Sujetio Moral e Cultura Cristãnietzsche

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  • NIETZSCHE: SUJEITO MORAL E CULTURA CRIST

  • ChancelerDom Dadeus Grings

    ReitorJoaquim Clotet

    Vice-ReitorEvilzio Teixeira

    Conselho EditorialAna Maria Lisboa de MelloBettina Steren dos SantosEduardo Campos PellandaElaine Turk Fariarico Joo HammesGilberto Keller de Andrade Helenita Rosa FrancoIr. Armando Luiz BortoliniJane Rita Caetano da SilveiraJorge Luis Nicolas Audy Presidente Jurandir Malerba Lauro Kopper FilhoLuciano KlcknerMarlia Costa Morosini Nuncia Maria S. de ConstantinoRenato Tetelbom Stein Ruth Maria Chitt Gauer

    EDIPUCRSJernimo Carlos Santos Braga DiretorJorge Campos da Costa Editor-Chefe

  • ADILSON FELICIO FEILER

    NIETZSCHE: SUJEITO MORAL E CULTURA CRIST

    Srie Filosofia 209

    Porto Alegre, 2011

  • EDIPUCRS, 2011

    Rodrigo Valls

    Patrcia Arago

    Rodrigo Valls

    F298N Feiler, Adilson Felicio Nietzsche : sujeito moral e cultura crist [recurso eletrnico] / Adilson Felicio Feiler. Dados eletrnicos Porto Alegre : EDIPUCRS, 2011. 107p.:(SrieFilosofia;209)

    Sistema requerido: Adobe Acrobat Reader Modo de acesso: ISBN 978-85-397-0144-5

    1.FilosofiaAlem.2.Nietzsche,FriedrichWilhelmCrtica eInterpretao.3.Cristianismo.4.MoralCrist.I.Ttulo. II. Srie. CDD 193

    TODOS OS DIREITOS RESERVADOS. Proibida a reproduo total ou parcial, por qualquer meio ou processo, especialmente por sistemas grficos, microflmicos, fotogrficos, reprogrficos, fonogrficos, videogrficos. Vedada a memorizao e/ou a recuperao total ou parcial, bem como a incluso de qualquer parte desta obra em qualquer sistema de processamento de dados. Essas proibies aplicam-se tambm s caractersticas grficas da obra e sua editorao. A violao dos direitos autorais punvel como crime (art. 184 e pargrafos, do Cdigo Penal), com pena de priso e multa, conjuntamente com busca e apreenso e indenizaes diversas (arts. 101 a 110 da Lei 9.610, de 19.02.1998, Lei dos Direitos Autorais).

  • Jesus disse a seus judeus: A lei era para servos amem a Deus

    como eu o amo, como seu filho! Que nos importa a moral, a

    ns, filhos de Deus!

    (ABM, IV, 164, p. 81 / KSA V, p. 101).

    LISTA DE ABREVIAES

    As obras de Nietzsche utilizadas no desenvolvimento1 da pesquisa

    sero citadas pelas suas iniciais como segue:

    ABM Alm do Bem e do Mal;AFZ Assim Falou Zaratustra;AT O Anticristo;A Aurora;CI Crepsculo dos dolos;EH Ecce Homo;EP Epistolrio;FP Fragmentos Pstumos;GC A Gaia Cincia;GM Genealogia da Moral;NT O Nascimento da Tragdia.

    1 As tradues das obras acima so aquelas indicadas na bibliografia, exceto os Fragmentos Pstumos e o Epistolrio, que so aqui citados a partir do original alemo e da traduo italiana, da edio crtica estabelecida por G. Colli e M. Montinari, tambm indicadas na bibliografia. Aps as iniciais indicando a obra, seguem-se as indicaes do nmero do livro/captulo, quando houver, e/ou do nmero do aforismo e da pgina. Desta indicao para as tradues segue, aps a barra, a indicao do original alemo KSA (Kritische Studienausgabe Herausgegeben von Giorgio Colli und Mazzino Montinari) com o volume e a pgina.

  • SUMRIO

    PRFACE .........................................................................09

    PREFCIO .......................................................................11

    APRESENTAO ...........................................................15

    1 Nietzsche: Da ruptura a um novo comeo ..............21

    1.1 A ruptura de Nietzsche com a tradio crist

    ocidental a partir de Scrates .........................................21

    1.1.1 Um novo comeo ..............................................21

    1.1.2 O apolneo e o dionisaco contra Scrates ......... 23

    1.1.3 O sentido do trgico e o cristianismo ................. 25

    1.1.4 O logos socrtico como expresso dadecadncia ..................................................................27

    1.2 A ruptura nietzschiana como Vontade

    de Potncia .................................................................30

    1.2.1 A vontade de potncia como manifestao datenso entre o apolneo e o dionisaco ........................30

    1.2.2 Vontade de potncia x sujeito x Deus ...........32

    1.3 A ruptura de Nietzsche com a tradio da

    moral crist .......................................................................34

    1.3.1 Psicologia x valores morais ...........................34

    1.3.2 Valores morais x genealogia ..........................35

    1.3.3 Da polmica entre psicologia e histria vidacomo valor supremo ........................................................39

    2 O advento da cincia como anncio crepuscular dosujeito moral e do cristianismo ......................................44

  • 2.1 Da cincia ao sentido da terra .......................44

    2.1.1 Uma viso cientfica de mundo .......................44

    2.1.2 Cincia x sujeito moral ......................................46

    2.1.3 Nietzsche e o dualismo cartesiano ..................47

    2.1.4 Nietzsche x dualismo kantiano ...........................48

    2.2 Da cincia afirmao da vida ......................52

    2.2.1 Da cincia vontade de criao ........................52

    2.2.2 A natureza como expresso de vontade depotncia frente ao Deus moral ........................................54

    2.2.3 Da moral dualista cincia plural complementar ..55

    2.2.4 Genealogia: A cincia diagnosticadora dosmales da cultura .............................................................56

    2.3 Da cincia nova Religio ............................59

    2.3.1 Metafsica e vontade de potncia ..................59

    2.3.2 Deus e Cincia ................................................62

    2.3.3 Deus e a linguagem ........................................65

    2.3.4 Da cincia morte de Deus ............................67

    3 Cristianismo e transvalorao. Uma leitura doZaratustra e do Anticristo .............................................71

    3.1 Paulo e a inverso do cristianismo ..................71

    3.1.1 Zaratustra, o peregrino da transvalorao .........71

    3.1.2 Dualismo e reconciliao ....................................73

    3.1.3 Genealogia e cristianismo: a moral paulina ........74

    3.2 Lutero e a radicalizao do dever moral ...........80

    3.2.1 Cristianismo e sujeio ......................................80

  • 3.2.2 A corrupo da moderna filosofia pela teologia

    protestante .........................................................................82

    3.3 Jesus, o cristo autntico ..................................84

    3.3.1 Da superao da crena em Deus s novas tbuasde valores .......................................................................84

    3.3.2 A transvalorao dos valores culturais atravs davida e prtica de Jesus de Nazar ....................................88

    CONCLUSO .................................................................95

    REFERNCIAS ............................................................102

  • PRFACE

    La philosophie de Nietzsche est assez universellement reconnue de nos jours comme lune des grandes philosophies modernes, bien quelle soit par beaucoup de cts aussi antimoderne. Mais son accs est difficile: apparemment de style sduisant et clair, la pense de Nietzsche propose son lecteur dentrer dans un labyrinthe o il se perd, car paradoxalement le philosophe crit pour ne pas tre compris, comme il le dit lui-mme plusieurs reprises dans des passages clbres. Comme en tout labyrinthe laccs semble simple : pas de vocabulaire technique comme chez un Hegel ou un Heidegger, pas de raisonnements abstraits ou compliqus, peu ou pas de rfrences savantes dautres philosophies, mais des pomes, des aphorismes gnralement assez courts, une prose vocatrice des problmes de la vie de tous les jours, un ton provocant qui semble parler immdiatement. Il ne faut pourtant pas sy tromper : derrire cette entre en matire apparemment aise, se cachent des abmes redoutables.

    Aussi convient-il dtre introduit par des guides qui se sont eux-mmes aventurs dans le voyage. Le livre quon va lire est de ceux-l. Il ne dispense certes pas de recourir soi-mme au texte original ; il doit plutt y conduire. Et ceci parce que Nietzsche nest pas un penseur banal : travers lui nous trouvons comme anticips les problmes que nous rencontrons aujourdhui dans une socit moderne due de ses propres succs, dans des dmocraties o les abus dans les appels aux droits aboutissent lparpillement individualiste, o la religion a perdu de son prestige et de son emprise sociale (selon le thme clbre et si mal compris de la mort de Dieu), o, surtout, les volonts sont fatigues, dsabuses, accables par lampleur des difficults plantaires que nous rencontrons. Une telle fatigue de la volont est prcisment ce que Nietzsche diagnostique sous le nom de nihilisme. Et comment ne pas voir que nous devenons de plus en plus des esclaves (de la publicit, de lopinion, des mdias) et que nous avons grand peine tre rellement des crateurs, ou selon le vocabulaire nietzschen des nobles, des gens distingus, des affirmateurs ? Si le diagnostic de Nietzsche est impitoyable, il nest pas seulement critique. Le philosophe veut aider celui qui le frquente devenir un crateur, pas seulement un ngateur ou un mcontent ; il lappelle se forger une volont apte dire oui et faire de son existence une uvre dart, donc travailler positivement la mtamorphose (Verwandlung) de soi.

    Dans ce contexte la relation de Nietzsche au christianisme est tout fait essentielle : protestant de formation, Nietzsche ne cessera de batailler

  • Adilson Felicio Feiler

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    contre le christianisme (en ralit contre la thologien paulinienne plus que contre Jsus quil admirait par bien des cts). Cest que loin dtre un athe vulgaire, Nietzsche est un homme assoiff du divin ; sa virulente critique du monothisme (ou comme il disait du monotono-thisme) nest que lenvers dun appel une ouverture vers cette Eternit qui chappe toute prise, alors que les monothismes prtendent savoir ce quil en est de Dieu.

    Le livre quon va lire aidera le lecteur se reprer dans le labyrinthe, ainsi que dans la vaste littrature qui lui a t consacre. Il permet la rencontre avec un philosophe difficile, excessif par bien des cts, agaant mme par la radicalit et la violence de ses propos. Il conduira cette rumination dune pense complexe quon se doit de frquenter longuement et patiemment pour pouvoir lentendre. Comme dit Nietzsche, reprenant lEvangile, que celui qui a des oreilles pour entendre, quil entende !. Mais tout le monde a-t-il des oreilles pour entendre ?

    Paul Valadier, sj Professeur mrite des Facults

    jsuites de Paris.

  • PREFCIO

    Karl Jaspers, pensador alemo hoje infelizmente bastante esquecido, foi um dos que mais estudou Nietzsche e, mesmo sem se considerar um pensador cristo, publicou textos profundos como Nietzsche e o Cristianismo, que j inicia com a constatao: Sabe-se com que inaudita rudeza Nietzsche rejeitou o cristianismo. Quinze linhas adiante, porm, vai logo avisando: se no se conhece seno esta hostilidade, ter-se-, ao estudar Nietzsche, muitas ocasies de se admirar, achar-se-o frases que parecem totalmente incompatveis com estas ideias anticrists.

    claro que outros autores preferiro ver somente um dos lados da histria, reconstruindo apenas uma viso coerente, que nem sempre esgota o pensamento de alguns dos grandes filsofos. claro que mais fcil posicionar-se de um lado s: com os cristos contra Nietzsche ou com Nietzsche contra o cristianismo.

