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Semiótica, Linguística e Tecnologias de Linguagem1]Semiotica, Linguistica e... · Semiótica, Linguística e Tecnologias de Linguagem. Homenagem a Umberto Eco. || Darcilia M. P

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  • 2 Semitica, Lingustica e Tecnologias de Linguagem

    Copyrigth @ 2013 Darcilia Simes

    Publicaes Dialogarts

    http://www.dialogarts.uerj.br

    Organizadora e Editora do volume:

    Darcilia Simes http://www.darciliasimoes.pro.br Co-coordenador do projeto:

    Flavio Garca http://www.flaviogarcia.pro.br Coordenador de divulgao:

    Cludio Cezar Henriques [email protected] Diagramao: Equipe Labsem [email protected] Capa:

    Diego Marinho [email protected] Marcos da R. Vieira [email protected]

    Reviso e preparao de textos:

    rica de Freitas Goes [email protected] Jessica Juliana Silva Bezerra [email protected]

    Logo Dialogarts: Gisela Abad [email protected]

    Centro de Educao e Humanidades

    UERJ DEPEXT SR3 Publicaes Dialogarts

    http://www.dialogarts.uerj.br/http://www.darciliasimoes.pro.br/http://www.flaviogarcia.pro.br/mailto:[email protected]:[email protected]:[email protected]:[email protected]:[email protected]:[email protected]

  • 3 Darcilia Simes (Org.)

    FICHA CATALOGRFICA

    D410 Semitica, Lingustica e Tecnologias de Linguagem. Homenagem a Umberto Eco. || Darcilia M. P. Simes (Org.). Rio de Janeiro: Dialogarts, 2013.

    Publicaes Dialogarts

    Bibliografia.

    ISBN 978-85-8199-009-5

    1. Lingustica 2.Semitica. 4. Linguagens e Cdigos. I. Simes, Darcilia; (Org.) - I - Universidade do Estado do Rio de Janeiro. II - Departamento de Extenso. III. Ttulo.

    CDD. 400.407

    Correspondncias para: UERJ/IL - a/c Darcilia Simes R. So Francisco Xavier, 524 sala 11.139-F Maracan - Rio de Janeiro: CEP 20 569-900 Contatos: [email protected] [email protected] [email protected] URL: http://www.dialogarts.uerj.br

    Nota do editor: O contedo terico, o exemplrio e a expresso lingustica so de inteira responsabilidade dos signatrios do textos.

    http://www.bn.br/bnPortal/site/pages/servicosProfissionais/agenciaISBN/isbnBusca/FbnBuscaISBNRetorno.asp?pBusca=LNGUA%20PORTUGUESA:%20ENSINO,%20PESQUISA,%20PS-GRADUAO%20E%20FORMAO%20DOCENTE&pISBN=1333964mailto:[email protected]:[email protected]

  • 4 Semitica, Lingustica e Tecnologias de Linguagem

    SUMRIO

    PREFCIO ............................................................................... 7

    PARTE 1 - SEMITICA: REFLEXES TERICAS....15

    Construindo o amigo. Para uma semitica da cooperao intercultural ......................................................................... 16

    Massimo Leone 16

    Semitica Cognitiva: Fundamentos da Cincia dos Signos para o Estudo da Linguagem e da Cognio ....................... 54

    Claudio Manoel de Carvalho Correia

    Leitura e Escrita na Era dos Tabletes. Da lousa escolar biblioteca universal ............................................................. 79

    Antonio Fidalgo

    PARTE 2 - HOMENAGEM A UMBERTO ECO...........................105

    Homenagem a Umberto Eco ............................................. 106

    Carmem L. P. Praxedes

    O ser e a Enciclopdia. Sobre a obra semitica de Umberto Eco ..................................................................................... 120

    Franciscu Sedda

    Autobiografia em Eco: Memria, Olvido e Invento .......... 157

    Cristine Conforti

    LECTOR IN FABULA: Reflexes sobre Interpretao ............... 195

    Darcilia M. P. Simes

  • 5 Darcilia Simes (Org.)

    PARTE 3 - ENSINO DE PORTUGUS........................................218

    Sobre a Formao de Professores de PLE no Contexto da Nova Gerao Lusofonia ................................................ 219

    Alexandre do Amaral Ribeiro

    A oferta formativa em Portugus Lngua No Materna e a Lngua Portuguesa em Angola, Moambique e Timor-Leste ........................................................................................... 240

    Maria Joo Maralo, Paulino Adriano & Diocleciano Nhatuve

    Aquisio e Aprendizagem de L2: Ensino e Investigao . 278

    Paulo Osrio

    Intertextualidade e Interdiscursividade em Charges, Tirinhas e Quadrinhos Miditicos ................................................... 297

    Andr Crim Valente

    Aspectos Semiticos na Anlise Estilstica de Othon Moacyr Garcia ................................................................................. 317

    Andr Nemi Conforte

    POLIFONIA & INTERTEXTUALIDADE: VOZES QUE SE CRUZAMCAETANO E GUIMARES: AS VOZES QUE SE CRUZAM NA TERCEIRA MARGEM DO RIO; CAETANO E ELOMAR: AS VOZES QUE SE CRUZAM NA BELEZA PURA DA LNGUA. .............................. 334

    Claudio Artur O. Rei

    Linguagens, Cdigos e Tecnologias em Perspectiva: o Novo Paradigma .......................................................................... 363

    Lucia Deborah Araujo

  • 6 Semitica, Lingustica e Tecnologias de Linguagem

    Polissemia em Textos Miditicos ...................................... 386

    Marcelo Beauclair

    Estudo do Estilo como Desvio de Uma Norma .................. 412

    Maria Aparecida Barbosa

    Aula de Portugus ............................................................. 423

    Vania L. R. Dutra & Magda B. Schlee

    PARTE 4 - CDIGOS, LINGUAGENS E TECNOLOGIAS.............441

    Design Instrucional para Material Didtico na Web: Relato de uma Experincia ........................................................... 442

    Maria Cristina Pfeiffer Fernandes, Sandra Menezes de Vasconcellos & Gabriel Cruz

    Lngua & linguagem em rede ............................................ 463

    Maria Suzett Biembengut Santade & Luiza Alves de Moraes

    Educao a Distncia: o Processo de Interao E Autoria em EAD na Perspectiva da Linguagem .................................... 477

    Maria Teresa Tedesco Vilardo Abreu

    Libras e Lingustica: do Dito pelo No Dito. ...................... 496

    Denilson P. de. Matos

    Perfil dos autores .............................................................. 509

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    PREFCIO

    O livro a que o leitor acaba de aceder em formato impresso ou digital, num computador, num tablete ou noutro dispositivo mvel leva como ttulo Semitica, lingustica e tecnologias de linguagem. Homenagem a Umberto Eco. Fazendo jus a este ttulo, o livro encontra-se dividido em quatro partes: Parte 1 - Semitica: reflexes tericas; Parte 2 - Homenagem a Umberto Eco; Parte 3 - Ensino de portugus; Parte 4 - Cdigos, linguagens e tecnologias.

    Se no considerarmos, para j, a homenagem a Umberto Eco falaremos dela mais frente o livro concentra-se em trs conceitos fundamentais: semiose, linguagem e tecnologia. Estes so no s trs conceitos interrelacionados, mas tambm trs conceitos centrais naquilo a que hoje se chama as cincias sociais e humanas. Da decorre, desde logo, a relevncia deste livro, que congrega pesquisadores oriundos do Brasil, Itlia e Portugal.

    1. A semitica definida, habitualmente, como a cincia dos signos (do grego semeion, signo). E, de acordo com a conhecida distino de Peirce, no que se refere sua relao com o objeto, os signos podem ser classificados como ndices, cones e smbolos.

    Se podemos admitir que todos os animais fazem uso de ndices e cones pelo que, como argumenta um autor como Thomas Sebeok, h lugar para falarmos numa zoo-semitica o homem tem sido definido como um animal simblico (Cassirer). provvel que, como pretendem autores como Edgar Morin, a sepultura marque essa passagem dos ndices e cones aos smbolos a que se costuma chamar hominizao.

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    Obviamente que, em tal passagem diria: como em todas as passagens -, o que surge como novo no pe de parte o fundo a partir do qual emerge, antes o mantm como fundo. O mesmo dizer que, e tal como acentuado por Peirce e Eco, a vida e o mundo do homem so um processo de semiose ilimitada, em que os signos s podem ter como interpretantes outros signos, e assim sucessivamente.

    A primeira parte deste livro, intitulada Semitica: reflexes tericas, dedica-se, precisamente, a explorar este processo de semiose ilimitada em domnios como os da cooperao cultural, dos fundamentos da linguagem e da cognio ou das novas condies de escrita e de leitura na era da internet, como o caso, respetivamente, dos textos Construindo o amigo: para uma semitica da cooperao intercultural (Massimo Leone), Semitica cognitiva: fundamentos da cincia dos signos para o estudo da linguagem e cognio (Cludio Manoel Correia) e Leitura e escrita na era dos tablets. Da lousa escolar biblioteca universal (Antnio Fidalgo).

    2. Mas o homem no apenas um animal semitico, ou mesmo simblico ele , tambm, um animal dotado de palavra; ou, como diz Aristteles, um zoon logon echon. A questo que, no conjunto dos smbolos e, a fortiori, dos signos a palavra ocupa um lugar paradigmtico.

    No admira, assim, que a reflexo filosfica sobre a linguagem se tenha iniciado primeiro que a reflexo sobre os signos ou mesmo os smbolos costuma-se indicar o Crtilo, de Plato, como a primeira dessas reflexes sistemticas. Foi tambm por reconhecer essa centralidade da linguagem no

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    conjunto dos signos (e dos smbolos) que Barthes colocou a hiptese de se inverter a classificao de Saussure e considerar a semiologia como uma parte da lingustica.

    Acerca das razes de tal centralidade, conhecida a tese de Wittgenstein de que os limites da nossa linguagem so os limites do nosso mundo; ou a posio de Heidegger de que a linguagem a clareira do ser. Para alm das diferenas, o que tais afirmaes significam que a linguagem fornece o horizonte a partir do qual vemos e interpretamos o mundo, incluindo o mundo dos signos. s a partir das palavras que sabemos que onde h fumo h fogo (ndice), ou que uma fotografia de Picasso um cone de um pintor chamado Picasso.

