29
16 Abrindo a Caixa de Skinner A CORRIDA DE RATOS DE B. F. SKINNER 1 B. F. Skinner, o principal neobehaviorista dos Estados Unidos, nasceu em 1904 e morreu em 1990. É conhecido no campo da psicologia por seus famosos experimentos com animais, nos quais demonstrou o poder das recompensas e reforços para moldar o comportamento. Usando comida, alavancas e outras sugestões ambientais, Skinner demons- trou que o que parecem ser respostas autônomas são, na verdade, res- postas sugeridas e, ao fazê-lo, ele colocou em dúvida a noção há tanto tempo valorizada de livre-arbítrio. Skinner gastou boa parte de sua carreira científica estudando e refinando o que ele veio a chamar de condicionamento operante, os meios pelos quais os seres humanos podem treinar seres humanos e outros animais a realizar toda uma série de tarefas e aptidões por meio de reforço positivo. Skinner defendeu que a mente, ou o que era então chamado men- talismo, era irrelevante, mesmo inexistente, e que a psicologia deve- ria se concentrar apenas nos comportamentos concretos mensuráveis. Sua visão era construir uma comunidade em todo o mundo na qual o governo consistiria em psicólogos behavioristas que condicionariam, ou treinariam, seus cidadãos para se transformarem em falanges de robôs benevolentes. De todos os psicólogos do século XX, é possível que seus experimentos e suas conclusões sobre a natureza mecanística dos homens e mulheres sejam os mais insultados e, ainda assim, continua- mente relevantes para a nossa era cada vez mais tecnológica.

SKINNER-Abrindo a Caixa de Skinner

Embed Size (px)

DESCRIPTION

skinner behaviorismo

Citation preview

Page 1: SKINNER-Abrindo a Caixa de Skinner

16

Abrindo a Caixa de Skinner

A C O R R I D A D E R AT O S D E B . F. S K I N N E R

1

B. F. Skinner, o principal neobehaviorista dos Estados Unidos, nasceuem 1904 e morreu em 1990. É conhecido no campo da psicologia porseus famosos experimentos com animais, nos quais demonstrou opoder das recompensas e reforços para moldar o comportamento. Usandocomida, alavancas e outras sugestões ambientais, Skinner demons-trou que o que parecem ser respostas autônomas são, na verdade, res-postas sugeridas e, ao fazê-lo, ele colocou em dúvida a noção hátanto tempo valorizada de livre-arbítrio. Skinner gastou boa partede sua carreira científica estudando e refinando o que ele veio achamar de condicionamento operante, os meios pelos quais os sereshumanos podem treinar seres humanos e outros animais a realizartoda uma série de tarefas e aptidões por meio de reforço positivo.

Skinner defendeu que a mente, ou o que era então chamado men-talismo, era irrelevante, mesmo inexistente, e que a psicologia deve-ria se concentrar apenas nos comportamentos concretos mensuráveis.Sua visão era construir uma comunidade em todo o mundo na qualo governo consistiria em psicólogos behavioristas que condicionariam,ou treinariam, seus cidadãos para se transformarem em falanges derobôs benevolentes. De todos os psicólogos do século XX, é possível queseus experimentos e suas conclusões sobre a natureza mecanística doshomens e mulheres sejam os mais insultados e, ainda assim, continua-mente relevantes para a nossa era cada vez mais tecnológica.

Walden II uma sociedade do futuro
Page 2: SKINNER-Abrindo a Caixa de Skinner

Portanto, talvez seja esta a história. Existe um homem chamadoSkinner [“peleteiro”, “esfolador”], um nome feio em qualquer re-lato, um nome com uma faca dentro dele, a imagem de um peixe es-folado caindo sobre um tabuleiro, seu coração mal visível em seumanto de músculos, cá-bum. Diga o nome “Skinner” a vinte pes-soas com grau universitário e a maioria reagirá com um adjetivosemelhante a “mau”. Sei que isso acontece, pois fiz a experiência.E, mesmo assim, em 1971, a Time Magazine o considerou opsicólogo vivo mais influente. E uma pesquisa de opinião de 1975o identificou como o cientista mais conhecido nos Estados Unidos.Ainda hoje, em todos os lugares, seus experimentos merecem amais alta estima.

Então, por que a infâmia? Eis por quê. Nos anos 1960, Skinnerdeu uma entrevista ao biógrafo Richard I. Evans, na qual admitiuabertamente que seus esforços em engenharia social tiveram impli-cações para o fascismo e poderiam ser usados para fins totalitários.Consta que B. F. Skinner desejava nada mais que moldar – e moldaré a palavra operante aqui – o comportamento das pessoas sujeitadasa engrenagens, caixas e botões, qualquer humanidade em que eletocasse se ossificando. Diz a lenda que ele construiu uma caixa debebê na qual manteve a filha Deborah por dois anos inteiros paratreiná-la, registrando o progresso dela num gráfico. Diz também alenda que, quando estava com 31 anos de idade, ela o processou porabuso em um autêntico tribunal de justiça, perdeu a ação judicial eatirou em si mesma numa pista de boliche em Billings, Montana.Nada disso é verdade e, ainda assim, os mitos persistem. Por quê?O que existe em Skinner que nos amedronta tanto?

Digite “B. F. Skinner” em sua ferramenta de busca na internet evocê obterá milhares de ocorrências, entre elas o website de umpai ultrajado que amaldiçoa o homem por assassinar uma criançainocente; um website com uma caveira e um texto de Ayn Rand“Skinner é tão obcecado com o ódio e a virtude do homem, com umódio tão intenso e absorvente, que consome a si mesmo e, no fim, oque temos são apenas cinzas e carvão malcheiroso”; um memorial a

Abrindo a Caixa de Skinner

17

Page 3: SKINNER-Abrindo a Caixa de Skinner

Deborah, que teria supostamente morrido nos anos 1980: “Deborah,nossos corações se abrem para você.” E, então, um pequeno linkem vermelho com os dizeres: “For Deborah Skinner herself, clickhere” [“Para acessar a página da própria Deborah Skinner, cliqueaqui”]. Cliquei. Rolando a página para baixo, aparece a foto de umamulher de meia-idade, de cabelos castanhos. A legenda dizia queaqui estava a própria Deborah Skinner, que seu suicídio era ummito e que ela estava viva e bem.

Lendas. Mitos. Histórias. Histórias exageradas. Qual o ver-dadeiro legado de Skinner? O desafio de entender o experimentode Skinner será, talvez, principalmente discriminativo, separandoconteúdo de controvérsia, uma peneiração total. Escreve o psicó-logo e historiador John A. Mills: “[Skinner] foi um mistério en-volto em uma charada envolta em um enigma.”

Decido ir a fundo, lentamente.

Ele nasceu em 1904. É a única certeza. Além disso, porém, o queencontro é um emaranhado de contradições. Foi um dos principaisbehavioristas dos Estados Unidos, um homem verdadeiramenteaustero, que dormia em um cubículo amarelo brilhante do Japãochamado beddoe, mas que, ao mesmo tempo, não conseguia tra-balhar a menos que sua mesa estivesse abarrotada, e que disse so-bre o seu próprio percurso: “É incrível o número de acidentestriviais que foram importantes... Não acredito que minha vidatenha sido planejada em qualquer ponto.” Mas, então, ele escreveumuitas vezes que se sentia um deus e “uma espécie de salvador dahumanidade”.

Quando era docente em Harvard, Skinner conheceu e se apaixo-nou por uma mulher chamada Yvonne, que mais tarde se tornariasua mulher. Vejo-os nas noites de sexta-feira, dirigindo até o lagodas Gaivotas, em Monhegan, com a capota preta do conversíveldobrada para trás e alguma espécie de jazz melancólico tocando norádio. Uma vez no lago, eles se despem e mergulham nus, as águas

M E N T E E C É R E B R O

18

Page 4: SKINNER-Abrindo a Caixa de Skinner

salobras em seus corpos, o ar frio da noite, a lua apenas um buracorecortado no céu. Leio num texto empoeirado no porão de umabiblioteca que, depois das sessões de treinamento, ele costumavalevar para fora os seus pombos engaiolados e segurá-los em suamão imensa, afagando suas cabeças felpudas com o polegar.

