonzalez,filhadePedro Gonzalez,pintadoem1583porLaviniaFontana;49aquarelaannimadescrevendo umaavedoparaso,que,comosesabe,notemps;50exemplardeLePerspective curieuse (Paris, 1663), que descreve os efeitos produzidos pela mgica artificial da perspectiva,escritoporJeanduPris;51sepulcroseinscriessepulcrais;52concha com chifres; 53 gato xifpago; 54 Cancer Lanosus e Cancer Perversus; 55 PhallumMarinum;56PorcellanamontosaePorcellanaLitterata;57mbargris;58 salamandritas;59ovodedragoeovodecrocodilo;60duasplumasdacaudada Fnix; 61 muitas coisas habilmente esculpidas em coral; 62 paisagens, bestas e cidadesdesenhadasnaspedraspelocaprichodanatureza;63doloindianofeitode penas,naformadeumco.

Esteprolixoinventrio1deexcentricidadesnofoicolhidodeumexercciosurrealista,1 ObjetosquefiguramemcatlogosedescriesdecoleesparticulareseuropiasdossculosXVIe XVIIouempublicaesdedicadasaoestudodestascolees:nmeros1a4seleodeobjetosde coleesitalianas(SMITH;FINDLEN,2002,p.304319);nmeros5a17seleodeobjetosda coleododuqueAlbretchVdaBavriaemMunique(SEELIG,2001,p.105);nmeros18a20 seleodeobjetosdoMuseiwormianihistoria,catlogodacoleodeOleWorm(SCHEPELERN, 1971,p.376380);nmeros21a24seleodeobjetosdacoleodeFerranteImperato(MAURIS, 2002,p.10);nmeros25e26seleodeobjetosdacoleodeUlisseAldrovandi(LUGLI,2005,p. 36,39);nmeros27a31naturaliadecoleesvariadas(GEORGE,2001,p.252);nmeros32a37 objetoslistadosno Ilmercatodellemaravigliedellanatura (Veneza,1653),deNicolSerpetro, comunsaqualquercoleodapoca,eobjetosdacoleodeAthanasiusKircher(FINDLEN,1996,p. 65,92);nmeros38a50objetos,gravuraselivrospertencentesavriascoleesdoinciodaera moderna ou produzidos no perodo, descritos no catlogo da exposio The age of marvelous, realizadaem1991noHoodMuseumofArtemHanover(KENSETH,1991,p.37,52,97,118,181, 184,269,323,333,345,436);nmeros51a53seleodeobjetos docatlogodacoleode AthanasiusKircher(BUONANNI,1709,p.116126,264,300);nmeros54a58objetosdescritosno catlogodacoleodeGeorgiusEverhardusRumphius(BEEKMAN;RUMPHIUS,1999,p.44,46, 73, 165, 166, 296, 343); nmeros 59 a 63 objetos descritos no catlogo do Musaeum Tradescantianum,coleoderaridadesdeJohnTradescant(MEA,1964,p.252,264,266).

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nemtampoucodeumaheterotopiaoumaneirismoborgiano,oudequalqueroutrolugar dafico.Emboraidealizada,alistaprecedentesconstituiumatotalimpossibilidade quandoforadeseucontextooriginalestahordadeobjetoscriaturasconvergiudefato emarranjossemelhantesdeterminadaocasioeespaoeencontrouasuapossibilidade deexistncianascoleesparticulareseuropiasdossculosXVIeXVII, eseno fisicamente, pelo menos nas suas descries e catlogos, levandose em conta que, queletempo,gravurasfabulosasetestemunhosfantsticosnoeramtodiferentesda verdadecomoosoagora2.