    No existem, no entanto, palavras em geral. Como observou Humboldt, essa capacidade universal que a linguagem s existe nas suas manifestaes particulares, concretas que so as lnguas dos povos. E cada lngua , como tambm acentua o mesmo autor, uma certa viso do mundo. Assim, vemos o mundo no apenas com os nossos olhos, mas (tambm) com os quadros concetuais e categoriais da lngua que equipa os nossos olhos. por isso que aprender uma segunda lngua, uma lngua estrangeira, algo de to difcil impossvel? - como aprender a ser membro de um outro povo que no o nosso, adotar as suas maneiras de agir, pensar e sentir. Mesmo quando essa lngua bem aprendida, ela -o sempre a partir do fundo da primeira, de que nunca nos podemos libertar.

    desta problemtica, ainda que no s, que se trata na parte trs do livro, que leva o ttulo de Ensino de Portugus. Na realidade, ela pode dividir-se em duas subpartes, ainda que interrelacionadas. A primeira refere-se, no essencial, s vrias e complexas questes colocadas pelo ensino e aprendizagem

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    de uma lngua especfica, o Portugus, por falantes ditos lusfonos - que cresceram no contexto de uma outra lngua materna. Neste contexto se inserem os textos Gerao lusofonia e a formao de professores de PLE (Alexandre do Amaral Ribeiro), A oferta formativa em Portugus lngua no materna e a lngua portuguesa em Angola, Moambique e Timor-Leste (Maria Joo Maralo), Aquisio e aprendizagem de L2: ensino e investigao (Paulo Osrio) e Aula de Portugus (Vania Dutra e Magda Bahia).

    A segunda subparte refere-se quilo a que poderamos chamar os vrios usos da textualidade, em textos mediticos ou no, e que envolvem questes como a interdiscursividade, a intertextualidade, a polifonia e o estilo. Nela esto includos os textos sobre Intertextualidade e interdiscursividade em charges, tirinhas e quadrinhos miditicos (Andr Crim Valente), Aspectos semiticos na anlise estilstica de Othon Moacyr Garcia (Andr Nemi Conforte), Polifonia e intertextualidade: vozes que se cruzam (Cludio Artur de O. Rei), Linguagens, cdigos e tecnologias em perspectiva: o novo paradigma (Lcia Deborah Arajo), Polissemia em textos miditicos (Marcelo Beauclair) e Estudo do estilo como desvio de uma norma (Maria Aparecida Barbosa).

    3. A relao entre tecnologia e linguagem constata-se, desde logo, a nvel da etimologia que tambm aqui deve ser tida em conta. A grande novidade da tecnologia no reside, como s vezes se pensa, em ser ou em ser meramente - um conjunto de mquinas, por muito avanadas que elas sejam. Essa novidade reside, como mostra a prpria etimologia, em ser uma techn cujo funcionamento incorpora o logos, a razo

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    ou discurso cientfico-racional. A tecnologia , para utilizarmos uma expresso de Adriano Duarte Rodrigues, um conjunto de dispositivos logotcnicos.

    Esse carter logotcnico das tecnologias revela-se, de forma mais clara, em mquinas como os computadores, os tablets ou outros dispositivos anlogos, em que, seja ao nvel dos inputs, seja ao nvel dos outputs, temos signos lingusticos, seja mesmo ao nvel do que se passa entre os dois momentos - aquilo a que Flusser chama a caixa negra - temos signos lingusticos, mesmo se neste ltimo caso eles decorrem daquilo a que Heidegger chama a lngua tcnica.

    Esta ligao entre os dispositivos logotcnicos e a linguagem foi evidenciada, h muito, pelo chamado teste de Turing e a sua conceo de que uma mquina seria inteligente se usasse a linguagem de uma forma tal que seria impossvel distingui-la de um ser humano. Assim, o mnimo que podemos dizer que o dilogo entre os homens e as tecnologias est longe de ser uma questo recente. No entanto, j uma questo recente, e cada vez mais atual, a utilizao dessas tecnologias os computadores, a web, etc. - no ensino e na aprendizagem, presencial e/ou distncia.

    Os textos da parte quatro, intitulada Cdigos, linguagens e tecnologias centram-se, precisamente, em temas relacionados com essa problemtica das tecnologias e dos seus usos no ensino, incluindo essa lngua tcnica que a Libras (Lngua Brasileira de Sinais). Temos, assim, os textos Design instrucional para material didtico na web: relato de uma experincia (Cristina Pfeiffer), Lngua e linguagem em rede: laboratrio e uso dos computadores nas aulas de Portugus (Maria Suzett Biembengut Santade), Educao a distncia: o processo de interao e autoria em EAD na

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    perspectiva da linguagem (Maria Teresa Tedesco) e Libras e lingustica: do dito pelo no dito (Denilson Pereira de Matos).

    4. E chegamos homenagem a Umberto Eco, que deixmos propositadamente para o fim mesmo se ela se encontra includa na segunda parte do livro. Entre os pensadores contemporneos, poucos haver, certamente, cuja obra esteja to comprometida, e comprometida simultaneamente, com as questes da semitica, da lingustica e das tecnologias da linguagem. Basta lembrar, dentre a sua imensa bibliografia, obras decisivas como Obra aberta (1962), Apocalticos e integrados (1964), Tratado geral de semitica (1975) ou Os limites da interpretao (1990). Ou o seu percurso por domnios tericos e/ou prticos to complexos como a esttica, a filosofia medieval, a semitica, a filosofia da linguagem, a cultura de massas, a literatura. Mas interessa-nos, aqui, referir um outro domnio das reflexes de Eco: o que incide sobre as chamadas novas tecnologias.

    Um dos riscos das logotcnicas, das mquinas da linguagem, um excesso de linguagem - ou de informao -, que coloca em risco a prpria noo de cultura: aquilo que, de tudo o que criado pelos seres humanos, merece continuar a existir. Assim, cultura no tudo; apenas aquilo que, desse tudo, merecedor de seleo. Sem essa seleo, a vida individual e coletiva torna-se impossvel. O excesso conduz incerteza e desorientao: se tudo vale, ento nada vale; e, se nada vale, no temos como nos orientar no mundo.

    Da que, numa conferncia em que relaciona de forma direta a tecnologia e linguagem, Eco proponha, de forma s aparentemente anacrnica, a passagem de Internet a

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    Gutenberg. A anacronia , como dissemos, s aparente. De facto, ela aponta para a necessidade de analisarmos criticamente, luz de uma cultura que se encontra h mais de dois milnios assente nessa tecnologia da informao que o livro, as elegias a uma cultura assente em mquinas que funcionam de forma automtica e por acumulao. Obviamente que tal implica a recusa das novas formas de livros, bibliotecas e escritas e leituras que vo surgindo; mas h que no esquecer que tais formas representam, simultaneamente, linhas de continuidade e de rutura com as formas tradicionais.

    Por todas estas razes, justifica-se plenamente que na parte dois deste livro se trate de uma Homenagem a Umberto Eco. Nela integram-se textos que tratam da obra de Eco de uma forma mais abrangente, como o caso de Homenagem a Umberto Eco (Carmem Praxedes), O ser e a Enciclopdia. Sobre a obra semitica de Umberto Eco (Franciscu Sedda), e textos que tratam de aspetos mais especficos, como Autobiografia em Eco memria, olvido e invento (Cristine Conforti) e Lector In Fabula: reflexes sobre interpretao (Darcilia Marindir Pinto Simes).

    A terminar, uma ltima palavra. Como dissemos atrs, este livro conta com a colaborao de pesquisadores oriundos do Brasil, de Portugal e de Itlia. Este facto, que em si mesmo no seria muito relevante, dada a era global em que vivemos, -o por duas razes principais. Em primeiro lugar, porque mostra como as questes da semitica, da lingustica e das tecnologias da linguagem e, por isso, a prpria obra de Eco - so, hoje, questes cientficas transversais no s aos diversos pases como aos diversos continentes. Em segundo lugar, porque confirma o aprofundamento da tendncia para se fazer e discutir cincia em lngua portuguesa, mesmo quando

  • 14 Semitica, Lingustica e Tecnologias de Linguagem

    tal no feito por brasileiros e portugueses. Que tal acontea no Brasil, s admira quem no conhece o amor pela lngua portuguesa do pas que ousou criar, na bablica e cosmopolita cidade de S. Paulo, o Museu da Lngua Portuguesa que , ele prprio, uma sntese material de semitica, lingustica e tecnologias da linguagem.

    Julho de 2013 Paulo Serra

    Doutor em Cincias da Comunicao, Professor no Departamento de

    Comunicao e Artes da Universidade da Beira Interior

    e Investigador no LabCom. [email protected]

  • 15 Darcilia Simes (Org.)

    PARTE 1 - SEMITICA: REFLEXES TERICAS

  • 16 Semitica, Lingustica e Tecnologias de Linguagem

    CONSTRUINDO O AMIGO. PARA UMA SEMITICA DA COOPERAO INTERCULTURAL12

    BUILDING FRIENDSHIP. FOR A SEMIOTICS OF INTERCULTURAL COOPERATION

    Massimo Leone

    [email protected] UNITO

    Em um dos seus ltimos ensaios publicados, Construir o inimigo3, Umberto Eco demonstra, com a sua habitual e incomparvel argcia, que o inimigo no existe ontologicamente, mas semioticamente. No se encontra, isto , naturalmente no espao e no tempo; necessita-se ao invs disso construi-lo, retalhando-o do conjunto dos humanos, atribuindo-lhe caractersticas perversas, dando-lhe um nome.

    1 A primeira verso desse texto foi apresentada em 2004 no seminrio de Lewis Rambo no San Francisco Theological Seminary; agradeo a Lewis Rambo e aos seus alunos pela oportunidade e pelas interessantes sugestes que me foram propostas. Uma segunda verso foi apresentada em 2006 por ocasio de uma jornada de estudos sobre Sainte Face, organizada por Isabelle Saint-Martin no lInstitut Europen en Sciences des Religions, de Paris. Agradeo a Isabelle Saint-Martin pelo convite e a Franois Boespflug, Philippe Kaenel, Jean-Michel Leniaud e tambm a Isabelle Saint-Martin pelos comentrios que fez. Enfim, agradeo a Gianfranco Marrone por ter me incentivado a apresentar a ltima verso desse texto por ocasio do XXXV congresso da Associao Internacional de Estudos Semiticos AISS; sou grato ao falecido Omar Calabrese e a Ugo Volli pelas suas sugestes e as crticas que quiseram me enviar em tal ocasio. Uma verso em ingls desse ensaio foi publicada sob o ttulo The sacred, (in)visibility, and communication: an inter-religious dialogue between Goethe and Hfez, 373-84. Islam and ChristianMuslim Relations, 21, 4 (Outubro). 2 Traduo do original em Italiano de Carmem Praxedes (Professora Associada UERJ [email protected]). 3 Milo: Bompiani 2012.

    mailto:[email protected]

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    Fazer-se um inimigo ento um trabalho semitico, cujas estratgias retricas so adotadas para a vantagem social, poltica, econmica de quem, a partir da existncia desse inimigo, conduz-se a um benefcio.