    Ora, ningum desconhece que em termos puramente quantitativos, os julgamentos negativos que brotam da pena de Nietzsche so muito mais numerosos, sobre o cristianismo, do que os positivos. E no h como desconhecer que este pensador alemo no teve a mesma sutileza do dinamarqus Kierkegaard, o qual diferenciou claramente entre o cristianismo, mensagem de vida, existencial, e a cristandade, conceito sociolgico, geogrfico e exterior, massificador. No entanto, embora Nietzsche no se reduza a criticar a Igreja que quer ser triunfante em vez de militante, ou a hierarquia eclesistica, muitas vezes farisaica e mundanizada, mas critique tambm os primeiros cristos (como ressentidos) e os Evangelhos (como anncio de uma m nova), e especialmente So Paulo (o verdadeiro inventor do cristianismo), chegando a atingir com suas crticas at o prprio Jesus Cristo, a quem designa com Dostoievski, verdade de idiota, ele tambm tem algumas passagens misteriosas que costumam embaraar seus intrpretes. Em especial, citemos sua insistncia sobre a prtica crist, que seria mais essencial do que uma f entendida como um ter algo por verdadeiro, bem como a correspondente utilizao, por parte de Nietzsche, de expresses to importantes como ser-cristo (Christ-sein) e cristicidade ou cristianidade (Christlichkeit).

    Sobre este ltimo ponto poderamos recorrer ao pensador francs Henri-Bernard Vergote, um dos maiores conhecedores de Kierkegaard, num importante artigo (pstumo) no nmero 19 da revista internacional Kierkegaardiana. muito mais fcil, porm, e mais interessante evocarmos Oswaldo Giacia

  • Adilson Felicio Feiler

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    Jnior, em seu belo livro Labirintos da Alma (Ed. Unicamp, 1997), em especial no texto intitulado: Notas para uma interpretao da figura histrica de Jesus do ponto de vista dO Anticristo de Nietzsche, que ali se encontra.

    Mas convm a corrigir o erro de traduzir, no 39, a expresso Christlichkeit, por cristandade (tal como o fez aqui Giacia, p. 80) ou por cristianismo (tal como o faz Rubens Eduardo Frias, alis com vrios erros de traduo no contexto). Que se traduza ento Christlichkeit pelo menos por vida crist (tal como o arriscou Pietro Nassetti, em sua traduo para a Martin Claret). Infelizmente, mesmo este ltimo tradutor ainda hesitou, inseguro, talvez sem entender at o fim ou at o fundo o que o autor queria mesmo dizer, e por isso traduziu o seguinte texto nietzschiano: Das Christ-sein, die Christlichkeit auf ein Fr-wahr-halten (...) reduzieren, heit die Christlichkeit negieren em parte certo, em parte errado, assim: reduzir o fato de se ser cristo, a vida crist, a um fato de crena (...) o que se pode chamar negar o cristianismo.

    Ora, a traduo portuguesa, das Edies 70, foi mais feliz neste ponto. E o artigo de H.-B. Vergote, intitulado Kierkegaard Philosophe de la Christianit, tambm bastante feliz, quando explica, por exemplo, que:

    a oposio preparada por Nietzsche muito mais radical, e o originrio procurado no convida de jeito nenhum a chamar do cristianismo histrico ao cristianismo primitivo. A palavra cristianismo j um mal-entendido, lemos no 39 de O Anticristo, j que tambm sem dvida s houve um cristo e esse morreu na cruz. O originrio que se revela na origem um ser diferente e no uma crena, uma prtica, em vista da qual todo sistema de crenas reputado como puro mal-entendido: falso at o absurdo ver em uma f, por exemplo, a f na salvao pelo Cristo, a marca distintiva do cristo: somente a prtica crist, uma vida como a viveu aquele que morreu na cruz, crist... Ainda hoje uma tal vida possvel, e mesmo, para alguns homens, at necessria (H.-B. VERGOTE, Kierkegaardiana 19, p. 10).

    Arriscando-se a interpretar Nietzsche, Vergote continua mais adiante:

    A marca distintiva do cristo: das Christliche, ou, mais precisamente ainda, die Christlichkeit; o conjunto dos caracteres que permitiriam reconhecer que um ser

  • Nietzsche: Sujeito moral e cultura crist

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    autenticamente cristo, e no o conjunto dos seres (cristandade) ou das doutrinas (cristianismo) que se reclamam do Cristo: eis o que o adversrio mais decidido do cristianismo, o profeta do declnio da cristandade, convidava a pensar; e a pensar como determinao de uma vida que hoje ainda possvel (Kierkegaardiana 19, p. 11).

    Com isto, Vergote j disse tudo, explicitou a problemtica insinuada por Jaspers e mostrou que h muitas questes em aberto, at nos textos mais duros da crtica nietzschiana. Mas sendo assim as coisas, talvez valha a pena correr alguns riscos e tentar interpretar este filsofo to polmico, ao mesmo tempo que to profundo e srio. o que muitos tm feito, e foi o que fez tambm o jesuta Adilson Feiler, em sua dissertao de mestrado da Unisinos, agora transformada em livro. Os bons jesutas sempre foram corajosos e desde as suas origens esto treinados e acostumados a ultrapassar as fronteiras, para trabalhar em sua misso no meio dos que pensam diferentemente. No outra coisa o que faz Adilson Feiler.

    Com enorme paixo, e at com estranha reverncia por seu polmico autor, Adilson enfrentou a fera em sua arena principal: na crtica da cultura crist a partir da desconstruo do sujeito moral. Poderia haver um campo mais perigoso, para se arriscar? Mas assim que se estruturam os grandes dilogos: quando ousamos ouvir o outro em sua real alteridade; ou, formulado na estratgia inaciana, entrando pela porta do outro para sair pela nossa. Kierkegaard, bom luterano a quem a noiva prevenia de que um dia acabaria jesuta, se no se emendasse, daria ainda uma terceira formulao: procurar a verdade mais autntica no meio da confuso, utilizando a arte ou a tcnica socrtica que consistia em saber distinguir as coisas.

    A obra que aqui leremos enfoca, portanto, a questo moral e discute a prpria noo de sujeito. Analisa com Nietzsche a cultura moderna e neste contexto compreende a tese da morte de Deus. Mas, ao mesmo tempo em que critica o moralismo religioso, insiste com Nietzsche na apresentao do Jesus histrico como aquele que legou humanidade uma prtica de vida.

    Adilson acompanha seu autor inclusive na discutvel questo da aristocracia cultural. Enquanto outros, para ficarem mais perto de um Cristo amigo dos pobres e das crianas, desconfiariam de todo aristocratismo, Adilson assume esta faceta nietzschiana, e vale a pena vermos, ao longo deste livro, se o faz de forma convincente e coerente com suas mais profundas convices de algum que quer ser fiel Companhia de Jesus.

  • Adilson Felicio Feiler

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    Em discusses com Adilson Feiler, enquanto ele redigia o presente texto, vrias vezes tivemos opinies um tanto diferenciadas na questo de como valorizar os papas da Renascena e a importncia de Lutero. Ele levava mais a srio os elogios de Nietzsche queles papas e famlia Borgia ( qual pertencia, parece, o Geral da Companhia, So Francisco de Borja). E no simpatizava tanto, seguindo nisto de perto seu autor, com aquele monge angustiado que provocou a Reforma, no sculo XVI.

    Como reagiria Santo Incio de Loyola, se vivo fosse, ao ler as crticas de Nietzsche a Lutero? Simpatizaria mais com o ateu ou com o protestante? Talvez se sentisse mais prximo dos luteranos, embora no perdesse a oportunidade de uma pequena provocao, lembrando a Martinho que ambos no queriam que seus seguidores usassem os seus nomes, e que ele, Incio, nisto tivera mais sucesso, pois os inacianos so conhecidos como Jesutas, enquanto aqueles evanglicos ainda hoje atendem por Luteranos. Mas isto constituiria talvez uma pequena rixa de famlia, entre irmos.

    De qualquer modo, possvel que os trs (Incio, Martinho e Frederico) acabassem concordando na interpretao da vida crist como prtica. Embora um Robert Perkins ache muito pequena a concesso de Nietzsche, de que sempre haver lugar, e at talvez necessariamente, para alguns sujeitos viverem conforme o modelo do Crucificado pois isto significaria apenas que cada um teria o direito de imitar o idiota que quisesse preferimos achar que neste dilogo, com polmicas e ironias (principalmente se os luteranos trouxessem Kierkegaard como seu advogado), o saldo pode ser bem positivo.

    Cabe ao leitor, esclarecido, julgar, ao longo deste livro de Adilson Feiler, de quem o mnimo que se pode dizer que se esforou enormemente para fazer o trabalho de um bom leitor, consultando sempre os originais alemes e tratando de interpretar sem preconceitos o autor que escolheu.

    lvaro L. M. Valls

  • APRESENTAO

    Em nome da defesa dos valores nobres e aristocrticos, Friedrich Nietzsche (1844-1900) busca resgatar toda a herana cultural europeia que, segundo ele, entrou em decadncia a partir de Scrates (cerca de 470-399 a.C.).

    Nietzsche considera brbaro todo aquele que se coloca contra a vida,2 como uma barreira no caminho de todos os homens poderosos e criadores, que representam o verdadeiro ideal da cultura: Assim tambm existem, entre os povos de gnio, aqueles a quem coube o problema feminino da gravidez e a secreta misso de plasmar, amadurecer, consumar os gregos, por exemplo, foram um povo desse tipo (ABM, VIII, 248, p. 157 / KSA V, p. 191). Nietzsche prope, ento, um retorno aos ideais da cultura grega, a qual sintetiza a harmonia da afirmao da vida. Para tanto, desconstri tudo aquilo que na cultura ocidental, como o caso da moral e da religio, constitui, segundo ele, um entrave ao desenvolvimento deste ideal de afirmao da vida. Este Ideal representado mediante a distino das duas disposies (experincias) artsticas fundamentais do ser humano: a apolnea (representada pelo deus Apolo, deus da ordem e da moderao dos instintos) e a dionisaca (representada pelo deus Dionsio, deus da msica, da desordem e da imoderao). em Dionsio que se manifesta o verdadeiro ideal de afirmao da vida: A arte trgica, rica por ambas as experincias, vem indicada com a conciliao de Apolo com Dionsio (FP, XII, 2 [110], outono de 1885, p. 116).

    Esse ideal de afirmao da vida, contra tudo o que dela constitui negao e morte, como o caso, segundo Nietzsche, da moral crist, vem indicado pela experincia artstica: [...] qual feiticeira da salvao e da cura, a arte, s ela tem o poder de transformar aqueles pensamentos enojados sobre o horror e o absurdo da existncia em representaes com as quais possvel viver (NT, III, 7, p. 56 / KSA I, p. 57). A afirmao da vida e a experincia artstica, ambas inseparavelmente ligadas, constituem a dupla interpretao niilista. Esta interpretao encontra-se visivelmente manifesta na noo de eterno retorno, de modo que, assim como os desafios da vida retornam eternamente, mas de forma travestida, a contemplao de uma obra de arte produz em ns o desejo de incessantemente reviv-la, proporcionando-nos os efeitos mais intensos, os quais compem o estado esttico, cuja tragdia constitui a mais alta expresso. Neste estado esttico h, sem dvida, uma exploso de energia, um aumento

    2 Nietzsche compreende a vida como a totalidade de todas as funes orgnicas, cuja tenso, que se depreende do conjunto de propriedades e fenmenos fisiolgicos e emocionais, constitui a manifestao da plenitude da fora.