Tal qual uma pandemia, o fenmeno do colecionismo privado se alastrou irremediavelmenteEuropaaforanoinciodaEraModerna,deParisAmsterd,de LondresCopenhagueefoiespecialmenteprolficonaregiodaatualItliaenoento SacroImprioRomano,ondeseencontravamosprincipaisarqutiposdascolees.Nos armrios,gavetasecmodos,palciosegalerias,livrosejardinsdoswunderkammern, studioli, musei,gabinetesderaridadesecuriosidades,osprodutosdaengenhosidade humanaouartificialia eascriaturasdanaturezaounaturaliaespecialmenteasmais rarasemaravilhosaseramorquestradasporboticrios,eruditos,virtuosi,amadorese polmatas,reis,prncipesenobres,mdicos,professores,mercadoresecuriosos:em Florena, geraes de Medici colecionadores como Lorenzo (14491492), Cosimo I (15191574), e seus filhos Ferdinando (15491609) e Francesco I (15411587) constituramimportantesacervos;emBolonha,acoleomaisproeminentefoisem dvidaadoprofessorUlisseAldrovandi(15221605),anexadaem1567coleodo marqus Ferdinando Cospi (16061686) (figura 11); em Npoles, destacaramse as coleesdoboticrioFerranteImperato(figura08)edopolmataGiambattista(ou2 HooperGreenhill (1992,pg.136)observaqueadivisoentreobservao,documentoefbulano existiaantesdosculoXVII,emnooextradadeFoucault(2002,p.177)quecompleta:noporque acinciahesitasseentreumavocaoracionaletodoumpesodetradioingnua[...]queossignos faziampartedascoisas.

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GiovanBattista)dellaPorta(15351615);emRomaeramnotveisascoleesdonobre FedericoCesi(15851630),fundadordaAccademiadeiLincei,domdicodopapae encarregadodojardimbotnicodoVaticano,MicheleMercati(15411593)emaistarde, dopadrejesutaAthanasiusKircher(16021680)(figura12);emVeronaeraadmiradaa coleoeolaboratriodoboticrioFrancescoCalzolari(ouCalceolari)(15211600); emMilo,ManfredoSettala(16001680)concebeuilustrecoleo;emMntua,distinta eraacoleodeIsabellad'Este(14741539);emLondresosTradescant,pai(?1638)e filho(16081662),reuniramumaimpressionantecoleo,usurpadaporEliasAshmole (16171692) e doada por fim Universidade de Oxford; em AixenProvence, o antiqurio Nicolas Claude Fabri de Peiresc (15801637), alm de descobrir a constelao de rion em 1610, tambm envolveuse com o colecionismo; em Copenhague,singulareraacoleodeOle(ouOlaus)Worm(15881654)(figura13); no Sacro Imprio Romano eram clebres as colees dos Habsburgo como a de Ferdinando I (15031564) em Viena, de seus filhos Ferdinando II (15291595) no casteloAmbrasemInnsbruck,AlbretchV(15281579)emMuniqueeMaximilianoII (15271576)emVienaeespecialmenteacoleodofilhodesteltimo,oimperador RodolfoII(15521612)emPraga.Em1714,omdicoMichaelBernhardValentinilistou nada menos que 658 colees particulares em seu Museum museorum (Museu de Museus),umcompndiodascoleesda poca.Noentanto,deacordocomPearce (1995,p.109),bastanteprovvelqueValentinitenhasubestimadoovultuosofuror colecionista.

Dilatavamse ou estavam a se romper as cercanias que circunscreviam a Europa medieval cadavezmaisavizinhavamsedelafrica,oOrienteetodoumNovo Mundo.Enquantoosmapaseramredesenhados,ohomemposicionouseaocentrodo espetculodaexistnciaeumcaudalosoinfluxoverteutodasortedefenmenos,

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civilizaes,criaturas,procedimentoseidias,oujlatentes,oudecididamentenunca vistas,emumaescaladaquetendiaaocaos.Eraprecisogerirtalconflunciadeeventos e possivelmente as atividades colecionistas tencionavam manter algum grau de controlesobreomundoetirarsuamedida(FINDLEN,1996,p.4).

AsmaravilhasrelatadasporSirJohnMandevilleeporMarcoPolo3emsuasviagensou pelovelhoPlnioemsuaNaturalishistorianopareciamtoimprovveisarealidade comfreqnciareforavaousuplantavaemmuitoasfbulas,osrelatosdeviajantes,os escritos clssicos e os bestirios medievais (KENSETH, 1991, p. 2728) mais acessveisentoemrazodasnovastcnicasdeimpressoenovastradues.Ouviase comrenovadarevernciaavozdosantigos, comoatestaoescritodopastorJeande Lry,queem1557viveunoBrasil:

