Traduzindo Teatro

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Revista Cerrados

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  • T r a d u z in d o t e a t r o

    F tim a Saadi Tradutora e dramaturgista da companhia Teatro do Pequeno Gestoteatro03@ ism .com .br

    Recebido em 3 de novembro de 2006 Aceito em 9 de dezembro de 2006

    R esu m o : Este artigo discute, do ponto de vista do trabalho do dramaturgista, o papel do texto no conjunto de elementos que constituem o espetculo teatral e apresenta algumas das especificidades da traduo para essa forma de expresso artstica.P alavras- ch a v e: Teatro, traduo, dramaturgista, oralidade.

    R s u m : Cet article prsente, sous la perspective du travail du Dramaturg, le rle jou par le texte dans Vensemble des lments qui constituent le spectacle thtral et analyse les particularits de la traduction fa ite pour la scne thtrale.M o ts- c l s : Thtre, traduction, Dramaturg, oralit.

    J lugar-comum repetir que o teatro uma polifonia sgnica, sedutor objeto que tem derrotado mais de um estudioso da semiologia.

    O papel do texto nesse condensado de significados tem variado, da Grcia at os nossos dias, entre a hegemonia inconteste, a aparente dissoluo no teatro de imagens e o dilogo, em p de igualdade com os demais elementos cnicos.

    O fato determinante da contemporaneidade teatral, o surgimento da encenao no fim do sculo XIX (em 1887, Antoine funda, em Paris, o Thtre Libre e, em 1897, Stanislavski cria o Teatro de Arte de Moscou), est em relao direta com a alterao do papel do texto no conjunto do espetculo teatral, que j vinha se processando desde meados do sculo XVIII.

    Grosso modo, pode-se dizer que a passagem do paradigma cartesiano, de base matemtica, para o paradigma newtoniano, de base fsica, marca, ao longo do sculo XVIII, uma nova postura diante da natureza. A observao passa a ser mais valorizada que a abstrao, e, com isso, elementos cnicos at ento relegados a segundo plano comeam a merecer a ateno tanto dos homens de teatro como de pensadores que se interessavam pelo teatro como domnio de reflexo.

    O espao cnico pictrico, criado a partir de teles pintados em perspectiva, vai aos poucos sendo ocupado em suatridimensionalidade.

  • SAADI, Ftim a- Traduzindo teatro

    O ator passa a poder circular pela rea cnica e seu corpo ganha volume. At ento, nos teatros italiana, por causa do recurso cenogrfico ao tompe-Voeil, o ator no podia se aproximar do fundo da cena, porque, se o fizesse, ficaria maior que os edifcios representados nos teles. Nessa configurao teatral, seu corpo se reduzia a uma silhueta recortada sobre um quadro pictrico. A discusso propriamente moderna a respeito da natureza e da funo do teatro comea, no meu entender, com a publicao de Le fils naturel et Les entretiens sur le Fils naturel, de Diderot, em 1757. Nesse conjunto, pea de teatro-conversa crtica sobre ela, esboa-se um conceito de mimese, cujo eixo central ser o verdadeiro e no mais a verossimilhana. A mimese poderia ser definida, em traos largos, como a percepo de uma estrutura que, estando conforme s regras poticas formuladas na Antigidade e herdadas (melhor diramos, reinterpretadas) pelo Renascimento, no chocava o senso comum. Era, portanto, aceito como verossmil aquilo que a mdia dos espectadores considerava plausvel em cena. Por sua vez, o verdadeiro tem como referente o real extracnico, e no a estrutura interna da obra teatral, como ocorria com a verossimilhana. como se, a partir de meados do sculo XVIII, o teatro estivesse deixando de ser o imprio da declamao e da retrica para, segundo a bela frmula de Barthes (1982, p. 86), tonar-se o lugar olhado das coisas. No preciso dizer que, da em diante, acirra-se a corrida em direo ao naturalismo e sua contestao por todos os ismos da virada do sculo XIX para o sculo XX.