  • Adilson Felicio Feiler

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    de potncia, de prazer, de imobilismo, de embriaguez dionisaca, de efeitos particulares desencadeados pela nobre riqueza interior, fazendo com que a conscincia seja suprimida e as pulses inconscientes liberadas.

    Ao desconstruir a moral, h que se desconstruir tambm o sujeito, uma vez que s existe moral enquanto existe um sujeito que age de acordo com um fim (telos). A principal negao da vida provm, segundo Nietzsche, da moral crist, que faz com que o homem ponha suas razes em um mundo e em um Deus transcendentes e com que despreze e renuncie a realidade deste mundo terreno, que , segundo o filsofo, o nico mundo existente, o mundo da vida. Mas de que modo estaria a moral crist na origem de um modo de vida que se ope vida? A este respeito Nietzsche escreve: Onde quer que a neurose religiosa tenha aparecido na terra, ns a encontramos ligada a trs prescries dietticas perigosas: solido, jejum e abstinncia sexual (ABM, III, 47, p. 53 / KSA V, p. 67). Seria, pois, a esses trs aspectos que ele atribui, na moral crist, prescries que aniquilam a vida?

    Contra tais prescries, Nietzsche investe a marteladas, movido pelo mpeto de transvalorar todos aqueles valores at ento tidos como inabalveis: Parti, parti, meus irmos, essas velhas tbuas dos devotos! Parti as sentenas dos caluniadores do mundo! (AFZ, III Das velhas e novas tbuas, 15, p. 245 / KSA, - IV, p. 257). Em lugar das velhas tbuas, prope uma nova, que traz, como ponto de partida, um manifesto de fidelidade terra ou, no dizer do filsofo, o resgate do sentido da terra evocado por Zaratustra, de onde deve brotar o alm-do-homem como expresso de um mundo que vontade de potncia:

    Algum dia, porm, num tempo mais forte do que esse presente murcho, inseguro de si mesmo, ele vir, o homem redentor, o homem do grande amor e do grande desprezo, o esprito criador cuja fora impulsora afastar sempre de toda transcendncia e toda insignificncia, cuja solido ser mal compreendida pelo povo, como se fosse fuga da realidade (GM, II 24, p. 84 / KSA V, p. 336).

    Esse homem novo representa na filosofia nietzschiana o esprito livre,

    aquele que se tornou dcil ao mundo em devir, j que nada h fora deste mundo que, como diz, circunscrito pelo nada. Na concepo heraclitiana de devir que se encontra a origem de sua noo de eterno retorno:3 Oh, como no 3 Na interpretao heraclitiana do devir no est implicado o eterno retorno do mesmo. Este ltimo antes uma tese estoica que Nietzsche erroneamente atribui a Herclito (cerca de 550-480 a.C.).

  • Nietzsche: Sujeito moral e cultura crist

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    deveria eu almejar a eternidade, e o nupcial anel dos anis o anel do retorno? Nunca encontrarei, ainda, a mulher da qual desejaria ter filhos, a no ser esta mulher que amo; pois eu te amo, eternidade! Pois eu te amo, eternidade! (AFZ, III, Os sete selos, 1, p. 271 / KSA IV, p. 287). Nesse contexto o homem no seno um dos canais pelos quais se d a epifania do mundo, no qual se manifesta o seu devir como vontade de potncia. Logo, se o mundo est intimamente ligado ideia de mudana, no teria ele um ponto de onde pudesse ter se originado? Se para Nietzsche nada h de determinado e imutvel, no residiria sua crtica precisamente no carter de determinao e imutabilidade dos princpios os quais fundamentam a metafsica e que constituem a base para o estabelecimento do cristianismo, enquanto corpo doutrinrio? Mas seria o cristianismo, como um todo, compreendido como um corpo doutrinrio? Ou haveria algum aspecto da mensagem crist, que, distante desse carter dogmtico, coabitaria ainda com a filosofia de Nietzsche?

    Como j foi acenado, Nietzsche, no seu af de desconstruir tudo o que a tradio metafsica construiu, tem como meta a desconstruo do sujeito. Algumas passagens de sua obra ilustram o que pensava a esse respeito, como nesta que segue: Est aberto o caminho para novas verses e refinamentos da hiptese da alma: conceitos como alma mortal, alma como pluralidade do sujeito e alma como estrutura dos impulsos e afetos (ABM, I, 12, p. 19 / KSA V, p. 27). De acordo com Nietzsche, no h como conceber nada como eterno e indestrutvel, como o caso de uma compreenso do carter atmico4 da alma. Toda a ordem existente, estabelecida pela filosofia em seu esforo de compreender, ordenando o mundo, seria ento reconhecida pela multiplicidade e pelo caos? E esse caos se encontraria em todos os componentes do mundo e dentre esses no sujeito? O sujeito entendido pela cultura metafsica como aquele que age movido por um fim (telos, que transcendente ao mundo na maioria dos casos). Ora se Nietzsche exclui a finalidade, ele exclui com esta a prpria noo do sujeito um sujeito pensado em vista de um fim que lhe seja exterior. Como, ento, pode-se afirmar a vida em semelhantes condies?

    Tendo assim presentes as questes explicitadas, pretendemos analisar os aspectos que se encontram na gnese da filosofia nietzschiana e, sobretudo, os referentes sua crtica da moral crist e desconstruo do sujeito que desta crtica se depreende, em sua tentativa de encontrar uma resposta para a decadncia da cultura.

    4 Em Alm do Bem e do Mal, Nietzsche utiliza a expresso atomismo da alma, para indicar uma certa compreenso da alma como mnada (ABM, I, 120, p. 19 / KSA V, p. 26-27).

  • Adilson Felicio Feiler

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    No primeiro captulo, apresentaremos as bases estruturais da cultura ocidental que constituem o alvo da crtica nietzschiana; para tanto, o intitulamos: Nietzsche: da ruptura a um novo comeo. Como essa ruptura se d em diferentes aspectos, subdividimos o captulo em trs partes, correspondentes aos trs perodos do pensamento de Nietzsche.

    A primeira apresenta a ruptura de Nietzsche com o itinerrio da tradio crist ocidental, para o qual o filsofo alemo prope um novo comeo, a partir de Scrates. Esta primeira parte corresponde quele perodo, denominado, segundo Scarlett Marton, pessimismo romntico, em que Nietzsche exalta a primitiva cultura grega e em cuja obra O nascimento da Tragdia central. Na segunda parte, apresentamos a ruptura nietzschiana com a tradio filosfica ocidental, a partir do advento do conceito de vontade de potncia, e acenamos para alguns pontos que sugerem o segundo perodo da filosofia nietzschiana, denominado, de acordo com Marton, positivismo ctico, cujo acento est na afirmao da cincia. Essa segunda parte j antecipa elementos que compem o terceiro perodo do pensamento de Nietzsche, que denominado, segundo Marton: transvalorao dos valores. E este o tema da terceira parte de nossa pesquisa, em que apresentamos a ruptura de Nietzsche com a tradio da moral crist. Nesse captulo, ganham fora os elementos geradores de nossa pesquisa, verdadeiro renascimento do primeiro perodo, solo para o florescimento de novas noes como: eterno retorno, vontade de potncia e alm-do-homem.

    Assim, apresentadas as bases estruturais, que compem a crtica Nietzschiana cultura como uma ruptura de todo o foi assim abrindo perspectivas para o assim eu quero, ou seja, uma ruptura a partir das bases sobre as quais foram gerados os valores permeados pela fixidez e pelo dogmatismo, razes que, segundo Nietzsche, so toda a fraqueza e submisso sobre a qual repousa a concepo de sujeito, apresentamos, no segundo captulo, a dupla compreenso de Nietzsche a respeito da cincia. Se por um lado, por meio dos desenvolvimentos tcnico-cientficos, Nietzsche pode concluir que aqueles valores transcendentes nos quais a humanidade at ento havia depositado as suas crenas no tm mais sentido, como o caso do Deus cristo (apresentado como morto); por outro lado, a cincia, no seu af de adquirir a verdade como algo eterno e imutvel, acaba caindo naquele mesmo erro dos metafsicos e transcendentalistas tpicos da cultura ocidental. Desse modo, tambm Immanuel Kant (1724-1804), na viso de Nietzsche, a princpio tido como o grande crtico da metafsica por introduzir os procedimentos da razo pura no campo da moralidade, acaba radicalizando aquela concepo de sujeito

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    moral voltado ao mundo da crena e ao mundo de um Deus, como postulados da razo. Kant assim acusado por Nietzsche por ter permitido que a religio penetrasse na filosofia. Logo, tal como a cincia, que, por trs de seu aparato tcnico-experimental, esconde a crena na efetivao da verdade ao modo de uma religio, o pensamento do filsofo de Knigsberg tido por Nietzsche como um contrassenso por esconder atrs de seu rigorismo tcnico-racional a crena, no fundo religiosa, na qual a verdade eterna, universal e imutvel.

    Ora, por essa razo, o pensamento de Nietzsche, voltado crtica da cultura ocidental, busca, precisamente no seu terceiro perodo, ir muito alm da crtica que o mundo tcnico e cientfico faz dos valores, da metafsica e da religio. Nietzsche prope uma destruio do solo em que tais valores se originaram. Prope, ainda, uma transvalorao de todos os valores, tema que tem espao na apresentao do terceiro captulo. Neste, temos como obras principais a nortear a nossa reflexo: Assim falou Zaratustra (1883-85), considerada como a de maior envergadura literria de Nietzsche, e O Anticristo (1888), na qual muitos dos temas do Zaratustra reaparecem, porm com um teor mais incisivo. Veremos, ento, que Nietzsche lana cultura crist ocidental as suas crticas mais incisivas, embora, em alguns momentos, d margens a consideraes do tipo Jesus de Nazar como um esprito livre. Segundo o autor, a cultura crist falseia a vida e a prtica pregadas por Jesus, cujas expresses mais altas apresentam-se nas figuras de Paulo de Tarso (10 d.C.-67 d.C.) e de Martinho Lutero (1483-1546). Ambos, de acordo com a leitura de Nietzsche, adulteram o cristianismo, por isso a eles pode ser aplicada a figura do Anticristo (inspirada em Nero, por meio da literatura de Ernesto Renan). Este falseamento est no fato de contriburem para a radicalizao da moral crist, que se expressa atravs da sua luta contra a aristocracia crist em favor das massas enfraquecidas da sociedade. E, dado que a filosofia de Nietzsche se constitui sobre uma concepo de fora, tudo o que inspira fraqueza contribui, na viso do filsofo, para a decadncia, o niilismo da cultura. Veremos que a prpria moral, quando ligada a tudo o que forte, alto, como o caso da moral do senhor que se manifesta na Igreja petrina e renascentista, tida em alta considerao por Nietzsche.

    Assim, muito mais do que provar que Deus esteja morto ou que o cristianismo como um todo seja o responsvel pela decadncia cultural, a filosofia de Nietzsche se constri como um exerccio de coerncia, que conduz a um desmascaramento de todos aqueles valores consagrados pela tradio. Por carregarem as marcas da fixidez e do dogmatismo, esses valores, cuja

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    manifestao mais forte repousa sobre a concepo de sujeito moral, na qual a fraqueza possui o seu terreno principal de atuao, acabam eliminando aquela expresso da plenitude da vida, no dizer do filsofo, representada pela mobilidade e pela fora. Logo, exclusivamente contra esta concepo de sujeito moral, fraco e decadente, presente na cultura crist ocidental, que a filosofia de Nietzsche enderea as suas crticas, como poderemos perceber ao longo dos captulos que compem a pesquisa.