Eunoendossooscontosfabulososencontradosnoslivrosdecertagente que,acreditandoporouvirdizer,escrevecoisasinteiramentefalsas[...]No tenho vergonha de confessar que, desde que me encontro nesta terra da Amrica,ondetudooquesepodeveromododevidadeseushabitantes,a formadosanimais,os produtosdaterradiferetantodaEuropa,siae fricaquebemselhepodedaronomedeNovoMundoemrelaoans, revi minha opinio sobre Plnio e outros quando descrevem pases estrangeiros,poisvicoisastofantsticaseprodigiosascomoqualquerdas que eles mencionam, antes consideradas inacreditveis (LERY apud GREENBLATT,1996,p.40)4. 3 EmboraorelatodeMarcoPoloditadonaprisoRustichellosejadefatomenosencantadodoquese esperaseuunicrnioumrinoceronte,suasalamandra umtecidodeamiantocompilaes posterioresade1298tendemaacrescentarmaravilhashumanidescomoosBlemmas(seressem cabeacujorostoseencontranabarriga[figura18]),UnpedeseMonculos.SegundoEco(1989,p. 63), orelatodeMarcoPolonoalegorizaenomoraliza[...],desconcertanteerealistacomo Maquiavel, e fala como tcnico a tcnicos. No entanto, continua Eco, o seu mundo reagiu provocao,lendoocomosefosseumdosseusantecessoresfantasiosos. 4 LERY,Jean.Historied'unVoyageFaitemlaterreduBrsil,diteAmrique.Genebra,Vignon,1600.

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Escritos como os de Plnio, Aristteles, Dioscrides, Teofrasto, Plotino, Galeno, HermesTrismegisto5eclaro,aBblia(especialmenteaArcadeNo),acabarampor fornecer modelos e preceitos para alicerar as acumulaes e investigaes que se faziamnecessrias,oquesedavamaneiracaractersticadoperodo,isto,atravsda sobreposio,ampliaoecomplementao.

Nosepodeelencarcomrigorosaprecisoquaisqualidadesdeobjetoseramouno elegveisparaacomposiodeumacoleoparticularrenascentistaoubarroca,mas podeseregistraralgumasdaspredileesdoscolecionadores:ocrocodilopnsil; as gatas com figuras; os autmatos; os livros cannicos; os fragmentos das antigas civilizaes; as efgies dos poderosos ou admirveis; os instrumentos pticos; as relquias sagradas; as obras de arte alegricas; os manuscritos indecifrveis; as invencionicesmatemticaseainda

[...]osalegadosrestosmortaisdelegendriascriaturasgigantes,unicrnios, stiros,basiliscos [que]tomavam seulugaraolado defenmenos reais porm confusos como fsseis, magnetos e zofitos; criaturas at ento desconhecidascomootatueaavedoparaso;eumapletoradeartefatos comunsquepreenchiamaslacunasentreumparadoxoeoutro(FINDLEN, 1996,p.3).

As fontes onde se assediavam e se adquiriam estes objetos eram incontveis: dos mercadosdepeixesmosdosmaishbeisartesos,daexcursoaoNovoMundos montanhaslocais,daboticadacidadeaosmimosdiplomticostrocadosentreosnobres.

5 NaRenascenaacreditavasequeosacerdoteegpcioHermesTrismegisto(trsvezesgrande)havia escritooAsclpioeoCorpushermeticumondesodetalhadososritosereligiodosegpciosesua cosmogonia. Na verdade, so vrios os autores destes escritos, possivelmente gregos ou egpcios neoplatnicos (YATES, 1964, p.14-15).

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Osmpetosquemoviamoscolecionadoresemdireoadeterminadosobjetospareciam peculiaresaosseusinteressesintelectuaiseprofissionais (quenaverdadeerampouco excludentes)e,obviamente,eramproporcionaissuaprosperidade(OLMI,2001,p.2). Embora dissemelhanas e intercesses possam ser delineadas, este exerccio nem sempreofereceiluminao,jqueumadasqualidadesfundamentaisdofenmenoa particularidade de cada coleo na ambio de representar o mundo, cada colecionador construa a sua prpria verso de realidade e seus catlogos so uma espciedeefgieampliada,comonailustraododesenhistacolecionadorimaginado porBorges(1999a,p.254):

Umhomemsepropeatarefadedesenharomundo.Aolongodosanos, povoaumespaocomimagensdeprovncias,reinos,demontanhas,debaas, de naus, de ilhas, de peixes, de moradas, de instrumentos, de astros, de cavalos e de pessoas. Pouco antes de morrer, descobre que esse paciente labirintodelinhastraaaimagemdeseurosto.

