STEIN - Heidegger - Texto Inedito

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Heidegger texto inedito

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  • O incontornvel como o inacessvel uma carta indita de Martin Heidegger

    Ernildo SteinDepartamento de Filosofia da PUC-RS

    Natureza Humana 1(2):231-250, 1999

    Resumo: Aps os eventos dos anos 30 e da Segunda Guerra Mun-dial, Heidegger procura recuperar seu lugar no espao pblico dodebate filosfico e revelar, cuidadosamente, em que consistiu seutrabalho nos anos de chumbo. O ensaio quer situar, nesse contexto,uma carta indita do filsofo ao Prof. Herman Zeltner, de Erlangen,na qual fala de uma resenha sobre seu primeiro livro publicado de-pois de 15 anos de silncio Holzwege. Nesta carta, Heidegger escre-ve sobre a relao das cincias com a filosofia diante da diferenaontolgica, da questo da tcnica e da viravolta, necessria tarefa dopensamento.Palavras-chave: desconstruo da cincia, diferena ontolgica, tc-nica, viravolta, pensamento ps-metafsico.

    Abstract: After the events in the 30s and the Second World War,Heidegger tries to recover his place in the public space of the philo-sophical debate and carefully reveal what his work consisted in duringthe lead years. The essay wants to place, within this context, an unpu-blished letter from the philosopher to Prof. Herman Zeltner, fromErlangen, in which he makes a summary of his first book publishedafter 15 years of silence Holzwege. In this letter, Heidegger writesabout the relation between science and philosophy in the light of theontological difference, and takes into accont the question concerningtechnique and the turn-around, as necessary tasks of thought.

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    Key-words: deconstruction of science, ontological difference,technique, kehre, post-metaphysical thinking.

    Lenha um antigo nome para floresta. Na floresta h caminhos queno mais das vezes, invadidos pela vegetao, terminam subitamenteno no-trilhado.Eles se chamam caminhos da floresta.Cada um segue um traado separado, mas na mesma floresta. Mui-tas vezes parece que um se assemelha ao outro. Contudo, apenasassim parece.Lenhadores e guardas da floresta conhecem os caminhos. Eles sa-bem o que quer dizer estar num caminho da floresta.Heidegger, Holzwege

    I

    Ainda que conste, na primeira edio de Holzwege, o ano de 1950,Heidegger escreve a Karl Jaspers, em 23 de novembro de 1949, DieHolzwege sind jetzt auch da (Os caminhos da floresta tambm j est aquiagora, Heidegger/Jaspers 1990, p. 189).

    Numa carta de 10 de dezembro de 1949, Heidegger conclui:O Holzwege lhe fao enviar, por esses dias, pela editora, por questo desegurana (Heidegger/Jaspers 1990, p. 193).

    No dia 14 de janeiro de 1950, Jaspers escreve a Heidegger:

    Agradeo-lhe pelo Holzwege. Li o que est escrito sobre Nietzsche, apoca das imagens do mundo, Rilke. Creio ver ao menos um poucomais claro o que poderia perguntar-lhe. Coincidncias surpreenden-tes em detalhes e na perplexidade, para mim mesmo perceptvel degrande distncia no todo do trabalho, me agitaram na leitura. Quan-do me irritava, dizia-me que duas coisas no devo esquecer: trata-seaqui de Holzwege e trata-se do preparar das preparaes. O senhor se

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    revela neste livro no seu antigo nvel. O livro me prendeu a atenomais que seus escritos anteriores. Qual , no entanto, sua intenopropriamente dita, isso eu no seria capaz de dizer. Iniciar uma crti-ca no seria hoje possvel, nesta breve carta. Permaneci na tensointerrogadora: se iria transformar-se numa possibilidade fantstico-enganadora de pensar-poetar, ou se aqui estava comeando uma cui-dadosa abertura da porta se acontecia uma sedutora liberao dothos ou antes da abertura de um caminho que no fim conduz justa-mente a tal realizao se aqui encontra expresso um atesmognstico ou o tatear em direo da divindade. (Heidegger/Jaspers1990, p. 195-6)

