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Trajetórias investigativas

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Prezado professor da disciplina Teorias da Comunicação (ou afins)

A equipe Procad-Tecom – projeto financiado pela CAPES, através do

Programa Nacional de Cooperação Acadêmica – está mapeando a disciplina

“Teoria(s) da Comunicação” nos cursos de Comunicação Social de nosso país.

A pesquisa objetiva saber detalhes da disciplina ministrada, como sua carga

horária, perfil dos professores, conteúdos programáticos e bibliografia utilizada.

Os autores da pesquisa já têm trabalhos publicados na área (ex.: Teorias da

Comunicação – Conceitos, escolas e tendências, Vozes, 2001), adotados em nossas

universidades e os dados permitirão, entre outras coisas, a aproximação entre os

professores de todo o país que ministram esta disciplina.

Solicitamos, encarecidamente, alguns minutos de sua atenção para preencher

o “formulário cadastro de professores” (www.procadtecom.com.br);

Esclarecemos que os dados fornecidos, depois de tratados, serão

posteriormente disponibilizados, constituindo uma fonte de consulta para os

interessados.

Caso queira entrar em contato com uma das equipes, por gentileza, utilize o

endereço eletrônico de sua região:

Região Norte: [email protected]

Região Nordeste: [email protected]

Região Centro-Oeste: [email protected]

Região Sudeste: [email protected]

Região Sul: [email protected]

Desde já agradecemos vivamente sua contribuição. Ela será fundamental para

o aprimoramento do ensino em Comunicação e ações que de integração dos

professores e interessados no estudo da teoria e da epistemologia da comunicação.

Saudações acadêmicas,

Coordenadores da Equipe do Procad-Tecom:

Prof. Giovandro Ferreira (UFBa) Prof. Antonio Hohlfeldt (PUC-RS)

Prof. Luiz Martino (UnB) Prof. Osvando Morais (Uniso)

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Impossível pesquisar Comunicação sem começar pelas teorias e teóricos porque a maioria das discussões intensas da área está contida nos debates e nas ideias dos pensa-dores que alicerçaram a Ciência dos media. Mais impossível ainda seria nominar a todos os teóricos. É, no entanto, por meio de seus pensamentos que mapeamos a história, não somente das civilizações, mas também a do próprio homem que sempre buscou en-gendrar meios para se comunicar, para se fazer entender, e sempre tentou, a qualquer custo, evitar os mal-entendidos inerentes a qualquer ato comunicativo.

O grande tema do momento, tratado nes-te livro, é o do eterno diálogo que travamos com o outro, quer seja aquele que se escon-de por detrás de uma enigmática mensagem eletrônica, quer seja aquele teórico que, por via de publicação, mostrou caminhos diver-sos e percebeu inusitados valores e concep-ções de mundo e de vida, sob diferentes as-pectos. De fato, estamos sempre a dialogar conosco e com os outros, e vivenciamos como pesquisadores a busca de prováveis respos-tas para as inquietações suscitadas pelo que consideramos, por excelência, o principal fe-nômeno humano – a Comunicação.

Todos os autores aqui presentes, sem ex-ceção, presenciaram, pensaram e sentiram de perto a Comunicação no século XX, e hoje encaramos, juntamente com seus des-dobramentos e revoluções, o atual momen-to vivido: o século XXI.

Busca-se não somente pensar, neste pro-jeto teórico, as experiências dos que nos an-tecederam, mas também reavaliar o ensino e a atualidade de suas ideias como forma de continuar o trabalho árduo dos teóricos que com o fruto de suas investigações demarca-ram questões fundantes da Comunicação.

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Propõe-se também situá-los no contexto do novo século em que são explorados novos experimentos.

Em sua “Crítica da Razão Pura”, Kant já afirmava que todo conhecimento começa com as experiências e seriam essas metar-reflexões que cotidianamente norteariam nossas ações e pensamento, e, justamen-te por isso, necessitariam ser compreen-didas, explicadas com argumentos atua-lizados, pois sintetizariam o resultado da própria vivência dos fatos.

Segundo o princípio kantiano, o conheci-mento, obtido através de experiência, signifi-ca prática, e é essa prática como conhecimen-to subjetivo que flui e torna-se comunicação com características muito específicas, pois é instável e difícil de ser controlada a ponto de exigir novos procedimentos metodológi-cos e recortes mais precisos.

Por isso mesmo, a difícil tarefa de definir o conceito de comunicação levou os pesqui-sadores a buscar tentativas de deslindar os atos comunicacionais – intencionais ou não – entendidos e aqueles outros por entender; os verbalizados e os silenciados, a compo-rem um universo de fenômenos humanos e não humanos que esperam por respostas.

É nesse sentido que podemos acrescentar as questões relacionadas ao comportamento objetivo do homem que o leva à fabricação de aparelhos e de linguagens em seu afã por compartilhar conhecimento. E, aqui neste li-vro, como pesquisadores, dividimos as nos-sas inquietações com o leitor.

Prof. Dr. Osvando J. de MoraisCoordenador PROCAD Região Sudeste

e do Programa de Mestrado em Comunicação e Cultura

Universidade de Sorocaba - Uniso

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Apresentação

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Teorias da Comunicação: Trajetórias Investigativas

ChancelerDom Dadeus Grings

ReitorJoaquim Clotet

Vice-ReitorEvilázio Teixeira

Conselho EditorialAna Maria Lisboa de MelloElaine Turk FariaÉrico João HammesGilberto Keller de AndradeHelenita Rosa FrancoJane Rita Caetano da SilveiraJerônimo Carlos Santos BragaJorge Campos da CostaJorge Luis Nicolas Audy - PresidenteJosé Antônio Poli de FigueiredoJurandir MalerbaLauro Kopper FilhoLuciano KlöcknerMaria Lúcia Tiellet NunesMarília Costa MorosiniMarlise Araújo dos SantosRenato Tetelbom SteinRené Ernaini GertzRuth Maria Chittó Gauer

EDIPUCRSJerônimo Carlos Santos Braga - DiretorJorge Campos da Costa - Editor-Chefe

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5

Apresentação

Giovandro Marcus Ferreiraantonio HoHlFeldt

luiz c. Martino osvando J. de Morais

(Orgs.)

Porto AlegreEDIPUCRS

2010

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Teorias da Comunicação: Trajetórias Investigativas

© EDIPUCRS, 2010

Projeto Gráfico e Diagramação: Mariana RealCapa: Mariana RealPreparação de originais e revisão técnica: Osvando J. de MoraisRevisão: João Alvarenga

EDIPUCRS - Editora Universitária da PUCRSAv. Ipiranga, 6681 - Prédio 33Caixa Postal 1429 - CEP 90619-900Porto Alegre - RS - BrasilFone/fax: (51) 3320-3523e-mail: [email protected]/edipucrs

TODOS OS DIREITOS RESERVADOS. Proibida a reprodução total ou parcial, por qualquer meio ou processo, especialmente por sistemas gráficos, microfílmicos, fotográficos, reprográficos, fonográficos, videográficos. Vedada a memorização e/ou a recuperação total ou parcial, bem como a inclusão de qualquer parte desta obra em qualquer sistema de processamento de dados. Essas proibições aplicam-se também às características gráficas da obra e à sua editoração. A violação dos direitos autorais é punível como crime (art. 184 e parágrafos, do código penal), com pena de prisão e multa, conjuntamente com busca e apreensão e indenizações diversas (arts. 101 a 110 da Lei 9.610, de 1998, Lei dos Direitos Autorais).

Ficha Catalográfica

Teorias da comunicação [recurso eletrônico] : trajetórias investigativas /Giovandro Marcus Ferreira , Antonio Hohlfeldt , Luiz C. Martino, Osvando J. de Morais, organizadores ... [ L L.]. – Porto Alegre: EdiPUCRS, 2010.

ISBN : 978-85-397-0050-9Disponível também em formato impresso.

1. Comunicação – Teoria. 2. I. Ferreira, Giovandro Marcus, II. Hohlfeldt, Antonio, III. Martino, Luiz C., IV. Morais, Osvando J. de, orgs.

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Apresentação

Apresentação .......................................11

Primeira ParteTenteares: Fundamentações Teóricas

1 - Teorias da comunicação: A recepção brasileira das correntes do pensamento hegemônico .....................21Antonio Hohlfeldt

2 - Teorias da Comunicação, Teorias doDiscurso: Em Busca do sentido ..........41Giovandro Marcus Ferreira

3 - Escola Latino - Americana deComunicação: EquívocoTeórico e Político ...............................59Luiz C. Martino

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Teorias da Comunicação: Trajetórias Investigativas

4 - A Dinâmica das Teorias da Comunicação: novos métodos como passagem para novas práticas teóricas ...................................79Osvando J. de Morais

5 - Por que ensinar Teoria(da comunicação)? ...............................95Pedro Russi-Duarte

6 - Teorias da Palavra - Pilares Fundantes dasTeorias da Comunicação ...................117Paulo B. C. Schettino

7 - Teoria e Episteme Comunicacional ...............................137Tiago Quiroga

Segunda ParteParalelos: Das Teorias às Práticas

1 - A Comunicação enquanto diálogoem Paulo Freire e Luiz Beltrão .........183Prof. Dr. Antonio Hohlfeldt

2 - A atualidade da teoria realista:reflexões sobre Filmes-Testemunho ...199Cristiane Freitas Gutfreind

3 - Narrativa Jornalística e Narrativas Sociais: Questões acerca da Representação da Realidade e Regimes de Visibilidade ....................215Edson Fernando Dalmonte

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Apresentação

4 - Reconfigurando as Teorias daComunicação: as indústrias culturais emtempos de Internet ............................233Fernanda Capibaribe LeiteJeder Janotti Junior

5 - Comunicação Iconográfica: Linguagens, Significados e Imaginário ..................255Maria Beatriz Furtado Rahde

6 - Contribuições de Iuri Lotman para a comunicação: sobre a complexidade do signo poético .....................................273Míriam Cristina Carlos Silva

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Teorias da Comunicação: Trajetórias Investigativas

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Apresentação

ApresentaçãoTeorias da Comunicação

Em pouco mais de um século de existência, as ciências humanas conheceram diferentes posicionamentos hegemô-nicos, como as tradições do positivismo e do pensamen-to crítico. A área de Comunicação, no Brasil, que vem se constituindo, a partir dos anos 60, teve um impulso de-cisivo com a consolidação da pós-graduação nos anos 90. Essa nova fase demandou um aumento no interesse e na demanda dos saberes teórico e metodológico. Particular-mente, para nós, este último aspecto tem sido relativamen-te pouco explorado.

Os problemas particulares ou internos ao campo da Co-municação (campo das Ciências Sociais) são de grande inte-resse, especialmente quando se mantém por meio do tempo e se manifestam, assiduamente, nas instâncias de graduação e pós-graduação. Nesse sentido, nota-se a importância do tema como essencial diante dos processos que participam

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Teorias da Comunicação: Trajetórias Investigativas

na construção do campo da comunicação por meio do fazer acadêmico e cientifico. Entender o campo como dinâmica e articulação do saber comunicacional, portanto, de proces-sos epistemológicos.

Sabemos que esse problema é básico e que necessita ser intensamente discutido e enfrentado, na área, já que se tra-ta do problema do objeto de estudo da Comunicação, assim como a configuração do campo-ciência. Assim, queremos dizer, com isso, que tais preocupações não são imediatas ao projeto proposto, senão que estão ancoradas nas vivências científicas de cada um dos integrantes das equipes, tanto individual quanto coletivamente.

O que justifica a proposta é a possibilidade de estabelecer e fortalecer, através do projeto, os conjuntos de discussões teóricas e de linhas de pesquisa que se vêm estabelecendo entre as quatro universidades tanto na Graduação quanto entre os Programas de Pós-Graduação, neste cenário, as in-terações entre linhas de pesquisa. Dessa forma e, por meio deste projeto, vê-se a oportunidade de aprofundar os laços e estabelecer a abordagem de novos tópicos de pesquisa, a criação de instâncias e condições de associações de projetos de ensino e de pesquisa para incrementar e qualificar a for-mação da graduação e pós-graduação no âmbito do campo da comunicação. E, a partir daí, propor o desenvolvimento da formação cientifico-acadêmica na área.

A inquietação de aprofundar as reflexões sobre os funda-mentos epistemológicos do campo, de certa forma, ancora-se na tese de que são essenciais para a dinâmica cientifica sobre a pesquisa em comunicação. Portanto, pode-se entender o projeto, aqui proposto, como necessário tanto pela caracteri-zação e avanços nas discussões sobre o campo da Comunica-ção no país, como pela possibilidade da obrigatória análise crítica voltada para o desenvolvimento da área.

Em outras palavras, com relação às quatro instituições

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Apresentação

(por meio das equipes integrantes do projeto), trata-se de avançar no capital epistemológico que atua como pano de fundo para entender-problematizar o campo. Destacam-se, com relação às equipes, duas dinâmicas: uma, mais geral, que vem sendo mobilizada nos diferentes cenários nacio-nais e internacionais, por meio da participação em cursos, seminários, congressos, pesquisas· etc. A outra, mais especí-fica, refere-se aos projetos particulares dos pesquisadores e estudantes das respectivas equipes. Busca-se, portanto, co-locar em jogo uma operação que reúna e potencialize, em beneficio do campo e do país, aquilo que está, de certa for-ma, em andamento – pelas duas dinâmicas mencionadas.

O projeto estaria incompleto se não interviesse no de-sequilíbrio regional, visando a uma melhor distribuição e aproveitamento dos recursos humanos no plano nacional. Em seu eixo de ação, debruça-se sobre os processos de ensi-no-aprendizagem, objetivando propor avanços no currículo para superar o mero plano técnico que caracteriza grande parte dos cursos de comunicação social.

Por tal motivo, projetam-se os diferentes encontros, se-minários e missões, assim, por meio dessas atividades, pro-blematizam-se as bases teóricas como fazer e competência intelectual do campo. A inquietação é de que à medida que o estudante ascende, na carreira acadêmica, depara-se com situações de pesquisa, portanto, ele deve saber aumentar as possibilidades de articular epistemologicamente a investiga-ção em relação ao campo.

Por conseguinte, propomos trabalhar como tema central do campo da Comunicação, o qual se divide em dois subte-mas: Fundamentos de Epistemologia e Ensino Científico-Acadêmico.

O projeto tem um perfil voltado para os problemas teórico-epistemológicos e sua aplicação no ensino. Desse modo, situa o campo da comunicação na cultura acadêmica como condição

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de possibilidade para a produção de conhecimento científico. A articulação entre as instituições, através das equipes,

objetiva o fortalecimento consequente das linhas de pesqui-sa e programas, tanto as que já estão com atividades consoli-dadas e sistematizadas quanto, especialmente daqueles pro-gramas que estão em fase de fortalecimento e estruturação.

Dessa forma, o projeto desenhará condições para o me-lhoramento dos programas de pós-graduação. Ao traçar as linhas do projeto, as equipes sabem da nocividade que sig-nifica para um país que caminha visando a excelência em pesquisa, a não-interação e interligação entre as instituições de educação superior no cenário científico-acadêmico.

Nesse contexto, podemos afirmar que, naturalmente, os objetivos do projeto , em suma, apóiam-se na proposta de refletir e problematizar o conhecimento científico, ten-do como foco a epistemologia, metodologia, cultura aca-dêmica, relação universidade-ciência. Além disso, vemos a necessidade de ampliar a discussão sobre o campo da comunicação, através do aprofundamento com relação ao tipo de conhecimento desenvolvido na área. Assim, bus-car, também, por intermédio de articulações das pesquisas, uma dinamização e aprofundamento dos estudos na área, a fim de promover o fortalecimento e consolidação das linhas de pesquisas, em consequência, dos programas de pós-graduação.

Outro ponto a ser levado em consideração é o fato de que o projeto procura estimular a interação inter e intra científico-acadêmicas, para constituir redes de cooperação entre as instituições dentro e fora das regiões. Dessa for-ma, ampliar a formação de mestres e doutores e a produção científico-acadêmica para equilibrar a situação regional da pós-graduação brasileira.

Visamos, também, fomentar discussões epistemológicas de modo a possibilitar o aprofundamento e a criação de critérios

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Apresentação

pertinentes ao cenário da universidade nas diferentes instân-cias científico-acadêmicas, desse modo, contribuindo para o aperfeiçoamento da pesquisa e conhecimento científico.

Nesse contexto, o projeto procura, ainda, promover a mobilização de docentes/pesquisadores, estudantes de ini-ciação científica e estudantes de pós-graduação entre os gru-pos de pesquisa envolvidos no projeto. A meta é atuar no sentido de uma melhor distribuição e aproveitamento dos recursos humanos no plano nacional.

Formado, a partir da Revolução Industrial, com o surgi-mento da sociedade complexa, o campo da comunicação, paulatinamente, irá se instituir com o aparecimento de novos meios de comunicação que, a partir da imprensa, começam a ganhar destaque na organização da vida social. A cultura também sofre modificações importantes, com o surgimento da cultura de massa e os novos padrões de com-portamento que, pouco a pouco, vão sendo liberados. Novas formas de entretenimento e uma forte demanda por informa-ção irão rapidamente reconfigurar o cenário da comunicação social, colocando desafios importantes para os domínios de conhecimento encarregados do estudo de sua significação.

Desde o final do século XIX, começa a aparecer uma série de correntes e escolas voltadas para o problema da Comunicação. A amplitude do fenômeno e as interfaces que ele gera entre vários saberes, apresentaram-se como ver-dadeiros obstáculos epistemológicos para a constituição de um saber autônomo.

O debate que se instaura, a partir dos anos 60, ainda está bastante vivo, guardando muito de seu momento ini-cial, no qual as opiniões se dividiam sobre a possibilidade de tal autonomia. Ainda, no final dos anos 60, teremos os primeiros livros de teorias da comunicação. Nos anos 80, a discussão epistemológica ganha um novo impulso com a pu-blicação de um célebre número do Journal of Communication,

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Teorias da Comunicação: Trajetórias Investigativas

dedicado à matéria, comemorado, dez anos após, com uma segunda publicação, retomando o mesmo problema.

No Brasil, o ensino de graduação praticamente se estabi-lizou nas necessidades do mercado, focalizando uma forma-ção profissional baseada no desenvolvimento de habilida-des pautadas pela prática do profissional de comunicação. Seria preciso esperar o desenvolvimento da pós-graduação para que o elemento teórico tivesse sua particularidade res-peitada e encontrasse as condições de possibilidade para sua realização em direção às diversidades do pensamento. O emergente setor de pesquisa em comunicação, que co-meça a aparecer junto com os programas de pós-graduação, teve que enfrentar os desafios de um domínio de conheci-mento mal delimitado e pouco definido.

Esse cenário de um passado bastante próximo ainda é, em grande medida, a realidade de grande parte do ensino de teorias da comunicação, no país, que apresenta uma notável ruptura entre o ensino de graduação e o de pós-graduação, sem que o primeiro viabilizasse a preparação para o segundo.

O elo entre a atividade de pesquisa e o ensino somente começou a se fortalecer, na medida mesmo em que a pós-graduação impunha objetivos próprios, voltados para a pro-dução de conhecimento. É este elo que constitui o objeto de estudo do presente projeto, cujo objetivo se volta, num primeiro momento, para a identificação, levantamento e sistematização dos avanços de mais de 30 anos de ativida-de dos programas de pós-graduação, no Brasil, de modo a poder, num segundo momento, verificar como esse co-nhecimento, gerado nesse campo, acaba voltando e sendo aplicado no ensino de teorias da comunicação.

Em outros termos, pretende-se avaliar o como e o quanto a própria produção das pesquisas fizeram avançar o ensi-no teórico-epistemológico da área. Desse cenário decorre

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Apresentação

a necessidade de planejamento do presente projeto de pes-quisa, como forma de contemplar duas dimensões na in-vestigação: conhecimento instituído (teorias, paradigmas, fundamentação epistemológica, pesquisas) e o ensino de teoria e epistemologia na área de comunicação.

O projeto está direcionado para a formação de um qua-dro de pesquisadores-docentes voltados para o ensino e pes-quisa em teorias da comunicação, devendo contemplar um plano de ação para sua (re)estruturação, tanto no nível da graduação quanto da pós-graduação. O objetivo é propiciar uma melhor formação do egresso da graduação de modo a prepará-lo para a pós-graduação. Também atuará de modo a gerar material didático, bem como a fornecer parâmetros nacionais para o ensino de teorias da comunicação.

Espera-se, em termos gerais, que o projeto contribua para um dos principais aspectos no interior do campo da comunicação: a sua problematização, a partir dos fundamen-tos epistemológicos e análises do ensino como científico acadêmico. A proposta se dirige à contribuição como forma de avanço na produção de conhecimento e sua influência nas atividades acadêmicas. Procura proporcionar subsídios à reflexão sobre o desenvolvimento das teorias da comuni-cação e a criação e reforço de linhas de pesquisas focadas na problemática da história, fundamentação e perspectivas do pensamento comunicacional.

Dessa forma, o projeto implementa e fortalece a rede en-tre as instituições participantes do presente projeto, procu-rando estimular uma cultura de pesquisa cientifica interins-titucional, reunindo e facilitando a cooperação acadêmica dos Programas de Pós-graduação da área , de três diferentes regiões do país.

Assim, podemos dizer que, em termos específicos, são aguardados os seguintes resultados: refletir sobre o saber no campo da Comunicação; dinamizar os estudos das

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linhas de pesquisa dos Programas de Pós-graduação das instituições integrantes do projeto; intervir na desigualda-de regional, proporcionando um equilíbrio na produção e difusão do conhecimento. O projeto procura, também, ampliar e aprofundar a discussão da instância epistemológica da pesquisa em comunicação, além de propor reformulações e reflexões para os currículos acadêmicos da área, visando a um planejamento do ensino e da formação acadêmica no campo da pós-graduação em comunicação.

A intenção é provocar e alimentar discussões epistemoló-gicas que vão possibilitar o aprofundamento e a criação de parâmetros de ensino, orientação e pesquisas pertinentes para a área, nas diferentes instâncias científico-acadêmicas e, desse modo, contribuir para o aperfeiçoamento da pesquisa da área.

Não podemos nos esquecer que essa proposta também pro-cura fortalecer as Linhas de Pesquisa, por meio da complemen-tação das pesquisas e desenhos semelhantes. A semelhança dos desenhos será construída para criar uma proximidade que ga-ranta interlocução e complementação das pesquisas realizadas; fortalecimento e enriquecimento das redes inter e intrainstitucio-nais, por meio dos intercâmbios proporcionados pela realização das missões, estágios pós-doutorais, congressos, etc.

Em síntese, está prevista a uma série de publicações expon-do os resultados do projeto em suas diferentes fases (p.ex., dos encontros, seminários, estágios, missões…), inclusive este livro, com os resultados finais, visando aos processos temáticos e metodológicos da experiência. Desse modo, esse projeto terá cumprido a sua missão,que é não só promover uma reflexão sobre as teorias da comunicação, mas torná-las tangíveis à luz do conhecimento, a fim de que a epistemologia seja acessível tanto na graduação quanto na pós-graduação.

Os organizadores

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Apresentação

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Teorias da Comunicação: Trajetórias Investigativas

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Teorias da comunicação: A recepção brasileira das correntes do pensamento hegemônico

1.Teorias da comunicação:

A recepção brasileira das correntes do pensamento hegemônico

Antonio Hohlfeldt1

Um dos principais problemas com que se depara o pes-quisador e professor de Teoria da Comunicação é definir o seu campo de trabalho. Isso se deve especialmente à pluris-significação do termo comunicação2. Stephen W. Littlejohn, em obra conhecida, tenta uma consolidação desse conceito básico e chega a uma síntese que, assim mesmo, refere onze diferentes possibilidades de abordagem do termo3.

1. Antonio Hohlfeldt é doutor em Letras, professor de ‘Teorias da comunicação’ e de ‘Comunicação e opinião pública’ no Programa de Pós-Graduação em Comunicação Social da Famecos-PUCRS. Den-tre suas obras, destaca-se Teorias da Comunicação, Petrópolis: Vozes, 2001: [email protected] [6ª edição, 2006].

2. DANCE, Frank E. X. et LARSON, Carl E. The functions of human communication, New York: Holt, Rinehart & Winston, 1976.

3. LITTLEJOHN, Stephen W. Fundamentos teóricos da comunicação

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Teorias da Comunicação: Trajetórias Investigativas

Em obra mais atual, os espanhóis Juan José Igartúa e María Luisa reúnem as diferentes tendências no que deno-minam de paradigmas, indicando duas grandes perspectivas:

a) teorias que abordam o processo de comunicação midi-ática ou modelo de transmissão da informação, também denominadas de paradigma emissor-mensagem-receptor, que su-pervalorizam a importância do emissor; e

b) teorias que, a partir daquela primeira, ao revisarem-nas, valorizam o papel ativo das audiências e reconhecem o caráter polissêmico das mensagens. Mais recentemente, estar-se-ia estruturando um terceiro conjunto de teorias que buscaria a integração teórica, metodológica e dos níveis de análise entre as diferentes teorias, fenômeno provocado es-pecialmente pelo avanço tecnológico que vem produzindo profundas modificações nas relações entre as audiências e os meios de comunicação, bem como o reconhecimento do poder que a comunicação tem sobre a sociedade4.

1.

Preferimos, contudo, neste estudo, percorrer um duplo roteiro: de um lado, realizar um inventário de manuais nor-malmente utilizados em salas de aula brasileiras, sobretudo ao nível da Graduação, permitindo, ao mesmo tempo, uma perspectiva histórica, na medida em que, ao registrarmos alguns dos livros mais utilizados, verificaremos, igualmente,

humana, Rio de Janeiro: Zahar, 1982, p. 38.

4. IGARTÚA, Juan José et HUMANES, María Luisa. Teoría e investi-gación en comunicación social, op. cit., ps. 24 e ss.

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Teorias da comunicação: A recepção brasileira das correntes do pensamento hegemônico

as correntes que neles se encontram reiteradamente men-cionadas pelos autores brasileiros. De outro, mencionar alguns autores brasileiros que, em sendo autores de manu-ais, promoveram ou incentivaram a propagação de algumas correntes teóricas ou autores, especificamente.

Dentre os pesquisadores brasileiros pioneiros, é Luiz Beltrão o primeiro nome que nos acode. Vinculado ao CIESPAL5, entidade que, ao longo de quase duas décadas, formou pelo menos as duas primeiras gerações de profes-sores e pesquisadores do continente, inclusive brasileiros, teve forte influência na formação da primeira geração de pesquisadores brasileiros, mais vinculada à influência de teorias norte-americanas.

Pelo menos duas obras suas estudam o fenômeno da co-municação: Teoria geral da comunicação6 e Subsídios para uma teoria da comunicação de massa7. Beltrão pretende sintetizar, em seus trabalhos, um conjunto de conhecimen-tos disponibilizados por diferentes abordagens e teorias, so-bretudo, norte-americanas.

Sua maior contribuição, contudo, foi a elaboração da cha-mada teoria da folkcomunicação8, em que adapta, à perspectiva

5. Centro Internacional de Estúdios Superiores de Periodismo para América Latina.

6. BELTRÃO, Luiz. Teoria geral da comunicação, Brasília: Thesaurus, 1977.

7. BELTRÃO, Luiz et QUIRINO, Newton de Oliveira. Subsídios para uma teoria da comunicação de massa, São Paulo: Summus, 1986.

8. BELTRÃO, Luiz. Folkcomunicação – Um estudo dos agentes e dos meios populares de informação de fatos e expressão de idéias, Porto Alegre: EDIPUCRS, 2001. Esta edição publica a íntegra da tese de dou-torado do pesquisador. Anteriormente, contudo, parte de seus estudos haviam sido editados em Comunicação e folclore, São Paulo: Melhora-mentos, 1971 e Folkcomunicação: A comunicação dos marginalizados,

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da realidade brasileira e a de outras sociedades multiculturais, aquela vinculada aos estudos empíricos de campo, a partir de Paul Lazarsfeld e Elihu Katz. Destacando a importância do chamado duplo fluxo da informação e o significado dos líde-res de opinião, Beltrão mostra que, no Brasil, para além do fluxo comunicacional unidirecional, havia um processo bem mais complexo do que aquele apontado pelos estudiosos norte-americanos: no caso dos mencionados líderes de opi-nião, ampliava-se a perspectiva de análise, na medida em que “o papel das lideranças grupais é exercido no campo, cidades do interior ou nas periferias metropolitanas, por agentes”9 múltiplos e de maneira coletiva. Beltrão evidencia haver um forte hiato entre o segmento populacional letra-do, de maior acesso (e, sobretudo, compreensão) ao que é difundido pelos meios de comunicação de massa, e um outro segmento que, embora tendo crescente acesso às no-vas tecnologias, da televisão à Internet, apresenta um modo diferenciado de se apropriar de seus conteúdos.

Assim, ao reconhecer o duplo fluxo informacional, Bel-trão evidencia o importante e estratégico papel desempe-nhado por líderes populares que, vinculados a essas comu-nidades de menor poder de interpretação das mensagens que recebem, ao frequentar também o âmbito mais letrado, fazem sua tradução, de modo a transmitir-lhes, ainda que sob outra perspectiva, aquelas mesmas mensagens, de que tais populações, terminam por se apropriar de maneira di-versa e criativa. Mais que isso, contudo, tais mensagens são

São Paulo: Cortez, 1980. O retardo desta divulgação deu-se às pressões da Ditadura Militar então vigente no país.

9. MELO, José Marques de. “Introdução” in BELTRÃO, Luiz. Folkco-municação – Um estudo dos agentes e dos meios populares de infor-mação de fatos e expressão de idéias, op.cit., p.14.

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apreendidas e transformadas, coletivamente, num proces-so cuja abordagem teórica, desenvolvida por Beltrão, seria mais tarde confirmada, dentre outros, pelo mexicano Jorge González e pelo espanhol – radicado na Colômbia – Jesús Martin-Barbero.

Seu principal discípulo, José Marques de Melo, com mais de uma dezena de obras publicadas e reeditadas, sucessiva-mente, não apenas deu continuidade àquele trabalho, quan-to promoveu a aproximação significativa entre os pesquisa-dores brasileiros e os latino-americanos, desenvolvendo a perspectiva da miscigenação10. Hoje em dia, Marques de Melo é referência obrigatória para a realização de diferentes aproximações entre pesquisadores latino-americanos, euro-peus e norte-americanos em relação aos brasileiros.

Os autores norte-americanos que mais têm influenciado, no Brasil, ao longo dessas décadas de 1950 e 1960, têm sido, dentre os principais, Raymond Nixon, Harold Lasswell e Wilbur Schramm; Marshall McLuhan, Harold Innis11, Her-bert Schiller, Carl Hovland, Noam Chomsky, Kurt Lewin, Walter Lippmann, Kurt e Gladys Engel Lang, John Hohen-berg, Bill Kovach e Tom Rosenstiel, Maxwell McCombs, Donald L. Shaw, David Berlo, George Gebner etc.

Quanto aos manuais, durante muitos anos, utilizaram-se

10. Ver, especialmente, Gêneros jornalísticos na Folha de São Pau-lo, São Paulo: FTD/USP, 1987; A opinião no jornalismo brasileiro, Petrópolis: Vozes, 1985; Teoria da comunicação – Paradigmas latino-americanos, Petrópolis: Vozes, 1998; História do pensamento comuni-cacional, São Paulo: Paulus, 2003; História social da imprensa, Porto Alegre: EDIPUCRS, 2003; A esfinge midiática, São Paulo: Paulus, 2004, etc.

11. McLuhan e Innis são sabidamente canadenses, mas habitualmente entram na contra de bibliografia norte-americana.

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os livros de David Berlo12 e Melvin De Fleur. Berlo desenvol-veu uma teoria da comunicação, especialmente voltada para a perspectiva educacional. Melvin L. De Fleur13 teve sua pri-meira versão sobre a comunicação de massa, renovada num segundo trabalho, com a presença de Sandra Ball-Rokeach. Ambos os livros obedecem a uma única direção, todavia, a obra mais recente está mais encorpada. Por exemplo, ao capítulo inicial da obra pioneira, que abordava a imprensa de massa, acrescentou-se um estudo sobre as etapas de evo-lução da comunicação humana. O volume inicial da nova obra é, na verdade, um capítulo intermediário – revisado – da obra original, a que se seguem os estudos sobre os efeitos da comunicação de massa sobre as audiências, a partir da chamada teoria S-R, de Pavlov. A partir desse ponto, a obra mais recente é muito mais abrangente, estudando as teorias de influência seletiva; as teorias sobre a influência indireta; a construção de significados e as estratégias de persuasão. O livro encerra-se com um bloco dedicado à mídia na so-ciedade contemporânea, em que se abordam a teoria da de-pendência, e reflete-se sobre o surgimento e a importância da televisão a cabo. No livro anterior, abordava-se, especial-mente, a comunicação de massa no seu todo, enquanto que a nova obra aprofunda as diferenças entre as várias mídias e estuda as características de cada uma.

O livro de Stephen W. Littlejohn, Fundamentos teóricos da comunicação humana, tem todas as qualidades e todos os problemas dos trabalhos desenvolvidos por pesquisadores

12. BERLO, David K. O processo da comunicação – Introdução é teoria e à prática, São Paulo: Martins Fontes, 1979.

13. FLEUR, Melvin L. De. Teorias de comunicação de massa – Impren-sa, cinema, rádio, televisão, Rio de Janeiro: Zahar, 1971. A nova edição é assinada por FLEUR, Melvin L. De et BALL-ROKEACH, Sandra. Teorias da comunicação de massa, Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1993.

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norte-americanos14. Ela se fecha em torno dos autores de seu país, desconhecendo, quase por completo, as tendências de pesquisa européias. Das latino-americanas, então... nem pensar, até porque, à data original de sua obra, 1978, cer-tamente as pesquisas do continente ainda engatinhavam. O livro de Littlejohn explicita-se desde o título: vai abordar a comunicação humana. E o faz a partir da perspectiva de ser a comunicação humana um processo complexo. Assim, depois de examinar a natureza da teoria da comunicação, discutindo inclusive o conceito de teoria, o autor centra sua atenção na questão dos processos básicos da comunicação, quais sejam, os signos, a significação, o pensamento e, dali, salta para a teoria da persuasão e a teoria da informação.

Nos anos 1970, quando o Departamento de Estado nor-te-americano financiava traduções de obras para os países ditos periféricos, no campo da comunicação social, dentre muitos outros textos, editaram-se, no Brasil, a Teoria ma-temática da comunicação, de Claude Shanon e Warren Weaver15, Comunicação de massa e desenvolvimento, de Wilbur Schramm16 ou Comunicação de massa, de Charles Wright17, obras que, infelizmente, logo depois, desaparece-riam do mercado e nunca mais foram reeditadas. Melhor

14. LITTLEJOHN, Stephen W. Fundamentos teóricos da comunica-ção humana, Rio de Janeiro: Zahar, 1982. Houve uma segunda edição, já pela Editora Guanabara; mas, depois, o livro também deixou de ser publicado no Brasil.

15. SHANNON, Claude et WEAVER, Warren. Teoria matemática da comunicação, São Paulo: Difel, 1975.

16. SCHRAMM, Wilbur. Comunicação de massa e desenvolvimento, Rio de Janeiro: Bloch, 1970.

17. WRIGHT, Charles. Comunicação de massa, Rio de Janeiro: Bloch, 1968.

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sorte teve Harold Lasswell, cujas obras ainda se encontram no mercado brasileiro18, publicadas já num momento posterior.

2.

Um segundo momento importante, a partir da presença do CIESPAL, adveio da reação assumida por alguns dos pesquisadores vinculados ao instituto, dentre os quais o ve-nezuelano Antonio Pasquali que, contestando as perspec-tivas norte-americanas e se voltando para a linha crítica da Escola de Frankfurt, retira-se do grupo e chega a fundar o ININCO19, em Caracas. A partir dos frankfurtianos, cujos textos começam a circular no continente, começa-se a ide-alizar uma pesquisa latino-americana sobre os fenômenos comunicacionais ou, ao menos, uma perspectiva latino-americana para tais estudos20.

Foi sob essa perspectiva que Luiz Costa Lima lançou uma antologia que21, ainda hoje, é referência nas pesquisas

18. São os casos de LASSWELL, Harold. A linguagem política, Brasí-lia: UnB, 1979 e LASSWELL, Harold et KAPLAN, Abraham. Poder e sociedade, Brasília: UnB, 1979.

19. Instituto de Investigaciones de la Comunicación.

20. Referências da Escola de Franckfurt mais lembradas, no Brasil, são Walter Benjamin, Max Horkheimer, Theodor Adorno, Jürgen Haber-mas, Herbert Marcuse – depois transferido para os Estados Unidos – Leo Lowenthal, Siegfried Kracauer e Norbert Wiener, também depois transferido para os Estados Unidos.

21. LIMA, Luiz Costa (Org.). Teoria da cultura de massa, Rio de Ja-neiro: Paz e Terra, 1978. A obra apresenta, dentre outros, artigos de Abraham Moles, Max Horkheimer e Theodor Adorno, Walter Ben-jamin, Herbert Marcuse, Edoardo Sanguinetti, Jean Baudrillard, Julia

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brasileiras, combinando textos de autores norte-americanos e europeus, com ênfase no grupo frankfurtiano. Também Gabriel Cohn publicou importante antologia, selecionando textos de diferentes autores, tanto norte-americanos quanto europeus, ampliando aquele panorama inicial22. Esse movi-mento vinculava-se, também, a uma reação de resistência às ditaduras que, então se instalavam no cone sul do continente latino-americano, especialmente na Argentina, Uruguai, Bra-sil e Chile. Uma segunda geração de pesquisadores brasilei-ros desenvolveu boa parte de seus trabalhos vinculada a essa perspectiva, que passou a ser relativizada apenas, no final dos anos 1980, ainda que muitos autores permaneçam-lhe fiéis, como é o caso de Francisco Rüdiger.

Rüdiger tem publicado, em diferentes edições revisadas, uma Introdução à teoria da comunicação23, obra que faz o inventário de algumas teorias, como pode se verificar, facil-mente, a partir do sumário do trabalho: a teoria matemática da informação, de Claude Shannon e Warren Weaver; a Escola de Chicago e o interacionismo simbólico; a perspectiva funcio-nalista da communication research; a teoria crítica – da influência de Karl Marx e Friedrich Engels à Escola de Frankfurt, as con-tribuições de Walter Benjamin, Max Horkheimer e Theodor Adorno, além de Jürgen Habermas e sua teoria comunicativa; a discussão sobre os meios eletrônicos, introduzida por Hans

Kristeva, Roland Barthes, dentre os europeus; e Paul Lazarsfeld e Ro-bert Merton, David Riesman e Marshall McLuhan dentre os norte-americanos.

22. COHN, Gabriel. Comunicação e indústria cultural, São Paulo: Nacional, 1977.

23. RÜDIGER, Francisco. Introdução à teoria da comunicação, São Paulo: Edicon, 1998. Anteriormente, esta obra teve uma outra versão, sem o capítulo final.

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Magnus Enzensberger, além de alguns teóricos mais recentes; e uma multiplicidade de pesquisadores, como os canadenses Ha-rold Innis e Marshall McLuhan; Umberto Eco e Lucien Sfez, dentre outros.

A este trabalho, seguiram-se outros, mais diretamente vinculados à inspiração franckfurtiana, como Literatura de autoajuda e individualismo24, Comunicação e teoria críti-ca da sociedade25, Civilização e barbárie na crítica da cul-tura contemporânea26, Ciência social crítica e pesquisa em comunicação27, Crítica da razão antimoderna28 e etc.

3.

Passado o período ditatorial, a partir dos anos 1990, abriu-se o panorama de reflexões teóricas e os estudos prá-ticos em torno da comunicação. Como se legitimavam os estudos comunicacionais em todo o país, ampliaram-se as perspectivas e as publicações sobre o tema, inclusive com a forte influência da Igreja Católica Apostólica Romana, que passou a desenvolver uma intervenção mais decisiva sobre

24. RÜDIGER, Francisco. Literatura de auto-ajuda e individualismo, Porto Alegre: EDUFRGS, 1995.

25. RÜDIGER, Francisco. Comunicação e teoria crítica da sociedade, Porto Alegre: EDIPUCRS, 1999.

26. RÜDIGER, Francisco. Civilização e barbárie na crítica da cultura contemporânea, Porto Alegre: EDIPUCRS, 2001.

27. RÜDIGER, Francisco. Ciência social crítica e pesquisa em comu-nicação, São Leopoldo: EDUNISINOS, 2002.

28. RÜDIGER, Francisco. Crítica da razão antimoderna, São Paulo: Edicon, 2003.

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as questões políticas e sociais do continente, através da ‘Teo-logia da Libertação’. Nesse sentido, a Igreja promoveu dife-rentes conclaves, desde o Concílio Vaticano II, emprestando especial ênfase às questões da comunicação social29, tema a que, aliás, dava atenção destacada desde o final da II Grande Guerra (1938-45).

O livro Teorias da comunicação – Conceitos, escolas e tendências, organizado por Luiz C. Martino, Vera Veiga França e Antonio Hohlfeldt, buscou reunir um conjunto de teorias que, efetivamente, vinham sendo estudadas e tra-balhadas, nas salas de aula de nossas universidades, tanto em cursos de Graduação quanto de Pós-Graduação e que, por isso mesmo, influenciavam fortemente as pesquisas de gerações mais novas30. O volume nasceu de nossa própria prática em sala de aula.

Desse modo, essa obra partiu do debate inicial sobre o fenômeno comunicacional, incluindo um viés histórico-civilizacional, algo que permitiu abordar as principais cor-rentes sob uma perspectiva geográfica e histórica: a pesquisa norte-americana, a Escola de Frankfurt; os estudos culturais britânicos; o pensamento comunicacional francês contem-porâneo, a pesquisa na América Latina; além disso, essa pro-posta abriu espaço para algumas questões específicas, como as hipóteses contemporâneas de pesquisa (agenda setting; news making e espiral do silêncio ou o campo da semiótica).

Mais recentemente, a tendência cada vez mais inter-disciplinar permitiu avanços nos estudos sobre as teorias

29. HOHLFELDT, Antonio; MARTINO, Luiz C. et FRANÇA, Vera Veiga. Teorias da comunicação – Conceitos, escolas e tendências, Pe-trópolis: Vozes, 2001 (6ª edição em 2006).

30. HOHLFELDT, Antonio; MARTINO, Luiz C. et FRANÇA, Vera Veiga. Teorias da comunicação – Conceitos, escolas e tendências, Pe-trópolis: Vozes, 2001 (6ª edição em 2006).

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comunicacionais, como aqueles que aparecem em dois tra-balhos publicados por Ciro Marcondes Filho31. Ambas as obras ampliam profundamente o conceito de comunicação e, por consequência, os autores sobre os quais se pode re-fletir e afirmar que influenciam os estudos sobre o campo. Assim, em O espelho e a máscara, dá-se especial atenção à questão da linguagem, que ocupa os quatro primeiros ca-pítulos do volume. Depois, fala-se a respeito de algumas teorias: Escola de Frankfurt, teorias matemáticas; modelos empírico-funcionalistas; e uma série de autores, como Mar-shall McLuhan, Theodor Adorno, Jürgen Habermas, Wi-lhelm Reich (por linhas transversas), Heidegger, Nietzsche etc. O livro encerra-se com uma reflexão teórica a respeito do que o autor denomina de autopoiese na qual aborda algu-mas ambiguidades que o campo apresenta.

O segundo volume faz um movimento ainda mais am-plo, pois se inicia com o pensamento grego, abrangendo o pensamento estóico (pré-socráticos, epicuristas e Lucré-cio, dentre outros); passa sobre uma reflexão a respeito do acontecimento (matéria-prima para a informação e a comuni-cação), e debruça-se, decididamente, ao longo de dois lon-gos capítulos, sobre Gilles Deleuze, a que se segue Jacques Derrida, Paul Ricoeur e Umberto Eco, nos dois capítulos seguintes. Richard Rorty, Heidegger, Nietzsche e Derrida, uma vez mais, ocupam ainda dois outros capítulos, e o livro se encerra com um longo estudo sobre Niklas Luhmann que foi, sem sombra de dúvida, um dos mestres de Ciro Marcondes Filho. Três capítulos menores retornam ao debate teórico sobre a comunicação, e, em dois capítulos

31. MARCONDES FILHO, Ciro. O espelho e a máscara – O enigma da comunicação no caminho do meio, São Paulo/Ijuí: Discurso Edito-rial/UNIJUÍ, 2002 e O escavador de silêncios – Formas de construir e de desconstruir sentidos na comunicação, São Paulo: Paulus, 2004.

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finais, curtos, Marcondes Filho revisa, ainda uma vez, as contribuições de Luhman, Habermas, Deleuze e Derrida.

Evidentemente, trata-se de uma obra alentada, dirigida já aos conhecedores não só dos principais debates sobre o cam-po da teoria da comunicação quanto que dominam alguns dos principais debates da modernidade e da pós-modernidade. De qualquer modo, são dois volumes obrigatórios para o aprofun-damento de um debate sobre a teoria da comunicação.

4.

A reflexão teórica e as múltiplas tentativas de realizarem-se sínteses a respeito do estágio da própria pesquisa, por seu lado, acaba de receber a contribuição de três novos livros que, cada qual a seu modo, tornam-se, desde logo, bibliografia obrigatória para os pesquisadores brasileiros (eu diria tanto latino-americanos quanto portugueses, onde hoje circulam com naturalidade as edições brasileiras). Trata-se de Olhares, trilhas e processos – Metodologias de pesquisa em comuni-cação32, Métodos e técnicas de pesquisa em comunicação33 e Teoria da comunicação na América Latina: Da herança cultural à construção de uma identidade própria34.

32. MALDONADO, Alberto Efendy (Org.). Olhares, trilhas e pro-cessos – Metodologias de pesquisa em comunicação, São Leopoldo, UNISINOS. 2006.

33. DUARTE, Jorge et BARROS, Antonio (Org.). Métodos e técnicas de pesquisa em comunicação, São Paulo: Atlas, 2005.

34. COSTA, Rosa Maria Cardoso Dalla. Teoria da comunicação na América Latina: Da herança cultural à construção de uma identidade própria, Curitiba: Universidade Federal do Paraná, 2006.

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O primeiro trabalho, organizado por Maldonado, parte da constatação negativa de que o conhecimento científico da comunicação social continua sendo considerado como algo secundário mas, ao mesmo tempo, registra que, no campo da comunicação, apesar de sua juventude, observa-se uma força singular que, em parte, fundamenta-se no aproveitamento da experiência das trajetórias já realizadas por outros campos do conhecimento35, observação perti-nente, que se identifica com aquela de Juan José Igartua e Maria Luisa Humanes, antes mencionada.

Assim, essa antologia faz uma espécie de síntese do que se vem produzindo, no Brasil, mas traduz, ao mesmo tem-po, os múltiplos paradigmas adotados pelos mais variados pesquisadores, em especial, os de gerações mais recentes.

Quanto ao livro de Jorge Duarte e de Antonio Barros, segue um amplo roteiro que se inicia abordando os concei-tos de ciência, poder e comunicação; discorre a respeito da elaboração dos projetos de pesquisa, destacando a pesquisa bibliográfica, o método biográfico, a pesquisa em profun-didade, a etnografia, a metodologia folkcomunicacional, a observação participante e a pesquisa-ação. Depois, discu-te a pesquisa através da Internet, a pesquisa de opinião, os grupos focais, o método semiótico, estudos de caso, análise documental, análise de conteúdo, análise do discurso, aná-lise hermenêutica, análise da imagem, e dá especial ênfase à comunicação organizacional. Na verdade, é um volume imensamente abrangente e deveria estar presente na escriva-ninha de todo professor e pesquisador de qualquer campo da comunicação social.

O livro de Rosa Maria Cardoso Dalla Costa é o melhor

35. MALDONADO, Alberto Efendy. Olhares, trilhas e processos – Metodologias de pesquisa em comunicação, op. cit., ps. 9 e 10.

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exemplo, no que, aliás, segue os livros anteriores, da ten-dência mais recente registrada, no Brasil, a abertura para o continente latino-americano. No momento atual, os pesqui-sadores brasileiros não apenas leem seus colegas hispano-americanos como são lidos por eles, de modo que se pode começar a falar, efetivamente, em uma perspectiva latino-americana sobre a teoria da comunicação.

Numa linha diversa, organiza-se o livro editado por Ma-ria Cristina Gobbi e Antonio Hohlfeldt, Teoria da comu-nicação – Antologia de pesquisadores brasileiros36. Trata-se de uma antologia que reúne textos dos pesquisadores destacados por meio do prêmio Luiz Beltrão, concedido, anualmente, pela INTERCOM37, durante seus congressos, e que apresenta duas categorias, as de pesquisador sênior e de pesquisador jovem. O volume apresenta, além dos textos mencionados, notícias e interpretações bibliográficas sobre os pesquisadores e compõe um panorama bastante abran-gente sobre a evolução das pesquisas em comunicação, no Brasil, tanto do ponto de vista de quantidade quanto de qualidade e de tendências teóricas desenvolvidas.

Em que pese o risco que se possa correr, arrisca-se sin-tetizar, pois, a recepção das diferentes correntes e escolas, desta maneira:

36. HOHLFELDT, Antonio et GOBBI, Maria Cristina. Teoria da co-municação – Antologia de pesquisadores brasileiros, Porto Alegre/São Paulo: Sulina/CORAG/Universidade Metodista de São Paulo, 2004. Uma segunda edição será publicada ainda no corrente ano de 2006, sem os abstracts da primeira, que estava dirigido especificamente aos participantes do Congresso anual da IAMCR, ocorrido em Porto Alegre, em 2004, em promoção conjunto da própria entidade, da IN-TERCOM e do Programa de Pós-Graduação em Comunicação Social da PUCRS.

37. INTERCOM – Sociedade Brasileira de Estudos Interdisciplinares de Comunicação.

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a) anos 1950 e 1960 – forte presença dos autores norte-americanos, que permanecerá, ao longo do tempo, sendo revitalizada, a partir da década de 1990, ainda que sem guardar mais a hegemonia ou mesmo o monopólio dos es-tudos; a revitalização dos estudos norte-americanos deve-se, especialmente, às tendências das hipóteses de agenda setting e os estudos em torno de newsmaking, as teorias de Gaye Tuchman e as pesquisas de Michael Schudson e o pioneiro trabalho de Walter Lippmann sobre a opinião pública, ou seja, sobretudo, no campo do jornalismo;

b) anos 1970 e 1980 – resistência à ditadura pós-1964 e ao estruturalismo, sobretudo, de cunho francês, por meio das teorias críticas de autores vinculados à ‘Escola de Frank-furt’, com enfoque marxista. Nesse mesmo período, con-tudo, os teóricos franceses estruturalistas, dentre os quais Roland Barthes, ou culturalistas, como Edgar Morin, al-cançam, também, repercussão entre os estudiosos dos fe-nômenos comunicacionais, sobretudo, porque o Brasil ini-cia a experiência da “indústria cultural”; assim, convivem com Barthes e Morin, Louis Althusser ou Michel Foucault, ainda entre os franceses, além de Walter Benjamin, Max Horkheimer, Theodor Adorno e, um pouco mais tarde, Jürgen Habermas, sobretudo, graças a sua teoria comunica-tiva e aos estudos em torno da chamada esfera pública, além de Michael Kunczik;

c) anos 1990 em diante – terminado período autoritário, no Brasil, há uma forte abertura e a ampliação dos estudos comunicacionais, principalmente, graças à implantação crescente de Programas de Pós-Graduação, primeiro em ní-vel de Mestrado e, logo depois, de Doutorado.

Seguindo a tendência identificada por Mauro Wolf so-bre a aproximação entre os estudos mais administrativos

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dos norte-americanos com as perspectivas mais históricas e sociológicas dos europeus, ampliou-se, intensamente, a tra-dução dos estudos produzidos mundialmente, ao mesmo tempo em que os cursos de pós-graduação levaram, tam-bém, à abertura das pesquisas em direção à própria Amé-rica Latina, num verdadeiro intercâmbio em que, tanto os autores brasileiros, como José Marques de Melo ou Paulo Freire, começaram a ser lidos por seus colegas de continen-te, quanto os estudiosos latino-americanos foram traduzi-dos e amplamente debatidos no Brasil.