    A semitica pode no s desmascarar essas retricas, mostrando como arquitetam de propsito um inimigo para abater, mas pode tambm ajudar a desencadear um processo inverso, aquele que d lugar no inimizade, mas confiana, cooperao, at a amizade.

    No somente o inimigo que se constri, ento, mas tambm o amigo, e essa construo necessita, ela tambm, de estratgias retricas. Em uma poca em que antigas tticas, utilizadas para representar a religio dos outros como diablica tticas muito conhecidas por Eco atravs de seus estudos sobre as cruzadas medievais so repropostas Eco o sinaliza em seu ensaio na verso moderna na batalha geopoltica e sociocultural contempornea. O presente ensaio intenciona ao invs descrever e analisar, com os instrumentos da semitica, a construo de uma amizade a partir da diferena religiosa. Trata-se de uma amizade que desafia os sculos e a disparidade da lngua, crena, e sensibilidade, por que se edifica em torno de um sentimento esttico comum, por um amor compartilhado pela poesia e, mais geralmente, pelo modo em que os signos do mundo traduzem a relao com o sacro e o divino.

    a histria da amizade entre o poeta alemo Goethe e o profeta persa Hafez.

    * * *

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    Entre 1812 e 1813, Joseph von Hammer-Purgstall4 intrprete na corte imperial de Viena, entregara para a impresso a primeira traduo alem do Divan5, de Hafez6, uma coletnea de versos do poeta persiano do Sculo XIV. Logo aps a publicao dessa obra, Goethe por ela se encantou7, o que o levou a se interessar sistematicamente pela cultura do oriente mdio8 e a compor poesias sobre Hafez. O West-stlicher Divan, o Divan ocidental-oriental9, publicado pela primeira vez em 1819, o resultado desse

    4 Steiermark, Graz, 1774 Viena, 1856. Cfr Bietak, Wilhelm. 1948. Gottes ist der Orient, Gottes ist der Okzident. Eine Studie uber Joseph von Hammer-Purgstall. Viena: Europa Verl.; Reichl, Sepp. 1973. Hammer-Purgstall. Auf den romantischen Pfaden eines sterreichischen Orientforschers. Graz: Leykam; Mohamed Elgohary, Baher. 1979. Joseph Freiherr von Hammer-Purgstall (1774-1856). Ein Dichter und Vermittler orientalischer Literatur. Stuttgart: Akademischer Verlag Heinz; Mohamed Elgohary, Baher. 1988. Die Welt des Islam. Rezipiert und dargestellt durch Joseph Freiherr von Hammer-Purgstall. Francoforte do Meno: Lang. 5 Khwja ams ud-Dn Muhammad Hfez-e rz. Der Diwan. Trad. alem von Hammer-Purgstall, Joseph von. 1812-13. Stuttgart e Tubingen: In der J. G. Cottaschen Buchhandlung. 6 Shiraz, nascido provavelmente entre 1313 e 1337, morto provavelmente sessenta e nove anos depois. A bibliografia sobre Hafez muito vasta. Clssicas so as observaes de Alessandro Bausani Em: Bausani, Alessandro e Pagliaro, Antonino. 1968. La letteratura persiana. Florena: Sansoni: 262-273. Cfr tambm a bibliografia orientada organizada por Carlo Saccone na sua traduo do Divan: Il libro del coppiere. Trento: Luni, 1998: 377-392. 7 Cfr Solbrig, Ingeborg H. 1973. Hammer-Purgstall und Goethe. Dem Zaubermeister das Werkzeug. Berna: Lang. 8 Cfr Mommsen, Katharina. 1988. Goethe und die arabische Welt. Francoforte do Meno: Insel; Id. 2001. Goethe und der Islam. Francoforte do Meno: Insel Verlag. 9 Goethe, Johann Wolfgang von. 1819. West-stlicher Divan. Stuttgart: in der Cottaischen Buchhandlung. Exceto nos casos especificados, as tradues no interior do texto so do autor.

  • 19 Darcilia Simes (Org.)

    dilogo intertextual entre o poeta alemo e aquele que ele considerava o seu gmeo oriental10.

    Eis uns dos componentes de Goethe11, intitulado Beiname, sobrenome, contido na seo denominada Hafis Nameh, em alemo Buch Hafis, o livro de Hafez.

    Dichter Mohamed Schemseddin, sage, Warum hat dein Volk, das hehre, Hafis dich genannt? Hafis Ich ehre, Ich erwidre deine Frage. Weil in glucklichem Gedchtnis Des Korans geweiht Vermchtnis Unverndert ich verwahre, Und damit so fromm gebare, Dass gemeinen Tages Schlechtnis Weder mich noch die beruhret, Die Prophetenwort und Samen Schtzen, wie es sich gebuhret; Darum gab man mir den Namen. Dichter Hafis, drum, so will mir scheinen, Mcht ich dir nicht gerne weichen: Denn wenn wir wie andre meinen, Werden wir den andern gleichen. Und so gleich ich dir vollkommen,

    10 Cfr Burgel, Johann Christoph. 1989. Der stliche Zwilling: Gedanken uber Goethe und Hafiz, 3-19. In Spektrum Iran. Berlin: Kulturabteilung der Botschaft der Islamischen Republik Iran, 2. 11Escrito em Bad Berka, em 26 de junho de 1814.

  • 20 Semitica, Lingustica e Tecnologias de Linguagem

    Der ich unsrer heilgen Bucher Herrlich Bild an mich genommen, Wie auf jenes Tuch der Tucher Sich des Herren Bildnis druckte, Mich in stiller Brust erquickte, Trotz Verneinung, Hindrung, Raubens, Mit dem heitern Bild des Glaubens.

    Goethe, ou melhor, o seu alter ego textual, refere-se ao poeta persiano chamando-o com o seu nome, Mohamed Schemseddin12 e lhe pergunta por que o seu venervel povo o tenha apelidado Hafez: Mohamed Schemseddin, sage, / Warum hat dein Volk, das hehre, / Hafis dich genannt?

    O poeta persiano, ou melhor o seu alter ego textual criado por Goethe, depois de ter agradecido ao interlocutor alemo, lhe responde que tal apelido se deve ao fato de que ele guarde inalterado o sagrado legado do Coro: Des Korans geweiht Vermchtnis / Unverndert ich verwahre . O verso se refere tradio secular persiana que atribui ao poeta de Shiraz uma memria prodigiosa, tal por lhe permitir memorizar, entre outras coisas, o Coro inteiro; Hafez, do rabe hafiz, cujo significado principal guardio, , de fato, o apelativo que a cultura islmica concede queles que se demonstram em condies de conhecer e recitar de memria a totalidade do Coro.

    O alter ego textual de Goethe no absolutamente intimidado por tal resposta, ao contrrio, ele nela avista a

    12 Aqui na sua translineao alem.

  • 21 Darcilia Simes (Org.)

    confirmao ulterior do fato de que Hafez seja o seu gmeo oriental, de fato, como o poeta persiano guardava inalterado o sacro legado do Coro, assim o poeta alemo mantm consigo a esplndida imagem disto que ele chama os nossos livros sacros: Der ich unsrer heilgen Bucher / Herrlich Bild an mich genommen. Os dois versos seguintes determinam com exatido a natureza dessa imagem: Wie auf jenes Tuch der Tucher / Sich des Herren Bildnis druckte: como sobre aquele tecido13 se grava a efigie do Senhor.

    Esse dilogo imaginrio entre Goethe e Hafez, de extraordinria densidade, provoca numerosas perguntas, algumas de carter pontual; como so os textos que Goethe chama os nossos livros sacros e cujo tecido sobre o qual se grava a efigie do Senhor? Outras perguntas so, ao invs, de carter geral; quando o texto aproxima o modo em que Hafez guardava o sacro legado do Coro e o modo em que Goethe detinha consigo a imagem dos nossos livros sacros, quais so as implicaes de tal paralelismo? E ainda, no momento em que o texto evoca a relao entre Goethe e estes nossos livros sacros atravs da metfora da efigie do Senhor gravada sobre o tecido dos tecidos, quais so as consequncias de tal metfora, e como se refletem sobre o paralelismo entre Goethe e o seu gmeo oriental?

    Provavelmente, o fillogo tentaria responder s perguntas gerais em busca de uma resposta s questes pontuais, investigando a biografia de Goethe, os seus escritos e os escritos que lhe foram dedicados na esperana de identificar, com certo grau de segurana, estes nossos livros

    13 Nota do Tradutor NT.: No original telo dei teli , ou seja, o pano dos panos referncia ao Santo Sudrio.

  • 22 Semitica, Lingustica e Tecnologias de Linguagem

    sacros, este retrato do Senhor, este tecido dos tecidos. O semitico, ao invs, a tais perguntas pontuais procura responder no limite das hipteses que so formuladas a respeito daquelas gerais, desse ponto de vista, os versos de Goethe tornam-se objeto de uma semitica das culturas religiosas e assumem uma posio terica bastante particular; com Anthony Appiah seria possvel defini-la cosmopolita14, por um lado, esses versos so um texto, que resulta do encontro entre duas culturas religiosas, aquela prevalentemente islmica di Hafez e aquela prevalentemente crist do seu gmeo alemo, por outro lado, elas so tambm um meta-texto, que esse encontro procura interpret-lo, responder com meios tericos: Qual a relao entre sacralidade, textualidade, corpo e memria na cultura religiosa crist e naquela islmica?

    Assim, se de uma parte o semitico pode analisar os versos de Goethe enquanto texto que significa a recepo da cultura islmica na Europa em um certo perodo histrico, de outra parte pode analisar esses versos enquanto meta-texto no qual se prope uma interpretao das culturas religiosas.

