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1 A cena passou-se numa das muitas cimeiras do euro realizadas este ano em Bruxelas, em meados de Feverei- ro. As câmaras de TV captam um daqueles momentos que definem o que realmente se passa na Europa. Vítor Gaspar aproxima-se do seu homólogo alemão, Wolfgang Schäuble, como um estudante que tenta impressionar o professor. «Vamos fazer progressos substanciais com o défice. Já fizemos progressos incríveis», diz o ministro das Finanças português, ajoelhando-se ao lado de Schäu- ble (este desloca-se de cadeira de rodas desde que, há mais de 20 anos, levou três tiros num comício). E ouve o veredicto da Alemanha: «Se for necessário ajustar o pro- grama para Portugal, não haverá problema.» «Obrigado», responde Gaspar num fio de voz. Na verdade, Gaspar e Coelho, os «bons alunos», sub- servientes com os poderosos e implacáveis com os mais fracos, não fizeram progressos com o défice, tendo admi- tido já que o objectivo de 4,5% do PIB para este ano não será atingido. Em vez disso, onde houve «progressos in- críveis» foi no ataque às condições de vida da população trabalhadora: enquanto para almoçar numa tasca se paga agora 23% de IVA, se perdem feriados, os funcionários públicos foram espoliados dos subsídios de Natal e de fé- rias, as impropriamente designadas ‘taxas moderadoras’ aumentaram e a onda de privatizações prossegue a bom ritmo (EDP já lá vai, Correios estão a caminho, a TAP e até a televisão pública, a RTP, são oferecidas aos priva- dos), o desemprego já vai em 15,6%, segundo os números oficiais (22% segundo cálculos mais objectivos) e o país afunda-se numa terrível recessão. Em cima disto, Passos Coelho anunciou a 7 de Setem- bro o aumento da contribuição dos trabalhadores para a Segurança Social dos actuais 11% para 18%, enquanto a contribuição das empresas diminui dos actuais 23,75% também para 18%. Trata-se de uma transfusão directa do salário social dos trabalhadores para o patronato. Passos Coelho foi presenteado com um vendaval de impropérios na sua página do Facebook: em apenas um dia, 40 mil pessoas foram lá chamar-lhe «hipócrita», «mentiroso», «insensível», «ladrão», «palhaço», «ga- tuno», «bandido», «corrupto», «vigarista», «aldra- bão», «desonesto» e outros qualificativos semelhantes. Enquanto alguns lamentavam ter votado naquele que agora designavam por «vendedor de banha da cobra, charlatão e aldrabão», outros desafogavam as mágoas desejando que «alguém se passe da cabeça e enfie um ba- lázio entre os olhos destes gajos todos» ou mande «en- forcar em praça pública todos estes cabrões que andam a viver às nossas custas». Mas, usando com outro sentido uma expressão bra- sileira, «não se matam cachorros a gritos». A verdade é que a oposição a este governo e às suas medidas não tem sido suficiente. E não basta gritar e chamar-lhes nomes. É preciso mais. A Rubra convoca todos a participar na ma- nifestação de 15 de Setembro e no dia nacional de luta convocado pela CGTP para 1 de Outubro. E faz um apelo à unidade e à combatividade: no fundo, todos sabemos que isto provavelmente não bastará para aquilo que se im- põe, que é derrubar quanto antes este governo e cancelar as suas medidas. O que é preciso fazer, que é parar o País e ir a um tira-teimas decisivo, assusta muitos. Perante um predador, qualquer animal, incluindo o homem, tem duas grandes opções: defender-se e contra-atacar ou fugir. Até agora mais gente e mais vezes tem fugido. Mas já não há muito para onde fugir. Como na canção de Martha and the Vandellas, there’s «Nowhere to run, nowhere to hide» - não há para onde fugir, nem onde se esconder. Está na hora de passarmos ao contra-ataque. Editorial Não há para onde fugir, nem onde se esconder. Passemos ao contra-ataque

Revista Rubra nº 14 - miolo

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Miolo da Revista Rubra nº 14

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A cena passou-se numa das muitas cimeiras do euro realizadas este ano em Bruxelas, em meados de Feverei-ro. As câmaras de TV captam um daqueles momentos que definem o que realmente se passa na Europa. Vítor Gaspar aproxima-se do seu homólogo alemão, Wolfgang Schäuble, como um estudante que tenta impressionar o professor. «Vamos fazer progressos substanciais com o défice. Já fizemos progressos incríveis», diz o ministro das Finanças português, ajoelhando-se ao lado de Schäu-ble (este desloca-se de cadeira de rodas desde que, há mais de 20 anos, levou três tiros num comício). E ouve o veredicto da Alemanha: «Se for necessário ajustar o pro-grama para Portugal, não haverá problema.»