Fiquei surpresa quando soube que, antes de ir a Harvard estudarpsicologia em 1928, a aspiração de Skinner era ser um romancista, eque tinha passado os dezoito meses anteriores enfurnado no sótãoda casa de sua mãe escrevendo prosa lírica. Não ficou claro paramim como ele foi da prosa lírica para os índices cronometrados dereforço – como um homem pode dar uma guinada tão brusca. Eleescreve que, quando tinha cerca de 23 anos de idade, deparou-secom um artigo de H. G. Wells, na New York Times Magazine, noqual Wells afirmava que, se lhe fosse dada a chance entre salvar avida de Ivan Pavlov ou de George Bernard Shaw, Wells escolheriaPavlov, porque a ciência é mais redentora que a arte.

E, de fato, o mundo precisava de redenção. A Grande Guerra ti-nha acabado uma década antes. Soldados atingidos por bombassofriam de flashbacks e depressões; os asilos estavam lotados; haviauma necessidade urgente de algum tipo de esquema terapêutico.Quando Skinner foi a Harvard, em 1928, como estudante de gradua-ção, o esquema era basicamente psicanalítico. Todo mundo em todosos lugares estava deitado em divãs de couro e pescando iguariasefêmeras de seus passados. Freud dominava, juntamente com ovenerável William James, que escrevera As variedades da experiên-cia religiosa, um texto sobre os estados introspectivos da alma, semnenhuma equação nele. Esse, de fato, era o estado da psicologiaquando Skinner chegou; era um campo sem números, que tinhamais em comum com a filosofia que com a fisiologia. Uma pergun-ta introdutória típica no campo poderia ser: “O que está dentro denós que vê, sente e pensa a todo momento quando estamos desper-tos, desaparece temporariamente quando dormimos e desaparecepermanente ou instantaneamente quando morremos?”

Introspecção. Mentalismo. Eram esses os princípios nos quaisSkinner interveio, aquele jovem magro com um rígido elmo de

Abrindo a Caixa de Skinner

19

Page 5: SKINNER-Abrindo a Caixa de Skinner

cabelos puxados para cima em um penteado à Pompadour. Os olhoseram de um azul intenso, como lascas de porcelana. Ele escreveuque queria influir, sentir coisas palpáveis nas mãos e no coração.Situado entre a Primeira Guerra Mundial e uma futura logo por vir,Skinner pode ter intuído – embora rejeitasse uma palavra tão frágil– a necessidade de ação, de intervenções e resultados que pudessem,cada um, ser endurecidos, como balas.

Ele evitava, portanto, qualquer coisa “mole”. Começou no cur-so de fisiologia de Hudson Hoagland, estudando reflexos de rã.Dava uma picada na pele retesada da coxa de uma rã e media omovimento espasmódico do animal e, depois, seu salto. As mãoscheiravam a pântano e ele estava cheio de energia.

Certo dia, no início da sua carreira em Harvard, Skinner se de-parou com a Oficina de Psicologia de Harvard, em Emerson Hall.Viu uma série de instrumentos, peças em estanho-vermelho, cinzéis,pregos e porcas em latas de cigarros Salisbury. Imagino que sentiuuma comichão nas mãos. Queria fazer algo grande e sempre forahabilidoso, empunhando tesouras e serras com precisão. Então lá,naquela oficina minúscula, Skinner começou a construir suas fa-mosas caixas, usando fios refugados, pregos enferrujados e brocasescurecidas que encontrava.

Será que ele sabia o que estava construindo e os efeitos imensosque isso teria sobre a psicologia norte-americana? Estaria ele perse-guindo uma visão pré-montada ou simplesmente seguindo o líricovai-e-vem de um poema de estanho e fio, de forma que, no fim, oque viu surpreendeu até mesmo a ele: uma caixa operada por arcomprimido, um mecanismo silencioso de liberação, todas as enge-nhocas e engrenagens, a caixa, um reles objeto que, como as escadas,os espelhos e os gatos pretos, imediatamente adquiriram uma espé-cie de brilho denso.

Sobre essa época, Skinner escreve: “Começo a ficar insupor-tavelmente animado. Tudo em que toquei sugeriu coisas novas epromissoras a fazer.”

Agora, tarde da noite em seus aposentos alugados, Skinner liaPavlov, com quem tem uma enorme dívida, e Watson, a quem deve

M E N T E E C É R E B R O

20

Page 6: SKINNER-Abrindo a Caixa de Skinner

menos, mas ainda uma dívida considerável. Pavlov, o grande cien-tista russo, tinha praticamente vivido no seu laboratório, tal era suadedicação. Passara anos estudando as glândulas salivares de seusadorados cães. Pavlov descobriu que a glândula salivar poderia sercondicionada a vazar ao som de uma campainha. Skinner gostoudessa idéia, mas queria ir além de uma pequena membrana mucosa,queria o organismo inteiro; onde estava a poesia na saliva?

Pavlov descobriu o que é conhecido como condicionamentoclássico. Isto simplesmente significa que uma pessoa pode pegarum reflexo animal preexistente, como piscar, assustar-se ou salivar,e condicioná-lo de tal maneira que ele ocorra em resposta a umnovo estímulo. Daí a famosa campainha – um estímulo –, que oscães de Pavlov aprenderam a associar ao alimento, salivando ao seusom. Bem, isso pode não parecer uma grande descoberta para mimou para você, mas naquela época foi algo gigantesco. Foi tão ar-rebatadora quanto a fissão do átomo ou a posição singular do sol.Nunca, em tempo algum de toda a história humana, as pessoas ti-nham entendido o quanto eram fisiológicas as nossas supostas asso-ciações mentais. Nunca antes as pessoas tinham entendido a pura esimples maleabilidade da imutável forma animal. Os cães de Pavlovsalivaram, e o mundo perdeu duas vezes o equilíbrio.

Skinner ficou maravilhado. Ele estava lá, em seus aposentos, etinha construído algumas de suas caixas ainda não-famosas, ou in-fames, ainda vazias – e sempre havia esquilos logo embaixo, nosjardins de Harvard. Ele observava os esquilos e se perguntava se se-ria possível, digamos, condicionar a coisa toda, e não simplesmenteuma simples e tola glândula. Em outras palavras, poderia uma pes-soa moldar um comportamento – aquilo que Skinner veio a chamarum operante – que não fosse um reflexo? Condicionada ou não, asalivação é, foi e sempre será um reflexo, uma ação inteiramenteformada que ocorre por conta própria, além de ser provocada poruma campainha. Entretanto, quando você pula no ar ou canta“Howdy Doodie” ou aperta uma alavanca na esperança de encon-trar comida, você não está agindo reflexamente. Está simplesmente

Abrindo a Caixa de Skinner

21

Page 7: SKINNER-Abrindo a Caixa de Skinner

M E N T E E C É R E B R O

22

se comportando. Está operando em seu ambiente. Se é possívelcondicionar um reflexo, não seria demais tentar dar mais um passoà frente e condicionar movimentos acrobáticos ou outros movi-mentos supostamente de forma livre? Seria possível pegar um mo-vimento inteiramente aleatório, como virar a cabeça para a direita ecompensá-lo sistematicamente, para que, sem demora, a pessoafique olhando para a direita, o operante inscrito? E se isso fossepossível, até onde seria possível ir? Que tipos de arco poderíamosaprender para saltar tudo e com que tipo de desenvoltura? Skinnerse perguntou. Ele moveu, imagino, suas mãos para cá e para lá.Debruçou-se no peitoril da janela e sentiu o cheiro de esquilos, umodor almiscarado de noite e excremento, de pêlos e flores.