    Com os fins de elaborar uma semitica do sagrado, a segunda pista de anlise parece-nos a mais promissora. A interpretao que Goethe prope da relao entre a sua cultura do sagrado e aquela de Hafez de fato centralizada

    14 APPIAH, Anthony. 2006. Cosmopolitanism: Ethics in a World of Strangers. New York: W.W. Norton & Co.

  • 23 Darcilia Simes (Org.)

    nos temas que so de pertinncia semitica. Goethe sustenta que exista um paralelismo entre o modo em que Hafez custodia o sagrado legado do Coro e o modo em que ele conserva a imagem disto que ele denomina os nossos livros sagrados. Com efeito, uma isotopia da memorizao pessoal e fiel no decorrer de todos os versos citados: Hafez diz ich verwahre, eu cuido, Goethe an mich genommen, conservados em mim, da face do Senhor diz-se que sich druckte, inciso, ao mesmo tempo, esta isotopia da memorizao se entrelaa com uma segunda isotopia, tanto quanto evidente, da sacralidade; o legado do Coro chamada geweiht, literalmente consagrado; os livros de Goethe so chamados heiligen, sacros ou santos, a imagem deles chamada herrlich, magnfica, mas tambm divina, o retrato do Senhor dos Cristos explicitamente mencionado em referncia ao tecido dos tecidos des Herren Bildnis. Todavia, o aspecto mais interessante desses versos, da maneira pela qual interpretam a relao entre as duas culturas religiosas, reside no fato de que, ao lado destas isotopias de comparao, que exprimem substancialmente a ideia de que o sagrado central para ambos os poetas e ambos os poetas dela conservam uma memria ntima e fiel, insinua-se elegantemente uma isotopia de contraste, que poderia se definir semitica, naquilo em que se refere aos signos, atravs dos quais a sacralidade se torna tradio; a propsito de Hafez, fala-se de uma herana inalterada , Vermchtnis Unverndert; a propsito de Goethe, ao invs, fala-se Bildnis, efigie. O mistrio desses versos reside exatamente no jogo entre as isotopias de comparao e aquelas de contraste. Por um lado o texto parece sustentar que a relao entre sagrado e memria idntica em ambos os poetas, por outro lado, porm, parece sugerir que os signos de tal relao so distintos.

  • 24 Semitica, Lingustica e Tecnologias de Linguagem

    Mas a diversidade dos signos com que o sagrado significa, custodia-se, retm-se, imprime-se na Histria no modificando talvez a sacralidade? O meio no tambm a mensagem? E ento por que, nos versos de Goethe, a memorizao do legado de um texto verbal como o Coro, centro de uma sacralidade eminentemente simblica, comparada reteno desses nossos livros sagrados, utilizando o termo imagem, sustentculo de uma sacralidade eminentemente icnica? E por que tal comparao precisada com a metfora de uma efgie acheiropoieta, fulcro de uma sacralidade eminentemente indexical? Do ponto de vista de uma semitica do sagrado, no exista talvez um abismo entre o modo em que o sagrado significa na cultura islmica, atravs de um discurso verbal e sem imagens, e aquele em que o sagrado significa na cultura Crist, onde o sagrado faz-se no somente verbo, mas tambm imagem, e at corpo, deixando um rasto de si na Histria como verbo, como imagem e como corpo? O que pretendem sugerir os versos de Goethe com esse propsito?

    A hiptese que guia este ensaio que tais versos propem a relao entre sacralidade, memria e significao, que se exprime nas duas culturas religiosas, a Crist e a islmica xiita, uma interpretao tal que capaz de abrir um espao de hospitalidade, de senso de compartilhar, um divan, exatamente, entre duas diversas modalidades semiticas do sagrado. como se esses versos sugerissem que entre o modo em que Hafez memorizava o sagrado legado do Coro, o modo em que Goethe mantinha em si a imagem magnfica dos nossos livros sacros e o modo em que a efigie do Senhor se

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    imprime sobre o tecido dos tecidos, existe a despeito da aparente diferena semitica, um substrato comum.

    Se essa hiptese for correta, as chaves para corrobor-la, para seguir as sugestes dos versos de Goethe, so mltiplas. Aqui utilizaremos somente duas delas: de um lado, se aprofundar o interior cultural da referncia efigie do Senhor, ao marcar a sua imagem no tecido dos tecidos; por outro lado, procurar-se- compreender como, em virtude de tais implicaes, esse termo de comparao proposto pelos versos de Goethe possa efetivamente sugerir a presena de um percurso de senso comum no interior das duas semiosferas religiosas.

    No surpreender se, nesse ponto, escape das malhas do texto para explorar matrizes de sentido mais amplas: esse transbordamento do lveo textual necessrio, caso se queira que as guas do texto se tornem frteis tambm pelas culturas que ele atravessa.

    Na cultura Crist, diversas tradies dos textos contam como a efigie da face de Cristo se imprime milagrosamente sobre uma superfcie; as mais famosas so, como conhecido, aquela do vu de Vernica, aquela do rei Abgar e aquela do sudrio, mas existem tambm outras, menos conhecidas15 Entre todas essas tradies, aquela relativa ao rei Abgar serve particularmente s anlises de uma semitica das culturas, naquilo em quanto constitui uma espcie de corpus natural, ou seja, uma srie de textos que, em locais e pocas diversas, contam uma histria semelhante em verses diferentes.

    15 Para uma rpida resenha, Kuryluk, Ewa. 1991. Veronica and her Cloth: History, Symbolism and Structure of a True Image. Cambridge, Mass.: B. Blackwell.

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    Analisar semioticamente essas verses, coloc-las, com o auxlio da Filologia, no seu contexto histrico e cultural, permite estudar o emergir de um conceito, aquele da sacralidade da face de Cristo, que, mesmo se modificando, atravessa os sculos at Goethe, tornando-se um dos contedos semnticos dos seus versos. A abordagem semitica permite decifrar essa tradio textual de maneira diversa, talvez mais rica, de quanto no o faa a teoria da arte, que tambm se ocupou disso, frequentemente, por Grabar16 a Bertelli17, de Kitzinger18 a Freedberg19 at Belting20 ou de quanto no o faa a Histria das religies, por Tixeront21 ao

    16 Grabar, Andr. 1966. Le Premier art chrtien. Paris: Gallimard; Id. 1968. Early Christian Art: A Study of its Origins. Princeton: Princeton University Press. 17 Bertelli, Carlo. 1968. Storia e vicende dellimmagine edessena, 3-33. In Paragone, 19. 18 Kitzinger, Ernst. 1976. The Art of Byzantium and the Medieval West: Selected Studies. Bloomington: Indiana University Press (sobre tudo os captulos 5 e 7). 19 Freedberg, DavId. 1989. The Power of Images: Studies in the History and Theory of Response. Chicago: University of Chicago Press. 20 Belting, Hans. 1990. Bild und Kult: eine Geschichte des Bildes vor dem Zeitalter der Kunst. Munique: C.H. Beck; Id. 2005. Das echte Bild: Bildfragen als Glaubenfragen. Munique: Beck. 21 Tixeront, Joseph. 1888. Les Origines de lglise ddesse et la lgende dAbgar. Paris: Maisonneuve et Ch. Leclerc.

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    insuperado Dobschutz22, de Schnborn23 a Brown24 at Mondzain25.

    Entre os textos que contam a histria, ou melhor as histrias do rei Abgar, o mais antigo , provavelmente, aquele de a Historia Eclesistica de Eusbio de Cesareia,26 uma obra que descreve os primeiros sculos de desenvolvimento do Cristianismo e de que a primeira apario datada, pertencendo aos conhecimentos atuais, antes de 303. Eis o passo em questo, extrado do trecentsimo captulo do primeiro livro27:

    22 Dobschutz, Ersnt von. 1899. Christusbilder: Untersuchungen zur christlicher Legende, 2 vols. Leipzig: J.C. Hinrichs. 23 Schnborn, Christoph von. 1976. Licne du Christ: fondements thologiques labors entre le 1er et le 2e Concile de Nice (325-787). Friburgo: ditions universitaires. 24 Brown, Peter. 1995. Authority and the Sacred: Aspects of the Christianization of the Roman World. Cambridge e New York: Cambridge University Press. 25 Mondzain, Marie-Jos. 1996. Image, icne, conomie: les sources byzantines de limaginaire contemporain. Paris: Seuil. 26 Cesareia em Palestina, cerca de 265 circa cerca de 340. 27 Eusbio de Cesareia. Historia eclesistica, I, xiii, 1-5. Ed. Mommsen, Theodor e Schwartz, Eduard. Die Kirchengeschichte, vol. 2. In Id. et alii 1902 1956. Eusebius Werke. 9 voll. in 13 tomos. Leipzig: J. C. Hinrichs.

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    Eusbio de Cesareia, Historia eclesistica, I, xiii, 1-5. Ed. Mommsen,

    Theodor e Schwartz, Eduard.

    O rei ao qual se faz meno nesse texto seria Abgar o Negro, que reinou em Edessa de 4 a.C. a 7 d.C. e novamente de 13 at 50. Naquela poca Edessa, situada h cem km a leste do Eufrates, onde se localiza atualmente a cidade turca de Sanliurfa, foi a capital do estado de Osroene.

    O texto da Histria Eclesistica conta que o rei de Edessa dissipava-se por terrveis sofrimentos corporais. Ele conheceu o nome ilustre de Jesus e, pelos seus milagres, tornou-se seu splice e o fez levar uma carta, para lhe pedir a liberao do prprio mal:

  • 29 Darcilia Simes (Org.)

    , . Jesus, da sua parte, no obedeceu ao pedido do rei, mas o venerou em uma carta particular, , prometendo enviar um de seus discpulos ao rei para cuidar de sua doena e para salv-lo com todos os seus sditos. Efetivamente, continua o texto de Eusbio de Cesareia, depois que Jesus foi ressuscitado dos mortos e subiu aos cus, Tomas, um dos doze Apstolos, enviou a Edessa Tadeu como arauto28 e evangelista da doutrina de Cristo; atravs de Tadeu, todas as promessas de Jesus receberam a autorizao dele. O texto inclui, nessa parte, uma verso das duas cartas, aquela de Abgar a Jesus e aquela em resposta, que Eusbio de Cesareia havia traduzido do siraco a partir de alguns documentos guardados nos arquivos da cidade de Edessa.

    A semitica do texto poderia analisar esse conto de muitos pontos de vista diversos, adotando como fio condutor da anlise um dos variados elementos narrativos que o compem. Todavia, a fim de que esse texto expresse o seu sentido no interior de uma semitica das culturas religiosas, oportuno deter-se no tipo de signos, no tipo de textos, que permitem ao soberano doente apelar sacralidade milagrosa de Cristo e a esses responder com a promessa da influncia benfica de tal sacralidade; Abgar se refere a Jesus por meio de um enunciado verbal escrito, uma carta, e Jesus lhe responde com um outro enunciado verbal escrito, uma segunda carta. Essas mensagens so simblicas na relao com o contedo delas, que elas expressam graas s

    28 . Oficial (inferior ao rei-de-armas e superior ao passavante) que na Idade Mdia levava as declaraes de guerra e servia de parlamentrio. http://www.priberam.pt/dlpo/default.aspx?pal=arauto

    http://www.priberam.pt/dlpo/default.aspx?pal=arauto

  • 30 Semitica, Lingustica e Tecnologias de Linguagem

    convenes da linguagem verbal, mas so tambm ndices (indexicais) na sua manifestao, enquanto ela se origina graas continuidade espao-temporal entre o corpo do escritor e da escritura. O texto verbal da carta de Jesus, ento, no conto de Eusbio de Cesareia, assim como na traduo a que ela se prope, torna-se memria da existncia do sacro, do seu fazer-se corpo na Histria, da sua passagem eficaz entre os homens. Na realidade, o trecho em questo no especifica se Abgar e Jesus tivessem escrito essas cartas de prprio punho, ou se tivessem ditado o contedo a alguma outra pessoa, interpretao essa que diminuiria a aura sacra da carta de Cristo. Todavia, a tradio predominante interpretou essa passagem atribuindo a Jesus o mesmo ato da escritura, a ponto de que uma iconografia apcrifa muito rara tenha se desenvolvido a partir de tal interpretao. Eis, dessa passagem, um exemplo, retirado de um manuscrito Georgiano de 1054:29

    29 Cristo escreve ao rei Abgar. No Tetra-evangelho de Alvardi, 1054.Tbilisi: Instituto dos manuscritos.

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    Cristo escreve ao rei Abgar. No Tetraevangelho de Alvardi, 1054. Tbilisi:

    Instituto dos manuscritos.