Ainda assim observvel que a incluso indiscriminada de itens prosaicos e a significativa proporo de naturalia eram caractersticas das colees de boticrios, professores e demais estudiosos da natureza cujos propsitos eram principalmente prticosedidticos. Relativamenteacessveis,estascoleeserammenosumsistema simblicodoqueumlugardeestudodanatureza(OLMI,2001,p.23). Prncipese nobres tendiam a adornar profusamente sua naturalia, realando seus atributos maravilhosos e ocultos, aproximandoas dos tesouros e ressignificandoas dentro da coleo,eventualmentedemaneiraadiluiraoposioaristotlicaentrearteenatureza RodolfoIIporexemplo,enviousuacastanhadeSeychellesparaqueSchweinbergera adornasse(FUCIKOV,2001,p.68)eteveseuschifresderinocerontetransformados em taa por Nikolaus Pfaff (figura 14) (MAURIS, 2002, p. 172173). At mesmo

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maravilhashumanasvivasfaziampartedascolees,comoohermafroditaeoano Foma que pertenciam ao acervo do czar Pedro, o Grande (16721725). Prncipe ou boticrio,eranotveloapetitevorazpeloobjetocapazdecausaradmiraoedespertar a curiosidade, seja por sua raridade, ou estranheza, ou tamanho, ou virtuosismo na execuoemsuma,oobjetomaravilhoso.

Emumapocaondeaalquimia,astradieshermticas,neoplatnicasearistotlicasse sobrepunham,umaassembliadesvairadadeobjetosnofaziaumacoleoparticular, tampoucoumbeloarranjodispostoemumcmodooumvelumarededesentidose relaesprecisavaserestabelecidaeascoleesparticularesfuncionavamcomoum sistemaconceitualatravsdoqualoscolecionadoresinterpretavameexploravamseus mundos(FINDLEN,1996,p.49).Eraprecisoauscultarafaladosobjetos,queemcoro queriam se fazer compreender como theatrum mundi uma encenao em escala reduzidaouummicrocosmo,quetantorepresentavatodaavariedadedomundoquanto todo o conhecimento acerca dele e cuja ordenao era fundada nos sistemas de correspondnciarenascentistas(HOOPERGREENHILL,1982,p.8283).

Sequepossvelfazerumadistinoentreaposturacontemplativadosprncipeseo comportamentoinquisitivodosestudiosos6(defato,namaiorpartedoscasos,acertado dizer que ambas as caractersticas se faziam presentes), tambm possvel indicar provveisfontesdeinspiraoparaaorganizaoeparaasignificaodascolees.Por voltade77d.C.,Plniosistematizouomundoem20.000fatosnotveisaolongodos36 volumesdesuaNaturalishistoriaque,porexemplo,tratadesdeavariedadedeformatos doschifresdeanimaisatmtodosparacortaromrmore(PLINY;RACKHAM,2004, p.13),eforneceuummodeloenciclopdicosoboqualseedificarammuitasdas6 NocasodeAldrovandiestadistinoerabastanteclaraopolmatapreferiaarranjosfuncionaiseno seinteressavaporsistemasobscurosdeorganizao(OLMI,2001,p.3).

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colees (FINDLEN, 1996, p. 3), especialmente as de carter profissional e investigativo, bem como seus catlogos e outros escritos por elas inspirados. Nas coleescujopropsitoeraacontemplaoreflexiva,outrosprincpiosdesignificaoe organizaocomoaantigaartedamemriaeossistemasdeladerivadosestavamem exerccio.Umdestessistemaseraoteatrodamemria,inventadoedescritoporGiulio CamilloDelminio(14801544)emseulivroL'ideadelTeatro(1550).Estesistemaera umaclassificaohierarquizadaearticuladadosaberuniversal,paraajudaramemria epropiciaraopraticantedaArtedaMemriaoseudomnio(ALMEIDA,2005,p.13) emuitoprovavelmente,acomearpelottulo,foiinspirao,juntodacoleododuque Albretch V da Bavria, para um dos primeiros tratados de museologia que se tem conhecimento,oInscriptionesveltitulitheatriamplissimi...,escritopelomdicoSamuel Quiccheberg(15291567)em1565(SEELING,2001,p.111;BREDEKAMP,1995,p. 28). A obra trata principalmente da organizao das colees e dividida em seis sesses:odonodacoleoeseureino;arte;ostrsreinosdanatureza;instrumentos; usosparaapintura;bibliotecas,laboratrioseoficinas.Outrasprovveisfonteserama extensa literatura sobre o maravilhoso, os tratados de histria natural e os prprios catlogosdecoleesdapoca(KENSETH,1991,p.3031).