Em junho daquele ano, Skinner ganhou ratos de um estudantede graduação que partia. Ele colocou os animais em uma caixa.Então, começou. Depois de muito, muito tempo, de fato, anos, des-cobriu que esses ratos, que têm cérebros não maiores que um feijãocozido, conseguiam rapidamente aprender como apertar uma ala-vanca, se recebessem comida como recompensa. Portanto, enquan-to Pavlov se concentrou no comportamento do animal em resposta aum estímulo anterior – a campainha –, Skinner se concentrou nocomportamento do animal em resposta a uma conseqüência após ofato – o alimento. Foi uma nuança sutil e não tão excitante em re-lação ao trabalho anterior de Pavlov e uma extensão ostensiva dosestudos de Thorndike, que já tinha demonstrado que gatos emcaixas de ripa recompensados por pisar acidentalmente em um pedalpoderiam aprender a fazê-lo intencionalmente. Mas Skinner foimais adiante que esses dois homens. Depois de ter demonstradoque seus roedores poderiam, por acidente, pisar na alavanca e soltaruma bolota e depois transformar o acidente em intenção com baseem recompensa anterior, ele brincou de remover ou alterar a pro-porção em que as recompensas ocorriam e, ao fazê-lo, Skinner des-cobriu leis replicáveis e universais de comportamento que aindahoje são verdadeiras.

Por exemplo, depois de Skinner ter sistematicamente recompen-sado com comida o rato que pressionava a alavanca, ele tentou o

Page 8: SKINNER-Abrindo a Caixa de Skinner

que chamou de um esquema de razão fixa. Nesse cenário, se o ani-mal pressionasse a alavanca três vezes, receberia sua guloseima. Oucinco vezes. Ou vinte vezes. Imagine-se como um rato. Primeiro,sempre que você aperta a alavanca, ganha comida. Depois, vocêaperta a alavanca uma vez e não ganha comida; você o faz de novo,ainda nenhuma comida. Você o faz de novo e pela torneira pratea-da chega uma bolota. Você come a bolota e se afasta. Você voltapara pegar mais. Desta vez, você nem pensa em apertar uma vezcom o seu pé róseo. Você aperta três vezes. As contingências de re-forço mudam a maneira como o animal responde.

Skinner também se entreteve com aquilo que denominou esque-mas de intervalo fixo e extinção. Na versão de extinção do experi-mento, Skinner removeu inteiramente o reforçador. Ele descobriuque se parasse de recompensar os ratos com comida, eles acabariamparando de apertar a alavanca mesmo quando ouviam o som dasbolotas descendo. Utilizando um registrador cumulativo fixado àsua caixa, Skinner pôde representar pictoricamente exatamentequanto tempo se leva para aprender uma resposta quando ela é re-gularmente recompensada e quanto tempo se leva para extinguir umaresposta quando ela é abruptamente suspensa. Sua capacidade dequantificar com precisão essas taxas sob diferentes circunstânciasforneceu dados quantificáveis sobre como os organismos aprendeme sobre como podemos predizer e controlar o resultado do apren-dizado. Com a façanha da previsibilidade e do controle, uma ver-dadeira ciência do comportamento nasceu, com curvas em sino,diagramas de barras, gráficos de pontos e matemática – e Skinner foio primeiro a fazê-lo com tal nuança e de múltiplas camadas.

Mas Skinner não parou aí. Partiu para aquilo que chamou de es-quemas variáveis de reforço, e foi aqui que fez suas descobertasmais significativas. Tentou recompensar intermitentemente os ani-mais com comida quando eles apertavam a alavanca, de modo que,na maioria das vezes, os animais nada recebessem, mas, de vez emquando, digamos, depois da quadragésima ou sexagésima vez em queapertassem a barra, recebessem um mimo. A intuição nos diz

Abrindo a Caixa de Skinner

23

Page 9: SKINNER-Abrindo a Caixa de Skinner

que recompensas aleatórias e remotas levariam à desesperança eextinção do comportamento; não levaram. Skinner descobriu que,se recompensasse intermitentemente os ratos com comida, elescontinuariam a pressionar aquela alavanca como uma espécie dedrogado insistente, independentemente do resultado. Ele experi-mentou buscando saber o que acontece quando recompensas inter-mitentes são dadas em intervalos regulares (digamos, uma a cadaquatro vezes) ou em intervalos irregulares. Descobriu que umcomportamento irregularmente recompensado era o mais difícil deser erradicado. Ahá! Essa descoberta era tão grande quanto a da sali-vação canina. De repente, Skinner era capaz de evocar sistematica-mente e explicar boa parte da insensatez humana, por que fazemoscoisas estúpidas quando não somos sistematicamente recompensa-dos, por que sua melhor amiga fica grudada no telefone, a salivabrilhando nos cantos da boca, esperando que aquele namoradogenioso com um vestígio ocasional de gentileza telefone, apenastelefone. Oh, por favor, telefone! Por que pessoas perfeitamentenormais esvaziam seus cofres em cassinos esfumaçados e se metemem terríveis apuros. Por que as mulheres amam demais, e os homensnegociam margens. Tinha tudo a ver com essa coisa chamada re-forço intermitente e ele poderia demonstrá-lo, seus mecanismos, ascontingências da compulsão. E compulsão é algo enorme. Ela – semtrocadilhos intencionais – nos faz cachorradas e nos afoga desdeque a primeira pessoa entrou no Éden. É enorme.

Mas Skinner não parou ali. Se ele pôde treinar ratos a apertar ala-vancas, por que não treinar pombos para, digamos, jogar pingue-pongue? Jogar boliche? Quais eram os limites, ele se perguntava, dequanto o homem poderia moldar o comportamento de um outro servivo? Skinner escreve sobre tentar treinar um pássaro a bicar umprato: “Primeiro damos comida ao pássaro quando ele vira a cabeçaligeiramente na direção [do prato], estando em qualquer parte dagaiola. Isto aumenta a freqüência do comportamento... A seguir,reforçamos sucessivamente as posições mais próximas ao alvo, de-pois reforçamos apenas quando a cabeça se move ligeiramente para

M E N T E E C É R E B R O

24

Page 10: SKINNER-Abrindo a Caixa de Skinner

a frente e, finalmente, somente quando o bico faz contato com oalvo. Dessa maneira, podemos construir operantes raros e com-plicados que, do contrário, nunca apareceriam no repertório doorganismo.”

Raros, de fato. Usando seus métodos comportamentais, os segui-dores de Skinner conseguiram ensinar um coelho a apanhar umamoeda com a boca e jogá-la num cofrinho em forma de porco. Tam-bém ensinaram um porco a limpar com aspirador de pó.

Com base nesses experimentos, ele apurou sua filosofia impla-cavelmente redutiva. Começou, cercado por seus pombos bicadores,a abominar palavras como intuído, sentir ou medo. Não existe medo,somente certas respostas galvânicas da pele e tremores muscularesinvoluntários que emitem 2,2 volts de energia.

Por que simplesmente não rejeitamos Skinner, considerando-oum radical tendencioso? Não apenas porque ele descobriu a pri-meira ciência do comportamento. Sua visão também era audaciosa,talvez patrioticamente otimista. Negava aos norte-americanos acobiçada autonomia, enquanto a devolvia inteiramente nova e me-lhorada. O mundo de Skinner era de extrema liberdade trabalhadapor meio do seu oposto: a conformidade. No esquema skinneriano,se apenas nos submetêssemos ao treinamento impensado, tornar-nos-íamos biologicamente ilimitados, capazes de aprender habili-dades bem fora do “repertório” de nossa espécie. Se pombos podemjogar pingue-pongue, então talvez os seres humanos pudessemaprender façanhas ainda mais incríveis. Tudo o que é necessário é otreinamento certo – e transporemos as fronteiras dos nossos corpose suas limitações.