    A crescente importncia de elementos cnicos, como o espao, o corpo do ator, os objetos, fez com que a fonte primordial do sentido do teatro j no tivesse de ser necessariamente o texto, que passa a ter de conquistar, a cada montagem, um novo papel para si. A encenao justamente a deciso, tomada pela equipe de criao, a respeito do tipo de relao que os elementos cnicos estabelecero entre si a cada trabalho. Ora, num jogo cambiante como esse, no h lugares cativos, o que no impede, entretanto, a atribuio, em dado espetculo, de um lugar hegemnico ao texto, que ser, em conseqncia, ilustrado pelos demais elementos. Isto, na minha opinio, acontece mais do que seria de desejar.

    Outra das caractersticas do espetculo teatral o necessrio jogo entre diversos tempos. Tomemos, por exemplo, a Fedra, de Racine, escrita em 1677, sobre tema da Antigidade grega (a relao entre Fedra, seu marido, Teseu, e seu enteado, Hiplito), e encenada, em 1986, por Augusto Boal, com Fernanda Montenegro. A equipe de criao pode privilegiar o aspecto histrico da intriga grega, ou enfatizar traos do sculo XVII, poca em que a pea foi escrita, ou ainda fazer um recorte em que sobressaam os temas de interesse do momento em que ela est sendo apresentada. E o jogo entre os tempos tem influncia na escolha do tipo de relao que os diversos elementos (texto, atuao, espao cnico, msica, luz etc.) vo estabelecer - harmonia? tenso? hegemonia de um dentre eles?

    Na verdade, a apresentao sumria de alguns dos problemas envolvidos na criao do espe

  • Cerrados: Revista do Programa de Ps-Graduao em Literatura, n. 23, ano 16, 2007, p. 67-71

    tculo teatral se prope a contextualizar o meu trabalho de tradutora, sempre ligado ao teatro e, na maior parte das vezes, subordinado minha funo de dramaturgista na companhia carioca Teatro do Pequeno Gesto, dirigida por Antonio Guedes, que a criou em 1991.

    Em primeiro lugar, uma breve descrio dessa funo, que surge com Lessing, na Alemanha do sculo XVIII, sendo mais corrente na Europa do que no Brasil. A etimologia do termo Dramaturg, segundo o Dicionrio Duden, remonta ao termo grego dramatourgs e est ligada poesia da cena, poesia no sentido do fazer, do construir. Modernamente, corresponde ao especialista na rea da literatura ou da cincia do teatro [expresso bastante alem] que presta assessoria no teatro, no rdio ou na tev a equipes de teatro .

    Nesses quinze anos de trabalho em parceria com o diretor Antonio Guedes, minhas funes tm includo no s discusses a respeito da escolha do repertrio, traduo e adaptao de textos, mas tambm acompanhamento de ensaios, colaborao na redao de projetos e releases, participao em debates com o pblico. Alm disso, desde 1998, assumi a editoria-geral da revista de ensaios Folhetim Teatro do Pequeno Gesto, que j lanou 25 nmeros, o que uma aventura, dado que no contamos com nenhum apoio permanente para a sua produo.

    Meu trabalho como tradutora se insere, portanto, num projeto teatral de criao de espetculos e de difuso do pensamento a respeito do teatro, com nfase especial na relao entre a teoria e a prtica.

    Para o Folhetim tenho traduzido textos de pensadores e estudiosos franceses como Anne Ubersfeld, Claire Nancy, Jean-Jacques Alcandre e Denis Gunoun, cujo livro A exibio das palavras: uma idia (poltica) do teatro inaugurou a Coleo Folhetim/Ensaios, que prossegue com o lanamento de A arte da cena: entre tradio e vanguarda, uma coletnea de artigos de Batrice Picon-Vallin, especialista em teatro russo e pesquisadora do Centro Nacional de Pesquisa Cientfica (CNRS).

