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Pontifícia Universidade Católica de São Paulo PUC-SP Luís Fernando Crespo Serenidade: pensamento e poetar pensante em Heidegger Doutorado em Filosofia São Paulo 2016

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Pontifícia Universidade Católica de São Paulo

PUC-SP

Luís Fernando Crespo

Serenidade: pensamento e poetar pensante em Heidegger

Doutorado em Filosofia

São Paulo 2016

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Pontifícia Universidade Católica de São Paulo

PUC-SP

Luís Fernando Crespo

Serenidade: pensamento e poetar pensante em Heidegger

Doutorado em Filosofia

São Paulo 2016

Tese apresentada à Banca Examinadora da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, como exigência parcial para obtenção do título de Doutor em Filosofia sob a orientação da Profa. Dra. Salma Tannus Muchail.

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Banca Examinadora:

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Dedico à minha mãe, em seus 83 anos,

não apenas esta tese, mas o esforço

de minha vida, para que ela saiba que

valeu a pena...

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À CAPES, agradeço de forma singular, pelo auxílio sem o qual não

seria possível levar este projeto até o fim. Meu desejo é que muitas outras

pessoas possam ter o mesmo apoio.

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Agradecimentos

Na não breve caminhada de estudos, muitas são as pessoas às

quais não deixo de agradecer, mesmo que nem todas sejam citadas aqui.

À professora Salma Tannus Muchail, que orientou meus estudos –

para mim, sempre exemplo da humildade que a sabedoria traz. Sem os

questionamentos e observações rigorosos (que, muitas vezes, desestruturaram

minha pretensa certeza), nenhum crescimento seria possível.

Aos professores Dulce Mara Critelli e Edelcio Ottaviani, pela singular

contribuição quando da qualificação do meu trabalho; cada observação pode

me auxiliar para os últimos encaminhamentos necessários.

À professora Jeanne Marie Gagnebin de Bons, pelas reflexões

provocadoras na disciplina “Filosofia e Literatura”; principalmente pela ideia de

que uma tese não precisa ser chata, podendo ser bonita – muito me esforcei

para isso. Em sua pessoa, agradeço aos professores e alunos da PUC-SP.

Aos meus professores de alemão: Sissi (Araras), Giselle (Ribeirão

Preto) e Dirceu (Campinas), por terem aturado minhas curiosidades filosóficas

com relação ao idioma que, acima da aspereza da língua, pode ser saboreado

no mundo novo que abre.

Ao André Luís, por ser verdadeiramente companheiro em toda esta

caminhada.

A toda minha família, de sangue ou de amizade, por toda palavra de

incentivo; mas, principalmente, por compreender meus momentos de ausência.

À Heloísa Toledo, amiga que me auxiliou no germinar desta tese,

quando me presenteou com o livro de Fernando Pessoa; em seu nome,

agradeço a todos os amigos de Ribeirão Preto.

À Carolina Yaly, pela amizade e todas as discussões poético-

filosóficas que brotavam, mesmo em um ambiente hostil que é o do trabalho

administrativo; em sua pessoa, agradeço a todos os amigos com os quais

partilhei angústias e alegrias que eu vivenciava.

Por fim, agradeço ao existir, por me permitir quebrar laços e eu

perceber que sempre haverá caminhos.

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Serenidade: pensamento e poetar pensante em Heidegger

Luís Fernando Crespo

Resumo

Tomando como fio condutor a obra Serenidade (Gelassenheit), a

tese trata do referido tema como proposta filosófica; tal problemática é

encontrada na fase conhecida como “segundo Heidegger”. Tendo sempre,

como horizonte-guia, a questão do ser e seu sentido, o objetivo é entender de

que modo a serenidade pode ser afirmada como proposta e a quem ela se

destina. Serenidade é postura e, tratando da relação que o homem estabelece

consigo, com o mundo e com o ser, o centro da reflexão se dá de forma tríplice,

firmando-se nos problemas 1) do pensamento como resposta do homem ao

chamado do ser, 2) do mundo em sua constituição no dar-se dos entes e 3) do

ato de nomear as coisas. Como elemento singular, aparece a palavra que

nomeia – de modo especial, a palavra poética com seu nomear genuíno (como

afirma o pensador), não sujeitando o ente ao desejo da razão que calcula.

Conforme os temas aparecem e se relacionam, vê-se surgir um novo modo de

representação do mundo, que tem o deixar-ser (sein-lassen) como

característica principal. É exatamente o deixar-ser que aproxima pensador e

poeta. Enfim, o outro modelo de racionalidade que vigora no pensar de

Heidegger apresentado neste trabalho está em constante tensão com a técnica

– seu falar e seu fazer – que, por sua vez, segue os caminhos da razão

objetivadora e calculadora (cuja representante maior é a ciência). A tese se

encerra com textos de poetas de língua portuguesa que, em nosso

entendimento, permitem-nos fazer a experiência do poetar pensante.

Palavras-chave: Martin Heidegger; Filosofia; Serenidade; Pensamento;

Racionalidade; Poetar Pensante; Poesia; Habitar.

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Serenity: poetizing thought and thinking in Heidegger

Luís Fernando Crespo

Summary

Trailing the work Serenity (Gelassenheit), the thesis deals with that

issue as a philosophical proposal; this problem is found in the phase known as

"second Heidegger". Always having as horizon guide, the question of Being and

its meaning, the goal is to understand how serenity can be affirmed as proposal

and to whom it is intended. Serenity is attitude and, dealing with the relationship

that man establishes with himself, with the world and with Being, the center of

the reflection occurs in a threefold way, establishing itself in problems 1) of

thought as human response to the call of Being, 2) of the world in its

constitution and in beings’ occurences and 3) of the act of naming things. As a

singular element, emerges the word that names, in particular, the poetic word

with its genuine name (as stated by the thinker), not subjecting the being to the

desire of the reason that calculates. As the themes appear and relate, one

observes the appearance of a new way of representing the world, whose main

feature is the let-be (sein-lassen). It is exactly the let-be that approaches thinker

and poet. Anyway, the other model of rationality that prevails in the thinking of

Heidegger presented in this thesis is in constant tension with the technique - its

talk and its doing - which, in turn, follows the ways of objectifying and

calculating reason (whose main representative is science). The thesis

concludes with portuguese-speaking poets' texts that, in our view, allow us to

experience the thinking poetizing.

Keywords: Martin Heidegger; Philosophy; Serenity; Thought; Rationality;

Thinking Poetizing; Poetry; Dwell

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... no tempo da noite do

mundo, o poeta diz o sagrado.

(Martin Heidegger)

No fim do mundo de tudo

Há grandes montes que têm

Ainda aléns para além –

Um grande além mago e

mudo.

São paisagens escondidas

Que são o que a alma quer.

Ali ser, ali viver

Vale por vidas e vidas.

Todos nós, que aqui

cansamos

A alma com a negar,

Num momento de sonhar

Ali somos, ali estamos.

Mas, depois, volvidos onde

Há só a vida que há

Vemos que ante nós está

Só o que vela e que esconde.

Só dormindo os horizontes

Se alargam e nasce a visão

Dos montes que ao fundo

estão

E o sonho do além dos

montes.

(Fernando Pessoa)

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SUMÁRIO

Introdução .................................................................................................... - 11 -

Capítulo 1 – No caminho das palavras, o pensamento ................................ - 30 -

1.1. Das necessidades do caminho para a serenidade .......................... - 31 -

1.2. A palavra do autor em três textos ................................................... - 34 -

1.2.1. “O que quer dizer pensar?” ....................................................... - 35 -

1.2.2. “A coisa” ................................................................................... - 59 -

1.2.3. “A palavra” ................................................................................ - 76 -

Capítulo 2 – Pensamento, ciência, experiência – qual o espaço para a

serenidade? ............................................................................. - 91 -

2.1. O interessante e o que cabe pensar ............................................... - 92 -

2.2. Mundo e experiência ....................................................................... - 99 -

2.3. A fixidez do presente: a ciência e a subordinação do ser ao ente - 102 -

2.4. O ente para além de Gegenstand: o Geviert ................................. - 111 -

Capítulo 3 – Poesia e pensamento – a fala da serenidade ........................ - 118 -

3.1. A linguagem, a palavra e a poesia ................................................ - 119 -

3.2. Poesia e pensamento .................................................................... - 122 -

3.3. Poesia – da experiência do mundo para o acontecimento

no mundo ...................................................................................... - 125 -

3.4. A medida da ciência e da poesia .................................................. - 132 -

3.5. Para que poetas e pensadores? ................................................... - 140 -

Conclusão .................................................................................................. - 150 -

I. Dos caminhos da serenidade: poesia e filosofia no encontro

com o mundo ....................................................................................... - 151 -

II. Da experiência do poetar como pensamento: serenidade .................. - 154 -

III. A discussão que leva ao devaneio: o exercício do poetar pensante .. - 157 -

Referências ................................................................................................ - 172 -

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Advertência

Para os trechos das obras de Heidegger que entendemos serem fundamento

do que será discutido nesta tese, optamos por apresentar também o texto

original entre colchetes, em nota de rodapé.

Siglas das obras

CF – Caminhos de Floresta

CL – A caminho da linguagem

EC – Ensaios e conferências

US – Unterwegs zur Sprache (GA 12)

VA – Vorträge und Aufsätze (GA 7)

GA – Gesamtausgabe (Obras Completas)

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Introdução

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Aqui, tudo é caminho de um co-responder que escuta e questiona. Todo caminho corre o perigo de desencaminhar-se. Para percorrer tais caminhos é preciso exercitar o passo. Exercício pede trabalho, trabalho de mãos. Permaneça no caminho da autêntica necessidade e aprenda, neste estar errante a caminho, o trabalho do pensamento, um trabalho de mãos.

M. HEIDEGGER, A coisa

O pensamento se mostra como tarefa urgente ao homem – mas não

qualquer pensamento. O homem se vê rodeado de tudo o que fez do mundo,

mas percebe que as relações com o próprio mundo estão extenuadas; ele

necessita do que renove seu modo de estar sobre a terra. Este homem

caminha só, na indigência de um tempo sem direção e de coisas sem sentido.

O que falta ao pensamento é que ele se volte sobre si, o que exige a abertura

de um espaço no fazer cotidiano. “Abrir espaço” é, em meio a um falar

desmedido, fazer ouvir uma fala que ressoa pelo tempo; é como, ao adentrar a

floresta densa, abrir clareira na qual o homem possa parar diante do

indescritível.

O homem, como ente que pensa, encontra-se em um estado

catatônico de pensamento, dando origem a um vácuo, a partir do qual a ciência

conquistou espaço e se estabeleceu, firmando-se com a ideia de ser “o”

caminho para a verdade. Transferiu-se ao cientista a responsabilidade de

pensar; mas resta algo impensado que a ciência não alcança – nem o fará –

com seu modelo de racionalidade.1 Na indigência, na qual está o homem,

intentamos abrir espaço para um novo modo de estar, sereno.

1 Somos “[i]nfelizmente, formatados e domesticados pelo pensamento conceitual metafísico, pelo racionalismo moderno e idealista, onde só aparentemente se questiona [...].” (M. A. de CASTRO, “Apresentação”. In: M. HEIDEGGER, A origem da obra de arte, p.XVI.)

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É neste caminho que vamos nos colocar, pela urgência de um

pensamento que abarque mais da realidade e permita novo estar ao homem.

Um estar que não seja no desejo de domínio e exploração, mas de mais vigor

como ente que está entre outros e difere dos demais – o único que pode

responder aos apelos do ser2. Nosso esforço servirá para abrir um espaço, no

qual o homem tenha condições e esteja pronto para ser.

Esta é uma tese sobre o pensamento de Martin Heidegger (1889-

1976); problematizaremos conceitos que nos permitirão compreender

diferentes temas do âmbito que trata do pensamento e da poesia no

delineamento da postura do homem diante do mundo. Veremos a atualidade

das reflexões apresentadas pelo autor e as entenderemos como proposta para

o homem de qualquer tempo. Além das dificuldades de se abordar um

pensador do porte de Heidegger, nosso risco é o de abrir caminhos que não

conduzam significativamente ao “lugar” no qual suas palavras indicam a

construção de seu pensar.3

Uma tese é a abertura de um caminho de pensamento. Esta

concepção já nos coloca na via do modo como trabalharemos ao longo deste

texto: partindo das ideias de Heidegger, buscaremos abrir caminho para

interpretar a relação do homem com o mundo. O problema não é novo,

considerando estar presente na filosofia desde o desenvolvimento do

pensamento sobre o ser, com os pré-socráticos (Parmênides indica que

“pensar é ser”). Falar da relação homem-mundo é falar do ser, do homem em

seu existir e do existir dos entes. A proposta heideggeriana recoloca o

2 Entendemos haver um sentido quase único entre as expressões “do ser” e “de ser”. Na primeira, temos a determinação de “ser” como substantivo, enquanto, na segunda, permanece “ser” como verbo; porém, ambas fazem referência ao fundamento da existência. Por exemplo, “chamado do ser” e “chamado de ser” é um mesmo chamado que a existência faz para que o homem se coloque em um espaço entre o ser e o ente, no vigor do Da-sein (uma explicitação mais detalhada do uso do termo “Da-sein” encontra-se mais adiante, na nota 15 da página 18). Optamos pela expressão “do ser”, fazendo diferente apenas quando a situação o exigir. 3 Dificuldades, principalmente, ao considerarmos que a extensão da Obra Completa (Gesamtausgabe) está projetada para 102 volumes – o que não permite ao pesquisador ter a pretensão de elucidar as ideias em todo o caminhar do pensador, sendo possíveis apenas recortes. Ainda, de modo singular, a nós se mostra como grande desafio, não apenas as diferenças linguísticas, mas também a compreensão dos jogos que o autor faz com as palavras – nem sempre tão perceptíveis.

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problema, mas o faz a partir de novo ângulo de reflexão4: ao invés de ter o

homem como ente que questiona5, ele aparecerá como o ente que responde –

tal ideia altera o posicionamento do homem no mundo.

A mudança de posição muda a postura do homem, pois ela deverá

aparecer como espera (não passiva) diante do mesmo mundo, dos mesmos

entes. “Serenidade”6 é o nome que o autor dá a tal postura, que deve

possibilitar um estar-junto-às-coisas em uma relação de sentido; de maneira

inicial, o termo pode ser tomado em seu significado amplo e comum de

“postura que não desespera nem se perturba diante dos acontecimentos”, mas

veremos a necessidade de que o conceito seja lapidado. Muitas vezes

confundida com simples quietude e não-ação, a ideia de serenidade cai na

trivialidade.

Na tentativa de entender de que modo se encaixam, no desenho do

caminho percorrido pelo autor, nossa pretensão não será apenas a de

relacionar os conceitos “horizontalmente”, verificando onde e de que modo

aparecem; tentaremos uma “empreitada vertical”, na busca de suas raízes

(sejam as já conhecidas ou as que podem aparecer como ramificações).

Acompanhando as questões que nos guiarão, é importante ter em mente o

tema da serenidade: O pensar é algo de conhecimento óbvio para o homem?

De que modo o pensamento pode ser entendido como “fechado” para o mundo

e de que dependeria uma abertura? Como os entes podem ser repensados e

qual a implicação deste novo pensar na relação que o homem estabelece com

4 Embora haja diferentes sentidos para o termo “reflexão” no cenário filosófico, ele será utilizado sem grandes distinções, ao longo da tese, significando, diretamente, o “ato de lidar com as ideias, relacionando-as”. Assim, será possível encontrar “reflexão do filósofo”, “reflexão do cientista”, “reflexão da ciência”, “reflexão comum” etc. 5 Ser e tempo propunha a busca pela questão do ser e seu sentido a partir do homem, único ente que pode colocar tal questão: “O entendimento-do-ser é ele mesmo uma determinidade-do-ser do Dasein”. (M. HEIDEGGER, Ser e tempo, p.59.) 6 “Serenidade” é termo que tem origem latina em serenitas,-atis, e está diretamente relacionado a um modo de estar do homem, a uma postura de paz, tranquilidade, suavidade e não perturbação. Para este trabalho, porém, é importante tomarmos o termo como tradução de Gelassenheit, título de obra de Heidegger; a etimologia alemã auxilia no aprofundamento de nossa reflexão. Dividimos o termo em três partes – ge-lassen-heit: 1) “ge” é prefixo que dá a ideia de conjunto que une “coisas” dentro de um mesmo conceito, de uma mesma categoria, 2) “heit” é sufixo para substantivação de termo; e 3) o verbo “lassen” é o centro de conteúdo do termo e mais nos interessa, significando “deixar”: deixar estar, deixar ser, renunciar a algo. Deste modo, Heidegger fala da Gelassenheit como uma postura do homem diante de toda a realidade de seu mundo e de suas possibilidades. Gelassenheit indica algo não usual para nossa razão comum: trata-se de uma postura de totalidade junto aos entes, na compreensão de que, tanto o Da-sein quanto os demais entes, têm de estar na liberdade para a manifestação do ser.

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eles? Como entender os conceitos: linguagem, palavra, palavra poética e

postura poética? Qual serenidade é possível diante do turbilhão7 no qual o

homem está?

Peter Trawny afirma:

O pensamento de Heidegger é, no meu entender, essencialmente esotérico, sendo a partir desse esoterismo que diversos excursos exotéricos podem ser esclarecidos. Para Heidegger, o pensamento é uma travessia incessante para o adyton8, uma resposta sempre ainda pendente à sua própria im-possibilidade. O futuro da filosofia talvez dependa disso, a saber, se ela é ou não essa resposta pendente, essa abertura.9

É neste âmbito do esotérico que pretendemos adentrar, intentando

falar daquele significado denso que as palavras trazem. Pleno de riscos é o

caminho que se abre com nossa própria experiência do pensar; experiência

esta que, após o embate com as ideias do autor, não nos dá mais a certeza de

ser genuína. Isto ocorre, pois o pensar de Heidegger nos desconcerta,

revolvendo os fundamentos daquilo que, em primeira instância, era tido como

claro e certo. No caminho que percorreremos, conceitos10 que, antes, não

denotavam grandes problemas, tornar-se-ão graves.

O que este trabalho apresenta é um caminho de interpretação; é

trabalho não unicamente histórico, no entendimento de uma filosofia do modo

como se dá no tempo, mas hermenêutico, no desvendar o conceito, fazendo o

pensar vir de dentro da palavra. Adentrar no âmbito do esotérico é buscar a

relação com o mundo que o autor estabeleceu como base de seu pensamento.

Como indicado na citação anterior, por meio do esotérico se torna possível

compreender o exotérico.

7 Imageticamente, trouxemos o turbilhão; a ideia é a de que o homem é arrastado para fora daquele que poderia ser entendido como seu lugar na terra, entre os demais entes. Com esta imagem, expressamos a tamanha força de algo que impossibilita – ou, pelo menos, dificulta – o estar do homem na relação com o ser, por meio da relação com os entes. No turbilhão, tudo fica fora do lugar e as coisas perdem o sentido. Heidegger fala de tal força como “avalanche”, na qual o espiritual do homem se perde: “É a avalanche do que chamamos o demoníaco.” (M. HEIDEGGER, Introdução à metafísica, p.72.) 8 “Adyton” é o lugar do inacessível no templo grego; diferente do lugar comum, nele apenas é possível adentrar com a permissão de um deus. O conceito é o mesmo do que, no tabernáculo (tradição hebraica), é chamado de “Santo dos Santos”. 9 P. TRAWNY, Adyton..., p.26. 10 Como exemplo: mundo, experiência, coisa, reflexão, pensamento, poesia etc.

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A problemática da relação do homem com o mundo nos apresentará

o modo como tal ente constitui seu mundo, especificamente na experiência de

nomear. Por sua vez, tal experiência nos remete ao problema da palavra e do

uso que o homem faz dela. Assim, o caminho que seguiremos nos levará a

tratar da palavra poética e a primeira necessidade será enxergar de que modo

a palavra foi forjada pelo autor para dar vazão às suas ideias, fazendo-as

vigorar; a segunda necessidade será a de verificar a diferença da palavra em

seu uso comum ou científico para o poético. Desafio é buscar, por meio de

conceitos, a possibilidade de quebrar conceitos; atividade paradoxal? De modo

algum, quando se reconsidera o entendimento que comumente se tem sobre o

pensar e de que modo este se coloca ao homem em seu existir. Pensamento,

palavra e existência se relacionam, intimamente, no homem.

O modo segundo o qual olhamos para o pensamento de Heidegger

nesta pesquisa (e as escolhas feitas ao longo de sua construção) é uma

possibilidade de reflexão, a partir de nossa percepção da obra tomada; neste

sentido é que será sempre presente nossa preocupação em retomar as

palavras do autor e de seus comentadores para não cairmos unicamente em

nossa intenção. A pretensão deve ser pensada a partir das palavras do próprio

Heidegger, quando fala do poeta Hölderlin:

Como se a sua obra [de Hölderlin] precisasse disso [justiça] e, em especial, pela mão dos maus juízes que há por aí hoje em dia. Hölderlin é abordado de um modo “histórico”, desconhecendo-se aquele único facto essencial de a sua obra, ainda privada de tempo e de espaço, já ter superado o nosso espalhafato “histórico” e fundado uma outra História, aquela História que se inicia com a luta pela decisão sobre a vinda ou a fuga do deus.11

Os “maus juízes” são os que não executam bem a atividade de

desenvolver um julgamento; não são de modo simplista aqueles que têm uma

vontade má e que se debruçam sobre a obra com a finalidade de corrompê-la –

embora não tenhamos condições de excluir a possibilidade de quem queira

forjar interpretações. Mau juiz é também aquele que não tem condições de bem

julgar por não enxergar a partir dos parâmetros dentro dos quais a obra pode

vigorar. Isto pode ocorrer, por exemplo, quando uma obra filosófica ou poética

11 M. HEIDEGGER, Hinos de Hölderlin, p.9.

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é apropriada pelas diversas ciências, considerando-se a parcialidade no ângulo

de visão destas. Uma obra não vigora sozinha, pois faz parte dela o seu

entorno.

Bem corremos o risco de nos tornarmos maus juízes; mesmo assim,

restará a consideração de que um “avanço” não se dá apenas de modo linear.

Sabemos que a filosofia assim se fez ao longo da história, pois, nem todo

desvio de caminho significa que ele não deveria ter sido percorrido.

Tendo o conceito de serenidade como meta, o caminho que

percorreremos problematizará temas que entendemos constituírem base para a

reflexão – de modo especial, os temas do pensamento e da poesia em uma

relação tal que permita entender pensador e poeta como próximos em seu

estar no mundo. Os elementos trazidos vêm da filosofia de Heidegger como um

todo, mostrando haver nela a unidade de um centro ordenador, embora as

problematizações abram caminhos diversos de reflexão. A diferença de tais

caminhos pode ser observada tomando-se por base a comumente aceita

divisão entre os chamados “primeiro Heidegger” e “segundo Heidegger”.

Com Ser e tempo, o autor se apresenta no cenário filosófico com um

projeto incisivo no questionamento da tradição filosófica: rever o que foi

construído ao longo do tempo, percebendo os desvios12 que tiraram o filosofar

daquilo que deve ser seu centro ordenador (a questão do ser e seu sentido),

ultrapassando os preconceitos13 e recolocando a filosofia em seu caminho

original (no sentido de “origem”). Eis um projeto mais destrutivo do que

restaurador:

Ser e tempo era, porém, um estranho tratado, como dele diria o próprio autor. Previsto em duas partes, saiu incompleto, contendo apenas duas das três seções programadas da primeira parte, em desacordo com o plano delineado em sua introdução. E incompleto permaneceu, sem que a segunda parte da obra e muito menos a terceira seção da primeira, com

12 M. HEIDEGGER, Ser e tempo, p.33: “Aquilo que de modo fragmentário e numa primeira investida foi um dia arrancado dos fenômenos pelo supremo esforço do pensamento de há muito se trivializou”. [“Und was ehemals in der höchsten Anstrengung des Denkens den Phänomenen abgerungen wurde, wenngleich bruchstückhaft und in ersten Anläufen, ist längst trivialisiert”. (Ibid., pp.32)] 13 O autor fala que o ser foi entendido como conceito mais universal, indefinível e óbvio. (Cf. Ibid., pp.35-39)

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o título inverso de Tempo e ser, tivessem vindo a lume. Contudo o mais estranho foi que, voltando ao problema-mor da tradição filosófica, rejeitado ou neutralizado pelas correntes modernas, esse fragmento de uma obra segmentada revolveu a especulação metafísica a que aparentava retornar.14

A analítica do Da-sein15, inaugurada em Ser e tempo, abriu caminho

para o questionamento do ser; é caminho que se abre a partir de um ente

singular, o homem. Como ente que problematiza – por ser o único a se

relacionar com a questão do ser, questionando seu próprio ser – o homem foi a

via de acesso por meio da qual o projeto heideggeriano seria possível. Mas a

incompletude do projeto talvez seja a possibilidade para a evolução

problemática do “segundo Heidegger”.

A filosofia não insere o homem em seu ser ente como Da-sein.

Enquanto aprendizado de uma história na qual o pensamento se deu ao longo

do tempo, o filosofar não aproxima do habitar. A filosofia como “história do

pensamento” fala, mas não ouve. A necessidade que se mostra é a de que o

homem aprenda a ouvir, a ver e a deixar-ser, pois apreender um pensamento é

ouvir e, neste ponto, pensador e poeta estão próximos – ambos ouvem os

apelos que não são transparentes ao homem comum.

14 B. NUNES, Passagem para o poético, p.9. 15 Optamos pela utilização do termo sem traduzi-lo, por conta das diversas e divergentes traduções existentes. O termo Dasein é o infinitivo substantivado de sein (ser/estar), significando a presentificação de algo, ou seja, o “estar presente”; por volta dos séculos 17/18, significava exatamente “presença” e logo acabou assumindo, em âmbito filosófico, o significado de “existência” no lugar do termo de origem latina Existenz; do mesmo modo, foi assumido no vocabulário poético, no sentido de “vida”. (Cf. DUDEN, Das Herkunftswörterbuch, p.208) Deste modo, Dasein pode ser entendido como o estar-presente de algo, é aquilo que está sendo no momento presente; aquilo que está sendo de algum modo é o ente (termo com origem no particípio presente latino do verbo ser [esse]). Assim, o ente é o que “está sendo”, é o Dasein. Mas Heidegger faz uso específico do termo, forjando-o para que pudesse dar o sentido que pretendia no contexto de sua construção teórica: ele divide o termo em duas palavras alemãs, a saber, “da” (aí) e “sein” (ser); o uso do hífen bem indica o destaque objetivado (Da-sein). O autor consegue dar um significado específico, reforçando a mesma ideia de “estar presente”, usando o termo para um determinado modo de existir, que é o do homem; neste sentido, é também trazida a ideia de que no existir do homem está o próprio ser. O homem não é o ser de qualquer modo, mas o ser aí, determinado em um tempo/contexto que diz de sua singularidade. Embora, costumeiramente, sejam tratados como equivalentes os termos “homem” e “Da-sein”, o Da-sein não é propriamente o homem, mas sim o modo de ser específico do homem.

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O pensamento que embasa nossa reflexão teve origem após a

viragem16 (Kehre) da filosofia heideggeriana. Caso fosse considerado de modo

simplesmente histórico, na verificação de quando os conceitos aparecem de

modo exato, tal pensamento seria incomensurável, já que faz referência ao

período no qual está a maior parte da produção do autor. Optamos por eleger

textos a partir dos quais pudéssemos abrir caminho, escolhendo conceitos que

contribuíssem para a reflexão, do modo como a elaborávamos. Mesmo

delimitando o âmbito dos conceitos, percebemos a incomensurabilidade; tanto

que, adequadamente, pode ser utilizada aqui a metáfora do bosque, tão cara a

Heidegger: a noção do que se vê, olhando o bosque de fora, não é

proporcional à dimensão que se abre quando nele se adentra.

A mudança de orientação da filosofia heideggeriana – ainda que se

mantenha sempre no âmbito da questão do ser17 – é uma viragem que altera o

“lugar conceito” por meio do qual se torna possível problematizar o ser. Sendo

o ente que pergunta sobre seu ser, o homem é quem primeiro deveria ser

questionado (reflexão realizada em Ser e tempo); porém, no desenvolvimento

do projeto do autor, outros conceitos se revelaram como mais fecundos para o

tratamento da questão. E, no lugar do homem, ganha consideração singular a

linguagem – que não significa “fala” ou “expressão”, mas a própria linguagem

16 A viragem é a identificação (academicamente aceita) do “momento” no qual ocorre a significativa mudança de rumos no caminho que o pensador deu para seu filosofar. A passagem para o chamado “segundo Heidegger” pode ser observada inicialmente na obra que trata da essência da verdade, de 1930, a saber, Vom Wesen der Wahrheit (GA, Band 9). Benedito Nunes afirma que “na temática do segundo Heidegger, o círculo hermenêutico a que são concêntricos os dois outros, o histórico e o ontológico, coincide com o da linguagem, quer em virtude da pergunta mesma, que é discurso (lógos), quer em virtude das palavras. Sem linguagem não haveria desvelamento nem retroveniência à origem: origem não absoluta – o ente enquanto presente, esse êxtase do tempo que despontou uma vez na língua grega, o idioma da Filosofia”. (B. NUNES, Passagem para o poético, p.211) Em Platons Lehre von der Wahrheit (GA, Band 9), no início da década de 30, Heidegger identifica claramente a mudança de pensamento sobre a verdade, no Mito da Caverna. Tal mudança foi a responsável pelo esquecimento do ser ao longo do tempo pois, após a filosofia platônica, a experiência do ser no existir dos entes (algo bem presente nos primeiros pensadores da filosofia) solidificou-se e permitiu o desenvolvimento da metafísica como tradição. Em Brief über den Humanismus (GA, Band 9), de 1946, pode ser encontrada, de modo explícito, a viragem, na problematização da linguagem e na aproximação de poetas e pensadores. 17 Werle afirma:

...em Ser e tempo, a questão do ser foi somente colocada, mas não resolvida – aos poucos Heidegger irá notar que a questão em si não tem solução, e que ela deve ser sobretudo cultivada e mantida acesa como tarefa constante do pensamento. O que permanece posto para o pensamento subsequente a Ser e tempo é o desenvolvimento de sua questão fundamental. Trata-se, para Heidegger, de operar uma desvinculação da problemática do ser calcada em categorias contaminadas pela metafísica e de buscar um acesso mais direto ao ser, que sempre transcende o ser do homem”. (M.A. WERLE, Poesia e pensamento em Hölderlin e Heidegger, pp.34-35)

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do ser: é o fato de entes existirem que vem ao homem e se dá como

linguagem18 – o ser se dá como linguagem.

De algum modo, o ser se deixa questionar e o elemento pelo qual é

permitido o questionamento é a linguagem – não a “linguagem falada” pura e

simplesmente, mas a linguagem na qual o homem se vê lançado desde

sempre. Inserido na linguagem que seu existir recebe, é, então, preciso que se

decida sobre o ponto pelo qual começar o questionamento. Tal experiência de

uma linguagem “original” da existência deve ser buscada nos elementos pelos

quais ela melhor pode ser expressa; a pergunta a se fazer é sobre qual seria tal

“melhor expressão” da linguagem.

Se devemos buscar a fala da linguagem no que se diz, faríamos bem em encontrar um dito que se diz genuinamente e não um dito qualquer, escolhido de qualquer modo. Dizer genuinamente é dizer de tal maneira que a plenitude do dizer, própria ao dito, é por sua vez inaugural. O que se diz genuinamente é o poema.19

A indicação de Heidegger é a de que se tome a mais singular

expressão da palavra, que é a palavra poética. Nesta empreitada, a própria

questão do pensamento é posta, pois, ao tratar da linguagem/palavra poética,

parte-se para um modo de uso da linguagem que não segue o formal e

instituído; dizendo de outro modo, na pesquisa sobre o modo poético de

pensar, é questionada toda a tradição de pensamento e linguagem. O novo

pensamento é apresentado como via para a essência da linguagem poética,

pois o autor vê serem necessários outros parâmetros de entendimento.

A filosofia de Heidegger, em toda sua extensão, mostra a

necessidade de que seja revista a tradição de pensamento que vigora na

história da filosofia (que ele chamou de “tradição metafísica”). Apenas como

exemplo, pode ser trazida a proposta de destruição da história da ontologia

18 Daí o entendimento de que não é o homem que tem a linguagem, mas o contrário, pois a consciência de existir que ele tem já se dá dentro de uma realidade que “aparece” a ele de certo modo – que é a linguagem do ser. O pensador afirma que “no pensamento, o Ser se torna linguagem. A linguagem é a casa do Ser. Em sua habitação mora o homem. Os pensadores e poetas lhe servem de vigias”. (M. HEIDEGGER, Sobre o humanismo, pp.24-25) 19 Id., A linguagem; In: CL, p.12. [“Wenn wir darum das Sprechen der Sprache im Gesprochenen suchen müssen, werden wir gut daran tun, statt nur beliebig Gesprochenes wahllos aufzugreifen, ein rein Gesprochenes zu finden. Rein Gesprochenes ist jenes, worin die Vollendung des Sprechens, die dem Gesprochenen eignet, ihrerseits eine anfangende ist. Rein Gesprochenes ist das Gedicht”. (Id., US, p.14)]

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(Destruktion der Geschichte der Ontologie), indicada já em Ser e tempo, no §6:

“A tradição que assim se faz dominante, em vez de tornar acessível de pronto e

no mais das vezes o que ela ‘transmite’, ao contrário, encobre-o.”20

Considerando-se que o conhecimento filosófico sempre parte de determinado

ponto ao qual já se chegou anteriormente, o problema ocorre quando, por

pequeno desvio que seja, a filosofia é posta fora daquilo que lhe é próprio: tudo

o que a ela é acrescentado segue no mesmo desvio. Para o autor, depois de

um “brilho” inicial no nascimento da filosofia, com a experiência dos primeiros

pensadores gregos, já ocorrera tal desvio que, desde então, foi se solidificando

na tradição metafísica.

No mesmo questionar sobre o pensamento, implícita está a

problematização da razão em seu modo mais comumente aceito, a saber, a

científica. Esta se apresenta como único modo de racionalidade capaz de dirigir

o homem na busca pela verdade, assumindo a ideia de que “ciência e

pensamento se equivalem”. Ao contrário, o autor afirma, de modo incisivo, que

a “ciência não pensa”21. Tal asserção se mostra de modo a incomodar o leitor

e, neste sentido, buscamos verificar detidamente seu significado. O

desenvolvimento que daremos a tal afirmação ao longo desta tese nos

permitirá identificar pontos fundamentais do que seja o pensar – apenas no

entendimento de tal conceito é que se tornará possível a reflexão sobre a

palavra poética como expressão da linguagem do ser. Em última instância, é o

próprio pensamento que passa a ser questionado e O que quer dizer pensar? é

o texto que nos possibilita alargar os horizontes de reflexão.

Revisto o modelo de racionalidade e pensamento, aparece como

clara a ideia de que a filosofia (tradição) se mostra como um projeto que

caminha para seu fim; porém, há o pensamento, além da filosofia. O

pensamento como experiência similar à realizada pelos pensadores no início

da filosofia. O que cabe ao pensamento quando chegamos ao fim da filosofia

como plenificação do projeto metafísico da tradição? Resta aquilo que ainda

não foi tomado em consideração, o elemento esquecido ao longo do tempo: o

20 M. HEIDEGGER, Ser e tempo, p.85. [“Die hierbei zur Herrschaft kommende Tradition macht zunächst und zumeist das, was sie ‘übergibt’, so wenig zugänglich, da sie es vielmehr verdeckt”. (Ibid., p.84)] 21 Id., O que quer dizer pensar?; In: EC, p.115. [“Die Wissenschaft denkt nicht”. (Id., VA, p.133)]

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ser em sua revelação. A revisão do paradigma de racionalidade permite tratar

da palavra poética; o que buscamos mais especificamente é a relação do

homem com o mundo, na construção da serenidade – permitida pelo pensar

meditativo e poético. É na tomada de um novo pensar que podemos refletir

sobre a proximidade essencial entre pensamento e poesia, pensadores e

poetas.22

A relação do homem com o mundo não se dá em abstrato, mas em

uma existência determinada, em meio às coisas que são. No intuito de trazer

para a discussão o modo como o homem recebe e considera as coisas, o texto

A coisa nos servirá de guia. A necessidade que se mostra é a de que nos

detenhamos no modo como o homem está em relação com as coisas. Será

preciso revisar, então, a experiência que se faz do pensar e de que modo a

filosofia heideggeriana propõe uma reflexão “fora” do que comumente se

entende por “racionalidade” – com isso, objetivamos questionar o modo como o

homem se relaciona com o mundo ao seu redor.

O modelo de racionalidade identificado no âmbito científico é o que

se faz presente e se sobrepõe a outros na contemporaneidade – trazido da

modernidade em seu ideal de razão. Tal modelo intenta construir um discurso

sempre “certo” das coisas que se apresentam no mundo, buscando falar “a

verdade” sobre a realidade – o sucesso disso traz a segurança ao homem

comum, mas, muito mais, traz a credibilidade para a ciência. Mas de que modo

é construído tal discurso? Ele apenas vigoraria em um mundo plenamente

cognoscível em suas entranhas; mas a capacidade racional do homem não tem

condições de indicar o que seja a plenitude do conhecer a realidade.

A ideia de um mundo “plenamente cognoscível” traz não apenas a

capacidade humana de conhecer, mas o mostrar-se das coisas que compõem

o real: elas devem ser cada vez mais transparentes, dando-se integralmente ao

homem, na experiência que ele faz delas. Para que isso seja possível, então, a

razão (nos moldes da ciência) constrói uma interpretação das coisas que passa

a ser entendida como a verdade das próprias coisas. Imageticamente falando,

22 “Abîme et proximité, différence extrême et appartenance au Même doivent être pensés ensemble pour que soit saisi le rapport des poètes et des penseurs qui, séparé par l’abîme, séjournent cependant dans une proximité essentielle.” (B. ALEMANN, Hölderlin et Heidegger, p.136)

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se a interpretação fosse uma máscara das coisas, a razão científica toma a

máscara como sendo a coisa. A ciência mascara a realidade; e o sentido disso

reside no fato de que a ciência crê ter condições de conhecer o “todo” – pelo

menos, é o todo construído por ela mesma. Neste contexto, “estabeleceu-se

um discurso público no qual a filosofia só pode aparecer como ciência”.23

Na reflexão que faremos, tocando os temas “razão científica”,

“mundo” e “coisa”, a obra A coisa se mostra de capital importância por trazer a

ideia de que a realidade (as coisas que a compõem) “vai além” do que a razão

pode compreender e expressar. A citada obra é importante no sentido de

encontrar nas coisas que se dão na realidade um entrecruzamento de sentidos

que fazem delas não simplesmente o que se pode ver, mas o que trazem. Em

tal desenvolvimento, o próprio mundo se revela de outro modo e a noção de

“espaço” passa a ser revista por meio de um olhar lançado para as ideias de

“proximidade” e “distância” das coisas em relação ao homem.

Heidegger pensa a experiência do homem no e com o mundo, a

partir da experiência originária do início do pensar filosófico, na Grécia Antiga.

O autor entende que, naquele contexto, o questionamento filosófico

proporcionou “a” experiência junto ao ser. Tal experiência se deu como um

clarão, o brilho de um instante na história, que se apagou, mas deixou

guardada uma vivência – esta, que pode ser reconhecida e resgatada, pois

está “adormecida” nas palavras dos pensadores gregos, que foram

cristalizadas ao longo do tempo. A palavra grega não é simplesmente a fala

registrada, mas a tentativa de grafar uma experiência de mundo realizada por

aqueles que não eram só filósofos, mas também poetas. A palavra grega nos

traz a possibilidade de refletir sobre a origem do pensamento, da experiência

com o ser. Marlène Zarader afirma que

as palavras fundamentais não são apenas instauradoras de regiões. Apontam para um centro. Se é certo que podem ser desdobradas em direcção à sua diversidade, só encontram todo o seu sentido na condição de serem reenviadas à sua unidade primordial. Esta unidade – que constitui “o que há que pensar” nos textos do começo, o que espera por ser pronunciado, para lá do começo e, contudo, graças a ele – qual é o seu nome? Considerada do ponto de vista do seu

23 P. TRAWNY, Adyton..., p.43.

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enigmático teor, chamar-se-á “ser”; considerada do ponto de vista de sua função na história do pensamento, chamar-se-á “origem”.24

A experiência trazida pela palavra grega apenas pode ser vivenciada

pelos próprios gregos da Antiguidade, restando para a história apenas

fagulhas, indicações de algo que lá existiu. O conceito de “cristalização” das

palavras quer representar o processo pelo qual as palavras gregas foram

perdendo seu aspecto vivaz – experiência viva – e foram se solidificando.

Tendo por base este material sólido é que foi construída a metafísica (tradição).

Segundo o pensador alemão, a mudança de caminho no pensar grego foi

iniciada com nova interpretação para a verdade – alétheia –, identificada no

Mito da Caverna, no Livro VII, d’A República, obra de Platão.

Para o resgate da experiência original, na meditação sobre a

linguagem, é a palavra poética (“dito que se diz genuinamente”) que possibilita

o “ir além” dos parâmetros estabelecidos. A poesia traz a experiência de

mundo do poeta junto às coisas, não as dirigindo para um mostrar-se

determinado, mas na espera de que o próprio ser se revele nelas, como

linguagem do próprio ser.

É no pensar a palavra poética que a vivência de mundo do poeta

abre caminho para a experiência dos pensadores-poetas da Antiguidade. Isto

não significa voltar a realizar a mesma experiência – impossível pelas

diferenças contextuais. O que Heidegger intenta é a experiência ao modo dos

gregos, na construção de mundo do poeta da poesia de sempre – nos

“genuínos” poetas, segundo ele. Assim, ele elege alguns pensadores e poetas

por meio dos quais a experiência poética possa ser melhor compreendida.

24 M. ZARADER, Heidegger e as palavras da origem, p.24.

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Heidegger, um pensador, fala de Hölderlin, um poeta; sua tentativa é

tocar a obra de Hölderlin, não de dentro da filosofia, mas da própria experiência

poética. Falar de poesia, não significa falar de literatura. A literatura fala da

experiência literária de um autor, enquanto Heidegger intenta falar da própria

experiência poética que é origem e consequência das palavras do poeta. A

poesia de Hölderlin funda “outra História”, não marcada pela passagem de um

tempo cronológico, mas marcada pelo mundo que a experiência poética

permite. Tendo por base tal poesia, seria possível diagnosticar a doença de

“nossa” época e também a prescrição de como remediá-la.25 Em Heidegger,

não encontramos um filósofo que, pela filosofia, quer dirigir os caminhos de

uma poesia; mas nos deparamos com o pensador que busca entender

pensamento e poesia em uma mesma vivência de mundo.

E por que Hölderlin? Primeiramente, é importante perceber que o

filósofo alemão tem como objetivo maior, indicar os caminhos perdidos pela

filosofia ao longo do tempo; neste sentido, observando-se a situação histórica

vivida pelo povo alemão após a guerra, o autor entende também a necessidade

de que este povo retomasse seu caminho de realização na História. Há assim,

dois propósitos que podem, de um ou outro modo, ser alinhados. Heidegger

buscou em Hölderlin um herói: seria a via de acesso para seu projeto e

também seria “fazer justiça” a um poeta alemão que não teve seu valor

reconhecido em sua época.

Efetivamente, com Hölderlin, Heidegger reuniu em uma mesma

figura: 1) um personagem propriamente alemão, pessoa na qual poderia ser

reconhecido “qualquer alemão”, podendo se tornar um dos grandes nomes

para a reconstrução da identidade alemã, 2) um poeta, respondendo à sua

busca pelo que chamou de “expressão genuína” da palavra, que é a palavra

poética, e 3) um poeta que traz em sua problematização aquilo que podia ser

encontrado nos primeiros pensadores-poetas gregos. “Em nenhum poeta o ser-

25 Cf. J. YOUNG, Heidegger’s philosophy of art, p.75.

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aí histórico, a urgência de criar e o destino da obra são tão intimamente um

como no caso de Hölderlin”26, afirma Heidegger27.

Na experiência de Heidegger com a poesia de Hölderlin, buscamos

o entendimento que o autor propriamente tem do que seja a poesia – suas

ideias foram, de modo especial, desenvolvidas na obra Hinos de Hölderlin

(tradução de Germanien e Der Rhein); de certo modo, tais ideias são

apresentadas brevemente em Hölderlin e a essência da poesia. Inicialmente,

para esta tese, o poetar é um dizer que se revela singular, desde que se

entenda a própria essência da poesia. O autor desenvolve a reflexão sobre tal

essência, a partir de cinco considerações: 1) o poetizar como a mais inocente

das ocupações humanas; 2) a linguagem, como um bem dado ao homem (o

mais perigoso dos bens); 3) a existência humana como diálogo; 4) o poetar

como atividade do poeta que instaura o ser com a palavra e 5) a morada

humana na terra, que apenas pode ser genuína quando poética.28

Chegando ao entendimento de algumas importantes características

da poesia – e podendo relacioná-la ao pensamento meditativo29–, nossa

investigação encaminhar-se-á para sua finalização sobre o pensamento e

serenidade, na construção do próprio mundo do homem, buscando a

26 M. HEIDEGGER, Hinos de Hölderlin, p.14. 27 Cf. J. YOUNG, Heidegger’s philosophy of art, pp.69-83; não podemos deixar de indicar a crítica apresentada por tal autor ao posicionamento filosófico de Heidegger com relação à proposta de retomada do modelo grego de experiência do mundo – que chama de grecocentrismo – e não menos pelo que construiu da figura de Hölderlin, como “o poeta dos poetas” e “o poeta dos alemães”. Tal autor indica – como crítica – a identificação que Heidegger faz de sua obra com a de Hölderlin: no intento de bem construir tal identificação, Heidegger perderia o exato ponto de separação entre o fazer do pensador e o do poeta, confundindo-os; Young fala de um projeto heideggeriano que seria de pensamento, sem deixar de ser poético nem político. Ele afirma:

“Heidegger continued to think and write about Hölderlin until the end of his life. But 1934-46 marks, I believe, the period of his intense engagement, the period of his struggle to comprehend just what it was that the poet meant to him. By 1946, by ‘What are Poets for?’, he had, it seems to me completed his appropriation of Hölderlin. Thereafter the relationship has metamorphosized into a kind of identity. The sense of struggle, of comprehension being in the process of being forged and reforged, tangible in the earlier texts, is absent from the later.” (J. YOUNG, Heidegger’s philosophy of art, p.70 [note 1])

Por outro lado: “Qu’Hölderlin soit ici qualifié de poète du poète ne doit pas surprendre: l’expression se trouve déjà chez Hölderlin pour qualifier Homère, ‘le poète des poètes’, dans un fragment sur Achille prévu pour la revue Iduna qui ne devait pas voir le jour.” (J.F. MATTÉI, Heidegger et Hölderlin – le quadriparti, p.94) 28 Cf. M. HEIDEGGER, Hölderlin e a essência da poesia. In: Explicações da poesia de Hölderlin, 2013, pp.43-59. [Id., Hölderlin und das Wesen der Dichtung; In: Erläuterungen zu Hölderlins Dichtung, pp.33-48.] 29 O conceito de “pensamento meditativo” (Besinnung) será desenvolvido adiante, quando ele será posto em oposição ao “pensamento calculativo” ou “calculador”, “objetivador”, da ciência.