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Teorias da Comunicação, Teorias do Discurso: Em Busca do sentido

2.Teorias da Comunicação, Teorias do

Discurso: Em Busca do sentido

Giovandro Marcus Ferreira

Os estudos sobre a mensagem, no âmbito dos meios de comunicação, surgem em contestação aos modelos de massificação, fazendo apelo, entre outros, à decomposição do então ato de comunicação, trazendo em questão a im-portância da articulação ou estruturação da mensagem nos efeitos provocados pelos meios de comunicação.1

Nesse contexto, verificamos que Lasswell foi um pionei-ro, com seus estudos oriundos da sociologia e da política, na introdução da análise do conteúdo das mensagens me-diáticas, enriquecendo, ainda mais, a reflexão em torno dos atos de comunicação, como se dizia, então, juntando-se aos estudos sobre os emissores, os meios e os efeitos.

1. Ver FERREIRA, Giovandro Marcus, “Um leitura dos estudos dos efei-tos”, in BARROS FILHO, Clovis e CASTRO, Gisele (orgs.), Comu-nicação e práticas de consumo, São Paulo, Editora Saraiva, 2007, p. 151-162.

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No entanto, continua a existir uma visão na qual a ação ou, melhor dizendo, iniciativa é uma exclusividade do emis-sor e os efeitos recaem, também, exclusivamente, sobre o público ou receptores. Essa assimetria reforça, igualmente, a concepção de linearidade, causalidade e determinação nos estudos dos meios de comunicação. Tal concepção, marcada fortemente pelo aspecto linear da comunicação, ressoava nos estudos, a partir do domínio da cultura, da técnica e, também, dos estudos das mensagens, numa espé-cie de relação de estímulo-resposta, ativo-passivo.

Todavia, deslocando-se para o estudo da mensagem, ago-ra na perspectiva do modelo informacional ou das teleco-municações, que busca a otimização do fluxo comunicacio-nal, observa-se, igualmente, a linearidade na concepção do ato de comunicação, sendo ela uma teoria essencialmente de transmissão, segundo o esquema proposto por diferentes teóricos. No entanto, ocorre um “alargamento”, ao longo do tempo, no domínio dos estudos da comunicação e a pre-ocupação com o rendimento do fluxo informacional, vai, paulatinamente, deslocando para a produção de sentido. É objetivo, deste trabalho, descrever as características dos modelos presentes na migração do rendimento informa-cional para a produção de sentido no âmbito dos estudos comunicacionais.

Mais rendimento, menos ruído: o modelo informacional

O modelo informacional foi o primeiro a colocar em rele-vo o termo «comunicação» na condição de «transmissão». Esse modelo é influenciado pelos trabalhos matemáticos das teleco-municações. Escarpit designa três momentos importantes de

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influência dessa teoria nos estudos dos meios de comunicação : inicialmente, o trabalho de Nyquist (1924) sobre a velocidade da transmissão de mensagens telegráficas; em seguida, o de Har-tley (1928) sobre a medida quantitativa da informação; enfim, o trabalho de Shannon (1948) sobre a teoria da informação enquanto teoria do rendimento informacional.2

O modelo informacional ou a teoria da informação é, essencialmente, uma teoria da transmissão de signo, segun-do o esquema proposto por Shannon. Assim, o signo colo-ca em relevo seu caráter portador de informação, acrescen-tando a condição de que ele tenha, deliberadamente, sido produzido por alguém e espera que ele será compreendido como tal na sua recepção.

Nesse contexto, essa visão reforça toda uma perspectiva igualmente desenvolvida em certas abordagens sociológicas que concebem um espécie de «gênio» na produção e/ou na recepção da mensagem. De um lado, há uma fonte que emite signos no interior de um aparelho de transmissão e, de outro, existe um receptor que efetua a conversão desses signos para um destinatário. A mensagem, nesse aparelho, pode comportar ruídos.3

Desse modo, é possível afirmar que o modelo informa-cional se estrutura numa visão, na qual o código, sob uma perspectiva, possibilita a transmissão da informação. Assim, o código é um conjunto de signos, que serve de parâmetro para reduzir a equiprobabilidade na fonte.4 A informação

2. ESCARPIT, Robert, l’information et la communication - Théorie générale, Paris, Hachette, 1991.

3. Wolf, Mauro , Teorias da Comunicação, Lisboa, Editorial Presença, 1987.

4. Escarpit, R., op. cit.

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apreendida pelo seu lado mensurável, no interior do códi-go, coloca em destaque o sistema sintático. Todo outro as-pecto do significado, , intrínseco à comunicação humana, não é levado em conta.

Os teóricos da telecomunicação se interessam antes de tudo pelo significante, que deve ter um certo nú-mero de qualidades : resistência ao ruído, facilidade de codagem e descodagem, rapidez de transmissão. Eles não se interessam ao significado que na medida onde suas características têm uma incidência sobre esta do significante.5

Escarpit toma como exemplo o correio, empregado por um destes teóricos – o físico Elie Roubine – para ilustrar a visão da teoria da informação. O correio deve transmitir um telegrama, o interesse da empresa não é o mesmo da-quele que o emite ou do outro que receberá a mensagem. Para o correio, o significado da mensagem é indiferente na medida em que sua tarefa é a transmissão de uma «quanti-dade de informação».6

O código é a referência na recepção da mensagem ou dos signos, fazendo de sua existência (código) uma condi-ção sine qua non para a existência da mensagem. A recepção «extrai o sentido» da mensagem pelo viés do código, pois, sem ele, a mensagem é considerada como uma sucessão de sinais. Logo, essa teoria tem uma visão mecanicista, na qual um significante corresponde a um só significado. Ela não

5. Idem ibidem, p. 30.

6. Idem ibidem.

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considera que há uma relação ambígua entre o significante e o significado causado pela polissemia e pela homonimia.7

A recepção ou o reconhecimento da mensagem não pode ocorrer sem o conhecimento prévio do código. O mo-delo informacional se assenta sobre a individualização do código na recepção, fazendo com que a mensagem seja fru-to da existência de significantes e que o papel da recepção seja o de ter um conhecimento do código.

Esse modelo se atendo à transferência de informações entre dois polos, de um lado, não tem como objetivo a transformação de um em outro sistema e, de outro, não considera a dimensão que se refere à significação.

O modelo informacional é, sobretudo, um método de cálculo de unidades de signos transmissíveis e transmitidos. Ele tem como objetivo a realização de uma comunicação mais econômica possível no decorrer de uma transmissão de signos, evitando ruídos e ambiguidades.

Assim, o modelo informacional é um modelo do «rendi-mento da rentabilidade» do processo de comunicação, no qual o código se encontra no seu centro, assim como a avalliação da entropia, que resulta numa pesquisa da neguentropia, conhecida como o «teorema do canal de ruído».8

Apesar dos críticos, o modelo informacional perdurou, como um paradigma representativo, durante muitos anos. Tal perenidade se explica pela ausência das teorias ditas so-ciológicas no estudo de modelos comunicativos. Durante

7. Idem ibidem.

8. Esta noção central baseada sobre a entropia será, mais tarde, um dos pontos mais criticados da teoria da informação. Ela não leva em consi-deração o aspecto diacrônico como fonte de mudança da mensagem. Idem ibidem.

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uma certa época, ela se encontrava só na análise mais in-trínseca dos processos comunicativos.

Nesse sentido, as teorias sociológicas contribuiram para a longevidade do modelo informacional, pelo fato de priori-zar uma aproximação junto ao âmbito de uma teoria social, tendo como variável maior os meios de comunicação, do que um aprofundamento acerca do modelo comunicativo.

Outro motivo da perenidade desse modelo foi, igualmen-te, sua difusão além de sua função específica.9 Os aspectos mais específicos da matemática foram deixados de lado, mas o esquema geral foi preservado. Esse modelo influenciou os estudos linguísticos e Roman Jakobson pode ser considera-do um dos difusores de tal «alargamento» teórico.

II. Muito além do rendimento: rumo a uma abordagem semio-informacional

Jakobson fez um trabalho de integração de dois campos.10 O modelo de comunicação que ele edificou defende «um código

9. M. Wolf indica três motivos que contribuiram para a permanência do modelo informacional como paradigma dominante durante vários anos: sua funcionalidade em relação à pesquisa sobre os efeitos, a orientação so-ciológica da pesquisa em comunicação e o forte impacto da teoria crítica e de outras correntes aos quais ela deu origem. Ver WOLF, M. op. cit.

10. «Existe uma coincidência dos fatos, as convergências são frapantes, entre as eta-pas mais recentes da análise linguística e o modo de abordagem da linguagem que caracteriza a teoria matemática da comunicação. Como cada uma destas duas dis-ciplinas se ocupa, segundo vias diferentes e bem autônomas, do mesmo domínio, o da comunicação verbal, um estreito contato entre elas se revelou útil a ambas, e não há dúvidas que de essa colaboração será cada vez mais aproveitável no futuro.» Voir JAKBSON, Roman, «Linguistique et théorie de la communication», in Essais de linguistique générale, vol. I, Paris, Les Editions de Minuit, 1963, p. 87.

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comum e uniforme, na relação funcional emissor/receptor, re-duzindo a recepção no sentido literal da mensagem».11

A atividade comunicativa é representada como transmissão de um conteúdo semântico fixado entre dois pólos, também eles definidos, encarregados de codificarem e descodificarem o conteúdo, segundo as restrições de um código igualmente fixo. A legitimade e difusão proporcionadas pela linguística jakobsia-na à versão «moderada» da teoria da informação, constituiram indubitavelmente um dos motivos de seu «êxito» como teoria comunicativa adequada e bastante indiscutida.12

Jakbson tem o mérito, mesmo se apropriando do mode-lo informacional, de ser um dos primeiros linguistas a fazer a distinção entre o processo de produção e o de recepção de frase, mesmo que esta distinção não tenha as características que conhecemos hoje.13

Assim, o modelo informacional tem uma influência so-bre outras disciplinas, mas ela recebe, igualmente, de seu lado, influências que modificam suas características primei-ras numa démarche feita de rupturas e de continuidades.

Observa-se um modelo informacional que se desloca, paulatinamente, da eficácia do processo comunicativo, liga-do somente ao significante rumo a uma problemática mais

11. WOLF, M., Op. Cit., p. 105.. WOLF, M., Op. Cit., p. 105.

12. Idem ibidem, p. 105.. Idem ibidem, p. 105.

13. VERON, E., . VERON, E., «L’analyse du ‘contrat de lecture : une nouvelle méthode pour les études de positionnement des supports de presse», in Les médias - expé-riences recherches actuelles applications, Paris, IREP, juillet 1985.

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geral da significação. Essa nova etapa pode ser, então, deno-minada como modelo semio-informacional.14

O desenvolvimento teórico guarda, essencialmente, o esque-ma anterior, porém, o mais importante é que a linearidade da transmissão se encontra ligada ao funcionamento dos fatores semânticos pelo viés do conceito de código. A comunicação torna-se a transformação de um sistema por outro e não mais transmissão de informação, no momento em que o código se encontra na emissão e na recepção. Agora, é o código que torna possível essa transformação. 15 Ao mesmo tempo, nessa nova perspectiva paradigmática, abre-se um campo de estudo para a análise semiótica.

Há, então, um espaço bastante complexo e articulado entre a mensagem como forma significante que veicula um certo signifi-cado e a mensagem que é recebida como significado. Do ponto de vista semiótico, é – nesse espaço – que se efetua o grau de competência que o meio de comunicação e o destinatário parti-lham, no que toca aos diferentes níveis que criam a significação da mensagem.

Por outro lado, é do ponto de vista sociológico (nesse campo) que se articulam as variáveis implicadas entre os dois parceiros do processo comunicativo. As diversas situações socioculturais vão suscitar uma pluralidade de códigos ou de regras de compe-tência e de interpretação.16

Nesse campo de estudo, o modelo semio-informacional

14. U. Eco e P. Fabbri denominam essa fase como sendo semióti-co-informacional numa publicação de 1978. “Progretto di ricer-ca sull’utilizzazione dell’informazione ambientale”, in Problemi dell’informazione, n°4, pp. 555-597. A referência foi tirada da obra de Mauro WOLF, op. cit..

15. Idem ibidem.. Idem ibidem.

16. Idem Ibidem.. Idem Ibidem.

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concebe, no processo de comunicação, um caráter contratual entre a produção e o reconhecimento da mensagem. O contra-to é baseado, de um lado, sobre a articulação dos códigos e, de outro, sobre a situação específica do processo de comunicação.

O segundo aspecto está presente na articulação dos códigos e dos subcódigos entre dois polos da comunicação (décalage de códigos, hipercodificação, hipocodificação etc) e nas circunstân-cias forjadas pelos fatores sociais que levam à simetria na produ-ção e no reconhecimento da comunicação.

A dupla noção do reconhecimento da comunicação é sempre mais evidente. Há uma dupla situação e não uma recepção que é modelada pela mensagem, como apregoa-vam certos teóricos no passado. Essa dupla situação releva a existência de dois destinatários: um construído pelo des-tinador na relação dos códigos com o destinatário e, outro, o destinatário empírico que é sempre uma referência na produção textual. O modelo semio-informacional já esboça uma visão da comunicação dos «efeitos possíveis».

Assim, tal modelo simplifica o processo de comunica-ção. Inicialmente, ele ainda concebe simples mensagens e não conjuntos textuais. Em seguida, os destinatários não estão situados em relação às práticas textuais. Enfim, os destinatários, desprovidos dessas práticas textuais, não são igualmente colocados numa perspectiva diacrônica.17

É preciso, no entanto, reconhecer um grande mérito do mo-delo semio-informacional na sua abertura em direção aos aspec-tos sociológicos, quando é sublinhada a influência dos fatores sociais no processo comunicativo. Todavia, esse modelo ficou limitado à análise das mensagens, dos códigos e das estruturas comunicativas. Observa-se uma mudança de paradigma nas mais recentes pesquisas.

17. WOLF, M., Op. Cit.. WOLF, M., Op. Cit.

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Do signo às práticas textuais: uma abordagem semiodiscursiva

Esse novo modelo não fica mais ancorado ao binômio codificação – descodificação como o único ou o mais impor-tante núcleo de explicação da relação entre a produção e o reconhecimento do ato de linguagem. A relação entre esses dois polos não está mais limitada pelos códigos e as mensa-gens tout court, mas pelo conjunto de «práticas textuais».

Os conceitos de cultura gramatizada e cultura textualiza-da reforçam a riqueza da noção de «práticas textuais», pois a cultura pode ser representada como um conjunto de textos e, também, como um sistema de regras que determinam a criação e a orientação das novas produções textuais.

De certa forma, essa mudança de paradigma foi fruto de uma interdisciplinariedade entre os diversos domínios científicos,18 como os estudos sobre Antropologia de Cli-fford Geertz marcados pela influência da Semiótica.19

A cultura pode, então, ser considerada como um «conjunto

18. Van Dijk faz uma história da análise do discurso remetendo, a sua origem, várias displinas que ele considera como principais: os antece-dentes da retórica, do formalismo russo ao estruturalismo francês, a sociolinguística e a etnografia da palavra, a análise da conversação, a linguística do texto, a psicologia e a inteligência artificial. Essa origem múltipla e reforça, ainda mais, a perspectiva multidisciplinar da análise do discurso, que vai sendo enriquecida com os novos desafios aos lon-gos das últimas décadas. Voir, VAN DIJK, Teun A., La noticia como discurso, Barcelona, Paidós Comunicación, 1990.

19. «A partir de tais reformulações do conceito da cultura e do papel da cultura, na vida humana, surge, por sua vez, uma definição do homem que enfatiza não tanto as banalidades empíricas do seu comportamento, a cada lugar e a cada tempo ; mas, ao contrário, os mecanismos, por meio de agenciamento, garantem a amplitude e a indeterminação de suas capacidades inerentessão reduzidas à estreiteza e especificidades de suas reais realizações. Ver GEERTZ, C., A inter-pretação das culturas, Rio de Janeiro, Editora Guanabara, 1989, p. 57.

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de textos», ou segundo Geertz, como «sistemas entrelaçados de signos interpretáveis».20 A noção de conjuntos de «textos» ou «sistemas de signos» corrobora no papel de reconhecimento ou recepção da comunicação do meios de comunicação.

A competência interpratativa não fica restrita à apreen-são de códigos puros e simples, mas numa aptidão dos des-tinatários que está assentada no consumo precedente de tais «textos» ou de tais «sistemas de signos», evidenciando o reconhecimento, como também a produção, como lugares de diálogo intextual, em que um novo texto é tecido pelos ecos de outros textos anteriores. A perspectiva diacrônica do consumo desses «textos» se destaca tanto na produção quanto no reconhecimento do processo comunicativo.

«Na comunicação de massa, a orientação para o texto já consumido ou já produzido é, portanto, um critério comunicativo «forte», vinculativo ; isso con-duz, principalmente para os destinatários, a uma competência interpretativa em que a referência aos precedentes e o confronto intextual apresentam uma elevada viscosidade.»21

O processo de comunicação perde toda sua eficácia, efi-cácia, anteriormente, ancorada na convenção e na inten-ção. A abordagem semiodiscursivo considera os «efeitos possíveis» como uma noção central na descrição das trocas entre o enunciador e o destinatário, numa concepção que leva em conta um desnível constante entre a produção e o reconhecimento discursivo.

Há, então, um desnível permanente entre o destinatário

20. Idem ibidem, p.24.. Idem ibidem, p.24.

21. WOLF, M., Op. Cit., p. 112.. WOLF, M., Op. Cit., p. 112.

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modelo ou leitor modelo – se for emprestada a terminologia de Umberto Eco – construída pelas estratégias da enuncia-ção do texto. Esse destinatário modelo é configurado pelo texto como uma proposição de apreender o destinatário empírico, porém, esse desnível entre os dois destinatários – discursivo e empírico – não é jamais contemplado ou ni-velado ao longo de um processo de comunicação.22

Nessa visão, o destinatário deixa de ser um «depósito» da transmissão de signos, como já foi visto precedentemente, mas se torna um alvo em constante evolução, cujos movi-mentos terão incidências sobre a produção discursiva. A análise semiodiscursiva se situa, sobretudo, na relação en-tre a produção e o reconhecimento, e situa a problemática, extrapolando a sincronia do processo de comunicação, le-vando, igualmente, em consideração à significação impul-sionada pelo passado.

A indagação pode ser deslocada da seguinte maneira: por que os leitores, sem saber das notícias do dia seguinte, muitos deles já sabem qual o jornal que gostariam de ler amanhã?23 Para entender o processo de comunicação e toda significação que ele comporta, a pesquisa sobre o discurso mediático é levada, cada vez mais, a considerar as variáveis do contexto dos processos de comunicação.

A produção e o reconhecimento do discurso são edifica-dos num diálogo intertextual, cuja construção de um texto é “costurada” pelos ecos de outros textos precedentes. A perspectiva diacrônica do consumo de tais textos adqui-re relevância na produção e no reconhecimento de um processo comunicativo.

22. ECO, Umberto, Lector in fabula, Paris, Grasset, 1985.. ECO, Umberto, Lector in fabula, Paris, Grasset, 1985.

23. VERON, E., op. cit.. VERON, E., op. cit.

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Diante da complexidade ou, então, do mistério da re-cepção, no dizer de Daniel Dayan, a noção de recepção vem carregada de desníveis e de “efeitos possíveis”. As implica-ções sócioculturais tiram o receptor da condição de “depó-sito” da transmissão de mensagem e migram, por conse-guinte, o estudo do signo, da análise do discurso, para um conhecimento melhor da recepção.

Assim, nessa nova etapa de construção de uma semióti-ca da recepção, em que há uma aproximação do destinatá-rio em relação ao receptor, concomitantemente, isso ocorre com as abordagens sociológicas e semiológica, o que permi-te realizar outras articulações possíveis.

Nas palavras de Mauro Wolf, poderemos estabelecer tal desa-fio na seguinte perspectiva: “conectar discursos, interações e contextos sociais, tal é o objetivo explícito de uma corrente para a qual o discurso não é somente um objeto semiótico, mas deve ser constantemente ligado a outros contextos caso se queira compreender sua dinâmica.”24

Uma questão aqui se levanta: como considerar um elemento relevante acerca de um determinado tipo de discurso? Para que um elemento seja considerado condição de produção e/ou recepção, não é suficiente pleiteá-lo, é preciso que ele deixe pistas na superfície discursiva, levando, assim, os valores das variáveis postuladas como condições de um determina-do tipo de discurso. Se tais condições mudam, o discurso muda igualmente.25

Produção e recepção são dois polos conceituais produ-tores de sentido. O desnível entre eles é provocado pela

24. WOLF, Mauro, Recherche em communication et analyse du dis-cours, in revue Hèrmes, n° 11-12, Paris CNRS Editions, 1993, p. 217.

25. VERON, E., “Dictionnaire des idées non reçues”, in Connexions, nº 27, Paris, ARIP.

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circulação que adquire diferentes formas, segundo o tipo de produção significante almejada. A circulação é o conceito oriundo de um modelo que posiciona o discurso entre seu engendramento e seus efeitos. Nestes termos, o que tradi-cionalmente se estuda como marcas linguísticas, nessa nova abordagem, passam a ser traços ou pistas da operação de engendramento e/ou de reconhecimento, que definem o sistema de referência das leituras possíveis.

A noção de circulação oferece ao modelo analítico uma dinamicidade acerca da variação do investimento de sentido nas matérias significantes, ao longo do tempo26, em outras palavras, pode-se caracterizar como a variação do ethos, fa-zendo do sentido uma materialização no tempo e espaço.

A linearidade entre a produção e o reconhecimento foi, durante muito tempo, sustentado pela hipótese da conven-cionalidade: os atos de linguagem foram submetidos às con-venções, pois a distinção entre dois polos do discurso não era, então, pertinente, pois uma regra convencional assegu-rara a univocidade do resultado.

Portanto, fora dos performativos, a convencionalidade torna-se insustentável. Um enunciado qualquer, sem ter esgotado todas suas significações, não pode se submeter a nenhuma convenção, caso esse aspecto não contribua para lhe dar sentido.27

O desnível não é, igualmente, considerado por aqueles que têm uma posição não-convencionalista. Nesse caso, a regra da convenção se desloca em direção à intenção: ela

26. Idem ibidem.. Idem ibidem.

27. Veron descreve em diversos artigos de seu livro La sémiosis sociale - fragments... certos impasses que a hipótese da indeterminação relativa fez emergir entre a produção e o reconhecimento no seio do estudo do ato de linguagem.

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se torna “o objetivo consciente” do autor. Portanto, fica claro que só o autor tem acesso as suas intenções, pois ele não passa seu tempo verbalizando-as. Se ele não as comunica, constantemente, elas não se constituirão num fenômeno de comunicação. Isso quer dizer que entre a produção e o reconhecimento, há mais indeterminação que supõem as perspectivas ligadas à convenção e à intenção.

[...]o teórico não-convencionalista não poderá se con-tentar de ignorar essa distinção; ele será conduzido a produzir uma confusão permanente entre a produção e o reconhecimento. Para compreender a natureza desta confusão e o mecanismo de seu funcionamen-to, é preciso interrogar a noção mesmo de “intenção... que tem um papel fundamental na teoria dos atos de linguagem, que jamais fora definida.28

A materialização da noção de circulação é fruto da diferença entre a produção e os efeitos dos discursos. As marcas sobre a su-perfície dos discursos são interpretadas, a partir de dois po-los analíticos, enquanto pistas ou traços, a partir das opera-ções de engendramento da produção e do reconhecimento que vão caracterizar o sistema de interpretações de leitura.

As condições da circulação são variáveis, pois sofrem a influência do suporte material-tecnológico do discurso, da dimensão temporal, que possibilita a análise a ser feita de maneira diacrônica, além, obviamente, da sincrônica.

28. VERON, E., . VERON, E., La sémiosis sociales - fragments... p. 186.

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Escola Latino - Americana de Comunicação: Equívoco Teórico e Político

3.Escola Latino - Americana de

Comunicação: Equívoco Teórico e Político

Luiz C. Martino1

Desde seu início, a Comunicação se instaurou como um saber voltado para o estudo dos meios e a influência que exercem na cultura. Na América Latina, o debate sobre a comunicação coincide com a entrada de capital estrangeiro no setor comunicacional, particularmente com a chegada da TV e dos grandes grupos de Comunicação, por volta dos anos 60.

Tratava-se, na época, da luta política pelo reconheci-mento da natureza extremamente estratégica, do ponto de vista nacional, das empresas ligadas às atividades de comu-nicação social (jornais, rádio, TVs, redes...). O problema de

1. Doutor em Sociologia pela Sorbonne, Paris V. Professor da Faculdade de Comunicação da Universidade de Brasília, pesquisador do CNPq.

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fundo era a influência estadunidense sobre o continente e tentava-se situar as intervenções empresariais dentro de um quadro mais amplo, a fim de interpretá-las como um segundo momento da colonização. Foi dessa forma que os anos 60 se constituíram como um momento decisivo para a produção do pensamento comunicacional latino-americano, que se instaurou como uma forte reação contra a introdução e a livre ação de grupos privados no setor de comunicação de massa.

Dentro desse quadro, o problema teórico que se apresen-tava era de explicitar as técnicas e métodos empregados nes-se processo de dominação política. A prática da denúncia acabaria sendo o objetivo imediato de grande parte da pro-dução teórica dessa época e o estatuto do saber comunica-cional parecia estar intimamente ligado ao da práxis política, confundindo-se com a militância política (Berger, 1999).

Alguns marcos nos ajudam a balizar o processo, tal como a fundação da primeira escola de Jornalismo do continen-te sul-americano, que remonta a 1934 (Universidad de La Plata, Argentina); a regulamentação da profissão, com a obrigatoriedade do diploma universitário (1969, no Bra-sil) ou a formação dos primeiros cursos de pós-graduação (1972, na Universidade de São Paulo, e na Universidade Federal do Rio de Janeiro).

Tudo isso indica a preocupação da região com seus sis-temas de circulação da informação. Mas é, a partir do final dos anos 60, que a produção teórica latino-americana come-ça a ganhar volume, e a se distanciar da influência estaduni-dense para alcançar um perfil próprio, o que vai despertar a questão sobre sua caracterização e originalidade.

Um momento importante dessa história se encontra na iniciativa da UNESCO de promover o desenvolvimento dos meios de comunicação de massa, no mundo, criando dois centros de estudo para a formação de jornalistas. Um

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Escola Latino - Americana de Comunicação: Equívoco Teórico e Político

na França, em 1957, (Instituto Universitário de Estrasbur-go) e outro em Quito, no Equador.

Todavia, a criação do CIESPAL (Centro Latino-Ameri-cano de Enseñanza Superior de Periodismo), em 1959, foi um marco decisivo. Sob seus auspícios, a pesquisa se desen-volve e a comunicação social começa a tomar os contornos de uma área de conhecimento. Na mesma época, foi fun-dado o Instituto Venezuelano de Investigaciones de Prensa (1959) com uma orientação filosófica francamente diferen-te. O confronto dessas duas tendências se faria sentir, em 1973, quando da primeira reunião dos pesquisadores em comunicação realizado na Costa Rica, em 1973. O CIES-PAL foi, então, duramente criticado, visto como um ponto de apoio à política de intervenção dos Estados Unidos no continente. Essa data marca, também, um redirecionamen-to de suas atividades e coincide com a emergência de uma escola latino-americana.

Christa Berger (2001) resume muito bem a singularida-de desse movimento, assinalando que

É entre o final dos anos 60 e início dos 70 que se inaugura uma reflexão efetivamente latino-america-na sobre a comunicação, pois as condições estruturais do subdesenvolvimento passam a ser consideradas e incorporadas na análise dos meios [grifos nossos].

Como outros investigadores – e não obstante o reconhe-cimento da debilidade teórica da produção dessa época –, ela aponta a relação visceral entre a teoria comunicacional e a atividade política como o traço mais característico da reflexão latino-americana, sendo nítida a supremacia dos as-pectos políticos-econômicos em detrimento dos elementos comunicacionais.

A própria crítica feita ao CIESPAL – reação que desperta

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o pensamento latino-americano – concentrava-se na alega-ção de tratar-se de um centro de importação de teorias es-trangeiras, portanto, não adaptadas à realidade do terceiro mundo (Beltrán, 1985). É curioso notar que essa crítica aos modelos estrangeiros se deu sob a influência de um mode-lo não menos estrangeiro, o marxismo. Também é curioso que a proveniência geográfica de uma teoria tenha sido usa-da como argumento (aliás, nada convincente) no plano da discussão científica.

Porém, a afirmação mais importante (e a única que vale a pena ser retida), dizia respeito à singularidade da escola latino-americana, que emergia no contraste com os mode-los estrangeiros. O ponto em questão era o de saber até que ponto a incorporação das condições externas ao trabalho científico, no caso em questão, a incorporação das condições estruturais do subdesenvolvimento, podem efetivamente servir de critério suficiente para a constituição de uma escola de pensamento comunicacional.

Não que essas condições não tenham um valor em si mesmo, ao contrário, a referência ao contexto é um quesito básico de qualquer planejamento teórico, daí sua incorpo-ração necessária à teoria e a razão de não poder ser o traço distintivo de uma escola, como pretendem aqueles que de-sejam caracterizar a “escola latino-americana” de comunica-ção. Tal reivindicação parece pouco razoável e deveria ser recebida com mais cuidado, embora seja uma visão corren-te em nossa área.

Na verdade, a caracterização de uma escola de pensa-mento não é uma tarefa muito fácil. Além da variedade temática e de perspectivas possíveis, a própria indefini-ção da área de conhecimento constitui um obstáculo significativo. Não se pode esquecer, ao analisar uma ma-téria como esta que para muitos, inclusive os partidá-rios da tese da existência da escola latino-americana, a

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Comunicação é vista como um saber demasiado amplo e vago, a ponto de ser considerado apenas um campo de aplicação de teorias provenientes das diversas ciências sociais (Berger, 1991).

Por conseguinte, traçar a linha que separa a comuni-cação de outras disciplinas – e, portanto, que identifica um dado trabalho como sendo um trabalho em comu-nicação – não é tarefa das mais fáceis. Estranhamente, tal dificuldade parece ter agido como um antídoto em relação aos problemas epistemológicos, esconjurando os “demônios” da reflexão sobre os fundamentos teóricos, de modo que acabou funcionando como uma pseudo-liberação, dispensando qualquer tentativa de caracteri-zar e situar a Comunicação em relação a outros saberes (Martino, 2001; 2005). Isso permitiu que a ideia de uma “área” interdisciplinar convivesse, lado a lado, com a ideia de uma escola latino-americana de comunicação, reunindo dois movimentos antitéticos.

Contudo, quaisquer que sejam as razões desse para-doxo, o certo é que seus teóricos, inegavelmente, afasta-ram-se da tarefa de procurar a base epistemológica sobre a qual se fundamentavam suas atividades de pesquisa-dores e mestres. A ideia de que a Comunicação seria de fato um saber infundado, rapidamente, avançou para o princípio de que seria infundável, como uma espécie de direito, ou licença, que a necessidade e a importância da análise dos processos comunicacionais lhes garantia.

Estabeleceu-se, dessa forma, uma estranha oposição entre a urgência das análises de um setor considerado es-tratégico e a fraqueza teórica, pela qual o tema era abor-dado. A convicção de que a Comunicação seria um saber interdisciplinar, subalterno (por exemplo, Moragas, 1993) e submetido às determinações da economia e da política, entre outras, levou ao abandono de toda discussão epistemológica,

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ao mesmo tempo em que dissolvia a discussão nos mais va-riados âmbitos da realidade.

Para Moragas (1985, 9-10),

A los distintos problemas de las ciencias sociales en el terreno de los compromisos políticos e ideológicos, la investigación de la comunicación de masas añade el hecho de no ser definida, propiamente, como una disciplina, o ciencia social particular, sino de ser de-finida de manera horizontal, por su objeto: la comu-nicación de masas, propuesta y pregunta que genera históricamente una tarea científico-social específica, de amplios intereses políticos, económicos y sociales.

Mesmo autores pioneiros, como Daniel Lerner e W. Schramm, que se encontram nas raízes mais antigas da influência norte-americana, já expressam essa tendência interdisciplinar. Este último, muitas vezes apontado como um dos pioneiros da reflexão epistemológica da comunica-ção, não hesita em admitir a redução dos problemas comu-nicacionais a outras esferas:

No es sorprendente hallar que las estrategias real-mente básicas de comunicación para el desarrollo no constituyen del todo estrategias meramente de comu-nicación sino que son económicas y políticas y están profundamente arraigadas en la naturaleza de la sociedad. (Schramm, 1965).

Note-se que, para as duas correntes principais, a aná-lise comunicacional é deslocada em prol de fatores eco-nômicos e políticos, o que representa uma maneira mui-to direta de se dizer que não se trata de um estudo de comunicação propriamente dito. A matriz explicativa se

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encontra em outros domínios. Nesse caso, o que temos são estudos de economia e de política sobre processos co-municacionais (entendidos como “instrumentos” para o desenvolvimento) e não estudos de comunicação, carac-terísticos de um certo saber particular. Trata-se, simples-mente, da redução da comunicação a outros fatores: os processos comunicacionais não constituem o elemento explicativo, mas algo que pode ser elucidado por elemen-tos mais fundamentais e, por conseguinte, mais signifi-cativos. Visão esta que é sintetizada por Dan Schiller, ao afirmar que “estudiar comunicación consiste, más bien, en elaborar argumentos sobre las formas y determinacio-nes del desarrollo socio-cultural como tal” (apud Fuentes Navarro, 2005, 59).

Por conseguinte, embora defendam a particularidade de uma escola de comunicação, o saber comunicacional é subtraído de qualquer especificidade, sendo identificado com a generalidade do objeto das ciências sociais como um todo. Curiosamente, a tal dispersão da comunica-ção nas ciências sociais deu-se o nome de “abertura da comunicação”, quando, na verdade, ela simplesmente significa a mais veementemente negação de um saber comunicacional, já que a priva da principal condição ne-cessária, a sua caracterização como saber autônomo.

Festejada (por exemplo: Cambiasso, Grieco, Bavio, 1999, apud aMadío & escoBar) ou perdida (por exem-plo: Machado, 2002), em todo caso saudada como um grande mérito dos estudos comunicacionais, tal posicio-namento abre caminho para posições antiteóricas em de-fesa de um estatuto interdisciplinar para a comunicação que chegam a fazer a apologia da indefinição como traço característico e distintivo do saber comunicacional.

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Quizás sea tiempo de admitir que la pregunta sobre el estatuto epistemológico de la comunicación con-duce a un callejón sin salida. [...] Que postularle un objeto de estudio privilegiado y un campo específico no hacen más que minar sus potencialidades. Tal vez en esta seminal incapacidad para definir sus coordenadas radique su fuerza. En el hecho de que requiera de múltiples disciplinas sin consustanciarse del todo con ninguna.” (Cambiasso, N. y Grieco y Bavio, A.,1999, apud in amadío & EScobar).

Este viés de dispersão, que também poderia ser conside-rado uma verdadeira carta de demissão em relação ao com-promisso com uma teoria da comunicação, foi herdado tal e qual pela “escola latino-americana”, que não operou uma crítica das teorias precursoras, nem da visão que predomi-nava sobre a área de conhecimento, compreendida apenas como um campo estratégico para a aplicação de conheci-mentos de outras áreas de conhecimento.

Aliás, a consolidação da vertente de esquerda, nos anos 70, que paulatinamente foi conseguindo se afirmar enquanto hegemônica, não representou um verdadeiro enfretamento, nesse âmbito, e apenas reforçou a compreensão interdisci-plinar que se tinha da área. Por razões diferentes, a chamada tendência administrativa também entendia a comunicação como um espaço interdisciplinar, já que definia seu estatuto como a contribuição de diversas disciplinas (particularmen-te a psicologia, a sociologia e a ciência política).

A convergência de tendências antagônicas sobre esse mes-mo ponto geraria um “efeito de realidade”, deixando a forte impressão de que a ausência de discussão vale como verda-de. Afinal, não era nada fácil encontrar pontos de consenso entre as duas correntes, de modo que qualquer elemento co-mum poderia ser dado como certo, ainda que, na realidade,

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não passasse de um aspecto simplesmente impensado, como foi o caso. Para além de toda coloração ideológica e das di-ferentes correntes teóricas, a falta de especificidade do saber comunicacional aparecia como uma constante, imutável e imune, acima de qualquer suspeita epistemológica.

De fato, se há um traço que pode ser apontando como característico da produção latino-americana é justamente a facilidade pela qual os estudos comunicacionais absorvem problemáticas difusas, abordando temas complexos como, o desenvolvimento, a modernização, o multiculturalismo ou a globalização, tudo isso feito, a partir de pontos de vis-ta e conceitos igualmente amplos e variados (veja-se, por exemplo, os trabalhos de J.M. Barbero).

Assim, a absorção de modelos estrangeiros não é um fato primordial, como parece dar importância Beltrán (1985), ele é apenas um derivado, uma conseqüência natural dessa atitude frente à formulação dos problemas comunicacio-nais. Não que a riqueza de perspectivas seja um defeito em si mesma, não se trata disso, mas que essa grande versatili-dade se deu a expensas da elaboração teórica. A teoria foi e, em grande medida continua sendo, o grande ponto fraco da produção latino-americana – da qual emergiu o parado-xo de classificá-la como uma escola.

Uma prova disso é que autores de outras disciplinas, frequentemente, são apontados como ‘pais fundadores’ ou como os grandes de teóricos de nossa área (schraMM, 1965). Paulo Freire, por exemplo, bastante reconhecido como pe-dagogo, acaba se tornando um dos quatro principais teó-ricos latino-americanos da comunicação (roncagliolo, 1986; Berger, 2001), ainda que a real contribuição desse autor seja bastante discutível: sua visão humanista e filosó-fica da comunicação se deixa melhor expressar em uma teo-logia que toma o amor divino como fundamento e critério último da comunicação (Marques de Melo, 1999).

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Claro que isso só pode se dar com a entrada, em cena, de um conceito de comunicação com abrangência estratosférica e pouco propício à discussão científica. Não obstante, ele encontra sua versão laica em Anto-nio Pasquali, outro nome bastante citado como um dos grandes teóricos. Em síntese, a “crítica” operada por es-ses autores se assenta na recusa dogmática de aceitar a mediação tecnológica como comunicação.

Se Freire chega a se remeter a Deus, Pasquali procura desclassificar a comunicação de massa, pois para ambos, apenas uma comunicação “horizontal”, democrática, ime-diata e simétrica pode e deve ser considerada comunicação. Suas análises giram em torno dessa premissa que invoca noções como “amor”, “autenticidade”, “igualdade” e ou-tros termos que servem para introduzir a idéia de verdade no âmbito da comunicação. Esses autores preparam a ve-lha oposição entre o bem e o mal para apontar o que seria uma “verdadeira” e uma “falsa” comunicação – ou seja, a comunicação através de meios tecnológicos. Apesar de toda a fragilidade, o pressuposto de estigmatização da tecnologia e sua associação direta e mecânica com o uso de um poder central representado pelo Estado, tais autores ainda são re-tomados e citados, quando se busca fundamentar o pensa-mento latino-americano.

Para largos setores da pesquisa latino-americana, a vin-culação da comunicação com temas complexos não sofreu a devida revisão crítica, ela simplesmente foi implantada, a partir de perspectivas que saltavam diretamente da teologia para a economia ou para a política. Isso porque havia uma premissa não questionada, segundo a qual a comunicação seria a chave para o desenvolvimento (mais ou menos como hoje vemos os homens políticos se revezarem na afirmação simplista de que a educação seria a salvação para nos tirar do subdesenvolvimento). Comunicação e desenvolvimento

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se encontram, assim, inextricavelmente ligados na produ-ção intelectual dos anos 60 e 70 e, ainda, estão bastante pre-sentes no horizonte de teóricos importantes, mas sem que os fundamentos dessa premissa básica tenham passado pelo crivo de uma análise crítica ou de uma revisão necessária.

Dessa forma, estudar a comunicação, na América Lati-na, tornar-se-ia equivalente a encontrar as soluções para os países subdesenvolvidos, gerar modelos alternativos para o desenvolvimento do terceiro mundo ou qualquer coisa semelhante. Evidentemente, essa compreensão da proble-mática comunicacional não podia deixar de ter repercus-sões sobre a produção teórica, que se empobrece à medida mesmo que os problemas comunicacionais se dissolvem nas múltiplas facetas da realidade.

Penso que é importante reconhecer que o alargamen-to da problemática não foi questionado pela tendência de esquerda, que operou a crítica dos modelos norte-america-nos. Pelo contrário, a falta de um exame das condições de possibilidade dessa associação demasiadamente vaga entre economia, cultura, política e comunicação, foi agravada pela tendência interdisciplinar própria à filosofia marxista e a muitos de seus interlocutores 2.

Nos anos 90, esse movimento é renovado. Para Fuentes Navarro, as condições ligadas ao subdesenvolvimento (“ne-cessidade histórica”) não apenas caracterizam, mas teriam gerado condições propícias ao saber comunicacional, uma vez que teria atenuado o efeito do processo de disciplinari-zação do saber. Isso teria permitido às ciências sociais lati-no-americanas tomarem a dianteira dos movimentos mais avançados da ciência moderna. Segundo o autor,

2. As correntes posteriores, como a semiologia, o estruturalismo, os estudos culturais, que proliferaram, nos anos 80 e 90, apenas prolonga-ram um espaço interdisciplinar já aberto pelas primeiras tendências.

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a difícil e nunca consolidada constituição disciplinar do estudo da comunicação, que tantas desvantagens nos ocasionou, é precisamente a condição de possibi-lidade de seu novo desenvolvimento dentro do proces-so de estabelecimento de uma nova síntese para as ciências sociais (p. 64).

Sob essa ótica radical e inusitada, o subdesenvolvimento passa a ser uma vantagem em um mundo, onde o saber teria sido corrompido pelas estruturas sociopolíticas, resultando em sua disciplinarização (consequência direta do capitalismo sobre a produção do conhecimento).

Não temos condições, aqui, de apontar os enganos em-butidos nas premissas dessa leitura equivocada da história da ciência, simplesmente destaquemos que são razões de ordem sócio-histórica que são invocadas para explicar a au-sência de consolidação disciplinar dos estudos de comuni-cação. Mais uma vez, o elemento epistemológico é coloca-do em segundo plano, reduzido e explicado por fatores de outra ordem.

Insistindo na matriz do subdesenvolvimento, a ideia da constituição de uma “escola latino-americana” de comuni-cação vai se afastando como a linha de um horizonte teórico jamais realizado, mas suspendido, utopicamente, por alicer-ces de uma filosofia pós-moderna da ciência (Boa-Ventura, Wallerstein), que renovam e se misturam a antigos precei-tos de correntes marxistas, os quais nunca se preocuparam exatamente com os problemas comunicacionais.

Contudo, uma leitura menos extravagante percebe que o subdesenvolvimento não compõe o elemento teórico. Ao contrário, o contexto geopolítico muito contribui para o enfraquecimento teórico da produção latino-americana e a deixou longe de uma contribuição original (o que não significa dizer que não tenha seu valor). Se a história de

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dominação, colonialismo e pós-colonialismo desses países não pôde passar em branco (o combate às ditaduras que se instalaram, no continente, assim como a invasão da indús-tria cultura estrangeira nos anos 60-70 certamente reclama-vam atitudes legitimas de indignação e luta), não podemos, no entanto, fechar os olhos para o fato de que isso se deu em detrimento do elemento propriamente teórico, que foi pronta e sistematicamente esvaziado como instrumento de resistência. Mais que isso, criou-se uma quase oposição en-tre política e teoria, como se as únicas formas de combate, tal como a militância e a denúncia (Berger, 1999), passas-sem, necessariamente, pela anulação da produção teórica.

Que esta tenha sido, em grande parte – mas não ex-clusivamente – a história do campo comunicacional, em nosso continente, não significa que devamos simplesmente ignorar as confusões e equívocos que a constituem, muito menos aceitarmos sua idealização, dando-lhe um status de “escola”, ainda mais quando temos em conta o rechaço à dimensão teórico-epistemológica tão claramente marcado e, ainda hoje, não totalmente superado.

De outra parte, é preciso analisar com cuidado as palavras pelas quais Antonio Pasquali, em seu livro “El Orden Reina”, sintetiza o período inicial do pensamento comunicacional, fa-zendo o balanço da hegemonia teórica do pensamento de es-querda em nossa área. Para ele, não há dúvida que se tratou de um fracasso. E, de certo modo, não seria possível negar: se o objetivo era impedir o estabelecimento da ‘indústria cultural’, é mister ter de admitir que todo o movimento de esquerda ligado à comunicação social não obteve o sucesso esperado.

De minha parte, não compartilho desse diagnóstico, nem no plano político, nem no plano teórico. Primeiramente, por-que creio que é muito difícil se falar em derrota política, se por política entendemos a adoção da correta atitude ética frente aos fatos e aos movimentos sociais.

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Ainda que os acontecimentos possam frustrar ou contradizer nossas expectativas, o sentimento de serenidade proporcionada pela atitude ética não é e nem pode ser anulada pelo desfecho dos acontecimentos. Se nos desembaraçamos da ideia de que os resultados são a medida e o critério de avaliação de nossas práticas, a política passa a ser vivida como uma atitude e, nesse sentido, ela não é um jogo, nem uma guerra. Tal compreensão nos permite dizer que não há e nem pode haver, propria-mente, derrota, pois, se existe, na política, uma dimensão de jogo ou guerra, ela também se instaura como um desafio de cada um para consigo mesmo e não apenas em relação aos fatos, os quais, em última instância, seguem seu curso. Seria muita pretensão poder achar que os controlamos, mesmo que isto apareça sob a forma da responsabilida-de ou, a posteriori, sob a forma da mea-culpa.

Longe de ter sido em vão, a crítica desenvolvida por setores de esquerda não somente foi importante no que tinha a di-zer, mas acabou se incorporando na visão sobre os efeitos dos meios e, no papel da imprensa, penetrando até mesmo no senso-comum. Dessa forma, ela acaba servindo de parâmetro para a compreensão dos fenômenos de mediação tecnológica. Mesmo que não chegue a se impor como uma política públi-ca, ela mostra outras dimensões do problema; tempera e regu-la a visão sobre o setor de comunicações na área de atuação do Estado. A formação dessa sensibilidade não é pouca coisa e não deve ser desprezada, mesmo porque ela prepara e dá suporte ao combate para uma conscientização da importância e da necessidade de uma regulamentação para o setor.

Se for o caso de se falar em derrota, antes de tudo, deve-mos situá-la no plano teórico. Porque foi como área de estudo, como imobilidade teórica ou como cegueira epistemológica que várias décadas se passaram. Não exatamente por não ter havido, aqui e ali, desenvolvimentos importantes, mas porque a redução e identificação dos processos comunicacionais com a

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política nos privou de muitas coisas, tais como avaliações mais justas sobre a produção da área, o trabalho de sistematização das teorias, o incentivo à produção teórica e outros elementos importantes que, certamente, levariam a uma maior consolida-ção e fortalecimento da área.

No plano político, de outra parte, pouco se entendeu o papel do desenvolvimento teórico como apoio capital para o desenvolvimento da sensibilidade e conscientização sobre a ação de atividade mediática. Diversas lutas sociais, como a luta antitabagista, por exemplo, procuraram, na ciência, o ins-trumento para levar a cabo seus objetivos, enquanto que, na área de comunicação social, o caminho trilhado pela chamada escola latino-americana, entre outras, seguiu a linha de uma opção por começar “desmontando” a ciência.

Desse modo, não bastou se afastar do pensamento cien-tífico, o movimento crítico – e, nisto, a versão pós-moderna apenas dá continuidade às tendências iniciais – simplesmen-te identifica o pensamento científico com o capitalismo ou a dominação. A posição antiteórica ganha um matiz mais radical e se desdobra na forma de uma negação do próprio pensamento científico, paradoxalmente, exercida dentro do espaço acadêmico e com pouco apoio argumentativo.

Estamos convencidos de que o avanço, no plano teóri-co, passa pela reconsideração de certas premissas, tal como a interdisciplinaridade, que vêm orientando boa parte do trabalho intelectual. Também a identificação tout court da comunicação com o Poder (por exemplo, Pasquali, 1990, 23-24) se mostrou pouco operante e, mesmo pouco válida, pois não permitiu uma análise mais ajustada aos desafios e demandas colocados pela nova arquitetura comunicacional.

Talvez, o afã de tentar entender a novidade tenha levado esses teóricos a identificá-la com processos já conhecidos, aplicando esquemas de luta e resistência política desenvolvi-dos para outros objetos e em outras dimensões da realidade

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social. Mas, é preciso tirar a lição e, partir do começo, discu-tindo seriamente uma fundamentação apropriada.

É preciso ter claro que seremos cobrados não enquanto economistas, cientistas políticos ou sociólogos, mas como estudiosos da comunicação, e é nessa dimensão que deve-mos trabalhar e trazer nossa contribuição, a contribuição da perspectiva comunicacional.

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A Dinâmica das Teorias da Comunicação: novos métodos como passagem para novas práticas teóricas

4.A Dinâmica das Teorias da

Comunicação: novos métodos como passagem para novas práticas teóricas

Osvando J. de Morais1

As últimas tecnologias digitais da comunicação trazem para o cenário nacional brasileiro as tão esperadas inova-ções no que há de mais original, cobrindo as diversas face-tas da dinâmica que envolve a passagem da TV analógica para TV digital no Brasil. Pretende-se repensar os meios de comunicação de massa, incluindo, como novo meio, a TV digital e suas apregoadas possibilidades, levando em conta as clássicas teorias da comunicação, por enquanto. Propõe-se discutir o sentido e a importância da revolução digital relacionada aos processos de produção, transmissão e apro-priação de mensagens, algo que forçará uma reorientação metodológica, inaugurando outras vias de investigação que explorem o surgimento de novas teorias que justifiquem e

1. Coordenador, professor e pesquisador do Mestrado em Comunicação e Cultura da Universidade de Sorocaba-Uniso.

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repensem os processos e as práticas interativas digitais.A implantação da TV Digital, no Brasil, provoca indagações

sobre os caminhos e o futuro não só da TV aberta brasileira; mas, também, sobre todo o conteúdo televisivo veiculado pelas emissoras, da forma como o conhecemos, como propaganda, telenovelas, programas de auditório, shows. Se o controle re-moto deu mais autonomia aos telespectadores, pois se acredita que houve, a partir daí, uma transformação nas relações meio de comunicação como emissor e seus receptores, muito mais além.

Além disso, esse novo sistema elevará e muito o número de canais, promovendo, por suposto, uma democratização do sistema televisivo brasileiro, apesar de trazer, em seu bojo, al-terações do processo que poderão ameaçar a hegemonia das grandes redes nacionais, as quais detêm a maior parte desse lucrativo mercado ligado, fundamentalmente, à prática da Pu-blicidade afeita à televisão comercial. Percebe-se, ainda, que um novo cenário está a se esboçar, transformando a realidade da televisão brasileira, ao trazer frutos que são mudanças que vi-rão no arcabouço de novas tecnologias. São novos ventos que trarão as tão esperadas inovações, no que há de mais original e, por que não dizer também, criativas possíveis, cobrindo as diversas facetas que envolvem a dinâmica dessa passagem da TV tradicional analógica para a TV Digital.

Porém, é preciso observar, criteriosamente, essa passagem do sistema atual – tão sedimentado no seio da sociedade brasi-leira – para o sistema novo, a fim de entender como esse proces-so se dará e os pontos em que, de fato, ele mudará em termos, não só de avanço de qualidade da imagem; mas, principalmen-te, no que tange às inúmeras possibilidades de transformação de todo um sistema conhecido. Sistema este que querer mu-danças urgentes num contexto em que a tecnologia de ponta, de finíssima qualidade, encontra-se na ordem do dia das dis-cussões sociais.

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Nesse contexto, espera-se que os processos digitais pro-voquem, na televisão, o resgate e a valorização de experiên-cias estéticas já consagradas pelo cinema, tendo em vista o recorte e a definição da captação e difusão da imagem. Tendo ainda – na esteira dessa transformação – as múlti-plas possibilidades de interação que o novo sistema prome-te, com respostas ilimitadas nesse novo panorama que se desenha diante dos avanços que estão por vir – espacial e temporal – das comunicações massivas.

