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. . . . . . . . . . Luís Nuno Rodrigues 1 A Revolução Americana (1763-1787) Comunicação apresentada ao XII Curso de Verão do Instituto de História Contemporânea da FCSH da Universidade Nova de Lisboa, «As Revoluções Contemporâneas», Lisboa, Setembro de 2002. Introdução A Revolução norte-americana do final do século XVIII tem sido um dos eventos históricos que mais interpretações e leituras tem suscitado. Os acontecimentos que acabaram por conduzir à declaração de independência dos Estados Unidos da América, em 1776, e à elaboração da sua Constituição, em 1787, têm sido alvo de entendimentos diversos, desde as interpretações de cariz económico e social até às que procuram traçar as suas origens ideológicas e salientar o carácter "revolucionário" da "constelação" de ideias que determinou o rumo dos acontecimentos nas colónias britânicas da costa leste do continente norte-americano. Neste texto adopta-se uma perspectiva essencialmente narrativa do fenómeno, com o objectivo de reconstituir o filme cronológico dos acontecimentos e de salientar os momentos fundamentais ao longo do processo. Simultaneamente, procura-se proceder ao necessário enquadramento internacional dos acontecimentos relatados entrando, por esta via, no campo da história diplomática e das relações internacionais. Num primeiro momento, a que se chamou "Resistência e Revolta", dar-se-á conta de uma questão essencial que importa entender para poder apreender a 1 Departamento de História e CEHCP do ISCTE

Revolucao Americana

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    Lus Nuno Rodrigues 1 A Revoluo Americana (1763-1787) Comunicao apresentada ao XII Curso de Vero do Instituto de Histria Contempornea da FCSH da Universidade Nova de Lisboa, As Revolues Contemporneas, Lisboa, Setembro de 2002.

    Introduo

    A Revoluo norte-americana do final do sculo XVIII tem sido um dos

    eventos histricos que mais interpretaes e leituras tem suscitado. Os

    acontecimentos que acabaram por conduzir declarao de independncia

    dos Estados Unidos da Amrica, em 1776, e elaborao da sua Constituio,

    em 1787, tm sido alvo de entendimentos diversos, desde as interpretaes

    de cariz econmico e social at s que procuram traar as suas origens

    ideolgicas e salientar o carcter "revolucionrio" da "constelao" de ideias

    que determinou o rumo dos acontecimentos nas colnias britnicas da costa

    leste do continente norte-americano.

    Neste texto adopta-se uma perspectiva essencialmente narrativa do

    fenmeno, com o objectivo de reconstituir o filme cronolgico dos

    acontecimentos e de salientar os momentos fundamentais ao longo do

    processo. Simultaneamente, procura-se proceder ao necessrio

    enquadramento internacional dos acontecimentos relatados entrando, por

    esta via, no campo da histria diplomtica e das relaes internacionais.

    Num primeiro momento, a que se chamou "Resistncia e Revolta", dar-se-

    conta de uma questo essencial que importa entender para poder apreender a

    1 Departamento de Histria e CEHCP do ISCTE

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    Revoluo Americana em todo o seu significado: que a Revoluo Americana

    foi, na sua origem, um movimento de resistncia e de revolta contra o domnio

    britnico, mais concretamente contra a forma como esse mesmo domnio foi

    exercido nas colnias norte-americanas no perodo que se seguiu Guerra dos

    Sete Anos, terminada em 1763. Num segundo momento, estar em foco a

    guerra da independncia das colnias norte-americanas, iniciada em 1775, no

    tanto para salientar os seus aspectos militares, mas os seus aspectos

    diplomticos e sobretudo o modo como os resultados finais deste conflito

    proporcionaram nova nao tornada independente a posse de uma extenso

    territorial muito alm da que tinha sido conquistada no terreno. Por fim, ser

    abordada outra das facetas mais "revolucionrias" de todo este processo que

    ficou conhecido como a Revoluo Americana: a construo da nova nao e

    em particular do seu edifcio constitucional.

    Ou seja, na impossibilidade de proceder aqui a uma "histria total" da

    Revoluo Americana, adopta-se a perspectiva de que esta foi, primeiro que

    tudo, um processo de emancipao poltica ou de auto-determinao em

    relao ao domnio colonial britnico; foi, depois, um evento militar, uma

    guerra, cuja dimenso, quer militar, quer diplomtica, urge no desprezar,

    uma vez que, como se ver, veio a assumir uma feio decisiva em momentos

    determinantes deste processo; foi, por fim, uma verdadeira revoluo poltica

    que implantou um novo tipo de governo e de modelo poltico, consubstanciado

    na Constituio de 1787.

    1. Resistncia e Revolta

    Na sua origem, a Revoluo Americana foi, como se referiu atrs, um

    movimento de resistncia e de revolta contra o domnio britnico, mais

    concretamente contra a forma como esse mesmo domnio foi exercido nas

    colnias norte-americanas no perodo que se seguiu Guerra dos Sete Anos e

    ao triunfo da Inglaterra sobre a Frana, cuja presena no continente

    americano se tornou ento praticamente inexistente. A Frana foi obrigada,

    pelo Tratado de Paris de 1763, a ceder vastas pores dos territrios que

    controlava nesse continente Inglaterra nomeadamente o Canad e toda a

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    regio do vale do Rio Ohio que se torna assim a potncia dominante na

    Amrica do Norte, adquirindo inclusivamente a Florida, que anteriormente

    pertencia Espanha2. Espanha que, em compensao, acabou tambm por

    receber vastos territrios outrora na posse dos franceses a chamada

    Louisiana. Por conseguinte, a Inglaterra tornara-se a potncia europeia com

    domnio incontestvel no continente norte-americano e constituira-se no

    "maior e mais rico imprio desde a queda de Roma", estendendo-se desde a

    ndia at ao Rio Mississippi3.

    Em grande parte como consequncia do resultado da Guerra dos Sete

    Anos, ocorreu na faixa oriental do continente norte-americano, onde os

    colonos britnicos se iam instalando, um triplo fenmeno que necessrio

    salientar: crescimento demogrfico, expanso territorial e desenvolvimento

    econmico. Eram realidades que se podiam j verificar no perodo anterior

    Guerra dos Sete Anos mas que, a partir de 1763, ganham nova acuidade.