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realização humana em uma morada poética. Não se trata de verificar o “mundo

poético de cada poeta”, buscando-se uma síntese; no fundo, ao considerar o

mundo como a construção de um conjunto de interpretações e modos de estar,

Heidegger indica que a construção de mundo do poeta revela um modo de se

relacionar que deixa as coisas serem o que são. O pensamento meditativo

proporciona o mesmo.

Elemento central a ser considerado é o nomear. Ele constitui o

mundo, pois, não nomeado, o mundo não é. Esta tese desemboca na ideia de

que o mundo nada mais é que a construção que se faz dele, tendo o nomear

como ato segundo, já que o primeiro é o próprio dar-se das coisas em uma

experiência pré-racional – entendendo-se que a experiência racional já seja a

tentativa de traduzir o aparecer das coisas para a palavra (falada ou escrita)

que, por sua vez, é signo que obedece ao modelo de racionalidade aceito. O

homem pode realizar sua existência de muitas maneiras, porém, apenas ao

modo dos poetas é que verdadeiramente ele pode habitar.

O texto A palavra possibilitará a reflexão sobre o nomear poético,

baseado na interpretação que Heidegger fez do poema de mesmo nome, da

autoria de Stefan Georg. O nomear é ato do poeta, mas que não depende

simplesmente de seu desejo: é preciso que o próprio mundo das coisas se

mostre; e a habilidade do poeta (que não se refere a certo tipo de habilidade

técnica) está no saber ouvir os apelos do ser e fazer com que as coisas

vigorem por meio de suas palavras – na verdade, por meio das palavras que

ele encontra e entende como aquelas que respondem a uma dupla

necessidade: de si e das próprias coisas.

No Capítulo I, teremos nossa experiência com os textos de

Heidegger. Os três principais momentos que compõem o capítulo remetem a

cada um dos textos que escolhemos como base. Será experiência árdua, na

tentativa de que as palavras de Heidegger sejam ouvidas na intenção do autor

e que indiquem o problema tratado por detrás do texto, bem como o caminho

escolhido para refletir sobre ele. Trabalho de espera, no sentido de que as

repetidas leituras e questionamentos nos coloquem em discussão com o

pensador. Trabalho de escavação, procurando sempre maior aprofundamento

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nas brechas que se abrem diante de nossas pretensas certezas. Em nossa

vida acadêmica, é oportunidade de nova experiência, colocando-se sem

mediação diante da obra.

As três obras escolhidas serão ouvidas e esmiuçadas nas malhas de

ideias que as compõem: cada questionamento se abrirá em outros – e assim

por diante. Será trabalho de confronto do que somos com o que se nos

apresenta; estaremos sós, diante do bosque desconhecido, tendo a tese como

abertura de caminho. O que quer dizer pensar?, A coisa e A palavra são textos

inesgotáveis, e bem sabemos que a leitura posterior à exposição que aqui

faremos pode abrir caminho para nova tese. Neles, queremos enxergar os

elementos que podem sustentar a ideia de serenidade.

No capítulo 2, tematizaremos a experiência que o homem realiza no

mundo, junto às coisas, a partir dos conceitos advindos do capítulo anterior. A

questão do ser é presente na obra de Heidegger como base e elemento

unificador; desta raiz, as problemáticas se desdobram e levam à necessidade

de novos modos de compreensão e postura – o que, por sua vez, significa a

necessidade de que o homem coloque para si a questão do próprio

pensamento. O capítulo, inicialmente, tratará do pensamento, na busca de

elucidar o modo como Heidegger o entende, diferenciando-o daquilo que são

as concepções comum, científica e filosófica. Em seguida, as temáticas se

relacionam ao modo como o homem realiza sua experiência de mundo – este,

que aparece povoado de coisas junto às quais o homem pode se realizar como

Da-sein. A experiência de mundo do homem se dá a partir de diferentes modos

segundo os quais ele recebe as coisas. Não apenas explicitaremos o que seja

o modo de enxergar proporcionado pela razão científica, que reduz os entes a

seu aparecer do instante, mas veremos qual é a proposta heideggeriana de um

pensar que permita mais ao ente, apresentando a noção de Geviert – a

quadratura –, dentro da qual as coisas podem ser entendidas em seu sentido.

Tratando, de modo especial, do tema da linguagem, o capítulo 3 fará

a apropriação necessária das ideias anteriores, para que seja possível tocar de

modo mais pontual a questão da poesia. Não temos uma definição última do

que seja o poetar, mas temos indicação de caminhos que podem ser

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percorridos até o centro do fazer poético. Seguiremos tais caminhos e, na

intersecção entre os conceitos, poderemos problematizar o grande tema da

poesia, falando especificamente do poeta e da construção de seu mundo, na

experiência com a palavra. O poeta constrói seu mundo de modo a deixar as

coisas serem o que verdadeiramente são, não as dirigindo em um aparecer

determinado. Atenção especial daremos ao tema da medida, pensando de que

modo são poesia e ciência medidas da realidade.

A serenidade se mostrará, então, não simplesmente como um

caminho qualquer para o ser humano, mas como postura necessária a partir de

um chamamento da existência como um todo. Enquanto o homem se perde na

exigência de produção e armazenamento do que os entes podem oferecer, a

serenidade é a possibilidade de que o homem se encontre dentro do mundo.

Em suma, esta tese se abre como possibilidade de um olhar sobre a

filosofia de Heidegger; de modo especial, a partir do novo olhar que ele lança

sobre a filosofia como um todo, revendo o posicionamento do homem no

mundo. Nossa tentativa será a de enxergar aquilo que o pensador apresenta

como “contribuição” à filosofia. Mesmo com qualquer classificação30,

entendemos haver apenas um Heidegger que, ao longo de sua produção,

tomou os caminhos necessários para dar voz à questão que o instigava.

A decisão esotérica de Heidegger inicialmente diz respeito à relação entre linguagem e destinatário. Linguagem deve ser aqui entendida como aquela capaz de corresponder a tarefas específicas da filosofia. O filósofo possui uma relação diferenciada com a linguagem e não se orienta de modo algum em direção à linguagem do cotidiano. Heidegger está, sem dúvida, pensando na poesia sem jamais querer imitá-la. O destinatário é aquele que, desde um reconhecimento, encontra-se disposto a se deixar interpelar por essa linguagem. Assim como cada destinatário é específico, também o destinar-se no dizer ou na escrita é sempre específico.31

Neste sentido é que iniciamos esta tese: colocando-nos como

destinatários de um dizer que não se faz público, não por necessidade pessoal

do filósofo, mas por necessidade e exigência d’aquilo-que-dá-a-pensar.

30 Referimo-nos a uma pretendida e clara separação entre “primeiro Heidegger” e “segundo Heidegger”. 31 P. TRAWNY, Adyton..., p.55.

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Capítulo 1 – No caminho das palavras, o pensamento

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1.1. Das necessidades do caminho para a serenidade

Na obra de Heidegger, a ideia de “caminho” (Weg) se faz presente

com importância singular: aparece para indicar um pensamento que se faz, ou

seja, que não é pronto e dado. Sabe-se a direção na qual se deve ir (no caso,

mirando o ser e seu sentido), porém é exigida a força para enfrentar os solos

mais áridos, em paisagens não tão definidas. Pesquisar sobre o pensamento

heideggeriano é, assim, tarefa de percorrer caminhos. O grande risco – e risco

certo – é acompanhar a trilha que, abruptamente, se desfaz em vazio de

palavras, restando somente a realidade diante do pesquisador.

As ideias de Heidegger abrem diversos caminhos de pensamento,

mas a atividade de acompanhá-las leva o pesquisador a se deparar com uma

realidade não antes imaginada. Na verdade, é a realidade já conhecida, mas

que aparece (ou é recebida) de outro modo. A experiência filosófica junto do

pensamento de um filósofo chega ao ponto em que nos deixa sós, para que,

ainda que obliquamente, possamos fazer uma experiência que se aproxima

daquela do autor. Assim, o trabalho que realizaremos neste capítulo será de

reconstrução/ reconstituição.

O risco, aqui, passa a ser outro: desviar-se dos caminhos abertos

pelo próprio autor. Para aquilo que, comumente, podemos chamar de

“progresso” em filosofia, seria clara a importância dos “novos caminhos”. Mas,

de início, o intuito deste trabalho será o de seguir os passos de Heidegger nos

caminhos abertos por ele. Objetivamos nos aproximar da experiência de

pensamento por ele realizada – que é experiência filosófica, mas que toca o

âmbito do humano como um todo.

Para trilhar os caminhos, tomaremos os rastros, a saber, as palavras

do próprio autor e, como auxílio para que não nos desviemos da trilha original,

traremos as ideias de diversos pesquisadores que se debruçaram sobre a

extensa produção filosófica do pensador alemão. Deste modo, o que aqui

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começamos não é caminho puramente original, mas aberto por Heidegger e

percorrido por muitos outros que vieram. Nem todo o caminho está plenamente

aberto – de alguns, há apenas indicações.

As questões aqui levantadas misturam-se com a questão de como pensar e dizer um pensamento jamais pensado e uma língua jamais pronunciada. Mais do que um delírio de filósofo, de um esteticismo poético ou de qualquer formalismo filosófico e conceitual, o que Heidegger busca pensar e dizer é como o dizer e o pensar são neles mesmos o se pensar e se dizer dos tempos, os tempos em que se acena uma transformação do próprio sentido de transformação, o “outro” começo como um outro sentido de começo no começo de um outro sentido.32

Qual rastro seguiremos? Dos inúmeros textos, poderíamos ter

selecionado diversos que nos permitiriam pensar a proposta heideggeriana da

serenidade como postura diante do mundo. Porém, escolhemos três obras que

nos apareceram com condições de oferecer a base para o caminho que

queremos trilhar. A serenidade deve ser compreendida a partir do contexto de

pensamento que o autor construiu; ou seja, em nosso projeto, o conceito de

serenidade deve ser o ponto ao qual se chega depois do entendimento da

necessidade de uma nova postura.

Que necessidades existem para conseguirmos apresentar o

caminho da serenidade? Primeiramente, temos de entender que o caminho não

é puramente nosso, não é novo e não está terminado. O caminho está aberto e

vamos seguir pisando nas pedras colocadas pelo pensar de Heidegger. A

disposição é necessária não apenas para iniciar, mas, principalmente, a cada

vez que as ideias não se derem de modo claro e direto, exigindo de nós a

parada. As coisas devem se mostrar por si mesmas e nosso esforço será o de

entendê-las no que são ao invés de tentar fazê-las aparecer no nosso padrão

de entendimento. Significa que temos de tomar o que aparece no caminho –

todo elemento do detalhe é importante. Vemos que a serenidade é nosso

objetivo, mas é necessária já desde o primeiro passo.

Ao escrever Serenidade, Heidegger olha para seu tempo e percebe

que o contexto indicava a necessidade de que a questão do pensamento fosse

32 M. SCHUBACK, “Apresentação”, In: P.TRAWNY, Adyton, p.15.

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posta, diante da ameaça da técnica (que apresentava sua força na indústria da

guerra). A guerra veio e mostrou a potência da tecnologia, mas mostrou

também a destruição que era, além de física, espiritual. Em primeiro lugar, a

noção de “espírito” deve estar clara: é o espírito que decai, sendo desligado

daquilo que constitui o humano, para uma vivência voltada unicamente para o

ente. Entendemos que a ideia de Heidegger deve ser alargada, de modo

supratemporal.

Dizer que o homem “está vivendo uma crise espiritual na atualidade”

não é exato – não apenas pela delimitação do significado de “atualidade”, mas

porque a crise é constituinte do homem. Heidegger vivenciou a decadência do

Da-sein em uma época específica e buscou uma saída em seu filosofar,

propondo algo como solução que entendeu como legítima; ele não considerou

totalmente que o vigorar do homem é um sustentar-se que deve se dar na crise

espiritual. O homem como Da-sein se dá no espaço da crise; fora do âmbito

humano, a crise não pode ser pensada com o mesmo sentido. Por outro lado,

pensar um tempo fora da crise seria crença cega em uma verdade temporal

que estabelecesse a plenitude do ser.

O tema “crise”, muitas vezes, é entendido como propriamente

pertencente aos âmbitos da psicologia (crise individual), da economia e

administração (relativa ao mercado), da sociologia (instituições sociais na

relação com o cidadão) e da religião (crença e fé). Vivenciamos uma crise

espiritual na atualidade? Sim; e não importa o “quando” desta atualidade. O

adjetivo “espiritual” não nos remete a concepção religiosa alguma, mas àquilo

que constitui o espírito humano em seu vigorar – o homem se fez homem no

cultivo de seu espírito. Entendendo como núcleo da crise a consciência que o

homem tem de sua não possível dominação plena sobre os entes, o conceito

de “serenidade” apresentado por Heidegger é o que entendemos como

possível para o homem: proposta não é acabar com a crise, mas ter nova

postura, a partir de nova visão. Serenidade é espera em vez de desejo de

controle.

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1.2. A palavra do autor em três textos

Falar da serenidade exige que se compreenda o modo como o

homem está no mundo e com ele se relaciona. Como primeiro ponto,

desenvolveremos a questão do pensamento, pois a relação com o mundo

apenas se dá pela sua mediação: o homem está no mundo e pensa sobre o

que nele aparece. O pensamento sobre as coisas permite um determinado

estar no mundo, que é diverso, diante de coisas diversas e para pessoas

diferentes. Fala-se em “pensamento”, não se tendo ao certo uma definição do

que ele seja e o que pode alcançar.

Na sequência, é necessário que entendamos o que propriamente o

autor entende por “coisa”, podendo identificar alguns elementos que a

constituem. Veremos que o pensamento tem de receber as coisas no que elas

são, para que se possa propor um modo de estar junto a elas. Nem tudo é

coisa, mas tudo pode ser coisa. Que diferença é esta? O que é preciso para

que a coisa seja identificada? Passamos para o terceiro tema: a palavra.

O mundo do homem aparece quando povoado de coisas, ou seja,

quando elas podem ser identificadas e trazidas para tal mundo. As coisas

devem ser nomeadas. Nomear é a experiência que o homem faz com as

palavras, atribuindo-as às coisas, fazendo com que estas sejam trazidas,

aproximadas, e possam vigorar; dizendo de outro modo, o nomear faz com que

o ente seja. Tomaremos a experiência da palavra que o poeta faz; experiência

singular que nos permitirá refletir sobre o mundo do homem a partir de sua

constituição mais original (a criação de seu mundo).

Nossa experiência será a deixar que os próprios textos falem.

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1.2.1. “O que quer dizer pensar?”

Não nos iludamos. Todos nós, mesmo aqueles que pensam por dever profissional, somos muitas vezes pobres-em-pensamentos; ficamos sem-pensamentos com demasiada facilidade. A ausência-de-pensamentos é um hóspede sinistro que, no mundo actual, entra e sai em toda parte. Pois, hoje toma-se conhecimentos de tudo pelo caminho mais rápido e mais económico e, no mesmo instante e com a mesma rapidez, tudo se esquece. (Heidegger, Serenidade)

Pensar é ação comum aos seres humanos (tomando-se “pensar” em

uma conceituação primária e geral). Exatamente por tal motivo, a atividade do

pensamento é recebida, na maioria das vezes, como trivial e, assim, como não

carecendo de atenção especial, já que “todos pensam”. Heidegger apresenta

ideia diversa em O que quer dizer pensar?, no sentido de mostrar que a razão

não se identifica com o pensar e, deste modo, a ideia de que “todos pensam”

não se verifica efetivamente.

Quando a ideia de “pensar” cai na trivialidade, é perdida a noção do

alcance do pensamento; como consequência, não apenas o pensar, mas seu

objeto se torna trivial. Tudo o que pode se tornar objeto do pensamento acaba

sendo o mesmo – devemos perceber, então, que toda a realidade se torna um

único objeto. Tal situação pode ser pensada como caminho para o

esquecimento do ser e seu sentido, já que toda questão se equivale em

importância e a primeira necessidade é cuidar das questões mais práticas da

vida – principalmente, as econômicas e sociais.

Pensar sobre algo é ação que se dá (de algum modo e em um grau

qualquer de aprofundamento) a qualquer homem: o homem comum pensa, o

homem da ciência pensa, o homem da filosofia pensa. Em todos os casos, há

um objeto para o pensamento – objeto de modo mais geral possível: toda a

realidade pode ser pensada. Mas Heidegger entende haver algo que ainda

resta a pensar, algo não abarcado pelos diversos pensamentos já

estabelecidos pelas diferentes pessoas em suas diferentes áreas de reflexão.

Há ainda “algo” a se pensar que apenas pode ser alcançado quando a questão

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sobre o que significa pensar for problematizada. Significa dizer que o

pensamento – o ato de pensar – deve se converter em “objeto” do próprio

pensar; esta tarefa cabe aos pensadores, afirma Heidegger.

A experiência humana não abarca o pensamento de modo completo,

visto que, mesmo a experiência racional é transcendida por ele; o pensar “vai

além” dos limites do que a razão pode conceber – isto é observado pelo fato de

não ser qualquer pensamento que passa pelo crivo da razão. Caso tivessem de

ser aceitas plena e unicamente as regras do entendimento racional (na

construção de cadeias lógicas de causa e consequência), deixariam de ser

levados em consideração diversos conteúdos do pensamento, pois as barreiras

lógicas os impediriam de aparecer. O autor indica que a experiência genuína

do pensar não pode aceitar tais barreiras. Mas isto não significa que deva ser

rechaçada a capacidade racional, pois é ela que abre o pensamento – este,

que pode seguir por caminhos ilimitados. A experiência de algo inteligível de

modo racional é a experiência de ideias que se encaixam para falar do real (na

verdade, pode ser vista como a tentativa de encaixar o real nas ideias que a

razão aceita) – é, então, um enquadramento; já a experiência do pensamento é

a possibilidade de deixar o real se mostrar sem enquadramento.

Pensar, no enquadramento racional, é lugar comum ao homem, pois

é o modo como o ente é apresentado a ele – dentro de uma tradição cultural de

pensamento; ou seja, ele aprendeu a pensar deste modo. Logo, não se verifica

uma capacidade inata e plena de pensar no homem. Heidegger entende que

“pensar se aprende” – e apenas o aprendizado de um pensar não cerceado

permitiria o entendimento do que seja o próprio pensar. Para o autor, é

importante indicar tal ideia, pois este “aprender” não é observável como sendo

de interesse do homem: há preocupação grande com o objeto do pensar (por

sua possível utilidade), mas não com o próprio pensar.

Poder-se-ia afirmar que o homem se preocupa com o pensamento

quando se dedica à filosofia; Heidegger diz que não. O pensar difere do

filosofar e, assim, ao se dedicar ao entendimento da filosofia nas ideias dos

diversos pensadores, pode-se “estar aquém” da experiência do pensar.

Filósofo é aquele que se dedica ao conhecimento da História da Filosofia, na

busca de um entendimento de como se desenvolveram as ideias ao longo do

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tempo; pensador é quem quebra as barreiras, não ficando nos limites daquela

história, e consegue fazer uma experiência de pensamento livre.

O pensamento está presente na filosofia, ao longo de sua história;

mas está de modo particular, na experiência pessoal do filósofo com o pensar –

quando, então, ele se realiza como pensador. Significa entender que não é o

conhecimento da história do pensamento que faz o pensador – este se faz ao

se dedicar à experiência única e pessoal com o pensar. Pensadores

“genuínos”, se assim podemos nomear, são os que não apenas desenvolveram

ideias, seguindo corretamente caminhos lógicos a partir de determinado

contexto de pensamento; mas aqueles que lograram nomear algo que

ultrapassa as barreiras da lógica, e o fizeram por meio da radicalidade33 na

reflexão.

Na relação entre ação e pensamento, o autor indica que se vive uma

ilusão34. O homem se ilude com a ideia de que deve agir mais ao invés de se

deter no pensar; ele entende que, diante das necessidades impostas pelo seu

tempo, ainda há muito por fazer no campo da ação e, assim, deixa de lado a

questão do pensamento. “E, no entanto... Talvez, já desde séculos, o homem

vem agindo demais e pensando de menos.”35 O pensamento leva à mudança e

à transformação, sem o qual o fazer é desprovido de sentido. Enquanto o

homem, em sua visão comum, estabelece clara separação entre o pensar e o

agir, a filosofia heideggeriana mostra um pensar que é ação na realidade. A

cisão entre pensar e agir indica que a atividade racional se move em um

ambiente não próprio, mas dirigido pela prática. Falta ainda pensar algo que

seja próprio do pensamento. “O que mais cabe pensar mostra-se no fato de

ainda não pensarmos.”36 Aparece, assim, a necessidade de que se aprenda a

pensar – e pensar aquilo que mais cabe pensar (das Bedenklichste).

33 No sentido de buscar as raízes. 34 A ideia de “ilusão” também é apresentada, em Serenidade, quando Heidegger fala que não nos podemos iludir, achando que o pensamento sempre se dá de qualquer modo e, na verdade, podemos estar na ausência do pensamento. (Cf. M. HEIDEGGER, Serenidade, p.11.) 35 Id., O que quer dizer pensar?; In: EC, p.112. [“Und dennoch - vielleicht hat der bisherige Mensch seit Jahrhunderten bereits zu viel gehandelt und zu wenig gedacht”. (Id., Was heiẞt Denken?; In: Vorträge und Aufsätze (VA), p.130)] 36 Id., O que quer dizer pensar?; In: EC, p.112. [“Das Bedenklichste zeigt sich daran, daß wir noch nicht denken”. (Id., VA, p.130)]

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Aprender a pensar é, justamente, uma ideia inicial em O que quer

dizer pensar?. Ao se debruçar sobre o que seja o pensamento e o que significa

pensar, o homem constata não estar ainda na plena possibilidade de pensar;

por outro lado, caso não se dedique a tal questão, não tem condições de

perceber o que falta. Heidegger entende que apenas os pensadores se

dedicam à questão do pensamento (e, por isso, assim podem ser chamados) –

apenas eles dão espaço para que o pensar se dê de forma efetiva. Aprende-se

quando se volta o pensamento para o que mais cabe pensar. Mas, ainda, não

são claros os elementos que atestam a efetividade do pensar; portanto, os

pensadores não são aqueles que têm a certeza de que o pensar acontece, mas

aqueles que permitem ao pensar sua realização junto ao homem. Com o

pensador, ocorre um “deixar acontecer” ao pensamento; diferentemente, a

atividade racional (que se acredita ser pensamento) é a tentativa de fazer com

que algo ocorra a seu modo.

Aqui há um jogo de forças. De um lado, o pensamento que, em sua

forma originária, irrompe e mostra que ao homem é possível o pensar; ou seja,

o homem está no âmbito do pensar no qual ele é conduzido. De outro lado,

temos o homem com o mundo que construiu e os méritos alcançados com sua

experiência de pensar – os méritos levariam à ideia de que o homem

transcende o pensamento, como se o pensamento fosse apenas uma

capacidade bem utilizada pelo ente homem.

Heidegger afirma que “ser na possibilidade de algo quer dizer:

permitir que algo, segundo seu próprio modo de ser, venha para junto de nós;

resguardar insistentemente tal permissão”37; o autor faz tal afirmação,

referindo-se à possibilidade que o homem tem de pensar. Neste sentido, dizer

que o homem é o animal racional não equivale a dizer que ele pensa, mas que

ele tem a possibilidade de pensar; ainda, ter a possibilidade (die Möglichkeit)

de pensar, não significa que o homem possa (vermögen); o pensamento ocorre

quando se resguarda a permissão. Este resguardar é hüten, que aparece

mesmo no sentido de “estar atento a algo que pode ocorrer”, vigiando, na

tentativa de permitir que realmente possa ocorrer.

37 M. HEIDEGGER, O que quer dizer pensar?; In: EC, p.111. [“…etwas vermögen heißt: etwas nach seinem Wesen bei uns einlassen, inständig diesen Einlaß hüten”. (Id., VA, p.129)]

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Chamamos de “amigável” o que pertence à essência do amigo e dele procede. De forma correspondente, chamamos, agora, de “pensável” aquilo que cabe pensar cuidadosamente. Todo “pensável” dá a pensar. Há, no entanto, uma tal doação somente e sempre à medida que o pensável, a partir de si mesmo, já é o que cabe pensar cuidadosamente.38

Aquilo que vem do amigo, enquanto relação de amizade, é o

“amigável”; do mesmo modo, aquilo que vem do pensar, enquanto ocorrência

efetiva do pensamento, é o “pensável”. Mas o que entendemos, aqui, é o

caminho que vai do amigável para o amigo; ou seja, fazendo parte do que seja

a essência do amigo, o amigável é uma indicação de algo, a saber, do amigo.

Do mesmo modo, o pensável é uma indicação daquilo que é pensamento – de

modo especial, quando o pensável é o que mais cabe pensar.

O pensamento, para que efetivamente se dê, depende menos do

homem que propriamente daquilo que é pensado: “Todo ‘pensável’ dá a

pensar”39. Dá o quê? Dá exatamente aquilo que ele é; neste sentido, é

importante observar que “o que ele é” não se identifica com “o que o homem

quer que seja”. Tal diferenciação é muito importante no pensamento

heideggeriano, pois toca diretamente a ideia de que aquilo que é a realidade

(enquanto aquilo que se dá) não pode ser plenamente abarcado pela razão.

Heidegger fala de um “pensável” que não se identifica com aquilo que

simplesmente é proposto pelo homem à atividade da reflexão (pois, pautada

pela razão, esta lida com a representação de um objeto).

Desde muito tempo já, o homem, ao invés de estar em contato com

a própria realidade, apenas se move em meio às muitas representações que

construiu; a totalidade de representações é o mundo e um dos âmbitos de

representaçãoções da realidade é a ciência. Heidegger fala do pensamento

como experiência do homem que transcende o conjunto de conceitos já

determinados e estabelecidos, a partir dos quais deve ser entendido o mundo.

No âmbito do pensar segundo o que apresenta Heidegger, uma teoria científica

que tentasse alcançar suposta verdade sobre as coisas, caso conseguisse

38 M. HEIDEGGER, O que quer dizer pensar?; In: EC, p.112. [“Unsere Sprache nennt das, was zum Wesen des Freundes gehört und ihm entstammt, das Freundliche. Dem gemäß nennen wir jetzt das, was in sich das zu-Bedenkende ist, das Bedenkliche. Alles Bedenkliche gibt zu denken. Aber es gibt diese Gabe immer nur in so weit, als das Bedenkliche schon von sich her das zu-Bedenkende ist”. (Id., VA, p.130)] 39 Id., O que quer dizer pensar?; In: EC, p.112. [“Alles Bedenkliche gibt zu denken”. (Id., VA, p.130)]

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algum progresso, progrediria em falso, sempre patinando nos conceitos que ela

tenta afixar. Quanto mais fixa se pretende uma teoria, mais afastada da

experiência do pensar ela deve estar para alcançar o sucesso esperado. Neste

sentido é que pode ser entendida a ideia de que a “ciência não pensa”40 –

considerando-se o pensar segundo o modo dos pensadores (nämlich nach der

Weise der Denker).

Parece ser positivo, então, o não pensar para a ciência; com este

modo de se estabelecer, ela conquistou grande prestígio e importância ao

longo do tempo. Mas o que faz a ciência? Calcula. O cientista (ou a

comunidade científica) não é responsável por abrir a reflexão para um

pensamento sempre mais amplo e que se desenvolve guiado por caminhos

que a realidade possa indicar; a ele cabe estabelecer certos pontos

relativamente fixos a partir dos quais consegue construir uma verdade. Apenas

dentro do âmbito de tais pontos estabelecidos é que se faz a ciência; quando o

cientista se lança para além dos limites de uma verdade aceita, ele o faz, não

na tentativa de se abrir ao pensamento, mas na busca de alguns outros poucos

elementos que permitam algo que seja considerado “avanço”. O cientista

calcula, pois ele tenta traduzir tudo o que lhe aparece para a linguagem

construída pelos elementos dos quais ele já dispõe; o que não pode ser

traduzido é descartado ou, pelo menos, deixado de lado, até que haja novos

elementos que permitam tratar do que apresenta a realidade.41

A relação entre pensamento e ciência só se mostra autêntica e frutífera quando se torna visível o abismo que há entre as ciências e o pensamento – na verdade, quando este abismo se revela intransponível. Das ciências para o pensamento não há nenhuma ponte, mas somente salto. Este não nos leva somente para um outro lado, mas para uma região inteiramente outra.42

40 M. HEIDEGGER, O que quer dizer pensar?; In: EC, p.115. [“Die Wissenschaft denkt nicht”. (Id., VA, p.133)] 41 A ideia de “cálculo” é a de que se tem certos elementos que, quando relacionados de determinado modo, permitem chegar a “novos” – tais elementos são os entes em geral. Porém, no cálculo já se antevê algo ao qual se pode chegar – é o âmbito consolidado do conhecimento científico. Ao dizer que a ciência calcula, temos a indicação de que ela não abre espaço de liberdade. 42 M. HEIDEGGER, O que quer dizer pensar?; In: EC, p.115. [“Allein, die Beziehung der Wissenschaft zum Denken ist nur dann eine echte und fruchtbare, wenn die Kluft, die zwischenden Wissenschaften und dem Denken besteht, sichtbar geworden ist und zwar als eine unüberbrückbare. Es gibt von den Wissenschaften her zum Denken keine Brücke, sondern nur den Sprung.Wohin er unsbringt, dort ist nicht nur die andere Seite, sondern eine völlig andere Ortschaft”. (Id., VA, p.133)]

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Quando Heidegger fala do abismo e da consciência de que ele é

instransponível, já pode ser antevisto um aspecto da serenidade: a postura

diante da ciência (como tecnologia). O homem pode estar, sem se deixar

corromper; significa enxergar o abismo instransponível e posicionar-se no

âmbito do pensar, ao invés de ser levado pelo cálculo da ciência – pois ela

continuará a falar do ente do seu modo, por conta do des-encobrimento

permitido pela tecnologia. O mundo da ciência continuará sua produção e o

homem do cálculo, cada vez mais, terá os méritos de seu fazer. Diante do

avanço da concepção mundo-ciência-produção, a proposta heideggeriana não

é de aniquilação da tecnologia. Não há desespero, mas postura.

Pensamento e ciência são âmbitos totalmente diferentes; na

confusão do que sejam, pode até parecer que haja grande semelhança, mas o

entendimento melhor se faz quando cada um é entendido na relação que

estabelece com a realidade. Pensamento é Denken, que pode ser relacionado

ao verbo dünken (ter a aparência) e também ao substantivo Andacht

(devoção); ciência é Wissenschaft, termo que está diretamente relacionado ao

verbo wissen (saber). Assim, aparece a noção de que o pensamento está

sempre relacionado a algo (determinado objeto em sua aparência ou diante do

qual se está) e a ciência está relacionada ao próprio homem que conhece, ao

seu ato de saber. Daí, dizer se tratarem de regiões diferentes.

A ideia de salto (Sprung) para passar das ciências para o

pensamento mostra não haver continuidade ou ligação de reflexões em uma

cadeia causal; não há um raciocínio que faça chegar da ciência ao

pensamento. Justamente por ser a ciência um campo fechado em conceitos,

ela não abarca a realidade como o pensamento o faz. “Saltar o abismo” parece

indicar que se deixa a certeza que se fundamenta em pontos fixos e se parte

para a incerteza do que não se conhece, mas se mostra.

Entre ciência e pensamento há um abismo (Kluft); o salto, como

única opção, traz a incerteza do vazio sobre o qual se salta e também a

incerteza do “lugar” de chegada. Quem se dispõe a realizar algo assim precisa,

além de grande desejo, dispor de coragem. Deste modo, o autor dá elementos

que indicam a experiência do pensamento como algo que exige também

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disposição e coragem; o grande desejo de realizar o salto é que fundamenta a

coragem.

Não seria necessária grande disposição ou coragem caso o homem

já vivesse em meio a tal experiência do salto. Mas o homem parece estar

habituado ao âmbito do que a ciência mostra, algo “fixo, certo e seguro”. A

ciência encontra uma linguagem que se fixa a algo e, a partir de então, sempre

servirá como caminho de entendimento/explicação; mas tal linguagem apenas

é possível enquanto este algo for entendido também como imutável – se

houver mudança, a linguagem não mais consegue abarcar esta realidade. Ideia

importante a ser percebida aqui é a de que a ciência apenas se constrói

naquilo que permanece. Heidegger apresenta ideias que mostram o

pensamento como aquilo que “vai além” do que permanece.

O autor afirma que: “Toda e qualquer coisa se deixa demonstrar, isto

é, derivar a partir de pressuposições adequadas. Poucas coisas, porém, e

estas ainda raramente, deixam-se mostrar, isto é, num aceno, liberar para um

encontro.”43 A primeira frase faz referência à ciência que, a seu modo, explica a

realidade com pressuposições adequadas (geeigneten Voraussetzungen); tudo

se deixa explicar assim. Mas a segunda frase indica o que vai além da

demonstração lógica: há algo que não permanece à razão, mas que se deixa

mostrar num aceno. O que deve intrigar é este aceno, pois ele indica aquilo

sobre o que o pensamento pode se debruçar. Não estando preso a uma cadeia

lógico-racional, o pensamento tem condições de se voltar, não para aquilo que

permanece, mas para aquilo que apenas se deixa ver por um instante, por um

aceno, por meio de uma indicação de si (durch ein Hinweisen).

Ainda com relação ao “encontro”, literalmente, Heidegger diz Ankunft

cuja tradução é “chegada” – com ligação etimológica direta de kommen

(chegar). Parece claro que, em certo sentido, chegada proporciona encontro,

mas apenas se houver um outro que está no local da chegada – considerando-

se a necessidade de, no mínimo, dois elementos para um encontro. Mas

“chegada” remete-nos para aquilo que chega; o que está frisado, então, não é

43 M. HEIDEGGER, O que quer dizer pensar?; In: EC, p.115 ["Beweisen, d.h. aus geeigneten Voraussetzungen ableiten, läßt sich alles. Aber Weisen, durch ein Hinweisen zur Ankunft freigeben, läßt sich nur Weniges und dieses Wenige überdies noch selten”. (Id., VA, p.134.)]

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um fato “neutro” de haver um encontro, mas o fato de que poucas coisas

(Weniges) se liberam para chegar. Outro ponto importante a se frisar é que

Heidegger não diz “um encontro” com artigo indeterminado – ele afirma zur

Ankunft, ou seja, libera “para a chegada”. Ao abrir-se para a possiblidade do

pensamento, resguarda-se a possibilidade da chegada genuína do que vem e

se mostra num instante – mostra-se ao homem e, neste sentido, é encontro.

Temos aqui, ainda, a relação entre “demonstrar” e “mostrar”. O

pensamento se debruça sobre o que se mostra; mas, anteriormente, já foi

indicado que “o pensável dá a pensar”. Assim, o pensável é o que se mostra, o

que “acena”. A demonstração, por sua vez, configura-se como uma “tradução”

da realidade para a linguagem racional; é uma representação – ou re-

apresentação da realidade por meio do argumento. O ato de calcular e

demonstrar a realidade é o modo de pensamento vigente e, assim, pensar

(raciocinar) é perceber: a razão (die Vernunft) tem sua raiz no perceber

(vernehmen). A atividade da razão é perceber a realidade, captando aquilo que

se faz presente, destacando-o e tomando-o como vigente. Deste modo, o

filosofar proposto por Heidegger (a vida do pensamento) se apresenta como

estando fora do âmbito da razão em seu entendimento vigente.

Depois de tais ideias, restaria a dúvida sobre ser ou não esta

atividade racional também pensamento. Heidegger faz, então uma analogia:

este “pensamento demonstrativo” é pensamento fora de seu âmbito efetivo – é

como nadar fora da água. Do mesmo modo como para a prática da natação é

necessário que se saiba nadar e que se disponha do meio adequado para tal

(água), o autor indica que, além de saber pensar (há necessidade de

aprendizado), é preciso que o homem esteja inserido no elemento do pensar. O

homem não pensa por que está fora do meio próprio; ele não atingiu ainda o

âmbito do pensar.

O âmbito do pensar não é onde são criadas as ideias, mas onde

está o pensamento e o homem deve ser inserido. É o pensamento que se dá.

Assim, quando se fala “o homem na atividade do pensamento”, deve-se

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entender o homem “mergulhado” no fazer-se perene do pensar, onde é

possível uma experiência do pensamento vivente.44

Ao tratar da atividade do pensamento, não é necessário indicar que

já se está na realização do pensar; é o pensamento que se volta sobre si. Na

busca do autor, revela-se como intrigante o fato de que, ao se utilizar do

pensamento para descobrir o que seja pensar, ele descobre o homem como

estando fora do âmbito do pensar. Tal fato não apenas intriga, mas instiga a

uma maior atenção sobre a questão: é o pensamento que indica o caminho de

volta para si. O que mais dá a pensar é o fato de que ainda não pensamos;

assim, pode-se concluir com Heidegger que “o que mais cabe pensar mais

cuidadosamente neste nosso tempo é que ainda não pensamos.”45 É o mais

pensável por advir do próprio pensamento como uma questão primeira.

O mais pensável se mostra pelo pensamento, mas como aquilo não

alcançado pelo homem. Por que, neste tempo, o homem não pensa? Por que

tal questão não dá a pensar? De certo modo, há um entendimento comum de

que o pensamento, sendo todo conhecido, dá-se efetivamente. O homem

acredita pensar até demais, quando a realidade exige dele uma ação sempre

imediata diante das situações que o afetam. Tendo-se um contexto que

valoriza mais a ação/produção que o ato de pensar – somado à grande

influência do pensamento científico vigente, que de modo direto representa as

coisas e os seres pelo que deles pode ser captado e destacado, sob o domínio

de uma concepção de “razão” (Vernunft) como perceber (vernehmen) –

44 Analogamente, a imagem que melhor expressa tal ideia pode ser vista em Bergson. Dizemos “analogamente”, pois Bergson está tratando da memória (mémoire) e da duração (durée), que não podem ser postas como equivalentes, seja ao pensamento ou ao ser, em Heidegger; mas a imagem é clara e a tomamos aqui. O solo no fundo do mar não é algo sólido e duro, mas algo pleno de vida, informe, que está em constante mudança; não pode ser dividido, pois ele se dá como um todo, sem partes. Uma sonda pode retirar este conteúdo do fundo e trazer para a superfície, mas ele sofre singular mudança: de massa fluida, passa a ser conjunto de incontáveis grãos de areia descontínuos, duros, petrificados e isolados uns dos outros. (Cf. BERGSON, Cartas, conferências e outros escritos, p. 40) O âmbito do pensamento pode ser entendido como aquele do fundo do mar: não há classificação nem delimitação (coisa que a razão objetivadora faz); é âmbito no qual o pensamento se dá e se move, não de acordo com a direção da razão, mas de acordo com o próprio ser. Deste modo, colocar-se no âmbito do pensar, implica questionar o modo habitual de entendimento da realidade, que é aquele quando a razão traz à luz e solidifica/petrifica, transformando o pensar em “ideia de um objeto”. 45 M. HEIDEGGER, O que quer dizer pensar?; In: EC, p.113. [“…das Bedenklichste zeigt sich in unserer bedenklichen Zeit daran, daß wir noch nicht denken”. (Id., VA, p.131)]

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dificilmente a questão do pensamento vai aparecer. É preciso coragem para o

salto.

Porém, não é possível imaginar que, na mudança do contexto

citado, o homem já estaria no âmbito do pensamento, pois o pensável (das

Bedenkliche) dá a pensar (gibt zu denken); ou seja, não é simplesmente o

homem que pensa. O pensamento é pensamento sobre algo, mas não como a

ciência “pensa” (estabelecendo a realidade como a pluralidade de seres que

permanecem); voltar-se para a questão do pensamento é possibilidade dada

quando os entes podem ser conhecidos de modo diferente do habitual. Aqui se

mostra com grande importância a ideia de “desvio” (Abwendung) apresentada

pelo autor: “o próprio a-se-pensar se desvia do homem e até mesmo, de há

muito, dele mantém-se desviado.”46

Aprender a pensar não significa que o homem desenvolveria uma

capacidade efetiva e constante, a partir da qual toda percepção da realidade se

daria a todo tempo. Aprender a pensar significa permitir que o pensamento

ocorra, estando sempre atento e guardando tal permissão. Os elementos

dados por Heidegger indicam que o pensamento pode ocorrer a qualquer

tempo e a constância deve ser do homem em vigiar para que, ao ocorrer, ele

esteja atento. Se o a-se-pensar se desvia do homem, é porque em algum

momento já esteve em tal caminho; para se “des-viar” (abwenden) é preciso

antes se “a-viar” (zuwenden).

A questão que nos ocorre é sobre o porquê do “desvio”;

possivelmente pelo ritmo e interesse impostos à vida comum. O a-se-pensar se

desvia da tentativa de enquadramento da razão científica, e se dá ao pensador

quando for guardada sua possibilidade. Mas se houve desvio, é porque já

esteve no caminho, já deu a pensar: “o a-se-pensar já se aviou para a essência

do homem”.47 O pensador resta só, então, na guarda de um pensamento a

partir do qual o a-se-pensar se dê.

46 M. HEIDEGGER, O que quer dizer pensar?; In: EC, p.114. [“…dieses zu-Denkende selbst sich vom Menschen abwendet, sogar langher sich schon abgewendet hält”. (Id., VA, p.132)] 47 Id., O que quer dizer pensar?; In: EC, p.114. [“Das zu-Denkende hat bei aller Abwendung sich dem Wesen des Menschen schon zugesprochen”. (Id., VA, p.132)]

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Relacionada à ideia de “desvio” está a de “retração”, no sentido de

se esquivar (sich entziehen). Aqui, resta claro o entendimento de que a ciência

(e o pensamento comum nela baseado) não pode alcançar o a-se-pensar, pois,

estabelecendo-se sobre o que é fixo e permanece, ela não dá conta daquilo

que se dá e se esquiva. O pensamento dos pensadores não se dá nem de

modo constante nem de modo linear; mesmo na abertura da ocorrência do

pensamento, fica-se neste jogo de dar-se/retrair-se. O pensador é, na verdade,

o homem que não se ilude com a pretensão de que vai abarcar toda a

realidade com seu pensar – mesmo que haja o desejo, não implica que se

alcance; esta ilusão faz o homem da ciência se lançar em uma busca

desenfreada pelo ente. O pensador busca entender a realidade em tal jogo, no

aceno das coisas que, raramente se liberam para um encontro.

Por conta da retração, o encontro nunca é pleno e, por isso, aquilo

que está para ser pensado não é alcançado em sua totalidade. O pensamento

capta o que se mostra ainda que de um único lance de tempo: é um estar

pronto para receber aquilo que sai da retração e já volta para ela. O próprio a-

se-pensar (das Bedenkliche) que mais cabe pensar (das Bedenklichste), a

saber, que ainda não pensamos, é “algo” que se mostra em aceno;

literalmente, Heidegger usa o termo Hinweis que é “aceno”, mas no sentido de

“indicação”.

Entendemos que, caso os entes fossem todos “claros”,

“transparentes” e “translúcidos”, de modo direto o homem poderia saber deles;

porém isto não acontece: as coisas dão indicação de si. Por isso, a ciência se

debruça a esmiuçar a realidade com a finalidade de conhecê-la.

Diferentemente, o caminho pelo qual o pensamento se dá é o do “puro aberto”

no qual as indicações dão certa direção. Ora, se o caminho está feito ou se

fazendo não de modo determinado, mas montado com as indicações que se

dão, estas são os únicos sustentáculos do caminhar e a maior parte do

caminho se dá na incerteza. Eis o caminho do pensamento.

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O que se retrai recusa o encontro. Retrair-se não é, porém, um nada. Retração é aqui retirada e enquanto tal – acontecimento. O que se retrai pode concernir ao homem de maneira mais essencial e reivindicá-lo de modo mais próprio do que algo que aí está e o atinge e o afeta.48

Retrair é um guardar-se que exige a espera do homem. A espera é

algo sempre presenta na serenidade, pois permite ao ente ser o que é.

Diversas imagens podem representar o que indicamos aqui; se partimos do

exemplo caro a Heidegger, podemos falar do camponês – melhor dizendo, da

camponesa, dona dos sapatos da obra de Van Gogh.49

Os sapatos trazem em si a lida diária, o solo pisado quando do

trabalho para manutenção da vida. Eles tomam parte em uma representação

mais ampla, que é o mundo da camponesa; mas eles também trazem a própria

doação da terra, no trabalho que cultiva e espera. A terra se guarda, faça o

sapato (mundo) da camponesa o que fizer. A espera da camponesa é ativa

preparação na incerteza do que se guarda.

Tomando exemplo diverso, podemos falar do pescador: ele prepara

o necessário, posiciona-se e aguarda o peixe, o que o sustenta – sua espera é

ativa na percepção do que pode se mostrar a qualquer momento. Há indícios

que devem ser recebidos em uma “interpretação pré-racional”; é esperar um

dar-se que em nada depende deles (pescador, camponesa, pensador).

Enquanto elemento material, que se guarda, é a terra que se dá no peixe; é

48 M. HEIDEGGER, O que quer dizer pensar?, In: EC, p.116 [“Was sich entzieht, versagt die Ankunft. Allein – das Sichentziehen ist nicht nichts. Entzug ist hier Vorenthalt und ist als solcher - Ereignis. Was sich entzieht, kann den Menschen wesentlicher angehen und inniger in den Anspruch nehmen als jegliches Anwesende, das ihn trifft und betrifft”. (Id., VA, p.134)] 49 Heidegger toma o quadro como exemplo, buscando saber o que são a coisa, o utensílio e a obra de arte. (Cf. Id., A origem da obra de arte, p.79.) Costa trata amplamente da interpretação desta obra de Van Gogh feita por Heidegger. (Cf. S. COSTA, Arte & verdade, pp.63-76.)

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incerteza, pois a terra não se dá segundo a vontade e a ação humanas. O

brotar da physis50 independe do Da-sein.