Nesse sentido, deve-se pensar a TV Digital não como uma simples síntese da TV atual com um computador e Internet ou uma mera evolução natural de um sistema que, desde os anos 50, está presente nos lares de milhões de brasileiros. Além de ter cumprido o seu papel, para mui-tas pessoas, de se constituir no único meio hegemônico de se obter informação e, também, ter acesso ao lazer, muito embora sua atuação, em muitos casos, tenha sido de gosto duvidoso, espera-se mudanças efetivamente positivas.

Porém, não se está aqui – neste texto – discutindo a qua-lidade televisiva da programação que as emissoras veiculam, posto que tal análise fugiria do foco de nossa discussão. E a ideia não é essa, mas tão somente analisar as possibilidades interativas que esse novo sistema midiático se propõe. A propaganda, por exemplo, poderá combinar a segmentação de público que deseja atingir e, este, poderá dar respostas objetivas e imediatas, em princípio, em tempo real. Isso, de certo modo, afetará o cotidiano das pessoas e, o mais im-portante, seu desejo de consumo, pois, embora ainda esteja sujeito à inerente persuasão da propaganda, deverá ser um consumidor não mais passivo, porém, ativo totalmente, e sua capacidade de resposta será imediata.

Certamente, essas novas possibilidades ajudarão a for-matar um novo perfil de público que será mais crítico em relação ao consumo dos chamados bens simbólicos. Logo,

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o público não será mais um mero receptor, mas será um coprodutor que participará de todo o processo do conte-údo veiculado. Em tese, pelo que a TV Digital nos aponta como nova realidade tangível, surgirão, nesse contexto, no-vos meios de intercâmbio entre produtor e consumidor, pois a interatividade tem o papel de transformar as realidades es-táticas e seus papéis na sociedade de consumo.

Desse fluxo intercomunicacional, nasceria um novo contex-to de relação entre quem produz TV e quem a assiste, po-dendo, inclusive, recuperar certas sutilezas nessa relação que, atualmente, está brutalizada pela imposição de conteúdos e que, eventualmente, o público não deseja assistir. Isso obriga-rá o produtor a se especializar continuamente, a fim de refor-mular o que produz e inserir – neste contexto – a qualidade, palavra de ordem nesse novo universo da TV Digital.

Desse modo, pode-se compreender melhor o sentido e a importância da revolução digital; extremamente dinâmico, dado que esse novo sistema proporcionará transformações em todos os níveis, e isso implicará ajustes não só aspectos técnicos, mas também em termos de conteúdos veiculados. O público de agora já não é tão passivo como outrora, pois como já afirmamos, em linhas anteriores, ele dispõe de uma ferramenta a seu favor, o controle remoto. Isso já forçou as emissoras abertas a refletirem sobre o que estão produzin-do, mantendo vigilância sobre o que os outros canais estão a exibir, no mesmo horário, e como o público está receben-do esse produto da concorrente.

Assim, com o advento da TV Digital, um novo diálogo en-tre produtor e consumidor (com todos os agentes envolvidos no processo midiático) far-se-á necessário, neste momento, para que a sociedade possa, por ela mesma, definir o que dese-ja ver, e não apenas, obrigatoriamente, assistir ao que lhe é im-posto. Tal discussão é muito saudável em virtude de apontar novos caminhos para a televisão brasileira como um todo.

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Além disso, fica evidente que será preciso repensar os mo-dos de produção, veiculação e, sobretudo, de ferramentas de apropriação de mensagens pelo receptor. Por fim, a TV Di-gital inaugurará outras linhas de investigação que explorem uma nova variedade de conteúdos e, também, que forcem as emissoras se autoanalisarem, de forma metalinguística, en-quanto meio de comunicação.

Isso, com certeza, produzirá o surgimento de novas teo-rias que justifiquem e repensem os processos e as práticas interativas digitais. Tal processo se faz necessário em virtu-de de verificarmos que a interação social, através da troca de mensagens, está presente na dinâmica social, represen-tando e aglutinando, simbolicamente, o mundo, pois todos os meios de comunicação de massa, como o próprio nome nos sugere, aglutinam o público extensivo à condição de massa consumidora. Podemos supor que esse painel que traçamos, até aqui, aponta para o que tende a se alterar.

Isso criará uma fragmentação ou uma segmentação maior no sistema, e o público é quem fará a sua própria escolha, selecionando, editando sua programação. Sobre tal possibilidade, deve-se (re)pensar, portanto, nas teorias basilares da comunicação, que vão ao encontro desse novo contexto, dentro do que está nascendo com a TV Digital, pois a comunicação, seja interpessoal, grupal ou coletiva, forçosamente, ganhará novas configurações. Seria interes-sante pensar, por exemplo, na TV Digital como resultante de um processo evolutivo, a partir de sua versão antepassa-da – a TV analógica, a TV em preto e branco e em cores – que se tornaria em algo diverso a requerer uma nova teoria de comunicação de massa que possa dar conta dessa evolu-ção, a fim de que esse processo seja analisado e entendido pela sociedade.

Acreditamos que esse estudo deveria partir da TV analó-gica, tal como foi concebida, até chegar ao formato digital e,

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assim, pensar na questão da interatividade, sistema em que as pessoas são capazes de agir, editar, transformar e, naturalmente, responder, imediatamente e de forma idiossincrática, a algum tipo de estímulo ou provocação geradora de algum tipo de emoção. Nesse sentido, é que acreditamos que as teorias da co-municação poderiam vir ao encontro desse novo contexto dos processos comunicacionais, tal como pensamos ou aplicamos ao cinema, ao teatro, ao jornalismo.

Tudo dos componentes que formam a TV Digital in-terativa é interessante, porque fazem com que nos esque-çamos de todos os demais aspectos da comunicação tradi-cional tal como a conhecemos e, para não exagerar, uma comunicação que está se tornando obsoleta. Uma grande parte das teorias da comunicação de massa detém, como base, os efeitos dos meios sobre a sociedade e dever-se-á, em um primeiro momento, aplicar esses efeitos e seus estudos aos processos de interação, ou seja, essas características tão profundamente estudadas para que a TV Digital chegasse aonde chegou.

O desenvolvimento da teoria da comunicação social pretende não outra coisa senão remarcar a centralidade do fenômeno como objeto de investigação econômica, ou seja, não existe mais a prioridade de uma resposta a longo prazo, mas sim, a curto prazo, quase que de modo imedia-to. Portanto, o efeito principal seria a impossibilidade de controlar os meios de comunicação de massa, em proces-so, ocupando-se em levar ao receptor algum tipo de efeito extremamente provocador. No sentido não só de atualizar, mas desenvolver um novo contexto para o entendimento amplo da TV Digital e como ela transformará os meios de comunicação, de maneira geral.

Todavia, costuma-se dizer, romanticamente, que a vida já é irreversivelmente digital, e essa tecnologia, que está oni-presente na vida das pessoas, surgiu trazendo, no seu bojo,

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a interatividade, que é um elemento nativo na web. E mais: estará plenamente integrada, num futuro quase presente, a todos os aparelhos eletrônicos existentes nos lares brasi-leiros. Isso estimula, de certo modo, uma inserção digital; se bem que essa inserção digital é uma questão bem mais complicada e não pretendemos discuti-la, neste texto, por-que isso requer uma amplitude de abordagem que desviaria o foco de nossa análise.

Uma questão é patente: as pessoas, ante essa revolução tecnológica, nas principais cidades do mundo, apontam e atuam nessa direção, uma vez que o contexto global nos evidencia que o homem pós-moderno está profundamente integrado às mídias digitais, juntamente com as conexões que essas permitem estabelecer em quase todos os sentidos. E, retomando os efeitos midiáticos que esse poder digital vem causando à sociedade tecnológica, podemos dizer que o processo comunicacional – agora – dar-se-á quase que in-dividualmente e não mais como um fenômeno grupal.

Situação esta que deixa em relevo a realidade da pós-modernidade no contexto dos atuais grupamentos huma-nos, visto que já, nos final dos anos 80, portanto, no sécu-lo passado, já se falava, categoricamente, sobre o processo de isolamento a que o homem estaria sujeito nos grandes centros urbanos. De certo modo, esse isolamento é natural – inclusive, por uma questão de segurança, evita-se sair de casa e a comunicação chega aos lares, via web, TV Digital, celulares e todos meios interativos possíveis.

Agora, as experiências são quase que individuais e, mes-mo a interação da Internet, fica no plano do intangível, virtual, à distância. Isso não significa dizer que, nessas ex-periências, não estejam explícitas as trocas culturais e os processos de persuasão e convencimento, questões que nos levam a analisar a eficácia da comunicação. Assim, é preciso olhar para as várias abordagens da comunicação,

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principalmente as que levam a discutir a vulnerabilidade ou invulnerabilidade das pessoas, diante desses efeitos da comunicação, não na vida das pessoas que estão se relacio-nando em grupo, mas daquelas que estão em processo de isolamento, os indivíduos atomizados.

Desse modo, sejam elas, pequenas ou não tão pequenas, as próteses comunicacionais, adaptáveis a óculos, joias, ca-netas, dissimuladas ou inseridas, incrustadas nos ouvidos, tornar-se-ão a grande porta da nova comunicação. E, assim, pensamos nos efeitos da comunicação e as dimensões des-ses efeitos, porque devemos pensar que a TV é um artefa-to, uma máquina que codifica e transmite mensagens com sons e imagens, que se desenvolveu, evolutivamente, e mui-to, nas suas qualidades técnicas.

Num segundo momento, devemos entender que a TV é uma indústria e, como tal, está cheia de intenções – sejam elas empresariais, ideológicas ou culturais, e essas intenções estão principalmente trabalhadas nas mensagens publicitá-rias que alimentam essa indústria. A TV é constituída de um conjunto de conteúdos construídos com esses vários sentidos, sejam culturais ou ideológicos. E essas análises nos levam a refletir sobre esses conteúdos, porque todos têm acesso a eles, principalmente as crianças que passam muitas horas assistindo aos programas, consomem muito televisão e, nesse consumo, está a possibilidade de se medir os efeitos desses meios. É importante perceber que todo telespectador constrói indagações, constrói perguntas a ne-cessitar de respostas.

Nesse contexto, entramos com o conceito de interativida-de que representa um enorme canal de participação para esse público, a fim de se chegar a respostas, já que esse público, repetimos, necessita dessas respostas, e as exigem. Sabemos que o público tem dúvidas e, quando elas surgem, são neces-sárias para que sejam facilitados, por exemplo, o consumo,

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seus anseios e necessidades, sejam elas, espirituais ou básicas. É exatamente por isso que a interatividade seduz, porque atua em todos os cenários: da cultura, do entretenimento ou mesmo ideológico; fazendo-se mais marcante principalmente nos cenários massivos e, assim, ela seduz justamente pela pos-sibilidade de representar mais pontos de convergências, nos quais as emissoras podem se apoiar em modelos de difusão cultural ou negócios envolvendo a cultura.

Obviamente, muitas perguntas ficarão sem respostas, mas uma questão fundamental em nossas análises e que vale a pena ser colocada em relevo é: o que acontecerá, no Brasil – num futuro próximo – com a entrada da TV Digi-tal interativa e com as mídias interativas? Qual será o foco? O foco estará no acesso do público, ou na participação co-munitária? E, como serão os conteúdos gerados pelos pró-prios telespectadores?

Essas são algumas indagações que nos chegam e que só a implantação desse novo sistema – ao longo do tempo – poderá responder, inclusive se o processo foi positivo ou negativo. E quais os ajustes que precisariam ser feitos para que essa proposta de fato seja realmente interativa. A pas-sagem de digitalização vai transformar todo o sistema de transmissão televisivo e também de radiodifusão do país, trazendo outras características. Principalmente, as caracte-rísticas associadas à qualidade da imagem e do som e, como vimos, além dos chamados serviços interativos, que serão diversificados, e com um aumento muito significativo na eficiência do sistema de radiofrequência, dando possibili-dades de maior oferta de conteúdos culturais e opções de serviços de toda ordem. Aprofundando um pouco mais essa questão, podemos dizer que algumas discussões estão centradas nos modelos de negócios e produção de conteú-dos, na legislação, na estética, na programação e na cultura efetivamente televisiva.

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Dentro dessas abordagens, analisa-se, ainda, uma im-plementação ou a possibilidade de uma melhoria, cada vez mais rápida, desse canal de retorno que significa realmente uma democratização dos meios de comunicação de massa.

Também há a questão da baixa resolução de imagens dos aparelhos celulares ou câmeras de vídeo. Problemática que, certamente, será foco de atenção dentro do processo de digitalização das imagens. É, nesse contexto, que surge a apropriação de nossos sistemas de captação de imagem e apropriação de novos valores estéticos dentro da chamada comunicação audiovisual. Além de se alterar, também, os modos de produção de conteúdo, talvez, a grande contri-buição do advento da TV Digital interativa seja – de fato – a possibilidade do telespectador ter a capacidade de decidir o que quer ver e quando quer ver, além de poder interagir com o meio e com outros telespectadores que também esta-rão em sintonia com aquele determinado canal.

É bom frisar que essa interatividade, ao ser adotada, não ficará restrita ao simples ato de utilizar o aparelho telefônico para opinar sobre a vida de um determinado participante de um reality show, mas será algo mais amplo, diversificado, dinâmico e em tempo real. Tudo leva a crer que tal tecno-logia contribuirá, efetivamente, com a construção de um espaço realmente democrático, em que o usuário poderá não só assistir, mas produzir seus conteúdos e inserir-se no contexto de massa.

No nosso entender, será dessa troca que sairão as novas linguagens e as novas produções, ou seja, a nova linguagem da TV Digital interativa. E a transmissão desses conteúdos possibilitará maior interação no modelo de rádio-difusão. Na verdade, atualmente, a TV brasileira realiza um diálogo uni-direcional com o público e, por conseguinte, não abre espaço para a interação e determina – ditatorialmente – o que o pú-blico deve assistir. Logo, atinge a vida cotidiana do povo com

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uma grade de programação que procura – dentro do possível – entreter, focar a realidade com programas ‘mundo cão’ e que colocam o público numa condição passiva, de mero re-ceptor de similares de suas próprias tragédias cotidianas.

Já com a TV Digital, esse cenário, obrigatoriamente, ten-de a mudar, pois não seria unidirecional, nem tão pouco dissimulada. Terá que estabelecer um diálogo real e isso exi-ge, de fato, ajustes técnicos e uma nova postura dos fazedo-res do produto televisivo. No sentido de levar cada pessoa a contribuir para melhorar a própria TV e não apenas buscar informações, como ocorre, num primeiro momento, com a Internet. Uma saída interessante é buscar soluções, a partir de programas reais e, assim, atender as necessidades reais do telespectador e isso só é possível pela interatividade. Isso permitirá uma troca entre as comunidades, além de buscar soluções para os problemas que as afligem.

Assim, a TV Digital pode chegar, daqui a algum tempo, ao ideal de comunicação de massa interativa. Além disso, devemos entender que uma das características tradicionais da comunicação de massa é o fato de uma única informa-ção partir de um único ponto para milhões de receptores ao mesmo tempo. Dessa forma, é bom frisar que a TV Digital não mudará a característica de comunicação de massa, mas poderá democratizar o veículo – além disso, deverá trazer conteúdos mais atraentes e globais para o grande público. Isso sempre com o foco na pesquisa, além de exigir novos e constantes investimentos.

A capacidade de resposta imediata ou simultânea da TV Digital interativa faz pensar em teorias que expliquem e, ao mesmo tempo, justifiquem esses processos rápidos que aproximam, e muito, dos conceitos clássicos de comu-nicação. Por exemplo, os conceitos de interatividade, de trocas culturais estão sempre presentes, quando se preten-de chegar à essência propriamente dita de comunicação.

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Um dos núcleos mais desenvolvidos no campo da comu-nicação, como assinala Igartua (2004), são os efeitos dos meios como de extrema relevância em virtude de atingirem as questões centrais dos indivíduos e das populações.

Aproximando as discussões sobre as novas mídias com suas potencialidades, podemos dizer que os efeitos de si-multaneidade e a prometida autonomia do telespectador devem ser repensados e justificados em termos teóricos.

Nesse sentido, não seria exagero propor como ponto de partida um retorno às ideias de McLuhan e Harold Innis, ao iniciarmos os estudos não apenas dos efeitos da interati-vidade que promete mudar, drasticamente, a forma de fazer televisão, justificando, portanto, em todos os sentidos, as maneiras padronizadas de receber. Desse modo, Schettino (2008) acrescenta que o atual modismo da palavra ‘Interati-vidade’ vem com o sentido de dotar o receptor do meio de comunicação da competência de reagir a ele em processo contínuo. As ações desse telespectador estão carregadas de sig-nificados subjetivos que traduzem a sua conduta e, também, a dos centros com os quais interage, ultrapassando as fronteiras da subjetividade como processo de interpretação da conduta dos outros, para se chegar a atingir a intersubjetividade.

O conceito de interatividade está ainda em construção e, certamente, demandará a necessidade de alguns anos de experiências e amadurecimento para se chegar à sua com-pletude, ou melhor, à sua essência. Mas, seu significado imediato, hoje, encontra-se na capacidade do telespectador, não só de assistir à televisão, mas também de participação, ao executar um papel verdadeiramente ativo no processo comunicacional, agora alterado.

Obviamente, como proposta ainda nova, vemos que pouca coisa foi explorada dentro da abrangência de suas múltiplas possibilidades. Indaga-se quais seriam os limites das ações do receptor em decorrência da latitude de suas

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capacidades derivadas de seu repertório próprio. Estamos a lidar com uma tecnologia realmente nova, e suas poten-cialidades ainda perduram como incógnitas no campo de conhecimento do homem comum.

As possíveis respostas dependerão das futuras práticas e de seus resultados.

Parece-nos que um bom começo seria comparar a intera-tividade como se dá, na Internet, com aquela esperada na utilização da TV Digital. Os resultados dos efeitos deverão aparecer em breve. E seria interessante se aparecessem jun-tamente com teorias de comunicação que dessem conta e que fundamentassem as ações provocadas pela interativida-de. É temeroso pensar sem cautela a televisão digital inte-rativa nesse momento de sua implantação. Pode-se correr o risco de exercício de mera futurologia.

No entanto, hoje, as mudanças tecnológicas atingem so-mente os mais abastados. Os prometidos conversores, dis-poníveis no mercado, são apenas uma solução paliativa e, momentaneamente proibitiva à grande massa de prováveis consumidores dos produtos que estarão à venda direta e à sua escolha, no mesmo instante em que são exibidos em tela.

Muitos acreditam que a interatividade, na televisão, revo-lucionará a educação, tendo-se em vista que a aprendizagem de um novo conhecimento só se completa pela interação. Os exemplos são convincentes e ilustrativos, porém, carecem de análises mais aprofundadas das questões sociais e históricas que permeiam e envolvem a educação. Algumas experiên-cias, em caráter de pesquisa, poderiam ajudar a compreender melhor no que diz respeito à educação mesclada ao entre-tenimento, e que poderiam ser aproveitados também nas análises da comunicação segmentada pelos canais digitais interativos.

Acreditamos não existir uma única teoria da comunicação

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capaz de abarcar todos os fenômenos interativos em virtude das experiências ainda estarem por se dar. Do mesmo modo que a TV Digital é classificada como um mix de mídias con-vergentes, é possível talvez que haja a necessidade de um mix das atuais teorias para darmos conta da multiplicidade de fe-nômenos provocados pela interatividade, necessitando bus-car as intersecções entre as teorias em um diálogo constante. Por outro lado, a natureza interdisciplinar da comunicação aponta para alguns caminhos na superação dos obstáculos presentes nesse seu começo de existência.

1) A interação social através de mensagens trocadas entre os indivíduos e estes, por sua vez, com os meios massivos de comunicação, está presente na sociedade e na cultura, representando e refletindo simbolicamente o mundo.

2) Antes, os meios de comunicação de massa, como o próprio termo já denota, aglutinavam públicos. Agora, com a expan-são dos canais, os públicos são fragmentados em segmentos estanques, cada qual a fazer sua própria escolha: selecionan-do e/ou editando e construindo sua programação particular, a partir daquela comum produzida e enviada para todos.

3) É imperioso pensar em teorias basilares de comunicação que deem conta dos processos atuais em que as práticas das comunicações interpessoal, grupal e coletiva ganham novas configurações.

Referências

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A sociedade de consumo. Lisboa: edições 70, 1995.

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BAUMAN, ZYGMUNT. Vida para o consumo: A trans-formação das pessoas em mercadorias. Rio de Janeiro: Jor-ge ZAHAR, 2008.

Comunidade, a busca por segurança no mundo atual. São Paulo: Jorge ZAHAR, 2003.

DEBORD, Guy. A sociedade do espetáculo. Tradução de Es-tela dos Santos Abreu. Rio de Janeiro: Contraponto, 1997.

GARCÍA CANCLINI, Néstor. Consumidores e cidadãos: conflitos multiculturais da globalização. Tradução de Maurí-cio Santana Dias e Javier Rapp. Rio de Janeiro UFRJ, 1997.

GEERTZ,Clifford. A interpretação das culturas. Rio de Janeiro: Zahar, 1978.

MALANGA, Eugênio. Publicidade: uma introdução. São Paulo: Atlas, 1976.

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Por que ensinar Teoria (da comunicação)?

5.Por que ensinar Teoria

(da comunicação)?

Pedro Russi-Duarte1

Universidade de Brasília (UnB)

I

A questão central quer entender o quê ensinamos quando ensinamos teoria? O que isso demanda dos professores, estu-dantes, fluxo curricular, faculdades…? Assim, as diferentes ins-tâncias reflexivas deste texto têm, como pano de fundo, o espí-rito científico evocado por Bachelard que aproveito, ao realçar uma discussão teórica sobre processos importantes no ensino de teoria, para nós, no campo da comunicação.

As inquietações que provocaram este artigo se ancoram em distintos momentos: sala de aula (pesquisa em comunicação – graduação e pós-graduação); participação em defesas de gra-duação e pós-graduação, pesquisas em desenvolvimento etc. O objetivo é problematizar a relação, no âmbito do ensino

1. Professor no Programa de pós-graduação em Ciências da Comunicação – Coordenador do Núcleo de Estudos de Semiótica em Comunicação (nese-coM) na Universidade de Brasília (UnB). Contatos: [email protected]

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com as teorias, a partir de conceitos que tencionam as en-ganosas ideias redutoras e esquemáticas das mesmas. Parto da premissa de que a sala de aula, no ato de ensino, deve ser entendida como um laboratório – cotidiano – de pro-vocações e dúvidas e, nesse marco, epistêmico e do método científico que examino o ensino das teorias.

Essa reflexão permite ir mais adiante e entender que o processo teórico e os métodos não são autônomos e sim escolhas valorativas do pesquisador e, para isso, deve com-preender o cenário intelectual no qual se encontra. Opções tomadas com relação ao saber da ciência, na qual se encon-tra – comunicação. Senão, o que entendemos por pesquisa, teoria, área, ciência…?

Pretende-se, por conseguinte, levantar alguns pressu-postos de viés epistemológico que permitam entender as características básicas (critérios, princípios, ideias) dessa problemática central do texto. Entenda-se, como perspecti-va crítica, a possibilidade do que posso chamar de “descon-fiança” intelectual. Assim, entender e situar os princípios conceituais para começar a fazer frente à situação, podendo avançar nas reflexões sobre o quê ensinamos, quando fala-mos de teorias como sistema de pensamento teórico além dos processos que isso implica no saber comunicacional.

Não interessa realizar uma ação comparativa nem esmiu-çar situações, porém, avançar no desenho intelectual de um movimento que permita entrar na discussão e problemati-zar a potencialidade da teoria e não o pontual das teorias em si. Com ponto de partida, ao entrar na esfera do ensino, posso observar que nossa discussão demanda uma postura inteligente do curso, professor, estudantes e, principalmen-te, instituição ou faculdade. Isto é, quais são as prioridades conceituais no curso de comunicação na universidade?

A base está na provocação de Popper (2006:106), para quem uma das tarefas principais da crítica científica deve

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ser a de expor as confusões de valores e separar as questões puramente científicas das pseudocientíficas e, assim, avançar também na exigida vigilância epistemológica e metodoló-gica. Romper os obstáculos epistemológicos, a priori condi-cionantes sobre as teorias como banalidades desnecessárias e distantes do concreto da prática ‘do mercado jornalístico e publicitário’2 – jargão por demais fixados nos corredores das universidades. Impressões que, como tais, sustentam-se na superficialidade e primeiros reflexos, obviamente, inváli-dos do conhecimento do que entendo como teoria.

Nesse sentido, deve-se problematizar e tornar clara a confusão existente entre, o que se entende como teoria, por um lado, e o que se ensina sobre ela, por outro. Situa-ção que acontece tanto no cenário dos estudantes quanto dos professores, além das ações direcionadas pelas opções curriculares. O problema ancora-se no capital epistemoló-gico que atua como fundo, e que deve ser mobilizado para situar a operação reflexiva sobre aquilo que é pretendido e entendido no campo da comunicação. Um dos primeiros desafios é questionar-nos sobre o saber das teorias no plano epistemológico da comunicação.

Consequentemente, é necessário avançar na discussão e reconhecer, nesse mundo das relações teórico-metodológicas, a visão do lugar-comum que confunde mais do que elucida. O epicentro da confusão está, além do já destacado, na leitu-ra vulgar sobre científico e, imediatamente, sobre as teorias como um somatório de fatos, definitivos, certos, inquestio-náveis e de significado autoevidente (goode; hatt, 1989). Uma rápida saída pode estar em compreender a provocação de Diógenes – o “cínico”, ao invés da “alegoria da caverna” de Platão; constate-se no sentido de exercício intelectual.

2. Ambas as habilitações citadas como rápidas e esquemáticas ilustrações.

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Diógenes, que descansava sob o Sol, diante da pergunta de Alexandre “o que você quer que eu faça”, diz: “afaste-se, porque está cobrindo o Sol”. Se entendermos o Sol como fonte de saber, ‘eu pensante’ não necessito de mediações dos imperadores para falar com o conhecimento. Então, não necessitamos de livros-teorias-pensadores – eis uma res-posta simplista. Muito pelo contrário, conhecimento teóri-co vai além dos esquemas ou modelos enquanto metáforas. Aceitar o desafio apresentado por Diógenes é compreender o cerne cognitivo das teorias que permite reconhecer como foram e são as ações mentais para entender o mundo, i.e., raciociná-las como cerne dos saberes teóricos. Penso a rea-lidade (mundo) como entidade independente do que cada um opine e cognoscível em uma comunidade, o que é uma garantia última de que há algo que existe, desde os elemen-tos macro até os elementos mínimos (subatômicos)3.

A teoria não pode ser apresentada ao estudante no sen-tido da sintaxe e sim no sentido da semântica, quer dizer, como processo de significações. Tem sentido atribuído pela História e pelo desenvolvimento da própria teoria, assim como pelas ressignificações semânticas – não sintaticamente. Existe diferença entre seguir precedentes formais ou regras de sintaxe e as regras que implicam em regras semânticas.

Nessa linha, Peirce releva que os modelos e esquemas significam porque estabelecem a relação no pensamento que sustenta aquela manifestação. As linhas de um esque-ma entre meios e receptores (er) não são simplesmente linhas e sim relações significativas de raciocínio que enten-de um determinado processo. O esquema (desenho) está no lugar de alguma coisa e, justamente essa coisa, é o que

3. Anotações do Seminário de Semiótica – UNISINOS – ANDACHT, F. (Univ. Ottawa) (material acervo pessoal).

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deve ser conhecida, entendida e problematizada, enquanto processo mental ao falar sobre teorias. Eis o ato teórico. Porém, como são explicados esses esquemas dos ‘modelos’ teóricos, para que sejam compreendidos na matriz concei-tual ancorada semanticamente?

De maneira contrária, corriqueiramente, observamos uma das alterações mais típicas na compreensão das teorias como modelos para aplicar instrumental e mecanicamente (caixa de ferramentas). O fato de forma simplória reduz a uma historiografia exposta literalmente, não problematizada nem refletida, que descreve desenhos no sentido mais solto: matemático, hipodérmico, dois estágios… que estão longe, no sentido conceitual dos processos, todos que levaram ao desenho cognitivo de uma ou várias teorias e pensamentos.

O estabelecimento de um conceito mecânico da teoria atua como plataforma e vício de pensamento e deve ser in-telectual e ativamente combatido, “a falsa distinção entre ciência teórica e ciência prática, com o consecutivo elogio da última e menosprezo sistemático da primeira” (raMón y cajal, 1979:16). A rigor, quando avançamos na reflexão, isso é um dos grandes problemas enfrentados à hora do ensino e aprendizagem das teorias.

Se não buscarmos sair dessa falsa dicotomia, será impos-sível estabelecer os critérios necessários para que a teoria seja entendida como ato racional dentro da diversidade, das suas variações, suas transformações mais ou menos aprofundadas. Isto é, como situações de pensamento, pro-cessos mentais, não mecânicos. Ao entrarmos no contexto da racionalidade, propomos leituras sobre as teorias como modos de pensamento, de disciplinas e como técnicas men-tais próprias aos domínios gerais e particulares de um saber (vernant: 98).

Dessa maneira, semanticamente, os modelos são formas de argumentação, de demonstração e de refutação que buscam e

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se apresentam como verdades que explicam aspectos (estrutura-dos) sobre a realidade. São formas de discursos que exprimem, essencialmente, essa verdade e, como tal, apresentam-na, a par-tir de uma análise e argumentação; como estado anteriores de compreensão e racionalidade para os próximos pensamentos teóricos. Eis uma dinâmica essencialmente de problematização – como salienta Weber – diferenciação e característica da ciência. Uma vitalidade do pensamento e seu progresso.

Progresso entendido no modo e força da evolução e variação como agapismo (agapism – CP 6.302-305) – cres-cimento contínuo da complexidade. Os sistemas teóricos estão em constante expansão, suas definições “padecem” de transformações, configurando o que Peirce, em uma ins-tância, e Bruyne em outra, entendem como “semiose” e “abertura de sentido” respectivamente, para se opor à estag-nação pelo fechamento dos formalismos improdutivos.

Assim, deslocamo-nos na perspectiva histórica conceitual que possibilita renunciar à razão absoluta, para compreen-der e examinar como o homem (ciência) atua, efetivamente, através do progresso das diversas ciências, construindo sua razão, porque entendem que a lei do progresso do pensa-mento expande-se por crises – a história do conhecimento e razão se dá nessas crises (vernant, 1979: 100).

Pensar sobre o conhecimento e modificação das teo-rias, deve tornar-se o ponto e desafio central no ensino de Teoria. Na passagem de uma teoria (t

1) para outra teoria

(t2), existem períodos de reflexão4, nos quais há realizações

suplementares e complementares (de pensamento; leituras transversais) que intervêm na relação t

1t

2. Nesse tempo,

interferem vantagens e desvantagens que as teorias têm

4. Abreviar a ilustração em duas teorias é, simplesmente, a modo de ajudar na discussão conceitual.

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Por que ensinar Teoria (da comunicação)?

para compreender e conceitualizar os processos comunica-cionais (p.ex., mediáticos). Em t

1 dispõem-se informações

que permitirão potencializar determinadas decisões concei-tuais que alimentam o processo para t

2.

O deslocamento de t1 (hipodérmica) para t

2 (dois estágios)

não é mecânico e, quando estudado-ministrado, demanda uma compreensão de fundo: de progresso cientifico. Do contrário, estamos frente a uma hipótese de determinismo lógico. A compreensão do espaço racional entre as diferen-tes teorias oferece elementos para um não-dogmatismo das ações analíticas daqueles que as estudam. Perceber a razão da transição t

1t

2, vai além de conhecer os esquemas e

modelos em si, é saber que embora t2 ultrapasse t

1, esta

não desaparece porque mantém as matrizes que permitem o progresso compreensivo.

Aqui, ancora-se uma provocação metodológica com rela-ção ao ensino das teorias da comunicação para que não se-jam tratadas simplesmente como esquemas-modelos e sim como ações conceituais. Deparamo-nos como o obstáculo epistemológico e importante dificuldade intelectual e cien-tífica de entender primeiro o exemplo (E–M–R ou Meios–LOpinião–Indivíduos), para depois conhecer o conceito (Bachelard, 1996). Enquanto o desafio do vetor epistemo-lógico é avançar, desde o início, no que deve ser entendido profunda e conceitualmente, do contrário “a força gravita-cional se resume a uma massa que cai” ou diante da ques-tão: “o que é um meio de comunicação?”, vem a resposta: “um aparelho de TV”.

Esses enunciados não devem ser entendidos como me-ros contatos de letras e linhas, senão que se articular e propor sentido. Assim, com base nessa matriz epistêmica, podemos pensar a relação entre t

1 t

2 como operação de

uma relação de signos (sentidos), e não como signos isola-dos – enfatizo: relação.

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Teorias da Comunicação: Trajetórias Investigativas

A compreensão individual de uma e outra teoria é uma ação das estratégias, táticas e escolhas do método do analis-ta. Por isso, a denominação intelectual de Diagrama (Peirce) pode ser uma melhor forma para entender claramente a re-lação e, assim, sair do impasse daquilo apresentado como desenho ou modelo. Como figura de exercício mental, o Diagrama explicita um sistema que representa relações men-tais do fenômeno e procedimentos implicados (CP 1.54; 1.65) na existência e dinâmica do conhecimento. A altera-ção conceitual de modelo-desenho para diagrama deman-da uma postura intelectual que tenciona uma simples troca de nome que resultaria em um método falacioso e artificial além de estéril.

Dessa forma, o aprendizado teórico é lógico-conceitual, diferindo de uma cadeia caligráfica em si mesma; “esse em-pirismo atomizado e essa experiência concreta sem esforço de abstração admitem todos os devaneios individuais” (Ba-chelard, 1996:159).

Pensar é buscar esse movimento de relações conceituais na teoria. Situação intelectual que permite questionar e enten-der o que estamos falando, quando em sala de aula, por exem-plo, dizemos ou discutimos: “indústria cultural”, “o meio é a mensagem” etc. Não somente o que nós dizemos, mas o que elas, como dinâmicas conceituais, estão propondo. Ao avançarmos nessas questões, fazemos a passagem de simples encadeamento de palavras (nomes) para conceitos; fato cen-tral para estabelecer o essencial e problematizar as teorias em estudo. Nisso, cabe a questão: que somos e o que fazemos, enquanto pensamos as teorias? Isso como desafio para nos esclarecer através dos jogos racionais aqui inseridos.

De fato, conforme Bachelard (1996), o reconhecimento das alterações, embora mínimas, afasta o analista intelectu-al do obstáculo epistemológico, que observa com desdém o pormenor e a precisão, porque se fecha ao pensamento

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Por que ensinar Teoria (da comunicação)?

científico que deve compreender para significar cada con-ceito. Com esse propósito, o autor sustenta o avanço e a compreensão científica, assim como o pensamento cientifi-co, na deformação (significação) dos conceitos.

Eis, então, como, pano de fundo, uma ideia de ciência no ato do ensino das teorias. Qual? De que ela não é eterna e de conteúdo permanente, como o Sol no mapa mundi, de Aristóteles, que se apresenta como um conteúdo per-manente e eterno, e um mundo também eterno (Bueno, 1995:2). A saber, um entendimento teórico mais refinado (t

2) do que o anterior (t

1) não elimina o primeiro da forma

de problematizar e entender a realidade. Ao tempo que en-sinamos, cientificamente, uma teoria mais avançada (t

2), os

estudantes podem realizar e perceber leituras ainda funda-mentadas naquela ultrapassada, p.ex., ‘de causa efeito’.

Isso demanda um processo de pensamento para enten-der que as teorias são configurações históricas, porque ar-ticulam dinâmicas conceituais, discursos, conteúdos, nor-mas, instituições… de alcance muito diferentes e, o mais importante, de atuações simultâneas. Por isso mesmo, não se devem compreender as críticas e leituras teóricas como simples resultados de processos “linguísticos” arbitrários, no entanto, como expressão efetiva do pensamento de con-teúdos conceituais diferentes (Bueno, 1995:2).

De fato, o desafio é compreender, para discutir e ensi-nar, que a relação entre teorias [t

1t

2] não é taxonômica ou

simples justaposições de dicionário, senão acepções, saberes e conteúdos correspondentes. Nesse sentido, é necessário estabelecer nexos entre as teorias que avançam e as ultrapas-sadas. Essa dinâmica permite compreender que, a partir de um determinado desenvolvimento tecnológico e social, as mesmas ideias, contrastadas com outras versões próprias e alheias, terão que ser re-organizadas em torno de novas pro-postas teóricas, não ao inverso. A cada novo conhecimento,

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removemos o limite do nosso saber teórico anterior que já se prepara para ser novamente ultrapassado. Embora esteja claro, é saudável para o conhecimento científico salientar que tais dinâmicas não são mecânicas nem automáticas.

II

O ensino das teorias implica na compreensão dos con-ceitos específicos e históricos, dentro e fora da ciência espe-cífica. A ciência existe na medida em que seus conceitos se estabelecem como denominações de entendimento sobre a realidade. Quer dizer, é denominando o objeto (seu objeto) que estabelece a sua legitimidade como ciência (Benveniste, 2006:252). O entendimento dos conceitos de uma ciência, resultados das suas operações de pesquisa que a especificam como tal, é um processo de distinção teórica. Daí que teo-ria e pesquisa científica não podem estar descoladas nem em relação dicotômica no processo de ensino.

Assim, a peculiaridade entre diferentes teorias, como formas de compreender a realidade, é apreender “o sur-gimento ou transformação dos termos essenciais de uma ciência como os acontecimentos mais importantes da sua evolução” (Benveniste, 2006:252). Nesse sentido, o estudo das teorias é saber que “os trajetos do pensamento são de-marcados por esses termos [conceitos] que revivem progres-sos decisivos e que, incorporados à ciência, vão suscitar, por sua vez, novos conceitos” (2006:253). O ensino de teoria deve conter os termos instrutivos que são atribuídos a um conceito novo para designar e acrescentar uma nova defini-ção a partir de uma noção anterior.

Ajuda-nos, para avançar no ensino das teorias, a provo-cação do ato interrogativo proposto por Sócrates: “o que é

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a coragem?”. Veja-se que não está interessado em saber ou mostrar atos de coragem e obter exemplos – aliás, a resposta verdadeira não seria essa –, porém, interessa-lhe a definição conceitual de coragem.

Dessa forma, entendo que, ao refletir sobre as teorias, de-vemos apontar para sair do naturalizado, pôr questões inte-lectualmente válidas que permitam entender as plataformas epistêmicas e metodológicas e examiná-las como teorias. E, é nessa instância de irritação da dúvida – diante do proces-so de inquirição para Peirce –, que se podem estabelecer os parâmetros compreensivos sobre as reformulações e re-desenhos das teorias analisadas – eis um processo teórico.

Portanto, insisto no lugar intelectual e provocador do professor. As teorias são conceitos não dados meramente elaborados, isso quer dizer construídos nas macro e microa-ções dos sujeitos que as pensaram e pensam como executan-tes de formas de compreender o mundo; significar não no caráter icônico ou indicial, porém, simbolicamente. Nesse sentido, posso pensar juntamente com Wittgenstein (apud glock, 1998:326), para quem a “família de significados” possibilita entender que o significado de um termo é a asso-ciação da família de seus sentidos. O conceito se associa ao emprego do termo como família de concepções. O concei-to é significativo quando, com relação ao objeto, classifica, agrupa por semelhanças, como base dessa classificação, na qual se associa, significativamente, àquilo que denomina. Dessa maneira, a classificação tem por objetivo evidenciar as relações que devem ser levadas em consideração.

Dessa forma, progredimos em que o ensino e conhecimen-to dão-se, ao sair do esquema-desenho, e entrar nas coorde-nadas conceituais – de signos – que significam o paradigma em estudo – qual a significação que potencializa compreen-der a comunicação a partir desses movimentos conceituais? As teorias da comunicação passam a ser entendidas como

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dinâmicas para compreender a realidade, o que significa poder discutir e refletir sobre comunicação e seus modelos epistêmicos; significar explicita processos mentais (semiose) de conhecimento – semiose como o processo irreversível e direcionado, teleologicamente, para o futuro, com direção à razão, à verdade.

É, nessa dinâmica, que sustento a possibilidade de levantar os questionamentos para pensar a discussão sobre o ensino te-órico na comunicação. Cenário, no qual deve ser entendido, conjuntamente com o processo reflexivos sobre o método (metodologia), o objeto de pesquisa em distinção intensa com o objeto empírico – na pesquisa científica na nossa especificidade da comunicação. Isso aponta para iniciar um processo de inquietações relacionadas ao princípio epistê-mico essencial de que a pesquisa é um trabalho consciente dos métodos científicos para progressão desse pensamento, conjuntamente, (não existe um sem o outro) à teoria.

Como pensar-ensinar as dinâmicas teóricas, nesse con-texto, que aponta cada vez mais nos fluxos curriculares ‘téc-nicos’ que ‘preparam para o mercado’? De quais matrizes conceituais e rigores temos que ‘lançar mão’? De que formas redesenhamos esses ajustes? Quem são os professores de te-oria da comunicação? Qual a relação e formação histórica conceitual nas várias discussões da área? – situação similar acontece com os professores de pesquisa em comunicação.

Parece que estamos assimilando e sendo assimilados por um cenário que exacerba a busca das transformações teó-ricas, sem compreender os processos, cujo objetivo central e único resulta ser o fim e não os elementos constitutivos delas em relação às outras. Ao refletir sobre o assunto e depa-rar-me com isso, em textos e discussões, provocam-me a ‘ação-de-pensar’ e questionar a problemática apontada por Weber (2000), nas suas duas provocações, entrar no ambiente cientí-fico, obviamente, isso não exonera a compreensão das teorias,

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é saber e estar disposto a “perder todas as esperanças”. O desencantamento, trabalhado pelo autor, nos colo-

ca na situação que exige o entendimento aprofundado de que os processos conceituais (teorias) científicos não são dados pela natureza nem por inspiração divina. Demanda trabalho que irrita, porque precisa retirar do automático esse tipo de aprendizado. E, se pensarmos detidamente os esquemas e modelos, não aprofundados ou refletidos, atu-am como armadilhas epistêmicas nesse sentido – a teoria é aceita como o esquema final que encontramos nos textos ou desenhamos no quadro. Eis um desafio requerido para que não seja entendida dessa forma as processualidades epis-têmicas e metodológicas das teorias.

Isso porque tais fins não visam à compreensão científica da realidade e sim a transformação a partir de um dever ser. Nessa linha, acompanhando Weber, desconhece-se que o trabalho científico está submetido (é a sua essência) a um “destino” de ser superado-ultrapassado na corrente da di-nâmica da ciência. Movimento que somente pode aconte-cer, quando as motivações são da índole das indagações e conhecimentos, ao invés de juízos de valor – eles não tra-balham na evolução da superação no sentido do conhecer contra o saber anterior; “toda a ‘realização’ científica sig-nifica novas ‘questões’ e quer ser ultrapassada, envelhecer. […] Chegamos assim ao problema do sentido da ciência” (WeBer, 2000: 12).

Pensar em fazer ciência é entender que produzimos conhe-cimento, na característica da “ciência como coisa viva e não como uma mera definição abstrata” (Peirce: CP 1.232). Portan-to, há uma ação proposta no próprio ato de fazer ciência e no que ela provoca naquele que entende (ou lê) o que foi feito e, para isso, não pode ser negado à leitura. Isto é, os movimentos, decisões e dinâmicas metódicas devem ser explícitas não des-critivamente ou de convicção, porém, reflexivamente. Assim,

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potencializa-se a inferência como ato de associar o que nunca antes pensáramos em associar (CP 5.181).

As leituras e observações apresentadas no ensino de te-orias são operadoras-associações, no sentido da abdução, cinzelado pelo lógico Perice, que possibilita estabelecer, através dessas as regularidades, o que está sendo discutido-questionado. E, nessa linha, aceitamos e devemos repassar a provocação de Weber nas primeiras décadas do Século XX,

de qualquer forma, as ideias nos surgem quando não as esperamos e não quando, sentados a nos-sa mesa de trabalho, cansamos o cérebro a pro-curá-las. Entretanto, é positivo que elas não nos ocorreriam se, anteriormente, não houvéssemos refletido longamente em nossa mesa de estudos e não houvéssemos, com devoção entusiasmada, buscado uma resposta. (WeBer, 2002:34).

Necessita-se estabelecer a questão central sobre a base conceitual e potencial de raciocínio que se entende como conhecimento teórico científico. Cientemente, como pro-fessores, devemos investir, vigorosamente, nesses processos que intensificam o avanço da ciência, do contrário as refle-xões não acontecem. Quer dizer, que as teorias engessam, porque se tornam simplesmente aplicação de ferramentas como ação recua à reflexão. Então, podemos perguntar qual a diferença e distância entre: não fazer porque não queremos; não sabemos ou não estamos cientes? Como distinguir, nessas movimentações internas, a cegueira ora voluntária, ora involuntária?

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III

Como redesenhar os estudos de teoria para sair do já feito e mantido como não-problemático? Penso que ne-cessitamos construir percursos e abordagens diferentes daquilo apresentado como ‘tornar as teorias mais fáceis’, que se apresenta como escolha obrigatória no contexto curricular atual; porém, temos razões para nos colocar-mos “contra as modas intelectuais nas ciências […]; O pen-sador da moda é, de um modo geral, prisioneiro da sua moda…” (PoPPer, 1999:9).

Situação que insere questões fortemente relacionadas às definições e rigorosidade necessárias para entender as problemáticas conceituais, quando entendidas dentro da ciência. Assim sendo, acredito que há a necessidade de sis-tematizar e explorar, aprofundar e entender os conceitos, proposições, matrizes, ideias dos raciocínios configurados na dinâmica e especificidades das teorias na linha do sa-ber comunicacional, para despontar inquietações nos es-tudantes e dar elementos que se aprofundem na irritação da dúvida, essencial ao pensamento que se distingue do lugar-comum.

Uma ação, através da qual, é possível reencontrar o eixo de progressão do conhecimento próprio da ciência e, ao mesmo tempo, descobrir indicações importantes para saber como poder prosseguir. Assim, quando pensamos a teoria como procedimento científico, vemos que age, concomi-tantemente, à aquisição de um saber, no aperfeiçoamen-to de metodologia e elaboração de uma norma (Bruyne, 1991:16). De tal forma, configura-se um saber que esclare-ce, regula e potencializa as condições do próprio processo da pesquisa, aperfeiçoando, em última instância, os méto-dos da própria regulação, i.e., a vigilância epistemológica. Em relação a isso,

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[...] a fundação de uma ciência está subordinada à delimitação de fronteiras claramente definidas que lhe conferem sua especificidade e lhe permi-tem desenvolver-se, construindo rigorosamente seus objetos de conhecimento científico [objeto de pesquisa] e seus protocolos de investigação. O conhecimento científico só merece este nome se foi elaborado segundo as regras da metodologia científica. (BRUYNE, 1991, p. 27).

Como venho destacando, no decorrer do texto, temos que aumentar a ação necessária para intensificar e entender a ciência e teoria não como adendos, uma da outra, e sim como interdependentes. Por tal motivo, se o estudante en-tende cientificamente esse desenvolvimento e configuração da teoria, nota-se a importância do processo mais do que o resultado final da mesma. Quer dizer, inferir, nas várias e diferentes interações, que levaram a esse resultado, situação intelectual que tenciona a segurança oferecida pela relação direta entre início e fim de um programa de pesquisa que viria a resultar em uma teoria. Perceber, inteligentemente, as interações é saber dos erros, idas e vindas conceituais, escolhas… movimentos essenciais no desenho da teoria.

[…] a teoria sugere onde nosso conhecimento é deficiente. O aluno que se inicia, portanto, deve conhecer a teoria existente. […] uma boa questão em ciência é um passo importante no desenvolvimento do conhecimento. Dirigindo nossa atenção para as lacunas na teoria e fato, aumentaremos a probabilidade de formular boas questões. (goode; hatt: 18).

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A proposta, então, é pensar na tríade: teoria, epistemo-logia e metodologia, que potencializa a compreensão apro-fundada do saber (dinâmica dos conceitos) da disciplina. Uma forma de responder à irritação da dúvida científica na qual se ancoram as dinâmicas teóricas. A tarefa a ser executada é sair da restrição intensamente presente, no ce-nário universitário, enquanto compreendido como oposto aos processos teóricos pela exaltação de um profissiona-lismo mal chamado de ‘prático’; raciocínio amarrado na dicotomia 0/1.

Como foi destacado, nas páginas anteriores, quando re-duzimos as teorias a esquemas, o fazemos em detrimento do fundamental: o processo das relações ali implicadas. Pre-cipita-se no resultado e não no quadro de procedimentos sobre os quais foram elaboradas as teorias; é o processo que caracteriza a ciência. Devemos buscar avançar nas ações de crítica e entender, para distinguir, o que é pensar as teorias dentro do rigor científico? Elas não são resultado de reve-lações, nem da graça de um profeta ou de um visionário, que a houvesse recebido para assegurar o conhecimento; acreditar nisso será o sacrifício intelectual.

Desafio intenso ao ensinar teoria. Parafraseando Bruyne (1991:14), as teorias como científicas são um produto do próprio devir (teleológico) da ciência, e não como respos-tas a exigências a priori (ou vindas de fora). As elaborações desse raciocínio são pela interação entre métodos e objetos de pesquisa, que também não são a priori. Daí, o sentido teleológico da elaboração progressiva das teorias que se desenham de modo cada vez mais precisa e conforma seu eixo de evolução.

O sentido sistêmico é sempre aberto, pois o conjunto das proposições que fazem uma teo-ria nunca é completo. O valor de uma teoria não

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repousa apenas nas explicações para cujo forneci-mento ela foi construída, mas também em suas consequências inesperadas5. (kaPlan: 1964:65).

Peirce vai entender o inesperado como tiquismo que vem de tyché, que quer dizer, em grego, o acaso, a sorte, o ines-perado (CP 6.102). É com base, nesse ponto, que vale es-tudar as teorias para compreender e reencontrar o eixo da sua progressão, para conhecer indicações sobre como tam-bém poderão prosseguir. Avançamos, nesta altura, sobre os planos dos conteúdos e critérios (normas) que configuram uma determinada teoria nas suas definições e propósitos como tal. Note-se que fica mais clara a ideia de que as ciên-cias buscam construir a si mesmas, ensaios-erros constantes que elaboram critérios, permitindo avançar – conforme ob-jetivos – de maneira cada vez mais ajustada sem perder o sentido da característica de falível.

Tudo isso no sentido tangencial àquilo que diz Bunge: ‘sem teoria não há ciência’, a meu ver, o ensino científico da teoria é fundamental porque, no mínimo, o estudante traba-lha em três esferas intensas e, necessariamente, articuladas:

1) o conhecimento do que se entende por dinâmicas da ciência, epistemologia e metodologia, já que as teorias não devem ser destacadas na sua representação final, sim no movimento cognitivo e experimental que as caracteriza, conceitualmente, uma das outras, como formas de enten-der o mundo com base nos critérios que as distinguem como tais;

2) o que é a teoria da comunicação, as implicâncias siste-máticas para a compreensão dos componentes desse espaço

5. Destaque meu.

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Por que ensinar Teoria (da comunicação)?

denominado comunicacional. Isso articula, como sistemas conceituais, a compreensão do progresso da pesquisa à ela-boração teórica, afastando-se da ingênua ‘soma teórica’, para se apropriar da teorização consciente, como procedimento transformador intelectual, que não deixa de suscitar novos problemas-dúvidas a serem respondidos em uma operação continua. A abstração conceitual é uma ação privilegiada da compreensão científica do mundo – o concreto pensado;

3) os pontos anteriores permitem e potencializam a con-cepção ajustada e problematizadora da teoria como um dos polos centrais da pesquisa científica, sendo fundamental na construção dos objetos e problemas de pesquisa e seu constante esclarecimento conceitual no campo teórico; i.e., o valor das escolhas na pesquisa ampara-se, nessa dinâmica, para que haja verdade e ciência.