NaspalavrasdePaulaFindlen(1996,p.23)colecionarnoeraapenasumaprtica recreativa,mastambmummecanismoparatransformarconhecimentoempoder.As colees no se faziam apenas por ajuntamentos secretos e estticos de objetos, usualmenteestavamvinculadasaumasriedeatividades,muitasdelaspblicaseram tambmlaboratrio,oficina,saladeaulaetambmsaladevisitasapossedoobjetoou de um sistema de objetos era tambm a posse do conhecimento e na sua eventual exibio o colecionador adquiria simbolicamente a honra e a reputao que todo homem eruditocultivava(FINDLEN,1996,p.3).bvioquenosapossede

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conhecimento,mastambmapossedeobjetosvaliososcumpriaopapeldecertificaro poderelustraroprestgiodocolecionador.

2.2OTerminoriummusaeumdifinitoriumparaoMuseummuseorum:ondehuma coleodenomesdecolees

Extravagantetambmanomenclaturadestascolees,habitadaportermoshbridose incongruncias: wunderkammer (cmara de maravilhas), kunstkammer (cmara de artes), kunstschrank(armriodemaravilhas),studio,studiolo,galeria,museo,theatro, gabinetedecuriosidades,repositrio,arcamuitasdascoleesinclusive,desfrutavam demaisdeumnome a deUlisseAldrovandiporexemplo,erasimultaneamente chamada de museo, studio, teatro, microcosmo, archivio (FINDLEN, 1996, p. 48). Quaisospossveiscritriosparaousodestestermos?Seriamelesresponsveispela fundaodemodelosdecoleoouaconteceriaexatamenteocontrrio?Osestudiosos contemporneos do fenmeno tm opinies divergentes: alguns, possivelmente inspirados por Die Kunst und Wunderkammern der Sptrenaissance7 de Julius von Schlosser, acreditam em especificidade enquanto outros sugerem uma interpretao mais ampla. Schlosser, que liga termos modelos de colecionismo a partir da localizaogeogrficadascolees,distingueporexemploosgabinetesdecuriosidades italianosdoswunderkammernnrdicos,opinionopartilhadaporOlmi(2001,p.15)e Schepelern (2001, p. 175), que acreditam que os princpios do colecionismo so os mesmosemqualquerlugarequeadiferenamaiorsefazquantosaspiraesdecada colecionador.Grinke(2006,p.48)jparececoncordarcomSchlosserquandoafirma7 EmboraaimportnciadaobraDieKunstundWunderkammernderSptrenaissance,deJuliusvon Sclosser,publicadoem1908em Leipzig,consideradoporPaulaFindlen(1996,p.2)umestudo fundamental do colecionismo e citado por vrias das fontes consultadas seja devidamente reconhecida,omaterialpermaneceuinacessvelenofoiconsultadonocursodestainvestigao.

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queacoleodopadrejesutaAthanasiusKircherumdospoucos wunderkammern italianos,isto,construdoapartirdosmodelosnrdicos.Kenseth(1991,p.9899)cr queousodostermosdependedageografiamasquenochegaaexatamentedeterminar modelos de coleo. J Mauris (2002, p. 2425), baseado nos recentes estudos de Lugli,BredenkampeSchnapper,dizqueatmeadosdosculoXVIIpoucassoas distinesobservveisentrecoleesequeaoinvsdeestabelecertermosabsolutos para definlas, mais interessante aferir as particularidades de cada uma delas. Segundo Findlen, (1996, p. 117) usando uma multitude de palavras diferentes, os colecionadoresexploraramasnovaspossibilidadesconceituaisqueocrescimentodos museus os forou a confrontar e explicar, ou seja, para tantos objetos, lugares, circunstncias,colecionadoresecoleesnohaviamexpressesexatamenteespecficas e uma aproximao no jaz na fundao de termos absolutos, pois as palavras cuidadosamente escolhidas para nomear as colees, fruto da erudio dos colecionadores,seusassistentes,correspondenteseeditores,provavelmentetinhamsua prpria gama de significados (PEARCE, 1995, p. 109), possivelmente intangveis agora.Aindaassim,possvelelaboraralgumasaproximaesarespeitodostermos maisfreqentesqueforamequeaindasousadosparanomearascoleesdossculos XVIeXVII.