  • 32 Semitica, Lingustica e Tecnologias de Linguagem

    Essa referncia textual escritura de Jesus Cristo, documentada por uma histria dos primeiros momentos de desenvolvimento do Cristianismo redigida por volta do final do Sculo III, por si s um fato significativo no interior da cultura crist, cujo corpus de textos cannicos nunca representa Jesus no ato de escrever.30 Somente em Joo 8, 6, no interior da percope da mulher adltera, diz-se que , Jesus se acolheu e comeou a escrever com o dedo sobre a terra, uma passagem bastante debatida pelos exegetas, tambm pelas suas peculiaridades filolgicas, em que todavia no se explicita em nenhum modo o contedo da escritura de Jesus.

    Na Histria Eclesistica, ao invs, Jesus escreve, envia uma carta, mas importante sublinhar que a comunicao entre Jesus e Abgar no prev nenhum tipo de signo icnico. Em efeito, o incipit da epstola de Jesus, assim como o traduz e o refere Eusbio de Cesareia, parece sugerir que Abgar possa se tornar um modelo para todos os Cristos mesmo em virtude do fato de que ele creu e tenha sido salvado sem ter visto, como sem ter visto devem crer e serem salvados os leitores de Eusbio de Cesareia; no incio da sua carta a Abgar, de fato, Jesus teria escrito: , , benedito s tu por ter crido em mim, sem ter-me visto, o que uma evidente citao de quanto, segundo Joo 20, 29, Jesus disse a Tomas depois de aparecer para eles,

    30 Cfr Tillemont, Lenain de. Mmoires pour servir lhistoire ecclsiastique, 16 vols. Veneza: Potteri, 2: 363.

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    aps a ressureio: , beatos so aqueles que no tm visto e, todavia, tm crido. Do mesmo modo, a histria do rei Abgar, assim como a conta Eusbio de Cesareia, no contm alguma referencia viso, apenas com uma exceo: o texto conta que quando Abgar encontrou Tadeu pela primeira vez, o soberano, e ningum mais, v imediatamente uma grande viso sobre o rosto do apstolo: . O texto no especifica que coisa seja essa , onde pode significar, precisamente, vista, espetculo, viso, apario, mas no deixa dvidas a respeito o fato de que se trata de uma manifestao do sagrado, e que tal manifestao aparecera, , sobre o rosto de Tadeu, .

    A partir do final do Sculo III, a histria do rei de Edessa e de Jesus se difundiu em toda a cristandade. Ao lado das verses gregas sobre o papiro e epgrafes, conservaram-se verses siracas, uma verso latina, diversas verses coptas, verses rabes, persianas e etopes, uma verso armena, verses georgianas, uma verso paleo-eslava e uma irlandesa.31 Ler, analisar e confrontar essas verses permite elaborar uma tipologia semitica do sagrado, ou os modos em que, a partir da histria do rei Abgar e de Jesus, as diversas culturas tm interpretado, em diversos fragmentos histricos, a relao entre sacralidade, signo, corpo e memria.

    31 Geerard, Maurice, ed. 1992. Clavis apocryphorum Novi Testamenti. Turnhout: Brepols: 65-70.

  • 34 Semitica, Lingustica e Tecnologias de Linguagem

    O primeiro tipo compreende verses que seguem o modelo da Histria Eclesistica de Eusbio: a sacralidade de Jesus no deixa outro trao na histria que no seja a escritura, e no se faz meno de algum signo icnico. Pertence a esse primeiro tipo, por exemplo, uma verso irlandesa da histria, aquela que remete ao manuscrito Leabhar Breac32 da biblioteca de Irish Royal Academy:33

    32 Manuscrito copiado de Murchadh Cuindlis de Bally Lough Deacker a Duniry, no Clanricarde oriental (atualmente a parte oriental do condado de Galway) entre 1408 e 1411; conservado na biblioteca da Irish Royal Academy, MS 23 P 16: 146.3.28 147.1.3 33 Cfr Considine, Patrick. 1973. Irish Versions of the Abgar Legend, 237-257. In Celtica, 10.

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    Leabhar Breac 146.3.28 147.1.3

  • 36 Semitica, Lingustica e Tecnologias de Linguagem

    O texto conta que Is ann sin ro scrb su in epistil erdraic co huagair Beatus es Evagare et cetera, Fora nesse tempo que Jesus escrevera a Abgar a famosa carta beato s tu, Abgar, et cetera,34 exatamente segundo quando reconduzido por Eusbio de Cesareia e pelo seu tradutor latino Rufino.35

    O segundo tipo, ao invs, poderia ser exemplificado por uma das verses siracas da histria do rei Abgar e de Jesus, por exemplo aquela contida em um manuscrito da biblioteca pblica de So Petersburgo, intitulado Antologia de historias dos santos Pais,36 que remonta ao final do V Sculo.

    34 No original: beato sei tu, Abgar, et cetera 35 Concordia, 344 o 345 Messina, 411 o 412. 36 Syr. ns. 4, fol. I vo a 7 vo, 54 rovo, 9 ro a 34 ro; Van Esbroeck, Michel. 1988. Le manuscrit syriaque Nouvelle Srie 4 de Leningrad, 211-220. Em Mlanges Aintoine Guillaumont. Contribution ltude des christianismes orientaux (Cahiers dOrientalisme, 20). Genebra: Patrick Cramer. Verses ligeiramente diferentes do mesmo texto se leem no manuscrito 14644 da British Library de Londres, os Acts of Thaddus. Cfr Anonimo. 1993. Histoire du roi Abgar et de Jsus. Trad. fr. Desreumaux, Alain. Turnhout: Brepols: 34.

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  • 38 Semitica, Lingustica e Tecnologias de Linguagem

    Manuscrito siraco da Dottrina dAddai, fol. 3 v. San Petersburgo, Biblioteca pblica Saltykov-Shchedrin [Syr. ns. 4, fol. I v. a 7 v., 54

    r.v., 9 r. a 34 r.]

  • 39 Darcilia Simes (Org.)

    Na verso contada por esse texto, o rei Abgar enviou cinco pessoas a Jerusalm junto a Jesus, entre as quais o arquivista Hannan. Esse toma nota de tudo o que via Jesus fazer, mas tambm de tudo o que se dizia que ele tivesse feito antes da chegada da delegao. Depois, os cinco legados retornaram para Edessa e se apresentaram corte de seu soberano Abgar. Esses, depois de ter lido e escutado os seus contos, escrevera uma carta e a enviou a Jesus atravs do arquivista Hannan. At este ponto, o conto do manuscrito siraco de So Petersburgo permanece bastante fiel a Historia eclesistica de Eusbio de Cesareia. Todavia nessa verso do segundo tipo quando Jesus recebe a carta no responde a Abgar por meio da escritura, mas por meio de uma palavra unicamente oral, que Abgar poder conhecer somente atravs da crnica do arquivista Hannan. Desaparece ento a dimenso ditica que na Historia eclesistica se expressava na ideia de uma carta escrita pelo prprio punho de Jesus, mas se mostra tambm um episdio que no est presente nas verses do primeiro tipo. Eis o trecho em questo:

    Enquanto Jesus assim lhe falava, o arquivista Hannan, que era pintor do rei, pintou a imagem de Jesus com pigmentos de valor e a reconduziu ao rei Abgar, seu soberano. Quando esta pessoa a viu, a recebeu com grande alegria e a colocara com grande honra em um dos cmodos do seu palcio. 37 [Trad. port. do manuscrito siraco continente a Doutrina de Addai, fol. 3 v. So Petersburgo, Biblioteca pblica Saltykov-Shchedrin [Syr. ns. 4, fol. I v. A 7 v., 54 r.v., 9 r. a 34 r.]

    37 Ibidem: 59.

  • 40 Semitica, Lingustica e Tecnologias de Linguagem

    Nesse segundo tipo de verses, ento, a sacralidade de Jesus se transmite a Abgar no somente atravs do conto de Hannan, uma srie de enunciados verbais que no tm qualquer relao ditica (indexical) com o corpo de Jesus, com a presena de um corpo sacro na Histria, mas tambm atravs de um retrato, um texto substancialmente icnico.

    Todavia, em uma terceira categoria de verses que a semitica do sacro subjacente comunicao entre Abgar e Jesus d lugar, cabe diz-lo, a um verdadeiro encontro reaproximado do terceiro tipo. Exemplo pode ser uma verso do conto contida em um manuscrito grego da Biblioteca Nacional de Paris, datado entre o 609 e o 944.38 Eis a traduo do trecho em questo. 39

    Abgar ordenou a Ananias [ o correio a quem havia sido confiada uma carta para Jesus] para anotar minuciosamente o aspecto de Cristo, da sua estatura, dos seus cabelos e de todo o resto. Ananias partiu ento, entregou a carta a Cristo e lhe fitou intensamente com os olhos sem por isso coloc-lo a colher. Ento esses, conhecedores dos coraes, deram-se contas e pediram para se lavar, lhes foi dado uma toalha, ele se lavou e se enxugou o rosto. Fixou a prpria imagem sobre o pano e o deu a

    38 Lipsius, Richard Adelbert. 1891. Acta apostolorum apocrypha, 2 vols, 279-281. Leipzig: H. Mendelssohn, 1. Cfr Palmer, Andrew. 1993. Une version grecque de la lgende dAbgar, 135-146. Em Annimo. 1993. Histoire du roi Abgar et de Jsus, op. cit. 39 Trad. it. do tetto grego dito por Lipsius, Richard Adelbert. 1891. Acta apostolorum apocrypha, 2 vols, 279-281. Leipzig: H. Mendelssohn, 1.

  • 41 Darcilia Simes (Org.)