Nessa opção epistemológica e metodológica, do ensino das teorias e teórico, entende-se a construção conceitual sobre os processos que “concedem” uma determinada cultura de pesqui-sa em relação ao que se compreende como pensamento cientí-fico. É importante entender essa dinâmica como fornecedora dos princípios para compreender os fenômenos comunicacionais apreendidos pelas teorias.

Nesse cenário teórico – de sentidos e relações – ancora-se e constrói o problema gerador da pesquisa (em comu-nicação) como abordagens e procedimentos intelectuais sustentados e construtores de uma arquitetura epistêmica. Deve deixar claro que as escolhas dessa arquitetura, que sus-tentam o teórico, não podem ser ao acaso, porque são ações de processos articulados como operadores redesenhando a episteme. A instância em que a ação analítica desempenha um papel, existe, inevitavelmente, em referência a objetivos, valores e ponderações necessária e inevitavelmente científicas.

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Dessa forma, contraria-se a doxologia6, que não busca enten-der desse modo, i.e., uma posição que desconhece a intera-ção e interdependência das pesquisas e o teórico.

Pensar o problema proposto não pode ser na matriz solipsista. De maneira urgente, devemos problematizar, conjuntamente, com professores e estudantes, a situação na nos encontramos e buscar operadores de resposta à questão: Por que ensinar (apreender) Teorias da comunicação?

Referências

Bachelard, G. – A formação do espírito científico. RJ: Contraponto, 1996.

Benveniste, Émile. – Gênese do termo ‘scientifique’. In: Pro-blemas de Lingüística Geral II. São Paulo: Pontes, 2006.

Bruyne, Paul. herMan, Jacques; schoutheete, Marc de. Di-nâmica da pesquisa em ciências sociais: os pólos da prática metodológica. RJ: F.Alves, 1991.

Bueno, Gustavo. – ¿Qué es la ciencia? Oviedo: Pentalfa, 1995. [digital em: www.filosofia.org]

goode, W. J. e hatt, P. K. – Métodos em pesquisa social. São Paulo: Ed. Nacional, 1989.

6. Conceito trabalhado e discutido por P. Bourdieu no livro organiza-do por thiollent, Michel. Crítica metodológica, investigação social e enquête operária. São Paulo: Polis, 1987. Porém já discutido por lei-Bniz (1646-1716), compreensão meramente superficial da realidade, já que se restringe a uma reprodução irreflexiva de sua aparência.

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kaPlan, Abraham. – A conduta na pesquisa. Metodologia para as Ciências do Comportamento. S.P.: E.P.U., Ed. Univ. de S.P., 1964.

Peirce, c.s. Collected Papers of C. S. Peirce. (1931-58) Vol. I-VIII, C. Hartshorne, P. Weiss & A. Burks (Eds.). Cambridge, Mass.: Harvard University Press. Citarei a obra do seguinte modo: CP X.XXX [remete aos Collected Papers mediante o volume e o parágrafo dessa edição].

PoPPer, K.R. – Em busca de um mundo melhor. SP: Martins Fontes, 2006.

raMón y cajal, Santiago. – Regras e conselhos sobre a investigação científica. São Paulo: USP, 1979 [1920].

russi-duarte, Pedro. – A dinâmica da pesquisa como pro-cessos e interações comunicacionais… reflexões. Revista de Comunicação da Universidade de Caxias do Sul – v. 4, n. 8, jul./dez. 2005, p.69-80.

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vernant, J-P. – Religions, histoires, raisons. Paris: La Découverte, 1979.

WeBer, M. – A ciência como vocação. In: Ciência e políti-ca. Duas vocações. São Paulo: Martin Claret, 2002.

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Teorias da Palavra - Pilares Fundantes das Teorias da Comunicação

6.Teorias da Palavra - Pilares Fundantes

das Teorias da Comunicação

Paulo B. C. Schettino1

Introdução

A experiência da imagem, anterior à da palavra, vem enraizar-se no corpo.

(Alfredo Bosi)

Palavra versus Imagem, Verbo versus Figura

No princípio era a Imagem, como quer Alfredo Bosi, e com ele concordamos. Mesmo em detrimento da Palavra. No que também concordamos, quando se pensa a ontogê-nese humana. A Palavra só se mantém à frente da Imagem enquanto não surge o HOMEM sobre a face da terra. A primazia da primeira sobre a segunda só se verifica no mito

1. Professor e pesquisador do Mestrado em Comunicação e Cultura da Universidade de Sorocaba-Uniso.

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criacionista judaico-cristão, enquanto agente viabilizador ou executor da vontade Divina.

Por um ato absolutamente gratuito e volitivo – a remeter ao posterior Existencialismo francês, Deus retira o Mundo do caos e, nele, coloca o coroamento de sua criação, alguns dias após de iniciada Sua tarefa. Vindo ao mundo, dife-rente dos gatos que apenas abrem seus olhos dias após o nascimento, o homem sai da caverna aquosa em que se de-senvolveu, por aproximadamente nove meses, com os olhos abertos (temos notícia de alguns que, ao se demorarem lá dentro, saem com seus olhos abertos, como soía porém, avermelhados). E, este é o seu primeiro contato com o pri-meiro espetáculo audiovisual que terá notícia: o mundo em que viverá e com o qual terá que se amalgamar.

As nossas primeiras Imagens do Mundo, a princípio, construídas pelos dois modos de percepção ou apreensão que portamos ao nascer – os sentidos inatos de ver e ouvir – nos parecem confusas e distorcidas e sem significação. Irritantes, mesmo! Pois, a miúde, sobressaltamo-nos com o excesso de LUZ ou de SOM.

Assim, podemos observar que o cinema veio com o olho da câmera a reproduzir o nosso olhar e substituir o itine-rário de nossas primeiras tentativas de leitura e seguintes registros de nossas imagens primordiais. Ao abrirmos os olhos, temos, ao nosso redor, um espaço sem limites seja em qual direção for. Que varremos quando deslocamos os olhos para lá e para cá, sempre atraídos ou pelo brilho da Luz ou pela sensação apreendida, ancilar, do Som. Ao di-rigirmos os olhos em virtude dos estímulos luminosos ou sonoros, estamos, na verdade, a recortar o mundo, visando um ponto particular, inaugurando, com o desvio da aten-ção, o que mais tarde chamaríamos de OLHAR.

E o cinema, por sua vez, ao construir sua linguagem pró-pria, como meio de comunicação, chamaria esse processo

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de passagem de um plano geral para um plano detalhe, a excluir todo o resto que nos circunda. E, assim, ficamos no berço ou enxergar – depende – em alternar o olhar em suas duas formas primordiais: o geral e a busca da atração pelo particular em sua tentativa de recorte do mundo infinito que se nos oferece aos olhos.

“Se oriente, rapaz! Pela constelação do Cruzeiro do Sul...” cantou, com muita propriedade, o nosso poeta po-pular, pois, desde os primeiros tempos, o homem aprendeu a se fixar no ponto que a estrela se transforma à distância, e nas figuras totêmicas formadas por determinados agrupa-mentos seus que se repetem a cada noite. Logo, do ponto à linha foi um passo, pois, desde o talhe reto da palmeira aos horizontes longínquos, ela se figurava. E os dois eixos retos, já orientados pela possibilidade de serem percorridos para lá ou para cá e, ainda para cima e para baixo, dividiram o espaço antes infinito em quatro regiões a facilitar a identifi-cação das disposições dos objetos entre si.

As linhas fechadas formando as figuras planas e, quatro dessas fechando um espaço tridimensional, permitiram a posse da mãe-terra. E, dessa forma, desde os filósofos gregos pré-socráticos o número 10 (a soma de 1+2+3+4, respectiva-mente – o ponto, a linha, a figura plana e a figura volumé-trica) passou a representar a terra e sua grafia.

A Sagração da Palavra ou a Palavra Sagrada

Sempre que voltamos nossa atenção para as questões concernentes à palavra, reiteradas vezes encontramos a cita-ção das palavras iniciais do Evangelho de São João, a ponto de se constituírem autênticos clichês e estarem gravadas na memória de muitos:

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(1) No princípio era a Palavra, e a Palavra estava junto de Deus, e a palavra era Deus.

(2) Ela existia, no princípio, junto de Deus.

(3) Tudo foi feito por meio dela, e sem ela nada foi feito de tudo o que existe.

(4) Nela estava a vida, e a vida era a luz dos homens.

(5) E a luz brilha nas trevas, e as trevas não conse-guiram dominá-la. (BÍBLIA SAGRADA, 2001).

Talvez, seja esse o texto principal responsável pelo senti-mento de sacralidade que também muitos a ela associam. E, não poderia ser de outra maneira, pois deixa claro, e de modo explícito, a sua condição de deidade ao indiferenciá-la da figura do Deus único. Poder-se-ia, também, interpretá-la, porém, mantendo sua unicidade a ele, como a sua ex-pressão. A locução “No princípio, invariavelmente, remete a todos os “princípios”, por serem as palavras iniciais do primeiro livro do antigo testamento – o Gênesis:

(1) No princípio, Deus criou o céu e a terra.

(2) A terra estava deserta e vazia, as trevas co-briam o abismo e o Espírito de Deus pairava sobre as águas.

(3) Deus disse: ‘Faça-se a luz’! E a luz se fez.

(4) Deus viu que a luz era boa. Deus separou a luz das trevas.

(5) À luz Deus chamou ‘dia’ e às trevas chamou ‘noite’. Houve uma tarde e uma manhã: o pri-meiro dia.

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(16) Deus fez os dois grandes luzeiros, o luzeiro maior para presidir ao dia e o luzeiro menor para presidir à noite, e também as estrelas.

(17) Deus colocou-os, no firmamento do céu, para iluminar a terra, presidir ao dia e à noite, e separar a luz das trevas. (BÍBLIA SAGRADA, 2001).

Por um ato de vontade expressado pela palavra de co-mando do Deus da teoria criacionista do mundo, os dois princípios ‘Céu’ e ‘Terra’ foram criados, segundo a versão judaica, já inspirada pelos mitos babilônicos e egípcios, e figurariam na Teogonia de Hesíodo, por volta do oitavo sé-culo anterior à era cristã, como os primeiros deuses gregos – Urano e Geia, retirados do Caos por ordem divina.

Na seqüência da criação, antes do homem, é preparado o mundo, palco onde desenrolará a tragédia humana. E, no Céu, teriam sido colocadas as fontes de Luz – as estrelas e, dentre elas, as duas maiores, o Sol e a Lua, a separar o cla-ro da escuridão das Trevas, presidindo respectivamente o Dia e a Noite. Apolo e Ártemis passariam a ser, para os hu-manos, tanto os grandes deuses de todas as culturas como a materialização da onipotência de um deus maior.

A Magia da Palavra ou a Palavra Mágica.

“Abra-te Sésamo!”, bradava Ali-Babá, diante da porta da caverna, e esta lhe obedecia – ou melhor, obedecia às pala-vras certas, les mots justes, como diria um francês. Através da cultura passada, de gerações a gerações, permanece quase que inalterada a crença na proibição de serem pronuncia-dos os “nomes” de deuses e demônios, ou dos males que

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afligem os homens. A palavra, sonoramente emitida, os atrairia sobre o emissor.

Por muito tempo, temia-se que a simples nominação fizes-se materializar-se a entidade. Criou-se o hábito da eufemização, tal como sucedeu com a palavra aterrorizante da doença do ‘câncer’ que, quando não havia jeito de não se falar dela, dizia-se: “aquela” ou “aquilo”, ou ainda, “fulano morreu de ‘doença ruim’”. Por outro lado, tendo-se como objetivo a materializa-ção da deidade, a emissão da palavra, magicamente, presta-se à “invocação” de seres e deuses e monstros.

Em muitas culturas arcaicas, acreditava-se que a simples emissão da palavra, independente do conhecimento de seu conteúdo pelo emissor, seria suficiente para desencadear os seus efeitos.

Ritmada e, ritualisticamente, reiterada a palavra, desse modo, em sua forma de mantra, estabelece conexões entre as mentes ou entre a mente do emissor e a deidade. Se a pala-vra começa o seu reinado, no batismo das coisas do mundo, conforme Platão, em seu Crátilo, amplia o seu poder, quan-do associada a outras, conseguindo, dessa maneira, construir o Mito. E, essa palavra grega, tão polissêmica que aceita até mesmo a sinonímia tão popularizada de “inverdade”, em sua acepção imediata, nos torna capaz de reinventar ou recontar o mundo. É com a Perífrase que, ao substituir a palavra por um seu composto, que conseguimos transcender “as coisas” indo muito além da capacidade de narrar suas ações.

Desse modo, a Perífrase explica a Palavra, no mesmo tempo em que a embute, a narra, desde a mais simples forma, ao utili-zar uma única palavra, até as mais complexas, com um número delas cada vez maior, a depender da capacidade de abstração e representação de seu pensar por parte do emissor.

Tais frases, verdadeiras construções de palavras usadas como “tijolos” ou “fios”, reproduzidas à exaustão, pelas su-cessivas gerações, como herança cultural de um grupo social

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ou tribo humana – caracterizando o que reconhecemos como Tradição – irão se constituir no “conhecimento” socializado que, entranhado no imaginário popular, transformar-se-ão em um arcabouço de crenças comuns, geradoras de compor-tamentos formais.

Em seu conto De noite na cama, que compõe o livro lan-çado entre nós, sob o título Big Loira, a escritora americana, Dorothy Parker, coloca sua personagem insone a se revolver na cama, nas altas horas da madrugada, com uma frase de La Rochefoucauld a martelar o seu cérebro, impedindo-lhe o sono. Também seu compatriota Gore Vidal, em seu livro De Fato e de Ficção, nos garante que “as palavras nos gover-nam muito mais do que a anatomia”.

De todas as interpretações possíveis, dessa frase, há uma que se avantaja sobre as outras: a supremacia do mundo das ideias transformadas em palavras em relação até mesmo a própria hy-bris da humanidade com o seu jugo de apetites e pulsões.

Ditado popular, aforismo, máxima, moral, pensamento, provérbio – seja que for o nome a ser dado a esse constructo de palavras – são frases que se transformam em verdadeiras ca-misas de força do comportamento humano, ou se preferirmos, de nosso ethos, deixando, ao nosso livre-arbítrio, a escolha da “normalidade” ou do comportamento aberrante.

Se existe a ocultação da palavra pela perífrase, esta, por seu turno, também passa a ser embutida nas Narrativas que sempre começam com “Era uma vez...” e se constituem na própria es-sência do Mito e, que lidas ou ouvidas – de todo modo: “apre-endidas” ao colocarem, em cena, o herói e suas façanhas -, após a sua semiose, reduzem-se a uma única frase. E, em sua simpli-cidade, responde à indagação:

“O que está querendo me dizer?”

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A Impotência da Palavra ou a Palavra Inútil

Dois poetas. Um brasileiro – Olavo Bilac, e outro, por-tuguês – Fernando Pessoa, foram os desmancha-prazeres daqueles que enalteciam a magia e a sacralidade da Palavra. Ambos foram os arautos de uma nova visão que retirava da Palavra sua aura mística, inda que pensemos, ironicamente, terem sido cultores da arte de entretecer palavras em um jeito mágico, como viu bem mais tarde Chico Buarque, em seu texto poético Construção.

Concordamos com o norte-americano Michael Argyle, quando diz da impossibilidade das palavras, na comuni-cação do cotidiano, conseguirem representar a intangibi-lidade de sentimentos e emoções, deixando para o silêncio – leia-se: a ausência de sons – a possibilidade de interpre-tação, por parte do interlocutor, através de comunicação não-verbal.

De nosso Bilac, temos em seu famoso soneto Inania Verba, a ideia da palavra impotente para traduzir os mais diversos sentimentos humanos. Indaga quem haveria de “exprimir, alma impotente e escrava, o que a boca não diz, o que a mão não escreve”. E, acrescenta ser a palavra pesa-da ao abafar a Ideia leve, comparada ao perfume e clarão, a refulgir e a voar. “Quando estamos em diálogo com o outro e, em nosso discurso, tratamos de coisas intangíveis, o me-lhor é o ‘silêncio”, dada à incapacidade de nossas palavras traduzirem de modo total o que gostaríamos de dizer.

Também o poeta português Fernando Pessoa nos asse-gura que “a alma de outrem é outro universo com o qual não há comunicação possível”. Segundo Pessoa, a alma de outrem são apenas gestos e palavras, com alguma suposição possível de nossa parte.

Quando nos esquecemos dessas advertências, incorremos em sério equívoco, pois também estamos a nos esquecer da

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presunção de que, por mais que nos esforcemos, haverá sempre uma distância enorme entre o que estamos nos pro-pondo a dizer e o que gostaríamos que fosse entendido e, também, das leituras erradas que fazemos do discurso verbal alheio. O que leva o nosso poeta Thiago de Mello a falar no “pântano enganoso das bocas”.

Assim, no entender do poeta, as palavras que saem da boca do enunciador do discurso seriam como os miasmas fétidos de um campo alagadiço e brejoso ou como os seus contumazes habitantes repulsivos: rastejantes e viscosos e coleantes como répteis e batráquios.

A Palavra e as Literaturas

O escritor português José Saramago talvez tenha sido quem figurativizou, de modo maior, as possibilidades da plu-risignificação das palavras. Ele brinca, literalmente, com as sensações de sua personagem ante o temor da palavra pro-nunciada erradamente. De novo, nos voltamos à anterior sacralidade da palavra que melhor seria não ser dita. Algo talvez, como preconiza o velho adágio popular: “Em boca fechada não entra mosquito”.

No entanto, Saramago demonstra toda sua maestria em tecer, com palavras, o texto verbal, quando cria a multipli-cação de sentidos ou significações possíveis para uma única palavra em um fervilhar de raios erisdicentes de uma estre-la. Segundo Oscar Wilde, em boca de uma personagem do livro O Retrato de Dorian Gray, a capacidade de trocar a palavra, imediatamente, ligada às coisas por outra seria a essência da poesia. E vai mais longe, ácido: o poeta que chama enxada de enxada deveria, por castigo, ser a ela – à coisa – atrelado.

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O diálogo fora difícil, com alçapões e portas falsas surgindo a cada passo, o mais pequeno deslize poderia tê-lo arrastado a uma confissão completa se não fosse estar o seu espírito aten-to aos múltiplos sentidos das palavras que cau-telosamente ia pronunciando, sobretudo aque-las que parecem ter um sentido só, com elas é que é preciso mais cuidado. Ao contrário do que em geral se crê, sentido e significado nunca foram a mesma coisa, o significado fica-se logo por aí, é directo, literal, explícito, fechado em si mesmo, unívoco, por assim dizer, ao passo que o sentido não é capaz de permanecer quieto, fervilha de sentidos segundos, terceiros e quar-tos, de direcções irradiantes que se vão dividin-do e subdividindo em ramos e ramilhos, até se perderem de vista, o sentido de cada palavra parece-se com uma estrela quando se põe a pro-jectar marés vivas pelo espaço fora, ventos cós-micos, perturbações magnéticas, aflições. (José Saramago, Todos os nomes).

Sem receio de sermos redundantes, gostaríamos de ex-plicitar o que entendemos por linguagem poética – prática que permeia todos os textos literários, prosa ou poesia – como a capacidade ou a sensibilidade de criar figuras com palavras trocando, como quer Wilde, a sua significação imediata, dicionarística, por outras de amplitude infinita, como quer Saramago.

Comparações, metáforas e alegorias usadas pelo autor-poeta, como lhe aprouver e, como resultado: fazer-nos levi-tar em direção ao êxtase, ao sublime. Nesse sentido, nada melhor para ilustrar a potencialidade literária das palavras do que o jogo que nos propõe João Cabral de Melo Neto:

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Tecendo a manhã

Um galo sozinho não tece uma manhã:ele precisará sempre de outros galos.De um que apanhe esse grito que elee o lance a outro; de um outro galoque apanhe o grito que um galo antese o lance a outro; e de outros galosque com muitos outros galos se cruzemos fios de sol de seus gritos de galopara que a manhã, desde uma teia tênue,se vá tecendo, entre todos os galos.

E se encorpando em tela, entre todos,se erguendo tenda, onde entrem todos,se entretendendo para todos, no toldo(a manhã) que plana livre de armação.A manhã, toldo de um tecido tão aéreoque, tecido, se eleva por si: luz balão.

(João Cabral de Melo Neto in Poesias Completas - A educação pela pedra 1962-1965).

A beleza do amanhecer – fenômeno cotidiano do qual, por mais das vezes, não nos damos conta – transforma-se em um toldo de luz tecido por fios sonoros do canto dos galos. A imaterialidade da luz e do som, base de todo espe-táculo audiovisual – real ou representado – ‘materializa-se em suportes materiais do claro do dia. Talvez, estejamos diante da mais pura e cristalina concepção do que seria a arte literária.

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A Palavra e o Cinema

A partir do final da década de 20, do século passado, a tecnologia da gravação óptica do som – grafia do som utilizando luz – veio junto, com a tecnologia das imagens a cores, alterar profundamente o fazer cinematográfico. A partir de então, as palavras pronunciadas pelas personagens dos filmes cinematográficos poderiam ser ouvidas. Até en-tão, a primazia do cinema era toda da imagem. As palavras, poucas, e usadas somente quando estritamente necessárias para a compreensão da narrativa, limitavam-se em sua for-ma desenhadas, portanto também imagens, em cartelas, denominadas intertítulos. O som limitava-se à música a ca-racterizar a origem milenar grega do melodrama. Desde en-tão, início da década de 30, as personagens imagéticas do cinema começaram a emitir sonoramente as palavras. A fantasia platônica antecipadora da alegoria da caverna, em sua A República, concretizava-se diante dos, agora, olhos e ouvidos do espectador. E, como querem alguns, o cinema tornou-se “tagarela”. Não mais parou de falar.

Charles Chaplin reagiu violentamente: realizando o seu Luzes da Cidade (City Lights), totalmente “mudo, lançando-o em 1931, em pleno frenesi causado pelo advento do cine-ma sonoro. Repetiu sua repulsa aos “talkies” fazendo, ainda mudo, o seu Tempos Modernos (Modern Times, 1936).

O som que se ouvia era da música, como convinha ao melodrama. O filme Jejum de Amor (His girl Friday, 1940) extrapola: as personagens aturdem os ouvidos dos especta-dores em seu falar rápido e caudaloso, a desviar a atenção da imagem – entidade, até então, a pedra angular do cine-ma: imagem em que seus elementos pictóricos se movem. Tendo em vista que o foco de nosso presente trabalho de pesquisa repousa sobre a palavra, é bom que nos detenha-mos sobre o aparente paradoxo de se chamar de mudo um

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filme em que as personagens estão sempre a dialogar, fato visível pelo movimento labial que pode ser facilmente ob-servado. O filme, então, poderia ser considerado “mudo” apenas em função da impossibilidade técnica de registrar o som das falas.

Anos depois, o diretor Billy Wilder colocará na boca de sua personagem maior – Norma Desmond, de Crepúsculo dos Deuses (Sunset Boulevard, 1950) – a reclamação de que “vocês, escritores, estragaram com as palavras e o cinema, e que não eram absolutamente necessárias, e conclui – ‘afi-nal, tínhamos rosto!’”.

Joseph Mankiewicz irá mais longe ainda, ao construir filmes em que as imagens das personagens utilizam-se, lite-rariamente, das palavras para a enunciação de seus discur-sos – pensa-se, principalmente em Quem é o infiel? (A letter to three wives, 1949) e A Malvada (All about Eve, 1950). O cinema jamais seria o mesmo, a amálgama entre palavra e imagem tornar-se-ia constante nos filmes. Um estudo des-sas relações é feita pelo escritor Paul Auster e o cineasta Wayne Wang, no filme que assinam juntos – Cortina de fu-maça (Smoke, 1995) – quando nos brindam, ao final, com o mesmo texto mostrado de três formas diferentes: a narrati-va oral, a passagem para o texto literário escrito e, por fim, a mesma narrativa – sem palavras, apenas com música de fundo – totalmente imagética.

A Palavra e a Academia

Ao linguista suíço, Ferdinand de Saussure, cabe o posto de criador da moderna Linguística que se desprende, por sua ação, dos rumos anteriores, quase exclusivos de estudarem a evolução da língua dos humanos sob o aspecto da historicidade.

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Portanto, é a Saussure que devemos o estudo das lín-guas naturais, visto, agora, como um fenômeno universal e efetuado, a partir das unidades discretas que chamamos de signos. Inaugura-se a Semiologia e seu texto – póstumo, e coligido por seus alunos – antecipa-se à Semiótica, ao cha-mar atenção para o estudo particularizado da comunicação humana em função do uso de outros sinais diferentes dos signos linguísticos. E, a palavra – seja sob o aspecto da fala ou da língua – como a base para a constituição e formação dos grupos sociais, façanha somente possível pela utilização de uma linguagem comum propiciadora da capacidade de comunicar de seus elementos.

Theodosius Dobzhansky, Teilhard de Chardin, e Tzvetan Todorov, em suas obras, faz-nos voltar para o caminho per-corrido pelo homem ao longo de sua história, a sua interação com seus pares, e a construção das sociedades humanas.

Lev Semyonovich Vygotsky, Aleksandr Romanovich Lu-ria e Jean Piaget debruçam-se sobre a aquisição das palavras e a aprendizagem das linguagens.

Com a complementação de obras de outros autores coligi-dos, em nossa relação de fontes de referência, podemos con-ceituar a educação, a comunicação e a cultura, bem como as interrelações que se podem estabelecer entre estas categorias. Para nós, a cultura seria vista como um estado mutante, por-tanto, semovente, cinético e, apenas estático, quando isola-do em um determinado ponto de sua evolução que a torna resultante dos fenômenos comunicacionais ocorridos sobre e entre os elementos constituintes do grupo social. Muito embora seja preciso apontar a possibilidade de ocorrência do self made man é, na socialização do processo educacional, que se observa a dotação da capacidade de comunicação do indivíduo enquanto isolado do grupo a que pertence.

Na contracorrente de inúmeras visões da educação que a veem como formadora de cidadãos uniformes e nutriz de

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pensamento único, para nós, ela nada mais seria além de um processo de aquisição de linguagens com o fito de pro-ver o indivíduo de diferentes formas de expressão.

Desse modo, sob nosso ponto de vista, a Comunicação Hu-mana seria um fenômeno refém da Educação vista como um processo gerador que a torna capaz de produzir alterações e modificações na Cultura, tanto individual quanto do grupo.

Assim, verificamos que a Academia se rende de tal for-ma à palavra que não aceita, peremptoriamente, reconhe-cer qualquer tipo de conhecimento adquirido a não ser que seja traduzido em palavras.

Considerações Finais

Propomos a constituição do que chamamos Teorias da Palavra como a reunião dos diferentes estudos sob diferen-tes vertentes, cada qual a explorar um dos possíveis aspectos da Palavra.

Pensamos como modelo a Antropologia, que pode ser vista como a constituição de uma nova ciência, que se criou com a atenção voltada para um só objeto – o homem – a reunir estudos e pesquisas e pesquisadores emprestados das outras ciências. Também, no caso da palavra, podemos observar a diversidade de aproximações e métodos que bus-camos com intuito de adquirir conhecimento sobre faces e interfaces que vão desde a sua produção, utilização e disse-minação entre os indivíduos de um mesmo grupo social.

Eis, aqui, onde, talvez seja possível identificar o principal foco de interesse que nos move a propor uma unidade com-posta pelas teorias construídas sobre ela, ao longo do tempo, por diversos autores das mais diferentes formações científi-cas. Procuraremos esclarecer melhor a nossa proposta.

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Se a Comunicação, que entendemos como um dos prin-cipais fenômenos humanos, inicia-se na tentativa, por par-te dos homens, de construções de linguagens, como quer Hjelmslev, ao colocar o plano da Expressão anteriormente ao Comunicacional, é, no entanto, sob a forma de Comu-nicação Verbal que têm início as possibilidades de trocas de informações entre os humanos.

Estes dois planos hyelmslevianos – o da Forma e o Semân-tico, a priori, separariam os estudos teóricos da construção das Linguagens daqueles que se preocupam, de forma prag-mática, com os usos que nós e os media que a inventamos delas fazemos.

Desde os gregos que a physis do mundo perde, em fun-ção da palavra, a sua hylé, que é projetada por inteiro no interior do cérebro humano, agora, sob a forma abstrata e intangível da imagem (Apoiamo-nos no jovem Sartre em A imaginação e em nosso Blikstein em seu Kaspar Hauser).

O século passado foi reconhecido como Imagético, em virtude do desenvolvimento das tecnologias da figura mate-rializada e disseminada em profusão pelos media fotografia, cinema e televisão. Deixamos de lado outros argumentos que poderíamos assacar para a justificação de nossa pro-posta da reunião das pesquisas e pesquisadores que tratam de maneira diversificada da questão da palavra em troca de apenas um: a servidão que ainda ela nos impõe, mesmo em nossa contemporaneidade – tempo do ‘pós-pós’ de tudo: da modernidade do livro da tecnologia e até mesmo do huma-nismo (como se fosse possível!).

Nunca se falou ou se escreveu tanto – sempre a Palavra, oral ou escrita, mercê da portabilidade e mobilidade dos artefatos tecnológicos colocados à disposição dos utentes! Nem diante dos fatos acima expostos ousaríamos a tolice de presumir ou decretar a morte da imagem. Antes, preferimos tentar a congruência entre as duas formas de expressão, e

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aventar a hipótese de sua reciprocidade de tal monta a pon-to de as indiferenciar, já que consideramos ambas como tex-to e verificamos que ultrapassamos o estágio de transformar palavras em imagens e imagens em palavras.

Logo, abramos, pois, um espaço às Teorias da Palavra, dentro das Teorias da Comunicação!

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Tiago Quiroga1

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Apresentação: sobre tempo e conhecimento

O presente artigo apresenta-se como contribuição ao que se vem chamando hoje da elaboração de uma episteme comunicacional. Ressaltamos, de início, a temporalidade da temática aqui trabalhada, pois, de certo modo, nos parece que a mesma resulta de um conjunto de novas perguntas que tratam, na realidade, de antigos problemas. De fato, se recuamos no tempo e pensamos a questão da comunicação como fenômeno, prática ou expressão social, observamos que

1. Professor adjunto da Faculdade de Comunicação, UnB, área de teorias da comunicação e métodos de pesquisa. Doutor em Ciências da Comuni-cação na Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo.

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ela não só acompanha, como muitas vezes, acaba por fundar importantes passagens históricas. É o caso, por exemplo, do papel exercido pela linguagem, pela cultura oral junto ao ad-vento das cidades, na passagem da Grécia antiga ao período clássico; da mesma forma, na passagem ao período medie-val, quando ocupa o lugar de mediação entre o homem e o divino; assim como na era moderna, quando emergem as diversas técnicas oriundas da invenção da energia elétrica.

Em nossa atualidade, o cenário não parece ser muito di-ferente. Se a tomamos sob a perspectiva da chamada globali-zação – termo que tem sido usado para definir o momento atual – veremos que o fenômeno comunicação encontra-se precisamente entre aqueles responsáveis por singularizar nossa contemporaneidade. Entendida como modalidade atual, contínua ou não, da modernidade, pedaço da Histó-ria dotado de tardia estrutura industrial, a globalização só se tornaria inteligível, a partir da possibilidade potencialmen-te infinita de se comunicar. Significa dizer que as diversas referências ao termo que, então, vem sendo utilizado para melhor descrever nossa atualidade passam, de uma ma-neira, ou de outra, pelas atribuições das novas tecnologias comunicacionais: são, elas próprias, um dos modos pelos quais se legitima, consolida-se, o presente projeto. Se glo-balizar significa operar na direção de uma suposta unidade; se significa unificar, englobar, sob um todo único, experi-ências, até então, dispersas e fragmentadas; ou integrar, na mesma lógica, seja econômica, social ou cultural, aspectos contingenciais, presumidamente, estilhaçados que, agora, na era da globalização, poderiam ser finalmente unificados, essa seria, muito propriamente, a tarefa endereçada às no-vas tecnologias comunicacionais. Sob o signo da informação, as redes e tecnologias informacionais tornariam possível, en-tão, a necessária superação de espaço e tempo, responsável pela produção de determinada convergência, cuja envergadura

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resultaria num tipo de experiência de integração que viria a ser chamada de global. A elas caberia renovar o projeto em torno de determinada unidade que, agora, seria viabili-zada pela confiança instaurada junto a seus altos índices e padrões de eficiência. Precisamente, nessa direção, a comunicação aparece como crivo identitário de uma época e, sobretudo, modo pelo qual ela acaba por diferenciar-se de qualquer outro período histórico.

Na realidade, se tivéssemos que apontar aquele que seria o grande diferencial de nossa contingência histórica, certa-mente poderíamos mencionar as infindáveis possibilidades de comunicar que nossa contemporaneidade veio a pro-duzir. Assim sendo, seja na passagem do período antigo à era clássica – em decorrência da busca da verdade, quando então se perguntava pelas regras dos discursos proferidos na pólis grega, – seja na modernidade – quando ainda se procurou pela mediação entre o homem e o divino – ou em nossa atualidade – período que se caracteriza pelo suposto encontro de uma emancipação humana em decorrência da chegada das tecnologias do futuro –, em todos os casos, aponta-se para a centralidade do fenômeno da comunica-ção, se não como elemento fundador, certamente como elemento decisivo dos processos e passagens históricas.

As perguntas, entretanto, endereçadas a questão é que parecem mudar, isto é, se a comunicação, enquanto fenô-meno social é tão antiga quanto à própria existência hu-mana, as inquietações ou dúvidas por ela suscitadas, é que parecem transformar-se. Se, por um lado, podemos enfa-tizar a presença do fenômeno comunicativo nas diversas transformações societárias, ao longo dos anos, por outro, torna-se necessário apontar para aquelas que seriam mu-danças radicais quanto às interrogações em torno de suas diferentes configurações. Precisamente em torno dessa questão encontra-se a pergunta em torno da elaboração de

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uma episteme comunicacional. Embora o fenômeno da co-municação remonte a períodos muito antigos, as perguntas pela legitimidade de uma reflexão sistematizada em torno do assunto atendem a um contexto bastante específico, isto é, somente após o surgimento de diversos modos e supor-tes de um determinado tipo de comunicar, seguido pela consolidação de práticas de ensino e reflexão dedicados a pensar o fenômeno, é que se começa, então, a germinar a necessidade de se fundar uma ciência da comunicação. Significa dizer que a pergunta em torno da elaboração de uma episteme comunicacional não remonta a qualquer época ou tipo de comunicação. Certamente, é o processo histórico que culmina, hoje, com a chamada globalização, aquele que a coloca, na ordem do dia, ou seja, tal conjun-tura aparece aí, dentre outras coisas, para designar o amplo desenvolvimento das diversas práticas comunicacionais que acaba por realçar o debate em torno da elaboração de uma episteme comunicacional. Trata-se, em síntese, do estreito vínculo entre o aparecimento e a formulação das diferen-tes perguntas e prospecções reflexivas e as injunções de seu contexto histórico. Da imbricação fundamental entre tem-po e produção do conhecimento. Da indispensável consi-deração do tempo como categoria histórica, na ordem do conhecimento, isto é, da temporalidade como instância decisiva das diversas formulações reflexivas em torno da produção do conhecimento.2

2. Apesar da riqueza relativa às diferentes “genealogias” que introduzem o tempo, na ordem do conhecimento, sobretudo, no século XIX, gosta-ríamos de apontar aquela que, de certa forma, nos parece perpassá-las invariavelmente, por isso mesmo considerada espécie de matriz, a qual vem situar a presente referência. Trata-se de pensar a problemática do tempo a partir da inclusão do presente naquilo que se põe a pensar, ou seja, a partir do “presente como acontecimento filosófico ao qual per-tence o filósofo que fala”. Já não fazemos, aqui, referência a qualquer

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Desejamos, pois, investigar em que medida e de que ma-neira o contexto histórico que caracteriza, nossa atualidade, a globalização, acaba por oferecer importantes elementos no sen-tido de pensar a elaboração de uma episteme comunicacional.3 Afinal, de que maneira e em que intensidade essa ambiência histórica nos possibilita a formulação de uma episteme comu-nicacional? Afinal, o que seria uma episteme comunicacional? O que deveria constar em determinada prática científica para que obtenha o título de área específica do conhecimento? Que ca-racterísticas devem nortear as produções teóricas que, em seu conjunto, poderiam vir a produzir uma dada experiência autô-noma? Ou, então, que critérios devem integrar uma totalidade reflexiva, segundo a qual se possa obter a chancela em torno de dado saber constituído? Essas, portanto, são as perguntas a que se refere nosso artigo. O debate não é simples, muito menos se encontra resolvido. Gostaríamos de contribuir, pensando, precisamente, o “lugar” da produção teórica como pressuposto fundamental no processo que pode vir a

tempo, em qualquer instância ou modalidade; mas, sobretudo àquele que, na história, remete ao problema da atualidade como lugar ao qual pertence o filósofo. Nos referimos, muito propriamente, à experiência do presente, cuja originalidade reside no fato de se constituir, ele mesmo, o modo pelo qual se tornou possível incluir aquele que pensa naquilo que se pensa, ou seja, trata-se aí da radicalidade da atualidade como sendo a própria instância em que se pode encontrar aquilo que faz sen-tido para uma reflexão filosófica. Tal conformação em torno do tempo remete ao texto de Foucault que, a partir da investigação de outros dois importantes textos de Kant – o primeiro em resposta à pergunta que lhe teria sido feita “O que é a Aufklarung?”, e o segundo intitulado “O que é a revolução?” –, chama atenção para o problema que envolve a inclusão da atualidade na ordem do conhecimento. FOUCAULT, Mi-chel. O que é o Iluminismo In O Dossier: últimas entrevistas. Carlos Henrique Escobar (Org.). Rio de Janeiro: Taurus Editora, 1984

3. Expressão que dá título ao artigo de Muniz Sodré publicado na revis-ta Matrizes. n.1 ECA- USP, 10/2007.

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conferir à comunicação, o título de episteme ou de ciência, legitimando-a como área específica e autônoma na ordem do conhecimento.

Epistemologia como instância de trabalho

As perguntas nos colocam em meio a um conjunto de empenhos reunidos, hoje, sob a semântica de uma epistemo-logia da comunicação,4 espécie de órbita em torno da qual se encontram congregados os diversos esforços na compreensão da “lógica própria do mundo científico”,5 em especial, aque-les que permeiam as práticas científicas em comunicação. Ex-pressão que reúne em torno de sua terminologia as diversas ações que se têm dedicado a pensar os desdobramentos da comunicação, como disciplina na ordem do conhecimen-to, a epistemologia da comunicação pode ser definida como instância de estudos, cuja preocupação central, entre tantas outras importantes, propõe-se oferecer a tal prática científi-ca legitimidade equivalente à encontrada em outras áreas do saber historicamente consolidadas6. Caso, por exemplo, da

4. Expressão que ganha amplo espectro, sobretudo, a partir da publi-cação de Epistemologia da Comunicação. LOPES, Maria Immacolata Vas-sallo de (org.). Edições Loyola: São Paulo. 2003.

5. BOURDIEU, Pierre. Os usos sociais da ciência: por uma sociologia clínica do campo científico. São Paulo: Unesp, 2004: 17.

6. São exemplos dessas áreas “a Sociologia, contemporânea da Revolu-ção Industrial, que surge para interrogar sobre os fundamentos do elo social e as mutações das sociedades modernas, privilegiando as inves-tigações sobre o trabalho, a família, o poder, os grupos e suas desigual-dades, a fim de detectar relações gerais entre fatos históricos; enquanto filha da modernidade, se dá por tarefa pensar os contornos da socieda-de nova [...] a Linguística que surge para analisar as funções, a natureza

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Sociologia, Linguística, Filosofia, da Medicina, do Direito, da Matemática ou da Física. De fato, embora constitua um modo particular de reflexão, a epistemologia da comunica-ção, enquanto instância em torno da qual se concentram os avanços e dilemas dessa prática científica, remete ainda a uma ampla e imprecisa área de estudos que envolvem o desenvolvimento da ciência de um modo geral. Incluído na tradição francesa de filosofia da ciência, Bourdieu concebe a epistemologia como espaço dos possíveis, como disciplina, por meio da qual é possível compreender as distinções, as disparidades, “o princípio das opções estratégicas e dos in-vestimentos científicos, integrados ou não, numa intenção prática de acumulação”.7 Segundo o autor, a disciplina tem como desígnio fundamental a “mobilização de um coleti-vo, em torno de interrogações relativamente elaboradas, em condições tais que se possa produzir uma verdade sobre si próprio que, certamente, ele é o único capaz de produzir”.8 De acordo com Bourdieu, trata-se da energia depreendida na investigação das condições de possibilidade que cercam as verdades científicas, submetidas, sobretudo, à figura de suas respectivas instituições. Tal atividade tem a própria construção da ciência como objeto de investigação, que pode ser percebida como uma “reflexão coletiva sobre si própria”9 e que se torna a maneira pela qual se pode “instaurar [não só]

e as regras da linguagem humana dando-se por objetivo fundamental compor uma espécie de “gramática do pensamento”, sem deixar de preocupar-se com o problema da origem das línguas, das relações entre linguagem e pensamento, etc.” JAPIASSU, Hilton. A crise das Ciências Humanas (no prelo): 21.

7. Idem, ibidem: 18.

8. BOURDIEU, Pierre. Os usos sociais da ciência. Op. cit.: 18.

9. Idem, ibidem: 17.

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uma tal estrutura de troca que traga em si mesma o princípio de sua regulação”10 como, também, a aceitação em torno de outras configurações de raciocínio que, porventura, ainda não tenham sido estabelecidas.

Trata-se, aqui, da epistemologia como disciplina responsá-vel pelo desencadeamento de uma espécie de autoanálise coleti-va, que tem como principal objetivo promover as “condições de conceber novas formas de reflexão”.11 À disciplina, por-tanto, poderíamos endereçar uma atividade tanto normativa quanto heurística e historiográfica. No primeiro caso, a ela pertenceria um tipo de trabalho de valoração, cujos critérios estabeleceriam as condições de possibilidade, os títulos de legitimi-dade12 de determinada prática científica ou círculo de estudos. No segundo, tratar-se-ia de um tipo de empreendimento que repousa na compreensão das “ciências em via de se fazerem, em seu processo de gênese, de formação e de estruturação progressiva”,13 modalidade de reflexão, que corresponde às prospecções em torno da natureza embrionária de um fa-zer científico, em vias de se constituir enquanto tal, isto é, enquanto atividade que, possivelmente, pode suscitar novas descobertas, dependendo dos métodos utilizados e relações conceituais estabelecidas em dada área do conhecimento que, nesse caso, encontra-se em progressiva estruturação. Ambas as definições nos parecem plausíveis, uma vez que apontam para a atividade epistemológica como investigação precisamente situada naquilo que poderíamos chamar de uma teoria do

10. Idem, ibidem: 18.

11. Idem, ibidem: 17.

12. JAPIASSU, Hilton e MARCONDES, Danilo. Dicionário Básico de Filosofia. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1996: 84.

13. Idem, ibidem: 84.

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conhecimento, ou seja, que tem por objetivo fundamental pensar sua construção, oferecendo, sobretudo, “uma ideia do estado das interrogações que se colocam a propósito da ciên-cia no universo da investigação sobre a ciência”.14

A especificidade comunicacional: de prática científica a saber constituído

Em se tratando de uma epistemologia da comunicação, é

necessário que nos remetamos ao paradoxo fundamental que a constitui. Se, por um lado, vasta é a produção teórica que caracteriza o campo, por outro, dado o próprio caráter incipiente da área, não se pode dizer o mesmo quanto às reflexões em torno de sua epistemologia. Na verdade, em-bora importantíssimos, poucos são os livros e autores que se vêm dedicando a realizar o debate sobre o tema.15Apesar da centralidade da demanda, raras são as análises que se

14. BOURDIEU, Pierre. Para uma sociologia da ciência. Lisboa: Edições, 200: 18.

15. Vale destacar, aqui, a importância de trabalhos como: LOPES, Ma-ria Immacolata Vassallo de, e NAVARRO Raúl Fuentes. Comunicación: campo y objeto de estúdio. México: Iteso, 2001; e LOPES, Maria Im-macolata Vassallo de. Epistemologia da Comunicação, Op. cit.; FAUSTO NETO, A., AIDAR PRADO, J. L., DAYRELL PORTO, S. (orgs). Cam-po da comunicação. João Pessoa: Editora Universitária, 2001; FRANCA, V., MARTINO, L., HOHLFELDT, A. (orgs). Teorias da comunicação. Petrópolis: Vozes, 2001; WEBER, M. H., BENTZ, I., HOHLFELDT, A. (orgs). Tensões e objetos da pesquisa em comunicação. Porto Alegre: sulina, 2002; BRAGA, José Luis. A sociedade enfrenta sua mídia: dispositivos sociais de critica midiática. São Paulo: Paulus, 2006; FERREIRA, Gio-vandro Marcus e MARTINO, Luiz Cláudio. Teorias da Comunicação: epistemologia, ensino, discurso e recepção. Salvador: Edufba, 2007; entre outros.

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vêm preocupando em oferecer mais solidez teórica à ques-tão, tão presente e, de certa forma, tão urgente no meio acadêmico de comunicação.

Embora existam, por exemplo, nos diversos congressos de pesquisa, espaços institucionalizados que se propõem a pensar sobre o assunto, observa-se, ainda, grande dificulda-de em organizar tal quadro de reflexão, sobretudo, no que diz respeito ao agendamento dos termos e questões que, uma vez sistematizados, poderiam vir a produzir senão maior avanço em torno do assunto, pelo menos maior visibilidade da temática de trabalho. Outro importante aspecto remete aos múltiplos e desvairados desencontros que envolvem a reflexão em torno de uma episteme comunicacional. Espé-cie de grande mosaico,cujo estilhaçamento a faz permanecer limitada a enormes desperdícios teóricos; posto que a re-flexão epistemológica em comunicação parece reproduzir típicas explorações lógicas “que procuram pelo gato preto dentro do quarto escuro que não está lá”.16 A adjetivação tem causa própria e deriva do modo pelo qual surgem as primeiras práticas tidas como pioneiras, nos estudos comu-nicacionais, isto é, decisivamente marcadas pelo crivo uni-forme do instrumento em que a comunicação eclode como meio para se alcançar determinado fim, perspectiva que a consolida como poderosa ferramenta dos mais diferentes episódios sociais. O mesmo acontece no caso do debate epistemológico em que prevalece a concepção que a con-sagra, quase sempre, como aporte de outras disciplinas na ordem do conhecimento. Diferente de disciplinas clássicas, cujo acúmulo teórico lhes assegura matrizes conceituais e objetos próprios de investigação, responsáveis, então, por

16. CARNEIRO LEÃO, Emmanuel. Aprendendo a pensar. Vol. II. Petró-polis: Vozes, 2002: 129.

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leituras específicas acerca dos diversos fenômenos huma-nos, as incursões teóricas do campo comunicacional carac-terizam-se, de um modo geral, como grandes rebatedoras de outras áreas do saber. Tal contingência tem resultado na constituição de uma enorme variedade de temas e objetos de estudo, predominantemente, marcados por forte e ambí-guo entrecruzamento de sentidos, que mais se aproximam de grandes colchas de retalhos do que propriamente da uni-dade que se espera realizar em torno do objeto de estudo. Embora, reconheçamos o vigor embrionário de tal debate – de fato haveria, nessa abordagem, um grande potencial a ser explorado –, chamamos atenção para o modo pelo qual se tem praticado tal interdisciplinaridade. Isso porque, na realidade, tal dinâmica tem consolidado, muitas vezes, um mero acoplamento de teorias, ou seja, uma aproximação sem síntese das diversas modalidades exploratórias de pes-quisa em que, de um modo geral, as diferentes correntes teóricas são acopladas e, assim, permanecem sob o signo da interdisciplinaridade. Em outras palavras, acreditamos ser insuficiente a fundamentação de que se trata de uma área interdisciplinar, posto que a justificativa, tal qual a conce-bemos hoje, apenas aponta para um grande acoplamento teórico. Em nosso entendimento, tal característica repre-senta a grande dificuldade de avançarmos em torno do pro-blema que envolve a conquista de objeto. Na verdade, em detrimento de uma ciência interdisciplinar, o que teríamos, hoje, seria uma ampla aceitação da abordagem que legitima uma perspectiva instrumental da comunicação, em que ela aparece, quase sempre, como instrumento, utensílio, aporte de outras disciplinas, o que acaba por circunscrevê-la como “lugar de passagem”. Sendo assim, ou seja, em se tratan-do da enorme confusão que caracteriza o presente debate, torna-se necessária não apenas alguma serenidade no ato de nomear as questões, tornando o problema o menos opaco

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possível; mas, sobretudo, a adoção de uma determinada cli-vagem teórica comum, que permita algum tipo de conver-gência possível. A necessidade torna-se ainda mais urgente por se estar referindo, aqui, à modalidade de reflexão da produção do saber científico, cuja legitimidade funda-se, efetivamente, no hábito de compartir. Sejam os diversos avanços, sejam os inúmeros retrocessos, trata-se sempre do resultado de uma determinada prática, cujo núcleo central, intransponível, fundamenta-se no rito de compartilhar os problemas estudados ainda que para discordar, radicalmen-te, das proposições apresentadas. Significa dizer, portanto, que uma das primeiras demandas que se coloca diz respeito à apresentação dos problemas que perpassam o presente de-bate. Levando em consideração os limites que o formato do presente trabalho nos impõe, gostaríamos de chamar aten-ção para aquela que nos parece ser uma das problemáticas centrais, no atual debate, que cerca a constituição de uma episteme comunicacional. Parece-nos que, precisamente aí, ou seja, no vácuo entre o que seria sua caracterização, en-quanto círculo de estudos e sua possível constituição como disciplina na ordem do saber, é que se encontra situado o problema fundamental referente à problemática epistemo-lógica em questão.

Em seu artigo A constituição do campo da comunica-ção, Braga apresenta melhor a questão.17 A título de uso mais adequado dos termos aos quais devemos nos re-meter, quando nos referimos à reflexão sobre o campo da comunicação, ele introduz o que seria não apenas uma melhor definição do problema aí empreendido; mas, a nosso ver, o cerne do debate em torno de uma

17. BRAGA, José Luiz. Constituição do campo da Comunicação In Verso e Reverso. Revista de Comunicação. Ano 14, n. 30, São Leopoldo, 2000: 11- 39.

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episteme da comunicação. Na apresentação da análise que traz, em seu próprio título, a temática de trabalho, o autor defende o uso do termo constituição, em detri-mento de construção, quando nos referimos ao processo de sedimentação de tal campo científico. Segundo ele, a opção ocorre porque na terminologia escolhida “compa-recem dois sentidos complementares relevantes para o (...) tema: o constituir-se enquanto processo de elaboração do campo – a construção propriamente dita; e a organização interna da coisa, que assim a constitui”.18 Apesar de trans-parecer leviandade – a opção pelo nome em si poderia sugerir outras proposições, tais como formulação, caracte-rização, elaboração ou edificação, enfim, variações do mes-mo tema –, a adesão ao termo significa a compreensão da problemática fundamental que, então, o caracteriza. Ao termo constituição remeter-se-ia duplo vínculo. O pri-meiro, com o qual estamos de acordo, motivo pelo qual também fazemos a opção por seu uso, remeter-se-ia um fazer em si, referente ao conjunto de esforços que envol-vem a comunicação enquanto círculo de estudos social-mente legitimado. Desde as mais diferentes práticas de pesquisa, incluindo-se aí os diversos cultivos teóricos, encaminhamentos metodológicos, as chamadas tentati-vas de conquista de objeto de estudo, até os mais varia-dos rituais de avaliação, hierarquização e classificação do material produzido, trata-se aí daquilo que resulta da soma de ações e produções comuns que caracteri-zam a comunicação como legítima representante de um campo específico do conhecimento. Resultado desse con-junto de esforços, o campo da comunicação responderia, hoje, por um considerável acúmulo e desenvolvimento de

18. Idem, ibidem: 11.

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trabalho, cuja dinâmica de elaboração e organização interna, amplamente desenvolvida, aponta para uma possível auto-nomia da área. Significa dizer que não parece restar dúvidas de que a esse fazer em si pertence à consolidação de um largo espectro de estudos e pesquisas, cuja produção cien-tífica indica a aceitação consensual da comunicação como campo de estudos socialmente legitimado.