As palavras studio e studiolo descreveramumpequenoespaoprivadodefruioe reflexo,porvezessecreto,eerammaisfreqentesnocontextodascoleesitalianasda Renascena,comoasdeIsabellad'EsteedeFrancescoIdeMedici,noPalazzoVecchio emFlorena,cujocontedoerasomenteparaosolhosdoGrandeDuque(FINDLEN, 1996,p.113).Estaltimacoleo,construdaporvoltade1570apartirdoprojetode VicenzoBorghini,eraumdosarqutiposdoperodoefuncionavacomoumsistema antropocntrico,isto,situavaoprncipesimbolicamentenocentrodeumaversoem

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miniaturadocosmo(OLMI,2001,p.1).Napequenacmarasemjanelas, naturalia e artificialia permaneciam ocultos sob painis alegricos que tanto indicavam a disposiodosobjetosguardadospordetrsdeles(SCHEICHER,2001,p.39)quanto funcionavam como uma espcie de catlogo visual ou mquina mnemnica, que indicavaaposiodessesobjetosnahierarquiadomundo(BOLZONI,2001,p.240, 246247).AofinaldosculoXVI,ostudioloprivadodeFrancescoItransformouseem galeria,isto,emumespaorelativamentepblico,eumnovosistemasimblicofoi estabelecidoatendendoademandapelalegitimaodopoderdosMedici.Asobrasde arteeantiguidadestornaramseentoofocodacoleo,emboranaturaliaescientifica, emquantidademaismodesta,aindasefizessempresentes(OLMI,2001,p.9).Emdireta oposioaostudiolo,agaleriaacessvelfrequentaotornousemaiscomumaolongo sculoXVII,quandohouveumaumentodaparticipaodasociedadenasatividadesde colecionismo,eotermotambmfoiusadoporAthanasiusKirchereManfredoSettala parasereferiremssuascolees(FINDLEN,1996,p.115117).

certoqueascoleesparticulareschamadasdemuseo(italianoeespanhol),musaeum (latim), museum (alemoeingls),comoporexemplooMusaeumKircherianum,o MuseoCospiano,oMuseumWormianumeoMusaeumTradescantianumsosistemas bastante distintos tanto do que hoje chamado de museu, quanto do emblemtico mouseon,templocriadoporPtolomeuI(367a.C.283a.C.),quedeuorigemlendria bibliotecadeAlexandriasegundoFindlen(1996,pg.49)musaeumeraumaestrutura epistemolgicaquecircunscreviaumavariedadedeidias,imagenseinstituiesque eram centrais na cultura renascentista e barroca. Neste perodo, a forma latina musaeum, derivadadogrego mouseon, templodasmusasoulocalconsagrados musas, teve seu sentido ampliado e foi usada, por exemplo, como sinnimo de biblioteca (SCHUPBACH, 2001, p. 241), repositrio (HUNTER, 2001, p. 226),

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cornucpia e esta intensa dissecao da palavra musaeum pelos colecionadores sublinha a apreciao pelas possibilidades imaginativas da linguagem (FINDLEN, 1996,pg.49).

Otermoportugusgabinete(etambmocabinetingls,ocabinetfrancseokabinett alemo)freqentementeenfeitadocomaspalavrascuriosidadeemaravilha8,descreve, de meados dosculo XVII at hoje, tanto uma cmara, cmodo ouquartoprivado quantoumapeademobilirio,semelhanteaumarmrio,cristaleiraouguardalouas. HooperGreenhill(1992,p.8687)notaqueestesegundosentidoeramaisfreqentena Renascenaeoprimeiro,apartirdoinciodosculoXVII.Definitivamenteumapea demobilirio,aparentadadogabineteguardalouas,owunderschrankoukunstschrank9 nodesempenhavaexatamenteafunodeprotegerosguardados,masdeexiblosem umsistemaprincipalmentealegrico,autoreferenteedesdobrvel,talqualumstudiolo emminiatura.Aexibiodosobjetosnoentantonosedavanasuafachada,masao contrrio, um wunderschrank convidava o observador a adentrlo e a se perder na experincia sensvel que oferecia: pequenas portas e gavetas ornadas com figuras mitolgicasesculpidasemcoral,marfim,mrmore,gataspintadasoupedraspreciosas abriamseemoutrastantasportasegavetasouemcompartimentosquehospedavam moedas, espelhos, frascos de contedo diverso (antdotos mticos, especiarias raras, remdios), ferramentas e utilitrios, instrumentos de escrita, instrumentos musicais, jogos,relgios,marfimtorneado(figura15).sugeridoque,emrazodositensdeuso cotidiano que continha, este tipo de mvel no era exclusivamente ornamental ou simblico,masquetambmerautilizadocomotoucadorporseusdonos(STAFFORD; TERPAK,2001,p.16).Haviamtambmoutrostiposdecaixasearmriosmgicos, ondeeramexploradososefeitosproduzidosporespelhos,comonascaixascatpricasde8 No captulo 5 exposto os sentidos e usos da palavra maravilha. 9 Quantoaestetermonohambiguidades:schranknomeiaespecificamenteumapeademobilirio.