    Ananias dizendo: Leve isto a quele que te enviou e refira-lhe esta resposta: paz a ti e a tua cidade [...]. Quanto a Abgar, ele acolheu Ananias jogando-se por terra em frente da imagem para ador-la e assim foi curado da sua doena.

    Nessa verso do terceiro tipo, ento, a comunicao do sagrado entre Jesus e Abgar permanece ligada dimenso simblica de um conto indireto, aquele do correio Ananias, ao mesmo tempo, essa verso recupera uma dimenso detica, mas a transfere da escritura de Cristo, onde ela se manifestava, por exemplo, na Historia eclesistica de Eusbio, na efigie milagrosa do rosto de Jesus, na imagem acheiropoieta que ele deixa sobre o tecido. Obviamente, nessa terceira verso a referncia descrena de Tomas desaparece, j que Abgar cr e salvo, exatamente porque viu, exatamente porque Jesus se demonstrou conhecedor dos coraes humanos e quis conceder ao soberano no somente um signo simblico da prpria presena na histria, mas um signo ao mesmo tempo icnico e ditico, uma espcie de fotografia. Alm disso, nessa terceira verso tambm o poder taumatrgico do sagrado se transfere da palavra as promessas de Jesus sua imagem milagrosa: adorando a efigie acheiropoieta de Cristo que Abgar se cura da sua doena.

    A partir do Sexto Sculo, aps, a eficcia milagrosa dessa imagem se estende inteira cidade de Edessa. A Crnica do Pseudo-Josu o Stilita,40 um texto siraco que remonta depois do 506, talvez o primeiro a mencion-las, enquanto

    40 Annimo. The Chronicle of Pseudo-Joshua: the Stylite. Trad. Ingl. Trombley, Frank R. e Watt, John W. 2000. Liverpool: Liverpool University Press: 6.

  • 42 Semitica, Lingustica e Tecnologias de Linguagem

    Procpio de Cesareia41 remete tal legenda no segundo livro da sua obra sobre as guerras de Justiniano,42 aquele que trata do conflito contra o imprio persiano dos Sassnidas:43

    Procpio de Cesareia, Guerras de Justiniano, II, xii, 6-8

    Procopio conta que Cosroes, mais conhecido nas fontes persianas como Khosrau I Anushiravan,44 cultivava a ambio de conquistar a cidade de Edessa, exatamente porque irritou-se com a legenda crist da sua inviolabilidade: , . Entre vrias digresses, o texto prossegue contando como os cidados de Edessa tivessem inciso as palavras de Jesus a Abgar sobre as portas da cidade, e como o mesmo Cosroe, deu-se conta da eficcia dessa defesa divina, tivesse abandonado o seu projeto de conquista.

    Alguns anos mais tarde, Evgrio Escolstico45 retoma o mesmo episdio no quarto livro da sua Histria Eclesistica,

    41 Cesareia, acerca de 500 probavilmente Constantinopla, acerca de 565. 42 Completado acerca de 545. 43 Procopio de Cesareia, Guerras de Justiniano, II, xii, 6-8. 44 Reinou entre 531 e 579, data de sua morte. 45 Epifania, Sria, 536-537 depois de 594.

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    mas nega que a carta de Jesus tenha podido conter uma promessa de inviolabilidade para a cidade de Edessa. Todavia, no mesmo captulo o autor conta uma histria complicada, em que a efigie milagrosa do rosto de Cristo, aquela que Abgar recebe nas verses do terceiro tipo, utilizada pelos habitantes de Edessa para defender-se pelos ataques dos Persianos:46

    Evgrio Escolstico, Historia eclesistica, IV, 27

    Visto que esses estavam dispostos a realizar um aggestus, ou seja um assalto s muralhas da cidade, atravs de uma colina artificial de madeira construda atrs dela, os habitantes de Edessa escavaram um tnel at abaixo desse cmulo de madeirada e procuraram incendi-lo, como, porm, o fogo no pegava, eles apanharam a imagem divina de Cristo, , a colocaram na gua, borrifaram algumas gotas de gua sobre a lenha, e eis que ela milagrosamente se incendiou.

    46 Evgrio Escolstico, Historia eclesistica, IV, 27.

  • 44 Semitica, Lingustica e Tecnologias de Linguagem

    Uma semitica das culturas religiosas no deveria limitar-se a elaborar uma tipologia de discursos em que, segundo diversas modalidades textuais, o sagrado se comunica aos homens, ou melhor, os homens imaginam a comunicao com o sagrado. Um segundo nvel de anlise, talvez mais complexo, deveria consistir na ligao dessa tipologia a uma tipologia de semiosferas, com a finalidade de compreender por qual motivo em certos tempos e certos lugares Cristo comunica a Abgar atravs de sua prpria escritura, em outros tempos e outros lugares ainda atravs da mesma efigie acheiropoieta. Esse esforo resta ainda largamente a levar a termo, mas j se pode presumir que na evoluo da tradio do rei Abgar e de Jesus incIdem seja uma dialtica externa entre a semitica do sacro Judasmo e aquela do Cristianismo, seja na dialtica interna ao mesmo Cristianismo, entre as vrias interpretaes disso que floresceram nos primeiros sculos. Por exemplo, existe nisso seguramente um nexo entre a tradio de Abgar e o passo de xodo 34, 29-35 em que se conta como Moiss encobriu o mesmo rosto de Jesus depois de ter adquirido uma pele resplandecente durante o seu encontro com o sagrado sobre o monte Sinai, passo em um certo senso rebelado da transfigurao do Cristo sobre o monte Tabor, 47 mas

    47 Come argutamente sugere Michel Tournier num ensaio: Tournier, Michel. 1988. Le Tabor et le Sina: essais sur lart contemporain. Paris: P. Belfond.

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    sobretudo por Paulo na sua referncia ao rosto sem vu do Cristianismo em 2 Corintos 3, 12-18. 48

    De outra parte, essa tradio e a sua colorao semitica evolve tambm no interior da mesma semiosfera crist, por exemplo concomitantemente ao desenvolvimento do intrincado debate em torno ao estatuto das imagens.

    Atravs dessa complexa dinmica, que privilegia ora essa, ora aquela modalidade semitica, o confronto entre Evgrio o Escolstico e Goethe bastante significativo: enquanto na crnica do primeiro cone milagroso do rosto de Jesus protegia a cidade de Edessa do assdio dos Persianos infiis, no segundo a mesma efigie se torna espao de hospitalidade entre duas fidelidades, aquela crist e aquela islmica.

    Os versos de Goethe de fato sugerem que o advento do Islo no distancia a cultura persiana daquela crist, mas, em um certo sentido, a aproxima, por que, assim como em Goethe a memria dos livros santos no deixa lembranas das palavras, mas tambm imagens e impresses (figuras) do sagrado na vida, assim como em Hafez a memria do Coro se torna semblante do sagrado, segundo uma mstica paradoxal que talvez somente Lvinas soube descrever filosoficamente.

    Todavia, no se compreenderia profundamente esse espao de hospitalidade, esse convite de Goethe a enfatizar a sua sacralidade do semblante a respeito quela da carta, sem acrescentar que tal espao se abra no entre Goethe e o Islo, mas entre Goethe e um Islo, aquele de Hafez. Escreve Henri

    48 Cfr Van Unnik, Willem Cornelis. 1963. With unveiled face, an Exegesis of 2 Corinthians III 12-18, 153-169. Em Novum Testamentum 6, 2/3.

  • 46 Semitica, Lingustica e Tecnologias de Linguagem

    Corbin no primeiro volume do seu En Islam iranien [No Islo iraniano]:49

    A imamologia metafsica medita, nas suas pessoas preexistentes, a teofania primordial, uma sobre-humanidade celeste, criatural, certamente, mas, quem a face divina revelada aos homens. / de fato em direo desta Face que os homens se viram, quando eles se viram em direo da Divindade, pois esta em ela mesma fica para eles inaccessvel: ela o abismo, o Silencio divino, o Deus absconditus. Esse tema da Face duma importncia capital para toda a teologia xiita: ela no de nenhuma maneira o fruto duma especulao recente; ele enunciada j nos hadth dos mesmos ims. [Trad. port. de Corbin, Henri. 1971-1972. En islam iranien: aspects spirituels et philosophiques, 4 vols. Paris: Gallimard: 1: 54.]50

    Nos versos de Hafez, lidos atravs da traduo alem de Joseph Von Hammer-Purgstall, Goethe se embateu em uma interpretao potica desse Islo xiita, desse Islo do

    49 Corbin, Henri. 1971-1972. En islam iranien: aspects spirituels et philosophiques, 4 vols. Paris: Gallimard: 1: 54. 50 Texto original : Limmologie mtaphysique mdite, dans leurs personnes prexistantes, la thophanie primordiale, une surhumanit cleste, craturelle, certes, mais qui est la Face divine rvle aux hommes. / Cest eo ipso vers cette Face que les hommes se tournent, lorsquils se tournent vers la Divinit, car celle-ci en soi-mme leur reste inaccessible : elle est labme, le Silence divin, le Deus absconditus. Ce thme de la Face est dune importance capitale pour toute la thologie shite; il nest nullement le fruit dune spculation tardive ; il est dj nonc dans les hadth des Imams eux- mmes.

  • 47 Darcilia Simes (Org.)

    semblante sacro, por exemplo na sexagsima composio da antologia organizada pelo diplomtico austraco:

    Isso traduz, bastante fielmente, o seguinte ghazal de Hafez, aqui reproduzido segundo uma das mais acreditadas edies iranianas:51

    51 Khwja ams ud-Dn Muhammad Hfez-e rz., Divn. Ed. Pizhmn Bachtiyri, Husayn. 1318 (1939 o 1940 d.C.). Teer: Hilmi.

  • 48 Semitica, Lingustica e Tecnologias de Linguagem

    [Schemsed-din Hafis, Mohammed, Divn. Ed. Pizhmn Bachtiyri,

    Husayn. 1318 (1939 o 1940 a.C.). Teer: Hilmi.]

    Recita o primeiro verso: cujo primeiro hemistquio Von Hammer-Purgstall ,traduz, bastante argutamente: Noch niemand sah dein Ungesicht, literalmente ningum ainda viu o seu rosto, onde porm Ungesicht uma paradoxal negao de Gesicht, uma espcie de no-rosto. Mas, mais tarde, contraditoriamente, o ghazal de Hafez continua no oitavo hemistquio: ,

    que Von Hammer-Purgstall traduz Das Antlitz des Geliebten strahlt, / Wo immer es sich findet, o rosto do amigo resplandece, l onde ele se encontra. Mas os versos que seguem so os mais surpreendentes:

  • 49 Darcilia Simes (Org.)