O que parece importar é a constatação inarre-dável, na presente situação histórico-social, da objetivação de um espaço de estudos, reflexões e pesquisa percebidos largamente como rele-vantes, espaço este que, ao ser nomeado pelo termo “Comunicação” ou pela expressão “Co-municação Social”, encontra forte consenso quanto ao de que se está falando – ainda que o contorno e a organização desse espaço estejam longe de ser consensuais [...]. 19

Entretanto, ao mesmo empenho que o caracteriza como campo do conhecimento, pertenceria à possibilidade da con-quista do título de episteme comunicacional. Embora a análise de Braga se refira propriamente à problemática que permeia o campo, é necessário trazê-la para pensar não apenas sua constitui-ção enquanto círculo de estudos, mas como disciplina na ordem do conhecimento. Isso porque, como observa o autor e, com o que, aliás estamos de acordo, não parece restar dúvidas quanto ao consenso acerca da comunicação social como cír-culo de estudos, reflexão e prática de pesquisa, notadamen-te de grande importância. Trata-se propriamente da legiti-midade social resultante do sólido acúmulo da produção da

19. Idem.

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presente prática científica, que não parece deixar dúvidas, quanto a sua condição de genuíno representante de campo específico do conhecimento.

No entanto, a questão que parece fundar, se não a princi-pal, pelo menos uma das questões mais importantes, no que diz respeito ao debate em epistemologia da comunicação, trata da passagem da presente prática científica à condição de saber constituído, ou seja, à categoria de disciplina na ordem do co-nhecimento. Esse, portanto, o segundo aspecto decorrente da opção pelo termo constituição, que embora situe a problemática em torno do campo pode ser estendido para pensar uma episte-me da comunicação. Nesse caso, além de um irrevogável fazer in-terno, inerente a sua auto-organização, agregar-se-ia à constituição do campo a conquista da chancela de episteme comunicacional, termo segundo o qual a presente prática científica seria elevada à condição de disciplina na ordem do conhecimento. Categoria submetida ao alcance de determinados postulados científicos, o título de disciplina, na ordem do saber, depende efetivamente do grau de correspondência entre a produção de determinada prática científica e a ressonância e legitimidade, que ela seja ca-paz de provocar junto aos critérios responsáveis pela realização de tal atribuição. Essa, portanto, a problemática central que institui não apenas o termo ao qual devemos nos remeter, quando da caracterização do campo; mas, também e, sobre-tudo, o local em que reside o paradoxo embrionário do de-bate acerca de uma episteme comunicacional. Se, enquanto exercício da prática de pesquisa, responsável pela difusão de um amplo tipo de conhecimento, existe, na comunicação, campo largamente consolidado, quando nos remetemos à clivagem epistemológica, instância em que encontramos os postulados, segundos os quais se deve ou não converter de-terminado acúmulo teórico em área específica do conheci-mento, já não se poderia falar o mesmo. E por quê?

No mesmo artigo, Braga defende ser ociosa a questão que

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se dedica a “debater sobre o estatuto acadêmico do campo da comunicação – se de ciência, arte, disciplina, ou apenas gêne-ro de literatura”.20 Para ele, a alcunha correspondente ao termo campo seria não apenas suficiente, mas “confortável [...] a todos os nossos propósitos práticos de designação”. Nesse caso, vale observar que o autor não usa o termo episteme ou ciência, quan-do se refere à constituição de determinado espaço de estudo e pesquisa. Segundo ele, a questão a que se refere o termo constitui-ção diz respeito aos problemas e desenvolvimento de parâmetros do campo. Entretanto, em nosso entendimento, se quisermos pensar a constituição de uma episteme comunicacional, como é o caso, acreditamos ser fundamental entrar no problema que diz respeito a seu estatuto disciplinar. Não por opção ou desejo de normatividade, mas pelo simples fato de que é precisamente em torno de tal questão que podemos encontrar as distinções entre os termos, premissas e referenciais teóricos, segundo os quais se alcança, ou não, a condição de área do saber. Dito de outra maneira, se desejamos, aqui, pensar a constituição de uma episteme comunicacional e, uma vez que ela encontra seu fulcro central na passagem da qualidade de prática científica à possível condição de disciplina, na ordem do conhecimento, trata-se, pois, de investigar os postulados, segundo os quais se outorga ou se atribui tal conformação.

O conceito de Campo Social

Na impossibilidade de percorrer a totalidade dos auto-res, optamos por realizar nossa prospecção a partir de Bour-

20. Idem.

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dieu21, mediante a formulação do conceito de campo, em especial de campo científico, amplamente mencionado nas ocasiões que envolvem o debate em torno de uma episteme comunicacional. Caracterizada por poucas regularidades discursivas, a reflexão que determina a constituição de uma episteme comunicacional acaba tendo, na difusão de tal conceito, uma de suas principais referências. A adesão ao conceito, portanto, seja como meio de situar tal proble-mática, seja como prerrogativa na participação do presente debate, acaba transformando-se numa das raras exceções, em que se observa uma espécie de convergência teórica pos-sível. Não, necessariamente, no sentido do alcance e propa-gação de concordâncias comuns, mas do estabelecimento de marcos reflexivos compartilhados que, de certa forma, nos parecem auxiliar no avanço das proposições acerca do assunto. Significa dizer que, sendo muitas as perspectivas que constituem tal abordagem, podemos mencionar a refle-xão apresentada sobre o assunto em Bourdieu, uma vez que

21. Em Ofício de sociólogo o autor procura apresentar os níveis de cientificidade que caracterizam as ciências sociais que, por natureza, nascem e se constituem “coladas” aos eventos e contingências so-ciais. A aproximação com o caso da comunicação nos parece razoável dado que a mesma também se vê diante da necessidade de justificar a legitimidade científica de suas diferentes práticas de pesquisa. Para Bourdieu, então, um dos maiores desafios aí trata da necessidade de ar-ticular os “fatos do mundo” aos saberes específicos, ou seja, no caso das ciências sociais, o acontecimento político aos pressupostos de cientifi-cidade. Bourdieu, Pierre Chamboredon, Jean-Claude; Passeron, Jean-Claude. Ofício de Sociólogo: metodologia da pesquisa na sociologia. Petrópolis,RJ: Editores Vozes: 2007. Segundo ele, “uma das maiores dificuldades encontradas pelas ciências sociais para chegarem à auto-nomia é o fato de que pessoas pouco competentes, do ponto de vista de normas específicas, possam sempre intervir em nome de princípios heterônomos sem serem imediatamente desqualificadas”. Bourdieu, Pierre. Os usos sociais da ciência.

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ali é possível identificar valiosas diferenciações entre o que seria a ideia de campo social, campo científico, disciplina na ordem do conhecimento, constituição de objeto de estudo, enfim, questões que cercam a especificidade da produção científica. Questões que apontam para o valor distintivo ou dife-rencial22 que caracteriza a especialização do discurso científico, cuja originalidade o autonomiza e distingue de qualquer outro campo social. Trata-se, enfim, de pensar o problema da auto-nomia do saber, isto é, da capacidade de refratar ou retraduzir os “fatos do mundo”, segundo atributos próprios.

Do mais geral ao mais específico, comecemos pela refe-rência ao primeiro conceito. Próprio de uma reflexão de ordem epistemológica, a expressão campo social surge como terceira opção às dicotomias representadas pelas principais tradições teóricas que permeiam, segundo Bourdieu, a so-ciologia da ciência. Segundo o autor, a disciplina que tem como objetivo principal fazer da própria ciência seu obje-to de análise, empenho esse também circunscrito à história da ciência (o que também poderia ser dito sobre a história da literatura, da arte, da filosofia, sendo elas mesmas seus respectivos objetos), caracteriza-se, fundamentalmente, por duas grandes tradições teóricas: a externalista ou externa e a internalista ou interna. A primeira delas, diz Bourdieu, “frequentemente representada por pessoas que se filiam ao marxismo”,23 de costume vincula as diversas produções a seu contexto, interpretando-as, a partir de sua relação com os aspectos sociais e econômicos. Tal tradição tem como pres-suposto fundamental a ideia de que toda produção teórica é sempre o resultado de determinadas condições sociais.

Nessa perspectiva, a ciência é concebida como resultado

22. Idem, ibidem: 132.

23. BOURDIEU, Pierre. Os usos sociais da ciência. Op. cit.: 19.

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dos engendramentos contínuos que permeiam a conjuntu-ra social, característica que faz com que traga sempre, em seu bojo, determinada dimensão política, refletindo o sen-timento das variadas conjunções históricas. Necessariamen-te, resultante das chamadas leis sociais, a produção científi-ca, nessa perspectiva, estaria referida ao macrocosmo.24 Nesse caso, os produtos epistêmicos não apenas tomariam como sub-sídio os elementos oferecidos por sua atualidade, ou seja, os as-pectos dados por seu contexto histórico-social; mas, sobretudo, acabariam por expressar, em suas próprias categorias analíticas, os postulados e agenciamentos de sua época.

Entretanto, afirma ele, é também verdade que tais pro-dutos carregam consigo níveis de autonomia25 em relação ao contexto social, ou seja, não se trata aqui de tábulas rasas, lisas, totalmente vulneráveis aos estímulos externos. Muito diferente dessa, diz ele, seria aquela outra tradição, erguida, a partir do fetichismo do texto autonomizado,26 tradição inter-nalista ou interna, que se caracterizaria pela crença no único e exclusivo contato com as obras, isto é, com as diferen-tes produções do espírito humano, como suficiente para se realizar determinado relato com pretensões científicas.27 A linhagem seria resultado do que Bourdieu denominou construção de espaços relativamente autônomos, chamados de microcosmos, portadores de leis, estruturas e funcionamen-tos específicos que, ao lhe permitir filtrar e traduzir, a sua

24. Idem, ibidem: 21.

25. Expressão cunhada por Bourdieu no texto O campo científico. O cam-po científico In ORTIZ, Renato (org.). Bourdieu: sociologia. São Paulo: Ed. Ática: 1983: 127.

26. BOURDIEU, Pierre. Os usos sociais da ciência. Op. cit.: 19.

27. Idem.

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maneira, as diversas influências do mundo social, acabaria por lhes garantir determinado nível de autonomia em rela-ção àquele último.

Resultante, então, do que o autor chama de erro de curto-circuito entre estes dois pólos, o texto e o contexto, instaura-se a noção de campo. Diferente do que se supõe em ambas as tradições, para se entender uma determinada manifes-tação cultural, artística ou científica, não seria suficiente estabelecer uma relação direta com seu contexto, muito menos delimitar sua análise à obra em si mesma. Segundo Bourdieu, entre esses dois pólos, não necessariamente com vínculo direto, existiria um universo intermediário, um espaço composto por agentes e instituições, entendido como campo, responsável, por exemplo, por “produzir, reproduzir e di-fundir a arte, a literatura e a ciência”.28 O conceito surge, na realidade, para dar conta não apenas do que ele chamou de um universo intermediário entre um pólo e outro; mas, so-bretudo, para mostrar que, em se tratando da historicização de qualquer produção do espírito humano, não basta ape-nas aderir a uma ou outra tradição. Significa dizer que as variadas tentativas de discorrer, historicamente, acerca das diferentes formas de expressão humana, sejam elas artísti-cas, literárias ou científicas, não se devem circunscrever a uma abordagem unilateral da obra, muito menos acreditar que apenas relacionando-a com seu contexto social poder-se-ão obter respostas satisfatórias quanto a suas verdades internas. O conceito de campo, nesse sentido, não apenas não nega as duas tradições, como também tenta articulá-las, tanto destacando a importância da contextualização de determinada produção em sua atualidade – afinal, não exis-tiriam verdades trans-históricas – quanto enfatizando seu

28. Idem, ibidem: 20.

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domínio específico, o qual se realiza através do manuseio e da apropriação de seus fundamentos teóricos. Segundo Bourdieu, portanto, trata-se aqui de pensar o conceito de campo como opção à ideia de ciência pura, “totalmente livre de qualquer necessidade social, assim como da “ciência es-crava”, sujeita a todas as demandas político-econômicas”.29

O conceito de campo é híbrido, porque remete ao uni-verso intermediário entre o texto e o contexto, ou seja, à con-cepção que procura integrar aquilo que seria uma exten-são do mundo social e todas as determinações a que esse está sujeito a um conjunto de competências ou atributos específicos que, embora influenciados pelos primeiros, não necessariamente lhe dizem respeito. A concepção ergue-se em torno da mistura do que seria uma formulação da física com aquelas outras que caracterizam as ciências sociais, ou seja, da existência de um espaço social, ao modo da física de um campo de forças, criado por agentes e instituições, cujas lutas e embates se realizam com intuito de preservá-lo ou modificá-lo, segundo a posição de cada membro do grupo daquela área que se encontra envolvido. Revestidos de rela-ções de poder, de lucros, monopólios, estratégias e interes-ses específicos, os campos sociais são criados por agentes e instituições e só por intermédio deles existem.

Trata-se de um espaço social cuja estrutura é determinada pelas relações objetivas entre os agentes e instituições. Sua com-preensão só pode ser realizada, a partir do entendimento de seus lugares de fala, isto é, das posições que ocupa cada membro dentro da estrutura da qual faz parte. Significa di-zer não apenas que não há campo social sem agentes e insti-tuições, mas que a própria virtude e o alcance das questões por ele colocadas dependem da tomada de posição dos que

29. Idem, ibidem: 21.

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aí se encontram em condição de reciprocidade. A prerro-gativa acena fundamentalmente para a condição de re-ciprocidade que lhes deve ser comum; afinal, trata-se de conceito fundado na física, que o concebe enquanto sis-tema, por sua vez, só viabilizado se constituído pela co-existência de partes. A adjetivação da intensidade e dos modos pelos quais cada um deles ocuparia determinado lugar, nessa estrutura, estaria diretamente vinculada à aquisição e distribuição de capital produzido interna-mente. Segundo Bourdieu, a importância de cada agente (indivíduo ou instituição) na estrutura do campo é defi-nida pela distribuição e posse do vulto de capital que cada um adquire ou conquista, em relação ao outro, em determinado momento. Estaria, então, precisamente na magnitude e no calibre desse capital adquirido e distri-buído o elemento que introduz a diferença e os lugares ocupados entre agentes e instituições num determinado campo de forças.

Em outras palavras, os agentes (indivíduos ou instituições) caracterizados pelo volume de seu capital determinam a estrutura do campo em proporção ao seu peso, que de-pende do peso de todos os outros agentes, isto é, de todo o espaço [...] Cada agente age sob a pressão da estrutura do espaço que se impõe a ele tanto mais brutalmente quanto seu peso relativo seja mais frágil.30

30. Idem, ibidem: 24.

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O campo científico e o problema da autonomia

Mas, o que entende o autor por capital? A que termos ele se refere, quando lhe oferece papel tão determinante na presente terminologia? As respostas remetem diretamen-te às competências e aos atributos específicos segundo os quais esses campos sociais exprimiriam as influências do mundo social. Significa dizer que, de fato, os campos são universos sociais como quaisquer outros, perpassados pe-las mesmas leis que regem o chamado ambiente macrocos-mo. Entretanto, a tais ambientes responderiam de forma bastante peculiar, ou seja, embora necessariamente regi-dos pelas leis do mundo social, os campos também seriam constituídos de leis próprias e específicas que não necessa-riamente se encontrariam submetidas a esse mundo. Eles seriam, portanto, regidos por regras e formas próprias, isto é, também obedeceriam a suas determinações internas, que corresponderiam ao tipo de produção e aos fatores que en-volvem cada atividade, em cada campo, e que conseqüen-temente respondem pela especificidade das traduções que aí se realizam em relação às influências do mundo social. Nesse sentido, independente da natureza das influências do mundo social elas serão sempre o resultado das media-ções realizadas pelos princípios internos que regem cada campo. Daí, afirma Bourdieu, advém o princípio de auto-nomia de que goza cada campo, o qual, então, determina sua relativa independência frente ao mundo social. Aos ele-mentos e leis específicas que regem cada campo, portanto, remeter-se-ia o princípio de autonomia, ou seja, tanto mais autônomo será um campo quanto maior for sua capacidade de refratar, de afastar, de se desvincular do mundo social, tornando-se independente. Competência essa que o autor chama de disposição de retraduzir as influências do mundo social tornando-se o mais autônomo possível.

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Uma das manifestações mais visíveis da autono-mia do campo é sua capacidade de refratar, re-traduzindo sob forma específica as pressões ou as demandas externas. [...] Dizemos que quanto mais autônomo for um campo, maior será seu poder de refração e mais as imposições externas serão transfiguradas, a ponto, freqüentemente, de se tornarem perfeitamente irreconhecíveis. O grau de autonomia de um campo tem por indicador principal seu poder de refração, de retradução.31

Nesse sentido, não nos referimos a qualquer campo, mas àqueles caracterizados por competências específicas, responsáveis por traduzir o mundo social de forma peculiar porque passíveis de atribuições próprias. São exemplos des-sas modalidades os chamados campos da literatura, das ar-tes e, sobretudo, aquele que nos interessa diretamente que é o campo científico. Ou seja, se até agora falávamos do campo como uma extensão do mundo social, premissa que continua valendo – afinal, trata-se aqui do importante pilar sobre o qual se ergue esse conceito –, quando nos depara-mos com o princípio de autonomia, passamos a pensá-lo, também, como instância, através da qual o universo, dito macrocosmo, é decididamente reinventado pela introdu-ção de manejos e competências específicos. Evidentemente, não se trata aqui de uma reinvenção em que os campos dei-xam de exercer qualquer tipo de vínculo com as leis sociais, mas da reinvenção do mundo social de que são constituídos os campos, ou seja, apesar de perpassados pelas diversas leis

31. Idem, ibidem: 22.

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sociais, tais instâncias são sempre o resultado de um conjunto de leituras específicas sobre a realidade. Trata-se, portanto, dos diversos tipos de apropriação do mundo social de que são constituídos os campos.

Segundo suas determinações internas, os campos são sempre o resultado não apenas de interpretações próprias da realidade, mas de aperfeiçoamentos e apreciações espe-cíficos responsáveis, então, pela configuração de espaços autônomos que usufruem de relativa independência dian-te do mundo social. Embora sob as mesmas influências, é bem possível que campos como o da literatura, da arte ou da ciência, por exemplo, produzam leituras bastante dife-rentes de um mesmo acontecimento ou universo macros-social. Isso significa dizer que, além de extensão do mundo social, os campos são também o resultado de estruturas de funcionamento que obedecem a leis e princípios internos que muitas vezes nada têm a ver com ambiente histórico-social. Trata-se da existência de formas, de regras e princípios próprios de funcionamento que introduzem à corporeidade de determinado campo contornos e delineamentos específicos.

Em torno destes últimos, então, os campos não apenas construiriam suas individualidades, uma vez que estariam se-parados do mundo social, como também garantiriam níveis relativos de autonomia ao longo de seu desenvolvimento. Assim sendo, podemos nos perguntar: mas que princípios internos de funcionamento são esses? Que vínculos estabe-lecem com a chamada conquista de uma relativa autono-mia? Trata-se, aqui, da compreensão dos engendramentos através dos quais cada campo conquista sua autonomia. Na-turalmente, não se pretende aqui realizar uma prospecção minuciosa de cada um deles, discutindo, detalhadamen-te, os aspectos que os constituem enquanto tal. Além de não existir desenvolvimento uniforme, isto é, além de cada campo corresponder a critérios específicos de autonomia,

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da mesma forma, não nos parece existir uma determinada ordem que os enfileiraria, um a um, caracterizando a descri-ção do conjunto de campos (jurídico, literário, burocrático, artístico...). Nesse sentido, não apenas cada campo desen-volve mecanismos pelos quais se obtém certa especificida-de, ou seja, garante algum tipo de autonomia, como também seria o próprio interesse do pesquisador o elemento deci-sivo no aprofundamento e problematização das questões internas que os constituem. Em nosso caso, em se tratando do campo científico, podemos perguntar: onde estariam ou que mecanismos lhe proporcionam a conquista de tal prin-cípio? Em outras palavras, o que garantiria especificidade e, portanto, autonomia ao campo científico? Ou, ainda, que princípios internos são responsáveis por conferir, ao campo científico, a credibilidade necessária na formulação de suas diversas leituras do mundo, incluídas aquelas do dito uni-verso social? Segundo Bourdieu,

o campo científico, enquanto sistema de rela-ções objetivas entre posições adquiridas (em lutas anteriores) é o lugar, o espaço de jogo de uma luta concorrencial. O que está em jogo es-pecificamente, nessa luta, é o monopólio da au-toridade científica definida, de maneira insepa-rável, como capacidade técnica e poder social; ou, se quisermos, o monopólio da competência científica, compreendida enquanto capacidade de falar e agir legitimamente (isto é, de maneira autorizada e com autoridade), que é socialmen-te outorgada a um agente determinado.32

32. BOURDIEU, Pierre. O campo científico. Op. cit.: 123.

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A definição concebe o campo como mundo social como outro qualquer, instância constituída de embates e disputas concorrenciais, permeada por agentes e instituições respon-sáveis pela realização, manutenção e propagação de deter-minada prática ou diligência do espírito, nesse caso, mais especificamente, da atividade científica. Entretanto, apesar de referi-se às lutas concorrenciais – característica que de certa forma define muito propriamente a idéia de campo, dado que estabelece o social como elemento que o perpassa e integra igualmente como espaço do embate –, Bourdieu, também, chama atenção para o problema que cerca, sobre-tudo, a competência específica do campo. Ele nos reme-te ao problema do monopólio da autoridade científica, ponto fundamental no que tange às definições de capital científico, especificidade disciplinar e princípio de autonomia. Para ele, são as lutas concorrenciais em torno do monopólio da autoridade científica que criam a estrutura do próprio cam-po. Essas, por sua vez, não se realizam de qualquer forma, em qualquer âmbito, isto é, não se trataria de qualquer em-bate, em qualquer nível, mas, de outra maneira, daqueles que resultam do desenvolvimento e distribuição de um tipo específico de capital denominado científico.

O capital científico é um conjunto de proprie-dades que são produto de atos de conhecimen-to e de reconhecimento realizados por agentes envolvidos no campo científico e dotados, por isso, de categorias de percepção específicas que lhes permitem fazer as diferenças pertinentes, conformes ao princípio de pertinência cons-titutivo do nomos do campo. Esta percepção diacrítica só é acessível aos detentores de um suficiente capital cultural incorporado. Exis-tir, cientificamente, significa ter “algo mais”,

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segundo as categorias de percepção em vigor no campo, ou seja, para os pares (“ter dado um contributo”). É sobressair (positivamente) através de um contributo distintivo.33

As respostas, portanto, que cercam a especificidade do cam-po científico remetem, necessariamente, à expressão capital cien-tífico, segundo Bourdieu, responsável não apenas pela determi-nação interna da estrutura do campo em questão, mas também por seu entendimento como apropriação específica do mundo social. Mais do que isso, se os campos são extensões do mundo social, sendo por ele regidos e perpassados, da mesma forma, também seriam o resultado de estruturas específicas cujas deter-minações internas estariam diretamente vinculadas à aquisição e distribuição do montante de capital produzido internamente por seus agentes e instituições. Nesse sentido, tanto cada campo seria o resultado de um determinado tipo de acúmulo de capital quanto sua especificidade e autonomia a ele estariam diretamen-te vinculadas. Ou seja, quanto maior fosse o acúmulo de capital de cada campo maior seria sua especificidade e, conseqüente-mente, mais consolidado estaria seu princípio de autonomia. Na direção inversa, afirma o autor, quanto maior for o grau de politização de determinado campo maior será seu princípio de heteronomia,34 isto é, menor será seu grau de autonomia.

33. BOURDIEU, Pierre. Para uma sociologia da ciência. Op. cit.: 80.

34. Expressão utilizada por Bourdieu para tratar do problema que cerca as ciências sociais que, por natureza, nascem e se constituem “coladas” aos eventos e contingências sociais. Segundo ele, a maior dificuldade aí é a necessidade de articular os “fatos do mundo” aos saberes específi-cos, ou seja, no caso das ciências sociais, o acontecimento político aos pressupostos de cientificidade. Segundo ele, “uma das maiores dificul-dades encontradas pelas ciências sociais para chegarem à autonomia é o fato de que pessoas pouco competentes, do ponto de vista de normas

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[...] Cada campo é o lugar de constituição de uma forma específica de capital [...] O capital científico é uma espécie particular do capital simbólico (o qual, sabe-se, é sempre fundado sobre atos de conhecimento e reconhecimento) que consiste no reconhecimento (ou no crédi-to) atribuído pelo conjunto de pares – concor-rentes no interior do campo científico.35

No caso do campo científico, especificamente, trata-se da aquisição, do acúmulo e da distribuição de capital científico, objetivação particular de um tipo de capital mais amplo, denominado simbólico,36 lugar das determinações internas responsáveis por sua especificidade. Trata-se do embate entre relações objetivas que faz do campo científico objeto de luta tanto em sua representação quanto em sua realidade,37 ou seja, campo de disputas concorrenciais que se realizam em torno da produção, do acúmulo e da divisão de dois tipos de capital científico. O primeiro é um capital intelec-tual, dito “puro”, que se refere à competência técnica, ao acúmulo do conhecimento e prestígio pessoal junto aos

específicas, possam sempre intervir em nome de princípios heterôno-mos sem serem imediatamente desqualificadas”. BOURDIEU, Pierre. Os usos sociais da ciência. Op. cit.: 22.

35. Idem, ibidem: 26.

36. Bourdieu define como capital simbólico o “conjunto de proprie-dades distintivas que existe na e pela percepção de agentes dotados de categorias de percepção adequadas, categorias que se adquirem princi-palmente através da experiência da estrutura da distribuição desse capi-tal no interior do espaço social ou de um microcosmo social particular como o campo científico. BOURDIEU, Pierre. Para uma sociologia da ciência. Op. cit.: 80.

37. BOURDIEU, Pierre. Os usos sociais da ciência. Op. cit.: 29.

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pares; o segundo, capital político ou temporal, diz respeito aos ofícios administrativos, à ocupação de cargos institucio-nais em trabalhos e projetos científicos, tais como chefias de departamentos, participação em comissões de avaliação, coordenação de laboratórios, etc.

O campo é o lugar de duas espécies de capital científico: um capital de autoridade propria-mente científica e um capital de poder sobre o mundo científico, que pode ser acumulado por vias que não são puramente científicas (ou seja, em especial através das instituições que alberga) e que é o princípio burocrático de poderes tem-porais sobre o campo científico como os dos mi-nistros e dos ministérios, dos decanos, dos reito-res ou dos administradores científicos [...] 38

Segundo Bourdieu, são tipos de capital que têm leis de acumulação e transmissão bastante distintas. No primeiro caso, do capital científico puro, tipo de conhecimento fra-gilmente objetivado, impreciso e relativamente indeterminado,39 trata-se de uma modalidade de acúmulo que precisa de um tempo bastante extenso para ser transmitido. Sua consti-tuição é lenta, seu desabrochar, vagaroso, e, muitas vezes, apenas seu componente mais formal é comunicado. Em sua transmissão, haveria sempre um elemento “carismático, ligado aos dons pessoais que não pode ser objeto de portaria de nomeação”.40

38. BOURDIEU, Pierre. Para uma sociologia da ciência. Op. cit.: 82.

39. BOURDIEAU, Pierre. Os usos sociais da ciência. Op. cit.: 36.

40. Idem.

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Em torno de seus pressupostos, encontram-se, efetiva-mente, os avanços e aberturas referentes às explorações científicas, proporcionados por pesquisas e formulações teóricas que têm como objetivo a progressão do campo, ou seja, os diversos aportes e subsídios que, de forma legítima, se empenham na direção de proporcionar a chamada evolu-ção da ciência. Isso, de certa forma, independeria daquele outro poder institucionalizado, vinculando-se, majoritaria-mente, à questão do prestígio intelectual, à conquista de consideração e respeito junto a seus pares. Nesse tipo de capital residiria a ideia de um necessário reconhecimento acerca de determinada competência técnica, socialmente le-gitimada, modo pelo qual se alcançaria certa autoridade no discorrer científico. Ao tema que cerca esse tipo de capital nos dedicamos em seguida. No segundo caso, o do capital político ou institucional, muito diferente seria a lógica que rege seu acúmulo e transmissão. De acordo com Bourdieu, o acúmulo de capital político precisa sempre de tempo para ser alcançado. Significa dizer que o acesso a cargos institucio-nais – comissões de pareceristas, coordenação de núcleos de pesquisa, de cursos de pós-graduação, participação em simpósios, congressos e conferências, bancas de teses e con-cursos – ou o compromisso com eles teriam em comum o imperativo do tempo no exercício de acúmulo e produção desse tipo de capital. Sua aquisição passaria necessariamen-te pelos preceitos da cultura institucional que, por nature-za, além da exigência de certa competência técnica, seria efetivamente constituída pela requisição de tempo dedica-do a suas estruturas.

Embora seja uma característica comum ao capital in-telectual, o imperativo temporal não se objetiva aqui da mesma forma. No que diz respeito ao capital científico insti-tucional, sua transmissão parece reproduzir o protocolo que orienta igualmente a maioria das dinâmicas burocráticas.

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Trata-se, então, da nomeação para cargos institucionais que não necessariamente correspondem ao preenchimento de pré-requisitos. Salvo um já mencionado “tempo cívico”, a expectativa de confiança e fidelidade diante de seus pares é o que se pode almejar como principal, e talvez único, crité-rio, do processo que tem, na verdade, num simples “acordo de cavalheiros” o grande representante de um frágil sistema político. Apesar da existência de eleições como instrumen-to formal, na consecução de tal capital científico, é possível dizer-se que, ainda assim, o que aí vigora é uma espécie de “acordo de cavalheiros”, emblemática estampa de uma cul-tura de pré-ajuste, prática que define, na realidade, os qua-dros organizacionais na constituição do capital científico ins-titucional. De todo modo, é precisamente em torno de seus postulados que se garante de fato a constituição dos meios pelos quais se podem assegurar a produção e reprodução do fazer científico. Do acúmulo e transmissão do capital científico institucional depende efetivamente a criação de mecanismos organizacionais pelos quais se pode vir a lutar por recursos financeiros e materiais. De seu desenvolvimento advém a possibilidade de se obterem a manutenção e consolidação da prática científica em seus mais diferentes níveis. Portan-to, significa dizer que, embora confuso ou desprovido de maiores fundamentos, é também o capital científico institu-cional que responde pela autonomia do campo científico, ou seja, apesar de submetido às diferentes conjunturas so-cioeconômicas, é ele um dos responsáveis por mediar eclo-sões, ingerências e desdobramentos do mundo social. No delineamento de suas fronteiras, sólidas ou suscetíveis, re-percutem não apenas as tendências que envolvem os aconte-cimentos do mundo social, mas também o mecanismo pelo qual se agrega à prática científica a necessária compreensão de que a mesma é, sobretudo, o resultado da conquista de suas condições materiais e econômicas.

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Em outras palavras, tratar-se-ia do entendimento do capital científico institucional como resultado direto das di-ferentes realidades socioeconômicas que regem o universo macrossocial, modalidade através da qual a instituição cien-tífica participa da ordem econômica como todas as outras; no entanto, não apenas na condição de receptora de seus derivados e recomendações, como também de protagonista ativa, uma vez que a autoridade atribuída à competência científica credencia seus agentes de modo a permitir-lhes o acesso direto à formulação das regras e dos encaminhamen-tos socioeconômicos.

O crivo da teoria na edificação do objeto

Assim sendo, embora permeadas de distinções, as duas modalidades de capital científico são efetivamente aquelas que fundam o campo em questão. Significa dizer que isso não pode ser concebido sem levar em consideração a im-portância desses dois modos de transmissão e acumulação, ou seja, se a solidez no acúmulo de capital científico institu-cional garantiria independência ao campo científico – dado que é responsável por um tipo de mediação com o universo social –, quanto mais consolidado o capital científico institu-cional, maior seria o nível de autonomia relativa do campo científico; da mesma forma, tal condição não poderia ser pensada senão articulada com o nível de consolidação e desenvolvimento do capital científico “puro”.

Como vimos, é ele um dos grandes responsáveis pela capacidade de refratar e traduzir as “intromissões” do mun-do social, afastando-se e tornando-se independente de suas influências e oscilações. Segundo a tradição de seus postu-lados e níveis de cientificidade, é o capital científico “puro”,

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fundamentalmente, aquele que responde pela especificida-de e autonomia relativa do campo.

[...] O que faz a especificidade do campo cientí-fico é aquilo sobre o que os concorrentes estão de acordo acerca dos princípios de verificação da conformidade ao “real”, acerca dos métodos co-muns de validação de teses e de hipóteses, logo, sobre o contrato tácito, inseparavelmente político e cognitivo, que rege o trabalho de objetivação.41

Nesse sentido, quando nos referimos à constituição e à autonomia do campo científico, é preciso que o façamos sempre a partir da imbricação entre essas duas modalida-des de capital científico. São elas que respondem por uma abordagem mais completa do campo, que trazem consigo conjunto de elementos característicos de um ponto de vista fundamentado na totalidade do processo em questão. Dito de forma mais objetiva, se o conceito de campo científico repousa necessariamente na hibridização entre o que seria uma extensão do mundo social e sua respectiva tradução, segundo uma determinada competência específica, sua compreensão ainda mais específica deve ser realizada sob a égide particular daqueles dois tipos de capital científico, o puro ou intelectual e o político-institucional, imbricação que, na verdade, responde pela singularidade do campo.

Trata-se, pois, da existência de uma estrutura, um espaço de embates concorrenciais, criada por agentes e instituições, cujas relações objetivas se põem a lutar pelo monopólio da autorida-de científica. Perspectiva, então, representada pela dupla mo-dalidade do conceito. Primeiro, o capital científico político ou

41. Idem, ibidem: 33.

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institucional responsável pela caracterização do campo cientí-fico como outro qualquer, ou seja, como extensão do mundo social, por ele constituído e perpassado, fundamentalmente designado como espaço de luta. Segundo, a experiência via-bilizada pela consolidação do capital científico intelectual, dito “puro”, responsável por refratar e traduzir as influências do universo macrossocial, tornado o campo menos vulnerável às injunções sociais e, conseqüentemente, mais autônomo.

Nas distinções, portanto, de capital científico residiria não apenas uma condição específica de capital simbólico, como também a própria compreensão das determinações internas que caracterizam o campo científico. Isso significa dizer que, ao percorrê-las, começamos a encontrar os crité-rios pelos quais tal campo concebe sua especificidade, seu princípio de autonomia. Entretanto, instala-se, aqui, outra particularidade. Embora a formulação apresentada pelo ca-pital científico político ou institucional seja imprescindível na compreensão do conceito de campo científico, não estariam propriamente em torno de suas configurações os aspectos que atendem à radicalidade da especificidade e autonomia do campo científico. Bem verdade que tal modalidade do conceito de campo científico é de importância decisiva, uma vez que o situa como campo social como outro qual-quer não apenas sujeito às injunções e aos desdobramen-tos do universo macrossocial, mas fundamentalmente por ressaltá-lo como espaço de lutas e embates concorrenciais. A definição é imprescindível porque pensa a prática cien-tífica não apenas atrelada ao contexto sócio-histórico – o que nos permite relativizar uma série de canônicas deter-minações –, mas também porque rompe, afirma Bourdieu, com um ponto de vista irenista42 do universo científico, que

42. BOURDIEU, Pierre. Para uma sociologia da ciência. Op. cit.: 68.

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o concebe como atividade marcada por trocas generosas, cuja cooperação tem como ideal alcançar um mesmo fim. Diferente disso, o conceito de capital científico institucional (embora, nesse caso, a questão também esteja vinculada ao capital científico intelectual) aponta para uma dinâmica de embates em que o que se observa é que não haveria, dentro de cada campo científico, consenso quanto ao que deve ou ao que não deve ser passível de investigação, e sim um con-tingente de lutas e conflitos concorrenciais que ora conver-gem, ora divergem, segundo o que se acredita ser inerente a seu próprio campo e que, portanto, pode tornar-se objeto de estudos e esforços coletivos.

De qualquer forma, é interessante notar que a questão remete a um tipo de embate específico, ou seja, se por um lado o campo científico traz consigo a dinâmica que marca o campo social, por outro, a luta pelo monopólio da autori-dade científica ocorre segundo condições particulares. Nesse sentido, se estamos interessados em encontrar as chamadas determinações internas que de fato especificam o campo científico, devemos nos ater de modo especial aos desdo-bramentos circunscritos ao capital científico “puro” ou intelec-tual. Em seu desenvolvimento, repousa efetivamente o atri-buto que singulariza cada campo científico. A ele remontam os chamados níveis de cientificidade que respondem, na verdade, tanto pela especificidade quanto pela autonomia de cada campo científico. Significa, nesse caso, dizer que, se o grau de autonomia de cada campo depende da capaci-dade de refratar e traduzir de modo específico as influências do mundo social, no caso do campo científico tal atributo ou competência específica diz respeito diretamente aos pa-drões de cientificidade a que o dito capital científico intelec-tual pode almejar. Em suma, se o conceito de campo não pode ser pensado sem levar em consideração os agencia-mentos concorrenciais que se desdobram entre um polo e

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outro, ou seja, entre a contextualização social de determina-da produção e, concomitantemente, sua análise interna ou imanente, quando nos deparamos com a necessidade da in-vestigação acerca daquilo que de fato individualiza o campo científico, isto é, os aspectos que o definem como instância responsável por uma tradução particular do mundo social, torna-se imprescindível a incursão em torno dos chamados níveis de cientificidade, mecanismos internos pelos quais é construída sua especificidade.

Nesse caso, falamos não apenas da análise concentrada naqueles dois tipos de capital científico, mas, sobretudo, da ênfase depositada naquele dito “puro” ou intelectual, mais propriamente correspondente à epistemologia, uma vez que poderia estabelecer a lógica segundo a qual a ciência engendra seus próprios problemas.43 Em seu desenvolvimento, portanto, encontrar-se-iam os chamados níveis de cientificidade res-ponsáveis pela especificidade de cada campo científico.

Conclusão: sobre a disciplinarizacão do saber

Apesar de indicar em seu subtítulo, Metodologia da pes-quisa na sociologia, uma abordagem de crivo sistemático das etapas específicas do desenvolvimento da investigação sociológica, o livro de Bourdieu pode, também, ser lido como contribuição à tentativa de transformar em disci-plina a presente prática de pesquisa. Embora mencione, na nomeação, das três etapas daquela que seria a ordem dos atos epistemológicos, uma proposição metodológica, sua re-flexão, na realidade, caracteriza-se propriamente como de

43. BOURDIEU, Pierre. O campo científico. Op. cit.: 126.

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caráter epistemológico, ou seja, para além da apresentação das fases da pesquisa em sociologia há, como fundo, uma preocupação em determinar os limites e possibilidades de sua instauração como saber científico. Significa dizer que, a partir da explicitação das diferentes, embora articuladas, fases da pesquisa, estaria sendo pensado o nível de cienti-ficidade presente em tal prática do conhecimento, ainda que, por natureza, ela apareça atrelada ao mundo social. Sua análise trata da institucionalização de tal fazer cientí-fico; por esse motivo, a ênfase no debate com aquelas que são consideradas, em referência a Kuhn, as matrizes disci-plinares das ciências sociais. Pela remissão a Marx, Weber e Durkheim ele situa o “leque de problemas, os métodos adaptados a esse trabalho, assim como o estado de realiza-ção científica que é aceite por uma fração importante dos cientistas e que tende a impor-se a todos os outros”.44 Por isso, então, a radicalidade da opção em torno da problemá-tica teórica como núcleo originário da pesquisa sociológica. Seu objetivo é mostrar que não existe objeto científico que não resulte necessariamente da articulação conceitual cons-truída de modo intencional entre o fenômeno social e o arcabouço teórico existente em cada campo científico. Mais do que isso, seriam as próprias disciplinas o resultado de sua respectiva conquista de objeto científico. Daí o diálogo com as matrizes disciplinares das ciências sociais. Com intui-to de construir aquele que seria o objeto científico próprio da sociologia, ele analisa suas condições de possibilidade a partir do acúmulo teórico já existente naquelas que seriam as teorias fundadoras de seu campo mais próximo.

Segundo Bourdieu, resultantes do processo de crescente

44. Termo que caracteriza o trabalho das comunidades científicas. Idem, ibidem: 29.

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autonomização que se produz nas diferentes práticas cientí-ficas, as disciplinas apresentam-se como objetivações sociais, lugar da sedimentação de leituras especializadas, das catego-rias analíticas e discursivas, vislumbradas fundamentalmen-te em teorias e métodos de pesquisa, em torno dos quais são elaboradas e sistematizadas as opiniões e os depoimentos do senso comum. Instâncias em que se concentram os pressu-postos e mecanismos pelos quais se obtêm a definição, a preservação e o aprofundamento dos estudos que cercam os mais diferentes fenômenos sociais, as disciplinas são, segun-do Bourdieu, institucionalizações das práticas científicas, modos pelos quais se lhes garante a chancela de “universos relativamente autônomos [...], produto de conflitos que vi-sam impor a existência de novas entidades e das fronteiras destinadas a delimitá-los e protegê-los”.45 Centro nevrálgico das práticas do conhecimento, em torno de seu domínio, assenta-se o aglomerado de problemas e modos de investi-gação que, segundo um conjunto de cientistas, tornam-se legítimos e, portanto, o sentido e a direção própria de um dado legado reflexivo. A suas fronteiras metodológicas e seus aportes conceituais estariam, então, sendo remetidas as opiniões de senso comum, resultado direto da chamada ruptura com a ilusão do saber imediato.

Responsáveis pela aquisição da chancela de saber cons-tituído, as disciplinas correspondem a uma determinada convergência de estudos em torno de um dado objeto cujo discurso especializado, de um modo geral, outorga a suas práticas científicas o título de área do conhecimento, epis-teme ou simplesmente ciência. O processo que implica uma certa solidificação de teorias e métodos de pesquisa torna-se necessariamente o resultado de uma ampla aceitação

45. BOURDIEU, Pierre. Para uma sociologia da ciência. Op. cit.: 73.

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coletiva. A pergunta que se coloca é: como se adquire tal condição? Como se sabe, quando tratamos de uma reflexão de caráter epistemológico, além de investigar os mecanis-mos pelos quais uma dada prática social vem a ser traduzida nas modalidades científicas, também estamos interessados em compreender de que maneira uma determinada prática científica vem a constituir-se em disciplina na ordem do conhecimento. No primeiro caso, como já vem sendo dito, trata-se fundamentalmente da necessidade de ruptura com as opiniões de senso comum e conseqüente tradução do fato social junto aos padrões teóricos e referências concei-tuais presentes em cada disciplina.

No segundo, afirma Bourdieu, a questão depende efeti-vamente da construção de seu objeto científico. Sua conquista, diz ele, aponta para o acúmulo teórico resultante tanto da ruptura que retira o fato social de uma leitura meramente atrelada ao senso comum, integrando-o, então, a um re-gime discursivo sistematizado, como da obtenção de uma necessária convergência por parte do corpo de cientistas responsável por aferir-lhe certa legitimidade de modo a torná-lo um problema passível da concentração de esforços comuns. Nesse sentido, embora o processo de construção de determinado objeto científico não corresponda a uma aquisição imediata, seria, de outro modo, resultado de um extenso período de acumulação. Segundo ele, “a definição dos problemas e a metodologia de investigação utilizada de-correm de uma tradição profissional de teorias, métodos e competências que só podem ser adquiridos no termo de uma longa formação”.46 Pode-se dizer que o processo não corre à revelia, muito menos se encontra sujeito a acasos fortuitos, mas depende efetivamente da conquista de objeto

46. Idem, ibidem: 29.

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científico próprio, condição pela qual se pode alcançar o título de disciplina na ordem do conhecimento.

A constatação torna-se importante porque remonta não apenas ao problema da autonomia do saber, central em nos-sas preocupações; mas, sobretudo, à constituição de uma episteme comunicacional, objeto propriamente de nossa pesquisa, cuja vasta produção, por um lado, parece não dei-xar dúvidas quanto a sua consolidação enquanto campo do conhecimento, embora ainda não suficiente para a obten-ção de seu chamado estatuto disciplinar.47 Ou seja, se por um lado, o campo científico representa uma modalidade parti-cular de campo social, por outro, dentro dele se apresentam outras várias distinções que atendem por materialidades disciplinares e que representam, na verdade, a especificida-de interna de cada um deles. A observação aponta para a importante distinção entre os conceitos de campo científico e disciplina ou episteme na ordem do conhecimento, invaria-velmente confundidos na ocasião do presente debate. No primeiro caso, como temos dito, trata-se de pensar a prática científica como extensão do contexto macrossocial. Em-bora dele distinta, uma vez que se apresenta detentora de leitura própria e específica dos acontecimentos que então o caracterizam, trata-se de concebê-la fundamentalmente como instância marcada por lutas e embates concorrenciais tendo em vista o monopólio da autoridade científica.

No segundo caso, trata-se exclusivamente do problema que permeia a especificidade do campo científico, circuns-tância que, como acabamos de ver, embora fuja de resposta unitária, atende por um tipo de especificidade diretamente relacionada à produção e ao acúmulo de seu capital científico

47. LOPES, Maria Immacolata Vassallo de. O Campo da Comunicação: reflexões sobre seu estatuto disciplinar. Revista USP. N.48. São Paulo: Universidade de São Paulo, 2000 -2001: 47.

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“puro” ou intelectual. Dito de outra maneira, se a autonomia de cada campo científico depende de possibilidade de refra-tar e retraduzir, de modo específico, as injunções externas do mundo social, encontra-se diretamente vinculada aos níveis de cientificidade que constituem cada um deles, o que, na-turalmente, aponta para processos particulares.

No entanto, pode-se dizer, de um modo geral, que, se o grau de autonomia de determinado campo é medido, se-gundo os padrões de especificidade que esse por ventura venha a alcançar, em se tratando do campo científico, tal conquista encontra-se diretamente vinculada à capacidade de traduzir, em disciplina na ordem do conhecimento, as diferentes chamadas práticas científicas. O que, em última instância, significa exatamente a conquista de objeto cientí-fico próprio. O problema que se coloca, então, diz respeito às particularidades do processo em cada um dos campos cientí-ficos. Em nosso caso, interessa pensar, sobretudo, seus desdo-bramentos na elaboração de uma episteme comunicacional.

Referências

BACHELARD. Gaston. O novo espírito científico. São Paulo: Abril Cultural, 1979. (Coleção Os Pensadores.)

BRAGA, José Luiz. Constituição do campo da Comunica-ção In Verso e Reverso. Revista de Comunicação. Ano 14, n. 30, São Leopoldo, 2000.

BOURDIEU, Pierre. Os usos sociais da ciência: por uma socio-logia clínica do campo científico. São Paulo: Unesp, 2004; Para uma sociologia da ciência. Lisboa: Edições, 2004; CHAMBO-REDON, Jean-Claude; PASSERON, Jean-Claude. Ofício de Sociólogo: metodologia da pesquisa na sociologia. Petrópolis,RJ:

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Editores Vozes: 2007. O campo científico In ORTIZ, Renato (org.). Bourdieu: sociologia. São Paulo: Ed. Ática: 1983

LEÃO, Emmanuel Carneiro. Aprendendo a pensar, vol. I I, Petrópolis: Vozes, 2a edição, 2000.

LOPES, Maria Immacolata Vassallo de (org.). Epistemolo-gia da Comunicação. Loyola: São Paulo. 2003.

JAPIASSU, Hilton e MARCONDES, Danilo. Dicionário Básico de Filosofia. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1996.

POPPER, Karl. The logic of Scientific Discovery, 1959 Apud BOURDIEU. Ofício de Sociólogo.

WEBER, Max. Essais sur La théorie de La science, 1965 Apud BOURDIEU, Pierre. Ofício de Sociólogo.

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1.A Comunicação enquanto diálogo

em Paulo Freire e Luiz Beltrão

Prof. Dr. Antonio Hohlfeldt1

Não é gratuita uma reflexão a respeito das aproximações possíveis entre Paulo Freire e Luiz Beltrão. Eles pertencem exatamente à mesma geração, e nasceram exatamente na mesma região: Luiz Beltrão é natural de Olinda, onde nas-ceu a 8 de agosto de 1918, vindo a falecer em 1986. Paulo Freire é natural do Recife, nascido a 19 de setembro de

1. Professor do PPGCom da FAMECOS/PUCRS, Pós-Doutorado em Jornalismo pela Universidade Fernando Pessoa, Porto, Portugal. Pre-sidente da INTERCOM – Sociedade Brasileira de Estudos Interdisci-plinares da Comunicação; Pesquisador em produtividade do CNPq; membro do Conselho Consultivo da SBPJor – Sociedade Brasileira de Pesquisadores em Jornalismo; membro do Instituo Histórico e geográfico do Rio Grande do Sul; autor de livros como Teorias da Comunicação (Vozes, 2009; 9ª edição) e Última Hora; nacionalismo sensacionalista num jornal populista (Sulina, 2003). [email protected] telefone (051) 9981-5613, caixa Postal 1.052 – CEP 90.001-970 Porto Alegre, RGSul.

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1921, vindo a falecer em 2 de maio de 1997. Como se vê, ambos foram relativamente longevos, levando-se em conta, especialmente, a região de onde são naturais: Luiz Beltrão viveu 68 anos de idade e Paulo Freire alcançou os 76 anos.

Aproximações de uma geração

Mas, há aproximações maiores entre eles. Ambos des-cendem de famílias profundamente católicas, o que vai in-fluir, decididamente, em suas formações. Luiz Beltrão che-ga a estudar em seminário católico: queria ser sacerdote. Paulo Freire absorverá dos ensinamentos religiosos, uma base filosófica, marcada pelo humanismo, que resultará em sua forte militância junto aos nascentes grupos organizados da Igreja Católica, através da JEC – Juventude Estudantil Católica e da JUC – Juventude Universitária Católica, que desembocarão, depois, na organização da AC – Ação Cató-lica, base das futuras comunidades eclesiais de base, carac-terizadas pela polêmica Teologia da Libertação.

Pode-se dizer, assim, que Paulo Freire integrar-se-á a um catolicismo radical, no sentido estrito e histórico do termo, o que o levará, mais adiante, até os Movimentos de Cul-tura Popular, de que o Movimento de Educação de Base – MEB – será um dos aspectos. Ligando-se ao ISEB – Insti-tuto Superior de Estudos Brasileiros, ao tempo de Juscelino Kubitschek, organizará os primeiros cursos de alfabetização de adultos, incluindo seus manuais, processo que será in-terrompido quando do golpe de 1964.

Aliás, a ditadura implantada, a partir de 1964, tem profundos reflexos sobre a vida e a profissão de ambos os intelectuais. Luiz Beltrão participara da fundação, em 1961, do primeiro curso de Jornalismo do país, na

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Universidade Católica de Pernambuco, onde, em 1963, constitui a primeira instituição de pesquisa universitá-ria, no campo da Comunicação Social, o ICINFORM – Instituto das Ciências da Informação, de que se afasta, em 1965, para reorganizar o curso de Comunicação So-cial da Universidade de Brasília, devastado pela demis-são de dezenas de professores, após o golpe de 1964.

Ali, fará questão de passar por banca internacional de qualificação, tornando-se o primeiro Doutor em Comuni-cação, no Brasil, com uma tese que lançava as bases teóricas de um novo campo de estudos comunicacionais, a Folkco-municação, através de texto que, infelizmente, por aqueles mesmos motivos político-ideológico-policiais, permaneceria inédito até 2001, quando tive a oportunidade de, graças ao Prof. Dr. José Marques de Melo, que guardava seus originais, editá-lo, por meio do PPGCOM da FAMECOS/PUCRS.

Com a implantação da Ditadura Militar, Paulo Freire e Luiz Beltrão experimentaram a perseguição, a demissão e a prisão: Paulo Freire terminou seguindo para o exílio. Primeiro, foi à Bolívia; logo depois, Chile; enfim, Estados Unidos, Suíça e, depois, o mundo, consagrando-se, a partir de então, graças às ações pedagógicas que passou a desenvol-ver, internacionalmente, sob o patrocínio da UNESCO.