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Athanasius Kircher (figura 16) ou produzidos pela perspectiva, como nas caixas de SamuelvanHoogstraten.

Os termos germnicos kunst und naturalienkammer (cmara de artes e natureza), kunstundrarittenkammer(cmaradearteseraridades),kuriosittenkammer(cmara de curiosidades), anatomiekammer (cmara de anatomia), entre outras variaes, e mais freqentemente, kunst und wunderkammer (cmara de artes e maravilhas), schatzkammer (cmaradetesouros) kunstkammer (cmaradeartes), wunderkammer (cmarademaravilhas)referemsegeralmenteumcmodo10oucmaraqueacolhea coleo,esousadosnotadamenteemrelaoscoleesnrdicas,comoporexemplo asdosHabsburgo.UmadistinoentrealgunsdestestermosfeitaporQuicchebergno seu Inscriptiones vel tituli theatri amplissimi...: de acordo com o autor, os wunderkammern deveriam ser miraculosarum rerum promptuarium, ou lugares de prodgios,eoskunstkammerndeveriamserartificiosarumrerumconclave,oulugardas realizaeshumanas(SEELIG,2001,p.109111).Naprticaporm,emboraostermos pareamseligaramodelosespecficosdecolecionismo,segundoImpeyeMacGregor (2001,p.XIXXX),coleeschamadasdewunderkammerekunstkammertmmuitoem comum.ParaKenseth(1991,p.9899)no wunderkammer predominavaa naturalia, emboraotermotenhanomeado,possivelmenteemumdeseusprimeirosusos, uma coleomuitomaisvariada,quecontinhatambmlivroseantiguidades.Apartetodasas elaboraesdosestudiosos,quandonosetratadeumacoleoespecfica,apalavra wunderkammerfreqentementeusadacomosinnimoparaosmaisvariadosformatos decoleesparticulares.ParaMinelli(2001,p.2526),ousodotermowunderkammer, emprestadodamuseografiaalem,noadequadomuseografiaitalianaeaautora10 DescriobastantemodestaparacoleescomoadeFerdinandoIInocastelodeAmbrasnaustriae a de seusobrinho,RodolfoII,nocasteloHradschinemPragaambasocupavamvriasgaleriase cmodosespecialmenteconstrudos.

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sugerestudio,studiolo,guardarobaemuseo,emobservaoaostermoscunhadospelos prprioscolecionadoresitalianos.Mazzota(2005,p.7)notaquehojewunderkammer umapalavracomumeseusignificadodilatadoabarcaumasriedeprticas,inclusive contemporneas,ligadasarteeaocolecionismo.

2.3Ondecolecionasemaravilhasqueexistemenoexistem:catlogosdecolees, HypnerotomachiaPoliphilieoMusaeumclausum

Emseu Fromwunderkammertomuseum (2006)11,PaulGrinkelista75catlogosde coleesparticularesemvriosformatos,divididosporseuspasesdeorigem.Segundo Findlen (1996, p.36), os catlogos eram os objetos mais importantes produzidos a partirdeumacoleoumavezquesuapublicaocoroavaocumprimentodeuma etapamasnoeramtomadoscomoregistrosdefinitivosfeitosaosecompletaruma coleo (o que de fato dificilmente aconteceria). Na verdade, muitas das colees particularesdossculosXVIeXVIIforamregistradasemcatlogosemmaisdeuma ocasio,comoosdeFrancescoCalzolari,queteveaprimeiraversopublicadaem1584 easegundaem1622,ouosdeFerranteImperato,publicadosem1599eem1672.As novas verses eram significativamente dissemelhantes das mais antigas, tanto na abordagemquantonadescriodocontedodascolees(FINDLEN,1996,p.3738).