«Obrigado», responde Gaspar num fio de voz.Na verdade, Gaspar e Coelho, os «bons alunos», sub-

servientes com os poderosos e implacáveis com os mais fracos, não fizeram progressos com o défice, tendo admi-tido já que o objectivo de 4,5% do PIB para este ano não será atingido. Em vez disso, onde houve «progressos in-críveis» foi no ataque às condições de vida da população trabalhadora: enquanto para almoçar numa tasca se paga agora 23% de IVA, se perdem feriados, os funcionários públicos foram espoliados dos subsídios de Natal e de fé-rias, as impropriamente designadas ‘taxas moderadoras’ aumentaram e a onda de privatizações prossegue a bom ritmo (EDP já lá vai, Correios estão a caminho, a TAP e até a televisão pública, a RTP, são oferecidas aos priva-dos), o desemprego já vai em 15,6%, segundo os números oficiais (22% segundo cálculos mais objectivos) e o país afunda-se numa terrível recessão.

Em cima disto, Passos Coelho anunciou a 7 de Setem-bro o aumento da contribuição dos trabalhadores para a Segurança Social dos actuais 11% para 18%, enquanto a contribuição das empresas diminui dos actuais 23,75% também para 18%. Trata-se de uma transfusão directa do salário social dos trabalhadores para o patronato.

Passos Coelho foi presenteado com um vendaval de impropérios na sua página do Facebook: em apenas um dia, 40 mil pessoas foram lá chamar-lhe «hipócrita», «mentiroso», «insensível», «ladrão», «palhaço», «ga-tuno», «bandido», «corrupto», «vigarista», «aldra-bão», «desonesto» e outros qualificativos semelhantes. Enquanto alguns lamentavam ter votado naquele que agora designavam por «vendedor de banha da cobra, charlatão e aldrabão», outros desafogavam as mágoas desejando que «alguém se passe da cabeça e enfie um ba-lázio entre os olhos destes gajos todos» ou mande «en-forcar em praça pública todos estes cabrões que andam a viver às nossas custas».

Mas, usando com outro sentido uma expressão bra-sileira, «não se matam cachorros a gritos». A verdade é que a oposição a este governo e às suas medidas não tem sido suficiente. E não basta gritar e chamar-lhes nomes. É preciso mais. A Rubra convoca todos a participar na ma-nifestação de 15 de Setembro e no dia nacional de luta convocado pela CGTP para 1 de Outubro. E faz um apelo à unidade e à combatividade: no fundo, todos sabemos que isto provavelmente não bastará para aquilo que se im-põe, que é derrubar quanto antes este governo e cancelar as suas medidas. O que é preciso fazer, que é parar o País e ir a um tira-teimas decisivo, assusta muitos. Perante um predador, qualquer animal, incluindo o homem, tem duas grandes opções: defender-se e contra-atacar ou fugir. Até agora mais gente e mais vezes tem fugido. Mas já não há muito para onde fugir. Como na canção de Martha and the Vandellas, there’s «Nowhere to run, nowhere to hide» - não há para onde fugir, nem onde se esconder. Está na hora de passarmos ao contra-ataque.

Editorial

Não há para onde fugir, nem onde se esconder. Passemos ao contra-ataque

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Ao longo dos milénios, populações como a portuguesa foram moldando a sua dieta de acordo com a produtivida-de do solo, à partida mais vocacionada para culturas locais. A sua ampla costa colabora com uma predileção pelas pro-teínas do peixe. O problema acontece quando esses hábi-tos entram em contradição com a produção capitalista, ou seja, quando a produção de peixe choca com a produção de carne, mais barata e produtiva. Para o capitalismo, o ve-lho bacalhau que sempre esteve na mesa dos portugueses é um produto de luxo.