O aparecer que é objeto da ciência obedece ao modo vigente de se

entender a racionalidade, a saber, a partir da razão (die Vernunft) com base no

perceber (vernehmen); o aceno/indicação (Hinweis) é diferente, pois não trata

da realidade que toca e afeta o homem de modo direto. O pensamento é

entendimento que busca o que está além do que simplesmente aparece: é dar

conta do aparece/esconde das coisas. Aquilo que apareceu e se retraiu deixou

um rastro de si; um rastro não é um caminho definido, mas não é também uma

falta de caminho ou um vazio. Do que se retraiu resta a indicação e, nesta, o

pensamento tem muito mais que simplesmente o que aparece. Por isso, a

retração deve ser considerada – ela é, em si mesma, um acontecimento (das

Ereignis); é parte do modo como as coisas são. O que Heidegger mostra é que,

enquanto a razão calculadora se volta apenas para aquilo que aparece, o

pensamento se volta ainda para o que é a retração das coisas.

A retração chama a atenção do homem por ser o que lhe escapa

das mãos – e este ser fica na guarda (hüten) para garantir a ocorrência do

pensamento. O pensamento fica na espera do aceno de “algo” que está lá, mas

se retraiu; e, ao ser ampliado o campo de visão, o que se retrai é a própria

50 O pensador afirma:

A physis, entendida, como sair e brotar, pode-se experimentá-la em tôda parte, assim, por exemplo, nos fenômenos celestes (nascer do sol), nas ondas do mar, no crescimento das plantas, no nascimento dos animais e dos homens do seio materno. Entretanto, physis, o vigor dominante, que brota, não se identifica com êsses fenômenos, que ainda hoje consideramos pertencentes à ‘natureza’. Tal sair e suster-se fora de si e em si mesmo [...] não se deve tomar por um fenômeno qualquer, que entre outros observamos no ente. A physis é o Ser mesmo em virtude do qual o ente se torna e permanece observável. (M. HEIDEGGER, Introdução à metafísica, pp.44-45.)

E M. Zarader indica que Heidegger mostra, com a ajuda de um certo número de exemplos, que esta palavra [physis], para eles [gregos], não começava por invocar, como faria para os modernos, as ideias de aumento, de evolução ou de devir. Entendiam-na num sentido completamente diferente, que pode ser definido pelos três termos avanço (Hervorgehen), desabrochar (Aufgehen) e abertura (Sichöffnen). (...) Seja, por exemplo, o desabrochar de uma rosa: o que é que constitui a especificidade desse acontecimento? (...) [A] rosa desabrocha na medida em que, avançando no aberto, dura nesse aberto, se mantém nele manifestando-se, e assim se oferece ao olhar. (...) [O] que é verdade para a rosa, é evidentemente verdade para tudo o que ‘é’, porque este avançar no aberto é o que permite a qualquer ente, qualquer que ele seja, mesmo se for homem ou deus, vir à presença e instalar-se nela. (...) A φύσις (...) é o desabrochar surgindo do desvanecimento, e é este perpétuo desabrochar para fora do desvanecimento, logo, esta relação entre os dois, esta unidade forjada no combate (...). (M. Zarader, Heidegger e as palavras da origem, pp.44;45;55)

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realidade, a partir das coisas que a compõem. Pode ser, então, entendida a

ideia do autor sobre o homem como sinal:

Somos à medida que sinalizamos para o que se retrai. Enquanto o que assim sinaliza, o homem é o sinalizador. Na verdade, o homem não é primeiramente homem e então por acréscimo e talvez ocasionalmente ainda um sinalizador, mas o homem antes de tudo e antes de mais nada é homem atraído no retrair-se, no elã para este e com isso sinalizador da retração. Seu modo próprio de ser constitui-se nisso, a saber, em ser um tal sinalizador. Chamamos de sinal àquilo que, segundo sua constituição mais própria, é algo que sinaliza. Retraído no impulso para o retrair-se, o homem é um sinal.51

A atenção do homem se volta para aquilo que se retrai; pode-se

dizer que o “retrair” leva a um “atrair”. É exatamente um atrair, pois o que se

retrai indica a possibilidade de si em ser “algo” além do que está vigente – isto

se torna instigante ao homem. O “sentir-se atraído para...” se revela de dois

modos diversos: por meio da razão científica, ao ser atraído por algo que se

retrai, o homem quer fazer com que este algo não se retraia, mas se mostre;

por outro lado, por meio do pensamento, o homem fica atento na espera de

que algo se dê. Assim, nos dois modos, o que se tem é o fato de que o homem

é atraído; a atração dirige a atenção do homem e ele volta seu olhar para algo,

na espera. Este olhar que se volta é uma indicação apenas possível ao

homem; por isso ele é o sinalizador. O homem é sinal pois é o único ser que

abre a possibilidade do pensamento e, assim, fica na espera do aceno: ele é

impulsionado para aquilo que atrai sua atenção, que é a retração.

O homem é o sinalizador. Heidegger diz exatamente que ist der

Mensch der Zeigende. Verificando mais detidamente, o autor utiliza Zeigende

que vem do verbo zeigen que, por sua vez, literalmente é “mostrar”; deste

modo, o homem é o “mostrador”; o homem sinaliza no sentido de mostrar

“algo”, que é aquilo que se retrai. Mas se o homem mostra, se ele é sinal, ele

deve indicar para um sentido: o sentido do que se retrai. Porém, o homem

51 M. HEIDEGGER, O que quer dizer pensar?; In: EC, p.116-117. [“Wir sind, indem wir in das Sichentziehende zeigen. Als der dahin Zeigende ist der Mensch der Zeigende. Und zwar ist der Mensch nicht zunächst Mensch und dann noch außerdem und vielleicht gelegentlich ein Zeigender, sondern: gezogen in das Sichentziehende, auf dem Zug in dieses und somit zeigend in den Entzug ist der Mensch allererst Mensch. Sein Wesen beruht darin, ein solcher Zeigender zu sein. Was in sich, seiner eigensten Verfassung nach, etwas Zeigendes ist, nennen wir ein Zeichen. Auf dem Zug in das Sichentziehende gezogen, ist der Mensch ein Zeichen”. (Id., VA, p.135)]

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sinaliza sem trazer o sentido. O autor toma um verso de Hölderlin para refletir

sobre tal ideia, a saber: “Somos um sinal, sem sentido...”52

Na verdade, die Deutung (termo que foi traduzido como “sentido”) é

“interpretação”; assim, o homem é o sinal sem interpretação (deutungslos).

Aqui, podemos entender que não cabe interpretação para a retração: a

atividade da razão, na tentativa de esmiuçar e esgotar a reflexão sobre o que

se retrai, não encontra caminho – não há entendimento último, pois não há

possibilidade de esgotamento diante do que não se completa para a

experiência do homem. Estar diante da retração sem interpretação alguma é

atividade do pensamento.

O verso de Hölderlin que traz a ideia de deutungslos pertence a um

poema do qual um dos esboços traz o título Mnemosyne (gr. Μνημοσύνη).

Mnemosyne é uma titanide, a Memória; porém, Heidegger reforça não se tratar

simplesmente de uma faculdade sobre a qual se volta a psicologia (a memória):

Mnemosyne é a memória enquanto fonte do passado e fundamento para o que

persiste na realidade do homem.

Memória é, aqui, a concentração do pensamento que, concentrado, permanece junto ao que foi propriamente pensado porque queria ser pensado antes de tudo e antes de mais nada. Memória é a concentração do pensar da lembrança daquilo que, antes de tudo e antes de mais nada, cabe pensar.53

Para que se esteja atento à possibilidade da ocorrência do pensar, é

necessário não deixar fugir da memória (das Gedächtnis) – e a memória

significa voltar o pensamento sempre para aquilo que pode ocorrer, significa

reunir o pensamento em um único ponto, em um centro que atém a atenção; tal

centro é aquilo que mais cabe pensar (das Bedenklichste). Daí, Heidegger

52 M. HEIDEGGER, O que quer dizer pensar?; In: EC, p.118. [“Ein Zeichen sind wir, deutungslos (...)” (Id., VA, p.135)] 53 Id., O que quer dizer pensar?; In: EC, p.118. [“Gedächtnis ist hier die Versammlung des Denkens, das gesammelt bleibt auf das, woran im voraus schon gedacht ist, weil es allem zuvor stets bedacht sein möchte. Gedächtnis ist die Versammlung des Andenkens an das vor allem anderen zu-Bedenkende”. (Id., VA, p.136)]

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afirmar que “A memória é a concentração do pensamento”54. A concentração é

die Versammlung, é a reunião do pensamento sobre o pensável.

O pensável, como “aquilo que dá a pensar”, é o que instiga o

homem. Instiga-o a permanecer pronto à espera da própria realidade que se dá

e se retrai. A experiência da retração recebida pelo pensamento indica a

existência de “algo” além do que a linguagem habitual pode perceber: algumas

coisas se dão em aceno e o pensamento é o que pode captá-las. A memória é

o pensamento que se concentra no que foi captado, não deixando com que se

perca no tempo. Tal concentração do pensamento no que já foi permite

enxergar a realidade a cada vez “pelo mesmo modo”. A experiência, guardada

no pensamento, torna-se um latente sempre pronto a aparecer – isto que é

memória e pode aparecer fundamenta a percepção da realidade. A memória

traz o que já foi, presentificando-o: é a concentração do pensamento em um

vigente que se sustenta no vigor de ter sido e ser passado; mas, como vigente,

é presente. A experiência que o homem já fez do que mais cabe pensar é solo-

fundamento para novo experienciar. “Memória, o pensar concentrado da

lembrança do que cabe pensar, é a fonte da poesia. Por isso, o modo próprio

de ser da poesia se funda no pensar”.55

De todas as produções humanas, a poesia é um dos caminhos pelos

quais pode ser expressa a experiência do homem junto à realidade que não se

dá de modo completo; outro caminho – pelo exposto – é o pensamento. A

experiência da retração alimenta o modo de espera atenciosa (hüten)

característica tanto do poeta quanto do pensador; o pensar centrado da

lembrança em um passado, que é vigente, fundamenta o poetar. Heidegger

afirma: “Toda criação poética surge quando se cultiva o pensar da

lembrança.”56 É um passado sempre vigente por ser o mais digno a se pensar

desde sempre a para sempre.

54 M. HEIDEGGER, O que quer dizer pensar?; In: EC, p.111. [“Das Gedächtnisist die Versammlung des Denkens”. (Id., VA, p.129)] 55 Id., O que quer dizer pensar?; In: EC, p.118. [“Gedächtnis, das gesammelte Andenken an das zu-Denkende, ist der Quellgrund des Dichtens. Demnach beruht das Wesen der Dichtung im Denken”. (Id., VA, p.136)] 56 Id., O que quer dizer pensar?; In: EC, p.118. [“Alles Gedichtete ist der Andacht des Andenkens entsprungen”. (Id., VA, p.137)]

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O dito poético e o dito do pensamento jamais são iguais. Mas um e outro, de modos diferentes, podem dizer o mesmo. Isto só mesmo tem êxito quando o abismo entre poesia e pensamento se abre clara e decididamente. E isto acontece quando a poética é elevada e o pensamento profundo.57

O salto, citado anteriormente, para a incerteza depende de decisão e

coragem, na tentativa de realizar uma experiência extrema diante da realidade,

na espera de um aceno. Tanto a poética elevada quanto o pensamento

profundo (das Dichten ein hohes und das Denken ein tiefes) têm condições de

alcançar não o conhecimento da retração, mas a “certeza da incerteza” que

sustenta a realidade. Tal incerteza não é assumida pela razão que, de todo

modo, tenta dirimi-la – o que não é possível. Como o autor afirma: como sinal

sem sentido que é o homem, o incerto da retração está em um presente que há

muito dura, em uma demora “para a qual nenhuma contagem da ciência

histórica jamais implantará uma medida”.58

Uma medida (ein Maß) é justamente o mais buscado – de modo

especial, pela razão científica. Língua, letras e números, são os elementos para

os quais toda a realidade tenta ser traduzida; após a tradução, a razão tenta

fazer com que esta mesma realidade obedeça a um cálculo que se cria. O

problema de toda ciência em tal tentativa é que o cálculo apenas funciona

dentro de seu âmbito: a razão fala do que consegue abarcar, mas a realidade

escapa às margens estabelecidas pela racionalidade, indo para o âmbito do

desconhecido, o qual a ciência não ousa enfrentar, por não ter mais a

segurança de suas verdades. O caminho do pensamento é diferente do

caminho da lógica.

O abismo (die Kluft) que se coloca entre o poético e o pensamento

não representa um vazio que separa, mas o vazio no qual ambos se lançam.

Ao se lançarem – poética elevada e pensamento profundo –, ambos se tocam

e falam do mesmo, por estarem em uma mesma incerteza, diante da qual se

demora na espera de um aceno; trata-se de uma mesma experiência que pode 57 M. HEIDEGGER, O que quer dizer pensar?; In: EC, p.119. [“Das dichtend Gesagte und das denkend Gesagte sind niemals das gleiche. Aber das eine und das andere kann in verschiedenen Weisen dasselbe sagen. Dies glückt allerdings nur dann, wenn die Kluft zwischen Dichten und Denken rein und entschieden klafft. Es geschieht, so oft das Dichten ein hohes und das Denken ein tiefes ist”. (Id., VA, p.137)] 58 Id., O que quer dizer pensar?; In: EC, p.119. [“...für die keine Zeitrechnung der Historie je ein Maß aufbringt”. (Id., VA, p.137)]

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ser expressa de modo diverso. Esta espera pelo aceno apenas é possível pelo

que já se mostrou e fica na lembrança como concentração do pensamento. O

impensado aparece como que indicado pelo que já foi pensado: o já pensado

encobre e guarda o impensado.

A poesia fala sem esgotar aquilo de que fala; não é uma expressão

transparente – ao contrário do que pretende a razão. Enquanto a fala racional

busca se apresentar plenamente em clareza (dentro das medidas

estabelecidas), a poética toca a superfície das coisas e as abre para aquilo que

a própria palavra não alcança, não as fechando em conceitos que servem

como medida arbitrária, não buscando a plena clareza em seu falar. Abrir as

coisas para o que a palavra não alcança é deixar o impensado aparecer no

pensado.

O impensado é o meio no qual se dá o pensamento; é o elemento no

qual deve estar inserido o pensamento para que se efetive. A razão também

busca o impensado, porém, um impensado que possa ser traduzido para sua

fala. O pensamento, por sua vez, busca o impensado que é não-traduzível e,

por isso, resta em si mesmo sem conceituação; “e isso, na verdade, porque e

realmente o a-se-pensar retrai-se para nós. (...) Então, só nos resta uma coisa.

Só nos resta esperar – esperar até que o ‘a-se-pensar’ se nos anuncie”.59

Esperar (warten), não pode ser entendido como atitude passiva

diante de algo. Falando do a-se-pensar como sujeito das ações (dar-se/retrair-

se/dar-se) o homem espera, mas não passivamente. A espera é ativa no

sentido de exigir a prontidão alerta para receber algo do que ainda não se sabe

e que pode aparecer (acenar) de diferentes modos. Contrariamente, está a

racionalidade, que pode ser bem exemplificada com a razão científica: é ação

sem espera, mas ação já pré-determinada, diante da qual nada resta a fazer, a

não ser lançar a realidade na forma dos conceitos.

A realidade se dá ao homem com amplidão tal que se mostra

impossível de ser descrita em sua plenitude; diante de tal fato, podemos tomar

59 M. HEIDEGGER, O que quer dizer pensar?; In: EC, p.120. [“weil das zu-Denkende sich uns entzieht. (...) So bleibt uns nur eines, nämlich zu warten, bis das zu-Denkende sich uns zuspricht”. (Id., VA, p.139)]

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como exemplos duas atitudes: a poesia como pensamento e a ciência como

razão. A poesia busca compreender a realidade em seus acenos; a ciência

busca explicar a mesma realidade. Diante da incomensurabilidade trazida por

aquela amplidão, há o que escapa de qualquer relação com “algo já

experienciado” e “conceito já estabelecido”. O que escapa, ainda assim, é

trazido pela poesia, que faz novo uso das palavras; a ciência rechaça aquilo

que não consegue abarcar. Heidegger indicou a ausência de pensamento na

ciência; mas é importante observar, ao longo da história, que há cientistas que

pensam: eles é que propõem novos caminhos – mas, no momento seguinte, o

novo se torna ciência, passando a ser nova medida da realidade.

No capítulo seguinte, trataremos mais detidamente do fazer da

ciência. De qualquer modo, é importante ter claro o objetivo de Heidegger: que

a ciência seja considerada exatamente no que ela é (entendimento de mundo

que observa, manipula e relata), sem ser “a” detentora da verdade, mas

construção de verdades sempre ligadas a um contexto espaço/tempo

determinado.

A ciência pensa o que não muda – pelo menos, tanta estabelecer

leis imutáveis que regem a realidade. Por sua vez, pensamento e poesia

esperam diante da mesma realidade e tentam acompanhar aquilo que é o que

pode ser chamado de “movimento vivo” do qual vem o aceno. Enquanto a

racionalidade, ao modelo do cientista, busca tornar estático o real (pois, sem

isso, ela não teria como dele falar), o pensador e o poeta buscam compreender

e falar do não estático. Heidegger toma um verso de Hölderlin que pode indicar

tal ideia:

“Quem o mais profundo pensou, ama o mais vivo.” A proximidade imediata dos dois verbos, “pensar” e “amar”, forma o meio do verso. Com isso, consideramos que o amor se funda no fato de pensarmos o mais profundo. Tal “ter pensado” provém presumivelmente daquela memória, no pensar da qual funda-se o próprio poetar e com ele toda arte.60

60 M. HEIDEGGER, O que quer dizer pensar?; In: EC, p.120. [“’Wer das Tiefste gedacht, liebt das Lebendigste’. / Die nächste Nähe der beiden Verba »gedacht« und »liebt« bildet die Mitte des Verses. Demnach gründet die Liebe darin, daß wir Tiefstes gedacht haben. Solches Gedachthaben entstammt vermutlich jenem Gedächtnis, in dessen Denken sogar das Dichten und mit ihm alle Kunst beruht. (Id., VA, p.138)]

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Neste trecho, duas ideias importantes devem ser reforçadas.

Primeiramente, sendo a realidade em si mesma considerada como “o mais

vivo” (das Lebendigste), apenas o pensamento pode levar ao que Hölderlin

chamou de “amor” (die Liebe). O amor pelo mais vivo pode ser entendido como

a expressão do poeta diante de suas vivências; o poeta ama o mais vivo, ou

seja, a realidade, e isto apenas é possível pelo pensamento. Diante daquilo

que é estático, nenhuma necessidade há de que o homem assuma postura

serena; ao invés disso, diante do que não obedece o desejo humano, não há

algo mais adequado que a espera; é a percepção/recepção daquilo que é o

dar-se da própria physis grega, como força que faz o ente viger. A physis não é

simplesmente “o vivente”, mas “o mais vivo”; assim, “amar o mais vivo” é o

extremo deixar-ser. O pensamento que deixa-ser permite o mostrar-se do mais

vivo.

Em segundo lugar, resta clara a indicação de que o poético seja

fonte da arte: dele advêm todas as artes. O poetar é uma postura diante da

realidade, e não uma arte; a escrita poética, sim, é arte. Ao falarmos “postura”,

trazemos a ideia de um estar do homem que depende, diretamente, de um

entender a realidade; postura é, em primeiro momento, um modo de enxergar ,

e apenas depois é que se torna ação. A ação, por sua vez, tem mais a ver com

decisão (diante das coisas, deixando-as), que com fazer. Para Heidegger, o

pensamento é ação.

A postura poética da espera põe o homem na via de corresponder

ao que cabe pensar mais propriamente. Isto significaria a possibilidade de que

o homem fosse inserido no elemento do pensar. Para tanto, a razão (Vernunft)

não poderia ser diretamente relacionada ao perceber (vernehmen). O perceber

destaca o presente, tomando-o como vigente, mas o viger é “mais” que o estar

presente – viger é o sustentar o presente. Heidegger aponta Parmênides como

um pensador que indica o que percebe o pensamento e, a partir dele, o autor

alemão afirma que:

a determinação essencial do pensamento funda-se precisamente no fato de a essência permanecer determinada

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por e a partir disso que, enquanto “percepção”, o pensamento percebe, ou seja, o real em seu próprio ser.61

A essência do pensamento não se dá de modo último e completo:

ela é moldada, a cada vez, não pelo homem em suas capacidades, mas

exatamente por aquilo que o pensar recebe, que é o próprio ser da realidade.

Deste modo, tal essência não é plena, pois o que a molda não se dá de modo

direto, e sim, no dar-se/retrair-se já apontado. A demora do pensamento na

espera do aceno é a demora diante da realidade em seu próprio ser. O que é o

ser do real? Heidegger afirma que o ser do real não é o presente, mas a

presença do presente (Präsenz des Präsenten) e a vigência do vigente

(Anwesen des Anwesendes). “A resposta é um salto no escuro”.62

Na busca de compreender o que o pensamento faz na percepção

das coisas, o autor fala de uma re-apresentação: aquilo que já está diante do

homem é tomado e posto novamente diante do mesmo homem, porém por

meio do lógos (como enunciado, juízo). “O caráter fundamental do pensamento

é o representar. No representar, desdobra-se o perceber. O próprio representar

é re-apresentação”.63 Heidegger se pergunta sobre a necessidade de que as

coisas sejam revestidas do lógos e entende que esta dúvida deveria ser

presente em todo questionar filosófico; para ele, esta é uma problematização

necessária.

O modo de receber a realidade como re-apresentação marca o início

do pensamento ocidental (como indica o pensamento de Parmênides), quando,

então, o pensamento passou a ser história de um pensamento que se instituía

e se solidificava. Esta constituição de um conhecimento sólido depende do

estabelecimento de um padrão delineado por pontos que sejam assumidos

como fixos e certos; por isso é que o pensamento ocidental, desde seu início,

está fora do elemento próprio do pensar. As coisas se dão, apresentam-se em

aceno. Por ser unicamente o aceno, em seu instante, o que a racionalidade

61 M. HEIDEGGER, O que quer dizer pensar?; In: EC, p.121. [“Vielmehr beruht die Wesensbestimmung des Denkens gerade darin, daß sein Wesen von dem her bestimmt bleibt, was das Denken als Vernehmen vernimmt - nämlich das Seiende in seinem Sein”. (Id., VA, p.140)] 62 Id., O que quer dizer pensar?; In: EC, p.122. [“Die Antwort ist ein Sprung ins Dunkle”. (Id., VA, p.141)] 63 Id., O que quer dizer pensar?; In: EC, p.122-123. [“Der Grundzug des Denkens ist das Vorstellen. Im Vorstellen entfaltet sich das Vernehmen. Das Vorstellen selbst ist Re-Präsentation”. (Id., VA, p.141)]

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pode “segurar nas mãos”, ela toma tal aceno – o presente captado – como

sendo a coisa em sua totalidade. Deste modo, o pensamento vigente desde os

gregos não é pensamento da realidade, mas sim pensamento de um aceno

tomado como totalidade.

Esse aparecer do ser como a vigência do vigente é o próprio começo da história ocidental, desde que compreendamos a história não só segundo seus eventos, mas que a pensemos, primeiro e sobretudo, segundo o que através dela antecipadamente se envia sob a forma de destino, atravessando assim todos os eventos e neles predominando.64

O pensamento como re-apresentação marca o início que delineou

toda a história do ocidente. Com os pensadores da origem do pensar ocidental

tem-se o delineamento de um destino para o homem: o pensamento do vigente

não põe o homem no elemento do pensamento, aquilo que mais deve ser

pensado. Este vigente é presente, mas o conceito tradicional de tempo não

permite a efetiva apreensão do presente vigente; e a redução a tal

entendimento tradicional afasta o pensamento de seu meio mais próprio. O ser

da realidade aparece como o brilho de um instante – “aparecer” (das

Erscheinen) tem raiz em brilhar (scheinen). O brilho mostra que o ser se dá e

se retrai.

A proveniência essencial do ser do real está impensada. O que

realmente cabe pensar mantém-se retraído. Isso ainda não se

tornou para nós digno de ser pensado. Por isso, nosso

pensamento ainda não ganhou propriamente seu elemento.

Propriamente, ainda não pensamos. E, por isso, perguntamos:

o que quer dizer pensar?65

Quando o pensar é tomado como objeto de si próprio, ao invés de se

ter um círculo vicioso e vazio, tem-se a possibilidade de se tomar a realidade

sob outros aspectos, pois, o que era “certo” passa a ser questionado. Na

tentativa de elucidação da questão-título O que quer dizer pensar?, Heidegger

64 M. HEIDEGGER, O que quer dizer pensar?; In: EC, p.123. [“Dieses Erscheinen des Seins als das Anwesen des Anwesenden ist selbst der Anfang der abendländischen Geschichte, gesetzt, daß wir die Geschichte nicht nur nach den Geschehnissen vorstellen, sondern zuvor nach dem denken, was durch die Geschichte im vorhinein und alles Geschehende durch waltend geschickt ist”. (Id., VA, p.142)] 65 Id., O que quer dizer pensar?; In: EC, p.124. [“Die Wesensherkunft des Seins des Seienden ist ungedacht. Das eigentlich zu-Denkende bleibt vorenthalten. Es ist noch nicht für uns denk-würdig geworden. Deshalb ist unser Denken noch nicht eigens in sein Element gelangt. Wir denken noch nicht eigentlich. Darum fragen wir: Was heißt Denken?”. (Id., VA, p.143)]

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abre a discussão a partir da qual o pensar pode ser revisto. É abertura de

caminho, mas nunca ponto final em uma chegada, considerando-se que a

realidade não é moldável àquilo que é a razão.

Até aqui, foi-nos importante, para uma reflexão sobre a serenidade,

a abertura de um novo entendimento do que significa pensar, de modo diverso

do que faz o homem comum. Pensar é uma destinação e um caminho que

permitem ao homem problematizar o ser e seu sentido. O pensamento se dá

quando o homem se dispõe a estar no âmbito do pensar; o pensamento

convoca o homem para que, a partir de sua capacidade, abra espaço para o

que mais cabe pensar.

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1.2.2. “A coisa” Se, porém, as coisas já se tivessem mostrado, como coisas, o ser coisa das coisas, a coisalidade, já se teria manifestado, já teria reivindicado e preocupado o pensamento. (Heidegger, A coisa)

Nas idas e vindas ao texto de um autor, a palavra se revela, a cada

vez, nova. Buscar entender aquilo que há de não dito na palavra significa

perceber sua abertura para algo além de um significado definido e estabelecido

por dicionários e manuais. Tratar da palavra filosófica, de certo modo, é tarefa

ainda mais peculiar, no sentido de ser mais fluida e abrangente, devendo o

pesquisador estar pronto para rever seu entendimento a cada instante com

sempre nova disposição para trilhar os caminhos do pensamento.

Compreender a obra de Heidegger é por-se a caminhar, tendo à frente diversas

possibilidades de caminho.

Serenidade é a prontidão na espera da palavra que deve se revelar.

“Deve”, não no sentido de uma obrigação, mas na esperança de que ela o faz –

e sempre o faz. De que depende o revelar-se da palavra e em que sentido esta

mesma palavra pode levar ao aparecer da coisa? Tal questão nos intriga e nos

acompanhará ao longo de nossa reflexão. Estamos nos colocando em direção

a algo de que temos apenas o rastro deixado na palavra heideggeraina. Aqui, a

própria palavra se faz coisa e a coisa se dá pela linguagem.

As idas e vindas ao texto de Heidegger nos mostram a necessidade

de que se demore na busca de uma revelação da própria palavra, no muito que

ela traz em pouco dizer; isto significa dar atenção à densidade que a constitui.

Para nós, não se trata de aguardar uma tal “vontade da palavra”, no que ela

possivelmente viesse a dizer; trata-se de perceber que a palavra escolhida pelo

autor traz mais que simplesmente o significado denotativo conhecido.

Heidegger é autor de grande número de obras, e a escolha de um texto

depende menos de um projeto traçado, que da necessidade de responder

àquilo que aparece como questão no caminho. Daí a opção por trabalhar A

coisa (Das Ding): o que se mostra como questão a nós é o problema da coisa,

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no sentido de estar ela a povoar o mundo do homem na dependência de que

ele a faça ser coisa. Na verdade, já é questão saber se a coisa depende do

homem para ser.

Ao problematizar a coisa, o autor intenta trazer à luz do pensamento

aquilo que ela é, tomando por base os elementos que estão mais próximos do

homem em seu mundo cotidiano. O mais próximo é o que constitui

verdadeiramente o mundo do homem e, na maior parte das vezes, passa-nos

despercebido. Temos, então, uma necessidade que exige um esforço de

desprendimento das estruturas de pensar já solidificadas, para que se dê uma

nova apreensão da realidade. A experiência humana junto às coisas permite a

problematização apresentada por Heidegger, considerando-se que o mundo do

homem está repleto de “coisas” (no modo como, costumeiramente, é entendida

a realidade). Porém, o autor afirma:

A coisa é pouca coisa: a jarra e o banco, a prancha e o arado, mas, ao seu modo, é também coisa a árvore e o tanque, o riacho e o monte. Coisificando cada vez a seu modo, são coisas garça e corsa, cavalo e touro. Coisificando cada vez de modo diferente, são coisas espelho e broche, livro e quadro, coroa e cruz.66

“A coisa é pouca coisa” (Ring ist das Ding).67 Tal ideia pode parecer,

em primeira instância, estranha, pois o mundo é repleto de coisas (disso, em

um pensamento comum, não há dúvidas). Porém, ao afirmar “a coisa é pouca

coisa”, já se pode entrever que aquilo que o autor chama de “coisa” vai além do

usual e comum entendimento. Se vale a problematização e se nem tudo é

coisa, resta indicado que não basta simplesmente “estar no mundo” para que

uma coisa seja coisa.

Ring ist das Ding. Coisa é pouca coisa. Por que pouca? É como se

disséssemos: “A coisa, ‘coisa mesmo’, que traz em si o que plenifica algo como

coisa, não está em grande número ao nosso redor.” Se bem entendemos, 66 M. HEIDEGGER, A coisa; In: EC, pp.159-160. [“Ring ist das Ding: der Krug und die Bank, der Steg und der Pflug. Ding ist aber auch nach seiner Weise der Baum und der Teich, der Bach und der Berg. Dinge sind, je weilig in ihrer Weise dingend, Reiher und Reh, Pferd und Stier. Dinge sind, je weilig nach ihrer Weise dingend, Spiegel und Spange, Buch und Bild, Krone und Kreuz.” (Id., VA, pp.183-184)] 67 Heidegger trabalha com os diversos sentidos do termo ao longo do texto: “der Ring” pode ser traduzido como “anel”, “aliança”, “aro” ou “círculo” – daí também o verbo ringeln, que significa “encaracolar” ou “anelar” (diretamente ligado a der Kreis – “círculo”, “setor”). Mas Ring, ainda dentro da ideia de “círculo” pode ser traduzido como “ringue”, relacionando-se ao verbo ringen (“lutar”) e ao termo das Ringen (“luta”).

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Heidegger apresenta a ideia de que o termo “coisa” foi desgastado por seu uso,

sendo utilizado para todo e qualquer ente sem distinção. Com o desgaste do

termo, perdeu-se muito daquilo que ele nomeia; o entendimento da coisa foi

perdido.

“Pouca coisa” se refere apenas a cardinalidade? Não; e o que nos

auxilia a pensar assim é a tradução francesa do texto. “Ring ist das Ding” foi

traduzido como “Modique est la chose”68, trazendo a ideia de “modicidade”.

Módico é o pouco, o pequeno, mas também o simples. Deste modo, o pouco

da coisa é também sua simplicidade – não é necessário muito; mas a razão

calculativa faz com que as coisas não apareçam assim. O sentido da terra, no

brotar da rosa que traz a beleza a ser oferta, não necessita de cálculos que a

insiram em uma construção lógico-científica. A coisa é pouca; a coisa é

simples.

Coisa é pouca coisa e tudo pode ser coisa: jarra, banco, prancha,

arado etc. A pergunta que resta é, então, sobre o que é necessário para que

um ente seja inserido na categoria de coisa. Isto nos leva a pensar, então, que,

já que ser coisa é situação contingente, ser coisa não dependeria das

características oferecidas pelos entes. Restaria na responsabilidade do homem

o entendimento e a classificação de algo como coisa. Porém, se nos

detivermos em tal questão, não aparece como clara a ideia de que o tornar-se

coisa seja questão de classificação/categorização. Estaríamos falando

diretamente da relação sujeito/objeto? Veremos que não.

Qual seria determinada característica apresentada por um ente,

diferenciando-o em meio a tudo mais, que faria dele coisa? Caso apresentasse

tal determinação, a coisa ainda se mostraria a partir de um “entendimento” do

homem (que deveria reconhecer tal característica). Poderia ser que somente o

que aparecesse naturalmente com a citada característica seria coisa; mas a

ideia não é tão clara como parece, pois, no mesmo trecho, aparece a indicação

de existirem coisas naturais (árvore, riacho, cavalo) e coisas artificiais (arado,

livro, coroa). Isto nos leva a pensar que a coisa não é naturalmente coisa. Mas

ainda assim, algo deve existir de comum entre coisas naturais e artificiais, e a

68 M. HEIDEGGER, La chose. In: Essais e conférences, 217-218.

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descoberta do que seja este algo é que poderá abrir para nós o entendimento

do que seja a coisa. Tudo pode ser coisa, mas nem tudo é.

Até este ponto, os elementos dos quais dispomos podem nos levar a

entender que a coisa é o que está ao redor do ser humano; mas o pouco que

são as coisas não é o mesmo para toda pessoa – daí dizer que “coisa é pouca

coisa”, pois o mundo é algo definido por uma interpretação, que depende da

vivência de cada um. Não existe o mundo das coisas em geral, mas o mundo

do homem determinado, que é repleto de coisas: há entes que estão na

categoria de coisa para alguém e há entes que não estão; do mesmo modo,

em tal contingência, há entes que estão na categoria de coisa para outro. Tudo

pode ser coisa, natural ou artificial, e, ao mesmo tempo, pouco é coisa: apenas

aquilo que está no pequeno círculo ao meu redor.

Ring é um pequeno círculo, e esta imagem nos faz voltar à

problemática inicial de Das Ding, sobre proximidade e distanciamento. “[N]a

proximidade, está o que costumamos chamar de coisa”;69 “pouca coisa” em um

“pequeno círculo” é aquilo que está ao meu redor – mas em um sentido diverso

do físico. Os conceitos de proximidade (Nähe) e distanciamento (Entfernung)

são sempre apresentados em relação ao espaço (Raum), mas o autor

questiona o entendimento comum do que seja a proximidade e, adiante, indica

que este pensamento deve ir além da espacialidade física. A proximidade se dá

em relação ao mundo do homem particular, e isto vai além do “estar perto” de

seu corpo.

No sentido exposto, Heidegger fala da tentativa constante do homem

em reduzir as distâncias: a sociedade tecnológica, com seus aparatos, busca

diminuir o espaço entre homem e mundo em geral e, de certo modo, o faz;

porém, o mundo não foi aproximado do homem, já que o projeto humano não

teve este objetivo, mas tão somente diminuir distâncias no espaço.

E as distâncias foram diminuídas – o exemplo apresentado pelo

autor é o da televisão: com tal aparelho, o homem pode trazer à sua frente

aquilo que o ciclo natural do mundo levaria meses ou anos para fazer aparecer;

69 M. HEIDEGGER, A coisa; In: EC, p.144. [“In der Nähe ist uns solches, was wir Dinge zu nennen pflegen”. (Id., VA, p.168)]

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tudo é colocado diante dos olhos do homem, seja o distante no tempo ou no

espaço. Com tal tecnologia, nada mais se esconde ou é esperado e o

desnudamento do mundo é sempre mais efetivo. Tal des-nudar é, aqui, um

des-velar; é um modo de fazer aparecer o mundo.70 Mas com a anulação da

distância, o mundo ainda não é próximo do homem; tudo está perto, mas não

próximo. Sem distância, mas sem proximidades, situação singular é: tudo flutua

na “monotonia e uniformidade do que não tem distância”.71

Monotonia e uniformidade é a situação na qual os entes são

igualados em uma interpretação que nivela o mundo em um sentido único. Por

conta da situação de monotonia, a classificação de todos os entes como coisa

se justifica; tudo é coisa. Heidegger fala de tal situação como sendo de horror e

terror: “o poder que joga para fora de sua essência, sempre vigente, tudo o que

é e está sendo”72; no desejo de fazer com que tudo esteja próximo,

simplesmente se consegue uma pluralidade monótona e uniforme. Isto é um

perigo não percebido. Mas a re-descoberta da coisa é percebê-la como o que

sai da monotonia e aparece ao homem, em seu brilho. A coisa é o que está na

proximidade, e não o que está perto; simplesmente anulando as distâncias, não

se chega à proximidade.

De há muito, o homem lida e continua sempre a lidar com as coisas, sem, no entanto, pensar, uma vez sequer, a coisa, como coisa! Até hoje, o homem não pensou a coisa, em seu modo de ser coisa, como não o fez também com a proximidade.73

A distância não pode ser simplesmente suprimida; ao contrário,

entendemos sua necessidade. Para que apareça a coisa, é preciso que algo

tenha condições de aparecer como coisa e é a distância que marca um espaço,

distinguindo os âmbitos do homem e da coisa. Quanto mais o homem faz a

coisa se mostrar na medida do humano, menos é possível ter a coisa mesma.

Disto decorre o fato de que o mundo é apenas o mundo humano; além dele, o

70 Tema central de A questão da técnica (Die Frage nach der Technik), texto de 1953. 71 M. HEIDEGGER, A coisa; In: EC, p.144. [“Alles wird in das gleichförmig Abstandlose zusammengeschwemmt.” (Id., VA, pp.167-168)] Vale observar que o trecho original diz gleichförmig Abstandlose, ou seja, uma “uniforme ausência de distância”, mas não cita “monotonia” (al. Monotonie), como traz a tradução brasileira. 72 Id., A coisa; In: EC, p.144. [“Das Entsetzende ist jenes, das alles, was ist, aus seinem vormaligen Wesen heraussetzt”. (Id., VA, p.168)] 73 Id., A coisa; In: EC, p.144. [“Der Mensch hat bisher das Ding als Ding so wenig bedacht wie die Nähe”. (Id., VA, p.168)]

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ser humano não conhece; deste modo, resgatar a coisa como coisa é fazer o

mundo aparecer como mundo.

A relação que Heidegger estabelece entre proximidade e

distanciamento indica a necessidade de se pensar o espaço além da noção

física que se tem da realidade. Aquilo que está próximo do ser humano não é

necessariamente o que está ao seu lado, mas o que é trazido para seu mundo

significado. O próprio modo do homem falar das coisas é excludente, quando

ele fala da realidade a partir de uma sintaxe já pronta que é entendida como

caminho da verdade. Se supusermos, por exemplo, que, na coisa, existe “algo

além” do aceito pelo entendimento humano, isto é desconsiderado por não

caber em tal sintaxe. Daí a necessidade que Heidegger enxerga de que exista

entendimento diverso do que seja a racionalidade para falar do mundo; o

homem constrói seu mundo, dá significado a seu mundo, mas não deixa o

mundo aparecer como mundo, nem as coisas serem coisas. Apenas um

pensamento diverso de tal modelo de racionalidade poderia trazer a coisa

mesma.

Por meio do pensar a coisa, Heidegger quer chegar à própria coisa.

Esta ideia parece soar puramente fenomenológica (ir às coisas), porém é

alterada ao vermos que o círculo do qual tomam parte as coisas é pequeno

pelo motivo de depender do homem. De modo ainda primário, podemos pensar

que, para se chegar à coisa, é preciso, antes, pensá-la; por sua vez, pensar a

coisa significa buscar o sentido que ela traz ou reúne, como veremos adiante.

Assim, o entendimento da coisa poderia ser alcançado pela busca do sentido

que ela traz – este, que pode ser pensado a partir do que é a coisa em sua

essência, em seu coisificar74.

Coisificar (dingen) é o verbo que indica a ação da coisa. Na verdade,

é uma ação passiva, pois indica mais aquilo que é próprio da coisa, o que ela é

74 Autor de inúmeros neologismos, Heidegger busca moldar as palavras de modo a fazer com que elas possam ao menos sinalizar aquilo que indica o pensamento; a palavra, presa a regras de sintaxe estabelecidas, não alcança a experiência do pensar; “os dicionários não dizem nada do que dizem as palavras na experiência originária do pensamento”. (M. HEIDEGGER, A coisa; In: EC, p.152.) [“...was die Wörter, als gedachte gesprochen, sagen, berichten die Wörterbücher wenig”. (Id., VA, p.176.)]

Allemann indica que o objetivo de Heidegger, ao desenvolver um vocabulário próprio, é “fixer l’integralité des significations venant au langage, et atteindre ainsi, en se retirant de la langue philosophique habituelle, une précision adaptée aux dures exigences de la pensée qui questionne l’être”. (B. ALLEMANN, Hölderlin et Heidegger, pp.146-147.)

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e reúne em si. “A coisa coisifica...”.75 Se assim ocorre, já nos seria possível

identificar, entre os entes, o que pode ser entendido como coisa: tudo aquilo

que coisifica é coisa. Mas aqui, abre-se nova indicação de caminho, pois há

mudança no que buscávamos entender: agora queremos saber o que é

propriamente o coisificar.

O coisificar se mostra como algo, de certo modo, paradoxal: é a

ação da coisa, porém não significando que esta vá “agir” de um modo ou outro;

é ação que significa oferecer a capacidade de receber, recolher e reunir.

Reunir, receber e recolher o quê e de que modo? A coisa é aquilo que tem a

capacidade de reunir algo em si – e, a partir disso, oferecer a possibilidade de

trazer um sentido, como veremos adiante. Se a coisa apresenta a capacidade

de receber, aparece-nos aqui um conceito que se mostra necessário, a saber,

o vazio (leer), pois, para que um ente possa receber algo, ele não pode

ser/estar pleno, cheio. Por sua vez, isto significa que apenas o que é vazio tem

condições de ser entendido como coisa. E mais: não simplesmente o que é

vazio, mas o que apresenta o vazio (die Leere) como capacidade de si. “O ser

coisa do receptáculo não reside, de forma alguma, na matéria, de que consta,

mas no vazio, que recebe”.76 A coisa é sempre receptáculo e seu ser reside no

vazio.

Tomemos o exemplo utilizado pelo autor para entender mais sobre o

que são o vazio e o receber da coisa: o jarro (der Krug). O jarro é uma coisa;

uma coisa artificial, um produto. O que foi produzido do jarro foram parede e

fundo (Wand und Boden); e o que existia do jarro antes de ser produzido era

unicamente algo com a capacidade de receber. A coisa é o subsistente que

independe da matéria – no exemplo, é o jarro como receptáculo, antes de

recipiente. Não há necessidade do jarro em si, mas daquilo que ele traz, que é

o vazio; ao se fazer vigorar o jarro, vigora o vazio. Por tal razão, pode o autor

dizer que o jarro não existe por ter sido produzido, mas, ao contrário, teve de

ser produzido por existir.

75 M. HEIDEGGER, A coisa; In: EC, p.151. [“Das Ding dingt”. (Id., VA, p.175.)] 76 Id., A coisa; In: EC, p.147. [“Das Dinghafte des Gefäßes beruht keineswegs im Stoff, daraus es besteht, sondern in der Leere, die faßt”. (Id., VA, p.171)].

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A coisa é sempre aquilo que faz vigorar o vazio. Mas, ao considerar

o vazio como único (não existem dois vazios diferentes), o que faz a

diversidade das coisas é o que exatamente o vazio que elas trazem pode

receber – receber, recolher e reunir. Árvore, riacho, corsa, touro, livro e coroa

podem ser entendidos como coisas e, se o são verdadeiramente, significa que

também trazem um vazio que pode ser preenchido, do mesmo modo que o

jarro. Heidegger dá estes exemplos como sendo coisas, cada uma a seu modo.

Já que exemplos díspares são coisas, a questão que se nos coloca é sobre o

que significa recolher, receber e reunir que se dão tanto para a árvore quanto

para a corsa e a coroa etc.

Heidegger mostra que o pensamento da coisa não se relaciona ao

entendimento de um objeto; isto quer dizer que a coisa independe de ser

colocada como objeto diante de um sujeito. O caminho para o entendimento da

coisa não é o objeto, pois o jarro subsiste como receptáculo e se a-presenta

como coisa antes da re-presentação, como dissemos. Um objeto depende de

um sujeito – a coisa não. E o que dizemos aqui não contradiz o que foi dito

anteriormente: a coisa é o que subsiste independente de um sujeito, é um vazio

que traz a possibilidade de ser preenchido; porém, é sempre para um homem

determinado que algo aparecerá como coisa, destacando-se em meio à

monotonia.

Entendemos aqui o receptáculo como o vazio do jarro capaz de algo

receber; o receptáculo, para viger, tem de ser produzido como recipiente. No

caso do jarro, o recipiente do receptáculo foi produzido; o oleiro (Töpfer) molda

o vazio, dando-lhe parede e fundo. Mas o ser do jarro ainda está fora da

moldagem; o jarro é receber. O que o oleiro quer produzir não é simplesmente

o jarro como parede e fundo, mas ele quer fazer viger o vazio que é receber;

para tanto é que ele molda e produz. Parede e fundo fazem aparecer o vazio; e

este vazio que aparece (físico) é o recipiente do receptáculo que é o receber;

na produção, o produzido é inserido no desencobrimento vigente.

Pois é para o vazio, no vazio e do vazio que ele [oleiro] conforma, na argila, a conformação de receptáculo. O oleiro toca, primeiro, e toca, sempre, no intocável do vazio e, ao pro-duzir o recipiente, o con-duz à configuração de receptáculo. É o

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vazio da jarra que determina todo tocar e apreender da pro-dução.77

Algo que esteja cheio, pleno em si mesmo, não tem condições de

receber; isso indica a importância do vazio para falar da coisa. O jarro, por

exemplo, só pode receber quando está vazio. O estar vazio do jarro permite

que algo seja vazado nele. Pensando, então, de modo mais geral: as coisas,

como o jarro, recebem por estarem vazias. No receptáculo que é o jarro, a ideia

de vazio aparece mais claramente – embora apenas de certo modo, pois, ao

tomarmos o entendimento da física (e, daí a ciência em geral), não há um

pleno vazio (o jarro está cheio de certos elementos que dão lugar a outros).

Mas, supondo-se haver no jarro um pleno vazio, como falar do vazio das

coisas? De que vazio fala Heidegger?

O autor fala de um vazio que não é científico; por sua vez, isso exige

que o próprio falar não seja científico. “A ciência sempre se depara e se

encontra, apenas, com o que seu modo de representação, previamente, lhe

permite e lhe deixa, como objeto possível”.78 A ideia é a de que a ciência, tendo

estabelecido seu modelo de pensamento, apenas recebe aquilo que se

enquadra no mundo que tal modelo permite; a ciência não tem os instrumentos

necessários para lidar com aquilo que está além de sua margem. Ou a ciência

força a conformação do que vai além dela para aquilo que são seus parâmetros

de entendimento, ou então ela rechaça – daí Heidegger dizer que, por meio do

conhecimento científico, “a coisa, como coisa, continua vedada e proibida

(verwehrt), continua reduzida a nada (nichtig) e, neste sentido, anulada

(vernichtet)”.79 É exatamente por conta disso que podemos entender a ideia de

ciência como dotada de força de constrangência (Zwingendes).