EramoscatlogosbastantedistintosdosinventrioscomumenteusadosduranteaIdade Mdia,postoqueessesltimosfuncionavamcomoferramentasadministrativas,isto, apenas registravam e quantificavam os objetos, tal qual uma lista. Por sua vez os catlogos,cujainvenodatadoinciodaEraModerna,nosregistravamosobjetos11 Fromwunderkammertomuseum,cujaprimeirapublicaodatade1984,umregistrocontemporneo que descreve os catlogos de colees particulares. Lista as obras publicadas no perodo compreendidoentreossculosXVIeXIXededicadoaoscolecionadoresdelivrosraros.

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de determinada coleo mas tambm operavam anlises, ilustravam profusamente, comparavam, interpretavam, contextualizavam e atribuam sentidos aos itens que descreviam. Neles, as mltiplas histrias de cada artefato eram tramadas, desde os hericosencontrosqueculminavamcomoarrematedoobjetoparaacoleo,ato registro,modada Historianaturalis dePlnio,detudooqueerapossvelsabera respeitodele,comoporexemplosuaetimologia,histriaesignificadosquelheforam atribudos pelos antigos, passando pelas inevitveis comparaes com objetos semelhantes pertencentes a outras colees domesmo perodo.Assim, os catlogos eramtambmoportunasocasiesparademonstrartodaaerudiodocolecionadorea suapublicaomultiplicavatantoostatusdacoleocomoodeseudono.Maismrito alcanavaaindaocatlogoqueeraencomendadopelocolecionadoraalgumrenomado eruditooescritodeoutroatestavaasqualidadesdacoleoedotrabalhodaqueleque apossua(FINDLEN,1996,p.3637).

Os catlogos dos colecionadoresnaturalistas em muitas ocasies mais pareciam, ou eventualmentetransfiguravamsedefato,emtratadosmdicosoudehistrianatural. Muitas das figuras destes catlogostratados foram compartilhadas por vrias publicaes,comoasqueaparecemnoscatlogosdascoleesdeFerranteImperato, BasilBeslereOleWorm,queforamextradasdepublicaesdehistrianaturaldo perodo(ASHWORTH,1991,p.121).Outroexemplosoasgravurasqueoriginalmente pertenciamcoleodeUlisseAldrovandiouorinocerontedeAlbretchDrer,que aparecem reproduzidas no Monstres et prodiges de Ambroise Par (figura 17). Isso sugere,juntamentecomafaltadeevidnciasfsicas,quealgunsobjetosnaverdades existiramnaimaginaodocolecionadorenasilustraesdoscatlogos,oque,dentro doraciocniodoperodo,demaneiraalgumaatestavaasuainexistnciaobviamente eramelhorpossuiroobjetodefato,massesuarepresentaoestivessepresente,era

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tambmconsideradaumitemdecoleobastanteprecioso.

Praticamentetodasascoleesparticularespossuamumabibliotecaeoscatlogosde colees tornaramse tambm maravilhas colecionveis, colees dentro da coleo, objetos valiosos e imprescindveis pois codificavam a cultura da curiosidade que definia a experincia de colecionar (FINDLEN, 1996, p. 44). Em vrias ocasies serviramdemodeloparaoutrascoleesecatlogos,juntamentecom,porexemplo,o tratadodeSamuelQuicchebergeaNaturalishistoriadePlnio.Ascoleesnaverdade tendiammuitomaisaseguiraoinvsdelideraraliteratura(ASHWORTH,1991,p. 118)quetratavadasmaravilhasedasprpriascolees.Noexageroafirmarportanto quemuitasdascoleesparticularesestabelecidasapartirdasegundametadedosculo XVIeespecialmenteasdosculoXVIIsofundadasmaisnostextosounascoleesde papeldoquenosfatos.

Publicado pela primeira vez em 1499 e atribudo ao frade Francesco Colonna (14331527),HypnerotomachiaPoliphili,aocontrriodostratadosmdicos,alqumicos, dehistrianaturaledemuseologiaoudosrelatosdeviagensedemaravilhas,uma fico alegrica, luxuriante e rebuscada e assim como Metamorphoses de Ovdio, possivelmente forneceu estruturas para a elaborao e organizao das colees partic