    Em termos demogrficos, note-se que os colonos norte-americanos se

    multiplicavam nesta altura muito mais rapidamente do que qualquer outro povo

    no hemisfrio ocidental. Entre 1750 e 1770 os habitantes das colnias

    britnicas duplicaram, de um para dois milhes, tornando-se uma componente

    do imprio britnico cada vez mais importante. Para as colnias britnicas na

    Amrica emigravam cada vez mais sbditos de Sua Magestade. A emigrao

    de protestantes irlandeses e escoceses, que tinha comeado no incio do

    sculo, aumentou muito significativamente aps a guerra dos sete anos. S

    entre 1764 e 1776 calcula-se que 125 mil pessoas tero partido das ilhas

    britnicas para as colnias americanas. Assim, no incio do sculo XVIII, a

    populao americana representava apenas um vigsimo da populao britnica

    e irlandesa tomadas em conjunto, enquanto que, em 1770, representava j um

    quinto. Colonos britnicos como Benjamin Franklin previam j que, mais tarde

    ou mais cedo, a Amrica acabaria por tornar-se no prprio centro do imprio

    britnico4.

    2 "The definitive Treaty of Peace and Friendship between his Britannick Majesty, the Most Christian King, and the King of Spain. Concluded at Paris the 10th day of February, 1763. To which the King of Portugal acceded on the same day", em http://www.yale.edu/lawweb/avalon/paris763.htm. 3 Gordon Wood, The American Revolution. A History, Modern Library Edition, New York, 2002, p. 4. 4 Gordon Wood, The American Revolution. A History, p. 6.

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    Por outro lado, a vitria sobre os franceses na Guerra dos Sete Anos

    permitia agora uma movimentao muito mais acentuada desta populao

    crescente, alargando as possibilidades de expanso territorial em direco a

    Oeste. Durante mais de um sculo, os colonos britnicos tinham estado

    confinados a uma estreita faixa de terreno ao longo da costa atlntica do

    continente americano. Agora, pela primeira vez, os territrios a Oeste das

    Montanhas Alleghenies at ao Rio Mississipi, pertena da coroa britnica,

    abriam-se explorao e ocupao por parte de colonos, j sem a presena

    francesa e tambm com uma atitude mais cautelosa por parte das tribos

    ndias. A ttulo de exemplo: no Estado da Pennsylvania foram criadas 29

    novas localidades entre 1756 e 1765, mais nestes anos do que em toda a

    histria da colnia. Um pouco por toda a parte, novas fronteiras pareciam

    abrir-se aos colonos norte-americanos. Caadores e exploradores ganharam

    fama nesta poca, como Daniel Boone que comeou a abrir caminhos e trilhos

    atravs dos montes apalaches em direco ao Oeste, rapidamente seguidos

    por colonos que se foram instalando em zonas anteriormente no ocupadas5.

    Tudo isto encontrou correspondncia numa notvel expanso da economia

    anglo-americana registada na segunda metade do sculo XVIII. Em meados

    deste sculo, na Gr-Bretanha, as origens daquilo que se tornaria em breve a

    revoluo industrial britnica eram j visveis. As exportaes, importaes e

    a produo industrial estavam em rpido crescimento e os americanos

    estavam profundamente envolvidos neste processo, prosperando tambm, na

    dcada de 1760, como nunca antes se tinha registado. Desde 1745, alis, que

    o comrcio colonial com a Amrica tinha conhecido grande crescimento,

    tornando-se uma parte importante das economias inglesa e escocesa. Quase

    metade dos navios mercantes ingleses estavam envolvidos no comrcio

    americano que absorvia j 25% de todas as exportaes inglesas. De acordo

    com dados citados pelo historiador Gordon Wood, entre 1747 a 1765, o valor

    das exportaes coloniais para a Gr-Bretanha tambm duplicou de cerca de

    700 mil libras para 1 milho e meio, enquanto que as importaes aumentaram

    de 900 mil para mais de dois milhes de libras6. Os americanos exportavam

    para a Gr-Bretanha quantidades crescentes de cereais, cuja procura no

    5 Gordon Wood, The American Revolution. A History, pp. 7-8. 6 Gordon Wood, The American Revolution. A History, p. 13.

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    velho continente significava um aumento de preos para os exportadores

    americanos. Constatando o crescimento da procura e dos preos das

    exportaes americanas, mais e mais proprietrios americanos comearam a

    apostar nos produtos agrcolas para os mercados europeus. Na dcada de

    1760, cidades comerciais relativamente distantes da costa, tais como

    Staunton, na Vrginia e Salisbury, na Carolina do Norte, enviavam j grandes

    quantidades de tabaco e de cereais em direco a Leste para portos como os

    de Baltimore, Norfolk e de Alexandria cuja dimenso se multiplicava quase

    diariamente. Este aumento dos preos das exportaes significou uma

    melhoria dos nveis de vida de mais americanos. No eram apenas os grandes

    plantadores do sul e os grandes mercadores das cidades que tinham

    enriquecido. Cada vez mais americanos compravam agora produtos

    tradicionalmente considerados de luxo e tradicionalmente adquiridos apenas

    pela gentry ou pequena aristocracia local, e que agora cada vez mais se

    tornavam produtos utilitrios e de consumo generalizado, desde o linho

    irlands at s louas de cozinha. Alguns historiadores chegaram mesmo a

    falar numa verdadeira "revoluo do consumo" na Amrica do sculo XVIII7.

    Apesar de dezanove em cada vinte americanos se continuarem a dedicar

    agricultura, o aumento dos nveis de consumo nas colnias tinha j produzido

    um significativo surto das actividades manufactureiras, primeiramente

    sobretudo txteis e sapatos. Ao mesmo tempo, os transportes e as

    comunicaes melhoraram muito rapidamente, medida que as estradas

    foram sendo construdas e que se estabeleceram horrios regulares para as

    carruagens e para os barcos. Em 1750, o Post Office, sob a liderana de

    Benjamin Franklin, instituiu correio semanal entre Filadlfia e Boston,

    reduzindo para metade o tempo gasto nas entregas. Apesar de tudo, porm, a

    maioria dos americanos continuava a preferir produtos britnicos e a balana

    comercial entre os dois lados do Atlntico continuava a ser desfavorvel aos

    americanos. Tanto mais que ingleses e escoceses continuavam tambm a

    investir quantidades apreciveis de capital em solo americano. Em 1760, as

    dvidas coloniais para com a Gr-Bretanha totalizavam j 2 milhes de libras;

    em 1772 tinham saltado para 4 milhes8.

    7 Gordon Wood, The American Revolution. A History, p. 14. 8 Gordon Wood, The American Revolution. A History, pp. 14-15.

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    Por tudo isto, aps a Paz de Paris de 1763, que ps termo a Guerra dos

    Sete Anos, a questo da reforma do imprio britnico na Amrica do Norte

    colocou-se com uma acuidade inusitada. Um dos problemas mais prementes

    era o da reorganizao do territrio que tinha sido conquistado Frana e

    Espanha na sequncia da Guerra. Era necessrio estabelecer novas

    autoridades, delimitar fronteiras, regular o comrcio com as tribos nativas e,

    sobretudo, fazer com que as disputas entre estas e os colonizadores

    americanos no se transformassem numa verdadeira guerra.