    No dia 9 de fevereiro de 1950, Hanna Arendt escreve deWiesbaden: Os Holzwege esto sobre a mesa de cabeceira [...] (Heidegger/Arendt 1998, p. 76). No dia 15 de setembro de 1950, Heidegger escreve sua amiga: Na revista Monat deve ter aparecido uma resenha poucoagradvel de Holzwege, atrs da qual se presume Jaspers. Mas no leio rese-nhas; por isso a coisa me indiferente (Heidegger/Arendt 1998, p. 117).

    No dia 6 de outubro de 1950, Heidegger escreve novamente aHanna Arendt para confessar: Ich gehe immer noch auf Holzwegen (Aindacontinuo andando em caminhos da floresta, Heidegger/Arendt 1998, p.118). Agora Heidegger no se referia, com o termo Holzwege, ao seulivro, mas a um estado ou uma situao pessoal que poderia ser interpre-tada de vrias maneiras: eu continuo a filosofar do meu modo; eu conti-nuo na minha filosofia sem sada; as condies de meu trabalho no ps-guerra, fora da universidade, continuam difceis. Heidegger havia sidodemitido, no fim dos anos 40, por uma Comisso da Universidade deFreiburg, que solicitara um parecer de Karl Jaspers. Este fora durssimoem sua carta, enviada Comisso, no dia 22 de dezembro de 1945. Seuparecer tornou-se decisivo para a aposentadoria forada de Heidegger.

    Holzwege Caminhos da floresta, Caminhos que no levam a lugaralgum, Sendas perdidas no apenas o ttulo do primeiro livro mais im-portante publicado depois de Ser e tempo e o texto mais representativo do

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    ps-guerra. o livro que apresenta trabalhos do segundo Heidegger aps1930, produzidos depois da viravolta (Kehre). A expresso Holzwege re-gistra tambm a perplexidade do filsofo com relao recepo de seupensamento, no mundo da filosofia, depois da viravolta, ou seja, a reaodos leitores a um livro seu publicado depois dos brutais acontecimentosda era do nazismo, e dos conflitos que passaram a cercar o filsofo, depoisdo ano de sua reitoria da Universidade de Freiburg, no perodo de maiode 1933 a abril de 1934.

    Quando o filsofo, em 1946, na Carta sobre o humanismo decla-ra: Aqui o todo se inverte (Hier kehrt sich das Ganze um), ele se refere aseu trabalho de 1930, viravolta, ao segundo Heidegger, obra de cujagrandeza s sabemos hoje pela edio pstuma. Com a frase Aqui o todose inverte Heidegger tambm confessava que o seu pensamento era umHolzweg, um caminho sem sada, o que exigia um ir a compreenso doser de Ser e tempo (e contexto), e um voltar, a histria do ser de Contribuiespara a filosofia (e contexto).

    por isso que o autor declara, em 1953, trs anos aps a publi-cao de Holzwege, numa nota prvia stima edio de Ser e tempo:

    A segunda metade no pode ser mais acrescentada depois de umquarto de sculo sem que a primeira receba nova forma de apre-sentao. Seu caminho permanece hoje ainda necessrio, caso a questodo ser deva continuar a mover nosso Dasein. (Heidegger 1953, p. V)

    II

    Depois do panorama histrico, brevemente traado, a partir dedocumentao que hoje temos disponvel, quero agora inserir a carta in-dita que Heidegger escreveu ao Doutor Hermann Zeltner no dia 2 deagosto de 1950. Podemos observar na correspondncia analisada qual apreocupao e o nvel de perplexidade do filsofo diante do futuro queestava sondando, com a publicao de uma obra que, ao mesmo tempo

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    em que trazia o estilo tpico do autor, apresentava elementos inovadoresrelativos ao modo de pensar do segundo Heidegger. Holzwege no repre-sentava apenas o ttulo, extremamente complexo e sugestivo de um livro,mas tambm se apresentava como confisso de quem se movimentava nafloresta ameaadora das filosofias do ps-guerra e anunciando uma mu-dana em seu modo de se auto-interpretar e oferecendo uma nova pers-pectiva de sua obra.