  • CAPTULO 1

    NIETZSCHE: DA RUPTURA A UM NOVO COMEO

    1.1 A RUPTURA DE NIETZSCHE COM A TRADIO CRIST OCIDENTAL A PARTIR DE SCRATES

    1.1.1 UM NOVO COMEO

    m dia, o meu nome ser ligado a lembrana de algo tremendo de uma crise como jamais houve sobre a terra, da mais profunda coliso de conscincias, de uma deciso conjurada contra

    tudo o que at ento foi acreditado, santificado, requerido. Eu no sou um homem, sou dinamite (EH, Por que sou um destino, 1, p. 109 / KSA VI, p. 365).

    A figura de Nietzsche est ligada a um evento indito na histria da filosofia, em que a crtica radical da religio, da cincia e da moral chega a grandes propores. Nietzsche desfere impiedosamente golpes a martelo a todo o passado que a tradio metafsica tem consagrado.

    Ao modo de Georg Hegel (1770-1831), Nietzsche desenvolve uma conscincia histrica5 voltada reflexo sobre todo o passado da cultura ocidental, desde a origem dos primeiros pensadores gregos. Porm, Hegel, seguindo a reflexo de Eugen Fink (1980, p. 8):

    [...] leva a cabo uma imensa tarefa conceptual ao repensar e integrar todas as transformaes da compreenso humana do ser, reunindo todos os temas contraditrios da histria da metafsica na unidade superior do seu sistema e levando assim essa histria metafsica a uma concluso.

    Nietzsche, por sua parte, considera o itinerrio do pensamento ocidental como a histria de um longo equvoco, frente ao qual torna urgente o empreendimento de uma desconstruo e de um novo caminho. Como podemos verificar nesta passagem: [...] como poeta e decifrador de enigmas, vindo para redimir os homens do acaso, ensinei-lhes a criar o futuro e a redimir, de 5 Embora entre Nietzsche e Hegel haja uma diferena evidente, no prprio modo de considerar a conscincia histrica, possvel verificar em ambos os autores um posicionamento crtico com relao tradio metafsica.

    U

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    maneira criadora tudo o que foi (AFZ, III, Das velhas e novas tbuas, 3, p. 236 / KSA IV, p. 248-9). Ele ope a filosofia da vida tradio metafsica. O ideal de afirmao da vida passa a ser o seu critrio fundamental, em cujas pegadas ele pensa o ser, subvertendo a metafsica que os longos vinte e cinco sculos tm consagrado: Falando seriamente, h boas razes para esperar que toda dogmatizao em filosofia, no importando o ar solene e definitivo que tenha apresentado, no tenha sido mais que uma nobre infantilidade e coisa de iniciantes (ABM, prlogo, p. 7 / KSA V, p. 11).

    A experincia nietzschiana original do ser remonta a dois mil e quinhentos anos, a Herclito, a raiz primordial de sua filosofia. Contudo, esse retorno a Herclito j fora anteriormente proposto por Hegel para a edificao de seu sistema.6 Nietzsche, avesso a toda e qualquer ideia de sistema, permanece, diferentemente de Hegel, apenas naquele movimento entre o ser e o nada, o algo e o outro. Por no produzir uma sntese, essa tenso entre o ser e o nada foge a toda fixidez e dogmatismo. Desse modo, da filosofia de Nietzsche, depreende-se um tipo de conhecimento que, longe de constituir a verdade, nada mais que uma multiplicidade de perspectivas. Dessa ausncia de referenciais e de critrios fixos, Nietzsche aponta humanidade o advento do niilismo, no qual a cultura ocidental, em especial o cristianismo, sofre um abalo geral em suas estruturas. Scarlett Marton (2000, p. 21) escreve uma passagem que ilustra esse fato: Com a morte de Deus, o filsofo nomeia o destino de vinte sculos da histria ocidental, apreendendo-a como o advir e o desdobrar-se do niilismo.

    Frente aos conceitos estabelecidos na filosofia ocidental, Nietzsche ope uma filosofia da existncia, que se coloca contra a prpria questo dos valores tradicionais. Opera, em outras palavras, uma inverso no que diz respeito s questes do ser para as questes de valor, efetuando, com isso, no dizer de Fink (1980), um novo comeo em que a vida se abre a partir de uma perspectiva criadora de valores. Aqueles valores existentes (objetivos), em torno dos quais est unida uma comunidade, abrem espao para valores relativos existncia de cada indivduo em particular (subjetivos). Fink (1980, p. 131), com respeito a estes ltimos, diz que, Ao criar valores, o homem transcende-se e coloca diante de si a sua prpria criao como um objeto estranho dotado de todas as caractersticas mais notveis de ser em si. Assim, aqueles valores, outrora ditos objetivos, no passam de uma criao da existncia humana, expressam-se a partir de conceitos fundados na fixidez e no dogmatismo, como o

    6 O sistema hegeliano parte do princpio de que, no comeo de uma filosofia, no pode haver nada de determinado, nenhuma essncia fixa. Este primeiro princpio o ser vazio de todo o contedo, idntico ao nada. Porm, nesta identidade de termos contraditrios, o ser-nada indeterminado se determina e aqui que temos o devir Werden, que o ser determinado Dasein (HEGEL, 1968).

  • Nietzsche: Sujeito moral e cultura crist

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    caso dos conceitos de eu e de sujeito, tidos como a causa da ao. Essa relao causa e efeito acaba eliminando, de acordo com a viso de Nietzsche, a pluralidade e a dinamicidade instintual que compem a vida, ocasionando a fraqueza, a debilidade e a negao, responsveis pela decadncia da cultura. E movido pelo mpeto de instaurar uma cultura superior, Nietzsche aponta, a partir de seu procedimento genealgico, a moral crist como responsvel principal da decadncia cultural. Porm, o filsofo luta contra a desonestidade e a incoerncia presentes no cristianismo, razo pela qual podemos citar Fink (1980, p. 130) que diz que Ele no chega a triunfar do cristianismo, uma vez que luta contra uma caricatura do cristianismo.

    O combate implacvel que Nietzsche empreende contra a cultura da moral crist, colocando tudo que a ela subjaz sob suspeita, valeu-lhe a designao de filsofo da suspeita. Isto se revela na forma pela qual ele toma o objeto principal de nosso estudo: a moral e a prpria figura de Jesus de Nazar. O caminho que Nietzsche percorre aquele que toma como ponto de partida, no mais Scrates, mas aquele que leva aos gregos antigos.

    O modo pelo qual Nietzsche retoma os gregos antigos, no intuito de fundamentar o seu ideal de afirmao da vida, contra tudo o que dela constitui negao, decadncia e morte, como o caso da moral e do cristianismo, o que iremos acompanhar nos tpicos seguintes.

    1.1.2 O APOLNEO E O DIONISACO CONTRA SCRATES

    Esse recuo que Nietzsche opera na histria rumo aos gregos antigos tem como alvo o antagonismo representado pelos deuses da mitologia grega: Apolo7 e Dionsio,8 os quais representam foras antagnicas a impulsionar a tragdia. Assim, a filosofia de Nietzsche, como nos aponta Oswaldo Giacia Junior (2000, p. 72), tem, na tragdia, o seu verdadeiro incio. A tragdia resultado da influncia de ambas as divindades, como disposies artsticas; tal como Nietzsche diz: Em oposio a todos aqueles que se empenham em derivar as artes de um princpio nico, tomado como fonte vital necessria de toda obra de arte, detenho o olhar naquelas duas divindades artsticas dos gregos, Apolo e Dionsio, e reconheo neles os representantes vivos e evidentes

    7 Apolo, tambm chamado de Febo, filho de Jpiter (Zeus) e Latona, por ter uma atitude de vingana, foi condenado por Jpiter a viver na Terra. Tendo aprendido a lio, tornou-se o deus da ordem, inimigo da barbrie, em defesa da moderao em todas as coisas.8 Dionsio, tambm chamado de Baco, era filho de Zeus e Smele. Ainda no ventre materno, sofre um atentado de morte por parte do dio de Hera. Consegue, porm, sobreviver, tornando-se uma fora oposta s hostilidades conservadoras, neste sentido, apontando para uma forma de vida regida pela imoderao dos instintos, pela orgia e pela msica.

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    de dois mundos artsticos diferentes em sua essncia mais funda e em suas metas mais altas (NT, III, 16, p. 97 / KSA I, p. 103). Ela, a tragdia, une a plasticidade apolnea musicalidade dionisaca, a arte do representante plstico arte no figurada da msica: Essa imensa oposio que se abre abismal entre a arte plstica, como arte apolnea, e a msica, como arte dionisaca (NT, III, 16, p. 97 / KSA I, p. 103). A luta e a contraposio que existe frequentemente entre ambos incitam a produo de coisas sempre novas, como o caso da manifestao do sonho, como expresso jubilosa do que h de mais ntimo e profundo em cada um de ns.

    A oposio que Nietzsche refere entre Apolo e Dionsio no representa a excluso de um pelo outro, j que ambos so elementos indispensveis e fundamentais para a composio da tragdia, mas representa um estado de permanente tenso entre foras opostas (construir e desconstruir) que aponta para o criar e o recriar artstico.

    Em Scrates, os elementos dionisaco e apolneo so extirpados da tragdia. Com respeito a este fato, Nietzsche escreve:

    O que significa, justamente entre os gregos da melhor poca, da mais forte, da mais valorosa, o mito trgico? E o descomunal fenmeno do dionisaco? O que significa, dele nascida, a tragdia? E, de outra parte: aquilo de que a tragdia morreu, o socratismo da moral, a dialtica, a suficincia e a serenojovialidade do homem terico como? No poderia ser precisamente esse socratismo um signo de declnio, do cansao, da doena, de instintos que se dissolvem anrquicos? a serenojoavialidade grega do helenismo posterior, to somente, um arrebol do crepsculo? A vontade contra o pessimismo, apenas uma precauo do sofredor? E a cincia mesma, a nossa cincia sim, o que significa em geral, encarada como sintoma da vida, toda a cincia? Para que, pior ainda, de onde toda a cincia? Como? a cientificidade talvez apenas um temor e uma escapatria ante o pessimismo? Uma sutil legtima defesa contra a verdade? E, moralmente falando, algo como covardia e falsidade? E, amoralmente, uma astcia? Scrates, Scrates, foi este porventura o teu segredo?, ironista misterioso, foi esta, porventura, a tua ironia? (NT, Tentativa de Autocrtica, 01, p.14 / KSA I, p. 12-13).

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    Essa perda dos elementos dionisaco e apolneo acarreta a dissoluo do efeito trgico.

    Em Scrates tem lugar a morte da tragdia e com ela a incipiente decadncia da cultura. Os instintos so desertificados e anarquizados abrindo espao crtica representada pela frmula Razo = Virtude = Felicidade. Segundo Nietzsche, esta frmula encontra, no cristianismo, um terreno ainda mais frtil.

    1.1.3. O SENTIDO DO TRGICO E O CRISTIANISMO

    Na tragdia, Dionsio considerado o nico heri existente, subsistindo por detrs das figuras (mscaras) como as de dipo9 e de Prometeu.10 Ele se assemelha a um indivduo que erra, anela, sofre, numa pluralidade de configuraes. Este estado de individuao que fonte de todo sofrer alcana pela arte o anelo unidade. A experincia artstica proporciona esse ideal sublime de afirmao da vida, contra tudo o que dele constitui negao e morte.