A fama de Skinner cresceu lentamente. Ele seguiu em frente einventou máquinas de aprendizado, construiu uma teoria da aquisi-ção da linguagem como condicionamento operante, treinou pom-bos como orientadores de mísseis na Segunda Guerra Mundial.Escreveu um livro chamado Walden 2, no qual descreveu em linhasgerais uma proposta para uma comunidade baseada em “engenhariacomportamental”, na qual o poder do reforço positivo era usado

Abrindo a Caixa de Skinner

25

Page 11: SKINNER-Abrindo a Caixa de Skinner

para o controle científico de seres humanos. Na visão de Skinner,essa comunidade ideal seria governada não pelos políticos, mas porbehavioristas armados com pirulitos e fitas azuis. Ele escreveu umlivro chamado Beyond Freedom and Dignity [Para além da liber-dade e dignidade], sobre o qual um resenhista escreveu: “É sobre adomesticação da humanidade através de escolas de obediênciacanina para todos.”

Antes que Skinner conseguisse trazer à fruição as implicaçõessociais de seus grandes experimentos, ele morreu de leucemia em1990. Teria percebido, bem no fim, que o ato final da vida, que é amorte, não pode ser aprendido ou de alguma forma superado?

Como podemos situar Skinner? Seus experimentos são pertur-badores em suas implicações. Por outro lado, suas descobertas sãocertamente significativas. Em essência, elas iluminam a estupidezhumana, e qualquer coisa que ilumine a estupidez é brilhante.

Jerome Kagan é um contemporâneo de Skinner que carregamuitas memórias e opiniões de seu colega. Professor de psicologiaem Harvard, Kagan tem uma percepção profunda sobre que senti-do dar a este homem e seu lugar no século XX. Vou vê-lo.

O prédio de escritórios de Kagan, o William James Hall, está emconstrução quando chego e, portanto, preciso me desviar para cá epara lá para abrir caminho por um labirinto de concreto, com car-tazes acima de mim dizendo, “Cuidado. Use capacete protetor nes-ta área”. Subo pelo elevador. Todo o prédio encontra-se em umsilêncio reverente. Muito abaixo de mim, nas entranhas do porãoem que são guardados os artefatos, onde supostamente algumas dascaixas pretas de Skinner estão encaixotadas, marteletes pneumáti-cos desgastam concreto velho e ouço uma voz fina gritando, Presto.

Desço ao 15o andar. As portas do elevador se abrem e à minhafrente, como se num sonho, está sentado um cãozinho preto, tipotoy, sua boca uma fenda vermelha em sua face inteiramente negra.O cachorro me encara fixamente, uma espécie de sentinela – sei lá.

M E N T E E C É R E B R O

26

Page 12: SKINNER-Abrindo a Caixa de Skinner

Adoro cães, embora os toys não sejam os meus preferidos. Eu mepergunto por que não o são. Quando criança, tive um cachorro toye ele me mordeu; portanto, talvez eu tenha sido condicionada con-tra eles e pudesse ser recondicionada com recompensas para quepassasse a preferir o shitzu ao pastor. De qualquer forma, curvo-mepara afagar o cãozinho e, como se ele percebesse minha antipatia,entra num frenesi, revelando uma fileira de dentes impressionantese de forma alguma pequenos e rosnando ao saltar para agarrar meupulso exposto.

– Gambito! – grita uma mulher, saindo correndo de um dos es-critórios. – Gambito, pare com isso! Oh, meu deus, ele a machucou?

– Estou bem – digo, embora não esteja bem. Estou tremendo.Recebi um reforço negativo... não, recebi uma punição. Nuncamais confiarei num toy e NÃO quero que isso mude. Skinner diriaque ele conseguiria mudar isso, mas até que ponto sou modificável,somos modificáveis?

O professor Kagan fuma um cachimbo. O escritório cheira a cachim-bo, aquele odor rançoso meio adocicado de brasa queimada. Elefala com o tipo de autoconfiança total que associo à casta da IvyLeague:

– Permita-me dizer que seu primeiro capítulo não deveria sersobre Skinner. Foi Pavlov no início do século XX e depoisThorndike, uma década depois, que fizeram os primeiros experi-mentos demonstrando o poder do condicionamento. Skinner am-pliou esse trabalho. Mas suas descobertas não conseguem explicarpensamento, linguagem, raciocínio, metáfora ou idéias originais, nemoutros fenômenos cognitivos. Nem explicam culpa ou vergonha.

– E quanto às extrapolações de Skinner a partir de seus experi-mentos? – eu digo. – Que não temos livre-arbítrio. Que somosdominados apenas pelos reforços. Você acredita nisso?

– Você acredita nisso? – pergunta Kagan.– Bem, não descarto de forma alguma a possibilidade de que

Abrindo a Caixa de Skinner

27

Page 13: SKINNER-Abrindo a Caixa de Skinner

somos controlados ou estamos no controle, que nosso livre-arbítrio é, na verdade, apenas uma resposta a algumas sugestões que...

Antes que eu consiga terminar a sentença, Kagan mergulha emsua mesa. Digo isso literalmente. Ele pula da cadeira e avança àfrente, se alojando sob a mesa, de modo que não o vejo mais.

– Estou debaixo da minha mesa – ele grita. – NUNCA fui parabaixo de minha mesa antes. Isto não é um ato de livre-arbítrio?

Pisco. Onde Kagan estava sentado está vazio. Debaixo da mesa,ouço um barulho. Fico um pouco preocupada com ele. Acho queele me disse, pelo telefone, quando pedi a entrevista, que tinhaproblemas nas costas.

– Bem – eu digo, e subitamente minhas mãos ficam frias demedo –, imagino que poderia ser um ato de livre-arbítrio ou pode-ria ser que você...

De novo, Kagan não me deixa terminar. Ele ainda está sob amesa, não sobe, está conduzindo a entrevista agachado e escondi-do. Nem sequer o vejo. A voz aumenta, incorpórea.

– Lauren, não existe nenhuma maneira pela qual você possa ex-plicar o fato de eu estar debaixo desta mesa neste exato momento,senão como um ato de livre-arbítrio. Não é uma resposta a umreforço nem a uma sugestão. NUNCA fiquei embaixo da minhamesa antes.

– Certo! – respondo.Ficamos desse modo por um minuto, ele lá embaixo, eu aqui em

cima. Acho que ouço aquele maldito cachorro no corredor, arra-nhando. Tenho medo de voltar para fora, mas não quero mais ficaraqui dentro. Estou enjaulada pelas contingências e, portanto, ficobem imóvel.

Kagan, me parece, é um tanto desdenhoso com as contribuições deSkinner. Mas certamente há maneiras pelas quais os experimentosde Skinner – mesmo que sejam derivados – são ao mesmo tempo

M E N T E E C É R E B R O

28

Page 14: SKINNER-Abrindo a Caixa de Skinner

relevantes e úteis na construção de um mundo melhor. Nos anos1950 e 1960, os métodos comportamentais de Skinner foram levadosaos asilos governamentais e aplicados aos gravemente psicóticos.Usando seus princípios de condicionamento operante, pacientes ir-remediavelmente esquizofrênicos foram capazes de aprender a sevestir, a se alimentar – cada erguer da colher recompensado comum cobiçado cigarro. Mais tarde no século, os clínicos começarama usar técnicas como dessensibilização sistemática e inundação, ex-traídas diretamente do repertório operante de Skinner, para tratarfobias e transtornos do pânico, e esses tratamentos comportamen-tais ainda são hoje amplamente empregados e obviamente eficazes.Diz Stephen Kosslyn, professor de psicologia em Harvard:“Prevejo um ressurgimento de Skinner. Eu próprio sou um ver-dadeiro fã de Skinner. Os cientistas estão agora mesmo fazendo no-vas descobertas excitantes que apontam para os substratos neuraisdos achados de Skinner.” Kosslyn explica a evidência de que exis-tem dois principais sistemas de aprendizado no cérebro: os gângliosbasais, uma coleção de sinapses aracneiformes localizadas profun-damente na massa do cérebro antigo, em que os hábitos são en-talhados, e o córtex frontal, aquela grande protuberância dobradaque surge conjuntamente com nossa razão e ambição. O córtexfrontal, conjecturam os neurocientistas, é onde aprendemos comopensar independentemente, visualizar o futuro e planejar com baseno passado. É de onde a criatividade e todas as suas surpreendentesguinadas se originam, mas, diz Kosslyn: “Somente uma parte denossas cognições é mediada por esse córtex.” O restante do apren-dizado, diz Kosslyn, “uma quantidade significativa, é impelidopelo hábito, e os experimentos de Skinner nos levaram a procurarpelos substratos neurais desses hábitos.” Em essência, Kosslyn estádizendo, Skinner levou os cientistas aos gânglios basais, levou-ospara baixo, descendo até a base do cérebro, na qual esquadrinharampor meio dos emaranhados neurais para encontrar a química portrás das bicadas, de apertar botões e de todos os movimentosacrobáticos condicionados que fazemos na grama verde, no verão.