    Von Hammer-Purgstall os traduz como segue: Wo frommer Zellen heilig Werf / betrieben wird mit regem Geist und Eifer, / dort tnt des Munches Glochenschall, / dort tnt des Kreuzes Name; Onde o sacro valor das celas devotas perseguido com esprito vivo e zelo, / l onde tintina o som das campainhas, / onde ressoa o nome da cruz.

    * * *

    No Dcimo Quarto Sculo, o poeta persa influenciado por uma certa interpretao do Islo xiita exprime nos seus versos a tenso entre o irreconhecvel do semblante do sagrado e a possibilidade que tal semblante se manifesta em toda parte onde se encontre o amado, at do outro lado dos confins da cultura islmica, nas celas dos conventos, no som das campainhas, no nome da cruz.

    Diversos sculos mais tarde, um poeta alemo influenciado por uma certa interpretao do Cristianismo l nos versos do seu gmeo oriental uma oferta de hospitalidade e, lembrana da relao do semblante de Jesus na cultura crist, troca essa oferta cunhando a metfora de um sacro legado do Coro custodiado como uma imagem, como efigie acheiropoieta do semblante de Cristo, como um cone que outros tinham utilizado como talism blico e que Goethe, ao contrrio, considera prova ulterior do sua irmandade gmea com Hafez.

    Construir o amigo, sem dvida.

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  • 54 Semitica, Lingustica e Tecnologias de Linguagem

    SEMITICA COGNITIVA: FUNDAMENTOS DA CINCIA DOS SIGNOS PARA O ESTUDO DA LINGUAGEM E DA COGNIO

    COGNITIVE SEMIOTICS: FUNDAMENTALS OF SIGNS FOR THE STUDY OF LANGUAGE AND COGNITION

    Claudio Manoel de Carvalho Correia (UFAM)

    [email protected]

    Introduo

    Irei apresentar ao longo deste captulo argumentos que confirmam a ideia de que a semitica peirceana apresenta fundamentos que podem caracteriz-la como uma forma de cincia cognitiva, na medida em que seus princpios e teorias podem fornecer chaves para a compreenso e anlise do desenvolvimento da linguagem e da cognio. Os argumentos que sero apresentados nos itens deste captulo iro confirmar a minha posio de que, alm de uma cincia cujos princpios so fundamentais s cincias cognitivas, os princpios abstratos e gerais da semitica fornecem contribuies para o entendimento dos processos de gerao dos significados e das interpretaes, e apresenta nveis de relaes que descrevem a natureza lgica do signo. Em outros termos, a natureza tridica do conceito de signo desenvolvida por Peirce permite a observao dos processos de significao, representao e interpretao responsveis pela funo semitica do signo.

    No rastro das percepes, na fronteira dos sentidos: relaes entre a semitica e as cincias cognitivas

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    So muitos os princpios e teorias que direcionam a semitica para um encontro com as cincias cognitivas. A resposta para este encontro est nas relaes que podem ser estabelecidas entre alguns princpios de base da semitica peirceana, tais como: a teoria peirceana da percepo, a doutrina das categorias e a transformao dos fenmenos em signos, a gerao das interpretaes atravs dos nveis de determinao entre os elementos que compem a estrutura tridica do conceito peirceano de signo e, sobretudo, o desenvolvimento da cognio a partir da teoria do interpretante.

    Uma questo fundamental que pode ser considerada como uma sntese de todo o pensamento de Peirce e que permite, tambm, o estabelecimento de relaes entre a semitica e a as cincias cognitivas a ideia do pensamento enquanto uma corrente de signos. Para Peirce no h pensamento sem signos. O pensamento totalmente estruturado em uma corrente de signos. Como observa Santaella e Vieira (2008, p.57)

    Que todo pensamento se d em signos a famosa tese anticartesiana com que Peirce deu partida criao da semitica. Qualquer coisa, de qualquer espcie, que esteja presente mente imagem ou quase-imagem, relaes claras ou vagas entre ideias, palavras soltas ou articuladas, memria, som, afeces, emoes signo genuno ou quase-signos.

    Devemos, assim, ter a conscincia de que o pensamento constitudo de signos, e que os signos so as entidades que carregam o poder da significao. A compreenso do que o pensamento, de quais so as formas de relacionamento com a experincia dependem, principalmente, do entendimento do que o signo e de sua

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    funo semitica. Afirmo que para o entendimento do que o pensamento em uma perspectiva semitica h a necessidade inicial de compreenso do que o signo e de como ocorre a apreenso da experincia na perspectiva da doutrina das categorias. Essas teorias explicam as formas como compreendemos, geramos o conhecimento e o transformamos em signos. Entender a percepo da experincia e sua transformao em representao, em significado e conhecimento um dos objetivos principais das cincias cognitivas e, a partir de estudos realizados sobre as teorias de Peirce, posso afirmar que a semitica possui respostas para o entendimento desta questo.

    Gomila (1996, p. 1357) descreve o nascimento da Cincia Cognitiva como uma crtica s teorias de estmulo-resposta que pretendiam entender os processos de gerao dos conceitos e representaes mentais atravs de uma perspectiva comportamental:

    De hecho, puede verse la Ciencia Cognitiva como un programa cientfico comprometido con la teora representacional de la mente, surgido en parte como reaccin al predominio del conductismo en psicologa, para el que deba explicarse la conducta como funcin de los estmulos.

    As Cincias Cognitivas no possuem uma viso to estreita da capacidade humana de gerar conceitos e representaes. Seu objetivo entender as formas como o conhecimento rompe com as limitaes das percepes diretas atravs das mediaes que emergem entre os

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    estmulos e repostas, carregadas de significados oriundos das inferncias de ordem social, cultural e psicolgica.

    neste ponto que a teoria do signo desenvolvida por Peirce apresenta fundamentos para as Cincias Cognitivas. Santaella (2002, p. 9-10) afirma que a definio peirceana de signo inclui trs teorias: a da significao, da objetivao e da interpretao. Esses conceitos so capazes de explicar os mecanismos de engendramento da cognio em diferentes nveis e nuances. As interpretaes so mediadas de forma lgica pela abstrao do signo que, por sua vez, determinado pelo objeto, elemento que em outras teorias do significado foi excludo do processo de anlise da complexidade da gerao dos conceitos. Sobre a importncia do conceito peirceano de signo para as Cincias Cognitivas, Gomila (1996, p. 1358) afirma que:

    El marco conceptual de Peirce nos ayuda a entender tambin la necesidad de una teora de la determinacin del contenido (del objeto) de las representaciones mentales para la fundamentacin de la Ciencia Cognitiva. Y ofrece tambin la primera indicacin de los tipos de relacin en virtud de los cuales el R y el O de una representacin mental podran estar relacionados.

    nas relaes lgicas de determinao entre os elementos que compem o signo que se deve buscar aquilo que a Semitica de Peirce possui de fundamental para a compreenso da produo da cognio: das relaes e determinaes entre os elementos que nascem os conceitos como signos-interpretantes.

    Uma questo tambm fundamental para as pesquisas sobre o desenvolvimento da cognio a separao tradicional existente entre processos perceptuais e processos

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    conceptuais. Superando esta separao tradicional, as Cincias Cognitivas reconhecem que h formas de cognio que derivam da experincia perceptual. O que est no centro desta argumentao, como explicado por Turner (1976, p. 63), que a natureza imediata das percepes pode atuar como conexes entre aes e operaes com objetos e eventos:

    Sublinha a natureza imediata, aqui e agora, das percepes, e seu papel, na medida em que as percepes, embora no possam ser a fonte de conhecimento, pois este requer a aplicao dos esquemas operativos (...), podem, no obstante, atuar como um meio de conexo das aes e operaes com objetos e eventos: (...).

    fundamental levar em considerao tanto os aspectos perceptuais, como os conceituais em qualquer atividade cognitiva e, como prope Turner (1976, p. 63-64), apropriado considerar o desenvolvimento perceptual como necessrio componente na compreenso do desenvolvimento cognitivo. Para Turner (1976, p. 64), o pensamento de uma pessoa influenciado por sua percepo, e o que ela percebe , em maior ou menor grau, influenciado pelo que pensa.

    Em resumo, os conceitos que englobam o processo de percepo nos estudos cognitivos so indcios da forma como os conceitos emergentes da Semitica de Peirce podem servir como arcabouo para a anlise do desenvolvimento cognitivo, e o conceito peirceano de semiose descreve a forma como a percepo evolui para uma estrutura cognitiva complexa, ou seja, para a interpretao, para o signo.

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    Na transposio desses conceitos para a pesquisa emprica, ou seja, para a realidade nas anlises dos processos de desenvolvimento da cognio e da linguagem, a teoria semitica passa a descrever a natureza construtiva e evolutiva dos processos de percepo e de cognio. exatamente neste processo que se fundamenta o desenvolvimento cognitivo. Concordo com a definio de Turner (1976, p. 66) de que a percepo um processo cognitivo bsico, quer dizer, uma condio necessria ao desenvolvimento subsequente. Os elementos perceptivos esto presentes nos elementos conceituais, ou seja, elementos conceituais contm elementos perceptivos. Este processo est brilhantemente descrito nas categorias peirceanas da experincia e, tambm, na recursividade das categorias.

    As possveis relaes entre a semitica e as cincias cognitivas tm sido discutidas por alguns autores. Alguns direcionam os argumentos para as formas como a semitica poder servir no auxlio s investigaes cognitivas, na medida em que possui um arcabouo terico-metodolgico singular para a observao dos processos de significao e gerao de sentidos. Outros autores utilizam o ponto de vista semitico em anlises cujo objetivo a explicao das formas como nos relacionamos com a experincia e geramos o conhecimento. Porm, alguns autores, como nos mostra Nth (1995, p. 127) j evocaram o espectro do fim da semitica na era do cognitivismo, enquanto outros, de forma contrria, tm previsto uma revoluo cognitivista no prprio quadro da semitica.

    Sigo, neste captulo, a segunda perspectiva apresentada. Acredito que a Semitica buscar em sua prpria constituio terica as bases epistemolgicas e fenomenolgicas que permitem o estabelecimento de

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    relaes com as Cincias Cognitivas e, tambm, novas formas de anlise dos sistemas cognitivos em perspectivas semioticamente orientadas. Os princpios cognitivos inerentes aos conceitos formulados por Peirce transformar a semitica em uma cincia essencial para o estudo do desenvolvimento dos processos de linguagem e cognio. Gomila (1996, p. 1367) reconhece os conceitos peirceanos como definies fundamentais para os estudos das Cincias Cognitivas na contemporaneidade:

    Em cualquier caso, su concepcin del pensamiento como signo y su reconocimiento del carcter especfico de la significatividad y la interpretacin de los signos mentales le sitan como un valioso precedente de la Ciencia Cognitiva contempornea.