    O poder musical dionisaco transforma o mito em veculo de sabedoria, tendo na tragdia a sua mais alta expresso.11 Por outro lado, quando o mito submetido inquirio racional, reivindicando sua facticidade histrica, acaba morrendo e se tornando religio. a esse estado que, na viso de Nietzsche, o cristianismo como o maior movimento religioso da histria da cultura ocidental tem se reduzido. Considerando a importncia do mito, Nietzsche afirma: Sem o mito, porm, toda a cultura perde sua fora natural e criadora: s um horizonte cercado de mitos encerra em unidade todo um movimento cultural (NT, III, 23, p. 135 / KSA I, p. 145).

    Segundo a compreenso de Nietzsche, o cristianismo, entendido como um evento cultural revolucionrio, racional e hierrquico, um dos principais responsveis pela perda do sentido originrio do mito. Aquela fora sublime que desencadeia a sabedoria trgica. Ora, sem o trgico, estanca-se a fonte suprema da vida. Como, ento, podemos compreender a mensagem crist como 9 Conf. SFOCLES. Tragdias completas. Trad. Ignacio Errandonea, SJ. Segunda Edicin. Madrid: Aguilar, 1955, p. 201). * COMMELIN, P. Mitologia grega e romana. Trad. Thomaz Lopez. Rio de Janeiro: Editora Tecnoprint Ltda., Cap. 11. p. 205-207. * HAMILTON, Edith. A mitologia. Universidade Moderna 4. Lisboa: Publicaes Dom Quixote, 1983, Parte V. Cap.II. p. 388-394 * GRAVES, Robert. Los mitos griegos. Vol. 2. Madrid: Alianza Editorial, 1985. p. 7-15.10 Conf. HAMILTON, Edith. A mitologia. Universidade Moderna 4. Lisboa: Publicaes Dom Quixote, 1983, Parte I, Cap. IV. p. 103-108.11 Desses fatos, em si compreensveis e de modo algum inacessveis a qualquer observao mais profunda, deduzo eu a capacidade da msica para dar nascimento ao mito, isto , o exemplo significativo, e precisamente o mito trgico: o mito que fala em smiles acerca do conhecimento dionisaco (NT, III, 16, pag. 101 / KSA I, p. 107).

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    anunciadora da vida? Com respeito a essa ptica da vida aqui entra um novo problema que o problema da moral.

    O problema da moral, ligado noo de valor, tem para Nietzsche uma importncia muito grande: A questo da origem dos valores morais para mim, portanto, uma questo de primeira ordem, porque condiciona o futuro da humanidade (EH, Aurora Pensamentos sobre a moral como preconceito, 2, p. 78 / KSA VI, p. 330). Nietzsche considera os valores morais como sendo tudo aquilo que a tradio consagrou como realidade perfeita e acabada, atrofiando, oprimindo e enfraquecendo a vida. E no cristianismo, compreendido como aquele aparato doutrinrio e dogmtico, que a moral, sob cuja tutela os homens devem pautar as suas vidas, tem a sua expresso mais forte. Alm disso, a fora dessa moral atua como afirmao de um mundo transcendente, governado por um Deus poderoso, onisciente e criador.12 Frente ao impasse entre estes dois mundos o mundo transcendente e o mundo material, corpreo , Nietzsche traz como resposta a contraposio de dois fenmenos, representados por tudo aquilo que fraco, inativo e decadente. O fenmeno da arte,13 cuja essncia a vida trgica,14 consiste naquele mecanismo pelo qual o mundo decifrado, j que o mundo, no seu eterno retorno sobre si mesmo, nada mais do que uma exploso de foras entre opostos. Essa luta entre opostos manifesta-se como fenmeno esttico.

    Quando Nietzsche contrape a arte moral, ele retoma aquele tema inicial, com o qual procura fazer com que a filosofia perfaa um novo caminho. Caminho este representado pela substituio do esttico (moral dogmtica) pelo movimento (arte criativa). Dado que Nietzsche tem o intento de inaugurar na cultura ocidental um movimento aristocrtico, este no se poder concretizar a partir da moral inerte, mas sim a partir da dinmica criativa. Por essa razo, o filsofo empreende guerra contra todo aquele aparato conceitual inerte, racional e dogmtico que subjaz cultura ocidental a partir de Scrates.

    12 O cristianismo foi desde o incio, essencial e basicamente, asco e fastio da vida na vida, que apenas se disfarava, apenas se ocultava, apenas se enfeitava sob a crena em outra ou melhor vida. O dio ao mundo, a maldio dos afetos, o medo beleza e sensualidade ( NT, I, 5, p. 19 / KSA I, p. 18).13 [...] a doutrina crist, a qual e quer ser somente moral, e com seus padres absolutos, j com sua veracidade de Deus, por exemplo, desterra a arte, toda arte, ao reino da mentira isto , nega-a, reprova-a, condena-a (NT, I, 5, p. 19 / KSA I, p. 18). *Contra a moral, portanto, voltou-se ento, com este livro problemtico, o meu instinto em prol da vida, e inventou para si, fundamentalmente, uma contradoutrina e uma contravalorao da vida, puramente artstica, anticrist (NT, I, 5, p. 20 / KSA I, p. 19).14 Na viso trgica do mundo encontram-se confundidas a vida e a morte, ascenso e decadncia de tudo quanto finito. O pattico trgico no um pessimismo passivo, mas uma descoberta que modifica a atuao de Nietzsche e o liberta da herana de Schopenhauer. O sentimento trgico da vida antes a aceitao da vida, a jubilosa adeso tambm ao horrvel e ao medonho, morte e ao declnio (FINK, 1980, p. 18).

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    1.1.4 O LOGOS SOCRTICO COMO EXPRESSO DA DECADNCIA

    Com Scrates, a humanidade experimenta um novo alvorecer, marcado pela transio do mito para o logos. Esta nova configurao vem fixar a presena indispensvel da razo a arbitrar sobre tudo o que compe a existncia.

    Da razo, deriva-se um outro componente a ela intimamente associado: a moral. E da juno entre esses dois componentes que se atingir a felicidade. A racionalidade passa a ser redentora da humanidade, como um remdio para uma situao desesperadora: O fanatismo, com o qual toda a reflexo grega se lana para a racionalidade, trai uma situao desesperadora (CI, II, 10, p. 22 / KSA VI, p. 72).

    Na posio de filsofo, Nietzsche denuncia que a cultura entrou em decadncia em virtude da racionalidade na qual tem mergulhado. Estaria com isto, o filsofo, supondo que a cultura ocidental se resumiria num panracionalismo, solapador de todos os sentimentos e afetos? Alm do mais, essa posio de Nietzsche no estaria baseada em razes? Como poderia, ento, criticar a razo no seu todo? E qual seria essa situao desesperadora, frente qual Nietzsche constata como equvoco o estabelecimento do racionalismo como decorrente da moral, como o caso da moral crist? Segundo Nietzsche, O que eles escolhem como meio, como salvao, no seno uma nova expresso de dcadence (CI, O problema de Scrates, 11, p. 23 / KSA VI, p. 72). Assim, por considerar a razo e a moral a ela ligada como algo dado, fixo e inerte, o filsofo condena-as como expresso da fraqueza na qual a cultura ocidental tem mergulhado. Por isso, estabelece os instintos como contraponto que vem inaugurar uma cultura fundada em outras bases: o movimento, a tenso e a criao.

    Ora, nada pode ser concebido como esttico, uno e eterno; assim, salva a concepo heraclitiana de devir, segundo a qual tudo est em constante movimento: Se o povo dos outros filsofos rejeitou o testemunho dos sentidos porque esses indicavam a multiplicidade e a durao, ele rejeitou seu testemunho porque indicava as coisas como se elas possussem unidade e durao (CI, A razo na filosofia, 2, p. 26 / KSA VI, p. 75). Giacia, em relao a essa natureza instintual em devir, diz que: Nesse processo, como em toda a histria do esprito, nada fato, dado, natureza, tudo vir-a-ser (GIACIA, 2002, p. 64).

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    Se tudo est em constante movimento, como se pode admitir aqueles valores morais que so imputados humanidade como eternos e imutveis, como o caso, na viso de Nietzsche, dos valores cristos? Mas esses valores so sempre e necessariamente eternos e imutveis? E, alm desses valores, como podemos admitir o seu gerador e rbitro, o Deus cristo? Ele imutvel e eterno como os valores ou est sujeito mudana? Certamente no poderamos admiti-lo com base no vir-a-ser heraclitiano, ou com base nos instintos, j que, como ser supremo, reivindica ser causa sui (FINK, 1980, p. 130): A causa sui [causa de si mesmo] a maior autocontradio at agora imaginada, uma espcie de violentao e desnatureza lgica: mas o extravagante orgulho do homem conseguiu se enredar, de maneira profunda e terrvel, precisamente nesse absurdo (ABM, I Dos preconceitos dos filsofos, 21, p. 26 / KSA V, p. 35). Nesse momento, poderamos trazer o dito de Fink a respeito do cristianismo. Segundo ele: Se o cristianismo a revelao do prprio Deus, nenhuma filosofia susceptvel de o molestar, mesmo as portas do inferno no podem triunfar dele, toda a finita sabedoria se desagrega quando se faz ouvir a palavra do filho de Deus (FINK, 1980, p. 130). Fink, contrapondo-se frontalmente a Nietzsche, procura salvaguardar os valores divinos, mas no o estaria fazendo mediante um refgio no campo da crena? E no seria essa mesma crena, por estar alm da realidade sensvel, mais um dos alvos de ataque de Nietzsche?

    Desse modo, Nietzsche apresenta dois tipos de crenas: real, baseada na razo, ou aparente, baseada nos instintos; quando aplicadas ao mundo, a segunda muito mais realidade do que a primeira, pois esta absolutamente indemonstrvel. Ento, se admitirmos a existncia de Deus como uma realidade aparente, seria essa existncia muito mais real. Assim podemos j auferir a posio de Nietzsche, segundo a qual, por detrs daquela sua afirmao de que Deus est morto, a existncia de uma divindade pode ainda ser assegurada. Essa afirmao se sustenta mediante o aforismo: Dioniso contra o crucificado15 (FP, XIII, 14 [89] da Primavera de 1888, p. 266). A partir disso Nietzsche, segundo a compreenso de Remdios vila (1999), opera uma transposio do plano da moral para o plano da arte, em que o Deus cristo, fundado sobre um conjunto de asseres doutrinrias, estticas, coercitivas e dogmticas, abre espao para o deus Dionsio, aquela divindade artstica que se manifesta em inmeras capas de aparncia.

    15 Mais adiante perceberemos que a opo de Nietzsche por Dionsio como divindade, em lugar daquele Deus que a tradio crist salvaguardou, insustentvel.

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    Nietzsche deixa transparecer que o problema no est tanto na existncia ou no de Deus, mas, no modo pelo qual esta existncia tem se sustentado na cultura ocidental, no tem sido outro que a razo em um sistema de valores, tido como sem sentido. A crtica ao cristianismo, longe de ser aquele cristianismo como prtica de vida, legado por Jesus de Nazar, como veremos ainda mais adiante, mas entendido como um corpo doutrinrio apresentado sob a forma de um esquema racional, parece encoberta por uma crtica maior, que a crtica ao racionalismo no qual a cultura do ocidente tem mergulhado. E com base na razo que a moral tem fundamentado todos os seus valores, normas e preceitos que compem a doutrina crist.16 A esse respeito Nietzsche bem claro: Toda moral, bem como toda religio, resume-se a esse imperativo: eu o denomino o pecado hereditrio da razo (CI, Os quatro grandes erros, 2, p. 42 / KSA VI, p. 89).