    Todtnauberg, 2 de agosto de 1950Caro Doutor Zeltner!No apenas me alegrei com seus ensaios, mas, sobretudo, pelo

    fato de novamente ouvir notcias suas.O que o Senhor escreve de longe o melhor que tenho lido com

    respeito a esse tema. Aqui efetivamente est algum que enfrentou asSendas perdidas, pensando junto. Desejaria do senhor uma crtica exausti-va do livro. Ser que o Senhor no poderia entregar para a impresso oensaio, publicado no auspicioso jornal da Universidade de Erlangen, maisampliado, no Merkur de Baden-Baden?

    O Senhor escreve, no fim, no ltimo pargrafo: Heidegger notem em vista essa possibilidade (do dilogo entre as cincias).

    O Senhor tem razo, na medida em que calo sobre isso. Mas, fazpoucas semanas, falei desse dilogo a jovens estudantes (mais priva-damente) como eu penso a Universidade.

    Justamente o dilogo a que o senhor se refere eu tinha a emvista. Mas, para esse dilogo, o pressuposto fundamental que as cinciasparticulares estejam dispostas a se interrogarem a si mesmas. Isso somen-te pode acontecer atravs do fato de elas, desde o seu prprio trabalho, apartir da coisa, se toparem com o que na coisa incontornvel: o fato deque, em toda parte, j no ente, pensado e dito o ser. Isso para as cinciasincontornvel, deve ser experimentado enquanto para elas, com seus meios,inacessvel e assim manifestando-se a pretenso do pensamento e do que digno de ser pensado. Guardar o incontornvel como o inacessvel, esta a

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    experincia da essencial limitao das cincias. Reconhecer o limite en-quanto limite, esta a autntica limitao. Nela se funda o primeiro sen-tido da especializao inevitvel. No pano de fundo dessas consideraes,est o pensamento de que a essncia da cincia moderna se fundamentana essncia da tcnica, est o fato de que a essncia da tcnica, entretanto, uma, a figura fundamental do ser que agora impera, no sentido da vonta-de da vontade. Existem sinais de que estamos, ainda que apenas vagaro-samente, avanando na direo de uma viravolta [Kehre] desse destino doser. Preparar para ela necessidade e tarefa do pensamento.

    No fundo, j em minha aula inaugural de 1929 procurei, emmeio s cincias, aplicar-lhes um impulso para o totalmente outro, paradentro do qual elas j sempre se estendem e que, visto desde o ente, ono-ente, dito extremadamente mas pensado autenticamente o nada en-quanto o ser. At hoje ainda no se compreendeu a inteno fundamentaldessa conferncia. Em lugar disso s se apanhou o fato de que na minhaproblematizao e no que na conferncia se diz sobre a angstia e taga-relou sobre o nada como um objeto que subsiste por si e o desfez naconversa. Do movimento e caminho do pensamento no se encontra nada.

    Como esto as coisas com seus estudos sobre Schelling? Seria tourgentemente necessrio que finalmente fossem tentadas sustentveis ebsicas interpretaes dos escritos fundamentais schellinguianos: no pararenov-lo ou para fazer dele uma nova corrente, mas para preparar odilogo pelo qual ainda se espera.

    Ainda um pedido prtico, caro Doutor! Nosso filho Hermann,que na guerra foi oficial e at o outono de 1947 esteve, em condiesmuito duras, como prisioneiro de guerra nas mos dos russos, trabalhacom o professor Ritter. Ele chega em Erlangen com intenes especiaispara fins de estudo. Ser-lhe-ia muito grato se o Senhor pudesse apoi-locom conselho e auxlio. Com cordiais saudaes e o desejo de em brevenovamente ouvir do Senhor,

    Seu M. Heidegger.