É preciso recordar que Heidegger fala do jarro como exemplo para

mostrar algo – algo físico. Partindo do vazio do jarro que recebe, ele fala de

tudo que é coisa; é um exemplo não para indicar que a coisa é vazia, mas que

ela se apresenta como algo com a capacidade de receber. O “vazio” físico do

77 M. HEIDEGGER, A coisa; In: EC, p.147. [“...er gestaltet die Leere. Für sie, in sie und aus ihr bildet er den Ton ins Gebild. Der Töpfer faßt zuerst und stets das Unfaßliche der Leere und stellt sie als das Fassende in die Gestalt des Gefäßes her”. (Id., VA, p.171)] 78 Id., A coisa; In: EC, p.148. [“Die Wissenschaft trifft immer nur auf das, was ihre Art des Vorstellens im Vorhinein als den für sie möglichen Gegenstand zugelassen hat”. (Id., VA, p.171)] 79 Id., A coisa; In: EC, p.148. [“In Wahrheit bleibt jedoch das Ding als Ding verwehrt, nichtig und in solchem Sinne vernichtet”. (Id., VA, p.171)]

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jarro serve para mostrar outro vazio, que seja efetivamente vazio. Fisicamente,

o jarro não está vazio, mas a avaliação feita pelo autor se deixa levar por uma

maneira meio poética (halbpoetische), já que, poeticamente, podemos bem

entender que o jarro esteja vazio para receber algo. O que se apresenta aqui,

então, é a possibilidade de um pensamento que vá além do que permite a

ciência.

Para não perdermos de vista o caminho que iniciamos e queremos

percorrer, vale ressaltar que “ir além do que permite a ciência” é posto como

objetivo para que se receba as coisas do modo como elas se derem, sem

forçar uma direção do modo segundo o qual elas devam se mostrar. O modo

de enxergar da ciência pode, então, ser entendido como oposto ao da

serenidade, que é a postura que deixa ser.

O receber do jarro é aquilo que Heidegger indica como sendo de

dois modos: acolhendo (nehmend) e retendo (behaltend). O jarro acolhe o

vazado em seu vazio; acolhe e retém para, depois, poder doar. Tal ideia é de

suma importância para entendermos a coisa em seu coisificar, pois, do mesmo

modo como ocorre com o jarro, ocorre com todas as coisas: elas oferecem o

vazio de si para receber, quando, então, retêm para doar. No caso do jarro

pode-se entender o que ele pode receber (água, por exemplo); mas de que

modo entender em um sentido mais amplo o que é o receber das coisas? O

que e como as coisas recebem? O que, no caso, vem a ser a doação?

Retomando a ideia apresentada anteriormente, a coisa é o que está

na proximidade. Ao tomarmos o jarro, ele pode receber a água, dentre tanto

que poderia ser; mas, em nosso entendimento, um mesmo jarro cheio de água

pode estar próximo ou não para diferentes pessoas – ou até para a mesma

pessoa, mas em situações diferentes. O estar próximo ou não – o ser coisa –

não depende unicamente do físico que está no jarro, mas sim do não físico que

pode ser preenchido e que, depois, será doação.

Quando e como as coisas chegam, como coisas? Não chegam através dos feitos e dos artefatos do homem, mas também não chegam, sem a vigilância dos mortais. O primeiro passo na direção desta vigília é o passo atrás, o passo que passa de um

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pensamento, apenas, representativo, isto é, explicativo, para o pensamento meditativo, que pensa o sentido.80

A constituição do mundo do homem se dá pelas coisas que fazem

sentido para ele. Sem sentido, uma coisa não vigora. Isto significa que seu

mundo – que é um mundo construído, interpretado – é povoado por tudo aquilo

que pode ser recebido a partir de uma indicação de sentido. Mas nem tudo que

vem ao encontro tomará parte no mundo de alguém; isto quer dizer que nem

tudo se tornará coisa para todos os homens. Como o sentido de um mundo é

composto por um conjunto de significações, para se tornar coisa no mundo é

preciso que algo traga já algum elemento de sentido deste mesmo mundo,

como uma questão de identificação.

Quando o sentido que algo traz pode ser assimilado no sentido do

mundo de determinado homem, este algo se torna coisa e vem para a

proximidade. O passo atrás (Schritt zurück) em direção ao pensamento

meditativo, indicado pelo autor como necessário, é o empenho para se colocar

em postura receptiva diante das coisas que vêm ao encontro. Aquilo que trago

para a proximidade carrega, em seu vazio, o que será doado em meu mundo; o

coisificar da coisa é justamente a possibilidade de trazer sentido e doar – trazer

mundo. Heidegger afirma que:

Ao pensar a coisa, como coisa, poupamo-lhe a vigência de coisa, protegendo-a no âmbito em que ela vige e vigora. No sentido de reunir e recolher diferenças numa unidade, coisificar é aproximar mundo. Ora, aproximar constitui a vigência e o vigor essencial da proximidade. Poupando, pois, a coisa, como coisa, moramos na proximidade. A aproximação da proximidade é a única dimensão própria do jogo de espelho de mundo.81

Pensar a coisa a protege, conservando-a em seu lugar, âmbito de

sua vigência; é o pensamento da coisa que permite guardar o distanciamento

80 M. HEIDEGGER, A coisa; In: EC, p.159. [“Wann und wie kommen Dinge als Dinge? Sie kommen nicht durch die Machenschaft des Menschen. Sie kommen aber auch nicht ohne die Wachsamkeit der Sterblichen. Der erste Schritt zu solcher Wachsamkeit ist der Schritt zurück aus dem nur vorstellenden, d.h. erklärenden Denken in das andenkende Denken”. (Id., VA, p.183)] 81 Id., A coisa; In: EC, p.159. [“Denken wir das Ding als Ding, dann schonen wir das Wesen des Dinges in den Bereich, aus dem es west. Dingen ist Nähern” von Welt. Nähern ist das Wesen der Nähe. Insofern wir das Ding als das Ding schonen, bewohnen wir die Nähe. Das Nähern der Nähe ist die eigentliche und die einzige Dimension des Spiegel-Spiels der Welt”. (Id., VA, p.182)]

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da coisa em relação ao âmbito humano. Proteger a coisa no âmbito no qual ela

vigora é como se fosse permitido que ela viesse ao encontro do homem sem

que seja forjada/forçada pelo desejo humano; então, quando não forçada, é

possível a coisificação. Coisificar é aproximar mundo.

Ao vir ao encontro em sua coisidade, em sua vigência, a coisa

aparece carregada de um sentido que encontra similaridade com o mundo do

homem – ela aparece na proximidade e, consigo, traz mundo. Reforcemos a

ideia de que a coisa é o que está na proximidade e não o que é posto na

proximidade. Aquilo que a coisa traz corrobora ou ratifica o mundo do homem

ao qual ela está relacionada e, por isso, é encontrada na proximidade.

Poderíamos entender que, quando o sentido carregado por algo em nada se

identifica com um mundo particular, este algo não aparece como coisa e,

assim, não aparece na proximidade.

Aqui também pode ser entendida a afirmação de que “O homem só

pode apresentar, de qualquer maneira que seja, o que, antes, já se iluminou e

clareou, por si mesmo e se lhe apareceu, em sua própria luz e claridade”82:

apenas quando o homem recebe aquilo que é a doação de sentido da coisa

(aparecer em sua luz e claridade), é que ela passa a fazer parte de seu mundo.

Novamente, o deixar ser (sein lassen) é aspecto imprescindível para a

constituição originária do mundo do homem.

Aparece na proximidade aquilo que ratifica o sentido de um mundo

determinado – o do homem determinado; tal ocorrência indica a ele que seu

mundo pode ser identificado em algo além dele. O mundo pode ser

reconhecido no mundo particular de um homem; por sua vez, o mundo do

homem, interpretado e carregado de sentidos, é, de certo modo, ratificado

pelas coisas. O homem constrói o mundo a partir de si, de sua interpretação,

mas esta pode não se identificar com as coisas que aparecem para ele. Sem

nenhuma identificação, o homem vive em um mundo “des-ligado” do existir das

coisas – e sua interpretação se mostra como não possível. A conexão com a

realidade se dá quando as coisas confirmam a interpretação do homem como

82 M. HEIDEGGER, A coisa; In: EC, p.148. [“Vorstellen kann der Mensch, gleichviel in welcher Weise, nur solches, was erst zuvor von sich her sich gelichtet und in seinem dabei mitgebrachten Licht sich ihm gezeigt hat”. (Id., VA, p.172)]

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possível – é a possibilidade de seu próprio mundo. O mundo é a abertura para

que as coisas se mostrem, é a possibilidade que se dá à manifestação do ser.

A coisa coisifica, ou seja, reúne sentidos que, por sua vez, levam o

homem a identificar seu próprio mundo: o sentido das coisas mostra que sua

interpretação de mundo é possível. Assim, o homem realiza a experiência de

constituir seu mundo: seu estar no mundo é atividade constante de

interpretação. A constância se dá, pois, agindo ou não, fazendo ou não,

refletindo ou não, a recepção das coisas se dá pela interpretação que o homem

faz delas, em aparente “possibilidade sem limites”. Mas o interpretar chega ao

fim com a última possibilidade do homem, a morte.

A experiência (certeza) da morte indica que há um ponto no qual o

mundo do homem se fecha como um todo de sentido – é o fim das

possibilidades. A ideia de fim é que fecha o conjunto de interpretações em um

todo de sentido. A morte delimita a existência humana, delimita um tempo, que

é o tempo do mortal. “Somente o homem morre...”83 O “tempo entre”

nascimento e morte delimita também um “espaço entre”: nestes tempo e

espaço “entre” é que as coisas podem aparecer. A coisa aparece e traz mundo

em sentido; traz o homem para habitar seu próprio mundo – o mundo do

mortal.

A realidade humana é marcada pelo fim de seu tempo; de modo

algum e em circunstância alguma pode o ser humano deixar a mortalidade.

Mortalidade é o pé no chão da carne que, um dia, será terra. Terra é a matéria

do homem. No sentido que a coisa traz, vem a terra como aquilo que leva o

homem a receber sua certeza de mortal. Mas o homem não é apenas terra; a

possibilidade que ele tem de ser não se dá na terra, mas sobre ela. Homem na

terra é seu deixar de existir, quando então sua vida se desfaz propriamente

como terra. O mundo do homem é, então, o mundo do entre: entre terra e céu

– a terra que mostra seu limite mortal e o céu que mostra o infinito do imortal. O

existir humano é o existir do mortal. Segundo Heidegger, o homem apenas se

reconhece como tal a partir do momento em que se enxerga como habitante

83 M. HEIDEGGER, “… poeticamente o homem habita…”; In: EC, p.173.

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‘desta’ terra, medindo seu existir de mortal diante dos deuses. É no espaço

entre divinos e mortais que se dá o habitar, nesta terra que está ‘entre’.

Retomando o exemplo do jarro: o jarro pode trazer a água que,

como matéria, é a água em modo único (com possíveis desmembramentos

pela ciência química ou física). Mas a água que o jarro traz pode ser entendida

em seu sentido, quando é aquela que porta a força que vem da terra, das

fontes mais profundas e puras; e ainda porta a força que vem dos céus,

morada dos imortais, água que cai, calma ou devastadora. A água traz seu

brotar da terra e do céu. O que o jarro traz em seu “vazio” físico é o líquido

água; o que o jarro traz em seu vazio poético é a água que reúne terra e céu.

Do mesmo modo, o jarro pode trazer o vinho, bebida que preenche

como conteúdo um objeto de barro. Mas o vazio poético do jarro traz mais:

vinho é uva que brota da terra; uva é mortalidade, é o que passa. A uva é o que

passa, mas não desaparece, pois é transformada pela ação do homem que

entende além da mortalidade da terra. O homem enxerga, na uva, a

possibilidade de algo mais: o vinho traz terra, mas traz o sentido de

possibilidade do céu. Vinho é devaneio que traz o sentido do além da

mortalidade; vinho é sacrificial como oferta aos deuses, é entrega da

mortalidade à imortalidade.

Tais ideias não podem ser pensadas pela racionalidade do modo

como usualmente é entendida. O passo atrás no entendimento da coisa é a

busca do sentido que ela traz. A coisa reúne terra e céu, divinos e mortais – a

união e sentido dos quatro, que Heidegger chamou de quadratura (Geviert84). A

coisa faz a quadratura aparecer e ficar. Afirma o filósofo:

A coisa leva a quadratura a perdurar. A coisa coisifica mundo, no sentido de concentrar, numa simplicidade dinâmica, as diferenças. Cada coisa leva a perdurar a quadratura em cada duração da simplicidade do mundo.85

84 O prefixo “Ge” dá o sentido de união ou coletivo para algo; por exemplo: das Geschwister (coletivo de irmãos), das Gebirge (coletivo de montanhas), das Getier (coletivo de animais). Na construção de “Geviert” temos o mesmo: Ge (coletivo, união) e vier (quatro); das Geviert é a união dos quatro. 85 M. HEIDEGGER, A coisa; In: EC, p.158. [“Das Ding verweilt das Geviert. Das Ding dingt Welt. Jedes Ding verweilt das Geviert in ein je Weiliges aus Einfalt der Welt”. (Id., VA, p.182)]

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E, adiante, prossegue:

No sentido de reunir e recolher diferenças numa unidade, coisificar é aproximar mundo. Ora, aproximar constitui a vigência e o vigor essencial da proximidade. Poupando, pois, a coisa, moramos na proximidade. A aproximação da proximidade é a única dimensão própria do jogo de espelho de mundo.86

A diferença dos quatro é unificada na coisa, no sentido de preservar

terra e céu, mortais e divinos. A coisa aproxima mundo quando traz os quatro;

ou seja, quando o homem recebe a coisa, ele o faz acolhendo o sentido que

ela traz, e este sentido é a abertura de um espaço no qual este mesmo homem

possa estar. A coisa traz os quatro, mas não os anula em uniformidade, já que

os preserva cada um em sua distância. Falar de terra é também trazer a

simplicidade dos quatro...87 É possível perceber que, neste entendimento, o

mundo aparece como um jogo: na coisa, os quatro se dão a cada momento,

mas não de um mesmo modo. “Dá-se o nome de mundo a este jogo em

espelho (Spiegel-Spiel), onde se apropria a simplicidade de terra e céu, de

mortais e imortais”.88

Como em um jogo em espelho, o nó de reflexo se dá na coisa, esta

que “não está ‘na’ proximidade, como se esta fosse um continente.

Proximidade só se dá e acontece na aproximação cumprida pela coisificação

da coisa”.89 E, neste sentido, quando a coisa coisifica, o homem pode

verdadeiramente habitar o mundo, ao invés de simplesmente nele estar. Com a

aproximação à qual a coisa remete o homem o mundo se torna próximo,

mesmo sem diminuir distâncias; e as ocorrências que se dão no mundo se

tornam próximas, ainda que fisicamente distantes.

Na simplicidade deste nó (Gering) refletido dos quatro se dá a coisa;

é esta simplicidade que faz o homem habitar em meio a pouca coisa (jarra,

banco, prancha, arado etc.) – é pouco por conta do sem número que poderia

86 M. HEIDEGGER, A coisa; In: EC, p.158-159. [“Dingen ist Nähern von Welt. Nähern ist das Wesen der Nähe. Insofern wir das Ding als das Ding schonen, bewohnen wir die Nähe. Das Nähern der Nähe ist die eigentliche und die einzige Dimension des Spiegel-Spiels der Welt”. (Id., VA, p.182)] 87 Cf. Id., A coisa; In: EC, p.155. [“Sagen wir Erde, dann denken wir schon die anderen Drei mit aus der Einfalt der Vier”. (Id., VA, p.179)] 88 Id., A coisa; In: EC, p.157. [“Wir nennen das ereignende Spiegel-Spiel der Einfalt von Erde und Himmel, Göttlichen und Sterblichen die Welt”. (Id., VA, p.181)] 89 Id., A coisa; In: EC, p.155. [“Das Ding ist nicht »in« der Nähe, als sei diese ein Behälter. Nähe waltet im Nähern als das Dingen des Dinges”. (Id., VA, p.179)]

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ser coisa e estar na proximidade; é pouco por ser simples. Porém este nó se dá

como nó de luta (Gering des Ringes)90 no sentido de que os quatro se dobram

e se ajustam à sua vigência unificante. Heidegger fala aqui de flexibilidade dos

quatro; assim, nada é puramente terra ou céu, mortal ou divino – por isso, a

diferença das coisas, diferença de sentido, diferença de mundo: as coisas não

são as mesmas para toda pessoa.

Esta passagem de um pensamento para outro não está, sem dúvida, apenas em simples troca de posição. Algo assim já não pode acontecer nunca porque as posições, junto com seus modos de troca, já estão presas ao pensamento representativo. O passo atrás instala-se numa correspondência que, interpelada pelo ser mundo dentro do mundo, responde-lhe em seu próprio âmbito. Uma simples troca de posições não pode propiciar, em nada, o advento da coisa, como coisa, da mesma maneira que, agora, tudo que se põe, como objeto, na ausência da distância, nunca pode simplesmente virar coisa. As coisas nunca chegam, como coisas, por nos desviarmos apenas dos objetos ou por re-cordarmos antigos objetos de outrora que, talvez, já estivessem em vias de se tornarem coisas ou até de serem, como coisas.91

Schritt zurück é o passo atrás, a possibilidade de estabelecer com o

mundo uma relação diversa da que se dá costumeiramente a partir do

pensamento comum vigente. Enquanto o pensar representativo busca

enquadrar o mundo em suas possibilidades, recebendo a coisa simplesmente

como objeto em uma relação de conhecimento, o passo atrás é anterior à

representação da coisa. “Anterior” quer dizer da recepção da coisa em seu

mostrar-se; é permitir que a coisa traga significado específico para o mundo do

homem, não devendo obedecer ao significado tido como o correto.

A ideia de “passo atrás” nos remete a uma parada para melhor

observação. Ou seja, o homem caminha em um determinado ritmo junto às

90 Ver nota 67, p.60. 91 M. HEIDEGGER, A coisa; In: EC, p.159. [“Der Schritt zurück von einem Denken in das andere ist freilich kein bloßer Wechsel der Einstellung. Dergleichen kann er schon deshalb nie sein, weil alle Einstellungen samt den Weisen ihres Wechselns in den Bezirk des vorstellenden Denkens verhaftet bleiben. Der Schritt zurück verläßt allerdings den Bezirk des bloßen Sicheinstellens. Der Schritt zurück nimmt seinen Aufenthalt in einem Entsprechen, das, im Weltwesen von diesem angesprochen, innerhalb seiner ihm antwortet. Für die Ankunft des Dinges als Ding vermag ein bloßer Wechsel der Einstellung nichts, wie denn auch all das, was jetzt als Gegenstand im Abstandlosen steht, sich niemals zu Dingen lediglich umstellen läßt. Nie auch kommen Dinge als Dinge dadurch, daß wir vor den Gegenständen nur ausweichen und vormalige alte Gegenstände er-innern, die vielleicht einmal unterwegs waren, Dinge zu werden und gar als Dinge anzuwesen”. (Id., VA, p.183)]

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coisas, estabelecendo com elas uma relação específica. O passo atrás significa

parar e observar o que costumeiramente ocorre, deixando o dar-se das coisas

sem a interferência humana, em uma atividade “pré-racional” (considerada no

modelo da razão objetivadora), pois com “a ascenção da consciência, cuja

essência é, para a metafísica moderna, a representação, ascende a posição e

a oposição dos objectos”92. Significa considerar a coisa antes de uma direta

classificação dela como simples objeto diante de um sujeito cognoscente.

A coisa é flexível e “[n]esta flexibilidade, eles [os quatro] se ajuntam

dóceis, mundanizando mundo”93 – tal flexibilidade é o que o pensamento

representativo não consegue abarcar. O passo atrás está relacionado ao “ser

mundo dentro do mundo”, e no “pensamento do ser nunca se re-presenta

simplesmente um real e assume este representado como o verdadeiro”.94 A

indicação de Heidegger é a de que o pensamento precisa ser diverso para que

se receba a coisa como coisa e, assim, o mundo como mundo, para que o

homem verdadeiramente habite seu mundo, que é o do entre terra e céu,

mortais e divinos.

92 M. HEIDEGGER, Para quê poetas?, In: CF, p.329. 93 Id., A coisa; In: EC, p.158. [“Also schmiegsam fügen sie fügsam weltend die Welt”. (Id., VA, p.182)] 94 Id., A coisa; In: EC, p.161. [“Im Denken des Seins wird niemals nur ein Wirkliches vor-gestellt und dieses Vorgestellte als das Wahre ausgegeben”. (Id., VA, p.185)]

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1.2.3. “A palavra”

As melodias são doces, mas aquelas não ouvidas São mais doces (...) (John Keats)

Qual o sentido de refletirmos sobre a palavra? De que modo o tema

se mostra com importância, no caminho para a serenidade? A palavra nomeia

as coisas e, por sua vez, o mundo. O modo como se dá o nomear é que vai

permitir – ou não – o deixar-ser da serenidade. Além disso, o questionamento

que se nos coloca é sobre o modo como tal nomear é possibilitado, pois é o

homem que, por meio da palavra, nomeia: é preciso verificar até que ponto

interferem homem e palavra na constituição do que é o mundo.

Para tratar da palavra, Heidegger inicia o texto com um

questionamento relacionado à falta dela: o silêncio. O que instiga o pensador é

o fato de que a palavra pode faltar e o modo como isto afeta o homem em sua

relação com os deuses, consigo e com o mundo. “A proximidade de um deus

acontecia na própria saga de um dizer”.95 Em um dizer, os próprios deuses são

trazidos para a proximidade, tamanha a força da palavra; mas quando ela falta,

tudo silencia. O que teria ocorrido com a palavra? A palavra que silencia revela

um poder talvez mais forte que o de nomear; ao silêncio, Heidegger chamou de

“mistério da palavra” (Geheimnis des Wortes).

Ao olharmos para a etimologia do termo Geheimnis,96 que pode ser

traduzido como “mistério” ou “segredo”, temos a indicação de que o silêncio

não é algo externo àquilo que a palavra é. O termo encontra sua raiz em das

Heim, que é o lar, em todo o significado que abrange: lar é onde o homem “se

sente em casa” e desenvolve o que ele é. Por sua vez, o prefixo “ge” serve

para dar a ideia de coletivo: é a união das coisas que fazem parte de um

mesmo âmbito. Geheimnis é o conjunto de coisas que fazem parte do lar,

trazendo um sentido esotérico de ser fechado em si e aberto apenas a quem

95 M. HEIDEGGER, A linguagem; In: CL, p.173. [“Im Sagen selbst begab sich das Nahen des Gottes”. (Id., US, p.207)] 96 Cf. DUDEN, Das Herkunftswörterbuch, p.322.

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toma parte do lar. O silêncio está no âmbito da palavra, é parte daquilo que a

palavra também oferece.

Quando o silêncio se apresenta, a palavra falta e os deuses

desaparecem. Desaparecem justamente por ser a palavra o “lugar do

aparecimento” – lugar ou possibilidade de que algo apareça (em primeira

instância, esta determinação não é necessária). O fato é que o mundo aparece

e, de modo quase simultâneo, é nomeado. “Palavra” não significa “palavra

escrita” ou “palavra falada”, mas o modo segundo o qual o mundo aparece e

pode ser interpretado. “A palavra, no modo em que já foi palavra, perdeu-se do

antigo lugar em que deuses apareciam”.97 Encontramos aqui uma referência

histórica que dá indicação de um passado no qual se deu a experiência da

“palavra como palavra”: a Grécia Antiga é o lugar/tempo no qual os deuses

apareciam; a experiência com as palavras na origem do pensamento ocidental

é indício de que a palavra se perdeu.

Com estas problematizações, Heidegger inicia a discussão no texto

A palavra. A relação do homem com tudo o que se dá na realidade é mediada

pelo modo como ele se utiliza da palavra. Em primeiro lugar, a palavra

nomeadora estabelece o lugar dos entes no mundo; porém, de modo habitual,

sempre seguindo a determinação objetivadora da razão científica. Assim, se

pretendemos traçar um caminho para a serenidade, o tema da palavra é um

dos primeiros a serem visitados. Não é possível pensar qualquer mudança na

relação do homem com os demais entes, caso a estrutura de tal relação – que

é dada pela palavra – não seja questionada.

O entendimento do mistério em sua força pode ser buscado na

própria palavra. Na poesia, como expressão máxima da palavra poética, o

autor abre caminho para sua reflexão: toma como indicação uma experiência

que o poeta faz da força e do mistério da palavra. Por que, exatamente, no

dizer do poeta é que deve ser buscada a direção para a reflexão? Porque o

poeta é quem diz pela própria necessidade do a-ser-dito, sem responder a

97 M. HEIDEGGER, A linguagem; In: CL, p.173. [“Dem einstigen Ort des Erscheinens der Götter ist das Wort verwehrt, das Wort, wie es einmal schon Wort war”. (Id., US, p.207)]

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imposições e necessidades criadas pela razão científica – “é um sopro por

nada”.98 Diz o poema A palavra (Das Wort), de Stefan George:

A palavra Milagre da distância e da quimera Trouxe para a margem de minha terra Na dureza até a cinzenta norna Encontrei o nome em sua fonte-borda – Podendo nisso prendê-lo com peso e decisão Agora ele brota e brilha na região... Outrora eu ansiava por boa travessia Com uma joia delicada e rica Depois de longa procura, ela me dá a notícia: “Assim aqui nada repousa sobre razão profunda” Nisso de minhas mãos escapou E minha terra nunca um tesouro encontrou... Triste assim eu aprendi a renunciar: Nenhuma coisa que seja onde a palavra faltar.99

Heidegger toma a experiência do poeta apresentada no texto como

caminho para se chegar ao citado mistério – o centro do nomear. O último

verso traz a ideia de que “nada pode ser quando falta a palavra” (Kein ding sei

wo das wort gebricht.); o poeta chega a tal “conclusão” depois de percorrer um

caminho na experiência do nomear. Que experiência é esta? Qual vivência do

poeta pode abrir a reflexão sobre o poder da palavra?

A experiência do poeta é a travessia (fahrt) que realiza naquele que

é o seu lugar: ele traz para a margem de sua terra (meines landes saum) tudo

o que aprende, verifica e recolhe; traz aquilo que encontra, mesmo não

sabendo o que é; traz por não ser dele nem ter se originado em sua terra. As

coisas vigoram por meio do sentido que recebem quando o poeta encontra um

98 M. HEIDEGGER, Para quê poetas?, In: Caminhos de floresta, p.364. 99 Id., A linguagem; In: CL, p.174. [“Das Wort / Wunder von ferne oder traum / Bracht ich an meines landes saum / Und harrte bis die graue norn / Den namen fand in ihrem born – / Drauf konnt ichs greifen dicht und stark / Nun blüht und glänzt es durch die mark ... / Einst langt ich an nach guter fahrt / Mit einem kleinod reich und zart / Sie suchte lang und gab mir kund: / >So schläft hier nichts auf tiefem grund< / Worauf es meiner hand entrann / Und nie mein land den schatz gewann... / So lernt ich traurig den verzicht: / Kein ding sei wo das wort gebricht”. (Id., US, p.208)]

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nome para elas; deste modo, o nomear dará forma à terra, moldando seu

mundo. O homem é criador do mundo, mas não das coisas – elas são trazidas

para a proximidade. Apenas o nomeado pode ser próximo (pode ser coisa),

como se o sem nome não pudesse ser reconhecido:

Para isso, nomes são preciso. Nomes são palavras pelas quais o que já é, o que se considera como sendo se torna tão concreto e denso que passa a brilhar e a florescer por toda parte na terra, predominando como beleza. Os nomes são palavras que apresentam.100

A margem (Saum) é a região que abre o território de sua terra: toda

coisa deve passar pela margem para poder estar propriamente na terra do

poeta. Passando pela margem é que a coisa recebe um nome: as palavras que

o poeta encontra delimitam sua terra, seu mundo; além disso, dão-lhe

propriedade, pois seu nomear é singular. Sem palavra, o poeta não tem

mundo: o que ali não está (não tem nome – palavra), não existe para ele; até

seria possível dizer que existe, mas “não faria parte” de seu mundo.

A importância da palavra como nome é aquilo que o pensador

alemão está apresentando como busca primeira do poeta: trazer para a

proximidade para que se possa falar. Se não se puder dar nome à coisa, dela

não se pode falar; com nome, a coisa se torna concreta e densa (greifbar und

dicht). Há, em alemão, direta ligação etimológica entre dicht (denso) e dichten

(poetar)101; das Gedicht é o poema: o prefixo “ge” como coletivo do que foi

tornado denso. Por meio da palavra (poética), as coisas se tornam densas.

A palavra do poeta caminha contrariamente àquilo que,

costumeiramente, entender-se-ia como esclarecer: a palavra poética não torna

transparente. O poema é o “lugar” das coisas enquanto condensadas. Mas,

ainda, não condensadas como ação do poeta: as coisas são já condensadas

em si mesmas e, no texto do poema, encontram as palavras próprias para

indicar sua densidade. Neste caminhar, entendemos que o mundo depende,

100 M. HEIDEGGER, A linguagem; In: CL, p.178. [“Dazu bedarf es der Namen. Dies sind Worte, durch die das schon Seiende und für seiend Gehaltene so greifbar und dicht gemacht wird, daẞ es fortan glänzt und blüht und so überall im Lande als das Schöne herrscht. Die Namen sind die darstellenden Worte”. (Id., US, p.212)] 101 Cf. DUDEN, Das Herkunftswörterbuch, pp.219-220.

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diretamente, da relação que o poeta tem com a palavra. A coisa brilha e

floresce (glänzt und blüht), torna-se concreta e pode aparecer

verdadeiramente; em outras palavras, a coisa toma parte no mundo.102

“Existe algo mais provocante e perigoso para o poeta do que a sua

relação com a palavra?”103 Esta pergunta soa de modo afirmativo: a relação é a

mais perigosa e provocadora. Erregen é o verbo “excitar” ou “provocar”; a

relação com a palavra pro-voca o poeta, chamando-o para uma atividade que

apenas pode ser realizada por ele. Provocação poderia bem dizer daquilo que

o incita a algo; e se é a relação com a palavra o que o provoca, o que incita é o

próprio poder do poeta em abrir caminho para as coisas. O poeta é

impulsionado a nomear, pois as coisas se dão a ele e precisam de um nome

para que possam permanecer: o mundo dele depende totalmente do modo

como nomeia as coisas. Por isso é que a relação se mostra perigosa, pois o

poeta faz a seu modo, dentro de sua interpretação da realidade, sem garantia

alguma de que em seu falar/nomear se esteja dando “espaço” para a coisa

mesma.

Ser trazida para o mundo do poeta não faz da coisa sua propriedade

– “longe de querer [guardar] para si, ele quer somente apresentar”104. A busca

pela palavra não encontra raízes em um desejo próprio, não vem de si mesma,

mas de uma reivindicação de nomes (Anspruch auf die Namen). Para que o

mundo do poeta exista, há a reivindicação de que as coisas sejam nomeadas.

102 O poeta mexicano Octávio Paz (1914-1998) fala de modo explícito sobre a palavra do poeta sendo pensada como a que participa da construção do mundo e, de modo particular, da sociedade e suas instituições; no caminho inverso, a própria palavra é construção do mundo (as palavras que podem ser encontradas na fonte):

As palavras do poeta, justamente por serem palavras, são suas e alheias. Por um lado, são históricas: pertencem a um povo e a um momento da fala desse povo: são algo datável. Por outro lado, são anteriores a toda data: são um começo absoluto. Sem o conjunto de circunstâncias a que chamamos Grécia não existiriam nem a Ilíada nem a Odisséia; mas sem esses poemas tampouco teria existido a realidade histórica que foi a Grécia. O poema é um tecido de palavras perfeitamente datáveis e um ato anterior e a todas as datas: o ato original com que principia toda história social ou individual; expressão de uma sociedade e, simultaneamente, fundamento dessa sociedade, condição de sua existência. Sem palavra comum não há poema; sem palavra poética, tampouco há sociedade, Estado, Igreja ou comunidade alguma. A palavra poética é histórica em dois sentidos complementares, inseparáveis e contraditórios: no de constituir um produto social e no de ser uma condição prévia à existência de toda sociedade. (O. PAZ, Signos em rotação, p.52)

103 M. HEIDEGGER, A linguagem; In: CL, p.175. [“Gibt es Erregenderes und Gefährlicheres für den Dichter als das Verhältnis zum Wort?”. (Id., US, p.209)] 104 Id., A linguagem; In: CL, p.178. [“...er jedoch nicht für sich behalten, sondern darstellen will”” (Id., US, p.212)]

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O poeta deve buscar os nomes onde tal reivindicação possa ser satisfeita –

está em suas mãos esta ação e o que encontrar fará a coisa. É, assim, o

nomear o que estabelece o mundo do poeta, o que dá o modo de ser das

coisas. O poeta se vê provocado para algo que pode, porém percebe que sua

ação é resposta a uma reivindicação que não vem de si.

Seria a poesia uma necessidade da palavra? Caso seja, o poeta

estaria na possibilidade de ser poeta não por si mesmo. Se o homem é

provocado e deve responder à reivindicação, isto poderia ser indício de que

“algo acima da palavra” necessita do nomear – “acima dos deuses e dos

homens”105. O que poderia estar acima de homens e deuses? Entendemos que

o ser venha antes dos próprios divinos e mortais.

As coisas podem ser encontradas, mas não vigoram sem um nome.

O poeta se vê diante da coisa que já está; ou seja, não é ele quem a cria. E,

deste modo, a atividade (poder) do poeta é exigida pelo encontro dele com a

coisa mesma. O homem se vê desde sempre diante do ente, diante de coisas

que se dão – tal fato é que reivindica nomes. Antes de qualquer tentativa de

racionalização, o dar-se das coisas exige que elas sejam nomeadas,

justamente para poderem estar na terra do poeta. Se chamamos este “dar-se”

de “existir”, podemos dizer que o existir das coisas fala ao homem desde

sempre em uma linguagem própria e direta que não se prende às construções

racionais – é a linguagem do ser, que provoca o homem a nomear. Porém, o

nomear se cala quando falta a palavra.

A ideia inicial do texto diz que a palavra já foi um acontecer e falar

dos deuses. “A proximidade de um deus acontecia na própria saga de um

dizer”.106 Mas o que teria ocorrido com a palavra, para que o verbo venha no

pretérito (“acontecia”)? O que aconteceu com a palavra é a razão de não mais

os deuses estarem na proximidade – houve mudança naquilo que ocorria; há

um enigma (Rätsel) que se põe: o dizer, que está posto com uma saga, deve

indicar o que ocorreu com a palavra. O pensador se volta para o poema A

palavra não para responder a tal enigma, mas para problematizá-lo, tentando

105 M. HEIDEGGER, A linguagem; In: CL, p.173. [“über die Götter und Menschen” (Id., US, p.207)] 106 Id., A linguagem; In: CL, p.174. [“Im Sagen selbst begab sich das Nahen des Gottes.” (Id., US, p.207)]

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entender de que se trata. É na travessia do poeta que o pensador encontra

elementos do que constitui o mistério da palavra.

No poema, a travessia do poeta se dá em duas experiências

distintas: na primeira, ele encontra a palavra (chamemos de experiência

positiva), na segunda, a palavra falta (chamemos de experiência nula).

“Encontrei o nome”, diz o poema; assim, é satisfeita a reivindicação. E o poeta

se realiza no poder que tem de encontrar a palavra para a coisa ser – e o,

agora, nomeado “brota [floresce] e brilha” (blüht und glänzt) na terra do poeta.

A experiência positiva, embora traga o poder da palavra em fazer as coisas

serem, põe a mesma palavra como sujeita à ação do poeta; ele busca,

encontra e concede a palavra – ele nomeia.

Enquanto o poeta realiza o nomear, nada aparece como inquietante;

a situação é alterada pela experiência nula, quando ele busca a palavra e, não

a encontrando, não pode nomear. A experiência que o poeta, antes, tinha, não

mais se mostra e ele terá de questionar a si próprio em seu fazer.

Guardados na fonte-borda, os nomes são assumidos como o que dorme, como o que precisa ser acordado, para então ser usado no intuito de apresentar as coisas. Os nomes e as palavras são como uma consistência firme, que se coordena com as coisas e posteriormente se lança para as coisas com vistas a apresentá-las.107

Na experiência nula, na esperança de que pudesse realizar aquilo

que lhe cabe – buscando boa travessia (guter fahrt) –, o poeta chega até onde

são buscados os nomes: em um poço (born)108 no qual as palavras que

nomeiam estão adormecidas até o momento no qual são despertadas e de lá

retiradas para que apresentem a coisa. A palavra no poço é mais que

simplesmente palavra, pois antes de nomear, ela é em si mesma fonte

inesgotável; depois de atribuída para que algo seja apresentado, ela deixa sua

fluidez e é fixada na coisa que apresenta. Desperta (despertada), a palavra se

concretiza; dentro do poema – a terra do poeta – a palavra é concreta. Isso

107 M. HEIDEGGER, A linguagem; In: CL, p.179. [“Die Namen, die der Brunnen birgt, gelten als etwas Schlafendes, was nur geweckt zu werden braucht, um als Darstellung der Dinge seine Verwendung zu finden. Die Namen und Worte sind wie ein fester Bestand, der den Dingen zugeordnet ist und nachträglich ihnen für die Darstellung angetragen wird”. (Id., US, p.214)] 108 “Born” é termo antigo que pode ser entendido como “fonte” (“Brunnen”) donde brota a água. (Cf. DUDEN, Das Herkunftswörterbuch, p.191)

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significa dizer que o mundo do poeta ganha materialidade na palavra que

nomeia; sem nomes, o mundo do poeta é vazio. Ainda assim, ao ser vista de

fora, a palavra do poema tem concretude sem ser enrigecida.

Nesta experiência nula, o poeta chega ao poço “à margem de sua

terra” (meines landes saum) com uma joia (kleinod). Esta joia precisa de um

nome para ser apresentada e fixada “com peso e decisão” na terra do poeta.

Ainda dicht und stark pode ser traduzido como “denso e vigoroso” trazendo um

aspecto de determinação da coisa. Se nomeada, a joia seria determinada e

poderia vigorar, mas de modo denso, não transparecendo, conservando uma

densidade em si. O nomear do poeta não esgota a coisa em uma nitidez; o

vigorar da coisa na terra do poeta ainda deixa a coisa guardar algo em si. É isto

que parece intrigar o nomeador: a palavra que nomeia, faz vigorar, porém sem

esgotar a coisa em uma determinação última – a coisa é nomeada, mas não é

propriedade daquele que nomeia.

O nomear poético é diferente do falar comum e do falar científico,

pois, na poesia, a palavra, mesmo fora do poço, não se esgota. Com suas

palavras, o poeta “invoca e evoca”, e sua terra “é sua enquanto o domínio

assegurado de sua poesia”.109 E, para que a joia encontrada seja de sua terra,

é preciso que sua poesia a determine, dando-lhe nome. No poço, está o poeta

com a joia nas mãos; porém, em sua experiência nula, a resposta que recebe

da norna (guardiã do poço) é que “aqui nada repousa (schläft hier nichts) sobre

razão profunda”, indicando não haver palavra que possa nomear a joia. Não há

palavra a ser despertada para esta nova necessidade. Heidegger diz que “esta

fonte de onde a saga do dizer poético vinha até então extraindo as palavras,

que como nomes apresentam os entes, essa fonte secou”.110

Não poder nomear a joia traz ao poeta uma experiência singular,

pois ele se vê na impossibilidade daquilo que, antes, era o que fazia de si um

poeta. A experiência da fonte que seca é a experiência da falta da palavra – é

quando a palavra falha. Aquele que não encontra nome para o que se lhe

109 M. HEIDEGGER, A linguagem; In: CL, p.178. [“Sein ist das Land als der gesicherte Bezirk seines Dichtens”. (Id., US, p.212)] 110 Id., A linguagem; In: CL, p.179. [“Aber diese Quelle, aus der das dichterische Sagen bisher die Worte schöpfte, die als Namen das Seiende darstellten, spendet nichts mehr”. (Id., US, p.214)]

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apresenta não pode construir mundo. Disso decorre que o poeta se vê abalado

em seu próprio “ter mundo”. A consciência que surge é, como entende

Heidegger, a de que a palavra tem um poder que antecede ao do poeta: a

palavra pode não estar disponível. “Onde a palavra falha, não há coisa. A

palavra disponível é o que confere ser à coisa”.111

Mas o que é o falhar da palavra? É interessante observar que o que

ocorre não é a não experiência da palavra, mas sim a experiência de sua

ausência. A palavra não estar disponível para nomear aquela joia significa

haver algo para o que não há nomear; a joia fica sem nome. Mas a falta de

nome não leva a joia a deixar de existir: ela apenas desaparece, escapando

das mãos do poeta (Worauf es meiner hand entrann / Und nie mein land den

schatz gewann...); ou seja, o tesouro (schatz) que é a joia não poderá tomar

parte de seu mundo.

A experiência nula leva o poeta a estabelecer uma nova relação com

a palavra. Daí vem o aprendizado do poeta quando afirma “eu aprendi” (lernt

ich), deixando claro que alcançou o conhecimento de algo, que visualizou algo

que deve levar para si, mudando a concepção que tem de seu poder de

nomear. A experiência da palavra ausente mostra que há algo além do poetar

do poeta.

E o que o poeta aprendeu? A renúncia (der Verzicht). A renúncia de

um poder que seja total, no reconhecimento do que pode a palavra. “O poeta

deve assim renunciar a ter sob seu poder a palavra enquanto nome capaz de

apresentar o ente por ele mesmo posicionado”.112 Renunciar, por sua vez, não

significa cortar totalmente a relação que antes tinha com a palavra: a

experiência da renúncia mostra o reconhecimento de algo que é próprio da

palavra e que, por sua vez, exige o estabelecimento de relação diversa com

ela. Renunciando, o poeta reconhece que nenhuma coisa pode ser (Kein ding

sei) onde falta a palavra (wo das wort gebricht).

111 M. HEIDEGGER, A linguagem; In: CL, p.174. [“Wo das Wort fehlt, ist kein Ding. Das verfügbare Wort erst verleiht dem Ding das Sein”. (Id., US, p.209)] 112 Id., A linguagem; In: CL, p.180. [“Der Dichter muβ darauf verzichten, das Wort als den darstellenden Namen für das gesetzte Seiende unter seiner Herrschaft zu haben”. (Id., US, p.215)]

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A palavra deixa a coisa ser coisa. Isto significa que, ao nomear, o

poeta não esgota a coisa dentro de uma palavra: ela faz a coisa vigorar, mas

sem cerceá-la dentro das possibilidades lexicais. Esta é a densidade

conservada pela palavra; a coisa não transparece. Heidegger ainda questiona

o que propriamente é a coisa, o que é a palavra (e seu poder) e o que significa

ser, para que deste modo se deem ao poeta. No caso da joia, ela desapareceu

pela falta da palavra; desapareceu das mãos, deixando de vigorar na terra do

poeta. “A palavra é o que confere vigência, ou seja, ser, em que algo como

ente aparece”.113 “Vigência” é a tradução de Anwesen, é o ter uma essência, a

possibilidade de estar presente como algo determinado. Deste modo, o que a

palavra faz com a coisa é permitir que ela seja algo; não é simplesmente tomar

algo que já vigora e atribuir um nome, pois o nome é o que faz vigorar. A joia

não vigora na terra do poeta.

A renúncia consente o poder mais elevado da palavra, somente onde a palavra deixa coisa ser coisa. A palavra con-diciona a coisa como coisa. Chamaremos esse poder da palavra de con-dicção. (...) Mas a palavra não dá fundamento às coisas. A palavra deixa a coisa vigorar como coisa. Esse deixar é o que significa con-dicção. Mas o poeta se consente, ou seja, consente em seu dizer o mistério da palavra. Nesse consentir, aquele que renuncia recusa-se à reivindicação que ele antes atendia.114

O renunciar do poeta consente, ou seja, permite, o poder da palavra.

A renúncia do poeta não é apresentada como um retirar-se da relação, mas um

permitir-se estabelecer relação outra. Em tal consentimento, permite o

questionamento de seu fazer poético, permite o reconhecimento de algo que

tira sua segurança: o poeta sempre nomeou, mas agora deve reconhecer o

mistério da palavra, abrindo espaço para o poder dela, a saber, que nenhuma

coisa pode ser onde ela faltar. O poeta renuncia, dá o passo atrás, deixa ser.

113 M. HEIDEGGER, A linguagem; In: CL, p.180. [”Dem entgegen verleiht das Wort erst Anwesen, d.h. Sein, worin etwas als Seiendes erscheint”. (Id., US, p.214)] 114 Id., A linguagem; In: CL, p.184-185. [“Das Verzichten sagt sich dem höheren Walten des Wortes zu, das erst ein Ding als Ding sein läβt. Das Wort be-dingt das Ding zum Ding. Wir möchten dieses Walten des Wortes die Bedingnis nennen. (...) Aber das Wort be-gründet das Ding nicht. Das Wort läβt das Ding als Ding anwesen. Dieses Lassen heiβe die Bedingnis. Der Dichter erklärt nicht, was diese Bedingnis ist. Aber der Dichter sagt sich, d. h. sein Sagen diesem Geheimnis des Wortes zu. In solchem Sich-zusagen versagt der Verzichtende sich dem vormals von ihm gewollten Anspruch”. (Id., US, p.220)]

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O poeta, mesmo com todo esforço, nunca conseguirá dominar o a

existência pela sua palavra. Seu mundo é delineado por sua capacidade de

nomear, porém a experiência da palavra que não está sempre à mão faz com

que ele renuncie diante dela. A palavra não dá fundamento (be-gründet nicht) à

coisa, mas a deixa ser, como coisa. O poeta apresenta a coisa ao mundo.

A travessia, em sua experiência nula, abala a alma segura do poeta.

Necessário é pensar o porquê de tal silêncio – há uma indicação, quando

Heidegger diz que o poeta “permitiu que seu dizer futuro e possível se

deparasse com o mistério da palavra, se deparasse com a con-dicção da

coisa”.115 O poeta se depara com algo que, antes, não conseguia enxergar.

Quando passa a ver este “novo” poder da palavra, deve deixar para trás a

pretensão de conseguir abarcar tudo com sua palavra. A palavra falta e o

nomeador passa a enxergar que havia se perdido no que pode ser entendido

como necessidade de nomear, como se fosse condição para sua vida.