Crise alimentarEnquanto mercadoria produzida para gerar lucro, a

produção de alimentos deve render um lucro médio ao

proprietário da produção semelhante ao lucro alcançado na indústria: ambos os capitalistas esperam receber um ga-nho líquido de acordo com o capital aí investido (na com-pra de plantas, máquinas, matérias-primas, mão-de-obra, etc.). Os banqueiros esperam receber um ganho líquido na forma de juros também de acordo com o capital em-prestado na compra e utilização desses investimentos. Os comerciantes esperam o lucro comercial da venda dos pro-dutos agrícolas. Os proprietários das terras esperam auferir uma renda. No entanto, a renda da terra tem uma carac-terística peculiar: enquanto os investimentos em materiais manufacturados ou trabalho humano são dotados de valor porque são, antes de mais nada, fruto do trabalho humano, a terra é dada pela natureza e não tem um valor expresso

A conta do supermercado sobe vertiginosamente e é falso dizer que a culpa está nas alterações climáticas ou nas más colheitas de milho norte-america-no. Descubra neste artigo o que tem a produtividade agrícola, os subsídios es-tatais e a crise da dívida e do crédito publico a ver com a sua conta de super-mercado. E porque estão os trabalhadores portugueses a comer cada vez pior embora comam cada vez mais calorias. / Um artigo de Ana Rajado e Renato Guedes, com o economista José Martins.

Por que sobe a conta do supermercado?

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em tempo de trabalho. Por outras palavras, enquanto uma mercadoria tem um preço porque é portadora de um tem-po de trabalho humano (tanto o trabalho para a sua produ-ção directa como o trabalho incorporado na maquinaria, matérias-primas, etc.), a terra tem um preço, mas ele não advém do valor do trabalho humano incorporado, seja por via do esforço e aptidão do trabalhador, seja por via da in-corporação de matérias (excluídos os melhoramentos que o proprietário da terra possa incorporar antes de arrendar).

A condição de ser 1) fruto do trabalho humano e de 2) ser produzida no sistema capitalista confere à mercadoria alimento valor (bem como um preço monetário directa-mente ligado a esse valor) e ao proprietário da produção um lucro calculado de acordo com o excedente da produ-ção, ou seja, descontados os gastos e as condições materiais de produção. A renda da terra é baseada na simples pro-priedade de um recurso natural, sem que para isso tenha que interagir trabalho humano.

A renda da terra só pode surgir da repartição global da mais-valia (excedente apropriado da produção) em favor do proprietário da terra. Ou seja, a renda da terra torna o traba-lho agrícola menos produtivo. Para que o capitalista produza alimen-tos em vez de investir na indústria tem que produzir uma massa de mais-valia maior do que na indús-tria para poder pagar o custo da renda da terra, que é normalmente assegurado por subsídios estatais, encapotados ou não.

O custo dos alimentos tem uma importância central para o total do lucro, visto o salário dos trabalha-dores, enquanto meio de produção e reprodução da sua força de traba-lho, ser em grande medida deter-minado pelos custos da sua alimentação. A busca de uma produção de alimentos mais barata é assim fulcral para o capitalismo. Por isso se juntam 300.000 galinhas num aviá-rio e se dá a comer frango em vez de peixe, para que o valor da mão-de-obra caia.

Do que falamos quando falamos em produção de alimentos

O conjunto da produção de alimentos está ligado a dois extremos: de um lado, grandes explorações que recorrem a trabalhadores assalariados. O número de trabalhadores deve corresponder ao grau de desenvolvimento técnico da produção e o custo da mão-de-obra na região em ques-tão. Num outro extremo, temos as pequenas explorações de subsistência, onde a troca do excedente busca comple-tar os meios de subsistência do produtor. Entre esses dois extremos, encontramos muitas combinações. Assim, por

exemplo, uma parte da produção de café ou cacau pode ser levada a cabo por pequenas produções em regiões econo-micamente atrasadas, onde os produtores foram levados a produzir essas matérias-primas no lugar de alimentos bási-cos (clássico caso da Etiópia). A troca da sua produção de café ou cacau por dinheiro permite comprar os alimentos para produtor e sua família (adquirindo assim o que dan-tes ele próprio produzia). Uma vez vendida essa produção, uma parcela significativa cairá nas mãos do grupo Nestlé, que domina o mercado, industrializando e escoando o pro-duto no mercado mundial. Assim, vender ou não vender o seu produto depende quase exclusivamente da Nestlé, mesmo que isso não seja claro para a realidade palpável do nosso produtor.