    Todas estas tarefas se afiguravam extremamente dispendiosas. No final

    da Guerra dos Sete Anos, a dvida de guerra da coroa britnica era de 137

    milhes de libras, com um juro anual de 5 milhes, uma quantia imensa quando

    comparada com o oramento mdio em tempo de paz de 8 milhes de libras.

    Lord Jeffrey Amherst, o comandante das foras britnicas na Amrica,

    julgava ser ainda necessria uma fora permanente de 10 mil soldados para

    conseguir manter a paz com os franceses e os ndios, bem como para lidar

    com as populaes locais, cada vez mais desafiantes das autoridades coloniais.

    Por conseguinte, nesta dcada de 1760, o governo britnico acabou por tomar

    uma deciso crucial que foi a da manuteno de um exrcito britnico

    permanente em solo americano. Este exrcito em tempo de paz tinha uma

    dimenso duas vezes maior daquele que existira nas colnias antes da Guerra

    dos Sete Anos e os custos da sua manuteno ascenderam rapidamente a

    mais de 300 mil libras por ano9.

    Na sua busca de recursos financeiros para fazer face a estas novas

    despesas, a Coroa britnica deparou-se com dificuldades. Na Gr-Bretanha a

    populao recusava-se a pagar mais impostos e a chamada "cider tax" de 1763

    s tinha sido posta em vigor, na Inglaterra, com recurso fora militar. Por

    outro lado, o regresso dos soldados britnicos sua terra-me fazia com que

    abundassem as histrias cerca da riqueza e da prosperidade que os

    americanos usufruam no ps-guerra. Parecia, por conseguinte, bvio, aos

    olhos dos governantes britnicos, procurar novas fontes de rendimento nas

    colnias para fazer face a estas novas despesas, o que implicava profundas

    alteraes no sistema imperial britnico.

    9 Gordon Wood, The American Revolution. A History, pp. 17-18.

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    As reformas iniciaram-se com a "Proclamation of 1763". Esta

    determinao rgia criava trs novas instncias governamentais na Amrica

    Florida, Florida Ocidental e Quebec e alargava a provncia da Nova Esccia.

    Transformava tambm a vasta rea para alm dos Montes Apalaches numa

    reserva ndia, probindo os colonos de comprar terras ndias. O objectivo

    essencial era o de manter a paz no Oeste e canalizar a migrao da populao

    para norte e para sul. Assim, as populaes estariam melhor integradas no

    sistema britnico e no sistema colonial e poderiam funcionar como

    verdadeiros "buffers" em relao aos espanhis na Louisiana e aos franceses

    no Canad10.

    No entanto, os acontecimentos acabaram por pr em causa estes planos

    da coroa britnica. A revolta dos ndios liderados por Pontiac em 1763, no

    vale do Ohio, fez com que a Proclamao de 1763 fosse implementada de

    forma apressada. A linha de demarcao ao longo dos Apalaches foi traada

    com pouco rigor e alguns dos colonos viram-se, de um dia para o outro, a viver

    em reservas ndias. As novas regulamentaes do comrcio com as tribos

    nativas eram tambm confusas e na prtica foram ignoradas. Muitos

    americanos, interessados nas terras a Oeste, pressionavam o governo

    britnico para que este entabulasse conversaes com os ndios a fim de

    possibilitar a expanso territorial para Ocidente. Os protestos aumentaram

    ainda mais quando, alguns anos depois, o governo britnico promulgou o

    "Quebec Act", de 1774. Esta lei transferia para a provncia do Quebec o

    territrio compreendido entre os Rios Ohio e Mississippi, bem como o

    controlo do comrcio com os ndios na regio. Ao mesmo tempo, autorizava os

    habitantes franceses do Quebec a manterem a religio catlica e a regerem-

    se segundo as leis francesas11. A desconfiana entre os americanos aumentou:

    especuladores imobilirios, colonizadores, comerciantes viram os seus

    interesses feridos por esta nova medida; a alterao das fronteiras entre as

    vrias provncias coloniais tambm gerou descontentamento e incertezas; os

    10 "The Royal Proclamation October 7, 1763", em http://www.yale.edu/lawweb/avalon/proc1763.htm. Cf. tambm Gordon Wood, The American Revolution. A History, pp. 21-22. 11 "The Quebec Act, 1774 (Extract)", em http://www.geocities.com/Yosemite/Rapids/3330/constitution/1774qact.htm.

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    protestantes americanos recearam igualmente que os britnicos apostassem

    na criao e desenvolvimento de uma provncia catlica a Noroeste12.

    As modificaes que os britnicos procuraram introduzir na estrutura do

    comrcio colonial revelaram-se igualmente prejudiciais para os interesses dos

    colonos americanos. O "Sugar Act" de 1764 estabelecia uma srie de

    regulamentaes destinadas a um controlo mais efectivo do comrcio colonial

    por parte das autoridades britnicas, conferindo novos poderes aos

    funcionrios aduaneiros e autorizando a marinha britnica a inspeccionar os

    navios americanos. tradicional lista de produtos coloniais que tinham de ser

    exportados directamente para a Gr-Bretanha, como o tabaco e o acar,

    foram acrescentados o ferro, a madeira e outros. Finalmente, os

    comerciantes e navegadores americanos viram-se enredados numa complexa

    teia burocrtica de autorizaes de navegao, licenas de comrcio, etc. O

    mais gravoso era, porm, a imposio de novos direitos alfandegrios que

    aumentavam em muito as despesas dos importadores norte-americanos. O

    Sugar Act imps novos tributos sobre o acar, o caf, as roupas e o vinho

    importados pelas colnias13.

    Depois, em 1765, o governo britnico promulgou o "Stamp Act", impondo o

    uso do papel selado e novos impostos sobre os jornais americanos bem como

    sobre o correio14. Em 1766, atravs do "Declaratory Act", o parlamento

    britnico reafirmou o seu poder e a sua autoridade sobre os colnias

    americanas em "todas as matrias"15. No ano seguinte, foi a vez dos

    "Townshend Acts", um conjunto de trs leis francamente desagradveis para

    as colnias americanas. Uma delas obrigava as autoridades coloniais de Nova

    Iorque a no desenvolverem qualquer tipo de actividade comercial at

    abastecerem os soldados britnicos estacionados naquela colnia. Outra

    criava um corpo de oficias britnicos no porto de Boston para supervisionar a

    aplicao e o cumprimento das leis britnicas. Finalmente uma terceira lei

    12 Gordon Wood, The American Revolution. A History, pp. 22-23. 13 "Sugar Act, 1764 (excerpts)", em http://courses.smsu.edu/ftm922f/Documents/SugarAct.htm. Cf. tambm Gordon Wood, The American Revolution. A History, p. 23. 14 "The Stamp Act, British Parliament 1765", em http://ahp.gatech.edu/stamp_act_bp_1765.html. 15 "The Declaratory Act, March 18, 1766", em http://www.constitution.org/bcp/decl_act.htm.