Pela ausência da palavra, o fazer do poeta é como que resgatado de

uma queda na “autoconfiança e segurança do anúncio dominador” (herrischen

Kündens). A palavra falta porque o poeta tentou dela tirar até mesmo o que a

ela não cabe. Há algo da linguagem que a palavra poética não alcança

(representado pela joia do poema); isto mostra justamente que o homem (o

poeta) não é o senhor da linguagem do ser – sua palavra não dá nem retira o

fundamento da coisa. A renúncia é o estar propriamente diante de um dizer

indizível (unsäglichen Sage); no poema, o renunciar é um entregar-se à

verdade da palavra. Renunciando, o poeta realiza aquilo que cabe

propriamente à poesia, que é a possibilidade de estabelecer uma relação com

o mundo que não seja de dominação.

O que cabe ao poeta é resgatar a palavra em seu poder,

conservando-a e libertando-a de uma sintaxe que foi assumida como única

possibilidade de falar; a palavra presa a um sentido qualquer estabelecido.

Significa entender que a linguagem não está para obedecer às necessidades

do citado anúncio dominador. Resgatar a palavra em seu poder leva o poeta a

115 M. HEIDEGGER, A linguagem; In: CL, p.185. [“sein künftig noch mögliches Sagen vor das Geheimnis des Wortes, vor die Bedingnis des Dinges im Wort bringen lassen”. (Id., US, p.220)]

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um recolocar-se como poeta, repensando seu fazer; deste modo, podemos

pensar o resgate da palavra como resgate do próprio poeta em seu fazer que

caiu na decadência da linguagem.

Ainda resta falar propriamente da joia do texto de Stefan George.

Uma joia que não pode ser nomeada por não ser encontrada palavra para ela.

Em primeiro lugar, é preciso notar que, mesmo na impossibilidade de que seja

encontrado um nome, ainda assim é o poeta quem encontra tal joia delicada e

rica e a traz nas mãos. O que é tal joia, nem mesmo o poeta o pode dizer, já

que, sem nome, ela desaparece de suas mãos e “sua terra nunca um tesouro

encontrou” (Und nie mein land den schatz gewann...).

E o que é que desaparece das mãos do poeta em seu nomear? Qual

é a experiência da falta pela qual passa o poeta? A palavra, antes disponível,

se mostra agora indisponível a quê? “A joia delicada e rica é o vigor velado da

palavra, que, de maneira imperceptível e mesmo indizível, nos pro-picia a coisa

como coisa”.116 Ou seja, aquilo para o qual não há palavra nomeadora é

justamente o poder da palavra, o mistério da palavra que “pro-picia” (darreicht)

a coisa como coisa. Fica respondido o questionamento inicial de Heidegger

sobre o que vem a ser a palavra, para que seja capaz de algo assim: não há

palavra que possa dizer o poder da palavra; não há palavra para seu mistério:

“não há um dizer capaz de trazer à linguagem a essência vigorosa da

linguagem”.117

A joia não nomeada nunca fará parte de sua terra; deste modo, o

poeta é aquele que sabe do mistério e a ele deve corresponder. Corresponder

é, aqui, o próprio renunciar. A experiência nula leva à renúncia diante daquilo

que sequer se pode nomear. Eis o tesouro que a terra do poeta jamais terá

para si: em meio às coisas nomeadas, a joia é algo que não pode vigorar em

sua terra; significa dizer que o poeta não alcança o mistério da palavra.

Tesouro é sempre algo singular, que não pode ser de todos, por não ser

facilmente encontrado. O falar habitual e comum não encontra o tesouro do

116 M. HEIDEGGER, A linguagem; In: CL, p.188. [“Das kleinod reich und zart ist das verborgene Wesen (verbal) des Wortes, das sagend unsichtbar und schon im Ungesprochenen das Ding als Ding uns darreicht”. (Id., US, p.223)] 117 Id., A linguagem; In: CL, p.187. [“Für dieses Geheimnis fehlt das Wort, d. h. jenes Sagen, das es vermöchte, das Wesen der Sprache – zur Sprache zu bringen”. (Id., US, p.223)]

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poeta. E o mistério permanece mistério na joia que escapa (entrann) de suas

mãos. O tesouro é a palavra para a essência da linguagem, a linguagem do

ser. A essência da palavra não vem pela palavra, mas pelas mãos do poeta;

ela se mostra e escapa e ele guarda o mistério.

E de onde vem tal joia? “Fica obscura de onde provém esta joia.”118

A origem (die Herkunft) da joia fica na escuridão (dunkel); ou seja, não se “vê”

a origem, indicando que ela vem de algum lugar onde a luz não alcança. A luz

que não alcança a origem da joia é a própria luz da razão – razão do poeta (o

citado anúncio dominador). E isto ainda nos remete ao início do texto, quando o

autor fala da luta entre homens e deuses que é regida por algo acima dos

deuses e dos homens; e cita uma fala de Antígona: “e ninguém jamais

conseguiu ver de onde ela surgiu para brilhar”119. O vigor da linguagem do ser

é o que surge como joia, mas não pode ser nomeada por estar acima dos

deuses e dos homens; é a esta linguagem que o homem (poeta) deve

responder, correspondendo ao mistério da palavra e assumindo para si uma

renúncia. Responder à linguagem é responder ao ser que se dá como

linguagem ao pensamento. O aprender (lernen) do poeta é a consciência que

adquire aquele que vê algo, que em sua travessia alcança a visão de algo. Traz

a joia sem poder ver de onde ela vem e “atravessa na experiência” (Erfahrung),

podendo ver unicamente aquilo a que deve renunciar. No aparecer da coisa é

que o ser se clareia; na falta do nome, ele se esconde.

A experiência que se dá na travessia revela algo que vai além do

próprio fazer: ela mostra o que transcende. Heidegger trata da palavra humana

que nunca alcança a linguagem em seu vigor – por isso é que a joia nunca

vigora na terra do poeta (o indizível continua como indizível). Falta a palavra

para nomear a essência da linguagem; dizendo de outro modo, falta a palavra

para a palavra. É mistério o que merece ser pensado mais dignamente.

Porque a renúncia consentiu o mistério da palavra, o poeta guarda com a renúncia essa joia, na graça do pensamento. Desse modo, o poeta, aquele que diz, privilegia e preza essa

118 M. HEIDEGGER, A linguagem; In: CL, p.179. [“Die Herkunft des Kleinods bleibt dunkel”. (Id., US, p.214)] 119 M. HEIDEGGER, A linguagem; In: CL, p.173. [“...und keiner hat dorthin geschaut, von wo aus er ins Scheinen kam”. (Id., US, p.207)]

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joia frente a tudo mais. A joia passa a ser o que para o poeta é o mais digno de se pensar. Pois para aquele que diz o que pode ser mais digno de pensar do que o encobrir-se do vigor da palavra, do que o desaparecer da palavra para a palavra?120

De tudo o que já passou por suas mãos, a joia é o que de mais

singular há; é aquilo que não vigora no mundo e não mais pode ser visto.

Escapando de suas mãos, o poeta a guarda no pensamento, como recordação

(im Andenken). Enquanto seu mundo é formado pelas coisas que apareceram

e, com as palavras encontradas, podem ser vistas sempre, a joia é o que veio

da escuridão (dunkel) e não mais poderá ser vista, apenas pensada – o mais

digno de se pensar. Deste modo, o pensamento não é o que cabe unicamente

ao pensador, mas ao poeta; e o pensador deve pensar a mesma joia.

“Escutando o poema, pensamos desde a poesia. Desse modo, é a poesia, é o

pensamento”.121 Poesia e pensamento permanecem em significativa

articulação, em uma afinidade, quando se responsabilizam pelo mistério da

palavra. Pensar e poetar são modos diferentes de responder ao apelo da

linguagem; são os dois modos que alcançam uma correspondência a tal apelo.

Na tentativa de falar sobre tal mistério, λόγος (lógos) é a mais antiga

palavra empregada para designar aquilo que é o poder da palavra. Lógos é o

termo grego para o “fazer-se vigor do que é vigente” (das Anwesen des

Anwesenden). Para os gregos, lógos é o que não deixa as coisas ficarem

anônimas. Porém, Heidegger entende que esta experiência do ser/palavra

como lógos, foi esquecida ao longo da história da filosofia (que o autor chamou

de “metafísica”).

Eis o que é o mais digno de se pensar: a relação entre o dizer e o

ser, pois tudo o que vigora, em seu vigor, indica um pertencer mútuo entre

palavra e coisa; isto não é algo claro. O modo como palavra e coisa pertencem

(gehören) um ao outro ainda é velado (verhüllten). Poeta e pensador (Dichter

120 M. HEIDEGGER, A linguagem; In: CL, p.188. [“lnsofern der Verzicht sich dem Geheimnis des Wortes zugesagt hat, behält der Dichter das Kleinod durch den Verzicht im Andenken. Auf diese Weise wird das Kleinod zu dem, was der Dichter als ein Sagender allem anderen vorzieht, über alIes übrige würdigt. Das Kleinod wird zum eigentlich Denkwürdigen des Dichters. Denn was kann es für den Sagenden Denkwürdigeres geben als das sich verschleiernde Wesen des Wortes, das entscheinende Wort für das Wort?” (Id., US, p.224)] 121 Id., A linguagem; In: CL, p.188. [“lndem wir das Gedicht hören, denken wir dem Dichten nach. Auf solche Weise ist: Dichten und Denken”. (Id., US, p.224)]

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und Denker) são os que devem guardar o mistério da palavra; a eles resta tal

ação, no contato com o mundo, na apresentação da coisa. Neste caminho,

resta a tarefa de um enfrentamento com a filosofia em seu fazer ao longo de

sua história, na percepção do como esta dirigiu sua reflexão em meio aos entes

(acreditando esgotá-los em sua linguagem). Pensamento não é simplesmente

o desenvolvimento alcançado pela filosofia ao longo do tempo – a tal

desenvolvimento, Heidegger dá o nome de “metafísica”. Pensamento é o que

abre ao homem a possibilidade de problematizar o que significa ser. Apenas a

poesia pode se equiparar ao pensamento.

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Capítulo 2 – Pensamento, ciência, experiência – qual o espaço

para a serenidade?

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2.1. O interessante e o que cabe pensar

A questão do pensamento é algo não posto como questionamento

de modo radical pela ciência em geral – mesmo as reflexões de cunho

biológico ou psicológico são tentativas de explicar o funcionamento de uma

capacidade humana, não se tomando o pensar pelo próprio pensar. Esta

reflexão é algo que cabe, de modo singular, à filosofia, que toma caminho

diverso daquele seguido pela ciência. Mas dizer “filosofia” ainda não toca o que

exatamente Heidegger entende, pois, a filosofia é, no entendimento geral, o

conteúdo que foi desenvolvido ao longo da história ocidental, da metafísica

tradicional que, para ele, é a história do esquecimento do ser. A questão do

pensamento não é, então, algo que cabe aos filósofos, mas aos pensadores.

Os pensadores são em verdade chamados decididamente de “pensadores” porque, como se diz, eles pensam “fora de si”, e, nesse pensar, eles se colocam a si mesmos em jogo. O pensador responde, ele mesmo, às questões colocadas por ele próprio. Pensadores não anunciam “revelações” do deus. Não relatam inspirações de uma deusa. Dizem tão-somente a própria evidência.122

Este “pensar fora de si”, colocando-se como objeto do próprio

pensar, é algo não permitido ao homem comum. No dia a dia, a sociedade

exige que o homem responda a diversas necessidades que não a necessidade

do pensamento. “Sem pensamento”, o homem é levado pelo fluxo do

desenvolvimento técnico-político-social. O homem já não pensa, mas com a

impressão de que o faz123. E Heidegger não está propondo que todo homem

seja pensador à maneira dos pensadores, segundo sua concepção. O autor

fala justamente que, diante do turbilhão que faz o homem se perder é preciso

ter uma postura, que é a serenidade. A serenidade dá ao homem a capacidade

de decidir por si, mesmo diante do mundo em suas necessidades.

122 M. HEIDEGGER, Parmênides, p.19. 123 “Não nos iludamos.[...] A ausência-de-pensamentos é um hóspede sinistro que, no mundo actual, entra e sai em toda parte.” (Id., Serenidade, p.11.)

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A serenidade depende de um novo modo de “pensar o pensamento”,

revendo o entendimento que se tem do homem em sua direta relação com o

mundo – não falando de um “homem em geral”, tomando-se uma essência a

partir da qual ele se mostraria no mundo: Heidegger fala sempre do homem

determinado, impossível de ser pensado fora de um contexto. Entendemos,

assim, que esta proposta de serenidade não serve a um pretenso homem ideal,

mas ao homem singular. A mesma serenidade possibilita este novo pensar.

O homem pensa aquilo que desperta seu interesse – neste sentido,

ele pensa o interessante. Mas a questão se torna intrigante ao ser levado em

consideração o fato de que a configuração do mundo “atual”124 faz se tornarem

“interessantes” todas as coisas, tendo por base um desejo de fundo sempre

movido por questões econômicas. Tudo passa a ser interessante, de acordo

com o contexto; na mesma velocidade, tudo se torna desinteressante e

entediante. A questão não é, simplesmente, de importância das coisas, mas

sim do sentido atribuído a elas, fazendo-as ganhar importância.

A experiência de um pensamento livre propõe ao homem a revisão

da ideia de “interessante” para o que se quer pensar. Dizendo de outro modo, a

determinação psicossocial do que seja “o interessante” (que “deve” despertar o

interesse) é um direcionamento dado ao homem. Quando falamos em

“pensamento livre”, ainda é preciso indicar que a liberdade do pensamento

possibilita a liberdade do ente em sua verdade; dizendo de outro modo, a

liberdade do pensar é liberdade da mostração do ente.

Liberdade do pensar não quer dizer deixar o pensamento sem

direção alguma e liberá-lo para construções teóricas quaisquer, de todo modo

possível. A liberdade é dar condições para que o pensamento vá até onde o

ente se mostra; neste sentido, é liberdade do pensamento e é liberdade do

ente. Significa não serem estabelecidos parâmetros dentro dos quais o

pensamento deve funcionar ou o ente deve se dar. Entendendo-se que é o ser

que se dá nos entes, falamos da liberdade para a manifestação do ser.

Por conta do desenvolvimento tecnocientífico, as rápidas mudanças

no modo de viver do homem criam novos modos de conviver e se relacionar

124 Um “atual” desde muito tempo, no qual vigora o modelo científico de racionalidade.

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com o mundo. Tais mudanças criam a ideia de “necessidade” que o homem

teria de certos objetos, recebidos apenas por sua instrumentalidade. Ao ser

conquistado um objetivo, outras necessidades vão sendo configuradas e as

primeiras delas vão deixando de ter sentido. Este “sentido” não é percebido

como algo que está propriamente no ente, naquilo que ele é em seu modo de

aparecer, mas se refere à sua usabilidade, dentro da ideia de “servir para...”.

Com novas necessidades, os antigos “necessários” perdem “sentido”.

Quando o pensamento, saindo de seu elemento, chega ao fim, compensa essa perda, valorizando-se como techne, isto é, instrumento de formação, para se tornar, com isso, atividade acadêmica e, posteriormente, atividade cultural. A filosofia se vai transformando, aos poucos, numa técnica de explicação pelas últimas causas. Já não se pensa.125

A razão, assim, segue os ditames da ciência e a filosofia, os

caminhos da técnica. Tendo raízes na experiência do pensamento, a filosofia

deveria ser caminho para a experiência do pensar, mas acaba sendo uma

explicação da história do pensamento ocidental; o “fato de mostrar-se um

interesse pela filosofia ainda não revela, de modo algum, uma disponibilidade

para o pensamento”126. Não estar em seu elemento significa que o pensamento

se torna “discurso sobre...”, e não experiência do pensar127.

Ao se tentar esclarecer as questões do pensamento, o

verdadeiramente interessante é o que mais cabe pensar: aquilo sobre o que

sempre interessou perguntar. “Aprender a pensar” significa por o pensamento

na direção do “a ser pensado por primeiro” – neste sentido, não se trata de

“buscar saber”, “conhecer”, “produzir”, no sentido ativo de um fazer.128 O

pensamento é a disposição diante de algo: é atividade de não imposição de um

modelo ou enquadramento. Pensar é ouvir e silenciar diante do que se dá. O

ser se dá – e o faz nos entes.

Qual a necessidade que o pensador tem de pensar? Ele responde a

quê? Em primeira intância, tais questões não são de simples resposta e, assim,

nos aventuramos a uma aproximação daquilo que pode responder. O pensador

125 M. HEIDEGGER, Sobre o humanismo, pp.30-31. 126 Id., O que quer dizer pensar? In.: EC, p.113. 127 Fazemos alusão à obra de Heidegger Aus der Erfahrung des Denkens, de 1947, GA 13. 128 A crítica de Heidegger toca exatamente aquilo que o fazer técnico passou a fazer da Academia: o local de geração sempre maior de conhecimento, mensurável por número de pesquisas e consequente “produção” (em série) de artigos.

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é aquele que percebe a falta, a ausência de sentido no dar-se do ente –

“sentido” que não se relaciona a uma fé ou crença religiosa qualquer. Sentido é

o que permite a todas as coisas um “estar” na mesma realidade; é o que

possibilita uma conexão, um vínculo entre as coisas, simplesmente por serem.

A possibilidade de pensamento mostra ao homem – de modo especial, ao

pensador – que, em meio a tanto que se fala (na tentativa de preencher a vida),

há um vazio não explorado. O pensador adota uma postura de busca diante

deste não explorado; não há um deus que dele exija uma resposta: a própria

existência (como totalidade do ente) o chama.

Os pensadores pensam a evidência.129 Por isso é que há dificuldade

no entendimento do que é o pensar, por parte do homem comum – para ele, a

evidência não deve ser pensada, já que seria uma verdade que se dá, sem

espaço para questionamento. Por entender algo como “evidente”, o homem

comum deixa de se preocupar com ele, pois, reforçando uma concepção de

utilidade, é preciso gastar tempo pensando “o que merece ser pensado”. O

pensador, por sua vez, entende que não há o que seja evidente; normalmente,

o que assim é consideradado é o que está mais próximo do homem e, por isso,

não é pensado. No fundo, o ser é o mais próximo do homem e, por isso, é

esquecido, sem deixar de ser o que mais merece ser pensado.

Estamos no caminho de um novo pensar que, por sua vez, permite

nova postura do homem – a serenidade. Esta indicação se faz importante, para

que seja entendida a serenidade não como um pensar, mas o pensar que é

ativo em uma espera, na construção da realidade liberta de amarras

conceituais que enquadram os entes em compartimentos fora dos quais não

poderiam ser pensados. Neste sentido, a serenidade exige um pensar fora da

caixa.

Imageticamente, podemos falar do pensar calculador/objetificador

como aquele que enxerga o mundo dentro de uma área plana; será pensado e

considerado o que estiver dentro de seus limites. Temos, em tal situação, a

demarcação de possibilidades para o ente, dentro do que permite a razão no

modelo científico. Do mesmo modo que a Igreja de outrora, teríamos aqui a

129 Cf. M. HEIDEGGER, Parmênides, p.19.

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concepção “fora da ciência não há salvação”.130 A delimitação traz ao homem a

ideia de que domina o que pode ser pensado, “tendo nas mãos” o ente em sua

totalidade.

A proposta de um “pensar fora da caixa” pode ser pensada na

imagem também de uma área, mas tridimensional. Enquanto a imagem anterior

(plana) delimita uma área na realidade da terra, dos entes, no pensar científico,

agora queremos representar um espaço aberto que vai da terra ao céu. Apenas

o homem pode habitar este espaço e nele pensar, transcendendo sua

realidade ôntica, alcançando a dimensão ontológica de ser.131 Neste espaço

aberto, o cálculo da razão objetivadora também funciona, porém “algo mais” é

tomado em consideração, a saber, um projetar-se junto ao mundo, como Da-

sein. O novo espaço de pensamento leva ao novo pensamento – por sua vez,

surge a necessidade de nova linguagem que possa ser sua expressão.

Heidegger tomará a linguagem da poesia.

Há uma necessidade de pensamento. Heidegger, entendendo que o

pensar tradicional (modelo científico, calculador e objetivador) não dá conta de

abarcar os novos elementos (o inominável, o incomensurável etc.) que se

davam a ele na reflexão sobre o ser, buscou um pensar que tivesse força

tamanha para se libertar dos padrões estabelecidos. Era preciso um pensar

que não deixasse de ser racional, mas que fosse pautado em uma

racionalidade diversa, integradora e não excludente. Mais que uma

130 Originalmente “extra ecclesia nulla salus”; pode ser pensada a ciência como a salvadora dentro do que propôs, por exemplo, o positivismo comteano, de concepção cientificista, cujos resquícios vêm ao longo do tempo. Faz-se necessário entender a origem do pensamento basilar da ciência contemporânea – o que podemos encontrar na tese de doutoramento de Aurélio Alves Ferreira, intitulada A discussão de M. Heidegger a respeito de o que significa pensar. Nos caminhos da reflexão heideggeriana, o autor indica, no capítulo 1, de que modo se constituiu a razão calculadora no tempo. Costumeiramente, fala-se de tal constituição apenas a partir da obra de René Descartes; mas o autor da tese indica que o pensar inaugurado pelo francês tem como fundamento a obra de Tomás de Aquino e da tradição tomista que, por sua vez, faz eco da obra de Aristóteles. Diz-se do pensar da ciência, a partir da modernidade, como aquele que calcula; mas tal característica viria de onde? Aurélio segue os passos de Heidegger e mostra que o centro do pensar grego é o que chama de o matemático (tá matemáta) que, não se reduzindo a aspectos numéricos de cálculo, trata de um aprender/ensinar a partir da descoberta do que, nas coisas, pode ser apreendido. O matemático não desaparece após a Antiguidade e mesmo Descartes desenvolve sua filosofia em tal base. Mas os caminhos diversos de desenvolvimento acabaram por privilegiar o aspecto numérico. O matemático permite a concepção numérica da realidade, mas não se restringe a ela. (Cf. A. A. FERREIRA, A discussão de M. Heidegger..., pp.18-79) 131 O ôntico se relaciona ao âmbito dos entes, no conhecimento possível na relação que o homem estabelece com eles no mundo; o ontológico é o conhecimento alcançável pelo homem, enquanto Da-sein, na relação que unicamente este ente pode estabelecer com o ser, na escuta de seu apelo. Cf. M. HEIDEGGER, Ser e tempo.

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determinação de certeza (objetivo da ciência) o objetivo era o de encontrar

caminhos mais amplos para que o mundo fosse pensado.

As interpretações sobre Hölderlin decorrem de uma necessidade de pensamento. Este parece ser o caminho: a poesia, sobre a qual incidem essas interpretações, é invocada exclusivamente a partir de uma questão de pensamento.132

O pensar é o que cabe ao homem – é o que ele deve querer;133 a

partir do pensamento, será possível a afirmação do Da-sein como ente que se

diferencia dos demais. O que se ganha com o pensar? Nada, caso estejamos

no raciocinar científico. Quando se fala em “ganhar” já se está dentro de um

visão de mundo que busca saber da utilidade das coisas e das ações. Caso

uma resposta positiva fosse exigida para a pergunta, poderíamos dizer: o

homem pode ganhar a si próprio com o pensamento.

Heidegger abriu caminhos de reflexão sempre orientados por uma

mesma questão – a questão do ser e seu sentido. Quanto mais se deteve no

pensar, diversos outros caminhos foram abertos. Somos incitados a perguntar

sobre o que foi alcançado: A questão do ser foi bem posta? Chegou-se à

verdade do ser? O Da-sein se plenificou em sua propriedade? Percebemos que

a resposta é negativa para tais questões. A própria obra Ser e tempo não pode

ser completada em seu projeto e a direção tomada foi outra. Seria sinal de

insuficiência ou incapacidade na reflexão do autor e de todos os que seguiram

os caminhos por ele abertos? Não se trata de falta alguma: o alcançado é

justamente a questão do pensamento.134

132 M.A. WERLE, Poesia e pensamento em Hölderlin e Heidegger, p.27. 133 Ferreira indica que o pensar

só pode guiar-se pensando se nós mesmos conseguirmos entrar no âmbito do pensável, o que pode ocorrer à medida que o homem se encontrar na proximidade daquilo que se dá a pensar e, em consequência dessa proximidade, e, juntamente com isso, se ele mesmo se mantiver atento, com uma atenção dirigida para aquilo que precisa ser pensado, aí então pode ser que ele seja presenteado pelo pensável. Isso, contudo, não é nenhuma garantia, não há nenhuma certeza de que se dará o pensamento. Essa é uma possibilidade do homem, uma vez que o a-se-pensar, o grave, aquilo que precisa ser pensado é algo que, de início, e na maioria das vezes, foge. Daí a necessidade do querer, pois, caso o homem desista de pensar, pode ser que não se dê pensamento algum. (A. A. FERREIRA, A discussão de M. Heidegger..., pp.143-144)

134 “En este caso, pensar el ser es algo así como pensar el objeto interno del pensar; como pensar lo que quiere decir pensar, lo que exhorta a pensar: el pensamiento ‘abstracto’, ‘absoluto’ o ‘intransitivo’ [...].” (J-F. COURTINE, Logos – Dichtung, In: F. DUQUE, Heidegger: sendas que vienen, p.275.)

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O ser se dá e se retrai, deixando impossibilitada uma compreensão

plena; se tomarmos o pensar objetivador, não é possível sequer uma

compreensão parcial. O ser, como questão do pensamento, se mostra como o

que deve ser pensado perenemente. O pensamento deve ser o guardião da

chama acesa do ser; poetas e pensadores são vigias para que o pensamento

esteja sempre voltado para o ser. O estado de vigília é partilhado em uma

espera ativa de um pensar que se debruça incansavelmente; significa suportar

a espera – coisa que a razão objetivadora não consegue. É na postura da

serenidade que encontramos a possibilidade de que a questão se mantenha

como chama acesa.

De modo costumeiro, e seguindo a razão objetivadora, diante de um

mistério, o homem deve lutar para que se alcance a revelação.

Incansavelmente, a razão não pode se dar por vencida e o esforço passa, ao

longo do tempo, por aqueles que se dispõem a desvendá-lo. Há um mistério

(Geheimnis) da realidade – aquilo que pertence a ela de modo singular. A

filosofia se dedica, desde sempre, filósofo por filósofo, a esclarecer o mistério

como verdade – filosofar é buscar a verdade. Em Heidegger, temos

posicionamento diverso: a constatação do que seja, efetivamente, o mistério,

deve levar o pensador a não buscar a revelação. Significa a consciência de

algo que não cabe como tarefa; o homem, estando na realidade, não tem como

desvendá-lo ou conhecê-lo plenamente. Não se trata de um segredo que deve

ser dito, mas de algo inalcancável que deve ser mantido como mistério do ser.

Neste sentido, a tarefa não é resolver o mistério, mas encontrar, reconhecer e

fazer perdurar a questão do ser.

O pensar é ação, pois constrói mundo e o sustenta. Pensar a

serenidade é já constui-la. Neste sentido, não existe uma reflexão que deva ser

feita e que, como consequência, tenha a serenidade. A serenidade é postura

alcançada no pensamento, e não depois dele. Dizendo de outro modo, o

homem não deve, primeiro, mudar sua reflexão para que, posteriormente,

mude seu agir junto aos entes, deixando-lhes a possibilidade de ser; a

mudança de pensar faz vigorar a serenidade como deixar-ser.

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2.2. Mundo e experiência

O homem está no mundo – Heidegger diria “lançado”. O mundo é o

aberto, é a realidade na qual o homem se vê e tem de se realizar como Da-

sein135; ele não escolheu nem construiu o lugar no qual está. Como ente

mundano136, o homem deve lidar com as coisas com as quais se depara, e elas

passam, de algum modo, a fazer parte de seu mundo. Entender que ele “se

depara” com as coisas já indica não serem suas criações, nem aparecerem

simplesmente por um ato de sua vontade137. O dar-se das coisas ocorre de

modos diversos e não controláveis pelo homem – ele apenas recebe, e tal

receber significa “ver, ouvir e apreender” aquilo que se dá e do modo que se

dá; é propriamente interpretar uma linguagem. Falamos, aqui, da linguagem do

próprio existir, na qual o homem está inserido138. Considerando-se que tal

linguagem é apreendida nas coisas que são, a linguagem do existir é a

linguagem do próprio ser, cujo apelo deve ser ouvido pelo homem. O ser não

“é” algo – ele simplesmente “se dá” nas coisas que são; mas o pensamento é

que recebe o ser que se dá, e “no pensamento, o Ser se torna linguagem”.139

Inicialmente, o ser-aí compreende, ou seja, está na compreensão na medida em que se compreende lançado em projetos existenciais, e se envolve, ou seja, está envolvido numa disposição com um mundo por meio dos chamados humores [Stimmungen], para depois somente explicar ou interpretar discursivamente esse mundo. O processo não parte de uma explicação ou “teorização” discursiva “sobre” o mundo, para depois ocorrer a compreensão, uma vez que o modo de acesso primário ao mundo não é teórico.140

A atenção dispensada (ou não) aos apelos do ser define a relação

que será estabelecida com as coisas e, consequentemente, o modo de estar o

135 “Existir significa, em sentido radical, cuidar de poder ser no mundo, que é também (e não menos essencialmente) ser-com-os-outros.” (O. GIACOIA JUNIOR, Heidegger urgente, p.74) 136 No sentido de não apenas “estar no mundo”, como ocorre com outros entes, classificados por Heidegger, em Ser e tempo, como intramundanos. 137 Tratamos aqui de uma experiência inicial do homem com as coisas, quando, então, elas apenas se dão e o homem está diante do aparecer delas. É preciso considerar que, ao longo de sua história, o homem passou a desenvolver/criar novas coisas, pela técnica. A técnica é um modo de fazer aparecer: “Ela des-encobre o que não se produz a si mesmo e ainda não se dá e propõe, podendo assim apresentar-se e sair, ora num, ora em outro perfil.” (HEIDEGGER, A questão da técnica, In: EC, p,17) 138 “A linguagem é a casa do Ser. Em sua habitação mora o homem.” (Id., Sobre o humanismo, p.24) 139 Id., Sobre o humanismo, p.24. 140 M.A. WERLE, Poesia e pensamento em Hölderlin e Heidegger, p.30.

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homem no mundo. Neste sentido é que não nos é possível falar de algo como

“o mundo”, plenamente objetivo, pois, ao longo do tempo, o homem

estabeleceu diferentes relações com as coisas; podemos dizer que, ao longo

do tempo, vigoraram diversos mundos. Também não podemos nos esquecer

de enxergar que o homem não participa do mundo do outro; já que há um

interpretar, há diversos mundos que coexistem. É neste ponto que deve ser

entendida a proposta de destruição/desconstrução (Destruktion) da ontologia

tradicional, já proposta no §6 de Sein und Zeit: o modo como o mundo (as

coisas) foi recebido no fazer histórico ocidental revela o esquecimento do

próprio ser em seu apelo.

A filosofia, como metafísica tradicional, considerou as coisas apenas

em seu presente; ou seja, elas se revelariam plenas no que o homem pode

delas apreender. Neste sentido, significa entender também que o próprio ser

teria se dado plenamente nas coisas, pois nada restaria além do presente

delas. A manifestação do ser seria, assim, entendida como plena, em um

presente a partir do qual poderia ser conhecido o mundo em si mesmo. Em tal

consideração, o ser já se teria revelado verdadeiramente, levando à concepção

de que sua problematização se configuraria como questão trivial, já que o ser

se mostraria como conceito universal em grau máximo, não sendo definível e

podendo ser entendido por si mesmo.141 Revelou-se aí, o desejo de plena

objetividade com aquilo que se mostra – potencializado pelo fazer científico, no

intento de conhecer integralmente aquilo que se dá. Mas o mistério persiste.

A metafísica tradicional entendeu, então, que o presente das coisas

são as coisas em sua plenitude e o ser em sua máxima revelação. Mas

Heidegger entende que a “linguagem é o advento do próprio Ser que se clareia

e se esconde”.142 O ser não se dá plenamente (dá-se e retrai-se), pois as

coisas mesmas não são plenas no presente levado em consideração:

Pelo contrário, é o grito inesperado de um pássaro numa abafada noite de Verão; é a extravagância de uma flor de um cacto que completa a frugal suculência do seu portador de um modo maravilhoso que não podia ter sido antecipado ou mesmo imaginado de antemão; é o vento norte ou o vento

141 Cf. M. HEIDEGGER, Ser e tempo, pp.35-39. 142 Id., Sobre o humanismo, p.45.

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nordeste que é talvez estatisticamente provável nesta estação mas que no entanto causa sempre espanto, sublimemente inquietante à sua sombria e portentosa chegada. Mesmo a cadeia montanhosa rochosa, não apreendida na sua “estrutura geológica ou localização geológica” mas tal como ali está perante nós “na paisagem”, não é rigidamente presente numa suposta fixidez do presente. (...) [O] verdadeiro ritmo do ser não é de permanência ou presença constante, mas sim o de uma emergência abrupta ou súbita que demora e perdura.143

Há sempre “algo além” do apreendido no presente das coisas: a

cada momento, elas se apresentam com elementos não apresentados

anteriormente. A experiência do homem com as coisas mostra a

impossibilidade de conceituação última da realidade (entendida como conjunto

das coisas que são); consequentemente, não é possível apreender o ser

plenamente, pois ele se dá de outro modo. O ser se dá em emergências

contínuas que não obedecem a qualquer tipo de previsão humana objetivada.

A ontologia tradicional tomou justamente o ser em sua aparência (ou

“aparecência”) estática, acreditando-se na posse do conhecimento do ser e da

realidade; isto nos leva a entender que a tentativa de enquadramento da

realidade nos parâmetros do entendimento humano deixa de considerar muito

do que ela propriamente é.

Apreender o ser pelos entes que são, no projeto da tradição,

significou tomar o apresentar-se das coisas e, dele, presumir o ser; porém,

aqui, falamos do “ritmo” do ser como “clarear e esconder” ou “emergência

abrupta”. Com isto, temos de trazer para a reflexão a ideia de “aceno” (capítulo

1): a apreensão do ser apenas se dá pela espera de seu acenar – espera na

demora; ainda assim, tal apreensão é indicação do dar-se do ser, já que o

aceno se dá nas coisas que, por sua vez, não têm um aparecer constante. O

citado “ritmo” não se relaciona, então, a uma cadência regular.

É aceno como brilho e deixada de um rastro. O ser, como

fundamento da filosofia, deu-se em tal brilho no início do pensar ocidental, na

143 B. FOLTZ, Habitar a terra, p.76.

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experiência grega, a experiência original144. Depois de tal experiência, o ser

caiu no esquecimento e a filosofia – a partir da platônica –, começou a construir

as bases do conhecimento estático da realidade que se solidificou como

metafísica tradicional. O projeto heideggeriano busca retomar o filosofar grego

dos primeiros pensadores da Grécia Antiga, os pensadores-poetas, no intento

de verificar o que resta impensado daquela experiência com o ser e recolocar a

filosofia (pensamento meditativo) em seu caminho, com o ser em seu centro.

O que ficou então impensado nesta experiência grega do ser foi a presença na sua interacção com a ausência, presença na sua aproximação e retirada, isto é, presença como ocorrência ou evento. O que ficou impensado foi o ser na sua total temporalidade, precisamente porque o ser enquanto tal permaneceu impensado. Em vez disso, o ser foi interrogado apenas no seu caráter de fundamentação ou explicação dos entes.145

Dizendo de outro modo, o questionamento que deve ser feito é pelo

ser em si mesmo, e não dirigido pela questão do ente. Apreensão do ser deve

se dar como aquilo que ocorre – é o ocorrente. Mas o mais significativo nesta

situação é a consideração de que a ausência (retirada ou retração) faz parte do

ser, e não como uma falha, mas como uma marca de sua completude. As

ideias de “aceno”, “brilho” e “clarão” expressam exatamente o ser como o que

se apaga logo depois de aparecer. Eis o que não foi abarcado pela tradição e

que a racionalidade do modelo científico não consegue alcançar.

2.3. A fixidez do presente: a ciência e a subordinação do ser ao ente

Pelo indicado até este ponto, resta clara a ideia de que as coisas se

mostram – elas existem de um modo que vamos classificar como “dinâmico”,

ao contrário de “estático”. A este conjunto de todas as coisas que se mostram e

144 Não é experiência “original” por estar no “início” do pensamento ocidental, mas por se ligar à questão original, a saber, do ser. A origem é o princípio: “é o que na história essencial vem por último. Naturalmente, para um pensar que conhece somente a forma do cálculo, a frase ‘o princípio é o último’ permanece um contra-senso. Antes de tudo, porém, o princípio aparece, em seu início, oculto num modo peculiar. Por isso surge o fato surpreendente de que o princípio, facilmente, é tido como o incompleto, inacabado, grosseiro. É chamado, também, de ‘primitivo’”. (M. HEIDEGGER, Parmênides, p.14) 145 B. FOLTZ, Habitar a terra, pp.78-79.

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constituem mundo vamos chamar, por sua vez, de “natureza”146: é a natureza

que brota e se faz vigente. Em meio, então, à natureza, está o homem, que

deve construir seu mundo.

Considerando a manifestação do ser no ser da natureza, as coisas,

em um dar-se e retrair-se constante, manifestam aquilo que é próprio do ser:

acenar, por meio dos modos segundo os quais elas aparecem. O aparecer da

natureza indica que o ser se dá sempre de modo incompleto, não último,

segundo aquilo que está dentro das possibilidades de apreensão da

racionalidade humana. Significa entender que a capacidade racional não

alcança a verdade da manifestação do ser; apenas há indícios que devem ser

considerados a partir da experiência com os entes.

O homem não tem o domínio das coisas que se manifestam e, deste

modo, acaba tendo de acompanhar o dar-se da natureza (o dar-se do ser no

ser das coisas); mesmo com o que o homem fez de si ao longo do tempo –

“cheio de méritos”, dizemos com Hölderlin e Heidegger –, a realidade escapa

de suas mãos e ele resta tendo de se fazer neste “turbilhão” dos entes. Não se

trata apenas de entender como certa insatisfação do homem por não poder

dominar o curso da existência; é mesmo uma situação de insegurança diante

daquilo que vai além de suas capacidades.

Pelo contexto, é necessário um modo de fazer com que as coisas

estejam “nas mãos” do homem: a ciência é a máxima expressão desta

tentativa, no intento de obter a certeza – e a consequente segurança – sobre

aquilo que se mostra como natureza. O ponto aqui não é fazer julgamento

como algo “certo” ou “errado” nesta construção de mundo – mas o autor indica

que o modo como o homem se firmou em seu mundo ao longo do tempo, a

partir das relações que estabeleceu com a natureza, não dá condições de se

considerar verdadeiramente a questão do ser, pois o homem se perde em meio

aos entes.

Falar da subordinação do ser ao ente, nada mais é que entender o

modo como o homem buscou o ser, a saber, não nele mesmo, mas nos entes –

146 A natureza também é a physis, ou o ente-na-totalidade.

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os que, por primeiro, estão para a experiência humana. Os entes são a

primeira via de acesso, mas este foi entendido como claro e objetivo modo de

se dar; enquanto o que ocorre é que, nas diversas manifestações do ente, o

ser se dá em relance, em desvio. O ato de fixar a realidade e receber as coisas

em uma fixidez do que sejam, dá condições de conhecer a verdade, mas

apenas em certo âmbito, pois, neste caso, as coisas devem se conformar

àquilo que é a proposta de compreensão humana. O ser, assim, não tem

condições de se dar, pois as coisas não são encontradas em seu desvelar

(alétheia), mas em um forjar de seu aparecer.

É um “forjar” diante de uma experiência que apenas pode ocorrer

dentro dos parâmetros estabelecidos, dentro de uma pré-concepção que

entende os entes apenas em seu estar-à-mão primeiro. A ciência, neste

sentido, é o caminho entendido como o único a levar o homem para a

“verdadeira” experiência junto às coisas – tanto é assim, que o primeiro

discurso a ser buscado (e o que ganha maior confiança inicial) é aquele

baseado na descrição científica do mundo. Percebamos que esta concepção

de que os entes sejam totalmente apreensíveis pelo que mostram de si na

experiência é exatamente o projeto da metafísica tradicional criticado por

Heidegger; neste sentido, podemos dizer que a ciência moderna – e,

consequentemente, a técnica e a tecnologia – é o ápice, na realização de tal

projeto. A natureza seria aquilo que “vemos” (olhar científico) dela – assim é

que a questão do ser passou de problema, com os gregos antigos, para auto-

evidência. Como “presença constante”, o ser estaria totalmente nas coisas.

Este desvio da questão do ser é identificado por Heidegger como

tendo se dado na mudança de concepção sobre a verdade (αλήϑεια) ainda no

contexto da Grécia Antiga: o ser passou a ser considerado a partir das coisas

que são (entes) – consideração dirigida pela razão. Mas o ser não é: ele se dá

(e se retrai); esta ideia caiu no esquecimento desde que o homem passou a

considerar apenas os entes presentes na consideração do próprio ser147.

Enquanto o homem dirige, ele não “deixa-ser” (sein lassen) e, na tentativa de

147 “... o elemento da auto-emergência, com o seu elemento concomitante de auto-retirada, é a breve trecho ofuscado pela metafísica grega e a sua predilecção pela presença não mitigada.” (B.FOLTZ, Habitar a terra, p.96)

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ter mais segurança, perde muito da realidade e deixa escapar o ser. Falar do

“deixar-ser”, é falar da liberdade como aspecto essencial da verdade.

As coisas são verdadeiras em si mesmas, mas quando têm a

possibilidade de aparecer no que são.148 A ciência não deixa as coisas

aparecerem, mas as obriga ao aparecimento, principalmente por meio da

tecnologia. Tal obrigação ocorre, ainda, na tentativa de dirigir os caminhos

pelos quais as coisas podem se mostrar – tudo o que não se adequar ao

modelo é rechaçado, desconsiderado. O homem assiste à manifestação dos

entes que é criada por ele mesmo, sempre no falar científico149 – que traz não

apenas o desejo de conhecer, mas o de dominar que vem junto.

O tema da ciência aparece no capítulo 1, seja de modo direto, ou

mesmo sustentando a crítica feita ao modo habitual de entendimento de

mundo. A ciência cria um conjunto de leis, dentro do qual transita, lidando com

os elementos passíveis de mensuração dentro do cenário; neste sentido, “cada

‘ciência’ é um conhecimento de dominação, um sobrepujar e um ultrapassar,

quando não simplesmente um passar por cima do ente. Isso se realiza no

modo da objetivação”.150 Neste modo de se fazer – com força de

constrangência –, o mundo não aparece como natural, mas sempre já algo que

deve ser interpretado (e “tomado nas mãos”) de um modo específico,

148 A verdade das coisas aparece como jogo, nó e luta, restando o vigente como o que aparece diante do que permanece velado. Duas indicações podem fundamentar nossa ideia:

1) “Des-encobrimento” pode também significar que encobrimento, simplesmente, não é admissível, que este, embora sendo possível e constantemente uma ameaça, não existe e pode não surgir. [...] Na essência da verdade como do des-encobrimento vige uma espécie de luta com o encobrimento e com o retraimento. (M.HEIDEGGER, Parmênides, p.30)

2) A verdade é não-verdade na medida em que lhe pertence o âmbito da proveniência do ainda-não- (do não-) revelado, no sentido do velamento. Ao mesmo tempo, no des-velamento como verdade vige o outro “não” de um duplo vedar. A verdade vige como tal na oposição de clareira e duplo velamento. A verdade é a disputa originário-inaugural na qual sempre de um certo modo se conquista o aberto, no qual, tudo, que como sendo se mostra e subtrai, se situa, e a partir de qual tudo se retrai. (Id., A origem da obra de arte, pp.153;155)

149 Uma analogia com uma peça teatral pode bem representar o que dizemos: a ciência “cria um cenário” de entendimento, dentro do qual as coisas podem aparecer. Imaginando-se o homem (em sua busca pelo conhecimento da verdade) como espectador, ele vem assistir à apresentação do que seja o mundo, buscando entender melhor as coisas no modo como aparecem. A ciência dirige tal apresentação e, deste modo, põe no conjunto da cena apenas o que ela pode conceber, e tudo o que for apresentado o será dentro unicamente das possibilidades dadas. Mas a realidade, que “vai além” da experiência construída pela ciência, deve se adequar para entrar em cena vestida no que lhe é, ali, possível; a realidade deve se adequar, ou não entra em cena. Nas palavras do próprio Heidegger: “Todo novo fenômeno numa área da ciência será processado até enquadrar-se no domínio decisivo dos objetos da respectiva teoria”. (Id., Ciência e pensamento do sentido, In: EC, p.49) 150 Id., Parmênides, pp.16-17.

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previamente determinado. O simples exemplo do “puro vazio” do jarro, que a

ciência não pode conceber, já indica que as coisas não têm como se mostrar

de um modo que chamaremos aqui de “completo”. Trata-se da lente (im)posta

para entendimento de mundo.

Entendendo a ciência como instrumento de dominação, o que ocorre

com o ente em geral? Heidegger indica que o ente fica para trás (passa-se por

cima); significa dizer que o ente não é considerado em si mesmo, mas apenas

dentro de um projeto de conquista – dominar é assenhorar-se das coisas,

exigindo que elas sejam o que o desejo humano sugere. O que poderia

considerar o ente é o pensamento, mas, como já foi dito, a ciência não pensa.

De modo singular, entendemos que a afirmação do autor de que a

ciência não pensa seja indicativo do que propriamente são a ciência e o

pensamento. A ciência calcula e o pensamento busca o sentido. O pensamento

cabe aos pensadores; significa dizer que, estes, têm a responsabilidade sobre

um tipo de reflexão própria – que podemos entender como pensar meditativo151

(besinnliche Nachdenken). A afirmação heideggeriana, de modo algum, busca

apresentar ciência e pensamento como excludentes: o objetivo é distinguir o

que lhes cabe, delimitando tipos diferentes de reflexão.

O pensar meditativo se coloca no caminho do ser, não seguindo a

lógica da razão técnica, que busca tudo definir e classificar em conceitos

últimos, mas estando a postos em postura de ativa escuta em atenção aos

apelos do ser. O primeiro questionamento de tal pensar é sobre a própria

atividade do pensamento, como “traço distintivo da essência do homem”.152

O que falta à ciência para ser pensamento? Talvez, a questão não

seja esta a ser posta, pois já se estaria tentando colocar uma na direção do

outro. A indicação de que a ciência não pensa soa, de certo modo, agressiva e

merece nossa atenção para ser melhor entendida. “Agressiva”, pois,

entendendo-se o homem como “o” animal ao qual compete o pensamento de 151 “Meditación sería, pues, pensar en la dirección del camino en el que el ser mismo nos ha encaminado, introduciéndose como conviene en ella –la dirección–, y en él –el camino–. La meditación –pensar el sentido–, recae, pues, sobre el ser, sobre la esencia. No es algo diferente al pensar mismo, al pensar del ser, al pensar esencial, al corresponder como conviene a la interpelación del ser.” (J.A. GUERRA, La frase de Heidegger..., p.21) 152 M. HEIDEGGER, Serenidade, p.31.