Abrindo a Caixa de Skinner

29

Page 15: SKINNER-Abrindo a Caixa de Skinner

Diz Bryan Porter, um psicólogo experiente que aplica beha-viorismo baseado em Skinner para abordar problemas de segurançade trânsito: “Obviamente, o behaviorismo não é mau nem está morto.O behaviorismo de Skinner é responsável por muitas intervençõessociais benéficas. Com uso de técnicas behavioristas, pudemos re-duzir a direção perigosa, no que diz respeito ao número de avançosde sinal vermelho, em 10% a 12%. E também por causa de Skinner,sabemos que as pessoas respondem melhor às recompensas que àpunição. As técnicas de Skinner têm sido instrumentais em ajudara enorme população de pessoas com transtorno da ansiedade a su-perar, ou extinguir, suas fobias. Graças a Skinner, autistas hesitantesagora sabem vestir camisas limpas e se alimentar. Graças a Skinner,você sabe como dar reforço positivo ao seu filho. Você sabe querecompensas funcionam muito melhor que punição para estabele-cer o comportamento, porque Skinner deu ênfase ao poder do re-forço positivo. Isso tem enormes implicações políticas, se nossogoverno pudesse simplesmente absorvê-lo.” Porter prossegue: “Defato, de uma maneira estranhamente tortuosa, temos de agradecer aSkinner pela crença muito popular de que é melhor ser afável comas pessoas, dar-lhes A quando talvez mereçam B, continuar dizen-do: ‘Que ótimo trabalho você está fazendo!’, mesmo que não este-jam.” E arremata, rindo: “Embora possivelmente ele não gostassedisso, é praticamente new age.”

Minha filha chora na noite. Acorda empapada em suor, os globosoculares saltando, os sonhos se dissolvendo à medida que ela vem àconsciência. “Pssss. Pssss.” Seguro seu corpo contra o meu. Suasroupas de cama estão ensopadas, seu cabelo, um tapete escuro decaracóis apertados. Afago sua cabeça, onde as fontanelas já muitose fecharam. Acaricio o declive da fronte, onde o córtex frontal dia-riamente faz germinar as exuberantes raízes e, então, desço minhamão pelo pescoço retesado, onde imagino sentir os gânglios basais,com seus emaranhados semelhantes a algas marinhas. Seguro minha

M E N T E E C É R E B R O

30

Page 16: SKINNER-Abrindo a Caixa de Skinner

filha na noite e, do lado de fora da janela do quarto, um cão uiva;quando olho, o animal é branco-sabão ao luar.

No início, minha filha chora porque está com medo, uma sériede maus sonhos, imagino. Ela tem 2 anos de idade e seu mundo estáse expandindo a uma velocidade aterrorizante. Mas à medida quepassam as noites, ela simplesmente chora porque anseia pelo colo.Ela se habituou a esses abraços antes do amanhecer, ao ritmo dacadeira de balanço enquanto o céu lá fora está generosamentesalpicado de estrelas. Meu marido e eu estamos exaustos.

– Talvez devêssemos skinnerizá-la – digo.– Devêssemos o quê? – pergunta ele.– Talvez devêssemos empregar os princípios skinnerianos para

quebrar o hábito dela. Toda vez que vamos até ela e a apanhamos,estamos lhe dando o que Skinner chamaria de reforço positivo.Temos de extinguir o comportamento, reduzindo e depois elimi-nando nossas respostas.

Meu marido e eu estamos tendo esta conversa na cama. Ficosurpresa com a ligeireza com que minha língua assume e lança alinguagem de B. F. Praticamente soa como um especialista. Falarskinneriano é quase divertido. O caos é confinado. A paz retorna.

– Então você está sugerindo – diz ele – que simplesmente a deixe-mos chorar até cansar. – Sua voz parece abatida. Todos os pais co-nhecem essa discussão.

– Não, não. Ouça. Não digo chorar até cansar. Colocá-la numritmo rigoroso de reforço reduzido. Na primeira vez que ela chorar,pegamos no colo por apenas três minutos. Da vez seguinte que elachorar, pegamos no colo por dois minutos. Poderíamos até usar umcronômetro. – Minha voz fica cada vez mais excitada, ou será an-siosa? – Depois, aumentamos o tempo que a deixamos chorar. Bemgradualmente e, devagarzinho, extinguimos o comportamento ouextinguimos nossas respostas... as contingências desenhando coma mão o padrão do lençol, uma série de grades verdes, aquilo queoutrora parecia um xadrez caipira, mas agora parece um papel delaboratório.

Abrindo a Caixa de Skinner

31

Page 17: SKINNER-Abrindo a Caixa de Skinner

Meu marido me olha fixamente, cautelosamente, eu poderiaacrescentar. Ele não é psicólogo, mas se fosse, seria da escola CarlRogers. Ele tem uma voz macia, um toque ainda mais macio:

– Não sei – diz ele. – O que exatamente você acha que ensinare-mos a ela fazendo isso?

– A dormir em paz durante toda a noite – respondo.– Ou – ele rebate – a perceber que, quando ela precisar de aju-

da, não responderemos, que quando estiver em perigo real ouimaginário, não estaremos lá. Não é essa a visão de mundo quequero transmitir.

Mesmo assim, ganho a discussão. Decidimos skinnerizar nossamenina, no mínimo porque precisamos de descanso. No começo, ébrutal ter de a ouvir gritar: “Mamãe, mamãe, papai!”, ter de a ig-norar quando estica seus lindos braços no escuro, mas nós o faze-mos e é isso o que acontece: funciona como mágica, ou ciência. Emcinco dias, a criança age como um narcoléptico treinado; assim queela sente o lençol da sua caminha na bochecha, cai num período desono de dez horas e todas as nossas noites são tranqüilas.

É o que acontece. E todas as nossas noites são tranqüilas. Masagora, às vezes, não conseguimos dormir, meu marido e eu. Teríamoslembrado de ligar o monitor? O volume está alto o bastante? A chu-peta quebrou na boca e, portanto, ela vai sufocar quando chupar?Ficamos acordados e através do monitor podemos às vezes ouvir osom da sua respiração, como um vento estático, mas nem uma sóvez surge sua voz – nenhum choramingo, um riso, um doce falardormindo. Ela foi sinistramente amordaçada.

Ela dorme bem tranqüila, na sua caixa branca de bebê.

Algumas das caixas reais que Skinner usou foram guardadas emHarvard. Vou vê-las. Estão no porão do William James Hall, aindaem construção. Preciso usar um capacete rígido, um casco amarelopesado na minha cabeça. Desço pelas escadas. Há um mau cheiroúmido no ar, e moscas negras zumbem como neurônios, cada qual

M E N T E E C É R E B R O

32

Page 18: SKINNER-Abrindo a Caixa de Skinner

uma massa com finalidade. As próprias paredes são porosas e,quando você as aperta, um pó branco fino gruda nas suas mãos.Passo por um operário em botas de cano alto até o quadril, fuman-do um cigarro, a ponta brilhante chiando como uma ferida no can-to do lábio. Imagino que este porão esteja cheio de ratos; eles se es-coram ao redor das caixas, seus olhos róseos vítreos, seusdesprezíveis rabos movendo-se rapidamente: que liberdade!

Lá em cima, vejo uma enorme mancha escura – ou será umasombra? – na parede de tijolos.