    E no mbito da traduo de peas teatrais que se concentra o desafio maior de meu trabalho. Em primeiro lugar, preciso dizer que, se nenhuma traduo inocente, a que se destina cena a menos inocente de todas, pois est totalmente comprometida com o que se pretende fazer dela no espetculo. Em geral, a deciso de montar um determinado texto provm do desejo de discutir questes importantes para ns, mas a pea no vem ilustr-las; ao contrrio, a busca pelo modo de construo do espetculo inclui o texto como algo no-definitivo e, portanto, capaz de suportar a inciso que nela praticamos para que aquilo que queremos discutir possa ali encontrar terreno frtil e germinar. Isso ocorreu, por exemplo, com a primeira fase de trabalho da Companhia, que girou em torno da relao entre realidade e fico e englobou os espetculos Quando ns, os mortos, despertarmos, de Ibsen, O marinheiro, de Fernando Pessoa, Valsa n. 6, de Nelson Rodrigues, Penlope, de Antonio Guedes e Ftima Saadi, e Henrique IV, de Pirandello. Nela ainda se inseriu a adaptao

  • SAADI, F tim a -Traduzindo teatro

    para pblico infanto-juvenil de O jogo do amor e do acaso, de Marivaux, com as hilariantes trocas de papis entre amos e criados.1

    Mesmo quando traduzo para outras companhias, procuro inteirar-me do projeto de encenao para aquele texto e, na medida do possvel, tomar conhecimento do processo de adaptao (o que aconteceu, por exemplo, com Os biombos, de Genet, traduzido para a companhia Teatro de Sera- phim de Recife, dirigida por Antonio Cadengue).

    A traduo para teatro tem algumas especificidades. Vou tentar falar brevemente daquelas que mais frequentemente nos embaraam.

    A primeira delas o tom oral que as falas tm de ter. O espectador deve entender primeira vista o que ouve, com o perdo do trocadilho. Claro que o carter oral inclui desde a coloquialidade mais trivial at a rebuscada construo potica de autores como Valre Novarina, que Angela Leite Lopes tem traduzido de forma brilhante para o portugus. Dizendo de outro modo: o tradutor vai ter de encontrar um modo de ser fiel ao esprito do autor, sem comprometer a comunicabilidade do texto (a menos que a incomunicabilidade seja o objetivo da encenao, o que tambm pode ocorrer). Na traduo de Os negros, de Jean Genet, para a companhia Black & Preto, confrontei-me

    1 Na fase seguinte, o mote dos espetculos do Teatro do Pequeno Gesto foi amor, traio e morte, quando se montaram A serpente, de Nelson Rodrigues, Media, de Eurpides, Navalha na carne, de Plnio Marcos, Vestir os nus, de Pirandello. Uma pesquisa com a fala coral, iniciada em Media, est se desdobrando agora com Peer Gynt, de Ibsen, cujo fio condutor , para ns, a questo da tica e da insero do indivduo na coletividade.

    com a seguinte questo: o texto bastante lrico, mas perpassam-no uma dureza e uma agressividade que tm de ser percebidas pelo espectador, tudo isso sem que se perca a clareza necessria compreenso imediata do texto. Havia, em algumas passagens, uma mescla de termos habitualmente associados ao universo potico com outros, esca- tolgicos - tudo organizado segundo estruturas predeterminadas e reconhecveis, como, por exemplo, a estrutura da ladainha (veja-se a Ladainha dos Lvidos), ou frases em que a funcionalidade da linguagem interrompida por enumeraes que acabam por criar um ritmo muito prprio, entre o coloquial e o lrico.2

    Uma dificuldade que diz respeito ao carter do portugus falado no Brasil a distncia que ele mantm em relao norma culta. No tocante ao teatro, uma das maiores complicaes evitar erros que choquem os ouvidos habituados a um padro correto da lngua, sem perder nem a fluncia nem o carter oral das tiradas. Alguns dos obstculos so, por exemplo, a mistura de tratamentos (tu e voc) e a prclise dos pronomes oblquos em incio de frase. Em geral, opto por no misturar tu e voc