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modo singular, dizer que a ciência não pensa parece algo arrogante e

pretensioso, da parte de um filósofo. Mas o que Heidegger mostra é a

necessidade de que sejam aclarados os âmbitos e identificados os caminhos e

limites – significa reconhecer o abismo (Kluft) entre ciência e pensamento153.

Na objetidade da natureza, que corresponde à objetivação da física, reina um incontornável em duplo sentido. Quando conseguimos vê-lo e pensa-lo mais ou menos numa ciência, nós o percebemos com mais facilidade em qualquer outra.154

A objetidade (Gegenständigkeit) da natureza é o que pretende a

ciência alcançar em sua máxima extensão; é tornar a natureza plena em

objeto, abarcando seu manifestar em toda e qualquer situação na qual se

apresente. Deste modo, poderia a ciência falar com plena segurança sobre as

coisas que se dão, pois o entendimento esgotaria aquilo que tais coisas são.

Isso ocorre com “a ciência”; ou seja, o autor indica que as ciências particulares

seguem um mesmo modo de se relacionar com o mundo. Mas um elemento se

nos aparece de modo significativo, exigindo que nos debrucemos sobre ele: o

incontornável (das Unumgängliche).

Em duplo sentido aparece o incontornável, pois: 1) é o que não

permite contorno, no sentido de definição e delimitação (é dizer que, mesmo na

tentativa de fazer da natureza pleno objeto a ser observado e considerado, há

“algo” que não pode ser abarcado pelo fazer científico); 2) é o que não permite

ser deixado de lado, não havendo possibilidade de desvio (o que significa que

a ciência sempre se depara com este “algo” que deve ser considerado). Este

incontornável está diretamente ligado à ideia de dação e retração do ser no ser

dos entes; é o que está lá, sem desvio, mas não é abarcável pela ciência.

Mesmo com todo esforço de enquadramento da natureza em uma

determinação qualquer, ela escapa e se faz nova. “A ciência põe o real”155

enquanto âmbito da vigência156, ou seja, determina o cenário no qual a

153 Cf. M. HEIDEGGER, O que quer dizer pensar?, In: EC, p.115. 154 Id., Ciência e pensamento do sentido, In: EC, p.53. 155 Ibid., p.48. 156 “Pensando-se de maneira bem ampla, ‘realidade’ (Wirklichkeit) significa, então, estar todo em sua vigência, significa a vigência em si mesma acabada do que se pro-duz e se leva ao vigor de si mesmo. (...) Pensamos a vigência, como a duração daquilo que, tendo chegado a desencobrir-se, assim perdura e permanece.” (Ibid., pp.42-43)

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natureza pode ser – e o faz, na tentativa de encontrar (“estabelecer”) uma

explicação que seja universal157.

A natureza não se deixa prender ou ser determinada – ela escapa,

mas não permite contorno ou rechaça; porém, a ciência considera o ente e

nada mais.158 Enquanto a ciência (razão calculadora) deixa de lado o que não

consegue abarcar, o pensamento (meditativo) toma o ente do modo como ele

se dá, não rechaçando este “algo além” da experiência. A ciência não pensa ao

modo dos pensadores, como indicado no capítulo anterior – ela não o faz, nem

o deve fazer (é uma necessidade para que seja ciência).

Para ser ciência, a razão “congela” a realidade, pois o cálculo não

seria possível na consideração de um objeto que não se deixa “agarrar pelas

mãos”. Neste sentido, a natureza deixa de ser “algo” em si, passando a ser

apenas representação: os entes são categorizados a partir de padrões de

manifestação que, sendo estabelecidos, regem a mensuração de todos os

entes. Falar que uma lei científica é “descoberta”, significaria entender que ela

já existiria e que o universo a ela obedeceria – o esforço do homem estaria

apenas em conseguir identificar e traduzir tal lei para a linguagem da razão.

Mas o universo (a natureza, a existência, o ser) não obedece à racionalidade; a

natureza não se conforma à lei – motivo pelo qual a verdade científica é

relativa. Assim, entendemos que a lei científica é sempre “estabelecida”: o

cientista encontra a “palavra” que consegue expressar sua experiência de

racionalidade junto ao mundo.159

O que ocorre com a natureza na razão científica, em tal

“congelamento”? É perdida sua auto-emergência – aquilo que é propriamente a

physis. A partir daí, toda experiência é montada e não mais natural – todas as

coisas são retiradas de seu contexto e isoladas do mundo em um “lugar” único.

157 Chegar a uma única lei que possa explicar a existência de modo completo. 158 A temática deste “nada” é tratada em Que é metafísica?, publicada no volume 45, da Coleção Os Pensadores: HEIDEGGER, Martin. Conferências e escritos filosóficos. São Paulo: Nova Cultural, 1973. 159 Exemplo simples de se pensar é o de Sigmund Freud, quando se atribui a ele a “descoberta” do inconsciente – na verdade, ele encontrou um modo, na linguagem, de apresentar aquilo que é parte do homem.

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Na verdade, na ciência “todos os lugares são iguais”160 e, ao invés de

aproximar mundo e homem, ocorre o distanciamento das coisas.161

A razão científica lança os entes em um “lugar” comum, que é a

consideração de que eles simples e plenamente “estão aí”, dando-se ao

conhecer humano. Em tal situação e, se tomarmos a concepção apresentada

no capítulo I (sobre o ser que se dá no aparecer das coisas como aceno, como

um clarão que se dá e se apaga logo em seguida), a uniformização do espaço

não permite o aparecer dos entes. É importante lembrar que tal uniformização

é necessária para a produção do conhecimento científico e pode ser expressa

pela ideia de círculo vicioso: é ambiente controlado, no qual a experiência de

mundo é montada e nunca natural – significa fazer do mundo um grande

laboratório, no qual deve se dar a experiência desejada para confirmação de

um entendimento que se tem do próprio mundo (entendimento que vem da

própria razão científica).

A uniformização não é apenas do “espaço” no qual deve se dar a

experiência, mas também – e, de modo especial – da própria direção a ser

seguida; significa dizer que, mesmo com as especificidades de cada ramo

científico, tal caminho é único. Eis o que leva à citada monotonia: é permitido

um único tom de manifestação dos entes – o que, por sua vez, afasta sempre

mais o homem da experiência com o ser. Estabelecer um único caminho, único

tom, único modo, é delimitar o horizonte de manifestação do ser.

A celebrada objectividade da ciência dissolve a própria natureza na sua própria representação (Vorstellung) da natureza precisamente através da sua determinação como um objecto (Gegenstand), como algo cuja estância deriva da sua contra-relação com um sujeito. (...) [O] objecto científico é colocado ou posto (stellt) diante do sujeito pelo sujeito; não está ali por si. Além disso, este objecto é feito para estar contra (gegen) o sujeito; a sua presença não é natural e indiferente,

160 B. FOLTZ, Habitar a terra, p.90. 161 A ideia de que tudo esteja recolhido a uma mesma situação pode ser melhor entendida com os conceitos de monotonia e uniformidade (ver cap. 1, p.55).

Horror e terror é o poder que joga para fora de sua essência, sempre vigente, tudo o que é e está sendo. Em que consiste este poder de horror e terror? Ele se mostra e se esconde na maneira como, hoje, tudo está em voga e se põe em vigor, a saber, no fato de, apesar da superação de todo distanciamento e de qualquer afastamento, a proximidade dos seres ainda estar ausente. (M. HEIDEGGER, A coisa, In: EC, p.144.)

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tal como acontece com o ente que está meramente presente, mas sim de confrontação com o sujeito.162

“Conceituar” significa “delimitar” algo em uma definição que, por

consequência, já determina um modo de existir; no conceituar, já se diz o que

um ente pode ser. A concepção que se tem da natureza como objeto dirige as

possibilidades de conhecimento e, consequentemente, permite diferentes

modos de relação entre homem e mundo. Como entender o objeto? No

alemão, para “objeto”, temos dois termos: um, que nos auxilia pouco para esta

reflexão, que é “Objekt” – derivação do termo latino “objectum”; e outro, que

mais nos interessa, que é o termo “Gegenstand”163. Heidegger fala do objeto da

ciência como Gegenstand. Encontramos a raiz de “stand” no verbo “stehen”:

representa diretamente aquilo que está parado, posto em pé – é o que fica, o

determinável. O termo “gegen” é a preposição “contra”, que está na formação

de inúmeros outros termos – indica aquilo que está “oposto a...”. Neste sentido,

“Gegenstand” fala “daquilo que é determinado e está posto em contraposição

a”.164

A natureza é des-naturada pelo homem quando passa a ser objeto

pronto, pleno e determinado, contraposto a um sujeito. A ciência deseja

(necessita) que a natureza seja tal objeto, pois, de outro modo, ela não teria

condições de contê-la. A natureza não é recebida, então, em sua própria

manifestação; também não é o ente simplesmente dado que “está presente”. O

homem não está “diante de”, mas “oposto a”: o rio e a árvore não são entes em

si mesmos que se apresentam em sua especificidade (não fixa) para o homem;

eles passam a ser um conjunto de menores elementos e relações entre tais

162 B. FOLTZ, Habitar a terra, p.87. 163 O termo passou a ser um substitutivo para “Objekt” a partir do século XVIII. (Cf. DUDEN, Das Herkunftswörterbuch, p.321) 164 Heidegger indica:

O homem coloca a Natureza à sua beira e levanta o mundo de tal modo que o enfrenta. Este colocar à beira, este elaborar, devemos entendê-lo na sua essência lata e multíplice. O homem cultiva a Natureza quando ela não basta para responder às suas expectativas representativas. O homem elabora coisas novas quando elas lhe fazem falta. O homem muda as coisas de lugar, quando elas o incomodam. O homem remove as coisas quando elas se desviam do seu propósito. O homem expões as coisas, quando as recomenda para compra ou para utilização. O homem expõe quando exibe as suas próprias capacidades e quando faz propaganda do seu ofício. Em todas estas formas multifacetadas do produzir, o mundo é posto de pé e trazido a uma posição. O aberto torna-se objecto e, assim, é rodado para enfrentar o homem. Enfrentando o mundo como objecto oposto, o homem expõe-se a si mesmo, e levanta-se como aquele que consegue impor propositadamente todo este elaborar. (M. HEIDEGGER, Para quê poetas?, In: CF, p.331)

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elementos que podem ser medidos e compreendidos. Por meio da razão

científica, o homem não mais “está diante” (gegenüberstehen) dos entes, face

a face, para perceber, receber e descobri-los, mas está diante de objetos que

estão para ser desmembrados, decompostos e conhecidos. Assim, o homem

produz, elabora165, seu mundo.

2.4. O ente para além de Gegenstand: o Geviert

Quando a ciência afirma “conhecer” o mundo, poderíamos dizer que

ela considera apenas um modo de se relacionar com este objeto que chama de

“mundo”; na verdade, não existe tal “considerar”, já que sequer é aventada uma

possibilidade diversa do caminho já estabelecido pela razão científica. A

ciência conhece por meio daquilo que se mostra, de certa forma, estático à

experiência dos sentidos – esta, que foi alargada na medida em que os

instrumentos, criados pela técnica, foram se tornando extensão dos sentidos.

Perceber que os limites do conhecimento são alterados com os instrumentos,

não significa entender que se tenha chegado ao conhecimento “verdadeiro” do

mundo com a ciência: tem-se apenas uma nova margem do que pode ser

conhecido, podendo ser apenas novos âmbitos da caverna.166

A proposta heideggeriana é entender o ente de modo diverso, no

intento de se receber o modo segundo o qual o ente se mostra – significa

receber o próprio ser em seu dar-se de diversos modos nos entes.

(...) Encaminhar na direção do que é digno de ser questionado não é uma aventura mas um retorno ao lar.

O alemão sinnan, sinnen, pensar o sentido, diz encaminhar na direção que uma causa já tomou por si mesma. Entregar-se ao sentido é a essência do pensamento que pensa o sentido.

165 Na nota do tradutor – nota 6 –, temos: “O verbo alemão herstellen significa produzir, elaborar. No entanto, com a introdução do hífen em her-stellen, e tendo em conta o contexto, a forma verbal significa nitidamente ‘colocar à beira’.” (M. HEIDEGGER, Para quê poetas?, In: CF, p.331) 166 Fazendo-se alusão ao pensamento platônico, do mesmo modo que a ciência é saída da caverna, corre o risco de ser apenas novo modo de se estar nela; dizemos isto, não no sentido de que o conhecimento científico seja simples opinião (doxa), mas no intuito de verificar que, ao se estabelecer como “o” conhecimento do real, acaba por se fechar em um entendimento que só permite à realidade aparecer dentro de certos parâmetros de mensuração.

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Este significa mais do que simples consciência de alguma coisa. Ainda não pensamos o sentido quando estamos apenas na consciência. Pensar o sentido é muito mais. É a serenidade em face do que é digno de ser questionado.

No pensamento do sentido, chegamos propriamente onde, de há muito, já nos encontramos, embora sem tê-lo experienciado e percebido. No pensamento do sentido, encaminhamo-nos para um lugar onde se abre, então, o espaço que atravessa e percorre tudo que fazemos ou deixamos de fazer.167

A partir do trecho, temos a indicação do que deve buscar o

pensamento, a saber, o sentido dos entes, que é o sentido do próprio ser. A

ciência não capta o sentido, por não ser seu objetivo captá-lo – se o fosse, ela

teria de se abrir para novo modelo de racionalidade.168 Heidegger fala do

pensamento que é meditativo e que, assim, pode almejar alcançar o sentido.

Quando o ente em geral não é tomado unicamente como o que está

diante de/contra um sujeito, ele aparece como diverso. O pensamento não olha

para o objeto, mas para seu aparecer; significa ver o ente não isolado, mas

167 M. HEIDEGGER, Ciência e pensamento do sentido, In: EC, p.58. 168 É preciso indicar que o pensamento – do modo como entendemos em Heidegger – não está presente na ciência como possível caminho de reflexão racional; mas falamos, aqui, em uma macro visão que pode ser lançada sobre a ciência: de um modo geral, ela não busca o sentido. Mas há os cientistas que, de modo singular, embrenham-se na busca de “algo além” do lugar comum – é quando o pensamento toca a ciência. Como exemplo, citamos a obra A ilha do conhecimento; os limites da ciência e a busca por sentido (M. GLEISER, 2014); o autor entende que os limites não podem ser barreiras, mas possibilidades para um novo conhecer, a partir de novas concepções da realidade e novos modelos de racionalidade. O autor indicado apresenta um caminho de reflexão nesta temática já em diversas obras anteriores. Para este autor, a ciência, claramente, cria uma linguagem, um modo de dizer o mundo; no fundo, a ciência “cria” os próprios objetos. Para exemplificar, ao falar do pensamento de Newton, Gleiser afirma que “[e]xiste algo de intangível na matéria” (M. GLEISER, A ilha do conhecimento, p.87) e isso não é facilmente tratado pela ciência, o que leva os cientistas a estabelecerem pontos fixos para o discurso sobre a realidade. O autor deixa isso claro, afirmando:

Massa e carga não existem per se; existem apenas como parte da narrativa que nós humanos construímos para descrever o mundo natural. Da mesma forma que, quinhentos anos atrás, esses conceitos não existiam, provavelmente serão superados por outros daqui a quinhentos anos. Em outras palavras, se outras inteligências existirem no cosmos, sem dúvida terão também explicações sobre os fenômenos que observam. Mas supor que seus conceitos sejam idênticos aos nossos é lamentavelmente preconceituoso e antropocêntrico, pois pressupõe que existe algo de universal nas descrições que inventamos. (Ibid., p.88)

Além de criar seus objetos, o cientista tem de lidar com o fato de que o objeto da ciência é modificado pelo próprio sujeito que conhece:

Nomeadamente, a física nuclear encontra-se encurralada numa situação que a obriga a verificações desconcertantes: a saber, que a aparelhagem técnica utilizada pelo observador numa experimentação co-determina aquilo que de cada vez é ou não é acessível a partir do átomo, quer dizer, das suas manifestações. E não significa menos do que isto: a técnica é co-determinante no conhecer. (HEIDEGGER, Língua de tradição e língua técnica, p.23)

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carregado do que o faz vigorar em um contexto, que é o sentido – é mudança

de olhar, pois já atravessa tudo o que fazemos ou deixamos de fazer. Pensar o

sentido (Besinnung) implica postura diante da realidade (serenidade –

Gelassenheit): não é estar apenas na consciência, mas relacionar-se com o

que é, o ente.

O modo como os entes aparecem, na representação racional

científica, pode ser entendido, imageticamente, como uma fotografia: o que

aparece é captado pelos sentidos, representado pela razão (que se utiliza de

um número de elementos representacionais aceitos) e estatizado em seu ser.

Em uma fotografia, a natureza é “plena” naquilo que é registrado. Para a

ciência, tal modo de conceber o mundo é necessário, pois o objeto não lhe

escapa – ao menos, não tão rapidamente. Em tal contexto, não cabe o

pensamento sobre o sentido, pois nada vai além de sua representação. O

homem habituou-se a pensar as coisas de um certo modo.

O que nos aparece como natural é provavelmente apenas o habitual de um longo hábito que esqueceu o in-habitual do qual aquele se originou. Um dia, contudo, aquele in-habitual tomou de assalto, como um estranho, o homem e levou o pensar para a eclosão do admirar.169

Ao afirmar o autor que “[n]o pensamento do sentido, encaminhamo-

nos para um lugar onde se abre, então, o espaço (...)”170, resta indicada a

necessidade mudança: de onde está o homem, não é possível estabelecer

relação com os entes no que propriamente são. Assim, o homem deve se

colocar em um lugar (Ort) que permita a abertura de um espaço (Raum) no

qual, por sua vez, a coisa possa se mostrar em seu sentido. Abrir espaço para

que a coisa se mostre é, também, abrir espaço “na” própria coisa – antes,

entendida como “plena”. O sentido é algo que na coisa se deposita.

O espaço que o homem abre é a possibilidade de novo

entendimento: as coisas deixam de aparecer como em uma fotografia,

passando a carregar um vazio (Leere) que, por sua vez, permite que seja

depositado o sentido. Geviert é caminho de entendimento sobre o que está

presente no modo como o ente aparece (pois não é simplesmente o

169 M.HEIDEGGER. A origem da obra de arte, p.55. 170 Id., Ciência e pensamento do sentido, In: EC, p.58.

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“visível”).171 O ente, como coisa, reúne algo em si ou, dizendo de outro modo, é

o ponto no qual o sentido se dá, na reunião dos quatro: céu e terra, divinos e

mortais. A racionalidade científica não alcança tal concepção; assim, a via de

acesso é o pensar meditativo (pensar do sentido), no caminho do poético. Para

entender o conceito de Geviert é necessário falar da disposição ou tonalidade

fundamental.172

Tenhamos em mente os quatro elementos que Heidegger apresenta

como sendo os que dão forma ao mundo. Consideremos que, na verdade, tais

elementos são os que permitem ao homem dar forma ao mundo. A construção

que o homem faz de seu mundo é marcada pelo modo como ele recebe as

coisas no âmbito do “jogo de espelhos” de céu, terra, divinos e mortais. Não há

homem sem mundo (é importante lembrar que, desde Sein und Zeit, o homem

nunca é uma essência ou um ser em abstrato, mas sempre um ente

contextualizado, um “quem” determinado); neste sentido, seja o homem

comum, seja o de ciência ou o poeta: o mundo nunca pode ser univocamente

entendido.

Caso se dispusesse de apenas um elemento, que fosse tomado por

base no fazer-mundo do homem, não teríamos como conceber o aparecimento

da diferença. Esta última apenas surge por conta do modo como o “jogo de

espelhos” permite a visão da realidade: o vigorar das coisas vai depender do

brilho a elas possibilitado. O autor aponta os quatro (céu, terra, divinos e

mortais) no esforço de traduzir em ideia aquilo que pode ser entendido como o

âmbito no qual o homem se realiza como ente. Na verdade, trata-se do mesmo

âmbito no qual todos os entes assim se realizam, pois as coisas aparecem

para o homem. O “lugar” que permite a experiência173 do homem é aquele que

se abre entre terra e céu; na terra, o homem está diante do céu e daqueles que

nele habitam – e sua medida é a relação entre o limitado e o sem-limite. O

homem não se compreende e nada pode receber fora de tal espaço.

171 Os conceitos de “vazio”, “quadratura” e “sentido” foram apresentados no capítulo 1 (pp. 59-75), ao falarmos da coisa. 172 “Heidegger emprunte donc à Hölderlin l’idée de la ‘tonalité fondamentale’ qui doit s’imposer nécessairement à l’ensemble d’un poème de telle manière que le lecteur saisisse, selon l’expression du poète, ‘tout ce qui est essentiel et caractéristique, tous les enchaînements successifs’, en parvenant à reprendre ‘dans leur connexion les parties composantes de cet enchaînement’.” (J.F. MATTÉI, Heidegger et Hölderlin – le quadriparti, p.121) 173 “Experiência” não se refere aos sentidos.

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O conceito de “mundo” é entendido aqui como aquele conjunto de

coisas que aparecem de determinado modo – este que, por sua vez, é

possibilitado pela disposição (Befindlichkeit) do homem. O termo alemão tem

raiz no verbo finden que significa “encontrar”; entendamos a disposição do

homem como sua “encontrabilidade”, ou seja, a maneira como o homem é

encontrado, como ele se situa e situa os entes em geral.

No realizar-se do homem no mundo, diversas relações ele

estabelece com tudo aquilo que lhe pode aparecer. A cada momento, novas

situações exigem que se posicione, ou seja, que se assuma uma postura

diante da realidade – e adotar uma postura não implica que se tome a mesma

ação sempre. A postura revela a tonalidade do mundo do homem: pode ser

identificado um “tom que perpassa” o vigorar das coisas. Falando do mundo do

poeta, temos o tom que sua poesia dá às coisas, ligando-as em um sentido.

Aqui, “disposição” e “tonalidade” dizem do mesmo aspecto.

Retomemos a ideia de monotonia:174 o modelo de racionalidade

baseado na ciência dis-põe todas as coisas de modo a fazer delas um mesmo

“conjunto fechado” de objetos. No fundo, é tratar o ente como um mesmo

objeto – o mundo –, que está para ser “tomado nas mãos” pelo homem, para

ser conhecido e utilizado. Em tal concepção, reinam (ou é intenção fazer reinar)

a constância e a regularidade. Mas as coisas não se dão do mesmo modo e

nem ao mesmo homem; assim, o conceito que pode indicar reflexão diversa é

o de harmonia. Não existe harmonia composta por um único elemento, pois ela

depende de elementos que se entrecruzam de modo a permitir o que podemos

chamar de “equilíbrio” ou “combinação”. O mundo sem harmonia (cosmos) é

desordem (caos).

Ao falarmos “harmonia”, não buscamos indicar que elementos

estejam em consonância, mas sim que eles sempre são encontrados em uma

dada configuração relacional – dão as condições de configuração de mundo,

no qual é possível constatar uma tonalidade. A harmonia – ou relação – entre

os quatro (céu e terra, divinos e mortais) permite um determinado modo de

174 “Tudo está sendo recolhido à monotonia e uniformidade do que não tem distância.” (M. HEIDEGGER, A coisa, In: EC, p.144)

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aparecer das coisas, dentro do qual o homem pode ser encontrado. O Geviert

é a configuração de mundo que permite às coisas um aparecer singular, não

pronto, nem pré-determinado.

A coisa leva a quadratura a perdurar. A coisa coisifica mundo, no sentido de concentrar, numa simplicidade dinâmica, as diferenças. Cada coisa leva a perdurar a quadratura em cada duração da simplicidade de mundo.175

Falar da quadratura é perceber que o existir do homem apenas é

possível dentro de um determinado “espaço”. O entendimento do homem como

livre para possibilidades infinitas é algo pleno de significado nos âmbitos social,

ético, político ou psíquico, por exemplo; mas, da maneira como tratamos a

questão aqui, as possibilidades são infinitas somente dentro de um quadro, que

é a quadratura. Neste quadro é que as coisas podem ser; o modo como elas se

mostram aparece como o modo permitido para aparecer, dentro de um

contexto, um jogo, uma luta176.

O ser se dá ao homem e este percebe que existe junto aos demais

entes; para ele, o ser se torna linguagem de ser. O homem apenas leva em

consideração aquilo que pode ser relacionado a seu modo de existir; significa

entender que o mundo do homem é moldado pelo ser do próprio homem. O

único ponto de não-ultrapassagem é a mais singular possibilidade da não-

existência. Tudo ele pode enquanto não deixar de existir – até a morte é uma

possibilidade dentro da totalidade do ente. É o reconhecimento de sua

mortalidade, que se dá na terra. Como limite da mortalidade está a situação da

não-mortalidade, que apenas cabe aos divinos, os imortais – no céu.

Todo o aparecer das coisas no mundo do homem depende do modo

como se dá a relação entre os quatro, ou seja, do modo como o homem se

entende na realidade em que se encontra. A quadratura se dá como harmonia

de sentidos. A diferença entre as coisas aparece no modo como os quatro 175 M. HEIDEGGER, A coisa, In: EC, p.158. [“Das Ding verweilt das Geviert. Das Ding dingt Welt. Jedes Ding verweilt das Geviert in ein je Weiliges aus Einfalt der Welt.” (Id., VA, p.182)] 176 A constituição do mundo do homem (neste trabalho, especificamente do mundo do poeta) se dá pelo modo como, na consideração das coisas, se dá o jogo entre os quatro – quatro vozes do ser, quatro polos do mundo. Assim como ocorre com uma poesia, o mundo apresenta uma tonalidade fundamental que, por sua vez, depende da harmonia entre os quatro – um remetendo ao outro: “Tous ces sons harmoniques sont engendres naturellement, il faut y insister, par la résonance d’une seule note fondamentale qui ne peut atteindre l’un de ses harmoniques sans passer par les harmoniques intermédiaires.” (J.F. MATTÉI, Heidegger et Hölderlin – le quadriparti, p.123)

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permitem o estar do homem; os quatro se dão como quadratura: as diferentes

combinações harmônicas. Torna-se possível, então, falar de tonalidade e

disposição. Neste sentido, falamos de harmonia da realidade como um todo, no

aparecer dos entes; mas também falamos da harmonia entre homens e coisas

em geral, ou seja, entre os entes como um todo, pois, do mesmo modo que os

entes são manifestação do ser, o homem também o é – a diferença é que,

enquanto os entes em geral são indício da manifestação, o homem, como Da-

sein, é indício e leitura do manifestar.

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Capítulo 3 – Poesia e pensamento – a fala da serenidade

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3.1. A linguagem, a palavra e a poesia

Na busca pelo ser, no ouvir seu apelo e na problematização de seu

sentido, Heidegger mudou significativamente o caminho que percorria.

Primeiramente, o homem como Da-sein era entedido como “local” da resposta

pelo ser; mas o autor percebeu que “os existenciais do ser-aí ainda ficavam

excessivamente ligados à cotidianidade mediana, não sendo capazes de

realizar o salto para dentro do problema do ser”.177 Em Ser e tempo, pouco

espaço foi dedicado às temáticas da poesia e da linguagem; na verdade, o

tema da linguagem foi brevemente problematizado, apenas no §34, enquanto a

poesia foi apenas citada. A situação foi alterada nas obras seguintes, quando

muito o autor falou das duas temáticas, tendo sempre a reflexão sobre a

linguagem precedendo a reflexão sobre poesia.

O tema da linguagem se dá entrelaçado aos temas do ser e do

pensamento. A linguagem do ser exige, do homem, um dizer; porém, quando o

ser passa para o dizer, a restrição deste faz com que se perca o sentido do ser,

já que o intento seria dizer o indizível. O ser se torna linguagem, no

pensamento – linguagem que vem da quietude original do indizível do ser.

Tornar dizível o indizível seria fazer o ser deixar de ser.

No entanto, para se entender como as palavras são ditas e como o dito é pensado, isso somente pode tornar-se claro e rigoroso se soubermos o que é pensado e o que necessita vir à fala.178

Do indizível vem a linguagem como aceno e toda tentativa de

acesso a este, exige do homem um salto, pois não há continuidade entre um

etendimento inicial do ser e um dizer do homem – enxergar o citado aceno é

ouvir o apelo do ser. Para que a linguagem vigore como linguagem do ser, é

preciso encontrar caminho que não se restrinja aos ditames do dizer

objetivador – como não há caminho, o salto é exigência daquilo que deve ser

pensado e necessita vir à fala.

177 M.A. WERLE, Poesia e pensamento em Hölderlin e Heidegger, p.17. 178 M. HEIDEGGER, Parmênides, p.15.

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O aceno do ser depende da escuta do homem aos apelos do próprio

ser. O aceno se dá ao homem, de modo primeiro, na consciência de que ele é

algo – é ente. A consciência de ser ente vem ao homem não por palavra de um

dizer, mas pela linguagem do próprio ser que se dá a ele; ele sabe de si por

primeiro (fora qualquer conotação psicológica) e se vê inserido na possibilidade

de saber “algo” além de si. O homem se experiencia como ente desde cedo,179

enxergando-se na linguagem do ser, mas esta consciência cai na trivialidade.

O salto indicado deve ser em direção a esta primeira experiência, indizível,

saindo do trivial do pensamento objetivador.

As ciências em geral falam sobre a linguagem, mas não da

linguagem. De quais ciências falamos? Apenas como exemplos, podemos citar

a linguística, a psicologia, a antropologia, as ciências médicas etc.; cada uma

delas tem um discurso elaborado que busca entender e apresentar o que seja

a linguagem. Na verdade, ratificando o pensar científico, elas acreditam ter a

apreensão e o domínio (quase) plenos do objeto; são diversos os edifícios

teóricos tentando exaurir o entendimento. O questionamento a ser feito é: de

onde se fala? A partir de que “lugar” se fala? Vemos que cada uma fala a partir

de si própria, sobre o objeto que é a linguagem. A ciência nunca dá o salto,

pois ela necessita da segurança de seu solo.

Dar o salto significa sair em direção a outro lugar que não o meu;

isto permite falar a partir da própria linguagem, e não apenas sobre ela. A ideia

de falar a partir do objeto não é original de Heidegger, sendo característica

própria do filosofar, que leva o homem a entender “por dentro”. O que se exige

deste homem em tal situação? Em primeiro lugar, a coragem para se lançar

dentro de algo que não se conhece e que vigora por si. Quando o homem se

179 Sem referência a qualquer definição temporal, o aceno a ser resgatado ocorreu na descoberta de si como ente, momento no qual ele percebe que existe em uma experiência ainda não dita; é experiência de corpo em um espaço, mas ainda sem qualquer definição do que isso signifique – é a pura experiência de existir que chama para a ação. Embora o problema tratado (relação corpo/espírito) e o caminho sejam outros, é o mesmo que afirma Bergson:

No entanto há uma [imagem] que prevalece sobre as demais na medida em que a conheço não apenas de fora, mediante percepções, mas também de dentro, mediante afecções: é meu corpo. Examino as condições em que essas afecções se produzem: descubro que vêm sempre se intercalar entre estímulos que recebo de fora e movimentos que vou executar, como se elas devessem exercer uma influência maldeterminada sobre o procedimento final. Passo em revista minhas diversas afecções: parece-me que cada uma delas contém, à sua maneira, um convite a agir, ao mesmo tempo com a autorização de esperar ou mesmo de nada fazer. (H. BERGSON, Matéria e memória, pp.11-12)

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lança na linguagem, ele não quer discursar, mas ouvir a partir de uma

experiência que não finda – é como o exemplo da massa viva e informe que

fica no fundo do mar.180

A razão objetivadora da ciência não consegue abarcar tal âmbito da

linguagem – por conta disso é que o pensamento do sentido, pela postura de

serenidade, é que abre o caminho para um entendimento da realidade que é

diverso do habitual do homem comum. O pensador se lança; o pensamento

mostra a linguagem como dar-se/retrair-se do ser; a serenidade é mais que um

simples “estar diante de”: ela é o permitir à linguagem o mostrar a si e a partir

de si.

A linguagem fala. O que acontece com essa sua fala? Onde encontramos a fala da linguagem? Sobremaneira no que se diz. No dito, a fala se consuma, mas não acaba. No dito, a fala se resguarda. No dito, a fala recolhe e reúne tanto os modos em que ela perdura como o que pela fala perdura – seu perdurar, seu vigorar, sua essência. Contudo, na maior parte das vezes e com frequência, o dito nos vem ao encontro como uma fala que passou.181

É a partir da palavra que é possível se colocar a caminho da

linguagem. É no dito que a fala da linguagem se dá, porém ela não se esgota.

Entendemos, então, que o dito não pode ser tomado como expressão da

linguagem em sua essência. Esta é a critíca que Heidegger faz à razão

objetivadora da ciência: ela toma um ponto da realidade (que é um “instante-

já”182 ou apenas o clarão deste), tradu-lo para o dizer e estabelece este dito

como verdade plena e última.

O pensamento do sentido tem o mesmo contato que a ciência tem

com o dito do instante. A ciência toma o instante como a plenitude do que pode

ser; dizendo de outro modo, a razão científica considera o instante como

180 Ver nota 44, p.44. 181 M. HEIDEGGER, A linguagem, In: CL, pp.11-12. 182 Clarice Lispector fala do instante:

Mas o instante-já é um pirilampo que acende e apaga. O presente é o instante em que a roda do automóvel em alta velocidade toca minimamente no chão. E a parte da roda que ainda não tocou, tocará em um imediato que absorve o instante presente e torna-o passado. Eu, viva e tremeluzente como os instantes, acendo-me e me apago, acendo e apago, acendo e apago. (C. LISPECTOR, Água viva, pp.8-9)

Vê-se a identificação do que é o próprio homem: instantes que não podem ser desconectados uns dos outros, já que há dependência para que o sucessor ocorra. O instante da roda do carro não pode ser visto apenas nele, para que se possa enxergar um acontecer de instantes que leva de um lugar a outro. Do mesmo modo, o instante da existência não diz tudo, não levando ao sentido do ser.

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superfície e profundidade daquilo que aparece (o que é possível captar do ente

é o que ele é em si). O pensamento toma o mesmo instante, mas apenas como

indicação e um modo de aparecer do ente, na espera do que ainda pode haver

de não manifesto. A ciência diz o que é o ente; o pensamento sonda o ente.

Resta-nos, ainda, falar do nomear. O homem comum nomeia

segundo a necessidade prática de seu fazer diário – podemos dizer se tratar de

um nomear instrumental; sem nomear, ele não pode dispor dos entes que

devem estar à mão para seu fazer. O mesmo homem também nomeia como

ciência: por meio dos nomes, torna-se possível tomar e catalogar os entes em

geral – apenas assim se torna possível o cálculo da razão, pois o nome

transforma o ente em seu objeto. Vale lembrar que a ciência apenas nomeia o

que é de seu interesse e se mostra dentro de sua capacidade de entendimento

(parâmetros da razão objetivadora). A palavra, no discurso comum e no da

ciência, é algo sempre disponível, pois não carece de profundidade alguma,

devendo ser clara e objetiva. A ação é puramente daquele que nomeia, como

se as palavras fossem simples crachás que devem ser atribuídos às coisas.

Mas é o poeta quem nomeia de modo original. Para nós, isto é de

grande importância, pois o deixar-se da serenidade depende, de modo

singular, do nomear como ação que faz o ente vigorar em uma palavra que

preserve a manifestação do ser no ente. No nomear poético, o esforço do

poeta está na busca da palavra que, como nome, não esgote as possibilidades

de ser do ente. Aqui, o nomear é a permissão de, no mesmo nome, nova

manifestação do ser. Por isso, a busca é incessante, é trabalho que exige

esforço, e a palavra não está sempre disponível. Esta indisponibilidade da

palavra revela sua força: nem tudo pode ser nomeado de qualquer modo. É a

espera ativa que conduz o nomear do poeta.

3.2. Poesia e pensamento

Nem sempre é possível enxergar, no homem em um dado contexto

(seu mundo), a harmonia entre os elementos que o constituem. Assim, um

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verso fora do poema pode ser o homem quando o abismo (Abgrund) que é sua

existência não pode ser expresso em seu falar. Mesmo no vazio de tal

ausência de fundamento (Grund) há apoio para a relação com o mundo, que se

dá como discurso com o ente; mas Heidegger questiona sobre qual dizer

poderia dar conta de tal experiência. Não pode ser o dizer da razão (enunciado

representativo e lógico da ciência), já que este requer constância em solo firme,

como indicamos no capítulo anterior.

O projeto de Ser e tempo não foi levado a cabo e Heidegger muda

de caminho, embora ainda na direção do ser; mas voltar-se para a poesia de

Hölderlin não foi tentativa de escapar de um projeto que não seria terminado –

a poesia foi necessidade do pensamento. O projeto filosófico de um poetar

pensante não foi tentativa de encontrar novo caminho a esmo; ou seja,

Heidegger não iniciou a reflexão sobre a poesia sem um sentido determinado

que pudesse mantê-lo no caminho do ser. A palavra poética era já entendida

como elemento para a superação da metafísica.183 “A questão que permanece

para ser resolvida se refere à possibilidade de dar conta desse abismo no qual

o homem desde sempre está inserido. Aqui, vai-se exigir um dizer mais

rigoroso e penetrante. Para captar o ‘incaptável’.”184 A reflexão heideggeriana

sobre o poético indica exatamente a busca deste dizer com rigor – a

possibilidade de “dizer o indizível” e “captar o incaptável”.

Heidegger entende que o “que se passa com o dizer poético,

acontece de forma análoga – e não igual – com o dizer pensante da Filosofia.

Numa verdadeira aula de Filosofia, não importa realmente o que é dito de uma

forma imediata, mas sim o que é calado neste dizer”.185 Esta ideia traz

elementos importantes para se pensar a relação entre filosofia e poesia.

Um primeiro ponto a ser frisado, é com relação à escrita da palavra

“Filosofia” com letra maiúscula:186 não se trata de “qualquer filosofia”, como

algo simplesmente trazido na forma de uma das manifestações de ideias na

história do pensamento ocidental (lembremos o objetivo de “destruição” da

183 Cf. B. ALLEMANN, Hölderlin et Heidegger, p.135. 184 M.A. WERLE, Poesia e pensamento em Hölderlin e Heidegger, p.41. 185 M. HEIDEGGER, Hinos de Hölderlin, p.47. 186 Considerando-se que, em alemão, todo substantivo é escrito com letra maiúscula, a tradução portuguesa dá ênfase ao sentido do que disse o autor.

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história da ontologia tradicional). A Filosofia à qual, aqui, o autor se refere se

trata do “dizer pensante” – é propriamente aquilo que chamou de “pensamento”

ou “pensamento meditativo”.187

O raciocínio serve também para a poesia. Do mesmo modo como

Heidegger entende que a Filosofia não pode ser simplesmente encontrada no

dizer de qualquer filósofo, a poesia (diríamos “Poesia”) não pode ser

identificada com o dizer de todo poeta. Aquilo que o autor chama de “poesia

genuína” é algo que deve ser buscado insistentemente na fala dos poetas;

dizendo de outro modo, significa que nem todo poema leva verdadeiramente à

essência do que seja a poesia:

... travar conhecimento com um poema, mesmo que vá aos mais ínfimos pormenores, não significa ainda estar na esfera de poder da poesia. Pois temos de superar o poema enquanto um trecho meramente existente. O poema tem de se transformar e de se evidenciar enquanto poesia.188

O caminho sobre o qual foi construída toda a filosofia heideggeriana

é o da busca pela existência (adjetivemos como “efetiva”) que se dá pelo ser. O

ser se revela e o autor buscou indicação de tal revelação – primeiramente, no

próprio homem e, depois, na linguagem do existir dos entes. Filosofia e poesia

tratadas como vizinhas são exatamente as que estão em perene vigia,189 na

espera da revelação do ser. Apenas com estas especificações, é possível falar

de uma relação entre elas.

Filosofia e poesia são dizeres. O dizer não se identifica com “palavra

dita, escrita ou falada”, mas trata-se de um mostrar. Deste modo, filosofia e

poesia são dizeres no sentido de mostrarem algo – no caso, a revelação do ser

(indícios, acenos, rastros). O entendimento que se tem destes dois dizeres não

187 A distinção feita entre filosofia e pensamento é marca singular no segundo Heidegger: de modo geral, a filosofia é a fala da tradição, é o falar sobre o ser, enquanto o pensamento é o ouvir o apelo do ser – que tem também o dizer como consequência. Analogamente, Foucault busca conceituar um tipo de reflexão que se volta para a verdade e que difere do projeto tradicional da filosofia, que ele chamou de “espiritualidade”. Muchail afirma que “Foucault e Heidegger, cada um a seu modo, encontram na Antiguidade grega as origens deste vínculo: as práticas da espiritualidade (ou as experiências de pensamento), em suas formas variáveis, não se dissociam dos atos filosóficos”. (S.T.MUCHAIL, Transversal: entre Heidegger e Foucault, pp.98-99) 188 M. HEIDEGGER, Hinos de Hölderlin, p.28. 189 A vizinhança, na verdade, apenas vem pelo mesmo posicionamento de vigília constante: “La possibilité du dialogue entre pensée et poésie tire son origine de cette vigilance”. (B. ALLEMANN, Hölderlin et Heidegger, p.142)

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pode, então, ser resumido (simplificado) no fato de ser o homem a expressar

algo, pois o centro não é o homem, mesmo que seja ele quem diz. Filosofia e

poesia são caminhos pelos quais o homem pode chegar à experiência do ser

(que, “no pensamento, se torna linguagem”190); mas também, de modo inverso,

ambas são caminhos pelos quais chega o ser ao homem – elas são o mostrar

do ser. “Pensar e poetar são duas modalidades de dispor o pensamento a

serviço da linguagem, duas maneiras de habitar po(i)eticamente a

linguagem.”191

O ser se dá em linguagem de ser – ele o faz independente de ser

assumido pelo homem, dedique-se ou não este ente à sua questão. Mas é

apenas este ente o que tem condições de se voltar para o ser, ouvindo seu

apelo; neste sentido, apenas o homem está na abertura da existência. A

compreensão de uma completude do existir é “algo além” da experiência

humana, o que nos leva a entender que sua linguagem não é de qualquer

modo compreensível para o entendimento comum de racionalidade.

Expressando de outro modo, a tentativa humana de enquadrar o ser em um

dizer dirigido pela razão (entenda-se: no modelo técnico-científico) não pode

ser vista como efetiva via de acesso.

Para tentar alcançar o ser, o dizer humano deve deixar o ser se

mostrar nas coisas que são. Filosofia e poesia, no caminho do ser, são um tipo

de dizer que se realiza como um ouvir – é um falar que se expressa também

como um calar (“aquilo que é calado neste dizer”). Poesia e pensamento são

vias diferentes pelas quais a experiência do ser se torna linguagem – tal

experiência é única.

3.3. Poesia – da experiência do mundo para o acontecimento no mundo

Tratar de temáticas que fazem referência à poesia acaba por levar o

leitor para um caminho pré-começado. Mas de qual leitor falamos e o que

190 Cf. M. HEIDEGGER, Sobre o humanismo, p.24. 191 O. GIACOIA JUNIOR, Heidegger urgente, p.46.

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entendemos por “pré-começado”? Não fazemos distinção do leitor – é

simplesmente o homem, pois, diante da poesia, do modo como aqui a

tratamos, todo homem é leitor comum. Afirmamos isto, no intuito de indicar que

o poético ainda é desconhecido. Costumeiramente, fala-se de “poema”,

“poesia”, “poético”, como se fossem conceitos claros e evidentes. Na verdade,

entende-se que sejam, pois o leitor comum concretiza tais conceitos com a

ideia de “coisa escrita” – de modo simples, seria a concreção, em forma de

palavra, da vivência de um sentimento.

Em tal caminho, o leitor comum fica na superfície de uma imagem

criada, da fantasia; para ele, a fantasia do poema é semelhante à da invenção

infantil. Não queremos desconsiderar a poética que se dá na infância, pois bem

sabemos que a vivência infantil é poética de modo original, na experiência do

aparecer das coisas no mundo. Cabe até mesmo nos perguntar, já que

tratamos da serenidade, se não seria a serenidade uma característica da

vivência de mundo infantil, que não é preocupada com a submissão dos entes.

Pode até ser; porém, a palavra infantil não alcança de modo pleno a

profundidade do condensamento – a experiência pode ser intensa, mas a

palavra ainda é leve. Com tudo isso, queremos dizer que o homem tem um

caminho pré-começado na poesia, mas ele se perde na “razão adulta”, que

calcula e avalia possibilidades.

O leitor comum segue pelo caminho pré-começado pela experiência

da infância – experiência “original” – que ficou na palavra infantil. E o poético

acaba reduzido à poesia escrita que fabula um mundo de sonhos: é tomada

como experiênica literária de homens que souberam se utilizar da linguagem

de modo belo, mas que nem sempre toca a realidade. Com a filosofia

heideggeriana, a proposta é outro modo de enxergar a realidade e, assim,

entender a poesia. A poesia tem um aspecto fantasioso, mas que não é como a

fantasia da criança – o fantasioso do poético que aqui tratamos é o

condensado de uma possibilidade diversa dos parâmetros do leitor comum.

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Dichtung é a experiência poética de mundo.192 Dichten é o verbo

“poetar”, mas também “condensar”. O questionamento que se nos aparece é:

como ligar a ideia de “condensar” à experiência infantil e, em seguida, à

experiência do poeta?

O poema fala de algo que o poeta ouve da realidade. Para este

ouvir, é preciso que o poeta esteja aberto a uma experiência diferente daquela

do homem comum, principalmente porque este foge do vazio, acabando por

fugir também do próprio sentido; o homem comum se abriga em conceitos e

concepções prontas. A experiência do poeta é radical, no sentido de que ele

está posto diante da realidade, em espera ativa, disposto a enfrentar a verdade

que lhe vier, sem refúgio. Já que o poeta não se pauta naquilo que está pronto

e definido, ele tenta fazer com que as palavras existentes expressem sua

vivência, ou seja, o que ele ouviu. Porém, as palavras já seguem uma pré-

determinação de como podem responder à necessidade humana. Aí é que o

poeta subverte a língua, para que ela seja expressão da verdade do ser; deste

modo, a língua é a mesma, mas o significado é outro. Uma única palavra que

pode ser de simples entendimento ao homem comum se transforma em um

condensado da experiência humana nas mãos do poeta.

A experiência infantil é densa, mas ela dispõe de termos que são

insuficientes para se expressar. Na passagem do infantil para o adulto, o

homem se enriquece enquanto vocabulário, mas empobrece enquanto

experiência com a palavra. A criança tem poucas palavras à mão, mas elas

ainda são fluidas no poço de onde vêm; o adulto dispõe de muitas palavras,

mas ele já as tem como endurecidas em definições que servirão para a razão

que calcula.