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    criava novos impostos sobre produtos importados pelas colnias,

    nomeadamente vidro, chumbo, tinta, papel, ch16;

    Em suma, as colnias norte-americanas estavam agora sujeitas a uma

    ocupao militar permanente, a mais impostos e a limitaes na sua liberdade

    de comrcio e tambm na sua expanso territorial. Foi neste contexto que se

    iniciou o movimento de resistncia e de revolta contra a poltica britnica. Em

    1770 ocorre, em Boston, uma primeira revolta contra os soldados ingleses

    estacionados na cidade. Trs anos depois a situao tornar-se-ia explosiva,

    sobretudo quando o governo britnico decidiu atribuir o monoplio do

    comrcio de ch na Amrica do Norte Companhia Inglesa das ndias

    Orientais. Os colonos americanos revoltam-se contra este "Tea Act" de 1773,

    no movimento que ficou conhecido como a "Boston Tea-Party"17. Colonos

    americanos disfarados de ndios, liderados por Samuel Adams, lanaram ao

    mar a carga de trs navios ingleses. Os ingleses, por seu turno, responderam

    com os "Intolerable Acts" (assim chamados pelos prprios colonos) de 1774.

    Isto , em vez de cederem s pretenses coloniais e negociarem com os

    americanos, os britnicos vo: ordenar que as autoridades coloniais e as suas

    assembleias legislativas sejam fechadas e que no se processem mais

    reunies at os representantes da Coroa darem permisso; implementar o

    "Boston Port Act" que determinou o encerramento daquele porto a qualquer

    navio mercante, cortando assim todo o seu comrcio martimo18; proibir o

    povo da colnia de Massachusetts de organizar reunies sem o consentimento

    do governador da colnia.

    A resposta dos americanos a estas medidas britnicas foi a realizao em

    Setembro de 1774 do primeiro Congresso Continental, em Filadlfia, com

    representantes de todas as colnias americanas, excepo da Gergia. O

    Congresso aprovou uma declarao dos direitos dos colonos e dos abusos de

    que eles tinham vindo a ser vtimas por parte dos ingleses. Esta declarao

    anunciava j que apenas os colonos e as suas instncias governativas locais

    tinham poder para estabelecer impostos sobre si prprios e para fazer leis

    para o seu prprio governo. Os colonos deviam ter o direito de se reunir

    16 Ver, por exemplo, "The T ownshend Revenue Act" de 1767 em http://www.ushistory.org/declaration/relateds/townshend.htm. 17 "The Tea Act, British Parliament 1773" em http://ahp.gatech.edu/tea_act_bp_1773.html. 18 "Boston Port Act" em http://www.ushistory.org/declaration/relateds/bpb.htm.

  • 10

    pacificamente, o direito de enviar peties e protestos ao governo ingls, o

    direito de viverem sem a presena de um exrcito ingls permanente em

    tempo de paz. Mais ainda, os delegados decidiram impor um boicote aos

    produtos ingleses e no importar ou consumir bens e produtos ingleses at

    que os "Intolerable Acts" fossem revogados19.

    2. Guerra e Paz

    Os confrontos militares entre as tropas inglesas e os colonos britnicos

    iniciaram-se em Abril de 1775, com a batalha de Lexington. Era o comeo da

    Guerra da Independncia contra a Inglaterra que duraria at 1782. Nesse

    mesmo ano de 1775 reuniu-se em sesso contnua o segundo Congresso

    Continental que, em Abril de 1776, decidiu abrir os portos norte-americanos

    ao mundo e a 4 de Julho de 1776 proclamou a independncia dos Estados

    Unidos da Amrica.

    Na Guerra da Independncia desempenhou um papel de relevo a poltica

    externa das colnias norte-americanas, nomeadamente as relaes

    estabelecidas com a Frana e o apoio recebido deste pas europeu. Pode

    talvez afirmar-se que os Estados Unidos nunca se teriam tornado

    independentes, pelo menos naquele perodo, se no tivessem recebido o

    auxlio dos franceses. Por muito que os lideres coloniais se quisessem isolar

    dos acontecimentos no continente europeu das guerras e das manobras

    diplomticas das cortes europeias a verdade que certas decises tomadas

    na Europa acabaram por se revelar fundamentais na obteno da

    independncia20.

    Os interesses da Frana na aproximao s colnias britnicas eram

    evidentes. Para alm da dimenso econmica e comercial desta aproximao,

    necessrio entend-la luz da rivalidade franco-britnica e da humilhante

    derrota que os franceses haviam sofrido em 1763. As elites coloniais

    americanas estavam bem ao corrente desta rivalidade e procuraram utiliz-la

    19 "Declaration and Resolves of the First Continental Congress", em http://www.yale.edu/lawweb/avalon/resolves.htm.

  • 11

    a seu favor a fim de conseguir da Frana o dinheiro e as armas necessrios

    conduo da Guerra da Independncia. Deste modo, logo em Setembro de

    1776, o Congresso decidiu nomear uma comisso especial de enviados a

    Frana com instrues precisas no sentido de obter ajuda militar e financeira

    e de sondar o governo francs quanto possibilidade de estabelecer uma

    aliana formal. Os enviados americanos, liderados por Benjamin Franklin,

    chegaram a Frana em Dezembro de 1776, levando consigo uma verso do

    chamado "Model Treaty", aprovado pelo Congresso para servir de modelo no

    s para a assinatura de um tratado com os franceses, mas tambm para

    futuros tratados a assinar com outros pases21. Na verdade, para alm da

    Frana, os Estados Unidos desdobravam-se tambm em contactos com a

    Espanha e com a Holanda em busca de mais alianas e de mais dinheiro para

    poderem continuar a sua Guerra de Independncia.

    Em Paris, Benjamin Franklin, na altura com setenta anos, desenvolveu

    intensa actividade diplomtica. No Vero de 1776, os britnicos tinham

    obtido alguns sucessos militares, nomeadamente junto da zona de Nova

    Iorque, o que tornou os franceses mais cautelosos em relao a qualquer

    envolvimento oficial, apesar do apoio privado ou clandestino que, vindo de

    Frana, chegava regularmente Amrica, com conhecimento do prprio

    governo francs. S que o reconhecimento oficial dos Estados Unidos por

    parte da coroa francesa implicaria de imediato o estado de guerra com a

    Inglaterra, pelo que os franceses hesitaram durante algum tempo. Em

    Outubro de 1777, os Estados Unidos conseguem uma importante vitria

    militar em Saratoga, facto que levou a coroa inglesa a procurar pela primeira

    vez negociar com os insurgentes. Franklin no hesitou em usar este facto

    como um "trunfo" diplomtico em Paris. No interessava aos franceses que os

    americanos, afinal de contas, chegassem a um entendimento bilateral com a

    Inglaterra22.