Luiz Beltrão, por seu lado, permaneceu no Brasil. Dedi-cou-se ao jornalismo e, quando pôde, à cátedra. Continuou estudando e escrevendo, aprofundando os princípios teóri-cos da folkcomunicação, perspectiva de abordagem comuni-cacional que traduzia, do mesmo modo que Paulo Freire, sua profunda preocupação pela sorte dos desvalidos e dos que ele chamou de marginalizados.

Mostra Venício Artur de Lima, em revelador livro a respeito de Paulo Freire (1981), que a época pode ser ca-racterizada por alguns acontecimentos que vão se refletir, profundamente, na obra do pensador. Na verdade, o que

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Lima afirma a respeito de Freire pode-se também aplicar a respeito de toda uma geração e, muito especialmente, a Luiz Beltrão. Se não, vejamos:

1) Ocorre a emergência das classes populares, primeiro com o processo do populismo e, logo depois, como consequên-cia e graças ao surgimento de consciências mais responsá-veis, com a formação de lideranças populares emergentes;

2) Desenvolve-se um sentimento nacionalista, a partir de experiências posteriores à 2ª Grande Guerra, trabalhadas, primeiramente, no CIESPAL e, no país, através do ISEB. Como consequência, surgem teorias específicas nos cam-pos da educação e da comunicação, de que justamente Pau-lo Freire e Luiz Beltrão serão referências;

3) Emerge o catolicismo radical, que se aproxima de corren-tes políticas leigas de matriz marxista, graças ao desenvolvi-mento de Teologia da Libertação; mesmo após o golpe de 1964, tais influências manter-se-ão, gerando um sem-núme-ro de processos culturais;

4) Organizam-se os Movimentos de Cultura Popular, de modo que a cultura popular ou das chamadas classes su-balternas ou marginalizadas passa a ser examinada e estu-dada em suas especificidades, desde os estudos de folclore de Edison Carneiro, o que valerá, inclusive, para este pes-quisador, também a perseguição e a marginalização, após o golpe militar de 1964.

Verifica-se, desse modo, que as matrizes existenciais, filosóficas, políticas e culturais de ambos os autores são exatamente as mesmas, de onde não nos deve surpreender que tenham ambos terminado por, cada um a sua maneira, trilhar caminhos muito semelhantes. Eu diria mesmo que, onde um parou, o outro continuou, e é isso que pretendo aqui demonstrar, ainda que rapidamente.

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Algumas perspectivas de Paulo Freire

Paulo Freire foi fundamentalmente um educador. E seu projeto educacional dirigiu-se diretamente para a educação das grandes massas populares analfabetas. Foi, a partir de uma preocupação pedagógica, que Paulo Freire aproximou-se da teorização em torno da comunicação. Para ele, e isso fica muito claro no texto Extensão ou comunicação?(1980), que escreveu a partir da experiência de trabalho com extensionistas rurais chilenos, é impossível ensinar-se a alguém. O processo pedagógico precisa ser desenvolvido entre iguais. O aprendi-zado – e não o ensino – só é possível a partir do diálogo.

Paulo Freire se dá conta de que o sentido das palavras é contextual. Por isso, ao dirigir-se aos extensionistas rurais chi-lenos, ele evidencia os vários sentidos que a palavra exten-são poderia ter, e mostra o quão equivocado era a emprego desse vocábulo para designar a tarefa que aqueles profissio-nais pretendiam desenvolver junto aos camponeses do país (equívoco que, aliás, permanece ainda hoje, inclusive no Brasil). Mais que isso, evidencia que, se os extensionistas não se dessem conta do verdadeiro objetivo e, por conseqüên-cia, do modo necessário pelo qual deveriam relacionar-se com aqueles camponeses, jamais seus objetivos seriam ver-dadeiramente atingidos.

Para Paulo Freire, nem a persuasão nem a propaganda conseguem transmitir, verdadeiramente, quaisquer valores ou princípios. O ser humano precisa aderir a uma ideia e, para isso, deve se encontrar em absoluta liberdade. A ação técnica, se não for assimilada verdadeiramente pelo cam-ponês, será mais uma ação mágica, como quaisquer outras praticadas por feiticeiros, e não por cientistas. O homem, por definição, é um ser de relações, e através delas transfor-ma a natureza, graças a seu trabalho.

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Mas, para que atinja o conhecimento, é fundamental que desenvolva uma relação dialógica com seu próximo. Num processo de aprendizagem, segundo Paulo Freire, não há um sujeito que ensina e um receptor que aprende a respeito de um objeto. Há dois sujeitos que pensam em conjunto, que aprendem um com o outro, constituindo um verdadeiro processo comunicacional, no qual, nenhum deles ensina ao outro, mas ambos aprendem em conjunto a respeito daquele objeto.

O aprendizado não admite seres passivos. A comunica-ção, sendo um processo ativo, permite o diálogo, por meio de signos, que constituem um conjunto de significados. Nes-se sentido, o aprendizado, enquanto processo comunicacio-nal, exige a admiração pelo objeto (um olhar em direção a); constitui convicções porque nasce de uma adesão; estabelece uma relação contextual e realiza-se enquanto uma perspecti-va eminentemente humanista ((FREIRE, 1980, ps. 70-73).

Todos os textos escritos por Paulo Freire decorreram, pri-meiramente, de suas próprias práticas, motivo pelo qual ele sempre os qualificou como relatórios de experiências. Nesse aspecto, sua perspectiva é sempre dialética, porque se imbri-ca numa relação intrínseca entre pensamento e ação.

Venício Artur de Lima, na obra já citada, mostra que, para Paulo Freire, a perspectiva pedagógica exige uma ótica comunicacional, porque Paulo Freire parte de alguns parado-xos que necessita resolver:

1) Impossibilidade de diálogo entre antagonistas; daí que o oprimido ajuda a libertar o opressor;

2) Desconfiança sobre a ambiguidade do diálogo que se man-tenha com os oprimidos; em que é necessário ter-se sempre em mente que, por não confiar no opressor, o oprimido ten-de, igualmente, a manter-se distante do mesmo: o grande de-safio, portanto, é alcançar a sua confiança;

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3) O caráter misterioso do diálogo: para além de uma relação face a face, como aquela definida pelas teorias norte-ameri-canas de comunicação, o diálogo, em Paulo Freire, é sempre um processo antropológico, epistemológico e político, ou seja, eminentemente social, porque coletivo e coletivizador.

Assim, Paulo Freire reconhece a necessidade de vencer o que denomina de cultura do silêncio, constituída historicamente, através do processo colonizador. É evidente que, à perspectiva existencialista inicial de seu trabalho, ele incorpora alguns con-ceitos da filosofia marxista, mas mantém-se fiel a uma perspec-tiva religiosa humanista, o que lhe permite ultrapassar o mar-xismo, em busca da chamada libertação.

Em outro texto (LIMA in GADOTTI, 1996, p. 621), Venício Artur de Lima sintetiza a perspectiva comunicacional de Pau-lo Freire, mostrando que a comunicação, para o pesquisador, admite essas três diferentes perspectivas antes mencionadas: a antropológica, porque a comunicação é constituinte natural do ser humano; a epistemológica, porque o conhecimento nasce do diálogo, relação entre dois sujeitos mediatizados por um obje-to que querem conhecer; e a política, porque exige uma relação igualitária de poder. É graças a tal condição que a educação é uma política social libertadora e transformadora.

Diz Paulo Freire:

Comunicação [é] a coparticipação dos sujeitos no ato de pensar... implica numa reciprocidade que não pode ser rompida. O que caracteriza a comuni-cação enquanto este comunicar comunicando-se, é que ela é diálogo, assim como o diálogo é comu-nicativo. A educação é comunicação, é diálogo, na medida em que não é transferência de saber, mas um encontro de sujeitos interlocutores que bus-cam a significação dos significados (1980, p. 66).

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Na conclusão de seu estudo, Venício Artur de Lima ad-mite que duas questões teriam ficado sem resposta nos es-tudos de Paulo Freire:

a) a problemática da comunicação de massas e sua adequa-ção à teorização freireana; e

b) a possibilidade da comunicação não-humana.

Confesso que a segunda questão me surpreende, advin-do de um pesquisador como Venício Artur de Lima, por-que, em meu entendimento, todos nós nos preocupamos com a comunicação social, e esta é, evidentemente, um fe-nômeno exclusivamente humano.

Portanto, a possibilidade de haver ou não comunicação entre outros seres vivos, animais ou vegetais, é um problema para outros campos de conhecimento. Quanto à primeira questão, arriscar-me-ei a dizer que a resposta terminou por ser dada por Luiz Beltrão, e é dele que, a partir de agora, quero me ocupar.

A comunicação dos marginalizados

Desde logo, quero destacar este vocábulo que é, ao mes-mo tempo, adjetivo e substantivo. Marginalizado implica reconhecer que tal condição não foi escolhida por quem a carrega; mas, sim, foi-lhe imputada por alguém. Esse é o ponto de partida de toda a teoria folkcomunicacional desen-volvida por Luiz Beltrão e, por isso, ela é importante.

Sua perspectiva é tanto cultural quanto social e histó-rica. Ele não se limita a constatar uma situação presente, que identifica, descreve e estuda pormenorizadamente, mas busca suas origens e seus fundamentos. E tal como Paulo

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Freire, vai encontrá-los no projeto de colonização do país. Tanto em Folkcomunicação – Um estudo dos agentes e dos meios populares de informação de fatos e expressão de ideias (BELTRÃO, 2001), quanto em Folkcomunicação – A comunicação dos margi-nalizados (BELTRÃO, 1980), Luiz Beltrão evidencia que hou-ve uma ruptura entre os diferentes segmentos da população brasileira, em determinado momento de sua história.

Essa ruptura se dá já a partir da nascente colonização, com a introdução da escravidão. Aprofunda-se com o sis-tema de capitanias, que permite a propriedade de largas di-mensões. E se institucionaliza, definitivamente, com o nas-cimento da imprensa, a partir da chegada da Família Real portuguesa e, posteriormente, a independência. É isso que lemos, tanto na passagem exemplar de Folkcomunicação – Um estudo... quanto num outro texto encontrável em Mídia e folclore. Vejamos as duas passagens:

Paradoxalmente, o surgimento da imprensa, cuja posse fica com as elites intelectuais e os di-rigentes, não contribui para a manutenção e o fortalecimento da unidade brasileira, cindindo-se a Nação no período regencial e desenvolven-do-se entre as populações rurais e proletárias urbanas uma linguagem específica, que recolhe informações e se expressa somente através de agentes e meios de natureza e forma folclórica (BELTRÃO, 1980, p. 123).

Eis a outra passagem:

Uma característica predominante surgia nos agentes-comunicadores selecionados e nas mo-dalidades que adotavam para a transmissão das suas mensagens – a característica folclórica.

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Com muita precisão PEDRO CALMON ha-via apontado, na fase agitada da Regência, o início do divórcio entre as classes sociais da pátria nascente: “fragmentava-se a Na-ção”. E fragmentava-se exatamente quando entravam na liça os primeiros periódicos, tornando-se, desde logo, porta-vozes das eli-tes dirigentes e cultas. Essa fragmentação prosseguiria por todo o IV século e teria seu ciclo completado com a abolição da escra-vatura, que retiraria à influência da casa-grande significativa população da senzala. Os negros forros iriam engrossar a camada social dos alienados do pensamento e da cultura da elite. E incorporariam vigorosa-mente ao patrimônio sociocultural da fave-la, do mocambo e da tapera as suas tradicio-nais formas de expressão. Que o sobrado, o palacete e a casa-de-fazenda não compreen-deriam, agravando-se a cada passo o abismo hoje constatado (BELTRÃO, 1980, p. 143).

Revisemos o conceito de comunicação, tal como o expressa Paulo Freire: “Todo ato de pensar exige um sujeito que pensa, um objeto pensado, que mediatiza o primeiro sujeito do segundo, e a comunicação entre ambos, que se dá através de signos linguísticos. O mun-do humano é, desta forma, um mundo de comunica-ção” (FREIRE, 1980, p. 66).

Leiamos o que escreve Luiz Beltrão a respeito da co-municação:

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Por si só, a parcela marginalizada da população brasileira não tem condições de emergir do submundo em que vegeta. As elites dirigentes em todas as áreas podem arquitetar os melho-res planos, alimentar os mais puros propósitos, mas sem a participação da maioria silenciosa, esses planos e propósitos não produzem efeitos positivos [grifo meu] (BELTRÃO in MELO, 2001, p. 157).

Para Beltrão, pois, é necessária a participação daquela população marginalizada – daí o grifo na passagem – para que o processo comunicacional se realize. Por isso, o cui-dado com ele denominou sua tese: Folkcomunicação – Um estudo dos agentes e dos meios populares de informação de fatos e expressão de idéias. Quero destacar esses meios populares de informação de fatos e de expressão de ideias.

É, nessa designação, que se encontra todo o programa e todo o ideal de Luiz Beltrão: as populações marginalizadas – que não se marginalizaram elas mesmas, mas foram mar-ginalizadas pelas elites, relembremos – valem-se de meios populares – ou seja, meios que elas mesmas idealizaram e concretizaram – para buscarem a informação de fatos e rea-lizarem a expressão de suas ideias.

Ora, se lermos com atenção essa dupla atividade, en-contraremos, aqui, o mesmo princípio dialógico defendido por Paulo Freire, ou seja: as massas populares não apenas recebem informações – informação de fatos – quanto ex-pressam suas ideias. A comunicação se realiza, pois, plena-mente, porque é de dupla mão, é dialógica. Daí o conceito de folkcomunicação que Beltrão desenvolve:

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A folkcomunicação é, por natureza e estrutura, um processo artesanal e horizontal, semelhante em es-sência aos tipos de comunicação interpessoal, já que suas mensagens são elaboradas, codificadas e transmitidas em linguagens e canais familiares à audiência, por sua vez, conhecida psicológica e vivencialmente pelo comunicador, ainda que dis-persa (BELTRÃO in 2001, p. 168).

Observe-se a perspectiva horizontal adotada por Luiz Beltrão, que corresponde à mesma perspectiva de posicio-namento semelhante entre aprendiz e mestre, defendida por Paulo Freire. Na passagem clássica de sua tese, ele espe-cifica todo o complexo processo que decidiu estudar, num enfoque pioneiro que viria a constituir o campo da folkco-municação: “Folkcomunicação é, assim, o processo de inter-câmbio de informações e manifestação de opiniões, ideias e atitudes da massa, através de agentes e meios ligados direta ou indiretamente ao folclore” (BELTRÃO, 2001, p. 79).

Para Luiz Beltrão, portanto, impossibilitado de fugir ao entorno, isto é, à realidade da comunicação de massa indus-trializada, as massas populares procuram apropriar-se e se adaptar àqueles meios e àquelas mensagens as suas próprias tecnologias e compreensões, utilizando canais específicos e diferenciados, através de alguns de seus membros, que convivem duplamente com ambas as sociedades, aquela das elites e a outra, a marginalizada.

Longe de imaginar que tal marginalização esteja exclusiva-mente localizada apenas, no meio rural, Luiz Beltrão é incisi-vo, em Folkcomunicação – A comunicação dos marginalizados, ao identificar ao menos três grandes grupos de marginalização: os rurais, os urbanos e os culturalmente marginalizados.

Nos primeiros, encontram-se, evidentemente, desde ín-dios e negros, até comunidades rurais variadas; no segundo

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grupo, temos aqueles conjuntos de baixa renda, quase sem-pre oriundos da área rural e que se encontram marginali-zados, tanto física quanto social e culturalmente, concen-trados, em geral, em favelas. Os terceiros são aqueles que, por contestação ou por exclusão, acham-se à margem, como hippies, grupos messiânicos, grupos ativistas-políticos ou gru-pos sexualmente segregados, como travestis e outros.

Pode-se dizer que, com essa perspectiva, Luiz Beltrão, de certo modo, responde à indagação de Venício Artur de Lima a respeito de como o conceito de comunicação (enquanto dialogia) de Paulo Freire poderia ser aplicado no processo de comunicação massivo.

Luiz Beltrão mostra que isso é possível, sim, a partir de uma mediação que se dá entre iguais, através do que ele denomina de líderes de opinião – conceito que busca, na teoria funcionalista de Paul Lazarsfeld, Robert Merton e Elihu Katz, adaptando-a a realidade de sociedades, cujas di-ferenças são tão contundentes quanto à brasileira. Ele assim justifica sua perspectiva:

A comunicação coletiva não se faz entre um indivíduo e outro como tal, mas em forma co-legiada: o comunicador é uma instituição ou uma pessoa institucionalizada, que transmite a sua mensagem, não para alguém em particular, mas para quantos lhe desejam prestar atenção (BELTRÃO in MELO, 2001, p. 128).

Essa função é desenvolvida pelo líder de opinião, assim identificado por ele, citando Levy Bruhl :

O líder de opinião tem essa capacidade: é um tradutor, que não somente sabe encontrar pa-lavras como argumentos que sensibilizam as

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formas pré-lógicas que, segundo Levy Bruhl, Bastide, Malinowsky e outros sociólogos, antro-pólogos e psicologistas, caracterizam o pensa-mento e ditam a conduta desses grupos sociais (BELTRÃO in MELO, 2001, p. 138).

Luiz Beltrão, contudo, busca igualmente, em Edison Carneiro, a concretização de sua tese:

Achava-se de acordo com a tese de EDISON CARNEIRO, segundo a qual “sob a pressão da vida social, o povo atualiza, reinterpreta e rea-dapta, constantemente, seus modos de sentir, pensar e agir em relação aos fatos da socieda-de e aos dados culturais do tempo”, fazendo-se através do folclore que é dinâmico, porque “não obstante partilhar, em boa percentagem, da tra-dição, e caracterizar-se pela resistência à moda [...] é sempre, ao mesmo tempo em que uma aco-modação, um comentário e uma reivindicação (BELTRÃO apud CARNEIRO, 1965, p. 2).

Ao acreditar que é possível, e ao defender que é neces-sária a participação e a integração dessas populações ao conjunto da nacionalidade, Luiz Beltrão idealiza a teoria folkcomunicacional, porque “a participação reclama comuni-cação: se não ponho em comum as ideias, sentimentos e in-formações de que disponho e não recebo de volta a reação do outro, jamais estabelecerei um elo entre mim e minha audiência” (BELTRÃO in MELO, 2001, p. 157).

É dessa perspectiva que nasce a folkcomunicação, en-quanto “conjunto de procedimentos de intercâmbio de informações, ideias, opiniões e atitudes dos públicos mar-ginalizados urbanos e rurais, através de agentes e meios

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A Comunicação enquanto diálogo em Paulo Freire e Luiz Beltrão

direta ou indiretamente ligados ao folclore” (BELTRÃO, 1980, p. 24).

O que se deve destacar e reconhecer, nessa formulação, é que, com ela, Luiz Beltrão busca propiciar a esses marginaliza-dos uma alternativa comunicacional real, porque desenvolvi-da entre iguais, de maneira horizontal, na medida em que o(s) líder(es) de opinião, ao conviver com dois universos distintos, propicia a aproximação de ambos, num agenciamento dinâmi-co que promove um duplo movimento de concessão de cada um dos lados em favor do outro.

É evidente que, com o correr dos anos e, principalmente depois da morte de Luiz Beltrão, o conceito de folkcomuni-cação expandiu-se, alargou-se e modificou-se. Hoje, ele não se circunscreve mais apenas ao folclore, mas à comunicação popular como um todo, abertura que, aliás, o próprio Bel-trão propiciou, quando mencionou os grupos urbanos e os culturalmente marginalizados.

Com isso, dinamizou-se o conceito e sua teoria, com uma aplicabilidade muito maior, bastando mencionar-se os diferen-tes estudos que já se têm divulgado, por exemplo, em torno das chamadas lendas urbanas, como aquelas histórias envolvendo roubo de órgãos do corpo humano ou a potencial existência de venenos em refrigerantes, inclusive através da Internet.

Projetos e ações de integração

Destaque-se, de qualquer modo, que Luiz Beltrão e Paulo Freire, cada qual a seu modo, mas complementarmente, deram passos importantes no sentido da integração dessas populações marginalizadas, reconhecendo-lhes meios de autoafirmação, de diálogo e de reconhecimento junto aos segmentos de elite letrada, econômica e cultural. Por isso, é importante que lhes

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Teorias da Comunicação: Trajetórias Investigativas

conheçamos as ações, as teorias e as potencialidades que seus estudos nos alcançam.

Neles, precisamos nos inspirar para buscar tudo o que seja possível fazer, para diminuir as distâncias que separam nossas populações, antes que as possibilidades reais dessas pontes se-jam definitivamente cortadas.

Referências

BELTRÃO, Luiz. Folkcomunicação – Um estudo dos agen-tes e dos meios populares de informação de fatos e expres-são de idéias. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2001.

BELTRÃO, Luiz. Folkcomunicação – A comunicação dos marginalizados. São Paulo: Cortez,1980.

CARNEIRO, Edison. Dinâmica do folclore. Rio de Janei-ro: Civilização Brasileira, 1965.

FREIRE, Paulo. Extensão ou comunicação?. Rio de Janei-ro: Paz e Terra, 1980.

LIMA, Venício Artur de. As idéias de Paulo Freire. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1981.

LIMA, Venício Artur de. “Conceito de comunicação em Paulo Freire” in GADOTTI, Moacir (Org.) – Paulo Freire – Uma biobibliografia. São Paulo/Brasília: Cortez/Institu-to Paulo Freire/UNESCO, 1996.

MELO, José Marques de (Org.). Mídia e folclore – O estudo da folkcomunicação segundo Luiz Beltrão. Maringá/São Paulo: Faculdades Maringá/Cátedra UNESCO/UMESP de Comunicação para o Desenvolvimento Regional, 2001.

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A atualidade da teoria realista: reflexões sobre Filmes-Testemunho

2.A atualidade da teoria realista:

reflexões sobre Filmes-Testemunho

Cristiane Freitas Gutfreind1

As diferentes telas que nos possibilitam assistirmos aos filmes, na atualidade, estão invadidas por imagens que têm como estratégia o uso do realismo na representação do mal, relacionado a conflitos históricos importantes. Podemos ci-tar, de forma mais contundente, as cinematografias alemã, israelense, americana e, também, brasileira, as quais traba-lham, frequentemente, com esse tipo de estratégia, mesmo que seus objetivos tenham perspectivas diferenciadas. Os alemães, desde Eu Fui a Secretaria do Hitler (André Heller, 2002), tem se dedicado a filmes que trazem à tona a culpa de uma nação. Os israelenses comparecem com filmes biográ-ficos que retratam as experiências dos próprios diretores em

1. Professora do Programa de Pós-Graduação da PUC-RS e pesquisa-dora do CNPq.

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algum conflito armado; os americanos têm tentado reatua-lizar o antigo fascínio por filmes de guerra, como o recente oscarizado Guerra ao Terror (Kathryn Bigelow, 2009) e, nós brasileiros, temos visitado os tempos obscuros da Ditadura Militar com filmes, como Araguaya – a conspiração do silêncio (Ronaldo Duque, 2004), Hércules 56 (Silvio Da-Rin, 2007) e Condor (Roberto Mader, 2008).

Nessas cinematogtrafias, são recorrentes filmes em que aparecem personagens reféns de traumas históricos de guer-ra ou conflitos armados que, através de seus erros, dúvidas e questionamentos, não são apresentados nem como heróis nem como objetos que exercem o seu papel de maneira in-condicional; o que assistimos é a fragilidade humana dian-te da situação de estar próximo da morte.

O testemunho aparece, então, como um recurso fre-quente para a construção dessa estratégia usada pelo realis-mo, algo amplamente difundido na mídia. Essa estratégia pode ser entendida como um instrumento poderoso para a compreensão da comunicação, na atualidade, pois se reme-te ao presente transformando, reinterpretando o passado, interagindo, assim, entre o vivido e o transmitido. O filme-testemunho2 tornou-se um instrumento importante na for-mação, reorganização e na construção da memória.

Segundo Agamben, testemunho é definido como “po-tência que adquire realidade mediante uma impotência de dizer e uma impossibilidade que adquire existência median-te uma possibilidade de falar” (AGAMBEN, 2008, p.147). Assim, o filme-testemunho nos possibilita compreender a

2. O filme-testemunho é entendido aqui como um gênero que faz parte da grande família do documentário e mantém uma relação direta com filmes históricos e, por vezes, com filmes biográficos; em sua estrutura, constam sempre relatos de testemunhas que vivenciaram, diretamente, determinado acontecimento histórico.

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A atualidade da teoria realista: reflexões sobre Filmes-Testemunho

representação do mal, tendo como estratégia o realismo.A ideia de representação está diretamente relacionada a

um sistema de pensamento sobre a arte e a comunicação. Desde as vanguardas dos anos 20 e, principalmente, depois da Segunda Grande Guerra, com uma massificação das mí-dias, a representação foi amplamente colocada em questão.

Paralelamente, as teorias realistas e a forma utilizada para se alcançar o real também começaram a ser questiona-das. O que pretendemos, nesta abordagem, é construir uma reflexão sobre esses tensionamentos, tendo o filme-testemu-nho, com a sua junção de real, imagem e fala (uma forma de representação do mal), como objeto de pensamento.

O Realismo é a construção de um mundo imaginário, produzindo um efeito de real. A banalização do fenômeno do realismo, nas artes e nas mídias, deve-se a sua vincula-ção, no século XX, às artes narrativas e ao espetáculo. Em revanche, algumas correntes realistas, do século passado, tentaram recuperar certa capacidade de idealização3 para dizer algo sobre o real.

O cinema, em sua essência, é uma técnica de reprodu-ção das aparências, tendo sido configurada de acordo com os princípios do realismo. Praticamente todos os grandes movimentos cinematográficos se sustentaram no Realismo, a partir do que lhe foi dado, desde a aparição do cinema, no século XIX: “representar os originais que não são os ide-ais, mas realidades” (AUMONT, 1998, p.122). Basicamente, todo o cinema narrativo, com exceção dos movimentos ex-perimentais e de alguns gêneros muito próximos do irrea-lismo como o filme fantástico e o burlesco, sustentaram-se

3. A definição de realismo aparece na filosofia para designar uma cren-ça em uma realidade das ideias e também está relacionado ao sentido de idealismo dado por Platão. Esse sentido possibilita efervescentes dis-cussões teóricas até os dias de hoje.

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na ideia de que o realismo tem por objetivo descrever as relações entre os homens como se fosse um documento e, assim, possibilitar à compreensão, de forma demonstrativa, da sociedade.

Assim, a partir dos anos 50, várias teorias relacionadas aos estudos de cinema priorizaram o realismo em suas te-ses. Iniciadas por André Bazin e Siegfried Kracauer, essas teses se alastraram, a partir dos anos 60, baseando-se na ideia de que o cinema representa a realidade e, ao mesmo tempo, mostra a sua ontologia, colocando-o em um con-texto de investigação científica em diferentes áreas do co-nhecimento: filosofia, história, passando pela linguística e a comunicação. Se para Bazin, a grosso modo, o cinema se aproxima do mundo como seu prolongamento, destacando a sua capacidade em participar da vida existente, para Kra-cauer, ao contrário, o cinema registra os aspectos já vistos para revelar aquilo que não é compreensível de imediato. Se para o primeiro o cinema é uma “revelação” e, portanto, evidencia as aparências, para o segundo, o cinema é apre-endido como um suporte, no qual o mundo é reproduzido e documentado, auxiliando o pesquisador4.

Nos mesmos anos 50, em que as teorias realistas se pro-pagaram, os filmes, paradoxalmente, procuraram narrati-vas alternativas, como, por exemplo, com Buñuel e Kazan, o que permitiu um distanciamento de um enunciado de-monstrativo, dissociando o cinema do realismo, mas sem jamais perder a sua relação com o real. Tal fato nos leva à afirmação, já preconizada de forma diferenciada por Bazin e Kracauer, de que o cinema se inspira no registro da simi-litude e da narrativa.

4. Sobre o realismo em Kracauer e Bazin ver FREITAS GUTFREIND (2009).

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A atualidade da teoria realista: reflexões sobre Filmes-Testemunho

Segundo Badiou (2005, p.82), a função da similitude no real deve-se ao fato de que não existe real suficiente que não levante suspeita. O fascínio pelo real é, também, o fascínio pela desconfiança. Para o autor, as categorias subjetivas da política revolucionária como, por exemplo, a virtude e a lealdade, são marcadas pela desconfiança dessas categorias em relação ao real: se elas são, de fato, verossímeis e parti-cipam da aparência. O fascínio pelo real também é uma questão que diz respeito à identidade: qual a identidade do real? Como revelar as suas cópias e simulacros? O real pode ser entendido, então, pelo fascínio, pelo autêntico ou por aquilo que não pode ser destruído5.

A ideia de realismo não se sustenta somente na seme-lhança, pois requer algo da ordem da criação. Isto é, a se-melhança associada a algo da esfera do não-humano pode levar a um conhecimento e a uma reflexão em proveito do humano, que não diz respeito somente à ordem mecânica, mas à criação que passa pela metáfora e pela analogia. Essa ideia de criação, segundo Aumont, pode ser definida como “a arte de combinar o que constatamos e reconhecemos, é o que inventamos e produzimos”(AUMONT, 1998, p. 124).

Nesse sentido, a analogia e a metáfora nos ajudam a iden-tificar o relativismo que comporta o pensamento sobre o real nessa modalidade de cinema que imprime, no espectador, di-ferentes modos de compreensão do mundo social em função da similaridade que essa compreensão apresenta com as ima-gens fílmicas. A metáfora é entendida, aqui, como um enun-ciado que (re)escreve a realidade de modo a um “ver-como” (RICOUER, 1983, p.12). Dessa forma, podemos constatar que o filme encarna uma maneira de ver a realidade.

5. Pensamos aqui especificamente nos filmes-testemunho que dependem dessa desconfiança e desse fascínio do real para alcançar o espectador.

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Donner la parole

No filme-testemunho, ver a realidade está atrelado à imagem e também à fala. Nesse tipo de filme, o sujei-to sustenta-se no seu discurso com grande consciência da importância da sua fala, não tendo a necessidade de res-ponder a nenhuma demanda jornalística ou etnográfica. O testemunho aglutina a inteligência de uma vida e a ex-periência de pertencer a uma história política e ideológi-ca, em que foi escolhido para relatá-la, da qual resulta a validade da sua fala. Para justificar a sua sobrevivência, é preciso dizer o essencial da sua consciência de como é es-tar no mundo, depois de ter sofrido a experiência de ter vivido um acontecimento histórico. Para transmitir essas experiências de morte, precisamos de todos os tipos de in-stituição da memória: da escrita histórica, do testemunho e da arte. O testemunho que não se pretende somente a um produto midiático provoca um processo humanizador e atualiza o presente, por meio do passado, resgatando o indivíduo com rosto e nome próprios. Segundo Hartman, “os testemunhos em vídeo restauram a memória profunda, tanto quanto detalhes informativos específicos do terror e do sofrimento” (HARTMAN, 2000, p.216). Assim, o meio audiovisual alcança, especialmente, uma força, pois, além de corporificar o sobrevivente, faz com que o testemunho infira no presente.

Ainda, segundo Hartman, “o projeto de testemunho é baseado na esperança de se achar uma testemunha para a testemunha” (idem, p.217). Partilhar um testemunho não é dialogar, trocar, guiar, solicitar ou induzir, é nada esperar, pois ninguém fala pela testemunha. Donner la parole con-siste em dar, incondicionalmente, a fala ao outro e se con-centrar somente na escuta mais atenta possível aos corpos, às faces que falam além de qualquer ideologia; aquele que

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A atualidade da teoria realista: reflexões sobre Filmes-Testemunho

escuta, torna-se, então, o parceiro necessário para a criação do conhecimento. Testemunhar inclui, como bem obser-vou Hartman, uma “audiência ativa”. Esse tipo de teste-munho questiona os métodos do filme-reportagem6, pois temos a impressão de assistir, pela primeira vez, a esse tipo de depoimento, diante de uma câmera, pois esses sujeitos singulares têm, frequentemente, a consciência de que a sua fala tem o peso de ser a porta-voz de uma experiência que possibilita a reconstrução de uma história.

Essa experiência torna-se o lugar onde se trava uma cons-tante oposição da ordem da subjetividade entre o “fazer vi-ver” e o “deixar morrer”, simetria que divide as relações de poder. Agamben parte, justamente, dessa fórmula simétri-ca, em O que resta de Auschwitz (2008), para propor uma terceira fórmula – “fazer sobreviver” –, como tarefa funda-mental das relações de poder, no nosso tempo, que não se divide em viver e morrer, mas em uma sobrevivência infini-ta, em uma separação entre o ser vivo e o ser que fala.

Ao espectador resta o sentimento de carregar o peso das falas dos testemunhos e da impotência diante da culpa. A presença física desses rostos e dessas vozes o remete a sinais da realidade vivida quanto às palavras que eles pronunciam. Tal fato confirma a tese de Foucault, em Arqueologia do Saber (2008), de que a importância do enunciado não está no texto do discurso e sim no fato dele ter um lugar.

Diante dos planos de certos filmes tão diferentes entre

6. O filme-reportagem é um tipo de documentário em que o cineasta se porta como jornalista, propondo-se a compreender um determinado tema ou acontecimento no momento em que este está se desenvolven-do. Esse tipo de filme utiliza uma metodologia particular que consiste na restituição de um acontecimento, considerando apenas a sua apa-rência e contando, assim, com a improvisação na filmagem, já que o realizador não consegue prever o desfecho do acontecimento.

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si, na maneira de fazer e produzir, mas tão próximos em relação à temática do testemunho sobre o mal, podemos ci-tar, como exemplo, Que Bom te ver Viva (Lúcia Murat, 1989) e Vlado 30 anos depois (João Batista de Andrade, 2005), nos quais temos a rara impressão de tocar o real e de que, mes-mo não experienciando aquelas vivencias, temos a certeza quase física dos sentimentos percebidos através do enqua-dramento da imagem e do som. O testemunho não garante a verdade factual, mas garante a necessidade de construção da memória diante do esquecimento.

Representação do mal

A ideia de representação foi alterada, na contemporanei-dade, pelas transformações por que passou a rede midiáti-ca. As relações entre o conhecimento e os significantes da representação impuseram limites às estratégias utilizadas, alterando a concepção do realismo como alternativa estéti-ca. Nesse sentido, uma das questões atuais mais recorrentes é a relação entre a violência real e sua semelhança, entre acrueza da imagem e a sua maquiagem7.

Esses questionamentos dizem respeito ao fato de que a rede midiática nos tornou espectador, muitas vezes, invo-luntário, do mal estetizado, em nosso cotidiano provocan-do um processo de dessensibilização.

A incompreensão do mal faz com que o real se realize nas ficções, nas montagens e nas máscaras. Segundo Lyo-tard (2005), a ideia de representação poderia ser substituída

7. Destaca-se, por exemplo, o debate em torno da cosmetização dos filmes nacionais recentes, como Cidade de Deus (Fernando Meireles, 2002) e Tropa de Elite (José Padilha, 2007).

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pela noção do irrepresentável, definida como mostrar aqui-lo que não é recorrente por meio da valorização do imper-ceptível e do fortuito. No entanto, Jacques Rancière (2005) defende a ideia de permanência da representação e que o seu esgotamento estaria relacionado a dois movimentos: um, a impossibilidade de tornar presente algo já acontecido, o que comprova a falta de poder da arte; e dois, ao contrário, que tenciona o exercício de poder da arte, ao caracterizar um excesso de presença da imagem e, ao mesmo tempo, torna a existência dessa imagem irreal, um simulacro. Assim, há um tencionamento entre o “excesso de presença” proporcional a “subtração da existência” (idem, p. 126).

A ideia de irrepresentável, proposta por Lyotard, afirma-se, então, sob determinada forma de representação, sob um conteúdo e um tipo de linguagem que daria conta de experi-ênciar a situação extrema do mal, baseada no poder da suges-tão. Mas, na idéia representativa de sujeitos e formas, ainda há possibilidade de mostrar um estado de exceção. Para se chegar à forma do irrepresentável, é preciso, antes, passar pelo representável e jamais se esquecer da exigência ética.

A ruptura, na ideia de representação da arte, não se res-tringe a uma passagem do realismo para o não-figurativo; mas, segundo Rancière, trata-se da “emancipação do similar em relação à representação” (RANCIÈRE, 2005, p.136), ou seja, o realismo possibilita “fazer ver” através da fala, da descri-ção dos fatos, de uma unidade entre o presente e o ausente.

É exatamente essa a proposta dos filmes-testemunho na contemporaneidade: atualizar o passado no presente. A fala do testemunho nos remete à realidade daquilo que não cremos, e a câmera permite comprimir o tempo entre o acontecido e a palavra dita no presente. Esse artifício pode ser conseguido somente com uma câmera, daí o poder da câmera no testemunho. Este não está somente nos corpos batidos e mutilados (como assistimos, com frequência, em

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filmes que abordam essa temática), mas no sofrimento do espírito que o mal quer apagar; o testemunho está, parafra-seando Kracauer, na “redenção da realidade física”.

Desse modo, filmes que utilizam como recurso o realis-mo tendem a ser mais contundentes do que filmes do gêne-ro docu-drama, que impregnam a tela com imagens cruéis e já amplamente mostradas. A banalização da violência, nas ruas e nas mídias, faz com que a arte contemporânea prio-rize, às vezes, o realismo explícito ao invés de algo sugestivo ou indireto.

Julgamentos de gosto à parte, cria-se, através do espetá-culo, misturando horror e sensacionalismo, um fato ético na tela, que passa a se constituir em uma reflexão para o espectador. O cinema realista possibilita a experiência traumática não pelo que é vivido, mas pela integração emocional do mesmo.

Representar o mal, de forma autêntica, serve-se de meios representacionais extremos e de certo processo de dessensibi-lização, utilizado, com frequência, pelo realismo. Os limites da representação mesclam a ideia de ilusão e a capacidade de reflexão, podendo produzir, às vezes, um efeito de irrea-lidade contrário ao objetivo do realismo. É essa capacidade que, com frequência, é criticada como menos valorativa es-teticamente, pois se distancia da realidade, apropriando-se, indevidamente, de fatos sociais e históricos, além de promo-ver prazer ao espectador. A arte que aborda o mal não preci-sa ser dessestetizada, no sentido dado por Adorno, e que nega a ideia de autonomia da arte; o efeito de irrealidade pode, às vezes, ser também dessensibilizador, através da emoção e da empatia, como na concepção única do fundamento de princípio estético, presente em Theory of film de Kracauer.

As grandes transformações, em torno das tecnologias, ao longo do tempo, promoveram a distinção entre a realidade e as representações. Segundo Frodon, “o desenvolvimento

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das interações, entre os diversos níveis de realidade e irre-alidade, tornaram a realidade diferente, mesmo que essas interações não tenham feito, de certa forma, a realidade desaparecer. (FRODON, 2009, p.68). Consequentemente, essas interações transformaram as relações do cinema com a realidade, pois o cinema também faz parte desse mundo, que se transformou como prática técnica, econômica e social, além de ser um meio que descreve o que se passa, em mutação.

Documentário testemunho e a proposta de “tocar o real”

A ideia de “tocar o real” é, talvez, uma das propostas mais difíceis dos documentários-testemunhos e dos documentá-rios em geral, pois o real é aquilo que escapa a qualquer sentido e faz com que a imagem pare de ser transitória.

Para Bazin, o real, no cinema, está diretamente vinculado ao imaginário e a uma determinada forma de representa-ção. Para ele, a necessidade humana de construir sistemas de representação parte de uma “necessidade fundamental” (BAZIN, 1993, p.25) de promover uma continuidade entre o que é mostrado e aquele que mostra e encontrou diferen-tes meios de realizá-la através dos séculos.

Desde o seu nascimento, no cinema, nunca houve a ne-cessidade de promover uma confusão entre representante e representado; mas, ao contrário, construir relações imagi-nárias específicas que se diferenciam daquelas que eviden-ciam o real. O cinema daria para a humanidade, então, a resposta ideal e potente para restituir o desejo humano de se ver reproduzido em imagens em movimento, devido à sua capacidade de produzir registros do mundo em suas diferentes dimensões. Essas diferentes formas de represen-tação passam pela ideia de crença, e o cinema a reforça em

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todas as instâncias no decorrer da sua história. Bazin e Kracauer, conforme descrito acima, concebiam

o cinema em sua relação com a realidade, considerando a dinâmica transformação por que passa, constantemente, o mundo real. Isso se deve ao fato de eles se importarem, mais especificamente, com o mundo do que com o cinema. Essa prioridade é decisiva, hoje em dia, quando tratamos dos testemunhos e da relação do desenvolvimento tecnoló-gico que, por vezes, parece julgar, de forma impressionista, as concepções realistas como obsoletas. Tanto Bazin quanto Kracauer foram entusiastas em escrever e compreender as transformações tecnológicas do tempo deles. Como exem-plo, podemos citar os escritos de Bazin em defesa do cinema falado e das inovações no cinema hollywoodiano. Quanto a Kracauer, podemos fazer referência às suas preocupações sobre a materialidade do filme. Ambos sempre acreditaram na essência e permanência do cinema, mesmo em concor-rência com outras mídias que apareciam, na época, como no caso a televisão (podemos atualizar com o advento do digital na contemporaneidade), quando classificavam esses aparatos como uma abertura a outras possibilidades e, as-sim como Frodon (2009), acreditamos que, se estes tives-sem sobrevivido às tecnologias digitais manteriam a mesma concepção de cinema formulada aquela época.

Tal fato ocorreria, pois, em todas as instâncias da cadeia cinematográfica, são imensas as transformações provocadas pelo digital, possibilitando aos cineastas construírem uma relação cinematográfica com o real e com novos instrumen-tos, reformulando as potencialidades de registrá-lo.

Essa ideia nos ajuda a compreender o tipo de filme-teste-munho sobre o qual estamos refletindo: aquilo que retém o real antes de reter o discurso e, quando assistimos a esses testemunhos, detemo-nos naquilo que nos parece próximo, antes de vê-los como representantes de uma desgraça ou de

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uma causa. Como afirma Agamben, “as testemunhas – não são nem os mortos, nem os sobreviventes, nem os submer-sos, nem os salvos, mas o que resta entre eles” (AGAMBEN, 2008, p.162). O relato do testemunho se transforma em arte não pelo o acontecido, mas pelo seu excesso que ex-trapola o pensamento. Esse tipo de pensamento demanda uma arte do testemunho que coloca em questão o impensá-vel e aquilo que o pensamento pode controlar.

Algumas considerações finais – o estado da arte no cinema

A teoria da arte, no decorrer do século XX, foi marcada por uma definição da arte que tem como destino o encontro com um mundo de forma opaca, em que o real é desconhe-cido pelo viés da razão e, assim, somente a arte tem a chance de encontrar o mundo real que recusa a razão. O cinema, arte por excelência desse século e que, por sua natureza, poderia ser considerado como uma arte mimética, mecânica, demons-trou, ao contrário, ao longo da sua história, que a sua técnica permite uma construção e uma reinvenção do realismo.

O fim da ideia de representação e, por consequência, da obra e do cinema, foi tão discutido, ao longo das últimas dé-cadas, tendo sido motivado, em última instância, em com-preender qual a relação entre cinema e real. Assim, hoje não esperamos da arte e do cinema, em especial, a transcendência das ideias ou a verdade, mas que conserve as experiências e os comportamentos, como propôs Deleuze e Guattari: “a arte conserva e é a única coisa ao mundo que se conserva” (DE-LEUZE & GUATTARI, 1991, p.154).

A partir daí, dar a palavra significa, também, a possibili-dade de dar visão, a partir do ausente, desvendando o que

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não foi revelado. Essa possibilidade de “dar visão” pela palavra funciona, nos filmes-testemunho, através daquilo que é repri-mido, possibilitando ao sujeito o resgate de uma experiência que constrói a história e permite a sua sobrevivência infinita.

Dessa forma, a força criativa e transgressora da arte teste-munho transcende a aparência e permite que a vida continue, possibilitando ao ouvinte uma compreensão do impensável.

Referências

AGAMBEN, Giorgio. O que resta de Auschwitz: o arquivo e a testemunha (Homo Sacer III). São Paulo: Boitempo, 2008.

AUMONT, Jacques. De l’esthétique au présent. Paris : De-Boeck Université, 1998.

BADIOU, Alain. Le siècle. Paris : Seuil, 2005.

BAZIN, André. Qu’est-ce que le cinéma? Paris: Cerf, 1993

DELEUZE, Gilles & GUATARRI, Félix. Qu’est-ce que la philosophie ? Paris: Minuit,1997.

FOUCAULT, Michel. Arqueologia do saber. São Paulo: Forense Universitária, 2008.

FREITAS GUTFREIND, Cristiane. “Kracaeur e os fantas-mas da história : reflexões sobre o cinema brasileiro”. IN: Comunicação, Mídia e Consumo, n.15, 2009.

FRODON, Jean-Michel. “Le film et le plâtre’’. IN : Cahiers du Cinéma, n. 644, avril 2009.

HARTMAN, Geoffrey. “Holocausto, testemunho, arte e trau-ma”. IN: Catástrofe e representação. São Paulo: Escuta, 2000.

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A atualidade da teoria realista: reflexões sobre Filmes-Testemunho

KRACAUER, Siegfried. Theory of film: the redemption of physical reality. Princenton University Press, 1997.

LYOTARD, Jean-François. ‘’O a-cinema’’. IN : Teoria con-temporânea do cinema – pós-estruturalismo e filosofia analítica. São Paulo: Senac, 2005.

RANCIÈRE, Jacques. Le destin des images. Paris : La Fa-brique, 2003.

RICOEUR, Paul. Temps et récit. Paris : Seuil, tome 1, 1983.

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Narrativa Jornalística e Narrativas Sociais: Questões acerca da Representação da Realidade e Regimes de Visibilidade

3.Narrativa Jornalística e Narrativas

Sociais: Questões acerca da Representação da Realidade e

Regimes de Visibilidade

Edson Fernando Dalmonte1

A relação entre jornalismo e literatura pode ser conside-rada sob vários ângulos, desde simples paralelismos entre a arte de contar histórias, até o exercício de eleição de perso-nagens, um artifício amplamente utilizado pelo jornalismo contemporâneo, comum nos formatos impresso, rádio e televisão. A principal contribuição da literatura aos estudos de jornalismo, sem dúvida, é a própria tradição dos estu-dos literária, tanto longa quanto detalhada e em constante renovação. Dentre os pontos de contato, pode ser citada a perspectiva sinalada pelos estudos linguísticos, como as

1. Doutor em Comunicação, professor de Teorias da Comunicação e do Programa de Pós-Graduação em Comunicação e Cultura Contem-porâneas, Faculdade de Comunicação, Universidade Federal da Bahia. E-mail: [email protected]

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contribuições advindas de Saussure (2006), determinantes para os estudos de linguagem e análise do discurso.

A proposta do presente artigo é discutir a relação en-tre literatura e jornalismo sob a perspectiva da construção textual. Para tanto, considera-se a narrativa e discute-se a evolução de tal conceito e o descompasso da ideia de re-presentação da realidade e como o jornalismo busca esta-belecer estratégias para representar o real. Tal questão é fundamental, pois, em detrimento de outras tradições, o compromisso da narrativa jornalística é com a realidade. O jornalismo se constitui como lugar de articulação de dis-cursos sociais, com base no diálogo de interesse público e, consequentemente, agente mediador entre o mundo dos fatos e a instância de leitura/recepção. Toda a comunicação que interessa à opinião pública é mediada pela instância jornalística, que confere uma aura de importância ao que é narrado, pressupondo um processo de seleção dos fatos, apuração e articulação de vozes conflituosas etc.

No contexto dos novos ambientes tecnológicos, assen-tados em modalidades comunicacionais interativas, perce-be-se que discutir o conceito de narrativa não diz respeito meramente ao processo de encadeamento de fatos, como na tentativa de responder às questões básicas do lead2. O de-safio é exatamente ir além e questionar os novos elementos que compõem a narrativa jornalística. É óbvio que estamos diante de um novo quadro que requer outro enquadramen-to epistemológico, a fim de que se possa, inclusive, ques-tionar os limites entre a narrativa jornalística e as demais narrativas sociais.

2. “O quê?”, “Quem?”, “Quando?”, “Onde?”, “Como?”, e “Por quê?”.

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Quanto à narrativa

Inúmeras podem ser as acepções de narrativa. Como sugere Barthes (2008: 19), “várias são as narrativas do mun-do”. Exemplos podem ser pensados desde a articulação, a partir das várias linguagens, da fala à escrita, da pintura às imagens sintéticas, da tragédia grega às telenovelas. Da mesma forma, o ato de narrar está na literatura e no jor-nalismo. No contexto do discurso literário e, partindo da palavra francesa récit, que pode ser traduzida tanto como “relato” quanto “narrativa”, Genette (1995: 23-24) propõe uma conceituação da narrativa, a partir de três noções dis-tintas. Num primeiro momento, narrativa significa o enun-ciado narrativo, a discursividade, oral ou escrita, que descreve um acontecimento. O outro sentido designa uma sucessão de acontecimentos, reais ou não, encadeados a tal discurso, respeitando-se as relações de oposição, repetição etc. Por fim, a noção mais antiga, que designa um acontecimento, mas não acontecimento puramente, e sim o ato de narrar determinado feito.

No cerne da questão está a ideia de imitação que, na narrativa, refere-se ao ato de selecionar os elementos lin-guísticos que irão compor o fato reportado. Como sugere Aristóteles (2000: 103), “pois tal como há os que imitam muitas coisas, exprimindo-se com cores e figuras [...], assim acontece nas sobreditas artes: na verdade, todas elas imi-tam com o ritmo, a linguagem e a harmonia, usando estes elementos separada ou conjuntamente”. É interessante res-saltar que aquilo que é compreendido, usualmente, como narrativa é o que Aristóteles chama de simples narrativa ou narrativa mista. Ele se atém ao drama, que considera a mais perfeita forma de relatar um fato, como se nota na afirmação seguinte:

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É, pois, a tragédia imitação de uma acção de ca-ráter elevado, completa e de certa extensão, em linguagem ornamentada e com as várias espé-cies de ornamentos distribuídas pelas diversas partes do drama, imitação que se efectua não por narrativa, mas mediante actores, e que, sus-citando o terror e a piedade, tem por efeito a purificação dessas emoções. (ARISTÓTELES, 2000: 110, grifos do autor).

Dessa forma, para Aristóteles, é por meio da dramatiza-ção, da possibilidade de confronto, do diálogo eloquente, do uso de artifícios, que uma história pode ser contada com mais propriedade. Falando da imitação narrativa e, em ver-so, diz o autor que o mito aí relatado deve ser estruturado segundo a forma dramática, como na tragédia. Da mesma forma, para o autor, é preciso respeitar a ideia de completu-de da ação, ou seja, apresentar início, meio e fim, o que faz pensar na importância de situar o tempo, para a significa-ção daquilo que se conta. (ARISTÓTELES, 2000: 138).

Pelo exposto, constata-se que o ato de narrar um feito deve ser considerado movimento do narrador, resultante de seu empenho que, portanto, reflete-se na enunciação. Como lembra Genette, “sem acto narrativo, pois, não há enunciado e, às vezes, nem sequer ‘plano narrativo’” (1995: 24). Com base em tal premissa, aqui é adotada a expressão “plano narrativo”, designando os elementos escolhidos para a com-posição do relato que se pretende enunciar. Tal escolha é intencional e está marcada pelo efeito de sentido que se quer produzir ou o sentido final pretendido.

É a materialização das intencionalidades e as investiduras de sentido, cristalizadas na forma de texto, que interessa à análise do discurso. Cada organização discursiva adota estratégias para

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assegurar o efeito de real3, isto é, para conferir a si uma legiti-midade. Com o discurso jornalístico, da mesma forma, ao longo de sua consolidação, observa-se que vários elementos buscam assegurar coerência à narrativa, centrada na divul-gação de fatos vistos como relevantes para o cotidiano. A valorização dos acontecimentos e sua seleção estão situadas entre os elementos que aferem o sentido de veracidade aos fatos reportados pela mídia. Para tanto, é necessário ter cla-reza quanto ao que se concebe como notícia.