Neste caminhar, poderíamos dizer que a experiência de mundo na

infância é legítima experiência de serenidade? Não nos arriscamos a fazer tal

192 Werle indica que

A poesia enquanto Dichtung possui uma abrangência de conteúdo muito maior que a poesia enquanto Poësie, pois esta perfaz somente um setor “ôntico” literário da Dichtung, que, por seu lado, sempre envolve toda a produção relativa à arte e à sua essência como abertura de mundo. Dichtung provém de dichten: “aproximar”/ “juntar”/ “fabular”, no sentido do caráter poético imanente à postura humana fundamental diante da abertura de mundo. (M.A. WERLE, Poesia e pensamento em Hölderlin e Heidegger, p.25.)

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afirmação, mas percebemos que tal época da vida do homem é indício de que

a serenidade apresentada por Heidegger dá sinal de sua possibilidade, ainda

que de modo incipiente.

Ouvir o que diz Heidegger abala a crença do leitor comum; é a

tentativa de ir além do comum: é tentar ouvir o que o autor ouviu.

Na medida em que o aberto é experienciado por Rilke como o inobjectivado da Natureza plena, o mundo do homem que quer surge-lhe em oposição, necessariamente e de modo correspondente, como sendo o objectivado. Ao invés, um olhar sobre a totalidade íntegra do ente é susceptível de observar, a partir da invasão do progresso técnico, de que lado poderia surgir uma ultrapassagem da técnica, portadora de mais originalidade.193

Por meio da linguagem (falada, escrita ou muda) é que o homem sai

de si em direção ao mundo, sai do ente e se reconhece como Da-sein em

direção ao ser, podendo testemunhar sua existência como acontecimento. Não

estando presa a um determinado modo de enquadramento da realidade, a

poesia se mostra como abertura da linguagem para aquilo que se manifesta ao

homem.194 Neste sentido, o que aparece para o homem tem condições de ser

expresso por uma palavra que não intenta esgotar a manifestação em um

modelo de racionalidade. A noção de que as coisas podem – e devem – ser

esgotadas em suas possibilidades é algo diretamente ligado ao modelo de

razão científica que, de algum modo, estende-se para o pensar do homem

comum.

Quem diz a poesia não é o homem comum, nem o homem da

ciência, mas o poeta. A este, cabe um estar diante das coisas que não apenas

fala, mas que ouve e lê o mundo na linguagem do próprio ser. O dar-se do ente

nunca é o mesmo, mostrando-se, a cada mirada, em nova manifestação do

ser; assim, o ver do poeta nunca é estático.

É interessante o poeta em seu fazer, pois ele será tanto maior poeta

quanto mais desaparecer em sua poesia – trata-se da autonomia que esta

ganha em relação a ele. “A grandeza de uma obra consiste, na verdade, em

193 M. HEIDEGGER, Para quê poetas?, In: CF, p.334. 194 “Manifestação” é sempre “ao homem”, considerando-se se ele o único ente com a possibilidade de estabelecer relação com os demais entes e, assim, com o próprio ser.

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que o poema pode negar a pessoa e o nome do poeta”.195 Esta afirmação de

Heidegger nos leva a questionar sobre o que resta após o poema, com a

negação do poeta. Somos remetidos a outra ideia que já indicamos

anteriormente, sobre a fala da linguagem: no poema, é a língua (como

expressão da linguagem) que fala nas palavras do poeta; o que resta é o que

foi expresso com tais palavras.

O poeta não poetiza para aparecer, mas para que uma necessidade

seja satisfeita – necessidade da linguagem, que chama o homem para a

expressão. Isto ocorre não apenas com o poema, mas com toda obra

artística.196 O modo como Heidegger entende o poeta, em seu poetar, permite-

nos falar da poesia como discurso singular que funda mundo em um espaço

entre duas realidades, a saber, a dos divinos e a dos mortais.

Com a poesia, enquanto fala original, abre-se a possibilidade para

nova experiência histórica do homem – trata-se de fazer acontecer um novo

começo na mesma grandiosidade do que ocorrera com os gregos pré-

socráticos. No poetar, o pensamento – que, comumente, volta-se totalmente

para o mundo como conjunto de entes-objetos – tem sua direção invertida para

si próprio, na busca de um acontecer do tempo originário. Neste sentido, a

poesia de Hölderlin é histórica, não como algo que toma os acontecimentos

como historiografia, mas como o que devolve o homem para um acontecer

originário que inicia o próprio tempo.

O que Heidegger propõe é um pensamento que dá espaço à

interpelação do ser – este, que deixa de ser um objeto pensado por um sujeito.

O ser é o acontecer de um desocultamento que se dá na abertura da clareira

onde seus acenos podem ser vistos. A apreensão deste acontecer se dá

poeticamente, na postura de escuta ativa da serenidade.

Si no se piensa el ser a partir del sujeto, esto es, como una realidad objetiva, sino en el sentido de un acontecer, de un desocultamiento en el que nosotros estamos implicados en tanto que sujetos, entonces un pensar que meditara en este desocultamiento debería embarcarse en un proceso de

195 M. HEIDEGGER, A linguagem, In: CL, p.13. 196 No prefácio de sua famosa obra, o escritor inglês Oscar Wilde escreve, no mesmo sentido: “Revelar a arte e ocultar o artista é a finalidade da arte.” (O. WILDE, O retrato de Dorian Gray, p.5)

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experiencia que, como en la experiencia mística, condujese más allá o, mejor, al interior de sus relaciones mundanas objetivas. La experiencia deja de significar entonces la acumulación de contenidos objetivos que dispersa nuestra atención en distintos campos de objetos, y es, por el contrário, una concentración y un recogimiento meditativos que permiten que la interpelación del ser llegue al habla desveladamente y libre de las determinaciones que nuestras representaciones le confieren (...).197

A experiência que o homem realiza do mundo é sempre individual,

pois, mesmo que ele compartilhe o mundo com outros homens em um mesmo

tempo/espaço, não há como compartilhar uma experiência. Cada homem pode

falar de sua experiência e, no todo, podem ser buscados pontos comuns, mas

a experiência em si não é partilhada. Porém os parâmetros, segundo os quais

os homens interpretam a experiência, são padronizados, seguindo os ditames

da razão científica objetivadora. É como se houvesse compartimentos dentro

dos quais o homem devesse depositar sua experiência esmiuçada – o que faz

com que ela nunca seja experiência de totalidade do homem no mundo. A

experiência é uma e una, mas passa a ser dividida nos compartimentos

disponíveis – muitas vezes, ela nem se dá, mas é provocada e dirigida. E a

vida segue o ritmo “normal”.

Dar espaço à interpelação do ser é permitir um rearranjo da

experiência humana, que não mais tem de ser enquadrada nos parâmetros

vigentes – significa, para o homem, ter a experiência do ser como um todo, que

se dá como existência. No espaço aberto, como uma clareira na floresta, o ente

se dá na totalidade que é recebida como totalidade. Não há palavra para o

acontecimento, como experiência plena do ser – do mesmo modo como não há

palavra para o mistério da palavra;198 não é possível um entendimento lógico-

racional, pois a compreensão se dá apenas pelo poético.

Ponto importante a observar na última citação é a referência à

experiência mística. Diferentemente de qualquer vivência religiosa instituída, o

místico realiza uma experiência direta com o mundo, sem intermédio que não

seja uma compreensão aberta de recepção. O místico se enxerga como

197 V. RÜHLE, La temporalidad de la experiencia, In: F. DUQUE, Heidegger: sendas que vienen, p.305. 198 Ver capítulo 1 (pp.76-90).

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clareira na qual a existência se dá como mundo, na qual o mundo aparece; ele

não necessita da palavra, pois é experiência solitária. Neste sentido é que

entendemos ter o poeta uma vivência mística com o mundo, porém, com ele,

há um chamamento do mundo à expressão do ser como linguagem, em

palavra.

A partir de sua vivência, Hölderlin fala de um tempo indigente – há

uma falta, mas o homem não se dá conta dela. Deste modo, há muito que é

posto no lugar do ausente, não como preenchimento, mas mascaramento. É

como distração, para que não se perceba a indigência e o homem, cheio de si

e de seus méritos, continue no vazio de sentido que, por sua vez, é o

empobrecimento do existir humano: o homem está no mundo, deseja algo

melhor, acredita agir para tal conquista, mas se entrega sempre mais a uma

escravizante concepção de dominação do mundo. O homem escraviza, mas,

na verdade, ele mesmo é escravizado pela exigência de exploração do mundo.

O apelo de Hölderlin, colocado por Heidegger como apelo do ser ao

homem, é para que se constate a possibilidade de outro estar no mundo, pleno

em sentido; mas, antes, é preciso saber que é a libertação do ente que

promove tal novo estar – será possível quando o homem habitar a terra de

modo genuíno, poeticamente. O poeta não é entendido como um tipo de

salvador, pois isto seria entendê-lo como o que traz em si mesmo a solução

para a situação como um todo. O poeta é um libertador das palavras, tirando as

amarras que dão aparência de segurança; ele abre caminho para uma solução

que depende do pensamento como ação de cada homem. A libertação da

palavra leva à proposta de um novo pensar, pois desestrutura o pensar vigente.

O tempo da indigência é o apagar do brilho da divindade no mundo

do homem – não como um deus personificado, mas como o sagrado de existir

que transcende o viver individual. O saber de algo que há, além da experiência

possível, é a constatação da transcendência. O poeta faz vigorar a

transcendência ao parar diante do indizível; ele enfrenta a falta da palavra. O

homem comum, crente na razão científica, entende este parar como fraqueza,

já que se habituou com a ciência, que “tem de poder falar” de tudo. O poeta é,

na verdade, o que se faz forte e caminha até o abismo da falta da palavra. O

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poeta é forte porque recebe nas mãos os raios do deus “com a cabeça

descoberta”;199 o fazer poético é a tradução do poder do sagrado. O poeta

afronta, pois perceber e enfrentar a indigência é perigo para o poder da razão.

3.4. A medida da ciência e da poesia

Conhecimento, controle e dominação caminham juntos no fazer da

ciência. O homem, em última instância, reflete e desenvolve pesquisas com a

finalidade de conhecer puramente a realidade, mas, acima de tudo, há o desejo

de fazer do mundo simplesmente o “mundo humano”. Para tanto, as coisas

devem estar adequadas àquilo que se objetiva construir: tudo deve obedecer

aos ditames da razão que se instrumentaliza por meio da técnica – as

ferramentas de intervenção são cada vez mais poderosas e eficazes. Ainda,

por conta do que se conquista com a tecnologia, em muitos sentidos, o desejo

puro de desenvolver cada vez mais os aparatos tecnológicos sobressaem ante

a realização humana.

De modo geral, o homem explora as coisas e forja o mundo dos

entes, acreditando conseguir, assim, estabelecer o seu domínio, aquilo que é

próprio de si. Porém, ocorre que, em uma sede desmedida, o mundo forjado

não dá chances para que o homem seja si mesmo e se realize essencialmente;

o homem se perde em meio aos entes e, com isso, perde o ser. Ao invés de se

debruçar sobre as coisas em seu aparecer, no intento de compreender a

existência e seu lugar nela, o homem busca o ente pelo ente e nada mais200.

E por que este homem não muda seu caminho? Por que não toma

outra direção, já que muitos problemas que enfrenta201 podem ser entendidos

199 No poema Assim como em dia santo..., Hölderlin indica: “E por isso bebem fogo celeste agora / os filhos da terra sem perigo. / Mas a nós cabe, sob as trovoadas do deus, / ó poetas! permanecer de cabeça descoberta, / e com a própria mão agarrar o raio do Pai, / o próprio raio, e oculta na canção, / oferecer ao povo a dádiva celeste.” (M. HEIDEGGER, Explicações da poesia de Hölderlin, p.63) 200 Ver nota 158, p.108. 201 Foltz afirma: “Há já algum tempo, tem sido generalizadamente aceite que a nossa relação característica com o ambiente natural resultou numa degradação tão extensa do último que a sua capacidade de suportar a habitação humana no futuro pode estar criticamente ameaçada”. (B. FOLTZ, Habitar a terra, p.21.)

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como consequência de uma deturpada compreensão de mundo? Isso pode ser

explicado, pensamos, por uma falsa sensação que advém de certa noção de

controle que a dominação alcançada traz. O homem pensa que pode tudo

controlar e dirigir o todo do ente em suas manifestações. Para estabelecer este

controle “pleno”, é necessário que se estabeleça um modo de avaliar que, por

sua vez, exige um parâmetro, um modelo.

Para o que indicamos, de modo geral, como controle e dominação,

foi preciso estabelecer uma medida. Na verdade, diversas medidas, nos

diversos âmbitos do conhecer e da atuação humanos; acima das medidas

estabelecidas, está o entendimento do que seja propriamente a mensuração.

Sem medida, um juiz não julga, um biólogo não cataloga e um médico não

cura; vale reforçar que os mesmos atos de julgar, catalogar e curar ocorrem

para o homem comum, porém sob outros padrões.

O ato de medir permite classificar as coisas; a partir disso, é possível

julgar, tomando-se um padrão de comparação. Este conjunto de ações traz ao

homem a segurança de poder estar em uma realidade controlada por si, dentro

da qual nada poderia escapar e atrapalhar seus planos. Mas a medida

estabelecida está, ainda, dentro do âmbito da racionalidade tradicional,

entendendo haver nas coisas, apenas o que é mensurável. Heidegger indica

haver “algo além”, pois nada se apresenta em sua totalidade ao homem,

podendo, a cada vez, mostrar algo novo de si.202

A busca pelo ser, expressa na filosofia heideggeriana, de ponta a

ponta, revela a necessidade de que o padrão de racionalidade seja revisto.

Neste sentido, a própria medida acaba questionada, pois, o ato comumente

aceito como “medir” está sob tal padrão, com as regras ditadas por ele. Desde

muito tempo, o homem mede apenas aquilo que ele mesmo define como

mensurável, ou seja, ao que obedece ao padrão racional. Tomando-se a

proposta heideggeriana de um novo pensar meditativo que vai além do pensar

calculativo, questionamos: o “algo além” da experiência da razão (esta, que

202 O entendimento do ser como o que se dá e se retrai faz com que os entes se mostrem não estáticos em seu aparecer.

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nomeia dentro de suas regras), pode ser medido de alguma maneira? E,

dizendo de modo mais desafiador: é possível medir o incomensurável?203

Heidegger entende que sim, interpretando Hölderlin: de modo

singular, a poesia se revela como o caminho para que o homem meça o

incomensurável. Na verdade, o poema mostra a linguagem em uma expressão

que não simplesmente traduz uma experiência racional, mas abre o mesmo

homem para a experiência das coisas em seu fugir (retirada do ser). “Para

captar o ‘incaptável’ [Abgrund] faz-se necessário, (...) o dizer poético, que

sempre está acima do dizer dos mortais comuns”.204

Duas indicações feitas pelo pensador, trazemos aqui como

significativas: a de que é preciso destruir (desconstruir) a metafísica da

tradição,205 para que nova concepção possa se dar e seja possível a chegada

ao ser, tendo o homem (Da-sein) por caminho; outra é a de que a linguagem

deveria ser revista206 para que estivesse de acordo com o que exigia o projeto.

A linguagem é o caminho (e não mais o homem) que leva à experiência do ser;

“[a] linguagem é o advento do próprio Ser que se clareia e se esconde”.207

Por que a linguagem poética é caminho? Pois ela difere

essencialmente do que são as linguagens comum e científica (não igualamos

estas duas; ocorre que a linguagem comum, em grande medida, segue o que é

proposto – ou imposto – pela científica). Tendo como fundamento a

racionalidade em sua concepção tradicional, a linguagem científica não

expressa algo diferente do cálculo da realidade. Enquanto a ciência busca

adequar a realidade à sua linguagem, a poesia apresenta uma linguagem

“aberta”, que consegue abarcar a realidade em suas manifestações. A

linguagem poética se entrega para que a linguagem do próprio ser vigore.

A linguagem do ser é o incomensurável. De diferentes modos, a

poesia faz viger a existência e, assim, o ser – no pensamento, o ser vige como

linguagem. Em Hölderlin, o “poeta dos poetas” (Dichter des Dichters), 203 “Incomensurável” é aquilo que não se enquadra na medida estabelecida pela razão. 204 M.A. WERLE, Poesia e pensamento em Hölderlin e Heidegger, p.41. 205 Cf. HEIDEGGER, Ser e tempo, §6. 206 “Libertar a linguagem da gramática, para um contexto Essencial mais originário, está reservado ao pensar e ao poetizar”. (Id., Sobre o humanismo, pp.25-26) 207 Ibid., p.45.

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Heidegger encontra o poetar sobre a poesia e sobre o próprio poetar – o que

abre as portas para a essência da poesia, cujos elementos foram indicados

pontualmente em Hölderlin e a essência da poesia.

Para refletir sobre o tema da medida, tomamos, de maneira singular,

o poema In lieblicher Bläue... – no português, traduzido como “No azul

sereno...”208 – de modo especial, os versos:

Tanto mais simples as imagens, mais divinas, a ponto de muitas vezes realmente se temer descrevê-las. Os celestiais, porém, que são sempre bondade, tudo ao mesmo tempo, como reinos, possuem essa virtude e alegria. Isso o homem deve imitar. Deve um homem, no esforço mais sincero que é a vida, levantar os olhos e dizer: assim quero ser também? Sim. Enquanto perdurar junto ao coração a amizade, Pura, o homem pode medir-se sem infelicidade com o divino. É deus desconhecido? Ele aparece como céu? Acredito mais que seja assim. É a medida dos homens. Cheio de méritos, mas poeticamente o homem habita esta terra. Mais puro, porém, do que a sombra da noite com as estrelas, se assim posso dizer, é o homem, esse que se chama imagem do divino. Existe sobre a terra uma medida? Não há nenhuma. É que os mundos do criador jamais inibem o curso do trovão.209

No trecho, o poeta fala diretamente sobre a medida e a pergunta que

fazemos é se há ou não uma medida sobre a terra. Há indicações claramente

diversas, pois é dito que “o homem pode medir-se” e “[é] a medida dos

homens”; mas, adiante, temos que “[n]ão há nenhuma [medida]”. Na reflexão,

algumas ideias se nos apresentam de modo mais incisivo:

1. O simples é expressão do divino e o homem dele pode

falar apenas enquanto pureza.

208 Cf. M. HEIDEGGER, EC, pp.254-259. O texto é apresentado de forma bilíngue e, não considerando a questão de que uma tradução é já interpretação do tradutor, temos de indicar haver erros crassos na reprodução do texto em alemão – para a temática deste nosso estudo, o mais significativo foi a supressão de um pequeno trecho, especificamente o que fala do imitar: onde se lê “Der Mensch / Aufschauen, und sagen: so / Will ich auch seyn?” deveria constar “Der Mensch darf das nachahmen / Darf, wenn lauter Mühe das Leben, ein Mensch / Aufschauen, und sagen: so / Will ich auch seyn? ”. 209 Ibid., pp.255-257.

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2. Descrever é medir; por isso, há temor em descrever o

simples.

3. O homem deve imitar – isso é o medir-se com o divino.

4. O divino aparece como céu – eis a medida.

5. Sobre a terra não há medida.

O simples é característica do divino. O que se nos apresenta é a

ideia de que o divino, por ser simples, é justamente aquilo que se dá ao homem

sem exigir instrumentos racionais que lhe permitam ser conhecido. Na verdade,

a exigência é contrária: é preciso se desfazer dos instrumentos racionais para

que o simples possa se mostrar no que é, sem classificação. Significa saber

daquilo que se dá por primeiro na experiência do mundo, mas que o homem

não consegue “enxergar” com filtros.

Na percepção do simples que se dá, a ação de traduzir tal

experiência (descrever) não é trivial, pois, considerando-se ter a razão dado

espaço para o aparecer, ela agora é retomada para transmitir o vivenciado.

Descrever é já um medir que toma as palavras em determinada concepção; a

ciência, por exemplo, é a tradução/descrição do mundo que pretende ser a

máxima expressão da razão e, assim, da verdade. Há temor em descrever o

simples – e por quê? Simplesmente por não haver certeza de que se consiga

abarcar o vivenciado de um modo total, no que ele é; a questão não é sobre

possibilidade/impossibilidade de descrever, mas sim sobre certeza/incerteza. A

impossibilidade seria já uma certeza; mas o que causa temor é a incerteza do

que se pode alcançar na descrição. De certo modo, é arriscar fazer o simples

perder sua simplicidade.

O simples, que é próprio do divino, mostra-se como o que deve ser

imitado. O texto diz que “[i]sso o homem deve imitar” (darf das nachahmen). O

homem deve querer ser como os celestiais, medir-se com os divinos. Imitar é

tomar uma medida, mas, neste caso, não com o que é próprio do homem, mas

com aquilo que é dos celestiais, a saber, a simplicidade – as imagens são mais

divinas (heilig) quanto mais simples (einfältig) forem. “Imitar” tem um

correspondente alemão de origem latina: imitieren; porém, temos no poema o

verbo nachahmen que, etimologicamente, indica de modo mais direto a ligação

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que tem com o ato de mensurar: ahmen vem de āmen que, por sua vez, é

ausmessen “mensurar” e o prefixo nach dá a ideia de “aproximar-se” ou “ir em

direção a...”; disso, temos que nachahmen está no sentido de nachmessen.210

Imitar é mensurar.

O pleno de simplicidade – o divino, em sua essência – aparece

como céu; a medida do ser do homem deve vir deste simples. O poema indica

que o céu faz com que o oculto se mostre, o ausente se torne presente e o

negativo, positivo. Heidegger diz:

O que é a medida para o medir constitutivo do homem? Deus? Não! O céu? Não! O aparecer do céu? Não! A medida consiste no modo em que o deus que se mantém desconhecido aparece como tal através do céu. O aparecer de deus através do céu consiste num desocultamento que deixa ver o que se encobre [...,] no sentido de resguardar o que se encobre em seu encobrir-se.211

Mensurar significa perceber que o deus se mostra como céu, mesmo

não sendo o céu. O céu revela a presença daquilo que está em ocultamento;

porém, “revelar a presença” não significa, ainda, desnudar – o deus não está

desnudo (ou poderíamos dizer “transparente”), mas está lá. A medida é, assim,

saber deixar o velado em seu velamento, porém com a indicação, o traço ou o

rastro de que ele está lá. Para o pensamento comum do homem, “medir”

deveria ser entendido como “delimitar”; mas, agora, o medir aparece como uma

abertura, ao invés de delimitação. Estabelecer a medida (e, a partir dela, a

mensuração do mundo) relaciona-se à concessão de uma liberdade para que o

mundo se mostre no que é. Resta clara a oposição com a medida científica.

Pelo exposto, chegamos à ideia de que não há medida sobre a terra.

A medida pode ser encontrada pelo céu que remete para o deus, que, por sua

vez, está oculto. Quando o homem se volta apenas para esta terra – seu

mundo – o que se dá é a tentativa de cercear o aparecer das coisas para que

cumpram apenas o que lhes for permitido pelo desejo humano. Sobre esta

terra, não há medida, pois, a ciência – que se propõe como o medir verdadeiro

e, assim, caminho para a verdade – é um medir do homem para si próprio. O

210 Cf. DUDEN, Das Herkunftswörterbuch. 211 M. HEIDEGGER, “... poeticamente o homem habita...”, In: EC, p.174.

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homem, neste caminho, não descobre o mundo em seu manifestar, mas sim

sua própria imagem refletida (forjada) no mundo. Enquanto a medida tomada

do céu é a possibilidade de que o homem faça as coisas aparecerem, a ciência

é a medida tomada do homem, fazendo com que as coisas o imitem (no

sentido de nachahmen, o científico tenta fazer com que o mundo vá em direção

– nach – ao homem, tomando este como medida – ahmen).

A ciência não permite tomar o céu como medida; os méritos

alcançados pelo homem em seu fazer mundo não lhe dão a possibilidade de

tomar a medida do céu, pois, como indicado, a ciência é medida humana. A

pergunta que fazemos é sobre como poderia este homem tomar a medida fora

– ou além – daquilo que é seu limite de mensuração. Porém, o poeta já indica o

caminho e Heidegger se debruça sobre ele: apenas poeticamente é possível

alcançar a medida – é o que permitirá a habitação do homem nesta terra.

O habitar poético, ao invés de arrancar o homem da terra, na

verdade lança tal ente na terra – ‘nesta’ terra. Heidegger diz que a poesia “não

sobrevoa e nem se eleva sobre a terra a fim de abandoná-la e pairar sobre ela.

É a poesia que traz o homem para a terra, para ela, e assim o traz para um

habitar”.212 De que modo pode ser pensado o dar-se do ente, então, para que

somente o poético faça o homem, verdadeira e genuinamente, ‘criar raízes’

nesta terra? O poético, mais que falar do mundo, propõe uma escuta daquilo

que é a linguagem do ser; é o próprio receber o mundo naquilo que ele se

mostra e entender-se (o homem) como parte de uma mesma realidade – o fato

de ser ente. O poético pode ser entendido como “a revelação primordial do

significado”;213 é na construção do sentido que o homem consegue habitar.214

O mundo da poesia é singular: é o mundo entre homens e deuses; é

o mundo do lançar-se do homem; é o mundo do projetar-se. No tempo da vida

humana, o mundo instaurado pelo poeta é aquele que permite ao homem um

modo de estar na finitude, sem cair no desespero diante do deixar de ser. Isto

porque, talvez, o poético seja o que verdadeiramente sustenta o próprio

212 M. HEIDEGGER, “... poeticamente o homem habita...”, In: EC, p.169. 213 B. FOLTZ, Habitar a terra, p.190. 214 Cf. M. HEIDEGGER, Op. cit., p.169.

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habitar215. O mundo do poeta não é a poesia, mas aquilo que a poesia mostra,

instaura.

Ser homem é ser mortal. Segundo Heidegger, o homem apenas se

reconhece como tal a partir do momento em que se enxerga como habitante

desta terra, medindo a si próprio diante dos deuses. É no espaço entre divinos

e mortais que se dá o habitar, nesta terra que está entre. “O divino é a ‘medida’

com a qual o homem confere medida ao seu habitar”;216 e este mesmo homem

pode até deturpar tal modo de medir, porém nunca pode se furtar a ele, pois é

este ‘entre’ que sustenta o habitar – é medida ‘estranha, perturbadora e

desconfortável’ para o viver cotidiano. O poético significa estabelecer este

‘lugar’ de morada dos mortais.

Na poesia, acontece com propriedade a tomada de uma medida. No sentido rigoroso da palavra, poesia é uma tomada de medida, somente pela qual o homem recebe a medida para a vastidão de sua essência. O homem se essencializa como o mortal. Assim se chama porque pode morrer. Poder morrer significa: ser capaz da morte como morte. Somente o homem morre – e, na verdade, continuamente, enquanto se demora sobre esta terra, enquanto habita. Seu habitar se sustenta, porém, no poético.217

É no espaço aberto pela poesia – o ‘entre’ céu e terra – que o

homem pode estabelecer contato de modo genuíno com seu Da-sein. Significa

habitar humanamente: o homem percebe seu existir como travessia, que o leva

para uma plenificação como mortal. O outro do humano é o divino, o celestial, e

o medir é justamente o colocar-se diante da realidade não como quem dita,

mas como quem recebe o que é ditado; esta é ‘a’ experiência singular e

originária, e

quem leva adiante essa experimentação original do mundo e produz uma linguagem originária, é o poeta. As formas de expressão são múltiplas, os estilos mudam no tempo histórico e no espaço cultural, as teorias de interpretação seguem as modas, mas o fenômeno do poetar-pensante é um fenômeno que acontece no processo de criação artística. Onde há arte no sentido de um fazer criativo, acontece a linguagem poética, enquanto linguagem hermenêutica. Linguagem que ao mesmo

215 Cf. M. HEIDEGGER, “... poeticamente o homem habita...”, In: EC, p.166. 216 Ibid., p.172. 217 Ibid., p.173.

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tempo capta, presentifica numa imagem, numa forma, numa palavra, a mensagem.218

O poetar é o fazer a palavra se libertar da medida humana, ao ponto

de conseguir alcançar a medida do céu – o pensador afirmou que, na poesia,

“acontece com propriedade o que todo medir é no fundo de sua essência”;219 é

tomada de medida (ausmessen) que nos leva a nachahmen. A poesia,

enquanto medida, é imitação – ou abertura para uma imitação. No poetar, o

homem pode se abrir para uma nova relação com o mundo e, então, habitar.

Se queremos compreender a natureza na sua primordialidade, o nosso pensamento tem que começar com o encontro poético da natureza. Concretamente, pensar – ao contrário da ciência – deve sempre proceder de uma habitação que repouse sobre a terra que está sob os céus, de uma habitação que seja autenticamente poética.220

3.5. Para que poetas e pensadores?

O poeta sempre fala; ele diz do mundo aquilo que seu olhar

proporciona. Tal olhar é o que difere o poeta dos outros homens; porém, no

mesmo caminho, este olhar é o que aproxima o poeta do pensador – ambos

põem o mesmo mundo diante de si. Ainda assim, este “por” o mundo não

significa “dirigir” o mundo para que apareça de tal ou tal modo; trata-se mais da

direção/correção do olhar.221 Esta correção é, além da mudança do “lugar para”

onde se olha, é mudança do “lugar de” onde se olha

Mesmo com toda aproximação, poeta e pensador não são o mesmo:

seus dizeres são diferentes. O que os aproxima é aquilo que têm diante de si: a

mesma realidade que fala a linguagem do ser. A razão calculadora (modelo

científico) enxerga a realidade como superfície plana que pode ser

218 L. HÜHNE, O poetar pensante, p.80. 219 M. HEIDEGGER, “... poeticamente o homem habita...”, In: EC, p.173. 220 B. FOLTZ, Habitar a terra, p.103. 221 Esta ideia toca diretamente tema apresentado por Heidegger em Platons Lehre von der Wahrheit: a correção do olhar passou a ser entendida como essência da verdade. Com a mudança da essência, muda o lugar da verdade, pois o desvelamento é algo que ainda pertence ao ente (em seu mostrar-se) enquanto a correção é algo que pertence ao homem (como aquele que se põe diante do ente).

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simplesmente “descrita em suas leis”; o que falta é sair da superfície para

adentrar no ser das coisas.222

Em O que quer dizer pensar?, é apresentada a ideia da necessidade

de que se aprenda a pensar.223 O pensador não é o detentor do conhecimento

ou plena capacidade de pensar, mas aquele que se põe a caminho, nas vias do

pensamento. E o pensamento não ocorre efetivamente caso não esteja no que

seria seu “meio próprio”, retomando a analogia de apenas ser possível nadar

efetivamente em um meio próprio, a água. O pensador é, então, aquele que,

não simplesmente se coloca nas vias do pensamento, mas traz as coisas para

dentro do meio próprio, que é o âmbito da questão do ser. O pensar se dá ao

serem colocadas as coisas, adequadamente, para o pensamento.

Um outro aprendizado – e, agora, não mais do pensador – é

significativo para esta nossa reflexão: Rainer Maria Rilke (1875-1926) fala do

aprender a ver. O poeta diz que está aprendendo a ver;224 tal aprendizado não

vem de uma pretensão do poeta, pois ele mesmo não sabe o que este novo ver

significa – ele sabe de sua consequência, que é tocar algo que, antes, sua

visão não tocava. “Aprender a ver” é, aqui, a possibilidade de se enxergar “algo

além” do que se apresenta de modo direto à razão calculadora; é o que se

aproxima do pensar do sentido, do pensamento meditativo. O que o pensador

faz com o pensamento, o poeta faz com o olhar.

O ver do poeta toma as coisas e as põe de um modo tal que um

mundo é configurado por meio do aparecer das coisas, e não do desejo da

razão calculadora. Do mesmo modo que o pensamento do pensador, o ver do

poeta se efetiva quando as coisas são vistas dentro do âmbito d’“aquilo que

222 Neste sentido, mesmo quando as ciências da natureza conseguem trazer para a linguagem racional o modo de acontecer de um detalhe da realidade, ainda assim, permanece na superfície, não indo “até às ranhuras” do real; por exemplo, uma lei física, ou biológica, nunca fala da realidade mesma, tocando apenas uma parte do aparecer da realidade – parte que pode ser traduzida para a razão. 223 Heidegger afirma:

(...) é preciso que, de nossa parte, aprendamos a pensar. O que é aprender? O homem aprende à medida que traz todos os seus afazeres e desfazeres para a correspondência com isso que a ele é dito de modo essencial. Aprendemos a pensar à medida que voltamos nossa atenção para o que cabe pensar cuidadosamente. (M. HEIDEGGER, O que quer dizer pensar?, In: EC, p.112.)

224 “Estou aprendendo a ver. Não sei o que provoca isso, tudo penetra mais fundo em mim, e não para o lugar em que costumava terminar antes. Tenho um interior que ignorava. Agora tudo vai dar aí. E não sei o que aí acontece.” (RILKE, apud. M. A. LIMA FILHO, A escuta, a espera e o silêncio, p.31)

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deve ser visto por primeiro”; queremos dizer que a correção do olhar do poeta é

que lhe permite conhecer a realidade. A ação do poeta se singulariza ao

enxergar o invisível e torná-lo dizível:

A poesia de Rilke, como uma ponte de acesso ao mistério das coisas do mundo, penetra nas suas dobras menos visíveis e, dentro delas, descobre o seu Invisível tornando-o dizível. Ao longo de toda a sua vida, associará sua tarefa poética a essa responsabilidade cuidadosa e difícil: falar e proclamar esse Invisível.225

O poeta, do modo como Heidegger interpreta este “modelo de

homem”, pode ser melhor entendido dentro da configuração de mundo que é

marcada pela indigência. Esta caracterização vem do verso de Hölderlin, da

elegia Pão e Vinho, que diz: “... e para quê poetas em tempo indigente?” (“...

und wozu Dichter in dürftiger Zeit?”). A indicação é a de que a figura do poeta

resta questionada em uma determinada situação: na indigência (Dürftigkeit),

qual responsabilidade (ou importância) recai sobre o poeta? Antes, é preciso

saber o que é este “tempo indigente”.

“Indigência” é situação de carência e penúria, quando o homem luta

para sustentar seu modo de ser (Da-sein); porém, sem conseguir os elementos

dos quais precisa, não tem algo em que se apoiar ou agarrar – é a experiência

da falta do necessário fundamento (como solo). O homem produz demais e

pensa de menos; deste modo, acaba se perdendo em meio ao sem número de

produções. O mundo vive um tempo indigente, por não ter mais uma base

sólida que possa dar sentido ao seu fazer e às coisas em geral; observemos

que a indigência não se dá, propriamente, com relação ao sentido, mas com

relação ao fundamento que permite o sentido das coisas. Aqui, o ponto singular

a ser assinalado é o da ausência dos deuses.

A falta de Deus anuncia, porém, algo de muito pior. Não só se foram os deuses e Deus, como também se apagou na história do mundo o fulgor da divindade. O tempo da noite do mundo é o tempo indigente, porque se tornará cada vez mais indigente. Ele tornou-se tão indigente que já nem é capaz de notar que a falta de Deus é uma falta.226

Os deuses não estão mais junto ao homem – este chegou tarde e

aqueles se foram. Esta ausência deixa um vazio que não pode ser preenchido

225 M.A. LIMA FILHO, A escuta, a espera e o silêncio, p.33. 226 M. HEIDEGGER, Para quê poetas?, In: CF, p.309.

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pelo fazer do homem: ele cria muitas coisas, mas não tem condições de criar o

fundamento – isto cabe apenas a um deus. O trecho indica claramente que

Heidegger não fala de um deus específico, como personificação de uma

entidade divina: o fulgor da divindade se apagou. Significa dizer que, mesmo

com diferentes imagens deísticas, não vigora mais a figura daquele ser que

detém o poder de centralizar a atenção do homem como base para todo

sentido.

Em A palavra, Heidegger cita Hölderlin, questionando: “Por que

também estão em silêncio, eles, os antigos e sacros teatros? / Por que não

mais se alegra a dança consagrada?”227 A imagem é a daquele que chega ao

lugar depois que os deuses se foram. E, logo em seguida, continua: “A palavra,

no modo em que já foi palavra, perdeu-se do antigo lugar em que deuses

apareciam.”228 Quando o homem chega e se depara com a ausência, paira o

silêncio; resta a dúvida na falta dos deuses. Com estas ideias, o autor mostra

exatamente o tempo de indigência – é o tempo da noite do mundo; a situação

ainda se complexifica ao afirmar que o nível de indigência é tamanho que nem

a falta de deus aparece como falta.

A indigência, tempo de escassez, como ausência de fundamento

(com a fuga dos deuses), deixa o homem absorto diante da realidade, e resta

um abismo (Abgrund), que é a ausência de fundamento (Grund). Em tal

cenário, cabe perguntar: para que poetas? O poeta é aquele que realiza

experiência singular de não-consciência.

Quanto mais elevada for a consciência, tanto mais excluído do mundo estará o ser consciente. O homem encontra-se em frente do mundo. Ele não habita diretamente na corrente e no vento da conexão completa.229

A ideia de “consciência” pode ser tomada de diferentes modos e a

partir de diversas conceituações. Mas, para afirmar que a consciência implica

uma exclusão do mundo, é preciso indicar o que significa propriamente o “estar

no mundo”. Heidegger indica que o ente em sua totalidade está lançado no

aberto – que podemos entender como “aberto do existir”; significa enxergar que

227 M. HEIDEGGER, A linguagem; In: CL, p.173. 228 Ibid., p.173. 229 Id., Para quê poetas?, In: CF, p.329.

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não há barreira no ato de ser. Os entes, simplesmente, existem; eles estão

lançados no aberto, sem delimitação ou conceituação. Os entes aparecem ao

homem como um sentido; não significa entender que há sentido no aparecer

dos entes. O sentido dos entes é ser. Uma árvore, por exemplo, existe no todo

que constitui o mundo – não há função, objetivo ou qualquer outro tipo de

direcionamento.

“Estar incluído” no mundo é não impor restrições ao brotar da physis.

Os entes estão no mundo como são e não como devem ser; a noção de que há

um modo específico de ser, ao qual as coisas deveriam obedecer, é noção

originada pela consciência. “Florestas deitam-se/ Riachos arrojam-se/

Rochedos duram/ Chuva desliza./ Planícies esperam/ Fontes jorram/ Ventos

permanecem./ Fecundidade medita.”230 Estes versos indicam claramente o ser

das coisas – elas a nada obedecem: simplesmente são.

Com os versos do parágrafo anterior, Heidegger parece indicar a

realidade dos entes como diversa da realidade do homem. Seria algo como

uma “segunda realidade”? De certo modo, sim. A realidade humana é artificial

por conta de sua consciência e representação.231 Enquanto as coisas são, o

homem, além de ser, tem a consciência do ser – de si e das próprias coisas.

Embora, para o homem, nesta realidade construída, a consciência seja

condição primeira, no ente como um todo não é assim: primeiramente, as

coisas são.

A citada “conexão completa” do mundo apenas pode ocorrer para os

entes em geral, menos para o homem – ele “não habita diretamente na

corrente e no vento”. Sendo o ente consciente por excelência, o homem

também é, então, o ente excluído do mundo por excelência. “As plantas e os

animais estão inseridos no aberto”232 – eles estão, assim, no acontecer do ser,

no desdobrar da physis. O homem, por sua vez, não está no aberto; o mundo

que o homem constrói, pela consciência, é fechado para a experiência

irrestrita, que é o aberto. A consciência não consegue conceber a existência

230 M. HEIDEGGER, Da experiência do pensar, p.51. 231 Que é, também, uma re-apresentação. 232 M. HEIDEGGER, Para quê poetas?, In: CF, p.329.

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sem um sentido determinado233 que deve ser descoberto pelo homem. Estar na

conexão completa é participar de uma mesma realidade, junto dos demais

entes; o homem sai desta realidade e põe o mundo diante de si.

Diante das coisas, de modo particular, mas diante do mundo, o

homem se põe em postura de oposição. O homem não está no aberto e situa

os entes como puros objetos para utilização (instrumentos) – é a ideia

apresentada de objetualização como Gegenstand. Estando em frente ao

mundo, o que lhe resta é falar como quem assiste a algo e não como quem

participa; por sua vez, no falar sem a participação, o homem não toca as coisas

em seu ser, elas ficam desprovidas do que são e afastadas dele. A perda do

sentido é, em última instância a “fuga dos deuses”.

No Da-sein, como modo de ser do homem, vai junto um risco, que é

a possibilidade sempre presente de não ser “de modo próprio”. O risco é a

queda no cotidiano, no palavrório (“primeiro Heidegger”); é a queda na

linguagem desgastada (“segundo Heidegger”). De qualquer modo, o risco

termina no não contato com o ser, em seu apelo. O tempo indigente é marcado

por queda, perda, risco – abismo. A queda no palavrório é recurso para não

enfrentar o abismo – a palavra, em tal situação, disfarça e desvia a atenção do

risco. Isso é fruto da consciência, cada vez mais afastando homem e mundo.

No tempo indigente, o homem perde as coisas e a si próprio, quando

perde o sentido de ser do ente que ele mesmo é; dizendo de outro modo: o

homem se perde nas coisas. O que reina neste tempo é a técnica, ou o espírito

técnico que impulsiona (empurra) o homem para dentro de um mundo que

passa a ser enxergado a partir “do” modelo de racionalidade (que calcula). E o

homem é levado a des-encobrir234 as coisas do mundo. Mas, considerando-se

a ausência do sentido, este “espírito técnico” povoa de necessidades a

233 Esta ideia de haver um sentido que deve simplesmente ser descoberto e dito pela razão dá segurança e sustenta a racionalidade ao modelo científico, conforme apresentado no capítulo 2. 234 Por isso, a essência da técnica também se relaciona com a verdade, alétheia. Porém, a técnica mesma, em sua prática, é entendida por Heidegger como um desejo ilimitado de fazer as coisas aparecerem. Junto a tal desejo, que deve ser obedecido, vem a crença de que, realmente, o homem deve e pode fazer do mundo o que quiser. Heidegger afirma: “Cresce a aparência de que tudo que nos vem ao encontro só existe à medida que é um feito do homem. Esta aparência faz prosperar uma derradeira ilusão, segundo a qual, em toda parte, o homem só se encontra consigo mesmo”. (M. HEIDEGGER, A questão da técnica, In: EC, p.29.)

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realidade humana, com a noção de que seja preciso fazer, construir, produzir,

armazenar, gerar, forçar, reter, acumular etc. – tudo desregradamente.

Neste contexto, temos poesia e poeta com qualidades singulares: 1)

a poesia é a fala que permite a reinserção do homem no mundo – a palavra

poética não expressa o aberto, mas o indica; e 2) o poeta é o que se põe diante

do abismo. Enquanto a palavra ordinária (comum ou científica235) é

aperfeiçoada sempre dentro das necessidades do fazer técnico, em um padrão

regrado e cerceador, a palavra poética abre o mundo para o contato com o

homem, reinserindo este no âmbito das coisas. Enquanto o homem ordinário

(comum ou científico) se perde em um fazer desmedido que, na maioria das

vezes, sustenta a crença de segurança em meio àquilo que constrói, o poeta se

lança diante do abismo.

Reinserir o homem no mundo, de modo algum significa igualá-lo aos

animais e às plantas. A consciência o põe fora e a poesia permite o estar com

os demais entes. Interpretando a poesia de Hölderlin, Heidegger desenvolve a

reflexão sobre a ideia de que o homem realizou muito, ao longo de seu fazer

histórico: ele produziu, construiu mundo – “criou” e modificou a realidade, como

fruto da consciência; ou seja, ele tem méritos no que fez, porém, apenas

poeticamente tem condições de habitar esta terra.

A representação do mundo implica o afastamento do mundo. Este

representar é sempre a tentativa de enquadramento da realidade em certos

padrões e com determinados elementos que neles “cabem”. A própria

experiência da palavra que fala o mundo é experiência de restrição.

Entendendo-se que a representação seja ato segundo no mundo (o primeiro, é

o próprio dar-se do ente), a tentativa aqui é a de propor um pensamento que

seja pré-racional que, seguindo o raciocínio, é pré-representacional. O que

existe antes da representação é a própria coisa, é o mundo – é physis.

Heidegger propõe a experiência, não do sentido dado pelo homem, mas do

235 Não é tão simples o entendimento de separação daquilo que é o comum e o científico, principalmente quando consideramos que a ciência é o próprio senso comum maximamente explorado tecnicamente.

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sentido do próprio ser das coisas – ele entende que tanto o pensamento

meditativo quanto o pensar da poesia fazem isso.236

Diante do abismo está o poeta. O poeta encontra a palavra diante do

inominável, diante do ente em sua totalidade; em uma palavra, diante do ser.237

Diante do mesmo inominável, o pensador deixa que o pensamento se mostre,

ao invés de dar um direcionamento dentro de um conceito de “possível”.238 Mas

o homem comum, diante deste inominável, procura falar, pois não está

preparado para ouvir. Este homem não conhece a postura de serenidade.

O homem comum vive a cegueira de seu mundo, que não lhe

permite enxergar além do que aparecem como “necessidades da vida” –

principalmente a necessidade de produção. Não habitando, o homem apenas

se entende como explorador do mundo, para que as coisas forneçam o que é

lhe necessário. Em tal situação, o homem é “apenas” o produtor e a coisa é

“apenas” a matéria-prima dentro de uma armação (Ge-stell).239 A cegueira

indica a indigência do mundo.

Diante do silêncio, o homem quer falar. A fala é um modo de

linguagem, mas esta é maior. A investigação sobre a linguagem é abertura

para a questão do ser. Neste âmbito, a linguagem humana é reflexo e uma

possibilidade deste ente: o homem fala, pois a existência é linguagem e, nela,

ele está. É o que Heidegger indica, ao dizer que não é o homem quem possui a

linguagem, mas o contrário.240

236 É importante entender que a proposta de Heidegger apenas pode ser entendida em um novo conceito de “racionalidade”. Neste ponto, corremos o risco de entender seu pensar como algo que se fecha em si, tornando-se extremamente esotérico; porém, devemos nos lembrar da imagem do bosque: apenas adentrando nele, podemos perceber que ser totalmente fechado é impressão de quem o observa de fora. 237 Em Contato, o autor-cientista põe na boca de sua personagem-cientista a ideia de que o poeta tem mais condições de experienciar o grandioso; diz ela: “Deviam mandar para ali jovens poetas e compositores, (...) [pessoas] que não estivessem inteiramente escravizadas às burocracias sectárias”. (C. SAGAN, Contato, p.275.) 238 De certo modo, esta experiência diante do inominável, que exige a quebra de padrões de racionalidade, é semelhante à experiência mística vivenciada pelo homem ao longo da história. 239 Gestell, termo traduzido como “armação” ou “composição”, é apresentado por Heidegger como sendo “a força de reunião daquele por que põe, ou seja, que desafia o homem a des-encobrir o real no modo da dis-posição, como dis-ponibilidade. Com-posição (Gestell) denomina, portanto, o tipo de desencobrimento que rege a técnica moderna mas que, em si mesmo, não é nada técnico.” (M. HEIDEGGER, A questão da técnica, In: EC, p.24.) 240 Id., Sobre o humanismo, p.24.