    20 Sobre a diplomacia norte-americana e em especial as relaes com a Frana veja-se o clssico Thomas A. Bailey, A Diplomatic History of the American People, Appleton-Century-Crofts, Inc., New York, 1950, especialmente o captulo "The Diplomacy of the French Alliance, 1775-1778", pp. 8-22. 21 "Journal of Congress. Tuesday, September 17, 1776", em http://www.yale.edu/lawweb/avalon/diplomacy/france/fr1778p.htm. 22 Thomas G. Paterson (ed.), American Foreign Relations. A History to 1920, Lexington, Massachusetts, D.C. Heath and Company, 1995, p. 14.

  • 12

    No ano seguinte, em Fevereiro, os Estados Unidos e a Frana chegam a

    acordo para a celebrao de dois tratados: um tratado de comrcio e

    amizade, centrado sobretudo nas relaes econmicas entre os dois pases,

    atravs do qual o Estados Unidos obtm privilgio de "nao-mais-

    favorecida"; um tratado de aliana entre os dois pases que marcava

    oficialmente a entrada dos franceses na Guerra da Independncia americana.

    Atravs deste tratado, os Estados Unidos tal como a Frana

    comprometiam-se a no assinar uma paz separada com a Inglaterra, sem

    obter primeiramente o consentimento do seu aliado. Apesar da oposio dos

    franceses, Franklin conseguiu manter no texto do tratado uma clusula que

    proibia os ganhos territoriais da Frana no continente norte-americano. No

    entanto, os Estados Unidos concordavam em reconhecer futuras conquistas

    francesas na regio do Caribe e em garantir a permanncia das possesses

    francesas j existentes. No artigo segundo do tratado podia ler-se: "o fim

    essencial e directo da presente aliana defensiva a manuteno efectiva da

    liberdade, soberania e independncia absoluta e ilimitada dos ditos Estados

    Unidos, tanto em matrias de governo como em matrias de comrcio". Os

    franceses tambm garantiam, para o futuro, o respeito pelas actuais

    "possesses" americanas bem como por futuras "adies ou conquistas que a

    sua Confederao possa obter durante a Guerra, de qualquer dos domnios

    presentemente na posse da Gr-Bretanha"23.

    Com a Espanha, as negociaes americanas foram tambm difceis. Apesar

    do relacionamento estreito entre a Frana e a Espanha, o governo de Carlos

    III no teve grande pressa em levantar armas contra a Inglaterra,

    especialmente porque um dos grandes objectivos territoriais dos espanhis

    era o domnio sobre Gibraltar. Por outro lado, devido ao seu extensssimo

    imprio colonial, a Espanha estava bastante mais relutante do que a Frana

    em fomentar a ecloso de revolues e de independncias de territrios

    coloniais. No s a emancipao colonial se podia revelar uma "doena" de

    contgio fcil, como a existncia de uma poderosa repblica americana

    poderia ameaar as prprias possesses espanholas, a sul. S pelo Tratado de

    Aranjuez, assinado a 12 de Abril de 1779, a Espanha aceitou entrar em

    23 Cf. Thomas G. Paterson (ed.), American Foreign Relations. A History to 1920, p. 14. Textos dos tratados em http://www.yale.edu/lawweb/avalon/diplomacy/france/fr1778m.htm

  • 13

    guerra com a Inglaterra e, mesmo assim, a sua aliana era com a Frana e no

    directamente com os Estados Unidos. A Frana teve de se comprometer a

    continuar a luta contra os ingleses at que Gilbraltar fosse conquistado. Em

    Setembro de 1779, o Congresso norte-americano enviou o diplomata John Jay

    a Madrid com o objectivo de assinar uma aliana formal com a Espanha, mas

    os seus esforos no obtiveram qualquer xito24.

    No entanto, a aliana franco-espanhola foi essencial para o triunfo militar

    norte-americano, uma vez que o apoio da frota espanhola permitiu a

    americanos e franceses estabelecer uma superioridade naval sobre a

    Inglaterra e vencer a batalha decisiva de Yorktown, em Outubro de 1781.

    Aps esta vitria americana, os ingleses procuraram entabular negociaes

    directas com os americanos, enviando um emissrio a Paris em Abril de 1782

    para conversaes com Franklin. Desrespeitando as clusulas da aliana com a

    Frana, os diplomatas americanos negociaram separadamente com os ingleses

    e prepararam-se para assinar uma paz separada.

    A paz separada com a Inglaterra foi assinada em Novembro de 1782. O

    Tratado de Paz reconheceu a independncia dos Estados Unidos da Amrica e

    estabeleceu fronteiras extremamente generosas para o novo pas: os Grandes

    Lagos e o Rio de So Loureno a norte, o rio Mississippi a Oeste e o paralelo

    31 a sul, ultrapassando em muito aquilo que os americanos tinham conquistado

    militarmente. Outras das reivindicaes fundamentais dos norte-americanos

    foi tambm reconhecida: a liberdade de pesca na Terra Nova. Os ingleses

    procediam deste modo no apenas devido deteriorao da sua situao

    militar, mas tambm com o desejo de afastar os americanos da sua aliana

    com a Frana e de estabeecer relaes privilegiadas em novos moldes entre

    a Inglaterra e os Estados Unidos25.

    No entanto, a reaco do governo francs no foi de grande indignao.

    Apesar de uma troca de missivas menos amigveis entre o Conde de

    Vergennes chefe da diplomacia francesa e Benjamin Franklin, os franceses

    acabaram por conceder aos Estados Unidos um emprstimo adicional nesse

    final de 1782. Vergennes teria estado sempre ao corrente das negociaes

    24 As instrues para John Jay podem ser lidas em "Instructions to John Jay, September 28, 1779", reproduzidas em http://www.skidmore.edu/~tkuroda/gh322/Conginst1779.htm. Ver tambm Thomas G. Paterson (ed.), American Foreign Relations. A History to 1920, pp. 17-18.

  • 14

    entre Franklin e os ingleses que alis decorreram em Paris e

    compreendera que um dos objectivos essenciais da Inglaterra era pr um fim

    aliana Franco-Americana. Aos franceses, pelo contrrio, interessaria

    manter uma relao privilegiada com o novo pas. Por outro lado, a paz

    separada dos americanos era tambm um bom pretexto para os franceses

    abandonarem o seu compromisso com os espanhis relativo a Gibraltar26.