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    III

    Quais as informaes que nos so transmitidas por essa carta?No que se refere ao contexto histrico, pudemos observar as circunstnciasem que essa carta foi redigida. Interessam, no entanto, para essa anlise,as questes tericas que ela nos traz e que podem ser situadas nas preocu-paes do filsofo sobre a filosofia em geral, mas particularmente sobre arelao entre as cincias e a filosofia na concepo de Heidegger.

    Deixando de lado os aspectos de ordem psicolgica, biogrficae de estratgia de representao de sua filosofia depois da catstrofe donazismo, examinemos os elementos centrais de carter filosfico. Essespodem ser divididos em trs aspectos: o primeiro discute a relao dascincias com a filosofia. Nela se acentua o teorema fundador do pensa-mento de Heidegger a diferena ontolgica e nela o sentido que pos-sui na questo do conhecimento humano. O segundo aspecto diz respeitoao modo como Heidegger pensa, a partir de seu teorema fundamental, oproblema da essncia da cincia e da essncia da tcnica. Por fim, o tercei-ro aspecto se refere ao que Heidegger expusera na sua conferncia de 20anos antes, intitulada Que metafsica?, na qual examina o problemadas cincias na instituio universitria, a posio das cincias diante daquesto do ser, abordando essa questo ao falar do nada enquanto umoutro modo de colocar a questo do ser.

    Como diz na carta, dessas questes o filsofo fala para algum quelhe acompanhou os passos pelos Holzwege Os caminhos da floresta ou as Sendasperdidas, ou ainda Os caminhos que no levam a lugar algum e lhe resume umdos contedos fundamentais apresentados pelo livro com esse ttulo.

    A primeira questo de ordem psicolgica e biogrfica, que apa-rece no texto e que no iremos aprofundar mais, parece-nos bem compre-ensvel no contexto que analisamos na correspondncia entre Heidegger,Jaspers e Arendt. O filsofo estava feliz com o novo livro, mas, ao mesmotempo, ansioso e perplexo, esperando por reaes positivas dos crticos, j quesoubera do ceticismo de Jaspers e da resenha na revista Monat.

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    Holzwege era uma pequena prova das milhares de pginas pro-duzidas depois de Sein und Zeit ou, melhor, depois da viravolta, que apublicao pstuma nos est revelando, volume aps volume.

    Os textos que compem o livro so os seguintes:A origem da obra de arte verso final de uma conferncia

    repetida vrias vezes nos anos 30.A poca da imagem do mundo apresentada como confern-

    cia em 1938.O conceito de experincia de Hegel resultado de textos de

    um seminrio e de conferncias, realizados nos anos de 1942-1943.A palavra de Nietzsche Deus est morto constitui o resul-

    tado de cinco semestres de prelees sobre Nietzsche (1935-40) e foraapresentado em pequenas palestras.

    Para que poetas apresentado como conferncia em come-morao aos 20 anos da morte de R. M. Rilke, em 1946.

    O dito de Anaximandro parte de um tratado escrito em1946. (Heidegger 1952, p. 344ss).

    O pedido que o filsofo dirige a um desconhecido, Dr. HermannZeltner discriminado durante o nazismo e condenado a ganhar sua vidatrabalhando na Biblioteca Universitria de Erlangen, durante a guerra era que ele ampliasse sua anlise e publicasse sua resenha na revista Merkur.O pedido constitua uma das muitas estratgias de divulgao de suaobra e de retomada de seu lugar no cenrio do ps-guerra. Algo seme-lhante tinha sido todo o movimento de Jean Beaufret e os franceses emtorno da Carta sobre o humanismo (cf. Safranski 1997, pp. 392 410).

    IV

    A outra questo mais complexa e propriamente filosfica sus-citada a partir do comentrio de H. Zeltner sobre as cincias. Com isso,fora tocado o tema do ensaio A poca da imagem do mundo que, ao

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    tempo de sua apresentao como conferncia, dera o que falar em Freiburg,em 1938.