– Estão lá – diz meu guia, um técnico de construções, e aponta.Vou em frente. À minha frente na penumbra do porão, consigo

distinguir grandes expositores de vidro e, dentro deles, uma espé-cie de esqueleto. Mais perto, vejo que são os restos de um pássaro,seus ossos ocos próprios para o vôo dispostos de maneira a lhe dara aparência de um sobrevôo, seu crânio cheio de pequenos buracospuntiformes. Talvez um dos pombos de Skinner, as órbitas ocularesprofundas, dentro delas um diminuto lampejo vivo, e então some.

Movo meu olhar atento dos ossos para as caixas. É neste mo-mento que fico surpresa com o que vejo. Os ossos estão de acordocom o agourento mistério desse homem, mas as caixas, as famosascaixas – são estas as famosas caixas pretas? Para começo de conver-sa, não são pretas. São de um cinza inócuo. Teria eu lido que ascaixas eram pretas ou teria eu simplesmente inventado isso, na in-terseção em que fato e mito se encontram para criar todos os tiposde objetos bizarros? Não, as caixas não são pretas, tendo, pelo con-trário, uma aparência raquítica, com um aparelho externo de criargráficos e pequenas alavancas para treinamento. Os pedais de aper-tar são bem pequenos, quase graciosos, mas os pratos de alimen-tação são de um frio cromo institucional. É isto que faço: colocominha cabeça dentro. Ergo a tampa e coloco minha cabeça bem nofundo de uma caixa de Skinner, onde o cheiro é de excremento,medo, comida, plumas, coisas macias e duras, bom e ruim; com querapidez um objeto muda de benigno para agourento. Como é difí-cil encaixotar mesmo uma caixa.

Abrindo a Caixa de Skinner

33

Page 19: SKINNER-Abrindo a Caixa de Skinner

Talvez, penso, o meio mais preciso de entender Skinner, ohomem, seja apreendê-lo como dois, não como um. Há o Skinnerideólogo, o homem macabro que sonhou em criar comunidades depessoas treinadas como animais de estimação, e, então, há o Skinnercientista, que fez descobertas distintas que mudaram para sempre amaneira como vemos o comportamento. Há os dados de Skinner,irrefutáveis e brilhantes, o poder do reforço intermitente, a gamapura e simples de comportamentos que podem ser moldados, in-tensificados ou extintos, e, então, há a filosofia de Skinner, em que,imagino, ele ganhou sua sombria reputação. Essas duas coisastalvez tenham se misturado na mente do público, na minha certa-mente, à medida que a ciência e as idéias por elas geradas se fundi-ram em uma confusão mítica. Mas então, novamente, você poderealmente separar o significado dos dados de seus usos sociais pro-postos? Podemos considerar simplesmente dividir o átomo e não abomba e os ossos que seguiram? Não estaria a ciência indelevel-mente enraizada no solo da construção social, de forma que o valordaquilo que descobrimos esteja inextricavelmente atado ao valor dosusos que descobrimos para a descoberta? Ficamos dando voltas emais voltas. É um enigma léxico, sintático, para não dizer moral ouintelectual, de grave transcendência – a idéia de que a ciência e seusdados são melhor avaliados em uma caixa, independentemente dasmãos humanas que inevitavelmente lhe darão seu formato.

À parte as questões de aplicação como meio de avaliar dados,quais são todos os mecanismos, por assim dizer, que contribuírampara a infâmia de Skinner? Como e por que o bizarro mito da filhamorta (que está supostamente bem viva), das caixas pretas e do cien-tista robótico que precede tudo aquilo que vejo poderia, talvez, nosfornecer uma visão mais matizada de um homem que pairou entrea prosa lírica e complexos cálculos numéricos, um homem quemergulhou nu logo depois de pôr seus ratos e pássaros para traba-lhar, um homem que cantarolava Wagner, aquele compositor desentimento puro, enquanto estudava o simples reflexo de uma rãverde? Como toda essa complexidade se perdeu? Com certeza, o

M E N T E E C É R E B R O

34

Page 20: SKINNER-Abrindo a Caixa de Skinner

próprio Skinner deve ser parcialmente responsabilizado. “Ele eraganancioso”, diz uma fonte que deseja permanecer anônima. “Fezuma única descoberta e tentou aplicá-la no mundo inteiro e, por-tanto, escorregou.”

Mesmo assim, há muito mais que ganância que nos repugna.Skinner, ao desenvolver novos aparelhos, levantou questões queeram uma afronta à imaginação ocidental, que se orgulha da liber-dade enquanto, ao mesmo tempo, abriga grandes dúvidas sobre oquanto nossas supostas liberdades são realmente sólidas. Nossosmedos do reducionismo, nossas suspeitas de que realmente podemosser não mais que uma série de respostas automáticas, como muitosde nós gostam de achar, ganham relevo na era industrial. Sãomuitíssimo mais antigos que isso. Desde que Édipo se enfureceucom seu destino cuidadosamente calibrado, ou Gilgamesh lutoupara se libertar dos planos predestinados de seu Deus, os seres hu-manos têm se perguntado e se preocupado com até que pontoorquestramos nossas próprias ações. O trabalho de Skinner foi, en-tre outras coisas, o recipiente quadrado no qual essas preocu-pações, para sempre ressuscitadas, foram vertidas à sombra das no-vas máquinas cintilantes do século XX.

Antes de eu deixar para trás os arquivos de Skinner para sempre,faço mais uma parada: para ver a famosa caixa de bebê na qual afilha de Skinner dormiu durante os primeiros dois anos e meio devida. A própria caixa, fico sabendo, foi desmantelada, mas vejo umafoto dela, da revista Ladies’ Home Journal, que publicou um artigosobre a invenção em 1945. Se você quiser aumentar sua reputação decientista, Ladies’ Home Journal não é, provavelmente, a melhor es-colha entre os canais de divulgação. O fato de Skinner ter optadopor publicar suas supostas invenções científicas numa revista desegunda categoria para mulheres revela as péssimas habilidades deleem “relações públicas”.

Abrindo a Caixa de Skinner

35

Page 21: SKINNER-Abrindo a Caixa de Skinner

“BEBÊ NUMA CAIXA”

é o que diz o título do artigo e, debaixo dele, existe de fato uma fotode um bebê numa caixa, uma Deborah de aparência querubínea ar-reganhando os dentes, as mãos cobertas em laterais de Plexiglas.Mas, leia adiante. Na verdade, a caixa do bebê, fica-se sabendo,nada mais era que um cercadinho aperfeiçoado no qual a jovemDeborah passava poucas horas por dia. Com um ambiente contro-lado termostaticamente, ele prevenia assaduras de fralda e mantinhaas vias nasais sem obstruções. Já que a temperatura tinha um ótimoajuste fino, não havia necessidade de cobertores e, portanto, o peri-go de sufocação, o pesadelo de todas as mães, foi eliminado. Skinnerequipou a caixa da sua bebê com almofadas feitas de um materialespecial que absorvia os odores e a umidade, e, portanto, o tempoque uma mulher gastava na lavagem era reduzido à metade e elaficava livre para usar as mãos para outros fins – isso numa era antesdas fraldas descartáveis. Tudo parece humano, se não positivamentefeminista. E, então, leia ainda mais adiante. Ao oferecer à criançaum ambiente verdadeiramente benevolente, um ambiente sem pe-rigos de punição (se o bebê caísse, não se machucaria porque oscantos eram almofadados para eliminar batidas duras), um ambien-te, em outras palavras, que condicionava por oferecer recompensapura, Skinner esperava criar uma valentona que acreditasse quepoderia dominar seus arredores e, portanto, enfrentaria o mundodessa maneira.

Tudo parece, sem dúvida, bem-intencionado, até positivamentenobre, e coloca Skinner firmemente em águas humanitárias. Masentão (e sempre existe um mas então nesta narrativa), li o nome queoutros propuseram para a invenção dele: Condicionador de Her-deiro. Isso é ou aterrorizante ou apenas uma simples bobagem.