    As negociaes de paz entre Estados Unidos, a Inglaterra, a Frana e a

    Espanha demoraram vrios meses. S a 3 de Setembro de 1783 foi assinado,

    em Paris, o tratado de paz final reiterando praticamente os mesmos termos

    do tratado de 1782 com a Inglaterra27. Os Estados Unidos eram, doravante,

    uma nao independente. Em termos de poltica externa, a sua diplomacia

    tinha-se comportado de forma hbil, jogando, por assim dizer, com as

    rivalidades entre as vrias potncias europeias. Os americanos souberam, num

    primeiro momento, cortejar os franceses e aliar-se Frana, uma vez que a

    sua independncia seria um rude golpe na Inglaterra. Souberam depois

    assustar a Inglaterra com a sua proximidade com a Frana, para convencer os

    ingleses a assinar uma paz separada com linhas de fronteira muito generosas

    para os Estados Unidos.

    3. A Construo de uma Nao

    Restava agora s colnias norte-americanas tornadas independentes,

    "construir uma nao". Tratava-se de tarefa complexa, desde logo porque no

    existia unanimidade das colnias em torno deste objectivo. Muitas das

    colnias agora tornadas independentes no estavam seguras da necessidade

    de criao de um estado nico e federal, preferindo a manuteno da frmula

    entretanto adoptada em 1781, a da criao de uma confederao de estados

    independentes.

    25 Cf. "Preliminary Articles of Peace: November 30, 1782", em http://www.yale.edu/lawweb/avalon/diplomacy/britain/prel1782.htm. 26 Thomas G. Paterson (ed.), American Foreign Relations. A History to 1920, p. 23. 27 Cf. "The Paris Peace Treaty of September 3, 1783", em http://www.yale.edu/lawweb/avalon/diplomacy/britain/paris.htm.

  • 15

    Por conseguinte, correndo o risco de uma simplificao grosseira, pode

    dizer-se que o grande debate que se travou nos Estados Unidos, a partir de

    meados da dcada de 1780, foi o debate entre federalistas e anti-

    federalistas, entre aqueles para quem o caminho a seguir, e inclusivamente a

    prpria manuteno da independencia, passava necessariamente pela

    construo de um estado federal mais forte que congregasse os vrios

    estados independentes, e os que defendiam a manuteno da independncia

    dos respectivos estados, ainda que aliados numa confederao que

    configurasse a existncia de um poder central bastante mais diminuto.

    Uma vez obtida a independncia das colnias vieram ao de cima

    determinadas diferenas entre os seus projectos polticos e econmicos. Por

    exemplo, as colnias do Nordeste, junto ao Atlntico, estavam mais viradas

    para o exterior e interessava-lhes sobretudo a recuperao do velho sistema

    de trocas com a Gr Bretanha. Era disso que viviam os mercadores destas

    cidades. Neste sentido, defendiam o restabelecimento de relaes

    privilegiadas com os ingleses e um sistema de governo relativamente

    autnomo para os diversos estados. J as colnias do Sul e do Oeste se

    mostravam muito mais interessadas na expanso territorial para o oeste do

    continente americano, onde atravs da anexao de novos territrios

    pudessem alargar as suas plantaes de algodo e de tabaco, principais

    actividades dessas colnias. Para isso era necessrio um poder mais forte e

    centralizado que pudesse fazer face s tropas inglesas, acantonadas ainda no

    Canad, bem como s tribos nativas, e que pudesse desenvolver caminhos e

    vias de comunicao com o Oeste. Estas divises foram acentuadas por uma

    crise econmica grave, sentida logo aps a independncia e resultante, em

    grande parte, das desigualdades do comrcio norte-americano com a

    Inglaterra. O governo britnico tinha entretanto feito aprovar determinadas

    medidas discriminatrias em termos comerciais que configuravam uma

    espcie de "neo-colonialismo" comercial. Os Estados Unidos continuavam a

    exportar matrias primas e produtos alimentares para o Reino Unido e em

    troca recebiam produtos manufacturados, bastante mais caros, criando uma

    balana de pagamentos permanentemente deficitria e causando uma

    profunda depresso econmica nos Estados Unidos que atinge o seu auge em

    1784.

  • 16

    Determinados sectores das elites polticas norte-americanas tomam

    ento conscincia de que era necessrio consolidar politicamente a sua Unio.

    As antigas colnias, como foi dito, ainda se regulavam politicamente pelos

    chamados Artigos da Confederao, aprovados em 1781, cujo artigo segundo

    estabelecia que cada estado mantinha a sua soberania, a sua liberdade e a sua

    independncia, bem como todos o poderes, jurisdies e direitos que no

    fossem expressamente delegados nos "estados unidos" reunidos em

    Congresso28. A questo da soberania permanecia, quanto ao essencial,

    inamovvel e os Artigos deixavam uma fatia muito considervel de poder e de

    autonomia aos vrios estados, nomeadamente no que dizia respeito poltica

    econmica e poltica externa. Para os habitantes dos diversos estados

    norte-americanos, a sua nao continuava a ser o respectivo estado. Muitos

    norte-americanos tinham lido Emmerich de Vattel, que afirmara que vrios

    estados independentes e soberanos se podiam unir numa confederao

    "perptua" sem que nenhum em particular deixasse de ser um "estado

    perfeito"29. Outros receavam as palavras de Montesquieu que avisara que

    apenas uma sociedade pequena e homgenea, cujos interesses fossem

    essencialmente similares, poderia sustentar devidamente um governo

    republicano30. Ora, os anti-federalistas tinham a perfeita noo da

    diversidade dos interesses sociais e econmicos dos vrios estados e da

    vastido do territrio constituido pelas antigas colnias e por conseguinte

    duvidavam da possibilidade do estabelecimento de um governo nico que no

    implicasse um regresso monarquia e tirania, de que as antigas colnias h

    to pouco tempo se tinham libertado. De alguma maneira, havia uma certa

    averso por parte dos anti-federalistas ideia de um governo forte e

    centralizado. As colnias, que h to pouco tempo se haviam libertado do jugo

    britnico, alegando sobretudo a forma centralizadora como os ingleses as

    governavam, receavam que um estado federal forte pudesse, de modo

    idntico, contrariar os seus interesses e as suas ambies locais.

    Apesar de tudo, a adopo dos Artigos da Confederao tinha consistido,

    em si mesma, num avano nesse sentido de unificao. Mas os artigos tinham

    28 "Articles of Confederation", em http://www.yale.edu/lawweb/avalon/artconf.htm. 29 Cit. por Gordon Wood, The Creation of the American Republic, 1776-1787, New York, W.W. Norton & Company, 1969, p. 355. 30 Cit. por Gordon Wood, The Creation of the American Republic, 1776-1787, p. 356.