    Assim, a cultura racional prope a eliminao dos instintos propulsores da ascenso da vida: Racionalidade contra instinto. A racionalidade a todo o preo como fora perigosa, solapadora da vida! (EH, O nascimento da tragdia, 1, p. 62 / KSA VI, p. 310). Como a doutrina do cristianismo tem a sua gnese e estrutura a partir da razo, que espcie de vida vem afirmar? Nietzsche coloca o problema do cristianismo frente necessidade dos instintos. Ambos so, de fato, realidades opostas, sem nenhuma vinculao?

    Mas no seria arbitrrio afirmar que o cristianismo como um todo essencialmente racionalista?17 As suas verdades contidas nos dogmas de f no seriam manifestaes que brotam do mais ntimo do corao? A experincia de vida crist, embora se sirva da razo como veculo para a sua manifestao, no apontaria para uma vivncia que transpe os limites da razo? Ou melhor, a razo no seria apenas um meio mediante o qual o homem pudesse expressar linguisticamente a sua experincia crist, que se baseia, em ltima instncia, numa vivncia? Chegamos a um ponto crucial: a vida. De um lado, percebemos Nietzsche atacar o cristianismo, por consider-lo opressor da vida; de outro, reconstituindo a prxis do cristianismo, como experincia que brota de uma prtica, de uma vivncia, podemos constatar o critrio da valorizao da vida como a sua meta mais elevada. Essa experincia fundada numa prtica de vida foi tida na mais alta estima por aquele cujo nome

    16 No h nenhum erro mais perigoso do que confundir a consequncia com a causa: eu a denomino a prpria perverso da razo. Apesar disso este erro pertence aos hbitos mais antigos e mais recentes da humanidade. Ele mesmo santificado entre ns e porta o nome da religio, da moral. Todas as proposies que a religio e a moral formulam encerram-no. Sacerdotes e legisladores morais so os autores dessa perverso da razo (CI, Os quatro grandes erros, 1, p. 41 / KSA VI, p. 88).17 O prprio Nietzsche no chega a considerar o cristianismo, em sua essncia, racionalista. Mas consequncia de uma doena da vontade.

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    inspirou o cristianismo: Jesus de Nazar que Nietzsche reconhece e valoriza. O fato de Nietzsche reconhecer e valorizar essa prtica, essa experincia que, no fundo, representa a ao, contrria estagnao e inrcia, nas quais a cultura ocidental tem mergulhado, segundo as constataes do autor, mostra que ele estabelece as bases de uma nova cultura, a partir de uma concepo organicista de mundo: a cultura aristocrtica.

    Por essa razo, o filsofo coloca sob suspeita tudo aquilo que ultrapassa o campo do sensvel, como o caso da ideia de Deus. Percebe Nietzsche, ento, que so essas realidades, transcendentes ao mundo da vida, as responsveis pelo enfraquecimento da cultura. Tais manifestaes, como um entrave para o advento de uma cultura aristocrtica, apresentam-se sob a forma da moral. A moral, como um imperativo que tende uniformizao, ao rebanho, para falar nas palavras de Nietzsche, acaba descaracterizando, diminuindo e estagnando a cultura nas suas mais diferentes manifestaes. Por isso, o homem, como fundamento subjetivo da cultura, acaba reduzido condio de sujeito: fraco, inerte e doente. Diante dessa situao, o filsofo prope o desmantelamento deste entrave: a moral, que se expressa atravs de normas doutrinrias fixas e niveladoras, a fim de se abrir espao para a livre manifestao da fora, da ao e do vigor, como um grande movimento de afirmao. Este movimento nietzschiano afirmativo, como caminho de elevao da cultura, recebe o nome de vontade de potncia.

    1.2 A RUPTURA NIETZSCHIANA COMO VONTADE DE POTNCIA

    1.2.1 A VONTADE DE POTNCIA COMO MANIFESTAO DA TENSO ENTRE O APOLNEO E O DIONISACO

    Aquelas duas disposies artsticas fundamentais, manifestas na beleza da forma e na individuao apolnea18 e a embriaguez e o dilaceramento dionisaco19 constituem ambas pulses csmicas recobertas de vontade de potncia.20

    18 Apolo, o deus da individuao e dos limites da justia (NT, III, 9, p. 69 / KSA I, p. 71).19 [...] essncia do dionisaco, que trazido a ns, o mais de perto possvel, pela analogia da embriaguez (NT, III, 1, p. 30 / KSA I, p. 28).20 [...] entre a arte do figurador plstico [Bildner], a apolnea, e a arte no figurada [unbildlichen] da msica, a de Dionsio: ambos os impulsos, to diversos, caminham lado a lado, na maioria das vezes em discrdia aberta e incitando-se mutuamente a produes sempre novas, para perpetuar nelas a luta daquela contraposio sobre a qual a palavra comum arte lanava apenas aparentemente a ponte [...] (NT, III, 1, p. 27 / KSA I, p. 25).

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    Com seu carter dinmico, um querer vir-a-ser sempre mais forte, a vontade de potncia no possui uma meta ou fim a alcanar, mas continuamente depara-se com um obstculo a ser superado, como o caso de Apolo que ordena e regra a embriaguez dionisaca, e Dionsio que quebra o modelo ordenado apolneo: O xtase do estado dionisaco, com sua aniquilao das usuais barreiras e limites da existncia [...] (NT, III, 7, p. 55 / KSA, - I, p. 56). E, a cada obstculo superado, produzem-se novos obstculos e consequentemente desencadeada mais potncia, numa abertura ilimitada para o criar.

    Como o conceito de vontade de potncia est intimamente relacionado ideia de devir,21 por consequncia, inconcebvel toda e qualquer permanncia. Esta concepo de devir inaugurou em Nietzsche uma nova postura em relao verdade, que, de sua dogmatizao esttica, passa para uma hermenutica dinmica, como escreve Marton a respeito: Seria uma espcie de filologia sempre em suspenso, uma filologia sem termo, que se desenrolaria sempre mais, uma filologia que nunca estaria fixada de forma absoluta (MARTON . In: RIBEIRO, 1985, p.37).22

    Nietzsche concebe a vontade de potncia como a mais pura manifestao de vida: Onde encontrei vida, encontrei vontade de poder23 (AFZ, II, Do superar a si mesmo, p. 145 / KSA IV, p. 147). A vida baseada na ideia de conflito no interior do homem. No que diz respeito pluralidade de seres vivos microscpicos que o constitui, a vida se manifesta como uma luta permanente, fazendo desaparecer clulas antigas e produzindo novas. A vida s pode efetivar-se custa de outras vidas; o viver s possvel mediante o morrer: Sempre destri, aquele que dever ser um criador (AFZ, I, De mil e um fitos, p. 86 / KSA IV, p. 75).24

    Pelo exposto, podemos constatar o quanto Nietzsche foi motivado pela evoluo da moderna cincia, afastando do fenmeno da vontade de potncia a relao causa e efeito, de modo que a ao possui o querer como causa, j que ambos, querer e agir, ocorrem simultaneamente. A nica relao de causalidade presente a da vontade sobre a vontade. Giacia (2002, p. 36) lembra-nos de que, [...] se a vontade causa, ela no pode produzir efeitos seno sobre algo que lhe seja comum e recproco, isto sobre vontade precisamente nesse 21 A afirmao do fluir e do destruir, o decisivo numa filosofia dionisaca, o dizer Sim oposio e guerra, o vir a ser, com radical rejeio at mesmo da noo de Ser (EH, O nascimento da tragdia, 3, p. 64 / KSA VI, p. 313).22 Conf. Bibliografia.23 Uma traduo mais correta para Wille zur Macht Vontade de Potncia.24 Nietzsche, a respeito dos autnticos filsofos, como comandantes e legisladores comenta: Seu conhecer criar, seu criar legislar, sua vontade de verdade vontade de poder (ABM, VI Ns, eruditos, 211, p. 118 / KSA V, p. 145).

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    dinamismo constante dos processos orgnicos em que um estmulo prevalece sobre os outros que a vontade continuamente aumenta ou perde a sua potncia, depreendendo-se da uma vontade forte ou uma vontade fraca.

    Dessa luta permanente de foras denominada vontade de potncia emerge a vida. Assim sendo, a vida no pode existir para alm dos fenmenos, permanecendo dentro dos limites dos instintos, nem mesmo tem um carter teleolgico. Essa , pois, a tese de Nietzsche conforme podemos constatar: [...] Supondo, finalmente, que se conseguisse explicar toda a nossa vida instintiva como a elaborao e ramificao de uma forma bsica da vontade vontade de poder, como minha tese (ABM, II O esprito livre, 36, p. 43 / KSA V, p. 55). Essa concluso parece indicar uma das grandes dificuldades na conciliao entre a filosofia nietzschiana e o cristianismo. Mas avancemos na reflexo a fim de penetrarmos mais no problema.

    1.2.2 VONTADE DE POTNCIA X SUJEITO X DEUS

    Embora Nietzsche a princpio tenha recebido influncia da teoria darwiniana da evoluo e da seleo natural das espcies, dela afastou-se pelo carter causal, por Darwin atribudo autoconservao,25 impelindo luta: [...] o darwinismo, como a doutrina incompreensivelmente unilateral da luta pela existncia (GC, V Ns, os impvidos, 349, p. 243 / KSA III, p. 585). Para Nietzsche, pelo contrrio, nessa luta de foras no pode haver trgua, nem termo. No h luta pela aniquilao do adversrio, mas sempre pela dominao: A luta pela existncia apenas uma exceo, uma temporria restrio de vida; a luta grande e pequena gira sempre em torno da preponderncia, de crescimento e expanso de poder, conforme a vontade de poder, que justamente vontade de vida (GC, V Ns, os impvidos, 349, p. 244 / KSA III, p. 585-6). Caso contrrio, aniquilando-se o inimigo, cessaria a luta e o seu carter dinmico, atingir-se-ia um optimum, frente ao qual a vontade de potncia da em diante perderia a sua razo de ser, que ser dinmica.26 falta de dinamicidade que Nietzsche atribui a fraqueza na qual tem mergulhado a cultura, pois, com a fixidez e a estagnao, cessa

    25 Querer preservar a si mesmo expresso de um estado indigente, de uma limitao do verdadeiro instinto fundamental da vida (GC, V, Ns, os impvidos, 349, p. 243 / KSA III, p. 585).26 A dinamicidade da vontade de potncia pode-se constatar a partir dessa caracterizao provisria, realizada por Mller-Lauter: Vontade de poder no um caso especial do querer. Uma vontade em si ou como tal uma pura abstrao: ela no existe factualmente. Todo querer , segundo Nietzsche, querer algo. Esse algo-posto, essencial em todo querer : poder. Vontade de poder procura dominar e alargar incessantemente seu mbito de poder. Alargamento de poder se perfaz em processos de dominao (MLLER-LAUTER, Wolfgang. A Doutrina da Vontade de Poder em Nietzsche. Trad. Oswaldo Giacia. So Paulo: Annablume, 1997. p. 54).