Existem milhares de milhares de “Deborah Skinners” listadas narede, mas nenhuma delas dá resultado. Gostaria de encontrá-la, con-firmar que está viva. Telefono para uma Deborah Skinner, autorade um livro de receitas intitulado Crab Cakes and Fireflies [Bolos de

M E N T E E C É R E B R O

36

Page 22: SKINNER-Abrindo a Caixa de Skinner

caranguejo e vagalumes], uma Deborah de 4 anos de idade e váriosnúmeros desligados. Telefono para Deborahs em floriculturas,Deborahs em esteiras, Deborahs vendendo imóveis e anunciandocartões de crédito, mas nenhuma afirma conhecer um B. F. Skinner.

Não, não encontro Deborah Skinner em nenhum lugar dos Esta-dos Unidos, nem encontro registros de morte em Billings, Montana.Mas o que de fato encontro, da maneira tortuosa e associativa comoa internet funciona, é sua irmã, Julie Vargas, uma professora de edu-cação da Universidade de Virgínia Ocidental. Eu disco.

– Estou escrevendo sobre seu pai – digo depois de confirmar queela é uma descendente verdadeira. No fundo, barulho de panelas efrigideiras. Ouço o que parece uma faca – chop-chop – e a imagino,a outra garota de Skinner, aquela que perdeu o mito, cozinhando amais simples das batatas, fatiando brilhantes lascas de cenourasnuma velha tábua de cortar em algum lugar onde ninguém a vê.

– Ah! – ela responde – e sobre o que você está escrevendo? –Sem dúvida ouço suspeita em sua voz, um óbvio quê de defesa.

– Estou escrevendo grandes experimentos de psicologia e queroincluir seu pai no livro.

– Ah – apenas isso..– Então, eu estava imaginando se você poderia me contar como

ele era.Chop-chop. Ouço, do lado dela, uma porta de tela mosquiteira

fechar batendo.– Estava imaginando – insisto – se você poderia me dizer o que

pensa de...– Minha irmã está viva e bem – ela afirma. Naturalmente, eu nem mesmo perguntei sobre isso, mas é evi-

dente que muitos outros o fizeram; é evidente que a pergunta acansa; é evidente que ela sabe que toda consulta sobre sua famíliacomeça e termina nesse ponto, passando inteiramente por cima dopróprio trabalho.

– Vi a fotografia dela na web – eu digo.– Ela é artista. Vive na Inglaterra. É feliz no casamento. Ensinou

o gato a tocar piano.

Abrindo a Caixa de Skinner

37

Page 23: SKINNER-Abrindo a Caixa de Skinner

– Ela era próxima do seu pai?– Ah, ambas éramos – diz Julie, e então faz uma pausa e consi-

go praticamente sentir as coisas brotando contra a pausa, recor-dações, sentimentos, as mãos do pai na sua cabeça. – Tenho umatremenda saudade dele.

A faca está silenciosa agora; a porta com tela mosquiteira nãobate mais e no espaço em que estavam esses sons vem a voz de JulieSkinner Vargas, uma voz carregada de memória. Uma espécie deincontinência nostálgica extravasa copiosamente; ela não consegueevitar.

– Ele tinha jeito com crianças. Ele as amava. Nossa mãe, bem,nossa mãe era... – e ela não terminou essa sentença. – Mas nossopai... papai costumava fazer papagaios, papagaios de caixa queempinávamos em Monhegan, e ele nos levava ao circo todo ano, enosso cachorro, Hunter, era um beagle, e papai o ensinou a brincarde esconde-esconde. Ele conseguia ensinar qualquer coisa, qual-quer coisa, e então nosso cachorro brincava de esconde-esconde,era um mundo... aqueles papagaios, nós os fazíamos com barbantese varetas e empinávamos no céu.

– Então, para você, ele era realmente um ótimo sujeito.– Era. Ele sabia exatamente de que uma criança precisava.– E quanto ao modo como você se sentia com todas as críticas

que o trabalho dele provocou?Julie ri. A risada é mais como um latido. – Comparo-o ao Darwin. As pessoas rejeitavam as idéias de

Darwin porque eram ameaçadoras. As idéias do meu pai sãoameaçadoras, mas são tão grandes quanto as de Darwin.

– Você concorda com todas as idéias do seu pai? Concorda comele de que somos apenas autômatos, que não temos livre-arbítrio,ou você acha que ele levou os seus dados experimentais longedemais?

Julie suspira. – Você sabe, se meu pai cometeu um erro, foi nas palavras que

escolheu. As pessoas ouvem a palavra controle e acham fascista.Se meu pai tivesse dito que as pessoas eram informadas por seus

M E N T E E C É R E B R O

38

Page 24: SKINNER-Abrindo a Caixa de Skinner

ambientes, ou inspiradas por seus ambientes, ninguém teria tidoum problema. A verdade sobre meu pai é que ele era um pacifista.Era também um defensor das crianças. Ele não acreditava em NE-NHUMA punição porque viu em primeira mão com os animais comoisso não funcionava. Meu pai é responsável pela revogação dapunição corporal que vigorava na Califórnia, mas ninguém se lem-bra dele por isso.

– Ninguém se lembra – diz ela, sua voz se elevando, zangada –como ele sempre respondia a TODAS as cartas que recebia, enquan-to aqueles humanistas – ela praticamente cospe a palavra –, aquelessupostos humanistas, a escola do “eu estou ok, você está ok”, elesnem sequer se davam ao incômodo de responder às cartas dos fãs.Eles estavam ocupados demais. Meu pai nunca estava ocupado de-mais para as pessoas.

– Não, não, ele não estava – eu digo, e de repente sinto umpouco de medo. Ela parece um pouco tensa, esta Julie, um poucopassional demais sobre o querido papai.

– Deixe-me perguntar uma coisa – diz Julie. – Sei dizer pelo tomde voz dela que a pergunta vai ser grande, mordaz e vai me colocarem apuros. – Posso lhe perguntar uma coisa? Fale honestamente.

– Pode!– Você realmente LEU os trabalhos dele, como Beyond Freedom

and Dignity, ou é apenas mais um erudito de fontes secundárias?– Bem – eu digo gaguejando –, li MUITO do trabalho do seu pai,

acredite em mim...– Acredito, mas você leu Freedom and Dignity?– Bem, não, eu estava me atendo aos textos puramente científi-

cos, não aos tratados filosóficos.– Você não pode separar a ciência da filosofia – Julie diz, res-

pondendo à minha pergunta anterior. – Então, faça sua lição decasa – e agora ela parece qualquer mãe ou tia antiga, a voz calma,carregada de cordialidade, chop-chop, ela está de volta às ce-nouras, às velhas e simples batatas. – Faça sua lição de casa, e de-pois conversaremos.

Abrindo a Caixa de Skinner

39

Page 25: SKINNER-Abrindo a Caixa de Skinner

Naquela noite, pus a bebê na cama. Peguei a cópia gasta marcada decantos dobrados do Beyond Freedom and Dignity, o tratado queassocio a outros textos totalitários, o tratado que, como o MeinKampf, possuo há muito, mas que, de fato, nunca li, e agora começo.

“As coisas pioram continuamente e é desanimador descobrir quea própria tecnologia é cada vez mais falha. O saneamento e a medi-cina tornaram mais agudos os problemas de controle populacional.A guerra adquiriu um novo horror com a invenção de armas nu-cleares, e a busca intensa pela felicidade é em grande parte respon-sável pela poluição.”

Embora isso tenha sido escrito em 1971, eu bem poderia estarlendo um discurso de Al Gore, ou uma declaração de missão doPartido Verde de 2003. É verdade que, mais adiante no texto,Skinner diz algumas coisas perturbadoras como: “Pelo questiona-mento do controle exercido pelo homem autônomo e pela demons-tração do controle exercido pelo ambiente, uma ciência do com-portamento questiona os conceitos de dignidade e valor.” Masesses tipos de declaração estão enterrados num texto imensamentepragmático. Skinner está claramente propondo uma política socialhumanitária enraizada em suas descobertas experimentais. Estápropondo que apreciemos o imenso controle (ou influência) quenosso entorno tem sobre nós e, portanto, entalhemos esse entornode tal maneira que “reforce positivamente” ou, em outras palavras,engendre comportamento adaptativo e criativo em todos oscidadãos. Skinner está pedindo à sociedade que modele as suges-tões com maior probabilidade de extrair o melhor de nós mesmos,em oposição às sugestões que claramente nos confundem, suges-tões como aquelas existentes nas prisões, nos lugares de pobreza.Em outras palavras, parar de punir. Parar de humilhar. Quempoderia argumentar contra isso? Deixe a retórica de lado. Nãoconfunda conteúdo com controvérsia.