    No creio no fim da semitica em meio ao advento das Cincias Cognitivas; na verdade, acredito que, como uma cincia cujas teorias e conceitos rompem com as limitaes impostas pelas vertentes behavioristas e comportamentais nas anlises dos processos de gerao dos significados, a Semitica se apresenta como uma das cincias que podem integrar as chamadas Cincias Cognitivas, pois reconhece o signo como uma entidade mediadora nos processos de percepo da experincia. Em outros termos, a mediao simblica rompe com as limitaes em nvel de estmulo-resposta. da mxima importncia enfatizar esta questo, pois, como observou Nth (1995, p. 128), no que diz respeito histria das cincias cognitivas:

    Conforme a historiografia normal das cincias cognitivas, o paradigma cognitivo no de maneira

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    nenhuma oposto semitica, mas surgiu das cinzas do behaviorismo. Na rea da psicologia, a histria dessa cincia no nosso sculo tem at sido considerada como sequncia de s duas eras: a do behaviorismo e a do cognitivismo.

    O conceito tridico de signo desenvolvido por Peirce , realmente, inovador quando comparado com outras teorias do signo e da significao tradicionais. Diferenas fundamentais podem ser observadas quando comparamos os conceitos de signo postulados por Peirce e Saussure. importante atentarmos para essas definies, pois, o conceito saussuriano de signo influenciou as vertentes estruturalistas da semitica, como a semiologia de Barthes e a semitica de Hjelmslev. Vale ressaltar que essas vertentes estruturalistas da semitica entendem o processo de significao como uma rede de relaes binrias que instauram traos distintivos e, como consequncia, geram significados. Segundo Santaella (1996, p. 30)

    as definies peirceanas revelam um tal esmiuamento das relaes intra-signo, entre signos e no vou dizer extra-signo porque para ele o homem j um signo, que no terreno da linguagem suas descobertas equivalem fissura do tomo na fsica. Este paralelo no mera frase de efeito. Peirce realmente penetra a unidade signo e fende numa multiplicidade de partes e inter-relaes, perto das quais a clebre diviso da tradio saussuriana em significante-significado peca pela ingenuidade.

    Se prestarmos a ateno no conceito de signo desenvolvido por Saussure, encontraremos um conceito didico ou, na terminologia corrente na Lingustica, dicotmico, no qual o significado apresentado como a contraparte do significante. A natureza do signo lingustico

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    definida como uma moeda com duas faces, cujo elemento na parte oposta reclama o outro. Em outros termos, o significante reclama o significado no conceito saussuriano de signo.

    Em seu Curso de Lingustica Geral, Saussure (1972, p. 80) afirma que

    o signo lingustico , pois, uma entidade psquica de duas faces, que pode ser representada pela figura: (...)Esses dois elementos esto intimamente unidos e um reclama o outro.

    Mattoso Camara (1975, p. 106) explica melhor o conceito saussuriano de signo lingustico:

    Saussure props esta ideia distinguindo, de um lado, o que ele chamou de (lesignifiant) e de outro, de (lesignifi). Uma forma fontica, ou significante, relaciona-se a um conceito ou feixe de ideias, o significado, e desta relao resulta a forma lingustica.

    O significado , nesta perspectiva, determinado por relaes de base inerentes ao prprio sistema lingustico e definido em relaes paradigmticas. Se o significado entendido como o resultado de uma rede de oposies inerentes ao sistema, qualquer discusso sobre o objeto e sobre o sujeito cognoscente na gerao dos significados totalmente excluda.

    De forma revolucionria, a teoria geral do signo desenvolvida por Peirce est baseada na relao entre os trs elementos que compem o signo, sendo estes elementos (ou

  • 63 Darcilia Simes (Org.)

    correlatos) os constituintes responsveis pela atividade e funo semitica do signo: o objeto, o fundamento (ou representmen) e a cognio produzida na mente do intrprete. A cognio , nesta perspectiva, um constituinte da semiose, enquanto que em outras vertentes estruturalistas da semitica a cognio definida por traos distintivos em oposies paradigmticas. A partir dessas observaes, posso afirmar que a teoria peirceana do signo um legado para o entendimento dos processos de representao e de interpretao para as Cincias Cognitivas. No pensamento de Peirce a cognio parte do processo infinito de gerao dos significados. Nth (1995, p. 130) explica as formas como atravs das categorias fenomenolgicas de Peirce a cognio pode ser entendida:

    Na filosofia de Peirce, a trade tradicional da mente corresponde s suas trs categorias de primeiridade, secundidade e terceiridade. O sentimento pertence primeiridade, a categoria do imediato e das qualidades ainda no diferenciadas. A volio pertence secundidade, categoria da interao didica entre o eu e o outro (um primeiro e um segundo). A cognio pertence terceiridade, categoria da comunicao, da representao entre um segundo e um primeiro (CP 5.66)

    E, em uma definio que est totalmente de acordo com as discusses que esto sendo apresentadas neste captulo, Nth (1995, p. 131) conclui que a cognio

    um elemento constitutivo no processo do signo tridico ou semiose, tal como Peirce (CP 5.484) define o processo em que o signo tem um efeito cognitivo no seu intrprete. Mas a semiose no pode ser reduzida cognio. Ela pressupe a percepo, um processo tridico gerado na conscincia do observador a partir

  • 64 Semitica, Lingustica e Tecnologias de Linguagem

    de um nvel de sentimento imediato ainda indiferenciado, no qual ele meramente a qualidade de um signo mental (Peirce, CP 5.291).

    Diversas relaes entre a semitica de Peirce e as Cincias Cognitivas podem ser estabelecidas. Como apresentei em pargrafos anteriores, uma das relaes mais relevantes est no prprio conceito tridico de signo que explica a produo e o desenvolvimento da cognio a partir da teoria do interpretante, alm do prprio conceito de semiose como um processo evolutivo, cuja origem se encontra na percepo, que evolui para um nvel simblico superior caracterizado pela cognio, mediao e interpretao. Assim, defendo a importncia dos estudos da semitica de extrao peirceana para o estudo do desenvolvimento da cognio e da linguagem.

    Porm, para o desenvolvimento de uma semitica de extrao peirceana aplicada cognio, venho ao longo de diversos trabalhos (Cf. Fernandes; Correia, 2011; Correia, 2009; Correia, 2009a; Correia, 2001) apontando para um dilogo entre os pensamentos de Peirce e do psiclogo russo Lev. S Vygotsky. O estudioso realmente apresenta em suas teorias vrios pontos de convergncia com a semitica de Peirce permitindo, assim, um dilogo entre as teorias desses dois autores, principalmente com sua teoria da mediao, da internalizao e sua viso dinmica e evolutiva da gerao dos conceitos; forma como Vygotsky intitula em seus trabalhos os fenmenos de interpretao e significao.

  • 65 Darcilia Simes (Org.)

    Teorias dos signos e das mediaes: a relevncia do pensamento de Peirce e Vygotsky para as cincias da linguagem e da cognio

    Tenho como objetivo neste captulo estabelecer algumas conexes entre as teorias da Semitica com as Cincias Cognitivas, com vistas a demonstrar a importncia dos princpios desenvolvidos por Peirce para os estudos da cognio e, tambm, para o desenvolvimento de um arcabouo terico-metodolgico que auxilie a anlise do desenvolvimento lingustico e cognitivo em uma perspectiva semioticamente orientada. Ao longo deste captulo venho apresentando vrios argumentos que confirmam a minha posio de que a Semitica de Peirce se apresenta como uma forma especfica de cincia cognitiva, singular em sua viso de signo e de representao, perspectivas que respondem as indagaes centrais das pesquisas no campo das cincias cognitivas. Destaco as Categorias da Experincia e a teoria do Interpretante como princpios que permitem o desenvolvimento de dilogos consistentes entre a Semitica e as Cincias Cognitivas.

    Mas, um dos objetivos deste captulo , tambm, pensar uma semitica de extrao peirceana aplicada cognio, com o objetivo de analisar os processos cognitivos e lingusticos a partir dos fundamentos da Semitica. Como os princpios da lgica-semitica de Peirce possuem um altssimo nvel de abstrao e de generalizao que permitem o dilogo com outras reas do conhecimento, no tenho dvidas de que Lev. S. Vygotsky, com suas teorias do campo da Psicologia Cognitiva, um pensador que apresenta pontos importantes de convergncia com o pensamento de Peirce; pontos que permitem pensar no desenvolvimento de uma semitica de extrao peirceana aplicada ao estudo da cognio.

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    Existem trs ideias que constituem o centro de todo o pensamento de Vygotsky: (1) as funes psicolgicas tm seu suporte biolgico, pois so produtos da atividade cerebral; (2) o funcionamento psicolgico fundamenta-se nas relaes sociais entre o indivduo e o mundo exterior, desenvolvendo-se em um processo scio-histrico; (3) a relao homem/mundo uma relao mediada por sistemas simblicos.

    Destas trs ideias centrais, considero uma de fundamental importncia para os argumentos que esto sendo desenvolvidos especificamente neste captulo: a relao mediada por sistemas simblicos. A importncia desta ideia central neste captulo est no fato de apontar para uma questo que considero primordial para os fundamentos de uma semitica de extrao peirceana aplicada cognio: o conceito desenvolvido por Vygotsky de que toda a relao entre o homem e o universo da experincia mediada por signos. Esta ideia central inicia as relaes entre a Psicologia Cognitiva de Vygotsky com as teorias da Semitica de Charles Sanders Peirce. No campo das pesquisas relacionadas com a linguagem e suas relaes com a cognio, inegvel a importncia de um dilogo entre esses dois pensadores, na medida em que as linguagens so sistemas semiticos que representam a cognio.

    Estudos sobre o desenvolvimento cognitivo e lingustico em uma perspectiva semioticamente orientada permitem adentrar nveis profundos de gerao e funcionamento dos signos, e nveis superficiais de descrio do desenvolvimento gradativo da linguagem e da cognio. A

  • 67 Darcilia Simes (Org.)

    teoria da semiose uma noo chave para a anlise do desenvolvimento dos signos. No tenho dvidas de que o estudo do desenvolvimento cognitivo em uma perspectiva baseada nas teorias semiticas ir trazer grandes contribuies para os pesquisadores da rea da cognio, e para a observao das relaes e inter-relaes entre a linguagem e os signos.

    Existe uma relao de interdependncia entre a linguagem verbal e o pensamento, e, neste captulo, sigo com o ponto de vista apresentado por Vygotsky em seu clebre livro Pensamento e Linguagem (1989) no qual afirma que o estudo da lngua, e dos conceitos oriundos dos signos lingusticos fundamental par