A apresentação do real é a condição necessária que justi-fica a existência do jornalismo. É importante ressaltar que tem havido divergência quanto a essa capacidade, ora vista como absoluta4, ora com parcimônia, uma vez que todo relato constitui uma versão dos fatos. O uso da fotografia, por exemplo, despontou como importante ferramenta para a construção de efeitos de sentido de real, o que é consegui-do pela plasticidade fotográfica e seu caráter de testemunho imagético. É interessante ressaltar, ainda, que a fotografia pode ser vista como fazendo parte de um duplo movimento: por um lado, entendida como um regime de significação; de outro, a fotografia tal como apropriada pelo discurso jornalístico.

3. O conceito de efeito de real, originário da ideia de efeito de sentido, como proposto pela semiótica, diz respeito aos objetivos do texto em representar a realidade. A exemplo da literatura “realista”, que se esmera em descrever o ambiente e o estado psicológico dos personagens, o jor-nalismo procura estabelecer estratégias de construção textual para estrei-tar os laços entre a narrativa e o fato reportado. (Cf. Dalmonte, 2008).

4. Embora não se possa falar de maneira simplória dessa necessidade que o jornalismo tem de falar, a partir do real, algumas concepções reducionistas tentaram limitar a práxis jornalística ao que Traquina (2004: 146-149) chama de “Teoria do espelho”, numa alusão ao desejo de que o jornalismo apresente, por meio de seus relatos, apenas aquilo que é observado, sem a menor interferência do repórter, que deve anu-lar totalmente a sua subjetividade, atingindo a total imparcialidade.

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Numa perspectiva histórica, a fotografia tem se apresen-tado como capaz de se aproximar do real, pois concilia natu-reza e cultura, presença e ausência; é capaz de marcar tanto a continuidade quanto a descontinuidade. A fotografia tem a capacidade de repetir aquilo que jamais irá se reproduzir, fa-zendo o objeto desaparecer (FLOCH, 1986: 14). De maneira dicotômica, a fotografia pode ser vista tanto como auxiliar das ciências e das artes quanto uma arte em si mesma. Essa polarização ao que tange aos usos da fotografia permite que se pense acerca do hiato entre aquilo que se chama “realida-de” e suas representações, ou melhor, as possibilidades de representação do real.

Para Barthes (2004: 22), considerando-se a literatura, o real não pode ser representável; ele é apenas demonstrá-vel. Da mesma forma, este é um ponto crucial para a es-truturação da narrativa jornalística, visto que o real apenas acontece, no mundo, no hic et nunc, no aqui e agora. Todo ato de narrar é uma tentativa de reportar o fato tal como acontece, no entanto, reside aí um ponto crítico, pois como ressalta Metz (2007: 30), a narração tem início, meio e fim, o que estabelece os limites entre a narrativa e o mundo, e marca sua oposição em relação ao mundo “real”.

A relação de oposição entre narrativa e real é explicitada por Metz (2007: 35), por meio do conceito de “irrealiza-ção”. Como ressalta o autor, a partir do momento em que a narrativa é percebida como real, ou seja, uma sequência temporal, com início e fim, tem-se, como consequência, o fato de “irrealizar a coisa-narrada”. Por irrealização, o autor define os limites entre o vivido e o narrado. Todo ato de narrar pressupõe um afastamento, no que concerne o mun-do real, ou seja, um ato de irrealização, pois o real apenas acontece como ação única, pressupondo a presença.

As reflexões de Metz são estabelecidas tomando como objeto o cinema e sua capacidade de narrar o real, como

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nas sequências de cunho documental. Com a passagem do cinema mudo para o falado, surge e a expectativa de que ele possa se colocar mais próximo do real. Essa expectativa está presente no avanço de todos os suportes midiáticos, como no caso do jornalismo, cujos suportes marcariam a superação em relação aos predecessores, no tocante à ca-pacidade de apresentar o real. Do impresso ao rádio, por exemplo, tem-se uma maior possibilidade de disponibilizar trechos da realidade, com o auxílio do áudio. Na evolução do impresso, o uso da fotografia, como já se viu, foi deter-minante para simular a presença da realidade, ou criar a ilusão referencial, a ideia de presença do objeto do mundo real, extralinguístico.

Em detrimento à fotografia, o cinema e a televisão, ao possibilitarem a inclusão do movimento na imagem, propi-ciam uma maior aproximação em relação ao real, embora aquilo que vem retratado, como narrativa, pressupõe o dis-tanciamento da realidade. O jornalismo, ao se apropriar das novas tecnologias, inclui todas as expectativas quanto às possibilidades de ampliar as modalidades da narrativa no sentido da realidade. Dessa forma, radiojornalismo e telejornalismo apresentam novos dispositivos de captação e transmissão dos fatos e, como principal recurso, desponta o “ao vivo”. Por meio desse recurso, é possível mostrar tre-chos da realidade ou simular a realidade.

Sobre os novos formatos jornalísticos, Fechine (2008: 162) chama a atenção para o fato de que o telejornalismo, por meio da inserção de participações “ao vivo” de repórteres, convocados pelos apresentadores, propõe estabelecer uma “concomitância temporal”. Observa-se, segundo a autora, que apresentador e repórter estão situados no mesmo agora da enunciação e do conteúdo que se enuncia. Chega-se a tal formato com a ajuda de aparatos tecnológicos, como helicópteros que transportam repórter e cinegrafista para cobrir um evento,

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permitindo que, a partir de um mesmo lugar, captem-se diferentes ângulos do objeto em questão.

De forma mais recente, o webjornalismo, ou o jornalis-mo praticado na Internet, por usar recursos como bases de dados, áudio e vídeo, num só ambiente, além da participa-ção do leitor, permite que um mesmo fato seja narrado por vários ângulos. Isso, em tese, possibilita uma evolução na estruturação da narrativa midiática.

Seguindo a lógica de que há semelhança no tocante ao conteúdo noticiado pelos grupos midiáticos, afirma-se a ne-cessidade de se buscar a diferenciação quanto a esse conte-údo. Mas, antes de o veículo estabelecer marcas para distin-guir o seu material de outros, com o objetivo de estabelecer e fidelizar seu público, um longo caminho é percorrido. São necessárias algumas rupturas, bem como a criação de artifí-cios para atrair e assegurar a permanência do receptor/lei-tor. Como exemplo de ruptura, além da paginação diária, no conjunto das estratégias, temos a criação do folhetim (MOUILLAUD; TÉTU, 1989: 58).

Como se pode notar, para se estabelecer, o jornal rom-peu com vários preceitos da tradição literária. Mas, para o estabelecimento dessa autonomia, sobretudo pela instau-ração de temporalidade própria, foi necessário constituir um vínculo com seu leitor, para provocar nele o desejo e a necessidade de retornar às páginas no dia seguinte. É des-se mesmo período a intensificação do uso do folhetim, a partir de 1836, por Émile de Girardin e Armand Dutacq, para promover a venda antecipada do jornal, por meio da assinatura. (HOHLFELDT, 2001: 90-91).

A ideia da descontinuidade do jornal, pela paginação diária, foi amenizada pela narrativa proposta pelo folhe-tim. Para Mouillaud e Tétu (1989: 58), “a originalidade do folhetim é que ele encontra, no dia seguinte, uma conti-nuidade, ao passo de que o jornal apenas sabe recomeçar”.

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Vale ressaltar, contudo, que o folhetim é uma modalidade discursiva literária, não jornalística.

O uso que Girardin deu ao folhetim foi diferente da-quele em vigor. O folhetim era um espaço, no rodapé da página, destinado à crítica literária. Girardin decidiu publi-car ficção em pedaços, com o chamariz mágico: “continua no próximo número”. A primeira produção a receber esse tratamento foi O lazarillo de Tormes, obra de forte apelo po-pular e anônima, portanto, livre de direitos autorais. Nesse mesmo ano, 1836, por encomenda de Girardin, Balzac pro-duz a novela La vieille fille.

Para Meyer (1996: 31), dentre as principais característi-cas desse folhetim-romance, é possível citar a precisão nos cortes, em momentos de grande tensão, assegurando a ma-nutenção do suspense quanto ao desenrolar da história. É esse suspense o responsável pelo retorno do leitor no dia seguinte. Se o jornal é diário, descontínuo, o folhetim vai garantir a periodicidade, para que o leitor tenha assegurada sua história com começo, meio e fim. Esse é apenas um exemplo das inovações e transformações para a consolida-ção da tradição do jornal, enquanto espaço para a materiali-zação de um discurso cristalizado e que necessita travar um diálogo estável com seu leitor.

O convite que o jornal lança ao leitor para que ele retor-ne às páginas, no dia seguinte, atua como importante élan para o reconhecimento daquele espaço como articulador de uma narrativa continuada. Por meio do artifício da nar-rativa folhetinesca, o jornal cria a expectativa quanto ao que virá amanhã, em estreita ligação com aquilo que aqui está hoje e veio ontem. Dessa forma, pode-se dizer que o folhetim contribui para a consolidação de uma narrativa continuada, embora feita aos pedaços.

A partir dessa constatação, pode-se ponderar sobre a

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importância da suíte5, que é o desdobramento de notícias, de forma continuada, enquanto for pertinente. Tomando-se por base os critérios de noticiabilidade, é possível perceber que tem mais chance de ser noticiado um fato se ele despertar interesse por dias consecutivos. Entre uma notícia que se es-gota num único dia e outra com possibilidades de desdobra-mentos imediatos, esta tem mais chance de ser veiculada.

A ideia de despertar no leitor desejo e necessidade de re-tornar ao veículo de comunicação, para acompanhar o des-dobramento dos fatos, é fundamental para a consolidação da narrativa diária do jornalismo. Quando desperta interes-se, é comum uma notícia ser alçada à categoria de rubrica, ou seção temporária, como ocorreu com a sucessão de João Paulo II, em abril de 2005. No período, a folha online criou a cobertura especial intitulada “Sucessão no Vaticano”, que acompanhou o desenrolar do processo de escolha do novo representante da Igreja Católica. A rubrica estava dividida em “Candidatos”, “Conclave”, “Dê sua opinião”, “Sagração” e “Sites relacionados”.

Quanto aos questionamentos acerca das novas potencialidades narrativas

Os novos ambientes interativos, como a Internet, têm possibilitado criar outras realidades discursivas focadas na construção coletiva de conteúdos. Tais questionamentos dizem respeito ao que O’Reilly (2005) chama de Web 2.0

5. “Suíte – do francês suite, isto é, série, sequência. Em jornalismo, designa a reportagem que explora os desdobramentos de um fato que foi notícia na edição anterior. Na Folha, toda suíte deve rememorar os fatos anteriormente divulgados.” (SUITE, 1996).

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ou uma Internet caracterizada pelo uso dos recursos inte-rativos. No caso do jornalismo, por meio da postagem de co-mentários, acontece o enriquecimento das bases de dados. Para fins de entendimento, um texto jornalístico disponibilizado na web pode representar uma base de dados6 simples, ao passo que o texto original acrescido de comentários pode representar a complexificação ou enriquecimento dos dados. Como ressalta O’Reilly (2005), um exemplo de ampliação da base de dados pela participação dos usuários é o site Amazon.com. Desde seu lançamento, a empresa adotou uma política de enriquecimen-to da informação, assegurada pela postagem de comentários e críticas de seus clientes/usuários.

O atual estágio da comunicação, a partir de tecnologias inte-rativas, permite questionar o conceito de narrativa jornalística, uma vez que o leitor/navegador é convocado a participar da construção do conteúdo, o que tradicionalmente sempre ficou a cargo da instância de produção. Esta não é uma questão sim-ples, pois o conceito de jornalismo participativo, ou cidadão, ainda é bastante discutível. Mas, é inegável que em detrimento de outras modalidades jornalísticas, as que são praticadas na rede de computadores estão mais abertas à colaboração em vá-rios níveis, desde a simples postagem de comentários, até seções criadas para a postagem de conteúdo.

O site OGlobo.com, que faz parte do portal Globo.com, colo-ca-se aberto à participação do leitor, como colaborador da cons-trução de sua narrativa. Na seção Eu - repórter (Fig. 1), convida o leitor a participar da produção de conteúdo, na modalidade

6. Num contexto marcado pela convergência das tecnologias da comu-nicação, o uso da base de dados tem permitido que o webjornalismo avance em novos territórios, desde o arquivamento de informação e disponibilização para pesquisa, até a criação de produtos dinâmicos a partir da indicação de acesso em seções como “mais lidos”, “mais acessados” etc.

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“jornalismo cidadão”, tradução do “citzen repórter”, repórter cidadão, que é o conceito de “jornalismo colaborativo”.

O início das experiências com a abertura de espaço para publicação de matérias feitas por não-jornalistas foi com OhmyNews7, site Sul-coreano, que estreou em fevereiro de 2000. Com o slogan “cada cidadão é um repórter” e, tendo em seu quadro apenas alguns jornalistas, começou a publi-car a contribuição de “cidadãos repórteres”. Numa fase pos-terior, passou a disponibilizar seu material em japonês e in-glês, formando a OhmyNews Internacional8. Outros exemplos

7. URL: http://www.ohmynews.com/

8. URL: http://english.ohmynews.com/

Figura 1: Home de O Globo, seção Eu - repórter, 20 de março de 2010.

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são o britânico Southport Repórter9 e o francês AgoraVox10.Nesse sentido, qualquer ciber-flâneur pode se deparar com

propostas-convite como estas:

Aqui, você faz a notícia.Mande sua história em foto, vídeo, texto e áudio.

Eu-Repórter é a seção de jornalismo participativo do Globo. Aqui, os leitores são repórteres.11

O lugar ocupado pelo webjornal não é o de uma instância centralizadora, que assume a postura de provedora absolu-ta de informação, mas que busca estabelecer contato com o leitor cidadão, convocado a colaborar com a construção da narrativa acerca da realidade. Com isso, o site do jornal deixa de ser o provedor pleno de informação, para se tornar local de articulação de modos de construção da notícia. É o que se vê pelo conteúdo apresentado no dia 20 de março de 2010:

Internauta registra ataque à árvore

Leitores registram incêndio em sobrado no Centro do Rio. Fotogaleria e vídeo

Descaso: Leitora denuncia poste mal conservado. Foto de Maria Castilho

9. URL: http://www.southportreporter.com/316/

10. URL: http://www.agoravox.fr/

11. URL: http://oglobo.globo.com/participe/

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A geografia dos problemas do Rio. As informações são dos leitores do GLOBO

Tais chamadas convocam o leitor, tomando por base narrativas propostas por outros leitores que, na condição de testemunhas dos fatos, são convidados a relatar a reali-dade vivenciada. Percebe-se, a partir dessa constatação, que as dimensões espaço e tempo são modificados pelo jornalis-mo praticado em ambientes interativos, como a Internet.

A revista Época, do dia 22 de junho de 2009, trouxe como chamada de capa:

“Irã 2.0 – como a rebelião pela Internet e pelo Twitter começou a transformar a república islâmica”.

O ponto central abordado é a crise que se instaurou no Irã por ocasião da reeleição do presidente Mahmoud Ahmadinejad, contestada por parte da população. O título é uma referência direta à Internet 2.0, especificamente, as ferra-mentas interativas oferecida por redes sociais como Facebook e Twitter e sites como Youtube.

Vítima de uma forte censura que permitia aos jornalistas divulgarem apenas informações favoráveis ao presidente re-eleito, a população encontrou nos recursos interativos um caminho para mostrar ao mundo a repressão a toda contes-tação às eleições. A troca de informação possibilitou tanto articular ações coordenadas para contestar os resultados da eleição, como furar a censura e estabelecer diálogo com a co-munidade internacional. Dentre as várias informações que circularam na rede, uma das mais conhecidas é o vídeo com as imagens do momento da morte da jovem Neda, divulgado

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no Youtube, que teve várias versões e milhares de acessos.Tais exemplos apresentam um questionamento à prática

do jornalismo, pois o que representa a abertura de espaço para o cidadão comum se manifestar no espaço jornalísti-co? Qual o impacto das narrativas sociais, como das redes sociais e Youtube, na narrativa jornalística? São narrativas distintas ou já não há mais barreiras entre elas?

A resposta a tais questionamentos obviamente não é simples; mas, seguramente, evidencia os desafios pelos quais passa o jornalismo na atualidade. De fato, ao homem contemporâneo é oferecida uma gama de ferramentas que tornam possível uma maior circulação de informação, o que faz ampliar o raio de ação do jornalismo. Contudo, as várias narrativas, aqui entendidas como sociais, que apre-sentam versões acerca do cotidiano real das pessoas reais, pode colaborar para o adensamento de uma narrativa es-pecífica, a jornalística, comprometida por um lado com a realidade representada e, por outro, com a comunidade de leitores. O momento atual vivido, no Irã, exemplifica exata-mente a possibilidade de contato entre o jornalismo, como instância que capta e faz circular a informação, e uma reali-dade que, não fossem as redes sociais, estaria praticamente fechada para o mundo. Essas novas possibilidades narrati-vas podem ampliar a noção de visibilidade (Gomes, 2008) e, mesmo, as disputas por regimes de visibilidade.

Ao retomar o conceito de “irrealização” (Metz: 2007), po-de-se argumentar que as várias narrativas sociais contribuem para “tornar real” aquilo que se narra, pois a ação única, vi-vida, pode ser partilhada por seus personagens diretos. Sob o ponto de vista discursivo, percebe-se uma mistura entre as instâncias enunciadora e destinatária, exemplificada por um jornalismo que se pretende ainda mais realista. A qual-quer momento, o leitor pode ocupar o lugar de provedor de informação. Essa é uma importante estratégia usada pelo

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jornalismo contemporâneo para se mostrar cada vez mais realista, simulando não haver limites entre o fato ocorrido, sua captação e veiculação. O “momento único” pode ser transmitido de qualquer ponto, por qualquer um.

As várias narrativas sociais podem contribuir com a nar-rativa jornalística, mas não devem ser confundidas com o jornalismo, concebido como uma instância que se deve cons-truir com base na independência e coerência quanto ao que divulga. O que estamos acompanhando, na verdade, é o de-senvolvimento de novos suportes para dar vazão à necessida-de de comunicação e conexão dos indivíduos. Talvez, esteja aí o cerne da questão atual que paira, como no Brasil, quan-do se questiona a obrigatoriedade do diploma de jornalismo. A confusão advém da equivocada tentativa de fazer equivaler liberdade de expressão e liberdade de imprensa; a primeira diz respeito ao indivíduo e a segunda à instância jornalística ou, numa visão mais crítica, às corporações midiáticas.

As novas modalidades de narrativas sociais estabelecem outros lugares de visibilidade que, agora, já não dependem apenas dos tradicionais veículos de comunicação para tornar públicos determinados assuntos, pois não há filtros. Ao invés de ser mostrado, o indivíduo, ou grupo, mostra-se e escolhe como ser enquadrado. Para além da visibilidade, agora acon-tece disputa pelos modos de ser mostrado, ou pelos regimes de visibilidade, o que reforça a natureza dos novos processos comunicacionais não mediados, em detrimento do modelo tradicional de jornalismo.

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Referências

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Reconfigurando as Teorias da Comunicação: as indústrias culturais em tempos de Internet

4.Reconfigurando as Teorias da

Comunicação: as indústrias culturais em tempos de Internet

Fernanda Capibaribe Leite1

Jeder Janotti Junior 2

Indústria, Consumo e Cultura Midiática

Muitas das apreciações da ideia de ‘indústria cultural’ estão focadas nos desdobramentos que a produção seriada dos bens culturais pode causar às relações sociais, salientan-do os aspectos ideológicos desse processo sobre os seres hu-manos. Boa parte das motivações sobre essas perspectivas envolve o fato de que uma série de transformações sobre o campo artístico, político e educacional estão conectadas

1. Mestra em Cultura e Sociedade, Professora do Departamento de Comunicação Social da Universidade Federal de Alagoas.

2. Pesquisador do CNPq, Professor do Departamento de Comunicação da Universidade Federal de Alagoas e do Programa de Pós-Graduação em Comunicação e Cultura Contemporâneas da Universidade Federal da Bahia.

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à presença marcante dos meios de comunicação em nosso cotidiano. Não é o caso de se questionar a importância des-sas abordagens e sim olhá-las de uma perspectiva que leve em conta não só os aspectos literários e filosóficos da ideia de cultura, como também seus aspectos antropológicos. Ou seja, parece necessário observar, como Raymond Williams, que: “É impossível, portanto, realizar uma análise cultural séria sem chegarmos a uma consciência do próprio concei-to: uma consciência que deve ser histórica”, como irá ver (1979, pag. 17).

Essa perspectiva aponta, além de um debate conceitual, para uma discussão crítica sobre o papel que os meios de comunicação ocupam nas expressões culturais contempo-râneas. Antes de uma separação estanque, nota-se que o termo cultura, tal como utilizado em seu sentido habitual, envolve as ideias de valores, conhecimento letrado, artes e modos de vida. Como mostra Williams (1979), não se pode simplesmente assimilar como “natural” as relações entre cultura e intelecto, afinal, até hoje, cultura também signi-fica modos de expressões populares, cultivo agrícola e, não menos importante, a cultura forjada através dos produtos midiáticos. Isso sem falar dos modos de cultura ditos “al-ternativos” aos padrões hegemônicos gerados pelas novas tecnologias, bem como as heranças românticas associadas aos estilos de vida rurais e ao consumo de produtos “orgâ-nicos”. Tudo isso demonstra dois aspectos importantes que podem ser ressaltados a partir dessa introdução:

1) cultura é um conceito heterogêneo que engloba disputas em torno de ideias e modos de vida e

2) essa complexidade envolve formas residuais, hegemôni-cas e emergentes de conformação da cultura, que convivem em meio à cultura midiática.

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Os próprios estudos das teorias da comunicação, muitas vezes, desdobram-se em abordagens de aspectos emergen-tes das indústrias culturais focadas nas transformações dos polos da emissão/recepção, que vêm ocorrendo, a partir das reconfigurações do consumo de bens culturais e das possibilidades oferecidas com o desenvolvimento das novas tecnologias – como a ideia de pós-massivo (LEMOS, 2007), ou o consumo de música após o MP3 –, coexistindo com traços hegemônicos da mesma cultura midiática que se mantém na circulação em grande escala de produtos tele-visivos, como os telejornais das grandes redes de comunica-ção brasileira (GOMES, 2010).

É preciso lembrar que, apesar de inter-relações pos-síveis entre faixa etária, poder aquisitivo, domínio dos aparelhos tecnológicos e meios de comunicação, ainda estamos longe de uma clivagem plena entre consumido-res de novas tecnologias e aqueles das mídias tradicio-nais. Em escala diferenciada, podemos observar ligações (assim como distanciamentos) entre uma rede de con-sumo midiática que não exclui o fato de que leitores de jornais impressos e telenovelas também consumam informações segmentadas na Internet, ou que indivídu-os centrados no consumo de novas tecnologias, como os videogames, continuem como espectadores de produtos de ampla audiência, como a transmissão dos campeona-tos de futebol pelas grandes emissoras de televisão, por exemplo. Muitas vezes, valoriza-se a utilização do meio como elemento determinante das possíveis transfor-mações da comunicação contemporânea, sem levar em consideração a permanência de certos conteúdos (como a telenovela e os jogos de futebol). Segundo matéria vei-culada pelo Jornal Folha de São Paulo:

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O instituto (Ibope) e as redes de TV têm o desa-fio de renovar o modelo de medição de audiên-cia, hoje restrito ao movimento do telespecta-dor entre os canais do televisor. O novo passo é mensurar o acesso ao conteúdo, que pode ser feito no celular, no computador etc., como a Nielsen começa a testar, neste ano, nos Estados Unidos. (MATTOS; RUSSO, 2010, pag. 01).

Como boa parte das perspectivas que levam em conta so-mente uma espécie de degradação dos “gostos culturais” não reconhece a complexidade do consumo dos produtos cultu-rais, no mundo contemporâneo, muitas vezes, lamenta-se o alto índice do consumo dos produtos serializados tradicio-nais, sem levar em consideração as próprias relações entre a diversidade dos consumos nos dias atuais. Talvez, se as teorias focadas na ideia de cultura como cultivo do intelecto levassem em conta parte dos estudos de efeitos que se desen-volveram para dar conta da avaliação dos resultados de cam-panhas políticas, por exemplo, teríamos, pelo menos, alguns apontamentos para a variedade de consumo dos produtos midiáticos por um mesmo indivíduo, o que afeta a amplitu-de dos efeitos possíveis. Como demonstra Hohlfeld:

Conclui-se, assim, que a influência do agendamen-to por parte da mídia depende, efetivamente, do grau de exposição que o receptor esteja exposto, mas, mais que isso, do tipo de mídia, do grau de relevância e interesse que este receptor venha a em-prestar ao tema, a saliência que ele lhe reconhecer, sua necessidade de orientação ou sua falta de infor-mação, ou, ainda, seu grau de incerteza, além dos diferentes níveis de comunicação interpessoal que desenvolver. (2001, p. 200).

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Trata-se, portanto, de ideias que demonstram que, antes de observar os supostos efeitos das convergências midiáti-cas, devem ser observadas, também, as inter-relações entre os meios, seus funcionamentos sociais e consumos. É pos-sível fazer suposições econômicas entre o lançamento de filmes das sagas Crepúsculo, Senhor dos Anéis e Harry Potter com a venda de livros, videogames e diversos produtos liga-dos aos filmes. Mas, isso é apenas uma pequena pista sobre as transformações nos processos de leitura, conexão entre mídias diversas e consumos culturais. Sobre uma mesma base, a ideia de que esses produtos estão inseridos na lógica das indústrias culturais esconde questionamentos sobre a apreensão dos produtos midiáticos. Afinal, a leitura ainda é uma forma cultural hegemônica? Que leitura é essa que engloba livro e produtos audiovisuais? Isso seria uma trans-formação do conceito de leitura ou configura novas formas de interação entre consumos culturais diversos?

É bom observar que, com isto, não se quer afirmar o arcaísmo do conceito de ‘indústria cultural’ e sim sua atualidade quando abordado a partir de sua complexida-de. Talvez, por isso, hoje alguns autores, como Bernard Miége (2007), prefiram o termo no plural (indústrias culturais), tentando dar conta não só da complexidade das produções serializadas da cultura, mas também das tensões envolvidas nas expressões culturais do universo da comunicação contemporânea.

Sobre as Diferentes Práticas Culturais

Muitos trabalhos ligados ao mundo do Jornalismo to-cam na questão das indústrias culturais, a partir de suas ro-tinas produtivas, tais como o faz a hipótese do Newsmaking

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(WOLF, 1987), mostrando como as culturas empresariais e a concepção do jornalismo, como uma instituição, influen-cia na confecção do produto informacional. Ampliando essa perspectiva para o consumo e para um leque mais am-plo dos produtos midiáticos (que envolvem não só produtos informacionais, bem como de entretenimento, educativos e de apreciação estética), pode-se notar a complexidade das produções culturais no campo produtivo e, também, nos espaços para os diferentes papéis que podem ser exercidos e mobilizados pelos próprios consumidores dos bens de co-municação. Como disse Williams:

Se tivermos aprendido a ver a relação de qual-quer trabalho cultural, com o que aprendemos a chamar ‘sistemas de signos’ [e essa foi uma contribuição importante da semiótica cultu-ral], também chegaremos a ver que um siste-ma de signos é em si uma estrutura específica de relações sociais: ‘internamente’, porque os signos dependem de, foram formados em rela-ções; ‘externamente’, porque o sistema depen-de de, é formado de instituições que o ativam [e que são ao mesmo tempo culturais, sociais e econômicas]; integralmente, porque um ‘sis-tema de signos’, devidamente compreendido, é, ao mesmo tempo, uma tecnologia cultural específica e uma forma específica de consci-ência prática. Esses elementos aparentemente diversos estão, na verdade, unificados no pro-cesso social material. O trabalho que se realiza atualmente sobre a fotografia, filme, livro, pin-tura e sua reprodução, no fluxo de imagens da televisão, para tomarmos apenas os exemplos mais imediatos, é uma Sociologia da Cultura

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nessa nova dimensão, da qual nenhum aspec-to do processo é excluído e na qual as relações ativas e formativas de um processo, até os seus ‘produtos’ ainda ativos, são especifica e estru-turalmente ligadas – ao mesmo tempo uma So-ciologia e uma Estética. (1979, p. 142).

Desse modo, podemos pensar uma nova rede de relações entre indivíduo (e o consumo cultural atomizado dos meios de comunicação) e relações sociais (sem descartar aspectos hegemônicos da cultura midiática). Se, de um lado, é possí-vel enxergar, na indústria da música, uma série de elemen-tos da reprodutibilidade técnica apontadas por Adorno, Horkheimer e Walter Benjamin, de outro, percebemos que determinadas práticas – e a troca de arquivos na Internet é apenas uma delas – colocam, em cena, a própria diversidade das indústrias culturais. As práticas musicais cotidianas, por exemplo, devido a sua anterioridade às indústrias culturais (já era possível antes adquirir um instrumento e criar com-posições próprias), desenrolam um papel na indústria da música de modo a colocar em diferentes patamares o polo da emissão e o da recepção. Para os jovens que sonham com a carreira musical (ou mesmo os que não almejam comerciali-zar suas produções), é possível, hoje, adentrar no universo da música com criações caseiras, o que permite a separação entre os mundos da embalagem do produto e suas práticas criativas, mesmo que, em grande medida, eles estejam inter-relacionados. Contudo, não podemos fazer essas mesmas considerações para todos os tipos de produtos culturais/midiáticos.

No universo das telenovelas, a não ser como “paródia trash”, dificilmente é cabível imaginar uma produção casei-ra que, através do youtube ou myspace, alcance o sucesso das grandes redes de TV. Claro que uma boa ideia, no youtube, pode servir como forma de visibilidade para os gerentes

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das indústrias audiovisuais, mas não funciona como o caso da música, no qual o produto pode alcançar uma rede de shows e, consequentemente, de profissionalização sem de-pender necessariamente de grandes intermediações empre-sariais. O caso já muito citado da artista Malú Magalhães, ou a rede de festivais ABRAFIN (Associação Brasileira de Festivais Independentes)3 são exemplos que permitem pensar nas diferenças entre formatos culturais e formatos tecnológicos de armazenamento e/ou distribuição dos pro-dutos midiáticos.

O secular formato do romance, interiorizado e assi-milado por quase todas as sociedades letradas do mundo contemporâneo, possibilita, em tese, que qualquer um de nós, com boa vontade e disposição, possa escrever um livro de ficção sem maiores conhecimentos dos sistemas atuais de design e edição por demanda da indústria edito-rial. Por essa perspectiva, qualquer um poderia reivindicar para si o papel de produtor criativo da indústria do livro. Contudo, adentrar, de fato, nos meandros dessa indústria cultural significa fazer parte de todo um processo de em-balagem, marketing, diagramação, distribuição, posiciona-mento e disponibilização não só do tradicional formato material do livro, mas de suas novas possibilidades de exis-tência, como e-book. Hoje, é possível localizar experiências que serviram para posicionar alguns autores no mercado, a partir de criações que envolviam tanto os formatos cul-turais quanto os tecnológicos, inclusive.

Vale ressaltar que essa separação entre formatos é funcio-nal apenas para que possamos compreender os tipos de re-lações entre os aspectos criativos e mercadológicos em suas

3. A partir da conjunção de festivais alternativos de música, ao redor do Brasil, a associação acabou se firmando como referência nas novas tendências do rock e da nova música popular brasileira.

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diferenças, de acordo com as indústrias culturais distintas. Pensando sob o prisma de uma sociologia da cultura, essa fratura parece ser inoperante, já que os formatos tecnológi-cos afetam o modo de se fazer música, escrever um livro, ou editar um produto audiovisual. Parte da própria editoração de textos de jornais impressos e online relaciona suas con-dições de produção aos estilos de leitura pressupostos nas condições de consumo de seus assinantes. Podemos, inclu-sive, alargar a noção de convergência midiática, ao relacio-nar os aspectos econômicos envolvidos nesse contexto, por meio da fusão de grandes empresas de comunicação que atuam em um mesmo ramo cultural – como, por exemplo, o mercado editorial –, em nível global ou, ainda, pensando os grandes conglomerados que envolvem indústrias cultu-rais distintas – como o grupo Sony, que abarca indústrias editoriais, audiovisuais, de hardwares e softwares. Isso sem falar no que acontece com os consumidores contemporâ-neos que navegam por diferentes formatos de consumo dos produtos da cultura.

Os exemplos mostram como é complexo e diversificado o universo das indústrias culturais. No entanto, uma coisa parece manter vivo o seu conceito: a relação entre produtos realizados para serem comercializados em escala serializada e uma disponibilidade cultural para o consumo igualmente serial desses bens.

Assim, é possível inferir que a Internet, configurando-se, ao mesmo tempo, como meio tecnológico, de comunicação, de mercado e interação social, permitiu uma transformação na ca-pacidade que os usuários possuem de tornarem-se difusores de informação. Qualquer um pode adentrar o universo da blogos-fera e postar suas opiniões o que, em princípio, sugere um ho-rizonte mais democrático da produção e circulação de conteú-dos, além de apontar uma via alternativa à lógica do consumo, através das indústrias culturais, na medida em que esse aspecto,

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certamente, muda as possibilidades de oferta de conteúdo e de transversalidade entre os polos da emissão e recepção.

Contudo, uma navegação crítica pela blogosfera ou pelas plataformas de relacionamento social, como myspace.com e twitter.com, mostra que existe um investimento significativo das indústrias da música e do jornalismo nesses espaços.

Esses fenômenos indicam, como contraponto, que estar na mesma plataforma, produzindo música caseira ou infor-mação, não pressupõe, necessariamente, que se irá atingir a mesma visibilidade de blogs e páginas virtuais de músicos e colunistas que possuem capital simbólico, capacidade de agendamento e designers especializados para desenvolver layouts diferenciados. É possível observar a existência de milhões de blogs sobre culinária, arte, música, literatura e política; mas, em sua maioria, os que aparecem como pri-meiras referências, nas buscas do Google, obedecem a pres-supostos da rotina de produção jornalística e ao patrocínio de grandes empresas, inclusive de comunicação. Assim, é possível notar que, ao lado da abundância de informação, ainda persiste, de certo modo, o valor agregado aos conglo-merados midiáticos.

Antes de concordar que os blogs são os responsáveis pelo declínio de vendas dos jornais impressos, é preciso pergun-tar, portanto, em que medida este declínio não está asso-ciado ao acesso e consumo dos jornais online das mesmas indústrias jornalísticas, incluindo aí o forte investimento em blogs e plataformas de relacionamento. O jornal Folha de São Paulo, por exemplo, tem todos os seus pacotes de as-sinatura da versão impressa combinados, atualmente, com versões eletrônicas, com a recente opção, inclusive, de assi-natura, exclusivamente, da Folha Digital. Considerando as facilidades de acesso já mencionadas, combinadas à redução dos custos tanto para quem consome, quanto para quem produz, não é de se estranhar a consideração dos adeptos da

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cibercultura de que, a médio ou longo prazo, a interface digi-tal suplantaria a impressa. Contudo, essa consideração não pressupõe uma modificação significativa na lógica de fun-cionamento mercadológica dos veículos de comunicação.

De modo análogo, no mundo da música, devemos lem-brar que, mesmo tendo a facilidade de colocar sua produ-ção no myspace, músicos de uma pequena cidade do norte brasileiro, muito dificilmente, conseguiriam a mesma visi-bilidade dos irlandeses do U2, que possuem um amplo staff da indústria musical, trabalhando sua imagem e a disponi-bilização de conteúdo da banda pela Internet. Não esqueça-mos, ainda, que esse fato se reveste em milhões de dólares em direitos conexos em filmes, propagandas e, principal-mente, em grandes turnês ao redor do mundo. Claro, com a web temos uma nova perspectiva, na qual, pequenos e grandes têm a possibilidade de habitar o mesmo espaço, mas isso não significa uma equação direta e proporcional em termos de visibilidade e capital simbólico.

Vale lembrar, ainda, que uma das concepções do con-ceito de indústrias culturais que faz com que o termo per-maneça mais do que atual é a capacidade que os grandes conglomerados possuem de investirem na transformação do valor de uso dos produtos culturais em valor de troca. De acordo com Miége:

[...] Certamente, para parar ou gerir os efeitos de tal situação ligada ao caráter incerto (ou pelo menos aleatório) do valor dos produtos, os industriais lançaram contra-ataques: cálcu-lo dos custos não por produto, mas por uma série ou catálogo; fixação do preço de vendas com margens significativas além das normas usuais; a não salarização do pessoal de concep-ção (cf.abaixo); divisão dos riscos econômicos

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com pequenos prestadores chamados a correr riscos econômicos com pequenos prestadores chamados a correr os riscos artísticos e a ino-var; gestão fina de estoques (ás vezes, ao en-cargo dos divulgadores); busca recorrente aos incentivos públicos diverso justificados pela es-pecificidade da produção; confinamento nos espaços linguísticos ou nacionais protegidos; estudos de audiência para ajustar o «alvo» etc. Esses traços originais são de qualquer forma estruturais, são eles que justificam um trata-mento a parte das indústrias, não como um setor arcaico (como se pretendeu), mas como um setor irredutível, pelo menos até hoje. Um desafio de grande dimensão afirma-se coma emergência das TICs: a submissão reforçada às normas da produção capitalista avançada con-duzirá ao abandono dessas práticas específicas ou,o que não é muito diferente, à sua margina-lização nos ramos de dimensão secundária? A interrogação é bem atual (2007,p.45-46).

O que faz pensar que os nichos abertos pela Internet am-pliam as possibilidades de atuação dos jornalistas, mas apon-tam para a manutenção das especificidades dessas profissões no mundo das indústrias culturais contemporâneas. Ou seja, para se pensar a comunicação contemporânea parece que é necessá-rio perceber como algumas formas residuais de comunicação (o agendamento das indústrias jornalísticas) convivem ao lado de formas emergentes (a crítica na blogosfera). Mais uma vez, es-tamos diante da convivência tensiva (e dialogal) entre formas culturais residuais, hegemônicas e emergentes.

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Convergências e transformações na relação entre produção e consumo midiáticos

A partir do que foi dito até agora, é interessante que se possa indagar sobre a permanência de alguns formatos midi-áticos e extinção de outros e, em que medida podemos falar em coexistência, estabelecendo consumos distintos, porém, agregados. Muito se tem discutido sobre como a Internet pode ameaçar a continuidade de práticas de consumo midi-áticas já estabelecidas, a exemplo dos jornais impressos, ou dos espaços de circulação das produções videográficas para além da sua postagem na grande rede.

O acesso aos grandes portais eletrônicos de notícias, por meio dos computadores domésticos, prenuncia para al-guns a gradual extinção do consumo do impresso, por uma questão de comodidade por um lado – as versões digitais possibilitam o acesso simultâneo com outras atividades na rede, através da mesma interface da tela, conjugando ações e aproveitando o conteúdo já digitalizado para fins diversos –, e da possibilidade de busca direcionada dos assuntos de interesse por outro – através do sistema em rede de veicula-ção hipertextual, por meio de links, pode-se “afunilar” a busca em diferentes formatos midiáticos, especificando a pesqui-sa, a partir dos temas de interesse. Assim, apesar da política empresarial dos meios manterem medidas de proteção das suas rotinas produtivas, tais como configuradas nas práticas já consolidadas de produção, é possível observar um investi-mento cada vez maior nas versões online e inserção na lógica do hipertexto como estratégias para alcançar o usuário das novas tecnologias e ampliar as possibilidades de consumo.

Ainda no rol das produções midiáticas, talvez o campo do audiovisual, ao lado da música, seja o que mais mate-rialize as tensões vigentes entre extinção e coexistência dos seus produtos na contemporaneidade. Se antes tínhamos

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as produções videográficas direcionadas, majoritariamente, a espaços de circulação coletivos e presenciais, através de salas, mostras e festivais específicos e, nos quais, os suportes dessas produções requeriam considerável investimento de recursos e profissionais capacitados para a sua realização, hoje sítios eletrônicos, como o youtube, constituem-se como o banco de imagens digitais e de distribuição por excelência desses bens. No campo da produção, a redução de custos e a facilidades de convergência entre os formatos e suportes digitais aumentaram as produções caseiras, ao mesmo tem-po em que permitiu uma maior abrangência de realizadores (e consequente profissionalização) na área.

No campo da recepção e, considerando que a rede passa a ser o grande canal de escoamento dessas produções ima-géticas, esse fenômeno implica, por um lado, no consumo ampliado em larga escala, por meio do aumento significa-tivo do acesso em relação aos consumidores/fruidores dos festivais; por outro, no enfraquecimento das dinâmicas de circulação das produções e das pessoas em espaços de socia-lização, convívio e coletividade, instaurando práticas outras de recepção que não apenas as observadas anteriormente. Cabe-nos indagar, contudo, se essas transformações são inauguradas ou não apenas com as dinâmicas surgidas a partir dos novos meios eletrônicos digitalizados? Quando observamos a redistribuição dos bens culturais ocorrida, a partir de meados do sec. XX, é possível constatar o aumen-to significativo dos aparelhos de televisão, que passaram a habitar massivamente as unidades domiciliares, causando o fenômeno que Mabel Piccini classifica como “o refúgio na intimidade doméstica” (2003, p. 08). Em contrapartida, as pequenas salas de cinema, antes espalhadas pelos diversos bairros das grandes cidades e, também, em cidades meno-res, foram gradualmente cedendo seus espaços aos centros comerciais, instituições religiosas, repartições públicas etc.

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A veiculação das produções cinematográficas, então, pas-sou a estar, majoritariamente, espalhada nos complexos das grandes salas de distribuidoras norte-americanas, normal-mente alocadas em conglomerados comerciais, a exemplo dos shoppings centers (PICCINI, 2003).

Certamente, o acesso a esses locais, as suas vias de en-trada, relacionam-se com o poder aquisitivo, reafirmando hierarquias de classe e poder entre a população e, assim, acentuando as distâncias e as relações desiguais nos mapas sociais. Quem não podia “comprar” esse pacote de consu-mo cultural, de certa forma, acabava ficando de fora e as populações de bairros mais populares, além daquelas de cidades do interior, portanto, foram adaptando-se a esses novos ritmos, no consumo das produções midiáticas, nos quais a televisão atingiu um alcance significativo. No en-tanto, na ultima década, pudemos observar um retorno dos cinemas de bairro, movimento incentivado pela expansão dos projetos sociais de inclusão e acesso ao mundo das ima-gens, além do aumento das salas de arte, com distribuição de filmes “alternativos”, juntamente com o fortalecimen-to dos festivais de cinema e audiovisual, mostrando que as dinâmicas de funcionamento das indústrias culturais não atuam de forma linear, no ritmo frenético da vertigem tec-nológica, mas de forma cíclica, sob as demandas vigentes que não abarcam, necessariamente, apenas aquilo que se institui como novidade como também se apropriam das novas ferramentas, enquanto estratégias de reafirmação das antigas práticas.

As experiências, acima explicitadas, nos indicam que, para além das transformações que se mostram eficazes, essencialmente no aproveitamento das novas práticas de produção e consumo midiáticos, direcionando-se a super-posição de sua lógica em relação às vigentes anteriormente, não devemos perder de vista a perspectiva das dinâmicas

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de convergência midiática, estas estabelecidas pelos proces-sos socioculturais nelas engendrados. Em grande medida, essas dinâmicas são desencadeadoras dos fluxos e refluxos que possibilitam a coexistência de múltiplas formas de con-sumo e agregam públicos diversos em contextos distintos. Mais uma vez, a construção dos imaginários e os novos modelos de subjetivação e socialização das experiências contemporâneas, demonstram que a convivência com os modelos tradicionais das indústrias culturais acontece, a partir de resignificações constantes, através de permanências e descontinuidades.

Considerações finais: novas morfologias sociais, transformações culturais e seus pressupostos de inclusão

O novo sistema de comunicação difundido, na segunda metade da década de 90 – baseado na integração através de redes digitalizadas e que possibilitou múltiplos formatos de comunicação – veio expor ao mundo a sua capacidade de incluir e abranger as várias facetas das expressões culturais (CASTELS, 1999a). Em tese, a diversificação e versatilida-de apresentada pelas novas tecnologias da comunicação e informação mostraram-se capazes “de abarcar e integrar todas as formas de expressão, bem como a diversidade de interesses, valores e imaginações, inclusive a expressão de conflitos sociais” (CASTELS, 1999b, p. 461).

Além disso, os produtores de tecnologia para a Inter-net, que foram fundamentalmente, também, seus usuários, inovando e retroalimentando a própria rede, terminaram por configurar a sua utilização numa relação estabelecida com base na otimização da cooperação, tanto em nível local

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quanto internacional, “sob um regime de autogestão, in-formalmente, através de uma série de personalidades [...]” que acabaram por se ocupar do seu desenvolvimento sem a intervenção imediata dos grandes conglomerados empre-sariais, ou das instâncias governamentais. “Quer dizer, é um instrumento de comunicação livre, criado de forma múltipla por pessoas, setores e inovadores que queriam que fosse um instrumento de comunicação livre” (CASTELS, 2004, p. 261.Isso significa, sem dúvida, uma ampliação dos vínculos e uma transformação nas relações entre produção e consumo midiáticos, no que diz respeito ao que se vinha estabelecen-do, até então, porque a ideia das redes sociais eletrônicas, potencializadas pela popularização e uso crescente da Inter-net, acabou se difundindo não apenas vinculada aos inte-resses financeiros e hegemônicos, mas também como local de encontro de minorias e de grupos artísticos, educativos, culturais etc. No entanto, a inclusão, nesse sistema, pressu-põe, em primeiro lugar, o conhecimento das interfaces e dis-positivos necessários ao seu acesso, como equipamentos, sof-twares específicos e sistemas logísticos capazes de permitir a entrada em seus diversos “portais”. Em segundo, para estar-mos em rede, precisamos de uma “adaptação à sua lógica, à sua linguagem, aos seus pontos de entrada, a sua codificação e decodificação” (CASTELS, 1999a, p. 461). Não se trata simplesmente de apropriarmo-nos da Internet, mas, antes, de entendermos a nova morfologia social que ela gera.

A grande rede instaura, através das práticas que veio a possi-bilitar, uma nova dinâmica cultural, a dinâmica da “virtualida-de”, com seu próprio “espaço de fluxos” e “tempo intemporal”, constituindo-se como bases que transcendem e, simultaneamen-te, incluem a “diversidade dos sistemas de representação histo-ricamente transmitidos” (CASTELS, 1999b, p. 462). Porém, todas essas transformações reivindicam para si uma deter-minada inclusão que não prescinde de requisitos específicos

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tanto em suas práticas produtivas quanto de recepção. Essa nova dinâmica traz, portanto, junto com as possibilidades de expansão, o estabelecimento de políticas de funciona-mento tensivas em suas formas de gestão e manutenção. Isto porque saber acessar in stream – ou mesmo baixar – um vídeo no youtube não significa dominar os mecanismos e ferramentas presentes nos softwares de edição de imagens e sua postagem na rede.

Ainda, no exemplo da cultura imagética, podemos cons-tatar que as redes audiovisuais informatizadas e organizadas em sistemas multimídia, através da tecnologia digital, tra-zem como potência a capacidade de abranger uma maior diversidade de discursos e expressões de alteridade nas nar-rativas construídas. E isso se deve não somente às mudan-ças na relação entre emissão e recepção da informação, mas também das possibilidades de interatividade como recurso de escolha e intervenção. Sem dúvida, há uma contribuição efetiva para que os indivíduos e coletivos “se busquem”, criem laços de afinidades, possam interagir sem a suprema-cia da informação transmitida verticalmente.

No entanto, se podemos afirmar que as tecnologias da imagem visam à configuração de uma relação agregadora e que pertença, é igualmente verdade que as elas também distribuem, subdividem e segregam a organização do corpo social. As tecnologias digitais relacionadas à produção, trans-missão e recepção audiovisual têm os seus códigos e o acesso é permitido na medida em que a decodificação seja feita. No âmbito da produção, tanto o cinema, quanto a televisão, a In-ternet, ou os sistemas multimídia, requerem um determinado conhecimento técnico, aporte de recursos e disponibilidade de equipamentos. No âmbito da transmissão, as produções realizadas precisam ter acesso a uma via de passagem para a veiculação, que depende de um suporte, de sua lógica de funcionamento e da proposta dos seus gestores. No âmbito

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da recepção, podemos considerar que nem todos os espec-tadores são também produtores e, ainda, nem todos têm acesso a todas as formas de transmissão. Além de modificar a nossa relação com os espaços simbólicos e a territorialida-de, o objeto técnico – e suas projeções narrativas – também continua definindo, assim, seus espaços de acesso.

Portanto, o fato de, potencialmente, a Internet vir a possibilitar uma produção transversal e, em grande medi-da, não hierarquizada não incide diretamente no fato de que todos serão usuários da rede e a acessarão enquanto produtores; mas, ao contrário, o que se pode observar é que temos os usuários das redes telemáticas, reproduzindo o modelo de recepção vigente nos meios de comunicação de massa em seus formatos tradicionais, ou seja, o usuário padrão atua majoritariamente como receptor, buscando nas redes as telemáticas de interesse, mas não interferin-do de forma significativa em seu conteúdo. Obviamente, o fato de se poder observar que a busca se dá de maneira mais direcional e específica, indicando aí um processo de apropriação da forma de ter acesso às produções, já é um diferencial em relação ao acompanhamento de uma grade de programação pré-estabelecida da televisão aberta, por exemplo. No entanto, ainda assim, permanecemos com uma grande quantidade de usuários-receptores que con-tribuem com uma parcela muito reduzida nas produções postadas em rede. Isso porque a inclusão desse usuário mé-dio, ao sistema das referidas produções, não é automática, mesmo considerando a disponibilidade dos equipamentos e dispositivos. Não adianta ter acesso a eles se não souber-mos como utilizá-los.

É preciso lembrar, ainda, que ao lado da utilização maci-ça das câmeras dos celulares, o mundo caminha para uma concentração das operadoras de celular. Ao contrário do que ocorreu com a indústria da música, que foi pega no contrapé

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das mudanças propiciadas pelas culturas do download, as in-dústrias do livro parecem se adiantar às possíveis transforma-ções, englobando o reconhecimento da transformação das práticas de leitura, das mudanças dos suportes de circulação e disponibilização do conteúdo literário, tal como demons-tram as disputas em torno do mercado de aparelhos de leitu-ra. O usuário-produtor necessita dominar as ferramentas de produção digital e, em rede, através das interfaces e logísticas específicas, incluindo-se enquanto um agente de transforma-ção, no mundo virtual, e não apenas como seu consumidor.

Tudo isso demonstra que o conceito de “indústrias cul-turais” deve ser pensado de maneira ampla, reconhecendo a permanência (juntamente com as transformações) das ro-tinas produtivas, de consumo centrado na produção seriada e, ao mesmo tempo, reconhecendo o estabelecimento de formas culturais emergentes, centradas em novas práticas de comunicação que convivem e, às vezes, misturam-se às práti-cas ditas residuais, tais como podem ser observadas nas inter-relações entre os conteúdos tradicionais do jornalismo, da canção e dos filmes ao lado de novas formas de circulação/apreensão desses conteúdos. O que é certo, é que a compre-ensão da cultura como um lugar de disputa permite enxergar a importância de uma abordagem que leve em conta os aspec-tos industrializados da produção midiática contemporânea.

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Comunicação Iconográfica: Linguagens, Significados e Imaginário

5.Comunicação Iconográfica:

Linguagens, Significados e Imaginário

Maria Beatriz Furtado Rahde 1

PUC- RS

[email protected]

A produção imagística do homem, mais remota e tão im-portante quanto o universo das palavras, sempre se consti-tuiu em meio de comunicação e produção cultural, desde a Era Primitiva até a contemporaneidade, quando o homem criou, fabricou e estabeleceu símbolos e formas que deram sentido à sua existência.

Ao compartilhar elementos de comportamento ou mo-dos de vida, pela existência de um conjunto de regras, diz Cherry (1971), estamos gerando cultura, afinal, quando di-vidimos e unimos ideias com uma, duas ou mais pessoas, produzimos e criamos cultura. Assim, diz Duarte Jr. (2002), a cultura inicia com o aparecimento do homem no planeta Terra e, com ela, as diversas formas que encontramos de

1. Dra em Educação FACED/PUCRS. Professora Titular da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PPGCom/ FAMECOS/PUCRS ) Pesquisadora PIBIC/PUCRS/CNPq.