O conteúdo diz: “Nossa era não está sofrendo de ansiedade, masdas guerras, crimes e outras coisas perigosas. As sensações são sub-produtos do comportamento.” Essa declaração é a soma total do

M E N T E E C É R E B R O

40

Page 26: SKINNER-Abrindo a Caixa de Skinner

antimentalismo desprezado de Skinner, sua insistência em que nosconcentremos não na mente, mas no comportamento. Na verdade,não é diferente do dizer predileto da sua mãe: as ações falam maisalto que as palavras. De acordo com Skinner – e o autor new ageNorman Cousins –, quando agimos vilmente, sentimo-nos vis, enão vice-versa. Não importando se você concorda ou não com isso,dificilmente dirá que é anti-humanitário. Mais adiante no livro,quando Skinner escreve que o homem existe irrefutavelmente emrelação ao seu meio ambiente e nunca pode estar livre dele, estariaele falando sobre correntes que confinam, como a maioria inter-pretou, ou simplesmente sobre a teia prateada que nos conecta aisto, isso e aquilo? Vi Jerome Kagan saltar debaixo da mesa, garan-tindo-me que tinha livre-arbítrio e poderia existir independente-mente de seu ambiente. Talvez ele esteja representando umatradição mais problemática, patriarcal e solitária. Na visão de Skinner,parecemos estar entrelaçados e precisamos assumir responsabili-dade pelos fios que nos ligam. Compare isso à feminista de hojeCarol Gilligan, que escreve que vivemos numa rede interdepen-dente e que as mulheres percebem e honram esse fato. Gilligan, etodas as psicoterapeutas feministas que se seguiram, afirmam quesomos relacionais, em oposição a estritamente separados, e que atéque vejamos nosso mundo dessa maneira e construamos uma mora-lidade embasada nesse fato irrefutável, continuaremos a desmoro-nar. De onde Gilligan e Jean Baker Miller e outras teóricas femi-nistas extraíram suas teorias? O espírito de Skinner paira sobre suaspalavras; talvez ele tenha sido o primeiro psicólogo feminista, outalvez as psicólogas feministas sejam skinnerianas secretas. Dequalquer forma, vimos o homem de maneira demasiado simplista.Parece que o encaixotamos antes que ele conseguisse verdadeira-mente nos encaixotar.

Julie, que está vindo a Boston a negócios, me convida a visitar a ve-lha casa de B. F. Skinner, na estrada Old Dee, 11, em Cambridge. É

Abrindo a Caixa de Skinner

41

Page 27: SKINNER-Abrindo a Caixa de Skinner

um bonito dia quando chego lá de carro, os jardins florescendo al-tas espirais roxas. Julie é velha, bem mais velha do que eu esperava,sua pele translúcida e delicada, seus olhos verdes. Ela me deixa en-trar. Esta é a casa de B. F. Skinner, para onde ele ia depois de lon-gos dias no laboratório, durante os quais descobriu a natureza in-crivelmente flexível da vida mamífera, nossos laços com nossascomunidades e todas as suas várias contingências. Condicionamentooperante – uma frase fria para um conceito que poderia na verdadesignificar que somos escultores e esculpidos, artistas e obras dearte, responsáveis pelas deixas que moldamos.

A casa permaneceu na família. Falando de moldagem, sua atualocupante é a neta de Skinner, Kristina, que, informa-me Julie, écompradora da Filene. A mesa da cozinha está coberta com catálo-gos da Victoria’s Secrets, fotografias de calcinhas de renda pretascolocadas lado a lado com velhas fotos de Pavlov e seu cão sali-vante.

Julie me leva para baixo, até o estúdio em que Skinner estavasentado logo antes, quase uma década atrás, de ser levado para ohospital e morrer. Ela abre a porta.

– Preservei tudo exatamente como estava quando ele foi levado –diz Julie, e acho que ouço lágrimas em sua voz.

O estúdio é bolorento. Contra uma das paredes está aquelaenorme caixa amarela onde ele cochilava e ouvia música. Nas pare-des estão fotos de Deborah, de Julie quando criança, de Hunter, ocachorro. Um livro enorme está aberto exatamente na página emque estava tantos anos atrás. Seus óculos estão dobrados na mesa.Suas vitaminas estão alinhadas, várias cápsulas compridas que elenunca chegou a engolir naquele sombrio dia em que foi levado enão muito depois enterrado em sua caixa final, a verdadeira caixapreta, ossos agora. Toco as vitaminas. Ergo um copo com algumelixir azul evaporado em um resíduo ao redor da borda. Imaginoque sinto o cheiro dele, de B. F. Skinner, o cheiro da velhice e da ex-centricidade, o suor rançoso, a saliva canina, o excremento de pás-saro, a doçura. Seus arquivos estão abertos, leio os rótulos: “Pombos

M E N T E E C É R E B R O

42

Page 28: SKINNER-Abrindo a Caixa de Skinner

Jogando Pingue-Pongue”, “Experimento do Berço Arejado” e, en-tão, em um arquivo bem atrás, “Sou um Humanista?”. Há um quêbem vulnerável em ter um arquivo que faz tão abertamente tal per-gunta, talvez a pergunta central.

– Posso ler? – Claro – Julie responde. Ambas estamos sussurrando agora, si-

lenciadas no passado preservado. Ela o puxa para fora. Sua caligrafiaé apinhada e confusa, e bem pouco dela é legível. Leio: “para o bemdo homem” e, então, várias frases adiante, “para preservar e sobre-viver, precisamos”, e mais para o fim da velha página deteriorando,ao que parece, “Eu me pergunto se tenho valor.”

Olho para Julie. – Você vai arquivar formalmente este material? Ou vai apenas

guardar aqui? – Os olhos dela são brilhantes na penumbra do estú-dio, e isso, juntamente com o modo como cultua obsessivamente omundo do pai, me leva a pensar que, para ela, ele é a única contin-gência que ela nunca questionará, a única sugestão ambiental à qualestá verdadeiramente escravizada. Teria B. F. Skinner desejado taldevoção cega ou a teria estimulado a ir adiante, abrir mais o leque embusca de novos reforços que gerariam novas respostas que dariamorigem a novos dados e idéias, enquanto os pombos bicam e osratos continuam a correr incessantemente.

– Veja isto – diz Julie, apontando para uma mesinha ao lado deuma cadeira reclinante. – Aqui está o pedaço de chocolate que meupai estava comendo logo antes de ir para o hospital – e quando olhopara baixo, lá está, um pedaço de chocolate escuro sobre um pratode porcelana com uma verdadeira marca da mordida de B. F. fos-silizada no naco.

– Quero guardar este chocolate para sempre. – Quanto tempo tem?– Tem mais de dez anos e ainda está em boa forma. Olho fixamente para ela. Um pouco depois, após ela sair do

quarto, ergo o quadrado roído e o estudo cuidadosamente. Vejoprecisamente onde a boca dele se encontrou com a borda do doce

Abrindo a Caixa de Skinner

43

Page 29: SKINNER-Abrindo a Caixa de Skinner

e, então, puxada por algum fio que não vejo, uma sugestão quenunca soube que estivesse vindo, ou talvez um traço de personali-dade totalmente livre (pois não sei a resposta para isso tudo, não seia resposta), levanto meu braço – ou meu braço é levantado – eimagino o chocolate em minha boca. Seria um chocolate velho,chocolate empoeirado, em meus dentes o gosto de algo muito es-tranho e ligeiramente doce.

M E N T E E C É R E B R O

44