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Ser possuído é, para o homem, ter algo que o dirige no que ele é.

Linguagem não é caminho, mas a possibilidade de ser – nela (linguagem), se

dá o jogo no qual o homem pode ou não ter a posse de si e estar

“genuinamente” no mundo. Mas o que significa este estar “genuinamente” ou

“propriamente” no mundo? Entendemos que se refere à diferença ontológica do

homem como Da-sein. O homem não é um ente como os outros, pois seu

mundo se dá no “entre” céu e terra, divinos e mortais. Quando o homem ouve o

apelo de seu “ser entre” é que vive genuinamente; é viver segundo o que ele é,

não se perdendo entre os entes, como se fosse apenas mais um.

Há uma necessidade de ser de modo próprio; trata-se de um

chamamento. E o homem é o ente que responde – e apenas pode fazê-lo por

ouvir. Serenidade é o não perder-se em meio à avalanche que segue seu

curso; é estar em vigília, na guarda do dar-se do ser. Pensadores e poetas são

vigias do ser.241

Mas a prontidão de poetas e pensadores não é condição necessária

apenas a eles: a serenidade é caminho a ser percorrido pelo homem. Neste

sentido é que vale tomar o exemplo caro a Heidegger: o camponês. Este está

pronto para escutar o chamamento que vem das coisas que são em seu

mundo. É na terra, como seu chão (de sua história), que o camponês vê brotar

o chamamento do ser; ele cultiva, mas ouve e espera. O camponês responde

como lavra e cultivo. O poeta responde como nomear. O pensador responde

como pensamento. Nos três casos, é a physis que brota como palavra, ideia e

planta.

Em tal contexto, quando poetas e pensadores falam, abrem caminho

para postura diversa, que é a serenidade. Talvez este seja o principal motivo

de serem, poeta e pensador, incômodo na sociedade, pois apresentam

possibilidade diversa da comumente aceita ou imposta.

Uma percepção profunda o bastante do que é a com-posição, enquanto destino do desencobrimento, não poderia fazer brilhar o poder salvador em sua emergência?242

241 M. HEIDEGGER, Sobre o humanismo, p.25. 242 Id., A questão da técnica, In: EC, p.31.

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Esta percepção profunda é o que o homem não tem. Trata-se de

perceber que o homem é levado ao des-encobrimento técnico desenfreado,

não por algo que acredita ser de valor e, daí, necessário. A produção técnica

tem origem no próprio homem; porém, a criação foi introjetada no criador, de

modo tal que este não consegue mais enxergar caminho sem ela – torna-se

uma crença na técnica e no fazer da ciência como um todo. Esta é a indigência

do nosso mundo: tudo perde seu sentido próprio – sentido do ser –, passando

a ter espaço apenas no desenho estabelecido pelo fazer técnico. Pensadores e

poetas são necessários em tal contexto, para que se dê a percepção e se

constitua o “poder salvador”.

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Conclusão

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Quem é que, hoje em dia, se atreve a considerar-se familiarizado com a essência da poesia, bem como com a essência do pensamento e achar-se ainda suficientemente forte para conduzir ambas as essências à mais extrema das discórdias, assim estabelecendo a sua concórdia? (Heidegger, Serenidade)

Uma conclusão seria entendida como o fechamento do iniciado. Mas

nossa conclusão não encerra, pois o caminho que percorremos abriu vasto

campo para pensar. O ponto ao qual chegamos condiz com o que entendemos

ser a necessidade apresentada por Heidegger e abordada por nós. Trata-se do

pensamento que, incessantemente, volta-se sobre si mesmo e possibilita a

abertura para a manifestação do ser.

Heidegger afirma que, tanto no “poetar do poeta, como no pensar do

filósofo de tal sorte se instaura um mundo, que qualquer coisa, seja uma

árvore, uma montanha, uma casa, o chilrear de um pássaro, perde tôda (sic)

monotonia e vulgaridade”.243 Quando o mundo, que é harmonia, é entendido

apenas como monotonia, a realidade (os entes em sua totalidade) não pode

ser conhecida, pois, sendo os entes a manifestação do ser, eles não têm a

possibilidade de ser propriamente. Pensador e poeta caminham sobre um

único solo e se deparam com a mesma realidade; ainda que seja com suas

diferenças, cada um a seu modo expressa e faz vigorar o mundo. Desta

constatação é que partimos para os encaminhamentos finais deste trabalho.

I. Dos caminhos da serenidade: poesia e filosofia no encontro com o mundo

À dicção do poeta, Heidegger acrescenta uma palavra de filósofo: serenidade. Não um lamento, uma demonização da tecnologia. Ao contrário, ele prenuncia uma relação pensante com o segredo até hoje velado na essência da técnica. A palavra de Heidegger diz: serenidade para com as coisas, cuidado preocupado com o mundo, deixar ser, abertura para o segredo – ethos de meditação sobre os destinamentos do Ser, nascidos de um pensamento que é, em si mesmo, ação (...).244

243 M. HEIDEGGER, Introdução à metafísica, p.55. 244 O. GIACOIA JUNIOR, Heidegger urgente, p.104.

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Poetas e pensadores são homens que, em tempo de calmaria,

pouco aparecem; na verdade, pouca é a atenção voltada a eles. Em tempo

diverso, a saber, de revoluções e crises, naqueles nos quais o homem fica

perdido diante do movimento da realidade, a situação muda: poeta e pensador

ganham voz por serem os que conseguem se desprender de um modo de

pensar habitual (que responde às necessidades vigentes) e lançar olhos para o

que pode ser mais fundamental e basilar. Quando o homem se vê perdido em

tal crise, são os poetas (pensando-se o poético não apenas com relação à

poesia, mas como sustentação de toda arte) e os pensadores que devem se

posicionar; são os libertos da palavra. Não é um povo nem um poeta que dão

origem à necessidade de falar: o ser exige o falar dos poetas e o pensar dos

pensadores, quando, então, o homem se reúne e se põe a ouvir. Toda palavra

é política e é por isso que os mais libertos na palavra são os mais fortes,

quando a organização político-social busca restringir a realização do ente.

A força da palavra liberta permite ao poeta chegar ao abismo no qual

se dá o perigo ao homem; é de lá que pode ser pensada a mudança de

postura. É no íntimo do perigo que poeta e pensador se colocam para abrir

caminho; é como estar no olho do furacão: de lá, tudo se pode enxergar e as

conexões políticas e sociais podem ser melhor entendidas.245 Neste “lugar” se

encontra a segurança para nomear e fazer, da palavra, manifestação do ser.

Diante do perigo, o homem comum se retrai, afastando-se em direção ao que

pode parecer ofertar segurança. O homem comum teme, pois a palavra, como

linguagem e manifestação de si próprio, está presa à estrutura que é abalada.

A palavra presa é a palavra da monotonia. Por outro lado, aqueles que já são

libertos, em consequência da palavra liberta, têm forças para enfrentar e guiar,

por saberem que o maior risco é o da fuga sem volta dos deuses, que traz a

perda do sentido.

245 Também neste sentido, a capacidade do poeta é apresentada nos versos: “Saiba que os poetas como os cegos/ Podem ver na escuridão” (C. BUARQUE, Choro bandido). De certo modo, todo período de crise é período de escuridão.

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Heidegger fala de crise espiritual,246 mas considera apenas sua

época, sem indicar que se trata de algo que se repete ao longo do tempo. Ele

entendia que aquele momento era singular, por constituir o ápice da realização

da metafísica tradicional que traz a técnica como condutora. Mas é importante

enxergar que ele tinha um projeto (filosófico-político-poético) por trás de seu

filosofar. Um projeto assim não foi novidade na história da filosofia.247 Ele

falava da grande crise por poder apresentar uma grande solução.

A filosofia heideggeriana é política, mas não por conta do

famigerado envolvimento político com o movimento nazista – é política por

tratar da palavra e se voltar ao poético. Não há sistema que persista sem uma

palavra que o sustente, pois a palavra é política em si mesma; ela erige e faz

viger o mundo do homem. E ainda deve ser considerado o poético: toda poesia

é luta e resistência no questionamento do poder da palavra instituída.

A palavra instituída é determinada pela razão objetivadora e

sustenta uma realidade de submissão do mundo pelo homem – e até mesmo

do homem pelo homem, indicada pelas diferenças e preconceitos de todos os

tipos. O poetar pensante é luta no resgate da experiência do ente no ser, que

não pode ser banalizada – é tentativa de des-encobrir (trazer a verdade) o

brotar da physis que se dá simplesmente e apurar a percepção humana para

os acenos e apelos do ser. O pensamento de Heidegger é este próprio aceno

que vem do pensamento e mostra a possibilidade de um outro estar do homem

na terra. Mas suas próprias ideias se tornam filosofia e caem como tradição: os

grandes homens são os momentos de propriedade do homem; mas o Da-sein

decai na cotidianidade – assim ocorre também com a filosofia do próprio

Heidegger e a daqueles que nela se basearam.

A serenidade é a proposta heideggeriana diante do perigo do

ocultamento do ser e de tornar o homem mero produtor que está intimamente

246 “Espírito é a potenciação das potências do ente, como tal na totalidade. Onde domina o espírito, o ente se torna, como tal, sempre e cada vez mais ente.” (M. HEIDEGGER, Introdução à metafísica, p.75) 247 Apenas como um exemplo, pode ser trazida a filosofia socrático-platônica: no chamamento de Sócrates, para que o homem se voltasse às questões da alma e não se perdesse naquilo que era a necessidade corrente; do mesmo modo, o próprio Platão deve ser considerado 1) em seu entendimento de que o poder político deveria estar nas mãos dos filósofos e 2) em suas incursões políticas (insucesso) junto ao governo de Siracusa.

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ligado aos instrumentos que auxiliam na produção. O autor fala claramente

sobre a postura que é a serenidade:

Podemos utilizar os objetos técnicos e, no entanto, ao utilizá-los normalmente, permanecer ao mesmo tempo livres deles, de tal modo que os possamos a qualquer momento largar. Podemos utilizar os objetos técnicos tal como eles têm de ser utilizados. Mas podemos, simultaneamente, deixar esses objetos repousar em si mesmos como algo que não interessa àquilo que temos de mais íntimo e de mais próprio. Podemos dizer “sim” à utilização inevitável dos objetos técnicos e podemos ao mesmo tempo dizer “não”, impedindo que nos absorvam e, desse modo, verguem, confundam e, por fim, esgotem a nossa natureza (Wesen).248

Entendemos que a serenidade deva ser postura não apenas diante

dos entes, mas diante da própria filosofia, pois esta não pode ser algo que

simplesmente obedece aos interesses da razão calculadora. Aguardar o ser,

estando atendo para ouvir seus apelos, é deixar o pensamento acontecer, não

sendo origem, mas porta voz dele. Poetas e filósofos levam o homem para o

encontro com o mundo, deixando o mundo ser – não o sujeitando aos desejos

da técnica – e deixando este mesmo homem livre, diante dos entes e dos

instrumentos da técnica.

II. Da experiência do poetar como pensamento: serenidade

Indicamos a serenidade como caminho. Talvez, caminho “maior”,

que possa ser entendido como o que abre espaço para um novo habitar do

homem. O risco que corremos foi, de modo inicial e certo, o de tomarmos uma

conceituação primária e comum do que seja a serenidade enquanto postura.

Acreditamos ter passado pelas dificuldades de se quebrar o conceito,

passando do âmbito comum para o filosófico (ou, como Heidegger diria,

“âmbito do pensamento”). O que o autor expressou, de modo especial, em

Serenidade (Gelassenheit), não se restringe à ideia de “calmaria diante de” ou

“tranquilidade não perturbada”; não é passividade diante de um mundo que

vigora nas coisas que ocorrem diante do homem – a serenidade é atividade do

248 M. HEIDEGGER, Serenidade, pp.23-24.

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homem que age como pensamento, ouvindo o ser no ente e permitindo que as

coisas sejam.

Dizendo que a serenidade é “caminho maior”, trazemos a ideia de

que há caminhos menores que permitem ao homem chegar até ela. Tanto

filosofia quanto poesia são caminhos que aproximam o homem da serenidade;

filósofos e poetas são os que cuidam para que as possibilidades de

experienciar o mundo não sejam desgastadas ao ponto de serem reduzidas ao

entendimento comum da razão. Os entes podem ser pensados sem a restrição

racional que enquadra cada um deles em um desenho pré-concebido. O

filósofo, do mesmo modo que o poeta, busca realizar a experiência do

pensamento de modo transcendente. Dizendo de outro modo, significa permitir

ao pensamento chegar a um “espaço” situado “fora” ou “além” da razão; se o

pensamento alcança, é porque lá os entes se mostram, ainda que sob outra

medida.

Poetar e pensar não são o mesmo, mas abrem o homem para uma

experiência; os dois não são “maneiras diferentes de se dizer o mesmo”; mas

são portas que levam a um “lugar”. E que lugar é este? É a clareira.

No meio do sendo na sua totalidade vige um lugar aberto. É uma clareira. Pensada a partir do sendo, ela é mais sendo do que o sendo. Por isso mesmo, este meio aberto não está envolto pelo sendo, mas é o próprio meio clareante que circunda todo sendo como o Nada que mal conhecemos.249

A possibilidade desta clareira, como abertura para uma

compreensão de ser, instiga e incomoda o poeta, tanto quanto o pensador –

eles ouvem mais e, por isso, têm de responder. É experiência de saída do

habitual, do certo, para o âmbito do desconhecido e incerto, que está lá e

chama. O homem é chamado a estar de outro modo no mundo; para tanto, é

chamado a assumir-se, em sua essência mortal, no tempo, no dar-se e retrair-

se do ser, no viger das coisas. Serenidade é deixar as coisas serem, não como

um simples espectador, mas como o agente pensante que faz com que elas

possam ser.

249 M. HEIDEGGER, A origem da obra de arte, p.133.

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Um questionamento que se nos coloca é se a serenidade teria algo

a ver com a citada monotonia, sobre a qual falamos para tratar da coisa. Caso

sim, a postura serena do homem seria a simples consideração de tudo que há

em um mesmo tom, sem grandes nuances ou diferenciações. Esta questão da

tonalidade é bastante importante na reflexão heideggeraiana e é preciso que

seja enxergada sob dois ângulos: o do homem e o das coisas.

Para falarmos sobre o tom, podemos tomar dois campos nos quais

ele aparece propriamente, a saber, o âmbito do som e o da cor. Em ambos,

falamos em graus do que aparece, graus de ondas visuais ou sonoras – o tom

lhes é constituinte: a cor é sempre de determinado tom, não podendo aparecer

fora de tal categoria, e com o som ocorre o mesmo. No nosso caso, podemos

entender que todas as coisas têm seu tom e, para que estejam juntas em um

mesmo mundo, devem estar em um mesmo tom, como característica forte de si

para composição, ainda que sejam diferentes umas das outras.250

O tom pode ser entendido como uma linha de sustentação de uma

essência que é comum às coisas que estiverem nas gradações dele. As coisas

podem ser diferentes, mas participam de um mesmo tom. O tom une o

diferente sem transformá-lo em igual. A linha de sustentação do mundo do Da-

sein pode ser entendida como o que Heidegger chama de tonalidade afetiva:

nela, as coisas participam, não como monotonia, mas como o que são,

constituindo a harmonia de tonalidades.

Voltando ao questionamento que fizemos logo acima, podemos

afirmar, então, que a serenidade é a vivência do homem, em sua tonalidade

afetiva de mundo, abarcando as coisas como elementos constituintes. Se

tomarmos o exemplo do som, para falarmos da tonalidade da vida, o mundo de

cada homem é uma música executada na união dos elementos que, mesmo

existindo separadamente, são origem à música como um todo sem partes. Tal

música permite 1) o aberto no qual as coisas se dão e 2) o diálogo entre céu e

terra, divinos e mortais.

250 Como exemplo, o acorde de Dó Maior (C) é composto por três notas diferentes (dó, mi, sol) e a escala de C se abre para um campo hamônico de acordes que, por sua vez, são formados por outras notas que se dão em harmonia.

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É a serenidade que permite o novo pensar ou o contrário? Na

verdade, ao longo deste nosso caminho, tal questão se mostrou complexa, no

sentido de não termos como estabelecer clara divisão entre os dois. A

serenidade é uma postura; uma nova postura, por sua vez, depende do que

chamamos de um novo pensar. Daí, concluiríamos que a serenidade apenas

poderia ser consequência. Mas o novo pensar apenas é permitido quando o

homem se coloca de modo diverso no mundo, diante das coisas; a nova

relação (de deixar-ser) permitiria o novo pensar sobre o mundo. E o novo

pensar seria consequência. A pergunta, na verdade, não tem sentido nesta

problemática, até porque estaríamos tratando do tempo no qual dois elementos

se dão, mas isto não cabe, já que nos colocamos na busca de uma experiência

original, o que, por sua vez, coloca-nos em entendimento diverso do tempo.

No âmbito da serenidade, o novo pensar se dá desde a concepção

que o homem tem dele: o pensar é a possibilidade de abertura e diálogo com o

mundo – é a própria possibilidade de fundar um mundo. Neste novo

entendimento, o pensamento é dom, dádiva ao homem; ou seja, não é

nenhuma consequência de qualquer ação humana, nem simples fruto de uma

evolução casual.

O homem se reconhece, como diferente, na recepção de uma

dádiva e fazer-se homem significa realizar plenamente aquilo que recebeu.

Neste sentido, ao pensar, o homem “faz brotar” o que recebeu – no mesmo

sentido que é o brotar da physis. Quando, no pensamento, o ser se torna

linguagem e é expresso na palavra – seja do pensador ou do poeta – o pensar

do homem passa a ser resposta e, mais que isso, é agradecimento pelo dom

recebido. O exercício do poetar pensante é canto que brota como resposta,

que é ação de graças.

III. A discussão que leva ao devaneio: o exercício do poetar pensante

Ao longo desta tese, realizamos uma experiência de pensamento,

tendo como fundo a filosofia heideggeriana. Para tanto, vimos que perpassa

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todo seu fazer filosófico um chamamento para um novo raciocinar, deixando o

pensamento comum, em seu modo reflexivo calculador, em busca de uma

nova racionalidade capaz de abarcar a construção teórica do autor – entenda-

se abarcar a manifestação do ser, ouvindo seu apelo. Há uma insistência, de

modo especial em Serenidade,251 para que não se busque representar o que é

posto ao pensamento, não forçando as ideias a obedecerem a algo já

determinado. A necessidade é a de aguardar, para que o pensamento se dê.

Interessa-nos indicar que, em determinado momento da discussão

(entre o investigador, o erudito e o professor), temos: “Parece-me que esta

noite excepcional vos leva a ambos a devanear”.252 Devaneio sóbrio é o

exercício do poetar pensante – situação na qual o esforço do homem não mais

é o de prender os entes como objetos de pensamento, mas o de se manter na

espera, aguardando. É deixar o movimento de pensar acontecer por si, a partir

do que se dá ao homem na experiência.

Qual homem existe e o que dele se espera? Existe o homem que foi

construído dentro de um projeto político, social e interpretativo; um ente que

está do modo como aprendeu a estar. Na sociedade do efêmero e do

espetáculo (dominada pelo falatório e pelas necessidades de cada vez maior

dominação e sujeição do ente para produção), não é simples estabelecer um

modelo de homem; grande dificuldade, porém grande necessidade. Não

havendo um “céu de essências” carregado do sentido dos entes, perguntamos

quem é o homem, a partir do qual será possível uma nova relação com o

mundo.

Heidegger fez suas escolhas, tomando os poetas que entendia

serem os sinais balizadores para a reflexão. Faremos também nosso devaneio

por meio de nossas escolhas, começando por Cecília Meireles; voltamo-nos

para o poema Motivo:

Eu canto porque o instante existe e a minha vida está completa. Não sou alegre nem sou triste: sou poeta.

251 Cf. M. HEIDEGGER, Serenidade, pp. 36; 39; 42; 51. 252 Ibid., p.60.

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Irmão das coisas fugidias, não sinto gozo nem tormento. Atravesso noites e dias no vento. Se desmorono ou se edifico, se permaneço ou me desfaço, – não sei, não sei. Não sei se fico ou passo. Sei que canto. E a canção é tudo. Tem sangue eterno a asa ritmada. E um dia sei que estarei mudo:

– mais nada.253

O homem se realiza como Da-sein em uma realidade não escolhida

por ele; nela, ele se vê esfacelado diante das necessidades às quais deve

responder. Por sua vez, tais necessidades não contribuem para que o homem

se compreenda e ouça o chamado do ser: ele se perde, sem encontrar sentido

e acaba esfacelado em meio à oferta de infindáveis modelos de vida (encontrar

algo que sirva como sólido fundamento para a realização humana individual

torna-se tarefa de grande complexidade).

‘Eu canto porque o instante existe e a minha vida está completa’. A

ideia de completude vai no caminho contrário da realidade indicada: enquanto

o homem tenta sobreviver, em uma vida que é dividida, o poeta tem sua vida

completa. O poetar leva à completude; cantar é o agir do poeta – depois disso,

nada mais é necessário, pois a vida se completa. E isso não ocorre em uma

realidade diversa, fora do tempo e do espaço conhecidos – ele canta porque o

instante existe. Esta pequena parte do tempo é suficiente para o cantar,

sustenta já a ação do poeta sem exigir algo mais, completando-o.

O poeta percebe o tempo e, nele, ouve e deixa ser o mundo; no

instante, ele se demora e permite-se uma experiência, com os entes, que não é

técnica e racional do modo científico. Mas o estar do poeta não se dá em um

único instante: ‘Atravesso noites e dias’. O verso dá uma indicação de quem é

o homem: aquele que está a caminho; o homem é o ente, o sendo, na

253 C. MEIRELES, Cecília de bolso..., p.29.

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travessia. E o que este homem sabe de si é apenas que sua vida é caminho,

caminhar sem parada e sem paragem. Parar significaria não mais ser.

Enquanto o homem existe – sabe de si –, atravessa o tempo que, no

poema, é indicado por ‘noites e dias’. Mas se é travessia, deve ser para chegar;

porém, chegar já seria parar e, assim, não mais ser. Algo importante que se

nos coloca é o fato de que o ser humano percorre um caminho, que é seu

próprio viver, esperando nunca chegar. Mas ele sabe que vai chegar – a vida

chega ao fim. O ser humano é algo não terminado, não plenificado (talvez, não

terminável e não plenificável), pois, enquanto ele existe, há sempre um “ainda”.

Mas, se a serenidade deve dar condições para que o homem integral apareça,

qual o sentido de se dizer que ele aparece apenas quando chega ao fim e

deixa de ser?

Heidegger afirma254 que a morte é uma possibilidade para o homem

– é a possibilidade mais própria do Da-sein. Trazer diante de si a morte como

possível a cada momento é o que abre o homem para seu poder ser mais

próprio; como um jogo, o que se abre ao homem é a possibilidade de ser ou

não si mesmo. A serenidade é postura diante de si, diante do tempo, diante dos

apelos do ser, mesmo que tudo ocorra de um modo que não seja fruto de sua

decisão.

O homem em sua integralidade é aquele que tem condições de se

enxergar como Da-sein e se projetar, fazendo-se, antes que o fim chegue. É a

consciência do fim – morte – que pode ser vista na travessia. ‘Atravesso noites

e dias’: atravesso no tempo. E como se dá tal consciência é algo sem

determinação, mas que aparece. Não sabemos aonde pode chegar o homem,

a menos que seja à morte. E isso a razão nem sempre consegue expressar do

melhor modo; alcança-se pela palavra poética, que quebra as cadeias lógicas,

podendo apresentar “algo além” do racional.

254 Cf. M. HEIDEGGER, Ser e tempo, pp.723; 725.

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‘E um dia sei que estarei mudo: /– mais nada.’ O poema termina

dizendo da consciência que o poeta tem do fim de seu tempo; o poeta fala,255

mas um dia estará mudo. A mudez do poeta pode ser entendida como a morte

em si para o homem. Estará mudo e mais nada. Este ‘mais nada’ é exatamente

a consciência de que é preciso se fazer e cantar o tempo (instante) que existe;

sabe-se disso e não se espera algo mais. Esta consciência do fim pode ser

encontrada de diversos modos no dizer poético, nunca deixando de aparecer.

No poema Aprendizado, Ferreira Gullar diz:

Agora porém depois de tudo sei que apenas morro

sem ênfase256

Depois de tudo vivido, de tudo aprendido, de tudo sabido, o que

resta é o saber do fim, que permite ao poeta assumir integralmente aquilo que

é: homem. E ainda mais: ‘sem ênfase’. Qual seria o significado da ênfase, além

da não aceitação da efemeridade da vida? A ênfase é desejada por quem não

quer passar, e aquele que tem tal desejo entende a ausência da ênfase com

ausência de significado da vida vivida. A serenidade é deixar a vida ser,

inclusive em seu acontecer derradeiro, entendendo que isso não se relaciona à

falta de sentido. Serenidade é postura de consciência. Este é o caminho, o fim

ao qual leva a travessia humana. Ser homem significa saber-se mortal. Mas

isto não é algo traduzível com facilidade para o dizer.

No poema intitulado NÃO-COISA, o poeta diz o que intenta em seu

ofício:

No entanto, o poeta

255 Sobre o falar do poeta:

Ainda não tínhamos pensado numa coisa, a saber, que a voz do dizer tem de estar afinada, que o poeta fala partindo de uma disposição interior, que define o território e impregna o espaço, sobre o qual e no qual o dizer poético instaura um ser. Chamamos a esta disposição a disposição fundamental da poesia. No entanto não entendemos por disposição fundamental um sentimentalismo precário que se limite a acompanhar o dizer; pelo contrário, a disposição fundamental abre o mundo que recebe, no dizer poético, a marca do Ser. (M. HEIDEGGER, Hinos de Hölderlin, p.81.)

256 F. GULLAR, Muitas vozes; poemas, p.45.

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desafia o impossível e tenta no poema dizer o indizível: subverte a sintaxe implode a fala, ousa incutir na linguagem densidade de coisa sem permitir, porém, que perca a transparência já que a coisa é fechada à humana consciência.257

É nesta liberdade da palavra poética, não sendo obrigada a

responder a toda construção lógico-racional, que o poeta tenta dizer o indizível.

Tenta e consegue fazer aquilo que o discurso racional não faz, a saber, trazer

para a percepção humana a problemática do fim. Para o homem, a morte, o

fim, é o plenamente indizível. É na experiência poética permitida pelo poema

que se torna possível aprender sem ter de dar conta do discurso que já vem

pronto em uma sintaxe definida.

‘Não sinto gozo nem tormento’, diz ainda o poema de Cecília

Meireles: é o modo como tal homem se coloca na vida. A serenidade diante do

mundo possibilita a consciência de que ele nunca se plenifica e deve sempre

se lançar para algo ainda não conhecido; é quando o homem se reconhece

como um ser livre a se fazer. ‘Não sinto gozo nem tormento’ não indica de uma

relação apática com a vida em seu acontecer, mas indica uma não perturbação

diante daquilo que se dá na travessia – sua decisão é apenas sobre o que cabe

unicamente a si.

Atravessando no tempo, é ‘no vento’ que o homem realiza sua

travessia: o vento é o que tira a calmaria, balançando e atrapalhando a

caminhada, seja no persistir em um caminho, seja no enxergar claramente o

chão que se pisa. No tempo (noites e dias), este homem tenta se manter firme

diante da força que, soprando, pode desviá-lo – ele deve continuar por sua

força a percorrer o caminho, conscientemente.

257 F. GULLAR, Muitas vozes; poemas, p.54.

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Na filosofia de Heidegger, o vento pode ser visto como a avalanche

de necessidades de dominar, deter, armazenar, produzir etc., que povoam o

mundo no qual o homem está inserido; ele se perde nas obrigações que lhe

são impostas e a vida já não se mostra como algo a se fazer, não é projeto.

Interesses diversos dividem o homem em partes e este ser, que se pretende

‘humano’, passa apenas a responder às exigências que um mundo pronto lhe

faz. E o poético se perde no perder-se do próprio homem.

A serenidade é a conquista de um posicionamento dentro do mundo

que não desconsidera os “ventos”, mas permite ao homem reconhecer-se

como o ente que responde aos apelos do ser e não puramente aos chamados

da técnica. A serenidade permite que não se esvazie o espírito humano. Diante

do vazio espiritual que assola, está a coragem do poeta em se postar diante do

abismo, à procura dos deuses fugidos. É a experiência de um pensar na poesia

que constrói a serenidade.

Seria possível tal serenidade? Entendemos que sim; não como uma

fantasia mágica, de “libertação” do homem diante do mundo, mas como re-

significação, a partir da qual o estar no mundo, junto aos entes, modifica-se.

Re-significando, o homem passa a estar em outro mundo, mas é um “outro” no

qual já sempre esteve. E a serenidade seria possível a quem? A todo homem.

Poesia e pensamento são “caminhos que levam a...” e não são restritos ao

poeta e ao pensador, embora não seja simples ao homem comum se libertar

das necessidades (razão calculadora) em direção ao aberto (pensamento do

sentido). Um simples desejo de mudança no olhar não traz o novo pensar – é

atividade de tempo, parada e escuta que exige esforço. A serenidade é

possível ao homem; significa dizer que ela é possível como postura no aspecto

vivencial comum que, por consequência, reflete nos aspectos intelectual,

ambiental, político e econômico, entre outros.

Se forçarmos a reflexão sobre a serenidade, podemos pensar ainda

uma aproximação semântica entre o homem sereno e o sereno da noite.258 Em

que medida poderíamos falar dos dois sentidos de “sereno”? O sereno cai à

258 É importante observar que isto apenas é possível no português, pois os termos têm uma mesma raiz; no alemão, temos die Gelassenheit (serenidade) e das Nachttau (sereno).

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noite e repousa sobre as folhas; não age, não ataca e não altera o curso do

que deve ser; sem barulho e sem alarde, recai no silêncio e aguarda o dia que

vem. O homem sereno também aguarda o dia das coisas que vêm para vigorar

no ser – ele espera no silêncio que é escuta ativa e no agir que é deixar-ser. A

serenidade é o retorno do homem como participante de uma mesma realidade

que os outros entes.

‘Sentir-se em casa’ significa entender o ‘aqui’ como seu lugar; é

fazer o homem verdadeiramente encarnar-se nas possibilidades que tem de

ser, como aquele que atravessa noites e dias no vento, sendo si próprio. A

realização humana nunca será “plena” enquanto o indivíduo se sentir

estrangeiro nesta terra; mesmo depois, o conceito de “plenitude” é algo

questionável. Mas o homem não sabe desta terra nem sabe de si – por isso é

que não se realiza. Atividade poética é aquela que encarna o homem naquilo

que ele mesmo é. Significa atuar transcendendo aos ‘ventos’ que se dão na

caminhada. Serenidade é resgate, regresso, retorno – re-inserção do homem

no todo do sentido.

Diferentemente daquilo que se possa pensar como ‘um novo lugar

para um novo homem’, o homem deve ser recolocado no lugar onde já está. O

existir como poético é o lugar comum do homem – é verso já conhecido, mas

que foi perdido, desgastou-se. Afirma Heidegger:

Para os mortais, falar é evocar pelo nome, é chamar, a partir da simplicidade da di-ferença, coisa e mundo para vir. Na fala dos mortais, o dito do poema é puro chamado. Poesia nunca é propriamente apenas um modo (melos) mais elevado da linguagem cotidiana. Ao contrário. É a fala cotidiana que consiste num poema esquecido e desgastado, que quase não

mais ressoa.259

259 M. HEIDEGGER, A linguagem, In.: EC, p.24.

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A vida cotidiana é, aqui, apresentada como fala desgastada

enquanto poema, pois o próprio estar no mundo se desgastou enquanto tal.260

E, neste poema, o homem está como verso que se perde por perder a essência

poética do habitar. “...poeticamente o homem habita...” – se fosse dito ‘os

poetas habitam poeticamente’, a ideia seria transparente, mas isso não ocorre,

pois quer-se mostrar que o homem (todo homem) habita poeticamente. O

poético é caminho para a serenidade. Habitar genuinamente não pode ser

entendido como o simples estar sobre esta terra. Se assim fosse, o estar do

homem em nada diferiria do estar de outros seres; mas difere.261 A mesma

ideia é apresentada, em palavra poética, por Fernando Pessoa:

Se sou mais que uma pedra ou uma planta? Não sei. Sou diferente. Não sei o que é mais ou menos. Ter consciência é mais que ter cor? Pode ser e pode não ser. Sei que é diferente apenas. Ninguém pode provar que é mais que só diferente.262

O habitar poético não é algo ligado, simplesmente, a fazer poesias

ou a elas se dedicar. O texto poético, em sua liberdade das cadeias lógico-

racionais, cria um mundo a partir daquilo que é o desejo do poeta; o texto

poético fantasia. Porém, o habitar poeticamente não implica viver na fantasia

criada.263 O habitar, que, acima, tratamos como o ‘sentir-se em casa’, não fala

de uma morada física; “é a poesia que permite ao habitar ser um habitar.

Poesia é deixar-habitar, em sentido próprio”.264

260 A relação entre a fala (poema ou prosa) é diretamente relacionada ao existir e ao pensar:

O ritmo não só é o elemento mais antigo e permanente da linguagem, como ainda não é difícil que seja anterior à própria fala. Em certo sentido, pode-se dizer que a linguagem nasce do ritmo ou, pelo menos, que todo ritmo implica ou prefigura uma linguagem. Assim, todas as expressões verbais são ritmo, sem exclusão das formas mais abstratas ou didáticas da prosa. Como distinguir, então, prosa e poema? Deste modo: o ritmo se dá espontaneamente em toda forma verbal, mas só no poema se manifesta plenamente. Sem ritmo, não há poema; só com o mesmo, não há prosa. O ritmo é condição do poema, enquanto que é inessencial para a prosa. Pela violência da razão, as palavras se desprendem do ritmo; essa violência racional sustenta a prosa, impedindo-a de cair na corrente da fala onde não regem as leis do discurso e sim as de atração e repulsão. Mas este desenraizamento nunca é total, porque então a linguagem se extinguiria. E com ela, o próprio pensamento. (O. PAZ, Signos em rotação, pp.11-12)

261 Cf. M. HEIDEGGER, Ser e tempo, p.59. 262 F. PESSOA, Ficções do interlúdio, p.243. 263 Cf. M. HEIDEGGER, “... poeticamente o homem habita...”, In.: EC, p.166. 264 Ibid., p.167.

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Pensando de tal modo, o habitar costumeiro (não poético), não cai

de todo em desmerecimento. Não se quer lançar para longe tudo o que o ser

humano já realizou ‘sobre esta terra’, mas o poeta quer mostrar que, mesmo

com tudo o que existe e é fruto dos objetivos e esforço humanos, ainda assim,

falta algo para que este humano possa habitar. O homem tem seus méritos

naquilo que construiu do mundo, mas este construtor acabou por se perder em

meio ao que fez surgir; ele construiu, mas não habita, tentando fazer o habitar

se dar apenas nos limites do que foi construído.

O que existe como fundamento de nossa tese é, então, uma questão

que não é nova: de que necessita o homem para bem viver? Ele precisa se

sentir em casa, pisando o solo de seu mundo e estando junto aos outros entes,

deixando-os serem. No mesmo sentido, deixar os entes serem implica deixar

que o ser se dê e que apareça no vigorar dos entes, o que exige capacidade de

compreensão do sentido da physis como o brotar de um mundo que aparece

apenas no mundo do homem.

O poético pode ser entendido como “a revelação primordial do

significado”.265 O mundo da poesia é singular: é o mundo entre homens e

deuses; é o mundo do lançar-se do homem; é o mundo do projetar-se, criando

raízes cada vez mais profundas nesta terra. O mundo do poeta não é a poesia,

mas aquilo que a poesia mostra e sustenta.

O existir humano é o existir do mortal. O homem apenas se

reconhece como tal a partir do momento em que se enxerga como habitante

‘desta’ terra, medindo seu existir de mortal diante dos deuses. É no espaço

entre divinos e mortais que se dá o habitar, nesta terra que está entre; e este

mesmo homem pode até deturpar tal modo de medir, porém nunca pode se

furtar a ele, pois é este ‘entre’ que sustenta o habitar – é medida ‘estranha,

perturbadora e desconfortável’ para o viver cotidiano. O poético abre as portas

e a serenidade é o modo de estar.

Como o sereno da noite, o homem repousa no espaço entre. O outro

do humano é o divino, o celestial, e o medir é justamente o colocar-se diante da

265 B. FOLTZ, Habitar a terra, p.190.

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realidade não como quem dita, mas como quem recebe o que é ditado; esta é

‘a’ experiência singular e originária, e

quem leva adiante essa experimentação original do mundo e produz uma linguagem originária, é o poeta. As formas de expressão são múltiplas, os estilos mudam no tempo histórico e no espaço cultural, as teorias de interpretação seguem as modas, mas o fenômeno do poetar-pensante é um fenômeno que acontece no processo de criação artística. Onde há arte no sentido de um fazer criativo, acontece a linguagem poética, enquanto linguagem hermenêutica. Linguagem que ao mesmo tempo capta, presentifica numa imagem, numa forma, numa palavra, a mensagem.266

O pensar meditativo e a poesia, em um diálogo de quem está

próximo, mas no cume de montanhas distintas, oferecem ao homem esta

experiência de ser si mesmo, recebendo a realidade em seu mundo de mortal.

O poetar-pensante situa o homem no ‘entre’ que é o habitar mais genuíno. O

habitar deixa a terra ser terra, deixa os entes serem entes, e faz o homem

deixar a si próprio ser homem, mortal, na travessia – é a “salvação da terra

como terra”.267 A linguagem do ser é única e aos pensadores e poetas cabe

cuidar dela; para tanto, vislumbra-se claramente uma revisão de todo o fazer

filosófico em seu falar para poder se mostrar como verdadeira.

O diálogo propriamente dito com a poesia de um poeta só pode ser um diálogo poético: a conversa poética entre poetas. Todavia, um diálogo do pensamento com a poesia é também possível e de tempos em tempos até necessário porque ambos encontram-se numa relação privilegiada, não obstante distinta, com a linguagem.268

Aquilo que o poeta faz é o que o pensar nos apresenta. As coisas

fogem e o tempo do homem deve ser gasto na tentativa de apreender o que se

dá. O ser se dá. O ser fala como linguagem de existir e chega ao homem

desde sempre. Em Serenidade, Heidegger fala de “enraizamento” (die

Bodenständgkeit) como o que deve situar o homem em sua terra – em tal

condição é que pode viger a obra humana.

O poeta é ‘irmão das coisas fugidias’; o pensador é ‘irmão das

coisas fugidias’. O homem deve aprender-se ‘irmão das coisas fugidias’. As

266 L. HÜHNE, O poetar pensante, p.80. 267 Cf. B. FOLTZ, Habitar a terra, p.198. 268 M. HEIDEGGER, A linguagem na poesia, In: CL, p. 28.

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coisas fogem no tempo da travessia humana sobre esta terra e sob o olhar

celestial. O poeta se torna irmão do que foge do ente – todo homem pode o

mesmo. Irmanar-se do que foge traz a ideia de que se participa de uma mesma

realidade. O poeta não é irmão dos deuses, mas das coisas que fogem e

reluzem por um instante no existir; o aceno do ser é o que há de mais fugidio.

No existir poético o homem pode se entender como habitante, em um habitar

neste ‘entre’ céu e terra no qual o ser das coisas é fugidio. Esta é a postura de

serenidade.

Enquanto perdurar esse advento da benevolência [a amizade junto ao coração para com o espaço aberto], o homem tem a felicidade de medir-se com o divino. Se esse medir-se acontece com propriedade, o homem dita poeticamente a partir da essência do poético. Se o poético acontece com propriedade, o homem habita esta terra humanamente (...).269

A linguagem cotidiana se expressa pela palavra, mas de tal modo

que se mostra como uma fala que passa brevemente, não perdurando no

tempo. O dito na ordinariedade da vida se mostra, mas se esquece; o dito

poético, por sua vez, é uma fala que não passa, mas permanece no tempo.

Enquanto o ser humano pode se afogar no cotidiano de sua vida, perdendo-se,

prendendo-se no que não dura, desesperando-se diante da angústia da

finitude, a poesia é, acima de tudo, resistência – não simplesmente lutando

dentro do mundo já pronto, mas estabelecendo outro mundo (não na criação de

entes imaginários, mas na liberdade que permite ao mundo mostrar-se em si

mesmo). Daí a singularidade do habitar poético, que é a possibilidade de entrar

no tom da realidade, permitindo o habitar de modo “genuíno”, fazendo o

homem deixar de ser estrangeiro (da terra e de si próprio), pisando esta terra

como casa sua.

Encerrando esta tese, entendemos que a serenidade é a postura

que abre o ser humano para algo diverso do que as experiências de sua vida

habitual permitem. Por sua vez, devemos entender “realização” de modo

amplo, não restringindo a “social”, “política” ou “psicológica”. Assim, para o

homem, a realização deve ser a situação na qual, como Da-sein, na

propriedade de si, ele possa se enxergar como um projetar-se no mundo.

269 M. HEIDEGGER, “... poeticamente o homem habita...”, In.: EC, p.180.

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Serenidade é ter diante de si a manifestação do ser nos entes e, mesmo na

possibilidade de prender e dominar, deixar o aberto para que a manifestação

ocorra.

Mas a serenidade tem a necessidade de um falar que a permita. O

falar poético tem condições de oferecer o novo experienciar do homem quando

do embate com a razão instituída. Esta situação é de constante tensão e é

quando os poetas são perigo para a sociedade. Mas são perigo justamente por

serem aqueles que conseguem enfrentar os perigos que mais amedrontam o

homem. E são perigo, de modo especial, para os sistemas instituídos de

exploração humana e do mundo em geral. As duas ideias merecem nossa

reflexão.

O perigo que é aquele que enfrenta o perigo. O perigo maior é o de

o homem se ver lançado no vazio de sentido, no qual não há elemento ao qual

ele possa se agarrar. Significa a situação de ausência toda de segurança. O

homem comum busca algo que lhe dê segurança – muitas vezes, a superficial

crença religiosa ou concepção política. Diferentemente do que se possa

pensar, estes “refúgios” acabam por mascarar um vazio aproveitado por

oportunistas que convencem. E o convencimento se dá em uma construção

imagética de segurança plena e salvação total do perigo. Poeta e pensador não

aceitam algo deste tipo e enfrentam o vazio, levando a experiência até a borda

do abismo do ser. Mas haver quem enfrenta é denunciar quem se esconde e

abalar quem se aproveita. Esta ideia implica a que segue.

O perigo que é a resistência e a apresentação do novo. Deixando as

coisas serem, sem mascaramento, abre-se caminho. Isto faz com que

caminhos pré-estabelecidos e determinados como “corretos” percam validade.

Enquanto as situações/necessidades da vida empurram o homem comum para

o fechamento de seu pensar em uma aceitação cega (disfarçada de

pensamento e decisão), a nova via se mostra como resistência à pressão; ao

invés de se abrigar, toma a palavra e enfrenta. O poeta é quem sempre

apresenta o novo, e isso causa medo. No poetar, o novo é sempre, pois ele

aguarda e não dirige o pensamento; ele ouve, não se perdendo no falatório; ele

escuta os apelos do ser.

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Desenraizado é o homem que segue sem ouvir; toda sua vivência

cai em um sentido que é o mesmo para qualquer situação ou ente – apenas é

preciso obedecer àquilo que já está pronto e determinado para ser. O homem

se torna apático, quase sem vida; pois, aquilo que podemos chamar de

“impulso vital” teve de ser dividido com sua criação técnica. O homem passa a

fazer parte da grande engrenagem tecnológica – esta, que ganha impulso de

vida. O poético enfrenta o espírito da época270 e sua fala é luz para que o

homem enxergue algo diverso, que é a abertura para o mundo, na

possibilidade de fincar raízes mais profundas.

No poema que apresentaremos a seguir, para finalizar nossa

reflexão, F. Pessoa indica que a melhor fala para a experiência com o mundo

não vem de Aristóteles, mas de Epicuro. O pouco da coisa, como simplicidade,

é o necessário para que o homem habite esta terra; quanto menor a

necessidade (imposta pela racionalidade técnica), maior a liberdade. A

essência da verdade está na liberdade.

O poeta traz a exigência de um modo de vida que se pauta pelo

sóbrio raciocinar, que depende apenas do homem, e não do mundo instituído –

este homem pode chegar a uma felicidade que não difere da felicidade dos

deuses. O sol do pensamento não é o sol do tempo. Assim, o que ilumina e

aquece o estar do homem, em uma essência pensante, é o mesmo brilho que

atravessa a história e toca todo pensar. Desterrado e desenraizado, só por

pensar nos deuses (idos), o homem se recoloca no mundo, diante das coisas,

diante da vida. Do helenismo, resgata-se o campo, ao invés da pólis – é uma

nova sensibilidade a partir da qual o mundo é recebido. A serenidade é postura

assumida, mas que retroage, sendo sustentáculo para a manutenção do

homem em relação com os entes e com o ser. A serenidade é esforço perene

que aparece na história, desde a Antiguidade e se repete, aqui, em Heidegger;

ela se aproxima da ataraxia epicurista, como situação de imperturbabilidade da

alma. O pensador e o poeta, no exercício de aprenderem a ver e a pensar a

realidade, constroem a serenidade e mostram que ela não é privilégio de

homens especiais, mas que pode ser construída por quem põe seu esforço no

270 “... a perda do enraizamento provém do espírito da época, no qual todos nós nascemos.” (M. HEIDEGGER, Serenidade, p.17)

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aguardar, ouvindo os apelos do ser, sereno e deixando a vida acontecer.

Vamos ao poema:

A palidez do dia é levemente dourada. O sol de inverno faz luzir como orvalho as curvas

Dos troncos de ramos Secos. O frio leve treme.

Desterrado da pátria antiqüíssima da minha Crença, consolado só por pensar nos deuses,

Aqueço-me trêmulo A outro sol do que este.

O sol que havia sobre o Parténon e a Acrópole O que alumiava os passos lentos e graves

De Aristóteles falando. Mas Epicuro melhor

Me fala, com a sua cariciosa voz terrestre Tendo para os deuses uma atitude também de deus,

Sereno e vendo a vida À distância a que está.271

271 F. PESSOA, Poesia completa de Ricardo Reis, pp.34-35.

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