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nos comunicar com nossos semelhantes. Retomando passa-dos distantes e aproximados, constatamos, neste início de milênio, em que as mais variadas tendências de representa-ções visuais se entrelaçam, criando novas teorias pelas quais os homens se comunicam. As imagens criadas pela moder-nidade, por exemplo, buscaram o novo, que teria de surpre-ender até o inovador: uma imagem plena de ressonâncias e suavidades, não representava mais valor algum.

Opondo-se ao Classicismo, ao Romantismo, ao Realis-mo, ao apego a todo e qualquer valor tradicional, as ideias progressistas da modernidade identificaram-se, muitas ve-zes, com o racional, com renovações da produção iconográ-fica, seja na pintura, na escultura, assim como na fotografia e na própria paisagem urbana.

Foi Jean François-Lyotard (1994), um dos primeiros pen-sadores a introduzir, ainda nos anos setenta, a ideia de uma nova condição, que denominou de pós-moderna, como ne-cessidade de superação do próprio conceito de modernida-de, principalmente no que tange à crença na razão e nas ci-ências da comunicação, considerando o modernismo como o responsável pela falta de liberdade e emancipação huma-nas. E esta liberdade só poderia ser alcançada por meio da valorização das imagens híbridas, dos seus significados, das suas linguagens e sentimentos do imaginário.

O contemporâneo que estamos vivenciando, ao contrário de momentos anteriores, vem aceitando as mais diversas mudanças, nada negando, mas questionando e agregando, em si, variados estilos imagísticos, compondo-se, assim, de muitos fractais, de misturas de variadas técnicas gráfico/plásticas. Isso revela uma nova visualidade: a comunicação iconográfica, perpassada por imaginários culturais de uma sociedade em mutação o que, por suposto, vem modificando significados sociais e culturais.

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Culturas, imagens, modernidade

A imagem sempre revelou mensagens, a princípio, en-volta em mistérios, em rituais, com seu alfabeto produtor de comunicação, desde a Pré-História, quando o homem narrou seu cotidiano nos símbolos pictóricos das cavernas. O mito, o imaginário, o ritual, permearam essas primeiras representações visuais e o homem primitivo simulou for-mas que desejava materializar, pondera Malrieu (1996).

Como fenômeno social e cultural, a comunicação icono-gráfica foi se desenvolvendo numa troca de mensagens en-tre passado e futuro e, este último, foi capaz de decodificar os símbolos, adquirindo o conhecimento e a compreensão de um imaginário ancestral.

Certamente, surgida muito antes da articulação das pa-lavras, a imagem vem se constituindo na forma viva que perpassou todas as civilizações humanas: Da Era Primiti-va ao mundo antigo, da Antiguidade Clássica ao mundo medieval, do Renascimento ao Barroco e deste à Arte Mo-derna, chegando à contemporaneidade que estamos viven-ciando. Assim, a comunicação imagística permanece repre-sentando papel relevante na trajetória social e cultural da humanidade, fonte de influência na comunicação estética e epistemológica.

Podemos, portanto, refletir que a importância no pro-cesso da comunicação iconográfica é a produção de signi-ficados, por parte de quem recebe as mensagens visuais, tornando-se relevante que o comunicador receba respostas das suas expectativas. Cabe salientar que, em 1948, Las-swell, citado por Wolf (1995), criou um modelo no estudo das teorias de comunicação de massa, que superou modelos anteriores, o chamado modelo dos cinco “QS”: Quem diz o que, em que canal, a quem, com que efeito. Na comunica-ção visual, a imagem pode seguir esse modelo de Lesswell,

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dizendo ou narrando algo, num canal pictórico, gráfico, fotográfico para quem contempla, com um efeito maior ou menor de prazer estético.

Desde seu aparecimento, a iconografia guarda, no seu âmago, os significados dos envolvimentos culturais que vão da ideologia à estética, da política, à sociologia, da obra au-rática à comunicação visual de massa, num processo con-tínuo de transformação de consciências. Assim, a mídia padroniza obras de arte, imagens visuais, como faria de um produto industrial qualquer. A esta padronização denomi-nou-se ‘indústria cultural’ e, nesta, o aspecto artístico da obra é perdido. O imaginário popular é reduzido a clichês e o sujeito consome os produtos de mídia passivamente. O esforço de refletir e pensar sobre a obra é dispensado: a obra pensaria pelo sujeito.

Provavelmente, foi Platão (La Republique, 1947) quem deu a conhecer um dos mais antigos conceitos de imagens, ao chamá-las de sombras, reflexos nas águas ou ainda uma espécie de reprodução das formas que aparecem na super-fície de objetos polidos e brilhantes, assim como noutras representações visuais nesse gênero. Essas ponderações do filósofo constituiam-se numa visão das imagens como proje-ção do existente, seja nas sombras, seja no que podemos cha-mar “espelho” de um objeto ou de uma forma da natureza.

No entanto, a imagem não se restringe apenas à visão de reprodutibilidade da natureza, mas de um real intrínseco, de simulacros e de simulações (Baudrillard, 1991), em que o imagi-nário e o imaterial estão inseridos na sua produção, na sua parti-cipação na sociedade e na cultura, assim como na sua fruição.

Na modernidade, a máquina fotográfica tornou a imagem mais próxima do indivíduo do que a pintura: a imagem fabri-cada por um novo olhar perceptivo, aliada ao olhar mecânico do aparelho que captava imagens, rememorou e remeteu o co-tidiano a um novo mundo permeado pelo raciocínio e pela

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imaginação, que o fotógrafo passou a idealizar. Isso permitiu e ofereceu outras possibilidades de visualizações imagísticas, que estavam ao alcance de todos. Tornando-se base para a criação de novas imagens, a fotografia contribuiu, de maneira indiscu-tível, para a produção imagística de mundos também invisíveis, tornando possível uma outra visualidade. A observação e os estudos do iconográfico passaram a pertencer tanto ao especta-dor/produtor/artista quanto ao cientista.

A invenção da radiografia, por exemplo, revelou o univer-so complexo do interior dos corpos, possibilitando à ciência uma visualização das novas formas, por meio de técnicas de imagens impressas em películas sensíveis aos raios X.

O advento da fotografia sacudiu os meios artísticos. Durante anos, Emerson, um pintor inglês do século XIX, abandonou a pintura, temporariamente, em favor da foto-grafia. Como fotógrafo popular da época, proferiu diver-sas conferências sobre a fotografia como arte, apesar das controvérsias existentes a esse respeito. Os artistas plásticos negavam tanto seu processo quanto seu produto final como obra de arte, uma vez que ela era reprodutível, perdendo a aura de obra única.

No entanto, é impossível negar que a fotografia exerceu no-vos significados para o observador, o que transformou a visão que os sujeitos possuíam das imagens, quando estas foram de-mocratizadas pela sua reprodução e sua função na mídia.

Antes de pesquisar os efeitos ou as funções dos ele-mentos da mídia, é relevante definir, culturalmente, as sociedades pós-modernas: a cultura de massa não é autônoma, como buscam ser as demais teorias de co-municação, mas se torna parte integrante da cultura humana. Dessa forma, a iconografia, como cultura de massa, não impõe símbolos padronizados, mas se uti-liza da padronização desenvolvida, espontaneamente, pelo imaginário popular.

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A fotografia, como cultura de massa, proporcionou também sua utilização pela ‘indústria cultural’, e auxi-liou, sobremaneira, os artistas plásticos. É dessa forma que os produtos da mídia transitam entre o real e o imaginário, criando fantasias a partir de fatos reais e transmitindo fatos reais com formato de fantasia.

O surgimento do Impressionismo, utilizando a cor lu-minosa, que se estendia às próprias sombras dos objetos, com a linha de contorno das imagens desmanchadas, as-sim como novas formas de pincelar foi uma reação contra a perfeição das imagens fotográficas. Entretanto, é curio-so registrar que, em alguns casos, os pintores impressio-nistas copiaram, abertamente, suas composições visuais, das imagens fotografadas. Foi o caso de Paul Gauguin (1848-1903), quando de sua fase no Tahiti. Gauguin se utilizou de fotografias impressas em cartões postais e, partindo delas, elaborou diversas composições de suas obras. Georges Seurat (1859-1891), com seu estilo ponti-lhista chegou a dizer que criara esta técnica, observando fotografias granuladas de sua época. Como um dos fun-dadores do Neoimpressionismo, racionalizou a técnica da pincelada, com métodos divisionistas, mediante o pon-tilhismo (Vieira da Cunha, 1997).

Pouco a pouco, tornou-se decisivo o papel da fotografia nas artes plásticas, e a pintura do séc.ulo XIX se serviu da nova onda para a representação do nu, como nas obras de Courbet e Rodin, diz o artista plástico Vieira da Cunha (1997). No seu artigo “A mais humilde servidora da arte”, o autor afirma que a grande obra de Courbet , “A origem da vida”, foi resultado da mecânica da máquina fotográfi-ca e da reação química na revelação do negativo.

Em 1998, a Biblioteca Nacional da França realizou uma exposição denominada “A arte do nu no século XIX”, em que, ao lado das imagens dos mestres foram mostradas

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também obras fotográficas, fonte de inspiração dos temas plásticos. O escultor Rodin, por exemplo, manteve grande número de imagens fotográficas no seu atelier, exibindo fotos de modelos nus, que teriam posado para fotógrafos da época, contribuindo, assim, para as soluções das mui-tas posturas do corpo humano realizadas pelo escultor (Vieira da Cunha, 1997).

No período da modernidade, as artes plásticas e a fo-tografia representaram imagens que caminhavam lado a lado e, de certa maneira, foi a fotografia, vista como meio e linguagem de comunicação visual, como nova curiosida-de da invenção humana que apresentou ao povo europeu e americano a chamada “arte moderna”. Foi, dessa forma, que a obra de arte tornou-se conhecida fora dos museus, das galerias, das exposições, ao ser reproduzida em livros, enciclopédias, o que possibilitou o conhecimento das pro-duções artísticas pelo público em geral.

Chamou-se Pictorialismo um movimento fotográfico que perdurou até 1910 e foi uma tentativa mais séria dos fo-tógrafos para sua aproximação com a pintura. Tendo sido um dos pontos altos da história da fotografia das imagens de arte, o Pictorialismo enfrentou as maiores dificuldades técnicas na impressão de suas imagens em chapas de vidro que, após serem trabalhadas e retocadas, manualmente, eram copiadas em papel fotográfico. A própria cópia, tam-bém retocada à mão, produzia um resultado final para ser datado e assinado; o negativo em vidro era destruído, de forma que a finalização imagística continuasse única. Per-sistia, assim, o conceito de obra aurática, sacralizada, para que a reprodução das imagens se tornasse impossível. Esta era mais uma linguagem de comunicação.

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Culturas, imagens, pós-modernidade

O conceito de obra de arte aurática tem sido questiona-do, desde o final dos anos cinquenta, e talvez tenha sido o pintor norte-americano, Robert Rauschenberg, quem tor-nou a pintura uma clara imagem de comunicação no sécu-lo XX. Ao lado de Man Ray, o mais jovem componente do movimento dadaísta de Nova York, Rauschenberg passou a empregar “processos de collage fotográfico e serigráfico, produzindo impressões diretas de objetos imagísticos so-bre placas sensibilizadas, cujos efeitos não são definíveis” (Thomas, 1994, p. 102). Ainda que a ideia não fosse total-mente nova, a grande novidade de Rauschenberg foi sua conversão às fotocollages, trabalhando suas pinturas a óleo juntamente com objetos figurativos de consumo.

As imagens transformaram-se em verdadeiras barroqui-zações: Robert Rauschenberg reconstrói um quadro de Ru-bens, por meio de impressão serigráfica, utilizando colla-ges de muitos temas sobre uma reprodução de “Vênus no banho”, do pintor barroco: pintura, serigrafia, fotografia, criam uma hibridação técnica, nesta obra de 1964, consi-derada, por muitos teóricos, como a grande manifestação da pintura contemporânea.

A colagem de papéis, jornais, objetos colados sobre tela, data do início do século XX, com Picasso e Braque, entre 1909 e 1912, numa época em que a hibridação de materiais só existia no artesanato ou na arte popular. Trazendo maior liberdade aos artistas, cujos estilos eram bem definidos, na arte moderna, a collage passou a fazer parte das telas de Pi-casso e Braque, assim como vai, gradualmente, aparecendo nas obras de Max Ernst, comprovando que ideias prospec-tivas já se manifestavam nas artes plásticas, muito antes do surgimento de um conceito teórico de uma nova represen-tação visual, além da modernidade (Thomas, 1994).

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Com o surgimento da Pop-Art, ao redor dos anos cin-quenta-sessenta, que integrava imagens populares de pro-paganda e de consumo junto à pintura e à serigrafia, em grandes telas, essa montagem de temas e materiais evoluiu para a técnica pictórica denominada combine-painting, com a introdução de objetos diversos nas obras plásticas. Foram essas novas possibilidades de colagem que Robert Raus-chenberg introduziu em seu trabalho, juntamente com ou-tros artistas, como Andy Warhol, levando as artes plásticas, de concepção elitista, a hibridar-se com a arte popular.

Provavelmente, foi o período de maior comunicação grá-fico/plástico que esse movimento introduziu na pintura, com objetos comuns de consumo dos mass media. Outro exemplo é o do inglês David Hokney, exímio desenhista e consagrado pintor de fontes e piscinas, que utiliza, tam-bém, a fotografia como base de suas obras reinventadas, opinativas e críticas de uma Califórnia repleta de riquezas, grandes jatos d’água e gramados. A arte, assim , tornou-se cada vez mais independente dos estilos definidos, criando novas formas de expressão que buscaram uma aproxima-ção e um contato maiores com o popular e, cada vez mais, firmando-se como meio visual de comunicação.

Buscando questionamentos que a nova visualidade vem impondo ao espírito inconstante da humanidade, no final do século XX e início do século XXI, as diversas formas de repre-sentação das imagens estão cada vez mais unidas e entrelaçadas em manifestações mistas de expressividade. A expressão ima-gística ressurge com outras linguagens, nessa nova cultura, sus-tentando a experimentação e a combinação da pintura com o desenho, com a fotografia, com objetos, com novas tecnologias do imaginário, interpretando as formas e criando uma nova e ampla “bagagem icônica, da qual podemos nos valer para as nossas futuras imagens a serem reveladas e elevadas ao papel de obras de arte autônoma” (Dorfles, 1992, p. 223).

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Pregando a complexidade, o híbrido, a desconstrução, as ideias e representações do contemporâneo, essas ima-gens concebem as mais amplas polivalências da percepção e do imaginário humanos. A procura da liberdade, na cons-trução e criação das imagens, não segue uma obediência irrestrita às leis e à razão, como aconteceu em alguns movi-mentos modernistas, mas caminha noutras direções, numa união entre conhecimento e imaginário, que traduz, reinter-preta e, por isso mesmo, transforma conceitos estéticos em novas formulações imagísticas.

Na paisagem urbana das grandes cidades também é pos-sível percebermos uma visualidade irreal, que vem alimen-tando, por vezes, o imaginário dos habitantes. Referindo-se, especificamente, a Las Vegas, nos Estados Unidos, Venturi et al (1998) põem em questão a nossa forma de visualizar o urbano. A cidade referida valoriza o ecletismo, combinando os mais diversos estilos e seus hotéis temáticos apresentam o pluralismo e a colagem que vem caracterizando o contem-porâneo, numa polissemia contraditória e complexa, rejei-tando a unidade arquitetônica em favor da diversidade.

Como sistema de comunicação visual e cultural, os sím-bolos encontram-se no espaço da cidade, tais como réplicas quase perfeitas de caravelas do século XVIII, lado a lado com edifícios/cópia do Palácio dos Dodges de Veneza ou, na visua-lidade do Excalibur Hotel, quando passamos a ser integrantes da Camelot do rei Arthur. Na reconstrução do Grande Canal de Veneza, percebemos a cultura dos anos cinquenta, quando jatos d’água movimentam-se como passos de ballet, ao som do clássico musical hollywoodiano Cantando na Chuva, tudo isso mesclado à ideia de uma Sinfonia de Paris, diante da proximi-dade de uma réplica da Torre Eiffel. É uma realidade oriunda do imaginário, comunicando espetáculos simulados. Nas ruas fechadas de Las Vegas, como a Freemont Street, com cinco bo-xes cobertos de grandes cúpulas, o imaginário construído pelos

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mitos, fantasias e mundos fantásticos são projetados no espaço, resgatando uma irrealidade onírica, que proporciona a vivência dos mais remotos sonhos, a cada meia hora. Das cavernas às naves espaciais, das luzes e projeções a laser, Las Vegas repre-senta a espetacularização do espetáculo híbrido dessa visualidade contemporânea como simulacros da realidade.

Ao abordar as questões dos simulacros e da simulação, Baudrillard (1991) refere-se à geração de realidades, sem qualquer precisão na exposição de algum fato, em que se utilizam modelos do real. Essa reflexão vai ao encontro da visualidade urbana de Las Vegas, onde tudo se constitui em simulações da realidade. Mas, não precisamos sair do Brasil para verificar que essas hibridações arquitetônico/ur-banas também se verificam nos grandes estados do País: Os Shoppings Centers retratam uma espécie de architecture-collé, que se expande, em nossa cultura globalizada, tornando-se exemplo internacional dessas hibridações; neles, vemos co-lunas dóricas, jônicas, usadas pelos gregos, na Antiguidade, juntamente com estruturas metálicas, vidrarias, decorações florais e vegetais, pisos de mármore ou de granito polido, lado a lado com paredes de tijolo à vista. Provavelmente, no futuro, esses shoppings serão os verdadeiros museus criados, no século XX, comunicando sua linguagem diferenciada, no âmbito das teorias de comunicação.

Convivemos, então, diariamente com essa cultura visu-al híbrida, nós a aceitamos e, muitas vezes, não percebe-mos que essas mestiçagens comunicam visualmente o que está ao nosso redor e, também, no interior de nós mes-mos, pois nossa forma de ver e de apreender o visualizado está se modificando. É possível afirmar que nossos valores, nossas crenças podem ter permanecido, mas esses valores e crenças têm sido re-lidos, re-estruturados, decodificados para uma interação maior com o mundo contemporâneo no qual estamos submersos.

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As diversas imagens que nos cercam, sejam elas pinturas, fotografias, arquitetura tendem mais à ambiguidade e à in-determinação, e essas manifestações visuais estão beirando à efemeridade, nosso mundo está fragmentado, há mais im-perfeições do que a busca da perfeição que a modernidade proclamava. As tendências de beleza deram lugar aos pro-dutos da ‘indústria cultural’ e a ironia está por toda a parte. É uma nova cultura que foi surgindo e, com a qual convive-mos num prazer estético transformado. Venturi et al (1998) ainda referem que se trabalha com “a analogia, o símbolo e a imagem e, ainda que [se afirme] rechaçar toda a determi-nação das formas que não seja a necessidade estrutural [...] obtém-se ideias, analogias e estímulos de imagens inespera-das” (p. 23). Citando Henri Bergson, Venturi et al (1998), ainda consideram que a desordem é uma espécie de ordem que não conseguimos ver. Talvez, a vejamos com a imagina-ção, pois é através desse imaginário, dessas fantasias, desse jogo com as formas e elementos, que o sujeito “transcende a imediatidade das coisas e projeta o que ainda não existe” (Duarte Jr, 2002, p. 51). É pela cultura, pois, que o sujeito concretiza seus valores, diz ainda o autor e prossegue:

A criação da cultura é, consequentemente, um ato da imaginação humana. “É um ato de jogar com os dados do mundo material para construir uma ordem e um sentido [...] No jogo, é estrutu-rada uma certa ordem e equilíbrio[...] permitin-do que o homem se envolva numa ação prazero-sa por si própria” (Duarte Jr, 2002, pp 51-52).

Nossa maneira de ver está em mutação, mesmo que não per-cebamos isso; convivemos com as mais diversificadas e ambí-guas formas e iconografias, assim como com o mundo híbrido que nos cerca; formamos imagens mentais, imaginárias ou reais

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com outras conotações, num eterno jogo de novas visualida-des, envolvido em novas culturas que assolam nosso imaginário e que estamos assimilando de forma aparentemente natural.

Sobre esse aspecto, é preciso admitir que, em nossa cul-tura globalizada, estão ocorrendo mudanças significativas e, que muitas das anteriores teorias e categorias modernas, já não conseguem “descrever adequadamente a cultura, a política e a sociedade contemporâneas [...] Por conseguinte [...] estamos vivendo entre uma era moderna em envelheci-mento e uma nova era [...] que precisa ser adequadamente conceituada, diagramada, mapeada” (Kellner, 2001, p. 53).

Se a cultura se constitui num processo de estabelecer a ordem, como refere Bauman (1998), questionamos se a cultura do contemporâneo mantém essa preocupação ou procura, na aparente desordem, uma outra harmonia ain-da não mapeada, como pondera Kellner (2001), na busca de uma nova conceituação, de novos significados estéticos ou mesmo simbólicos, que possam traduzir esse momento contemporâneo que estamos vivenciando.

Observando a iconografia assim como as paisagens ur-banas contemporâneas que nos cercam, podemos perceber a ação do sujeito, numa aceitação da mestiçagem de estilos e de formas, o que não era possível de conceber no conceito de formas puras, claras e estruturadas da modernidade.

A ideia do less is more parece estar desaparecendo e o excesso, a ambiguidade, a polivalência estão em crescimento no momento vivenciado, em que o sujeito está construindo uma outra realidade híbrida, com a qual parece encontrar novos e maiores significados culturais. Se o sujeito é um ser de símbolos que constrói culturas e as vivencia, é, no simbólico, que podem ser encontrados os mitos, os rituais, as fantasias, que fazem parte do imaginário cultural. E é essa cultura que está sendo alterada em seu processo de mu-tações, de misturas, reconstruindo o universo com outra

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visualidade dos meios de comunicação. “Assim, os meios de comunicação ou a mídia, na sua aparente objetividade e sim-plicidade, desdobram-se em múltiplas dimensões – tais como a técnica, a política, a economia, o consumo, a vida urbana, as práticas culturais, a sociabilidade” (França, 2001).

Ao verificarmos que, aparentemente, o sujeito do con-temporâneo tudo vem aceitando em nome dessas hibrida-ções estilísticas, podemos dizer que, o que antes era apenas lógico, está cada vez mais unido ao sentimento, às crenças, às percepções, às emoções de um imaginário cultural que nos rege, uma vez que as culturas midiáticas estão dominan-do o mundo de hoje, diz Kellner (2001).

Para tanto, prossegue o autor, é preciso decodificar e compreender essas novas culturas que nos apresentam ou-tros modelos visuais que vêm até como substitutos para “a família, a escola, a Igreja como árbitros de gosto, valor e pensamento, produzindo novos modelos de identificação e imagens vibrantes de estilo, moda e comportamento” (Kell-ner, 2001, p. 27). Tudo isso é regido por um imaginário que se propaga, rapidamente, via satélite e, certamente, é pelo imaginário que fugimos do nosso próprio eu, buscan-do novas relações universais dos nossos afetos, das nossas emoções, que são expressos imagisticamente e de maneira simbólica nesses nossos outros ‘eus’, plurais, complexos e sensíveis, experimentando e estabelecendo novas configu-rações, num jogo de acasos.

É, dessa forma, que a imagem não mais duplicou fiel-mente a realidade, refere Maffesoli (1995) ou, tampouco o reflexo da realidade: ela vem se tornando uma linguagem, um símbolo ou, ainda, o desvelamento de novas formas a se-rem exploradas. O imaginário é, portanto e também, uma tentativa de mudança, consciente ou não, reconstruindo fórmulas anteriores, interrogando e apresentando outras soluções estéticas numa reunificação de ideias formais para

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a convergência da pluralidade, quando expresso em mani-festações iconográficas arrojadas, seja por meio de um qua-dro, de uma fotografia, de uma collage, de uma construção arquitetônica diferenciada do convencional.

Sem renunciar às anteriores visualidade imagísticas, mas incorporando-as às novas tecnologias e às novas formas de criar, as imagens que vêm compondo o imaginário, do mo-mento contemporâneo vivenciado, tornam-se reinvenções híbridas, transformadas e relidas em novos esquemas sim-bólicos. Se essas imagens são sedutoras e persuasivas para um número significativo de sujeitos que as incorporam causam, muitas vezes, impactos visuais no espectador que não as assimilou. No entanto, esse novo contexto neces-sita de discussão e de decodificação, o que não significa uma aceitação desses novos signos visuais, mas é relevante a percepção de sua existência, a avaliação do seu conteúdo simbólico para pesquisa e busca de dados mais específicos.

Considerações finais

As mudanças ocorridas, no mundo moderno, desde os anos cinquenta, até o momento demonstram o quanto as sociedades vêm encontrando novas visualidades culturais pelo imaginário tecnológico, criando uma outra sociedade em que “os estudos culturais podem desempenhar impor-tante papel na elucidação das alterações que têm ocorrido...” (Kellner, 2001, p 29). A compreensão cultural estética está na dependência também de nosso autoconhecimento e, se ainda pudermos cultivar uma harmonia estética interior, ela, certamente, nos conduzirá à apropriação de uma per-cepção maior do mundo, num processo de reconhecimen-to, de compreensão e de interpretação. É por essa razão

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que acreditamos ser absolutamente necessário o desenvol-vimento harmônico interior do ser humano, da percepção de si mesmo para o desenvolvimento da sensibilidade, o desenvolvimento da personalidade, da liberdade criadora e de um outro olhar sobre o novo que se configura.

A desconstrução das imagens e das formas vem acarre-tando novas decodificações para a construção iconográfica, criando outros cânones imagísticos, explícitos visualmen-te e implícitos, no seu conteúdo, para serem refletidos, no mundo hoje, numa outra visão psicossocial: a imagem do século XXI incorpora a cultura desta contemporaneidade, das novas possibilidades tecnológicas, que o contemporâ-neo está oferecendo, buscando novos espaços como lingua-gem, em que mundos imaginários estão sendo revelados numa outra estética visual.

O encontro dessa nova estética, no mundo de hoje, pare-ce fundamental: Se não encontramos a perfeição na repre-sentação visual do contemporâneo, como era a exigência dos cânones da modernidade, o imaginário da cultura oci-dental de hoje, incluso e mais liberto, aceita imperfeições, muitas vezes, propositais, pois que elas podem ampliar sig-nificações das representações visuais.

Conforme Bauman (1998), essa parece ser a busca da liberdade, na construção e na recriação das imagens, que vem encontrando novos caminhos de expressão em novos imaginários tecnológicos, os quais estão traduzindo, rein-terpretando e, por isso mesmo, transformando conceitos estéticos em novas possibilidades imagísticas, que estão per-passando a cultura visual contemporânea.

É dessa forma, que a iconografia está implícita em, prati-camente, todas as teorias de comunicação, o que nos sugere estudos mais aprofundados, sobre essas novas ideias que perpassam a cultura visual da comunicação de massa.

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Comunicação Iconográfica: Linguagens, Significados e Imaginário

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Contribuições de Iuri Lotman para a comunicação: sobre a complexidade do signo poético

6.Contribuições de Iuri Lotman para a

comunicação: sobre a complexidade do signo poético

Míriam Cristina Carlos Silva1

É natural da ciência e tarefa do pesquisador a ânsia por classificar, delimitar, relacionar. Assim, cabe às Teorias da Co-municação a definição dos objetos, dos métodos de análise, das possibilidades de recorte, relações e olhares para a comu-nicação entendida como ciência. Cabe, também, ao pesqui-sador de comunicação, a tentativa de diálogo, aproximações e atualizações com outras teorias. A metáfora das “caixas” ou das “gavetas”, espécies de fichários ou arquivos, nos quais se separaria instâncias diferenciadas do conhecimento, pode e merece ganhar uma configuração que preveja certa dose de caos e abertura, se nos dispusermos ao entendimento de que o conhecimento nem sempre pode ser colocado em compar-timentos específicos, hermeticamente lacrados. Supomos, aqui, portanto, a possível relação entre as diversas gavetas,

1. Professora e pesquisadora do Mestrado em Comunicação e Cultura da Universidade de Sorocaba-Uniso.

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em que se há de depositar conceitos que, para serem eluci-dativos e mais próximos da prática, firmem-se em constante troca, nesse caso, com a semiótica da cultura, possibilidade de embasamento teórico para a comunicação. Há que se co-locar saberes em suas devidas gavetas, desde que se permita a constância do rearranjo, pois entendemos a comunicação como um campo de estudos, cuja complexidade e o caráter interdisciplinar são as principais características. O comple-xo é aquilo que não está fechado em si mesmo, mas se com-pleta em alteridade permanente, e a complexidade a que nos referimos, nesse contexto, vem respaldada pela obra “A estru-tura do texto artístico”, publicada em 1978, pelo culturólogo e semioticista Iuri Mijáilovich Lotman (1922 – 1993).

Sabemos da impossibilidade de abordar todas as rela-ções entre a obra de Lotman e a comunicação em algumas poucas páginas. Portanto, nosso empenho se concentra em uma tentativa de atualização do conceito lotmaniano de “texto artístico”, tomando-o como um sinônimo de signo poético. Para realizar essa atualização, buscamos amparo na contaminação que se dá entre o poético e os produtos (tex-tos) dos meios de comunicação.

Das origens: a Escola de Tártu-Moscou (ETM)

Iuti Lotman, teórico da cultura e um dos mais importan-tes pesquisadores da semiótica, integrou o grupo conhecido como Escola de Tártu-Moscou (ETM). Entre as principais preocupações desse grupo, está o entendimento da lingua-gem como uma complexa forma de relação, caracterizada pela troca. Nesse processo de intercâmbio, linguagem e cultura coincidem ou estão umbilicalmente relacionadas. A comunicação, portanto, ocorre na cultura, pela cultura,

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com a cultura. Trata-se de uma troca na e entre culturas. A linguagem, portanto, abarcaria todas as formas de expressão, muito além da codificação verbal. Para Lotman, a cultura é memória não-genética (conceito que, atualmente, vem so-frendo questionamentos por parte de grupos de pesquisado-res que investigam a memória cultural genética).

De certa forma, trata-se de um grande texto composto por outros textos que se relacionam, segundo Lotman, for-mando um sistema de signos. São exemplos de textos da cultura à religião, a arte e as leis, componentes de um con-tinuum semiótico, embora seja um continuum assimétrico, um campo de possibilidades e de trocas sígnicas, sobre o qual se estruturam as relações no cotidiano. Assim, como um sistema de signos, a cultura funciona como uma es-pécie de inteligência coletiva, composta por conjuntos de proibições e prescrições, ou seja, por programas de com-portamento. Os signos desse sistema são responsáveis por converter fenômenos em significação, armazenada não nas consciências individuais, mas nas relações, nas entrelinhas tecidas por emissor e receptor. Em um processo tradutório, o sistema reconforma, continuamente, sua estrutura, inter-pretando signos. É, como resultado desse intercâmbio, que novas configurações de códigos são absorvidas na memória do sistema e se recompõem, a fim de traduzir novos conteú-dos, que só podem surgir, a partir dos antigos, da tradição, daqueles que a cultura reconhece.

A cultura, portanto, além de um sistema de signos, for-ma um grande texto que se auto-regula, autodescreve e é com-posto por séries de outros textos diversificados, o que for-ma uma Semiosfera, o cosmo sígnico de cada cultura. Novos textos se formam por meio de contaminações esponjosas nas fronteiras da semiosfera, nos encontros dialógicos de culturas, na mestiçagem. Esses encontros produzem a mo-delização – padronização, criação de um modelo – de textos,

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dividida em duas vertentes, a modelização primária, que é a língua, a linguagem verbal; e a modelização secundária, composta por todos os sistemas semióticos restantes. Essa classificação ocorre porque, para Lotman, a língua é o mo-delo de todos os outros sistemas de signos. Acrescentamos que a comunicação verbal, a palavra, é a responsável pela análise e descrição dos inúmeros códigos de linguagem. É, por meio da palavra, que o crítico, o cientista, o comunicó-logo buscam analisar, comparar, compreender as linguagens não-verbais e híbridas.

A arte como linguagem

A arte, afirma Lotman, é um dos meios de comunicação,

por envolver um emissor e um receptor. Pensamos que se trata de uma das formas mais plenas de comunicação, por necessitar não apenas de um emissor e um receptor, como afirma Lotman, mas de um receptor com todos os seus sen-tidos, alerta para a possibilidade de uma experiência.

Por ser uma forma de linguagem, Lotman explica que a arte envolve um sistema geral – o sistema geral da arte – e sistemas específicos, para aquelas modalidades específi-cas inseridas no contexto amplo da arte. Assim, dentro do grande texto composto pela linguagem geral da arte, cabe-riam os textos específicos do teatro, do cinema, das artes plásticas, da literatura, que também comportariam outros microtextos, na literatura, por exemplo, o Romantismo, o Modernismo (os chamados estilos de época), entre outros. Cabe ressalvar que, contemporaneamente, a tônica da lin-guagem da arte é a intertextualidade. Não há fronteiras entre gêneros, tampouco entre suportes e linguagens específicas. Cada vez mais, os textos da arte convergem, dificultando

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uma análise pontual de um gênero específico e exigindo do crítico e do público que se apoderem, cada vez mais de múltiplas linguagens, para a compreensão do trânsito entre elas. A arte contemporânea se expande em franca conver-gência com as ciências, a tecnologia e a comunicação.

Iuri Lotman diferencia os sistemas comunicativos, como é o da arte, de outros sistemas, que não servem como meio de comunicação. Seriam as formas não ligadas ao acúmulo e transmissão de informações, como é o caso dos fenôme-nos naturais. Para exemplificar, uma planta, um pássaro, insetos, compõem um sistema organizado, carregado de in-formações, entretanto, não servem como registro, acúmulo e transmissão dessas informações. São sistemas que funcio-nam naturalmente. Há, também, os sistemas que servem como meio de comunicação; mas que não utilizam signos. Um exemplo seria a comunicação celular, os mecanismos internos, biológicos, de transmissão de informações: sinais de fome, de raiva, de sono. É possível que Lotman tenha entendido os signos como sistemas convencionados social-mente, e que necessitam de um aprendizado para serem codificados e decodificados, diferentemente de Peirce, para quem qualquer fenômeno pode ser signo. E haveria, por úl-timo, os sistemas que utilizam signos total ou parcialmente não-ordenados, o caso da paralinguagem, composta por processos não intencionais, paralelos à comunicação, mas que transmi-tem mensagens que podem ilustrar, reforçar ou até contradizer os significados processados pela comunicação intencional.

Assim, os gestos, o tom de voz e até mesmo a roupa e seus acessórios podem exercer a função de elementos para-comunicativos. Dentre todos os sistemas de comunicação, no entanto, explica Lotman, o da arte é o que envolve maior com-plexidade. O autor afirma que a complexidade de uma dada estrutura de linguagem é proporcional à complexidade da in-formação, e que a complexidade do caráter da informação é

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correspondente à complexidade do sistema semiótico, além de que, em uma estrutura artística, não deve existir nenhu-ma complexidade supérflua ou injustificada. Pautando-nos em Lotman, parece coerente afirmar que a complexidade, sendo uma característica indissociável da estrutura artística, transcende a intenção do autor, portanto, em contato com o leitor, toda complexidade justifica-se, a partir do momen-to em que se ampliam as possibilidades de experiência e atribuição de sentidos. Na contramão de outros sistemas de linguagem, a arte não tende à simplificação e é consi-derada por Lotman como o meio mais econômico de se passar uma mensagem, pelo fato de sua estrutura comple-xa abrigar um imenso potencial informativo, graças ao que chamamos de polissemia, além do fato de estarmos diante de uma estrutura significativa – a forma em si já é significa. Para a arte, determinada informação não pode existir nem ser transmitida fora de uma dada estrutura, já que a própria estrutura é conteúdo, o significante passa a ser significado. Isso vai ao encontro do que defendem os poetas concretos que afirmam “forma já é conteúdo”.

Nesse sentido, traduzir uma obra artística, seja em que suporte esta se apresente, será sempre uma traição, uma im-possibilidade, se não se considerar que será necessário tra-duzir o conteúdo e, também, a forma. Restará, como exer-cício tradutório, ainda que repleto de riscos, o processo de transcriação, a recriação da forma complexa em uma nova forma complexa que permitirá a transcriação, também, dos conteúdos. Traduzir é, portanto, criar outra vez.

Como Lotman avalia que, na fruição da estrutura artísti-ca, há a necessidade de um emissor e um receptor, pondera sobre a leitura, explicando que o domínio da linguagem passa pela necessidade de dois códigos: um que cifra e ou-tro que decifra. Resta ao leitor a constatação de elementos invariantes que permitirão a compreensão daqueles que

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possam ser novidade e se juntarão ao repertório para reco-nhecimento posterior, em outros processos, nos quais pas-sarão também a invariantes.

A obra de arte, composta de linguagem e mensagem, é mensagem na medida em que se estrutura por uma lingua-gem específica, promotora de significados não aleatórios, mas condicionados à linguagem que a compõe. A lingua-gem do texto artístico é reflexo de um determinado modelo artístico de mundo, ao mesmo tempo em que cria um novo modelo, ao representar, artisticamente, um fenômeno con-creto. Arriscamos dizer, agora, em termos peirceanos, que a linguagem artística é representação; mas, vai além dela, é quase objeto na medida em que cria outra realidade.

A linguagem, e também a linguagem da arte, modeliza uma determinada estrutura de mundo e o ponto de vista do observador, podendo haver, nesse processo, inclusive, a semantização de elementos antes não significativos. Foi o que ocorreu, por exemplo, com a inserção da imagem ou das formas tridimensionais na linguagem verbal do poema, pela Poesia Concreta. Foi o que fez o poeta Oswald de An-drade, quando semantizou neologismos, estrangeirismos, o espaço em branco da página. O processo de semantização é, portanto, uma forma de inovação. Entretanto, para Lotman, uma obra inovadora só é possível, quando construída sobre um material tradicional, do contrário, não evocando uma construção tradicional, a inovação deixa de ser percebida.

Assim, caberá ao leitor do texto artístico, descrito por Lotman, o domínio de um código comum de linguagem, proposto pelo artista-emissor. E ao artista cabe o reconhe-cimento de que, ainda segundo Lotman, no processo de co-municação, que é troca, a complexidade do texto artístico conduzirá o leitor por caminhos diversos: o leitor recodifica-rá o texto, reconstruindo-o a seu modo; o receptor procurará assimilar o texto pelo método de ensaio e erro, superando as

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dificuldades, não sem ruídos, mas em um esforço de reco-nhecimento e decodificação; o receptor entrará em conflito com a linguagem do emissor e não a tomará como parte do repertório de estruturas invariantes de que lançará mão em novas leituras; o emissor imporá sua linguagem ao leitor, que dela se apropriará como estrutura modelizadora do olhar. A partir dessa assimilação, o leitor já não será o mesmo, mas também não será mesma a linguagem do emissor, deforma-da, no processo de assimilação, no contato com o arsenal da consciência do leitor.

O signo poético e os produtos dos media

A este texto artístico, proposto por Lotman, preferimos denominar como signo poético, por entendermos que não se trata de uma linguagem restrita ao campo das artes, mas no constante intercâmbio entre os diversos textos da cultu-ra, entre os quais estão os media.

Os produtos dos media, seja em qual suporte se apresen-tem, não raro, estão permeados por mensagens estruturadas de forma complexa, que fazem uso do poético ou nele esbar-ram com uma proximidade e familiaridade bastante constan-tes. Assim, pertinente se faz a abordagem das especificidades do signo poético, das marcas que permitem identificá-lo e do modo como opera, fazendo dele uma linguagem singular, já que este poético pode caracterizar parte significativa dessa produção mediática. Ressaltamos a noção de texto, no viés de Lotman, como um conjunto estruturado de códigos, cuja fina-lidade é passar uma mensagem, independente de seu caráter verbal ou não-verbal. O signo poético, desse modo, é a própria caracterização dessa complexidade, condição para o artístico, mas que o transcende, e em tudo, do micro ao macro, conta.

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Os textos, poéticos ou não, são condicionados pela cul-tura, além de produzidos pelos meios de comunicação, em convergência com a arte. Nesse sentido, o primeiro passo é conceituar o poético, qualidade indissociável do texto artís-tico, mas que vai além dele, diferenciando-o do conceito de poema. Um poema é geralmente uma estrutura pré-estabe-lecida, verticalizada, composta por versos. Pode ter estrofes, métrica e rima, o que, sobretudo, a partir da literatura mo-derna brasileira e das vanguardas européias, deixou de ser uma regra, já que existem os chamados versos brancos, ou sem rima, com métrica variada, além de poemas visuais, co-lagens, etc. O poema é, também, geralmente, percebido como instância do verbal, coisa de palavras, embora, reafirmamos, existam e sejam amplamente conhecidas, vertentes da poesia experimental que creditem o nome poema a estruturas visuais, tridimensionais e até sonoras. Não é do poema que tratamos neste texto, mas da poesia como qualidade, presente nos textos (verbais e não-verbais) dos media.

A poesia, que pode e deve estar contida no poema, transcen-de a linguagem verbal, transcende os suportes, apresentando-se multifacetada. Qualidade, pode existir em outras formas de lin-guagem, como é o caso da fotografia, do cinema, da dança, da música, entre outras e que, de algum modo, apresenta caracterís-ticas essenciais e comuns a todas essas linguagens que, ainda que singulares ou até distantes, acabam por se aproximar justamente por essa essência do poético. E da mesma forma que se apresen-ta nas várias modalidades das linguagens da arte, apresenta-se também nos textos mediáticos, na publicidade, no jornalismo, nas novelas e séries, nos quadrinhos e na internet.

Se “tudo comunica”, como afirma o pesquisador Gregory Bateson, em Marcondes Filho (2004, p. 8), a poesia pode ser elencada entre as formas de comunicação. Também Cyro Mar-condes Filho (ibidem), questionando Bateson, afirma que:

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Em verdade, a sociedade da comunicação é uma sociedade em que a comunicação real vai ficando cada vez mais rara, remota, difícil e vi-ve-se na ilusão da comunicação, na encenação de uma comunicação que, de fato, jamais se re-aliza em sua plenitude.

De modo singular, o signo poético é visionário, ousado, experimental e antecipa, inclusive, tendências e suportes comunicacionais, como é o caso do hipertexto, precedido por obras impressas, mas experimentais, como já apontado por Gosciola (2003). Podemos pensar o potencial comuni-cativo do signo poético como um palimpsesto, composto por camadas que se sobrepõem e que, devidamente revela-das, multiplicam as possibilidades de produção de sentido. A metáfora do palimpsesto para o poético se justifica se pensarmos que uma de suas principais características é a polissemia e a experimentação. O palimpsesto era um per-gaminho que, para poder ser reutilizado (na Idade Média), era seguidamente apagado e reescrito, e acabava constituído por camadas de texto, sobrepostas. A ideia de camadas, na comunicação poética, concretiza-se sempre que um signi-ficado se desvela e logo se re-vela, permitindo novas explo-rações. Poderíamos mencionar, ainda, as entrelinhas, os subentendidos, caracterizados pelas figuras de linguagem, pela ambiguidade e pela intertextualidade. Os intertextos permitem que, em uma única obra, sejam postas em diá-logo diversas outras.

No caso da experimentação, podemos mencionar os “Cent mille milliards de poèmes”, de Raymond Quene-au (1961). Trata-se de um livro que desestrutura a página, recortando-a em tiras que podem ser reestruturadas e re-combinadas das mais variadas formas, em um processo multiplicador na construção de sentidos e das formas de

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operação do processo de leitura, que deixa de ser linear, ainda que realizado sobre a tradicional estrutura do soneto. Desse modo, com a destruição da estrutura fixa da página, ainda que sobre a forma fixa do poema, surgem inúme-ras novas possibilidades, nas quais se repensa e questiona a forma e também o suporte, o livro. A inventividade do poético multiplica, portanto, a potência da construção de significados e, mais do que isso, a potência da experiência e da percepção, formas de se conhecer, vividas, nesse caso, com mais de um sentido, já que para experimentar a obra é necessário manipulá-la de modo diferente em relação a um livro convencional. Amplia-se, portanto, a potência co-municativa do signo, composto com complexidade. Quene-au desenvolveu ainda outros projetos textuais trabalhados com a técnica combinatória, por influência da Matemática, outra prova da necessidade de trânsito entre as gavetas do conhecimento, mas seu trabalho só se realizaria, plenamen-te, com o advento da informática. Interessado em Mate-mática, juntou-se a François Le Lionais, um matemático interessado em literatura, para fundar o OULIPO, Ouvroir de Littérature Potentielle - Oficina de Literatura Potencial . ALENCAR (2005) explica:

OULIPO, desfazendo a ideia de que a litera-tura é a arte do único e do inimitável, explora o potencial teórico, ao mesmo tempo em que obviamente poético ou criativo, de uma lógica da repetição e da imitação. Escrever é imitar, repetir, traduzir. Os autores oulipianos produ-zem quatro tipos de textos: textos que utilizam estruturas já existentes, textos produzidos a par-tir da aplicação de restrições (contraintes) inven-tadas por eles, exercícios de estilo (pastiches) e textos de literatura combinatória.

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Assim, com Queneau, percebemos o estabelecimento da técnica como mote de subversão criativa, com o uso da paráfrase estrutural, hoje largamente utilizada pela publicidade, pelas narrativas televisivas, pelo cinema, pelo jornalismo, que reutilizam estruturas já existentes, que criam a partir da repetição, que largamente imitam, traduzem, rompem limites entre gêneros. É o cinema que se apropria da literatura, a literatura que busca re-ferências no jornal, o cinema que é absorvido pela pu-blicidade e se deixa contaminar pela TV. Trata-se de experimentar com o já estabelecido. Aliás, experimen-tar foi a tônica de movimentos como o Concretismo, promovendo uma tradição da experimentação, ou uma tradição da ruptura, nas palavras de Octavio Paz (1982), processo que norteará, permanentemente, a obra de, por exemplo, Augusto de Campos, que não viu frontei-ras entre poesia, artes visuais, artes gráficas.

Em Quasar, de “Caixa preta”, a característica do poe-ma, e de sua consequente poesia, na visão experimental de Campos, é a de ser uma experiência verbivocovisual, ao mesmo tempo verbal, visual e sonora. A fragmentação do texto na página simula a fragmentação energética do Qua-sar em um céu, o céu da página, negro, com pontos de luz que formam as letras. É a fragmentação da imagem como pontos elétricos na tela. Forma e significado exploram o poema e o homem como uma fonte de luz e energia; o Quasar a que o título se refere está dentro do poema, não apenas como um significado, mas estruturalmente coloca-do, outra característica do signo poético, a de incorporar marcas qualitativas do objeto. O “quase amar”, “quase hu-mano”, confunde, poesia, energia, amor e homem. São todos pontos luminosos na escuridão.

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Ao encontrar-se com Júlio Plaza, a partir de 1968, Augusto de Campos passa a experimentar processos “intermídia”, nos quais Plaza foi um pioneiro. Poemobiles é resultado da parceria, do qual Rever é uma espécie de poema objeto, manipulável, que salta da página e ganha proporções tridimensionais. Nes-se contexto, o questionamento dos suportes convencionais dará margem às discussões sobre os processos comunicativos e as contaminações entre os diversos meios possíveis, enten-dendo-se o meio como parte componente da mensagem.

Augusto de Campos, O quasar, 1975.

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A tradição da ruptura, no sentido do questionamento meta-linguístico da própria produção, norteadora do fazer poético de muitos dos artistas das chamadas vanguardas, dos românticos, dos modernos, dos concretistas, segue produzindo obras que permitem a junção de camadas, compondo um novo texto, a destruição que permite a reconstrução, as experiências intermí-dia. Alexandre Orión2, artista paulistano, junta o grafite à foto-grafia e, utilizando o ambiente urbano, leva a arte de rua para as galerias. A tônica, mais uma vez, é romper limites, misturar conceitos, desorganizar as gavetas e intercambiar o que poderia estar estanque, em um único compartimento. O poético e a comunicação se juntam no trabalho de Orión.

Em Metabiótica, espaços urbanos grafitados pelo artista so-frem a intervenção casual dos transeuntes, intervenção esta

2. Disponível em: officialsite_alexandreorion.com

Augusto de Campos e Julio Plaza, Rever.

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fotografada por Orión. Isso é Metabiótica, aquilo que morre para que outro organismo sobreviva. A fotografia, como expres-sa Roland Barthes, é o registro do morto. O que foi fotografado, já morreu, não existe mais. Com a tecnologia da comunicação, a câmera digital, que permite a tomada de um grande número de imagens, seu consequente descarte e edição, até a escolha da imagem perfeita, associada às formas artesanais de represen-tação visual, o grafite, Orión pereniza, fotograficamente, um momento volátil como a dinâmica das grandes cidades. São as fotos, resultados desse processo, que ele, depois, irá expor em galerias. Contribui, nesse processo, o advento da fotografia digital, pois caso fosse utilizada a fotografia analógica, seria mui-to menor a possibilidade de acerto, além de muito mais altos os custos, por conta da necessidade de revelação e ampliação. Com a câmera digital, a dinâmica comunicativa das cidades se realiza no próprio processo, graças ao imediatismo na aferição dos resultados, com a tela que disponibiliza a imagem tomada e possibilita o descarte do indesejado.

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Esses processos, utilizados pela arte, são utilizados tam-bém pela comunicação e encontram respaldo nas pondera-ções de Lotman sobre o texto complexo. O exemplo abaixo, extraído da Publicidade, conjuga muitos dos procedimen-tos já discutidos neste texto, exemplificados por textos com-plexos de períodos distintos. Neste anúncio do Nescafé, podemos encontrar um texto elaborado com complexida-de, a despeito da solução limpa. É praticamente um poema concreto. Todos os elementos são elementos de sentido. A forma é conteúdo. O primeiro impacto, que despertará a atenção e levará à terceiridade, ocorre na categoria fenome-nológica da primeiridade, em termos peirceanos, é qualidade, é uma experiência que nos impacta pelo inusitado da forma. Sensorial, complexo, no sentido de que a forma é conteúdo e, ainda, de que todos os elementos são elementos de sentido.

Desse modo, é comunicação intraduzível, ou seja, só funciona no suporte e com os códigos com os quais foi cria-do. Na possibilidade de tradução, restaria, apenas, a expe-rimentação de recriar, ou transcriar, levando-se em conta a

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mesma complexidade no processo tradutório, que deve en-tender forma e conteúdo como indissociáveis. Recriando-se, portanto, haverá a necessidade de se recriar forma e conteúdo.

McCann Erickson

O signo poético é, portanto, como se pode observar, nos exemplos elencados, caracterizado pela complexidade, que supõe uma relação intrínseca entre forma e conteúdo.

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Para o signo poético, a forma já é, ela mesma, uma estrutura significante, ou como aponta Lotman, todos os elementos são elementos de sentido, intraduzíveis e responsáveis por proporcionar uma experiência irrepetível e irreprodutível em outro suporte. Além disso, por seu potencial de extrapolar a mera representação, incorpora marcas qualitativas do objeto, de forma a se tornar a mais singular das estruturas comuni-cativas, por proporcionar um abalo que nos direciona a um devir transformador, proporcionado pela experiência. Em sua relação com os produtos da mídia, antecipa tendências, cria formas e suportes, faz conhecer por meio do sentir.

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Teorias da Comunicação: Trajetórias Investigativas

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Mesmo diante da mutabili-dade das ideias e dos objetos comunicacionais, as pesquisas em Comunicação, hoje, aten-tam para as diferentes práticas mediadas que estão sendo ab-sorvidas e transformadas, in-tersubjetivamente. Neste con-texto, as distâncias e os espaços são eliminados. Não há dife-renças entre consumidor e pro-dutor de culturas. As imbrica-ções e sobreposições, ganham características outras que se materializam, em um proces-so dinâmico, em objetos instá-veis e de múltiplas faces. Nes-tas perspectivas de reflexão e abordagem, é que os pesquisa-dores se deram conta da enor-me importância dos modos de comunicar, no contexto da so-ciedade mediatizada, a ponto de resolverem buscar entender, cientificamente, essas vivências próprias que perturbam e dei-xam tênues vestígios, por con-ta da rapidez, capazes de atrair tanta inquietação.

Osvando J. de Morais