    O artigo procura mostrar como a metafsica marca uma poca epercorre todas as manifestaes. A metafsica da modernidade tem suaforma de aparecer na subjetividade, na representao e na objetificao.Isso se manifesta na cincia, na tcnica, na esttica, na cultura e nadesdeificao (atesmo, fuga dos deuses). Esses fenmenos da modernidademostram a mudana na filosofia desde a Idade Mdia. Agora, com odomnio da representao, predomina o mtodo, a pesquisa nas cinciasempricas, matemticas e humanas, e o empresamento na universidadeque leva especializao. O pesquisador se converte em tcnico e assimtorna-se eficaz. Ao lado disso, pode, ainda, durante um certo tempo e emalguns postos, conservar-se o romantismo dos eruditos e da universidade,que sempre se torna mais escasso e mais vazio (Heidegger 1952, p. 72).

    O mundo se torna imagem no mesmo processo em que o serhumano se torna subiectum. Heidegger descreve essa poca da modernidade,com o domnio da tcnica e a objetificao das cincias, como a sombraque no apenas falta de luz. Na verdade, porm, a sombra geraomanifesta e impenetrvel do brilho velado. Segundo esta concepo desombra, experimentamos o inesperado como aquilo que subtrado darepresentao e, contudo, se manifesta no ente e anuncia o ser velado(ibidem, p. 104). E em outra passagem, o filsofo conclui que, visto desdea metafsica, encobre-se o velado desdobramento do ser e o ser aparececomo o nada. O nada jamais nada e tampouco algo no sentido de umobjeto; o ser mesmo, a cuja verdade o ser humano ento entregue,quando se superou como sujeito e, isto quer dizer, quando no mais re-presenta o ente como objeto (ibidem, p. 104).

    O primeiro aspecto da segunda questo da carta indica o ncleoda sinttica problematizao que Heidegger apresenta: a saber, que ascincias devem topar-se no seu exerccio, com o incontornvel: no ente pensado e dito o ser. Essa a direo ltima em que aponta o artigo quecitamos acima: A poca da imagem do mundo.

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    Primeiro, portanto, temos o fato da diferena ontolgica comoincontornvel, na medida em que ela acontece no aberto entre que oDa-sein compreendido no sentido do mbito exttico do desvelamento edo velamento do ser (ibidem, p. 104). Toda a relao com os entes passapor esse incontornvel, mas ele inacessvel com os meios das cincias. So pensamento pode mostrar isso que deve ser pensado.

    Guardar o incontornvel como o inacessvel esta a primeira expe-rincia da essencial limitao das cincias. As cincias tm sua limitaopor no poder converter o incontornvel em objeto, isto , ele lhes perma-nece inacessvel. A impossibilidade de objetificarem seu limite leva as cin-cias especializao. A especializao que reconhece seu limite como re-sultado da sua essencial limitao ter que guardar o incontornvelcomo inacessvel aceita que sua vontade de objetivao j est semprefrustrada. A limitao, a impossibilidade de objetificar a diferenaontolgica abre as cincias para a filosofia, no dilogo com ela e no dilo-go entre elas.

    No texto A poca da imagem do mundo, Heidegger j descre-vera o fenmeno da particularizao das cincias na modernidade:

    Cada cincia, enquanto pesquisa est erigida sobre o projeto de umdelimitado mbito de objeto e, por isso, cincia particular. Cadacincia particular, no entanto, deve singularizar-se no desdobramentodo projeto atravs de seu procedimento, em determinados camposde investigao. Essa singularizao (especialista), no entanto, no de modo algum apenas um fenmeno que acompanha a crescenteimpossibilidade de abranger os resultados da pesquisa. Ela no ummal necessrio, mas a contingncia essencial necessria da cinciaenquanto pesquisa. (1952, p. 77)

    Heidegger diz que ela conseqncia do empresamento, quesomente assim pode ter sucesso nos institutos universitrios, na viso dosadministradores. Mas, na carta, o filsofo diz que a especializao, en-quanto limite, surge da limitao que a cincia sofre em ter que aceitar o

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    incontornvel como o inacessvel que a diferena ontolgica que j noente pensado e dito o ser. Aprender a guardar (proteger) essa diferena o que preserva a cincia da total objetivao, o que somente resulta dadestruio, desconstruo e superao da metafsica, que entificou o ser eassim encobriu a diferena, sobretudo na modernidade.