  • 17

    fraquezas em alguns pontos fundamentais. Desde logo, no previam a

    existncia da figura de um Presidente, ou seja, de uma autoridade executiva

    que pudesse implementar as decises do Congresso nos vrios estados que

    compunham a Nao. Depois, porque de acordo com os Artigos da

    Confederao, o Congresso representava os Estados e no os cidados

    directamente. Cada Estado dispunha apenas de um voto no Congresso, apesar

    de enviar delegados em nmero varivel. Por exemplo, o pequeno estado de

    Delaware tinha tanto peso poltico no Congresso como o importante estado da

    Virgnia. Por outro lado, os poderes do prprio Congresso eram bastante

    limitados. No s no tinha poder para cobrar impostos directamente, como

    no podia obrigar um cidado a servir num exrcito nacional. Alm disso, o

    Congresso no tinha poderes para regulamentar o comrcio entre os diversos

    estados e com os pases estrangeiros. As actividades comerciais, mercantis e

    industriais estavam merc dos governos estaduais e tambm das imposies

    dos pases estrangeiros, como por exemplo a Inglaterra, em relao aos quais

    o Congresso no podia, de uma maneira nica, representar os interesses dos

    Estados Unidos. As resolues do Congresso continuavam a ser, em ltima

    anlise, recomendaes cuja execuo era deixada deciso dos estados.

    Note-se, por fim, que os Artigos da Confederao no proibiam os estados de

    emitir papel moeda e nem sequer se referiam aos Estados Unidos com letras

    maisculas, mas sim como "estados unidos", deste modo enfatizando a

    soberania dos diversos estados31.

    Os federalistas pretendiam, contudo, a edificao de um estado federal

    com uma configurao de poderes substancialmente diferente. O perigo era

    agora, avisavam os federalistas, o da ditadura dos orgos legislativos locais

    cujo "egosmo" s poderia conduzir perda da independncia to dificilmente

    conquistada. As elites polticas norte-americanas empenhadas na construo

    do novo estado e na consolidao da sua independncia comearam ento a

    exigir uma profunda reforma dos Artigos da Confederao. Entre os grupos

    ou sectores polticos, sociais e econmicos que mais se destacaram neste

    processo, salientam-se sobretudo aqueles que se dedicavam manufactura e

    indstria. Estes sectores pretendiam a imposio de taxas aduaneiras

    fortes aos produtos importados de pases estrangeiros, nomeadamente da

    31 "Articles of Confederation", em http://www.yale.edu/lawweb/avalon/artconf.htm.

  • 18

    Inglaterra, de modo a que eles no fossem vendidos na Amrica a preos mais

    baratos do que aqueles que eles conseguiam apresentar. Defendiam, em suma,

    uma poltica proteccionista, que pusesse termo a uma espcie de neo-

    colonialismo comercial que a Inglaterra havia entretanto conseguido

    estabelecer nas suas relaes com as ex-colnias norte-americanas. A

    imposio e o desenvolvimento desta poltica proteccionista exigia, contudo,

    uma autoridade central com poderes consideravelmente mais vastos do que o

    existente Congresso.

    Como referi atrs, esta situao havia resultado, para os recm criados

    estados, numa balana de pagamentos permanentemente deficitria,

    acabando por conduzir a uma profunda depresso econmica que atingiu o seu

    auge em 1784. Os diversos estados, para fazer face s suas dificuldades

    econmicas e financeiras, tinham entretanto seguido o caminho mais fcil que

    lhes era autorizado pelos Artigos da Confederao: emitir mais moeda e mais

    notas. O dinheiro no continente norte-americano desvalorizou-se

    profundamente, os bancos locais decidiram no aceitar mais hipotecas e

    comearam a confiscar propriedades para executar as dvidas. Alguns

    proprietrios do estado de Massachusetts, liderados por Daniel Shays,

    iniciaram uma revolta em 1786 que quase derrubava o governo estadual e que

    preocupou profundamentre os representantes dos diversos estados,

    entretanto reunidas numa nova Conveno para discutirem a reforma dos

    Artigos da Confederao32.

    Alguns autores salientam inclusivamente que o caminho no sentido da

    criao da federao norte-americana se ter iniciado no "de cima para

    baixo" mas de "baixo para cima". Ou seja, ter sido o receio de desagregao

    interna que muitos dos estados norte-americanos sentiram em meados dos

    anos 80 que os ter conduzido, em parte, a aceitarem a necessidade da

    criao de uma unidade poltica mais forte e centralizada. Foram as

    tendncias descentralizadoras que se sentiram no interior de alguns estados,

    o medo que a prpria organizao estadual fosse posta em causa que ter

    vencido a relutncia de certos sectores das elites polticas norte-americanas

    a aceitar o caminho federalista. Autores como Gordon Wood consideram

    32 Paul Boyer et allia, The Enduring Vision. A History of the American People, Volume I: To 1877, Houghton Mifflin Company, Boston, 2000, pp. 171-172.

  • 19

    assim que os acontecimentos polticos mais significativos que acabaram por

    conduzir criao da federao no foram "as tentativas de uma dinmica

    maioria de nacionalistas para enfraquecer a ideia da soberania dos estados a

    partir de cima, ou seja, acrecentando mais poderes ao Congresso", mas antes

    "os vastos ataques ideia de soberania dos estados, vindos de baixo, ou seja,

    pela negao repetida e crescente por parte de vrios grupos de que as

    legislaturas estaduais representariam adequadamente os interesses

    sobreanos do povo"33.

    A luta pela criao de uma federao e pela aprovao de uma nova

    constituio federal que substituisse os velhos artigos da confederao foi

    ento liderada por homens como James Madison, federalista convicto, ou

    George Washington, futuro primeiro presidente americano, ou ainda pelo

    "mago das finanas", o ultra-federalista Alexander Hamilton. O processo

    acabou por resultar na aprovao da Constituio Americana de 1787. Para os

    Federalistas no era suficiente uma mera reforma dos Artigos da

    Confederao. Pretendiam, pelo contrrio, o estabelecimento de um sistema

    totalmente novo, de uma Federao por oposio a uma Confederao de

    repblicas independentes. Este seria o derradeiro acto da Revoluo

    Americana. A Constituio representaria, no dizer do historiador Bernard

    Bailyn, "a expresso final e culminante da ideologia da Revoluo

    Americana"34. Era para alguns os federalistas uma evoluo de sentido

    progressista, uma vez que procurava salvar o que restava da Revoluo em

    face do seu fracasso iminente; para outros os anti-federalistas uma

    tentativa reaccionria de restringir os excessos desse mesmo processo

    revolucionrio35.