    2 Ladainha dos Lvidos: VIRTUDE - Lvidos como o estertor de um tuberculoso./ Lvidos como o que solta o cu de um homem atacado de ictercia/ Lvidos como o ventre de uma cobra/ Lvidos como seus condenados morte/ Lvidos como o Deus que eles roem pela manh/ Lvidos como uma faca na noite/ Lvidos... exceto: os ingleses, os alemes e os belgas, que so vermelhos.../ Lvidos como o cime./ Eu os sado, lvidos! ( G e n e t , 1988, p, 61). Ou ainda: DIUF -T m cerrteza de que no podem dispensar o simulacro? Olhem em volta, conseguimos dispensar tudo, o sal, o tabaco, o metr, as mulheres, e at os confeitos para os batizados e os ovos para as omeletes! (Idem, p. 60).

  • Cerrados: Revista do Programa de P os-raduao em Literatura, n. 23, ano 16, 2007, p. 67-71

    e evito comear oraes por pronome oblquo, sabendo, no entanto, que, quase inevitavelmente, vai ocorrer uma aclimatao das falas por parte dos atores quando da montagem do texto.

    Outro dos problemas - grave - , no caso da traduo de clssicos do francs para o portugus do Brasil, o virtual desaparecimento do pronome vs e das formas conjugadas a ele correspondentes. Acabei de traduzir Le fils naturel et Les entretiens sur le Fils naturel, de Diderot, e esta- beleceu-se um acalorado debate com o editor, que defendia a manuteno do vs e do tu no texto em portugus. Argumentei que o senhor/a senhora seriam suficientes para denotar a cerimnia entre os personagens e que o passado seria percebido pelo espectador por meio da correo da linguagem, das referncias de poca, representadas por situaes e vocbulos que evocam indubitavelmente os tempos antigos (viagens de navio interrompidas por ataques em alto-mar, viagens em calea, lutas com espada). Alm disso, acho que todo texto de teatro tem por horizonte a montagem ou, no mnimo, a leitura dram atizada, e experincias recentes demonstraram que, infelizmente, os atores brasileiros mais jovens - eu diria, abaixo dos cinqenta anos - no dominam perfeitamente a forma de tratamento na segunda pessoa do plural.

    A segunda caracterstica das tradues de teatro sua extrema efemeridade. Elas envelhecem de modo impressionantemente rpido. Quanto mais se busca atualizar uma traduo pelo uso de termos em moda, grias etc., mais rapidamente ela caduca. Em geral, quando no estou traduzindo para um

    espetculo j em processo de montagem, opto por uma traduo neutra, porque sei que cada diretor vai adapt-la s suas necessidades. Quando o conceito do espetculo j est definido, ofereo ao diretor, dentro da gama semntica possvel para determinados termos, algumas opes para que ele escolha a que mais favorea o sentido da sua encenao. Quando o espetculo j est em ensaios, gosto de ouvir o texto dito pelos atores, e, a partir disso, muita coisa pode ser ainda refinada na traduo.

    Traduzir para o teatro um trabalho apaixo- nante: integrar ao trabalho solitrio do tradutor toda uma equipe que vai ser seu primeiro pblico, um pblico que tem voz e voto a respeito do texto ao qual vai dar vida, espacializando-o.

    E as muitas formas dramticas fazem com que vrios mundos passem a integrar o mundo do tradutor: teatro para bonecos e formas animadas, peas radiofnicas, atos sem palavras, textos para pblico infanto-juvenil, textos para adultos. Enfim, trabalhar com traduo para o teatro recriar, em equipe, o lugar olhado de muitas das coisas deste nosso mundo.R e f e r n c ia s

    B a r t h e s , Roland .L obvie et l obtus. Paris: Seuil, 1982. p. 86.G e n e t , Jean. Os negros. Traduo de Ftima Saadi. Rio de Janeiro: Sette Letras, 1988.