    Por isso, mostrar os limites da objetificao na especificaodas cincias significa, para Heidegger, superao da metafsica moder-na e isto significa, ao mesmo tempo, superao da metafsica ocidental.Superao, porm, significa aqui o questionar originrio da pergunta pelosentido, isto , pelo mbito do projeto e com isso, pela verdade do ser,questo que ao mesmo tempo, se desvela como a pergunta pelo ser daverdade (ibidem, p. 92). Guardar o incontornvel como o inacessvel, somentepode tornar-se a experincia da essencial limitao das cincias, atravsda superao da metafsica.

    V

    O segundo aspecto da questo mais filosfica da carta fala daessncia da tcnica:

    No pano de fundo dessas consideraes est o pensamento de que aessncia da cincia moderna se fundamenta na essncia da tcnica, ofato de que a essncia da tcnica, entretanto, uma, a figura funda-mental do ser que agora impera no sentido da vontade da vontade.

    Assim como a situao da cincia moderna era analisada no li-vro publicado na poca da carta, assim tambm a essncia da tcnica objeto de anlise da poca. Em 1949, Heidegger fez sua estria pblica,depois das peripcias de 15 anos de ostracismo, em Bremen, com umciclo de conferncias intitulado Lanar um olhar para dentro do que (Heidegger 1994, pp. 5-77). As quatro conferncias eram: A coisa (DasDing), O dispositivo (Das Ge-Stell), O perigo (Die Gefahr) e A vira-

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    volta (Die Kehre). O dispositivo seria a base para a conferncia queHeidegger iria pronunciar em Munique em 1953, ampliada e com o ttu-lo A pergunta pela tcnica.

    Todas essas iniciativas de Heidegger, a convite de amigos, fazi-am parte da estratgia de seu retorno vida intelectual no ps-guerra.Vinham como fundo comum de suas intervenes, comentrios em tornode questes do mundo, os descaminhos da cincia, o problema da tcnica,os mal-entendidos da filosofia e sobretudo a questo do futuro. Todas asquestes eram colocadas, de um lado, a partir da questo do ser, o esque-cimento do ser, a entificao do ser e o encobrimento da diferenaontolgica. Mas, do outro lado, em boa parte das manifestaes damodernidade, ainda que ameaadoras, Heidegger procurava manifestara esperana de que, vencida esta etapa de obscurecimento, chegaria umnovo tempo. Talvez a isso se deva acrescentar que Heidegger, ao diagnos-ticar o tempo da imagem do mundo, a era da tcnica e os perigos quenos ameaam, descobria a um princpio epocal determinante, provindo dametafsica e que, portanto, ainda que um modo de ocultamento do ser,fazia parte de sua manifestao. E, uma vez dado este diagnsticometafsico, para alm da metafsica, de superao da metafsica, o pensa-mento do ser ou da histria do ser traria a redeno.

    Quando Heidegger afirma na carta a essncia da cincia mo-derna se fundamenta na essncia da tcnica, ele exige um diagnstico daessncia da tcnica e j mostra em que direo ele vai, porque a essnciada tcnica uma, a figura fundamental do ser que agora impera no sen-tido da vontade de vontade, ele anuncia o ltimo princpio epocal, incor-porado em Nietzsche como o ltimo metafsico.

    A tcnica como a figura fundamental do ser, isto , a tcnicacomo o encobrimento do ser pelo modo como a tcnica manifesta a von-tade de vontade diante do mundo, das coisas e do homem. Heideggerpermanece fiel a seu estilo de ver o positivo, o anncio, o destino do ser,no encobrimento que trazido pela tcnica.