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    a manifestao da fora e inicia a sujeio e a coero, prprias, na viso do filsofo, de todos os dogmas morais, que possuem uma expresso privilegiada dentro da cultura crist. Giacia (2002) lembra-nos, a esse respeito, de que a moral tem como carter essencial a coero e a obrigao da obedincia. O que assegura vontade de potncia o seu carter dinmico a pluralidade, como possvel constatarmos nestas palavras de Nietzsche:

    [...] digamos que em todo o querer existe, primeiro, uma pluralidade de sensaes, a saber, a sensao de estado que se deixa, a sensao do estado para o qual se vai, a sensao desse deixar e ir mesmo, e ainda uma sensao muscular concomitante, que, mesmo sem movimentarmos braos e pernas, entra em jogo por uma espcie de hbito, to logo queremos (ABM, I Dos preconceitos dos filsofos, 19, p. 24 / KSA V, p. 32).

    Segue-se, a partir disso, a existncia de nosso corpo como um edifcio constitudo por mltiplas almas, bem como por uma multiplicidade de vontades de potncia. Ambos os caracteres, o dinmico e o plural, eliminam a hiptese do carter uno e atmico27, como o caso do Deus nico transcendente do cristianismo, bem como do sujeito. A partir dessa crtica, Nietzsche estabelece duas concepes distintas de vontade: psicolgica e metafsica.

    A teoria psicolgica, por compreender a ao como consequncia da vontade, postula um sujeito responsvel pela ao. Contra esta teoria Nietzsche desconstri o sujeito, pois, se ao tudo o que existe no pode haver um sujeito como fundamento ontolgico da ao: [...] no existe nenhum ser sob o fazer, o efetivar-se, o ver-se; o autor simplesmente acrescentado ao a ao tudo (GM, I, 13, p. 36 / KSA V, p. 279).

    Quanto segunda teoria, a teoria metafsica, Nietzsche na Gaia Cincia (1882) se utiliza do terceiro estgio de desenvolvimento de Augusto Comte (1789-1857), o estgio cientfico ou positivo, para refut-la. Assim, como este estgio refuta o seu anterior, que o prprio estgio metafsico, este respectivamente refuta o seu anterior, o estgio teolgico. Para Nietzsche, assim como a ao no pode ter um sujeito como causa, a mesma fora no pode ter uma causa metafsica, transcendente, final.

    27 [...] atomismo da alma. Permita-se designar com esse termo a crena que v a alma como algo indestrutvel, eterno, indivisvel, como uma mnada, um atomon: essa crena deve ser eliminada da cincia. [...] Est aberto o caminho para novas verses e refinamentos da hiptese da alma: e conceitos como alma mortal, alma como pluralidade do sujeito e alma como estrutura social dos impulsos e afetos (ABM, I Dos preconceitos dos filsofos, 12, p. 19 / KSA V, p. 27).

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    O mundo designado por seu carter inteligvel vontade de potncia, e este no possui uma finalidade nem se encontra submetido a um poder transcendente, como o caso do Deus cristo.28 Veremos, porm, mais adiante que este positivismo cientfico, cujo legado em grande parte devido Comte, ser criticado por Nietzsche por pretender firmar-se, em ltima anlise, como uma nova religio, pois, na viso de Nietzsche, foi esta mesma cincia moderna a primeira responsvel pela morte de Deus, fato do qual deriva toda a secularizao e ausncia de valores divinos na cultura. Assim, com a ideia de que Deus est morto, Nietzsche quer, no fundo, apontar as consequncias da modernidade.

    1.3 A RUPTURA DE NIETZSCHE COM A TRADIO DA MORAL CRIST

    1.3.1. PSICOLOGIA X VALORES MORAIS

    Nietzsche tomou de Christian Wolff (1679-1754) a sua noo de psicologia como disciplina especfica, porm distanciou-se dele por ter encarado a psicologia como resultado dos princpios gerais colocados pela metafsica. Assim, operando um corte com a metafsica, inscreve os valores morais num tempo e num espao, deixando de os remeter essncia: Toda a psicologia at o momento tem estado presa a preconceitos e temores morais: no ousou descer s profundezas. Compreend-la como morfologia e teoria da evoluo da vontade de poder, tal como fao (ABM, I Dos preconceitos dos filsofos, 23, p. 29 / KSA VI, p. 38).

    Pode-se constatar a que este corte operado com relao metafsica teve grande influncia do esprito positivista da poca, resultando assim em tornar a psicologia uma cincia, bem como em tornar cadente a questo da morte de Deus. A respeito desse triunfo da cincia sobre a crena no Deus cristo, Nietzsche escreve:

    V-se o que triunfou realmente sobre o deus cristo; a prpria moralidade crist, o conceito de veracidade entendido de modo sempre mais rigoroso, a sutileza confessional da conscincia crist, traduzida e sublimada em conscincia cientfica, em asseio intelectual a

    28 Ao contrrio do cristianismo a vontade de potncia no esttica, mas sempre aberta para mais potncia. O cristianismo designado por Nietzsche de vontade de final, a vontade niilista, conf.: (AC, 9, p. 34 / KSA VI, p. 176).

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    qualquer preo (GC, V, Ns, os impvidos 357, p. 256 / KSA III, p. 600).

    A psicologia, agora tornada cincia,29 trata o homem tal qual ele , abandonando aquela antiga preocupao pautada sobre a sua natureza humana universal ou sobre a interveno da misericrdia de Deus. A conduta humana passa a ser verificada sem a influncia de princpios transcendentes, metafsica ou teologia, como o prprio Nietzsche d de si testemunho: Deus, imortalidade da alma, salvao, alm, puras noes, s quais no dediquei ateno nenhuma, tempo algum, mesmo quando criana talvez no fosse infantil bastante para isso (EH, Por que sou to inteligente, 1, p. 35 / KSA VI, p. 278). Nesse momento, j fica mais claro que esse corte com a metafsica, anunciador do porvir da cincia, da Gaia cincia, levou Nietzsche a proclamar a morte de Deus. Desse modo, o Sujeito moral, antes intimamente associado ao Deus cristo numa posio de submisso, estaria agora preso aos grilhes desta nova e emergente religio, a cincia.

    1.3.2. VALORES MORAIS X GENEALOGIA

    A genealogia, cincia voltada origem dos valores morais, tem como tarefa realizar uma crtica dos valores morais. Essa tarefa tem como ponto de partida colocar em questo o valor desses valores, o que supe saber sob quais circunstncias e condies surgiram, se desenvolveram e se modificaram: [...] necessitamos de uma crtica dos valores morais, o prprio valor desses valores dever ser colocado em questo para isto necessrio um conhecimento das condies e circunstncias nas quais nasceram, sob as quais se desenvolveram e se modificaram (GM, Prlogo, 6, p. 12 / KSA V, p. 253). E nessas avaliaes das avaliaes cabe impor-se uma avaliao que no pode ser avaliada, que no outra seno a vida, uma vez que, de acordo com Marton: Se falamos de valores, falamos sob a inspirao, sob a tica da vida; a vida mesma valora atravs de ns, quando institumos valores (MARTON. In: RIBEIRO, 1985, p. 45).

    29 O objetivo ltimo da cincia proporcionar ao homem o mximo de prazer e o mnimo de desprazer possveis? [...] Com a cincia pode-se realmente promover tanto um como o outro objetivo! Talvez ela seja agora a mais conhecida por seu poder de tirar do homem suas alegrias e torn-lo mais frio, mais estatuesco, mais estoico. Mas ela poderia se revelar ainda como a grande causadora de dor! E ento talvez se revelasse igualmente o seu poder contrrio, sua tremenda capacidade para fazer brilhar novas galxias de alegria! (GC, I, 12, p. 63 / KSA III, p. 383-4).

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    Isso leva ainda a uma outra questo: [...] sob que condies o homem inventou para si os juzos de valor bom e mau? e que valor tm eles? (GM, Prlogo, 3, p. 9 / KSA V, p. 249-50). Se esses valores nunca foram colocados em questo porque repousam num mundo transcendente. Assim, o primeiro passo consiste em avaliar os valores at atingir a sua origem e em seguida identificar os valores a partir dos quais se avaliam. Nietzsche considera este procedimento de avaliar valores, a genealogia, por excelncia, indito na filosofia.

    Pela genealogia nietzschiana tem como meta a anlise da provenincia dos valores, a fim de identificar marcas diferenciais, apontando desvios, acidentes de percurso, e diferenas a respeito do que se imagina sobre si mesmo. Esta indagao a respeito de provenincias, no visa busca de uma compreenso dos fins aos quais se destina determinado rgo ou costume, mas qual o estado de foras em que aparecem tais rgos e costumes, como o caso dos conceitos bom e mau, que no possuem uma existncia em si mesmos, mas traduzem marcas histricas de um longo percurso. Longe de ser um estgio final de um processo, a tenso revela estados de foras, os quais, ao irromperem, lutam uns contra os outros, resultando em dominantes e dominados. Dessa relao entre dominantes e dominados, longe da instaurao da paz, h, sem cessar, o jogo da dominao e uma inverso na relao de foras. Atravs dos sistemas de regras, as foras impem-lhes uma nova direo, como possvel verificar na tese nietzschiana da transvalorao dos valores.

    Assim, esses sistemas de regras, distante de possurem uma significao essencial, servem para beneficiar uma vontade nova, submetidos s foras que lhes imprimem a cada modalidade de dominao um sentido novo. Como a fora um efetivar-se, ela no pode ser concebida como desencadeada a partir de algo que a impulsiona. No existe nenhum ser sob o fazer; a ao tudo. Por esta razo possvel compreendermos as crticas de Nietzsche s noes de eu e de sujeito, ambas vinculadas estritamente a uma interpretao crist do existir que o filsofo caracteriza como fraca e impotente. medida que formos progredindo em nossa pesquisa, veremos que as crticas de Nietzsche, longe de serem direcionadas moral como um todo, esto voltadas moral que inspiradora da fraqueza, da impotncia e da resignao (a moral dos fracos). Ao contrrio, quando a moral est a servio da fora, da elevao e da afirmao da vida e da cultura, esta se torna, alm de positiva, necessria (a moral dos fortes).

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    Os juzos de valor bom e mau30 derivam respectivamente de duas morais: a moral do senhor e a moral do escravo. Na moral do escravo, tudo aquilo que bom para o senhor est associado ao ressentimento, fraqueza, ao cansao; atributos estes que, para o senhor, representam que mau. Na moral do senhor, o bom est associado fora, ao domnio, afirmao; o que para o escravo representa o mau. O problema reside no fato de que s o senhor, ao contrrio do escravo, criador de valores; tanto que esse confere valores primeiramente aos homens e s mais tarde os atribui aos atos. O escravo, ao contrrio, parte de uma avaliao das aes e, em decorrncia desta, julga os homens. Chegamos, ento, ao ponto em que tem origem o processo de moralizao. Este processo decorrente da ruptura entre o homem e o ato, prprio da moral do escravo uma moral de ressentimento, de fracos. Esta moral, no entender de Nietzsche, caracteriza o cristianismo, julgando o homem com base nos seus feitos e no a partir daquilo que ele . O homem passa a ser, assim, efeito de seus atos. Podemos, dessa forma, inferir a prpria noo de sujeito moral, aquele substrato resultante da atividade do homem.

    Leon Kossovitch nos apresenta em Nietzsche uma multiplicidade de tipos e de figuras, para que haja a possibilidade de uma seleo, restando aos demais o desaparecimento. Assim: Selecionar eliminar uma das duas sries em que esto dispostos os tipos e as figuras (KOSSOVITCH , 1979, p. 38). pela capacidade de um tipo dotado de fora intensificada, em que se interpreta e produz a partir de si que Nietzsche caracteriza o senhor, o que selecionado, que permanece. Diferentemente, o escravo, incapaz de criar, tem a necessidade de que um Outro o faa por ele, assim este acaba por desaparecer.