    James Madison era, sem dvida alguma, o americano melhor preparado

    para liderar este processo. Em 1785 e 1786 Madison desenvolveu um estudo

    intensivo de antigas e modernas confederaes e federaes, em busca da

    compreenso daquilo a que ele chamou "a cincia do governo federal". Os

    estudos de Madison foram posteriormente publicados no jornal The

    Federalist e apontavam para as fraquezas inerentes a uma mera

    33 Gordon Wood, The Creation of the American Republic, 1776-1787, p. 362. 34 Bernard Bailyn, The Ideological Origins of the American Revolution (enlarged edition), The Belknap Press of the Harvard University Press, Cambridge, 1992, p. 321. 35 Cf. Gordon Wood, The Creation of the American Republic, 1776-1787, p. 475.

  • 20

    confederao de estados independentes que constituriam, assim, um "centro

    sem nervo" constantemente ameaado por dentro e por fora. O objectivo

    ltimo de Madison era, portanto, a constituio de um estado federal cujo

    poder e autoridade se sobrepusessem ao poder e autoridade dos estados36.

    O debate culminou com a realizao da chamada Conveno de Filadlfia,

    em 1787, e com a aprovao da Constituio federal americana nesse mesmo

    ano. Nesta Conveno, que decorreu de Maio a Setembro, foi profundo o

    debate entre os defensores de um novo sistema de governo que pusesse fim

    antiga confederao e os defensores da continuidade. Os anti-federalistas

    criticavam os federalistas afirmando que a nova Constituio por eles

    proposta iria estabelecer um governo nacional, ao invs de um governo

    estadual, iria conglomerar os antigos estados independentes em apenas um,

    transferindo a soberania previamente detida pelos respectivos estados para

    o novo estado nacional. Como se justificava, inquiriam os anti-federalistas,

    que a nova Constituio comeasse com a expresso "We, the People" em vez

    de "We, the States"? A estas propostas os anti-federalistas opunham a

    defesa da simples reviso dos Artigos para que a confederao continuasse a

    existir.

    A tendncia federalista, contudo, acabou por impr as suas ideias. Aps

    debates extensos entre os delegados conveno e posterior ratificao

    pelos diversos estados, acabou por ser adoptado um novo contrato social: a

    Constituio dos Estados Unidos da Amrica. Os Estados Unidos tinham agora

    uma administrao federal, que obedecia ao princpio da separao de

    poderes (executivo, legislativo e judicial). Havia um governo presidencialista,

    dirigido por um Presidente, um Congresso que legislava e um tribunal federal

    para a administrao da justia. Abaixo desta ordem federal existiam ordens

    estaduais, reguladas de maneira idntica e dotadas ainda de poderes

    considerveis. Este foi, por assim dizer, um primeiro importante compromisso

    da Constituio norte-americana, entre federalistas e estadualistas, criando

    36 Gordon Wood, The Creation of the American Republic, 1776-1787, p. 472.

  • 21

    por um lado um estado federal dotado de certos poderes, mas ao mesmo

    tempo mantendo uma ordem poltica estadual37.

    Depois foi necessrio conciliar os interesses dos diversos estados de

    modo a criar a ordem federal. A soluo foi, em primeiro lugar, colocar um

    poder assinalvel nas mos do Congresso onde os estados estavam

    directamente representados em detrimento dos poderes do executivo.

    Depois, foi importante tambm dividir o Congresso em duas Cmaras: a

    Cmara dos Representantes e o Senado. A Cmara dos Representantes tinha

    uma representao proporcional ao nmero de habitantes de cada estado,

    conferindo por isso mais poder aos estados mais numerosos e mais povoados.

    O Senado, ao invs, garantia um equilibrio entre todos os Estados porque nele

    tinham assento dois representantes de cada Estado, por igual,

    independentemente da sua dimenso. Como Madison teorizou, o Senado

    tornava-se um meio de impedir os estados maiores de terem "vantagens

    imprprias sobre os mais pequenos". Todas as leis tinham que ser aprovadas

    pelas duas cmaras.

    O Congresso tinha agora poderes para regular o comrcio externo e para

    adoptar medidas de carcter comercial por votao maioritria. Num dos

    mais importantes compromissos da Conveno Constitucional, os estados do

    sul, que eram menos, concordaram que essas medidas pudessem ser tomadas

    apenas por maioria e no por dois teros, como eram anteriormente sob os

    artigos da confederao. Em troca, os estados do norte aceitaram a

    continuao do trfico de escravos e da escravatura, pelo menos at 1808. O

    Congresso podia tambm regular comrcio intra-estadual e cobrar impostos e

    outros direitos. Ao Congresso competia tambm celebrar tratados com

    outras naes, propostos pelo presidente e aprovados por dois teros dos

    senadores. S o Congresso poderia declarar guerra. O Congresso, tal como

    ainda hoje, controlava as finanas, atribuindo ao executivo o dinheiro para

    ser gasto pelo governo.

    37 Uma traduo portuguesa da Constituio norte-americana pode ser consultada em Nuno Rogeiro, Constituio dos EUA anotada e seguida de estudo sobre o sistema constitucional dos Estados Unidos, Lisboa, USIS/Gradiva, 1993. Mais recentemente foi tambm publicado em Portugal um estudos sobre o federalismo norte-americano da autoria de Viriato Soromenho Marques, A Revoluo Federal. Filosofia poltica e debate constitucional na fundao dos E.U.A., Lisboa, Edies Colibri, 2002.

  • 22

    James Madison, o grande terico da Constituio Americana, argumentou

    para os anti-federalistas que no se tratava de criar um gigantesco e

    absolutista governo federal que pusesse em causa os direitos e liberdades

    dos americanos. Muito pelo contrrio, este novo pacto social que os

    representantes do povo americano assinavam, permitia melhor assegurar as

    liberdades de cada indivduo dentro do pas e, ao mesmo tempo, melhor

    defender os interesses dos estados e da Unio em relao ao estrangeiro e

    aos outros pases. Esta realidade era possvel, Madison argumentava, com o

    sistema de "checks and balances" que a Constituio estabelecia. Assim, os

    estados retinham autoridade suficiente para contrapr governo federal, os

    trs ramos do governo federal controlavam-se mutuamente, as duas partes

    do Congresso tambm se vigiavam mutuamente. Os vrios interesses

    (federalistas vs anti-federalistas, norte vs sul, estados pequenos vs estados

    grandes) estavam garantidos no sistema constitucional americano. Era o que

    os federalistas desejavam, como argumentou Madison: a prpria estrutura do

    governo federal encontrava-se concebida de modo a evitar as "usurpaes

    que conduzem concentrao tirnica de todos os poderes do governo nas

    mesmas mos"38.

    Lus Nuno Rodrigues, Janeiro de 2003

    38 Gordon Wood, The Creation of the American Republic, 1776-1787, p. 550.