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    Assim como a presena na modernidade o subiectum enquantoconscincia, autoconscincia, ela, na tcnica, a presena do objeto para osujeito, objeto que no apenas espera a objetificao, mas que provoca oser humano como um fundo inesgotvel de reserva a ser disposto comoartefatos, mquinas, instrumentos.

    Assim, a figura na qual impera o ser na era da tcnica o dispositi-vo (Ge-Stell). Por isso Heidegger diz: O dispositivo a essncia da tcnica [...]A essncia da tcnica o dispositivo (1994, p. 40).

    por isso que Heidegger torna a carta para Zeltner um docu-mento do que j pensara nas suas obras de 1930 a 1945, e resumindoessas idias em novos textos e conferncias contemporneas a ela.

    As conferncias de Bremen resumem a modernidade com suacincia: a coisa no mais pensada em seu acontecer. O dispositivo o queconverte sempre em objeto a coisa. Esse o perigo como tal. nele que possvel a viravolta.

    Portanto, a essncia da cincia reside na essncia da tcnica, a essnciada tcnica reside na essncia do dispositivo, a essncia do dispositivo o perigoque se esconde no dispositivo, perigo e que assim no experimentamoscomo perigo e por isso no vivemos nossa indigncia, isto , o ser huma-no no ainda o mortal (ibidem, p. 56). Para ser mortal (e no apenasalgum que termina), deve acontecer a viravolta (Kehre): Quando o peri-go , enquanto o perigo, com a viravolta do esquecimento, acontece omostrar-se do ser, acontece mundo (ibidem, p. 73).

    Quando a tcnica, e por isso a cincia, converteu a coisa em ob-jeto e assim em dispositivo, a coisa deixou de acontecer como mundo, eento a tcnica se tornou nosso destino.

    Heidegger diz na carta a Zeltner: Existem sinais de que esta-mos, ainda vagarosamente, avanando na direo de uma viravolta [Kehre]desse destino do ser, que nos permitir enfrentar a essncia da tcnica.E ento admoesta: Preparar para a viravolta necessidade e tarefa dopensamento.

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    VI

    O terceiro aspecto filosoficamente relevante na carta consistena referncia que o filsofo faz conferncia Que metafsica?(Heidegger 1967, pp. 1-19). Nela ele criara o primeiro desconcerto nomeio universitrio, confrontando o exerccio das cincias com a diferenaontolgica. Vinte anos antes falara do nada como o ser.

    As cincias se ocupam com seus objetos e nada mais.Que nada esse?Novamente temos presente na carta o desejo de reviso, de ser

    bem compreendido, a estratgia constante para a recepo de sua obra.Mas mesmo a est a orgulhosa provocao: Do movimento e caminhodo pensamento no se encontra nada.

    Referncias bibliogrficas

    Heidegger, Martin 1952: Holzwege. Frankfurt a/M, Vittorio Klostermann.______ 1953: Sein und Zeit. Frankfurt a/M, Vittorio Klostermann.______ 1967: Wegmarken. Frankfurt a/M, Vittorio Klostermann.______ 1994: Bremer und Freiburger Vortrge. Frankfurt a/M, Vittorio

    Klostermann.Heidegger, Martin/Arendt, Hanna 1998: Briefe. Frankfurt a/M, Vittorio

    Klostermann.Heidegger, Martin/Jaspers, Karl 1990: Briefwechsel. Frankfurt a/M,

    Vittorio Klostermann.Safranski, Rdiger 1997: Ein Meister aus Deutschland. Heidegger und seine

    Zeit. Frankfurt a/M, Fischer.

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    Todtnauberg, 2. August 50Lieber Herr Doktor Zeltner!

    Ich habe mich nicht nur ber Ihre Aufstze, sondern berhauptdarber gefreut, wieder von Ihnen zu hren.