    Dando continuidade a sua anlise, Kossovitch diz que o senhor tem como critrio para o seu criar a interioridade ativa, a sua prpria intensidade, o seu centrar-se em si, ao passo que, ao escravo, importa no a interioridade, mas a exterioridade, pois ele depende sempre de um Outro, como critrio para a interpretao. A sua ao , nesse sentido, reativa.31 Como o senhor

    30 GM, Primeira Dissertao, Bom e mau, bom e ruim, 1, p.17 / KSA V, p. 257. Scarlett Marton procura diferenciar bom e mau (gut und bse) de bom e ruim (gut und schlecht) dizendo que: O escravo, o ressentido, o fraco, concebe primeiro a ideia de mau, com que designa os nobres, os corajosos, os mais fortes do que ele e ento, a partir dessa ideia, chega, como anttese, concepo de bom, que se atribui a si mesmo. O forte, por sua vez, concebe espontaneamente o princpio bom a partir de si mesmo e s depois cria a ideia de ruim como uma plida imagem-contraste. Do ponto de vista do forte, ruim apenas uma criao secundria, enquanto para o fraco mau a criao primeira, o ato fundador de sua moral (MARTON, 1993, p.53).31 O Outro a quem atribui essa qualidade inessencial, importando a afirmao contida no primeiro movimento da interpretao. O Outro , aqui, mera interpretao deste movimento inicial. Mas, no escravo, a operao principia pela exterioridade, na forma da negao do Outro. apenas no segundo movimento que ele se volta para si mesmo afirmativamente (KOSSOVITCH, 1979, p. 40).

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    no dominado pelo outro, a resistncia que lhe ope o escravo consiste na assimilao do Outro e assim num acrscimo de potncia. E este acrscimo de potncia faz com que o senhor se abra para o exterior. No caso do escravo, como fora dominada, essa sua tendncia expanso acaba retornando sobre si mesmo. Isto representa uma represso, interiorizao das pulses (KOSSOVITCH , 1979, p. 41).

    As pulses, dentro da viso nietzschiana, so divididas em duas categorias. Uma primeira categoria representada pelas pulses anrquicas, ligadas intimamente natureza. E uma segunda categoria formada pelas pulses reativas, ligadas ao estado gregrio. Desta diviso compreende-se que a primeira categoria prpria do senhor, ao passo que a segunda, do escravo. O escravo nega e inverte a interpretao primeira, correspondente a inverso daqueles movimentos de interioridade para o de exterioridade. Com isso, ele, o escravo, acaba sendo movido por uma nica interpretao possvel que a vingana. Segundo a leitura de Kossovitch (1979, p. 45), O Deus nico da tradio judaico-crist, o rebento desta rvore da vingana.32 nesta viso de ressentimento e de fraqueza que se cristaliza a figura do sacerdote, que rompe aquela unidade entre Deus e natureza. Segundo Kossovitch (1979, p. 45), Nietzsche contrape aquele Deus da tradio judaico-crist ao Deus aristocrtico, representado pelo Deus da Igreja Catlica da renascena. Para Nietzsche, esse Deus aristocrtico a mxima expresso aristocrtica, que sinnimo do poder e da fora e que acabou enfraquecido a partir do protestantismo. Esse tema do protestantismo ainda retomaremos mais adiante.

    Assim, o advento do sentimento de culpa est ligado ao domnio de um outro separado, que alcana no Deus cristo, segundo Nietzsche, a sua mxima expresso. Aquela inocncia olmpica,33 prpria da paisagem dos gregos antigos, em que os homens e os deuses viviam juntos, substituda pela culpa. Neste sentido, o socratismo e o cristianismo constituem marcos referenciais da destruio da cultura aristocrtica. Ambos, como veneno enfraquecedor, dissolvem toda a hierarquia existente, tornando tudo mero, baixo e comum. Kossovitch (1979, p. 48-50), em uma passagem bastante esclarecedora a esse respeito, diz que:

    O poder do socratismo e do cristianismo est centrado num mesmo modo de produo: opor no s um mundo ideal interpretao unitria dos senhores, mas, alm disso,

    32 Cf.: GM, I, 8, p. 26 / KSA, V, p. 268.33 O mesmo impulso, que se materializou em Apolo, engendrou todo o mundo olmpico e, neste sentido, Apolo deve ser reputado por ns como um pai desse mundo (NT, 3, p. 35 KSA I, p. 34).

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    conferir, nessa oposio, um papel repressivo ao ideal. [...] Com o Deus cristo aparece a identidade na forma da natureza humana em oposio divina. A identidade de todos perante Deus opera no plano poltico: desaparece a diferena de classes. A assimetria senhor/escravo substituda pela identidade do homem gregrio. [...] A existncia gregria suprime as referncias verticais.

    Desse modo, ambas as noes, moral do escravo e sujeito moral, so responsveis por manter o homem na sua condio de fraqueza e de ressentimento, como tambm o faz o prprio cristianismo. Essas noes transformam fora e virtude em renncia, pacincia e resignao, ou seja, anulam a capacidade do homem de agir sobre este mundo, levando-o a pr a sua confiana num mundo que est para alm (transcendente). A respeito desta tendncia, prpria da prtica crist, Nietzsche escreve: O cristianismo, essa negao da vontade de viver tornada religio! (EH, O caso Wagner. Um problema para msicos, 2, p. 104 / KSA VI, p. 359). Tendo em vista o fato dos fracos, impossibilitados de reagir, poderem apenas ressentir,34 daria margem interpretao do reino de Deus como produto do dio dos fracos contra os fortes? Assim podemos fazer aluso seguinte passagem de Nietzsche: Esta inverso de olhar que estabelece valores este necessrio dirigir-se para fora, em vez de voltar-se para si algo prprio do ressentimento: a moral escrava sempre requer, para nascer, um mundo oposto e exterior, para poder agir em absoluto sua funo no fundo reao (GM, I Bom e mau, bom e ruim, 10, p. 29 / KSA V, p. 271). Retomaremos essa questo mais adiante, introduzindo a polmica entre catlicos e protestantes.35

    1.3.3 DA POLMICA ENTRE PSICOLOGIA E HISTRIA VIDA COMO VALOR SUPREMO

    Como j havamos mencionado no incio desta pesquisa, Nietzsche considera a histria uma poderosa arma tanto no sentido de identificar os problemas relativos conduta humana (psicologia) como em combater a metafsica. Para tanto, em sua segunda Considerao Extempornea (1873), 34 A rebelio escrava na moral comea quando o prprio ressentimento se torna criador e gera valores: o ressentimento dos seres aos quais negada a verdadeira reao, a dos altos, e que apenas por uma vingana imaginria obtm reparao. Enquanto toda a moral nobre nasce de um triunfante Sim a si mesma, j de incio a moral escrava diz No a um fora, um outro, um no eu e este No seu ato criador (GM, I, Bom e mau, bom e ruim, 10, p. 28 / KSA V, p. 270-1).35 Conf. GC, V, Ns, os impvidos, 350, p. 244 / KSA III, p. 586 e GM, III O que significam ideais ascticos, 22, p.134 / KSA V, p. 394-5).

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    Nietzsche estabelece a vida como critrio para cultivo da histria da qual ele fala no Ecce Homo (1888): [...] a vida enferma desse desumanizado engenho e maquinismo, [...] o moderno cultivo da cincia, barbariza [...] Neste ensaio, o sentido histrico de que tanto se orgulha este sculo foi pela primeira vez reconhecido como doena, como tpico sinal de declnio (EH, As extemporneas, 1, p. 67 / KSA VI, p. 316). Assim, ele distingue trs tipos de historiografia: a histria monumental, que mostra que os grandes feitos heroicos do passado repetem-se com exatido; a histria tradicionalista, que conserva como digno de respeito tudo o que aconteceu no passado, e a histria crtica, que revela a importncia de se libertar do passado, a fim de cessar o sofrimento, atacando aqueles juzos que se pretendem universal e perpetuamente vlidos.

    Ao optar pela histria crtica, Nietzsche reage contra essa grande falta de sensibilidade histrica nos filsofos, uma vez que, caso ela fosse verdadeiramente observada, muitos problemas morais j teriam sido resolvidos. Ao atacar os alemes a respeito de sua falta de sensibilidade histrica, Nietzsche escreve:

    Mas aqui nada me impedir de ser grosseiro e dizer aos alemes algumas duras verdades: seno, quem o faria? Falo de seu despudor in historicis [em questes histricas]. [...], os germanos representam a ordem moral universal na histria (EH, O caso Wagner. Um problema para msicos, 2, p. 103 / KSA VI, p. 358).

    Constatamos, ento, que a estreita ligao entre psicologia e histria, abre perspectiva para uma terceira: a genealogia, que visa traar um diagnstico de todos os valores culturais plasmados no decorrer da histria.

    Os diversos exemplos fornecidos pela histria viabilizaram a Nietzsche instituir estas duas maneiras de avaliar os valores morais, a dos nobres e a dos escravos. H ainda o elemento proporcionado pela filologia, de grande importncia para o exame dos valores morais, que Nietzsche pde se valer com facilidade, j que, antes de trilhar a carreira da filosofia, fora fillogo. Munido desse instrumental da filologia, Nietzsche constata que os valores morais tm passado por grandes transformaes nas diversas culturas, no que diz respeito aos seus conceitos. A questo referente origem dos valores morais tem sido a preocupao de Nietzsche (GM, Prlogo, 6, p.12 / KSA V, p. 252-3) ao instaurar o procedimento genealgico. Origem essa que tem como critrio e valor ltimo a vida.

  • Nietzsche: Sujeito moral e cultura crist

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    Ao contrrio do que prega o cristianismo, de acordo com Nietzsche (GM, Prlogo, 6, p.12 / KSA V, p. 252-3), a vida apropriao, dominao do que mais fraco, e no renncia de si mesmo. Por isso, a moral crist nada mais que uma moral de fracos (escravos) e a vida, expresso mais alta das pulses instintivas, uma forma de dominao, uma moral de senhores. Nesse sentido, a vida o maior valor por excelncia, pois, intimamente associada vontade de potncia, esta uma disposio interna para criar, como Nietzsche evoca nesta passagem: A vontade criadora. Todo o Foi assim um fragmento, um enigma e um horrendo acaso at que a vontade criadora diga a seu propsito: Mas assim eu quis! (AFZ, II Da redeno, p. 173 / KSA IV, p. 181). Tudo deve passar pelo crivo da vida, no sentido de no obstru-la, mas favorecer a sua plenitude, criando sempre novas configuraes que esto em permanente organizao e desintegrao. A esse respeito escreve Michel Henry (1985, p. 93):

    O pensamento de Nietzsche um pensamento da plenitude. A plenitude no um estado, o realizar-se do que no cessa de realizar-se e, desse modo, de ser aquilo que ser o que , o ser nietzscheano jamais o , portanto na tautologia, mas no devir de si, o qual o presente da vida, ou seja, esse eterno realizar-se em si.

    Mas desta relao entre a vontade de potncia e o ideal asctico permanece uma questo. Se Nietzsche valoriza a vida, com a sua fora, poder e afirmao, bem como tudo mais que dela decorre, ento seria um contrassenso ele negar os exerccios que decorrem do ideal asctico, pois estes tm um carter de nobre aceitao da tragicidade da vida; ento isto, por sua vez, conduz a um sofrimento que