    Was Sie schreiben, ist das weitaus Beste, was ich zu diesemThema gelesen habe. Hier ist wirklich ein Mitdenkender auf denHolzwegen gegangen. Ich wnschte mir von Ihnen eine ausfhrlicheKritik des Buches. Knnten Sie den Aufsatz aus der brigens sehrerfreulichen Erlanger Universittszeitung erweitert nicht dem Merkur inBaden-Baden zum Abdruck geben?

    Sie schreiben am Schluss im letzten Absatz H[eidegger] hatdiese Mglichkeit (des Gesprchs zwischen den Wissenschaften) nicht imBlick.

    Sie haben recht, insofern ich darber schweige. Aber erst vorwenigen Wochen sprach ich zu jngeren Studenten (mehr privatim) davon,wie ich mir die Universitt denke.

    Genau das von Ihnen gemeinte Gesprch hatte ich dabei imAuge. Aber fr dieses Gesprch ist die Grundvoraussetzung, dass sichdie einzelnen Wissenschaften selbst erst zur Rede stellen. Dies kann nurso Geschehen, dass sie aus ihrer eigenen Arbeit aus der Sache auf dasdarin Unumggliche stossen; dass berall schon im Seienden das Seingedacht und gesagt ist. Dieses ihr Unumgngliches muss als das fr dieWissenschaften mit ihren Mitteln Unzugngliche erfahren u. so derAnspruch des Denkens u. des Denkwrdigen laut werden. Das Unum-gngliche als das Unzugngliche gewahren, das ist die Erfahrung derwesenhaften Beschrnkung der Wissenschaften. Die Schranke als dieSchranke anerkennen, das ist die echte Beschrnkung. Auf dieser grndetder erste Sinn der unausweichlichen Spezialisierung. In [Im] Hintergrunddieser berlegungen steht der Gedanke, dass das Wesen der modernenWissenschaft im Wesen der Technik grndet, dass das Wesen der Technikaber eine, die Grundgestalt, des jetzt waltenden Seins i. S. [im Sinne] des

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    Ernildo Stein

    Willens zum Willen ist. Es gibt Zeichen, dass wir, wenngleich erstlangsam, einer Kehre dieses Seinsgeschickes zugehen. Auf diesevorzubereiten, ist die Not u. die Aufgabe des Denkens.

    Im Grunde versuchte schon meine Antrittsrede von 1929inmitten der Wissenschaften diesen einen Stoss in das ganz Andere zuversetzen, in das sie stndig hineinragen u. das, vom Seienden her gesehen,das Nicht-Seiende, extrem gesagt aber echt gedacht das Nichts als dasSein ist. Bis heute hat man das Grundanliegen dieser Rede noch nichtbegriffen. Man hat statt dessen aufgegriffen, dass da u. was da ber dieAngst gesagt wird u. hat das Nichts wie einen fr sich bestehendenGegenstand beredet u. zerredet. Vom Gang u. Weg des Denkens findetman nichts.

    Wie steht es mit Ihren Schellingstudien? Es wre so dringendntig, dass endlich haltbare u. grndliche Auslegungen der SchellingschenHauptschriften versucht wrden; nicht um ihn zu erneuern u. eineRichtung daraus zu machen, sondern um das noch ausstehende Gesprchmit ihm vorzubereiten.

    Noch eine praktische Bitte, lieber Herr Doktor! Unser jungerSohn Hermann, der im Krieg Offizier u. bis Herbst 1947 unter schwerenVerhltnissen in russischer Kriegsgefangenschaft war, arbeitet bei Prof.Ritter. Er kommt mit besonderen Absichten zu Studienzwecken nachErlangen. Ich wre Ihnen sehr dankbar, wenn Sie ihm mit Rat u. Tatbeistehen mchten. Mit freundlichen Grssen und dem Wunsch, baldwieder von Ihnen zu hren

    Ihr M. Heidegger*

    * Transcrio do original manuscrito de Ernildo Stein.