O relativo controlo dos preços dessas mercadorias dá a Nestlé um poder de vida ou morte sobre os produtores. Por exemplo, a necessidade de recorrer a crédito para pro-duzir essas monoculturas põe a própria posse das suas ter-ras dependente da evolução dos preços. Assim, fenómenos como a perda da terra e o deslocamento de camponeses

sem-terra é uma história que come-çou com o início do capitalismo e que podemos ver em toda parte ain-da hoje, em menor grau em países como os EUA, onde esse problema já foi há muito resolvido em favor do capital, ou, em maior grau, em países como a China, onde a neces-sidade de mão-de-obra industrial implica uma progressiva expulsão de camponeses das suas terras.

Um segundo aspecto impor-tante é que nem todos os alimentos têm o mesmo peso no mercado ca-pitalista. Certa de 50% dos alimen-tos consumidos pela população do planeta são cereais, muito em parti-

cular o trigo, o arroz e o milho. Tomando a produção de 2010/11 como exemplo, 50% da produção de cereais pro-veio dos EUA, Europa/27 e China (18,1%, 12,6% e 19,8%, respectivamente). Os números absolutos referidos criam a falsa aparência de que esses três blocos são os principais players no mercado mundial. Se levarmos em conta a pro-dução per capita, a situação muda um bocado de figura. O resultado disso é que enquanto os EUA e a Europa são exportadores líquidos, a China precisa de importar para fa-zer face às suas necessidades, sendo que os EUA exportam cerca de 5 vezes mais que a Europa. Até agora só falámos de cereais em grão. Se considerarmos que quase toda pro-dução de milho, onde os EUA são de longe os maiores pro-dutores com cerca de 30% da produção mundial, e que esse cereal é essencialmente usado para ração, a importância da produção americana torna-se imediatamente clara. De res-to, a ração depende também da soja e, para esse produto,

« O desvio da mais-valia em favor do proprietário da terra na forma de renda agrária torna o capitalismo incapaz de alimentar a humanidade»

os EUA são os maiores produtores mundiais com cerca de 34% do mercado, imediatamente seguidos pelo Brasil com 28,5% da produção. Bem atrás vem a Argentina com 18,5%. A Europa importa cerca de 5% da produção mun-dial e a China cerca de 20%.

Finalmente, tanto a produção dos EUA como a Eu-ropeia são feitas com alto grau de mecanização e produ-tividade por trabalhador. A produtividade elevada dita o preço da produção mais baixo e cria uma pressão nos demais produtores. No caso de esse produtor mais atra-sado ser um grande latifundiário, consegue competir com os preços da ponta do sistema (EUA) utilizando mão-de-obra intensa e mal paga, conseguida por meio de pressão do aparato estatal. No caso de ser um pequeno produtor, resta-lhe trabalhar até a exaustão com a perspectiva de um dia lhe aparecer à porta o dono da hipoteca reclamando o pagamento ou a terra. Em todo caso, é importante que fique claro que sendo os preços formados nas costas des-ses produtores, eles não podem escapar à sua pressão. De resto, estudar o comportamento dos preços dos alimentos

significa, numa primeira aproximação, estudar os preços dos cereais, independentemente do comportamento dos preços dos outros produtos. O seu impacto estender-se-á aos outros produtos.

Crise e fomeO desvio da mais-valia em favor do proprietário da terra

na forma de renda agrária torna o capitalismo incapaz de alimentar a humanidade. EUA, Europa, Japão, por exem-plo, garantem essa transferência de mais-valia por via dos subsídios agrícolas, tal como a PAC na Europa. Esse facto torna-se claro quando o subsídio é pago aos proprietários para não produzir.

Em 2008 observámos em primeira mão o auge de uma crise com todos os ingredientes: uma forte desvalorização da propriedade representada por activos financeiros, uma profunda crise no crédito privado e a subsequente exposi-ção do crédito público para salvar o crédito privado. Na-quele momento havia uma real possibilidade de o crédito público eclipsar, sendo que esse colapso ficou restringido

Quando falamos de fome é provável que a imagem que nos surja esteja relacionada com imagens chocantes de pessoas e crianças de costelas à mostra num qualquer país africano. Ao arrepio dessa visão comum, o antropólogo brasileiro Gilberto Freyre afirmava que os escravos brasi-leiros que trabalhavam no campo eram um dos sectores da sociedade melhor alimentado. A esse propósito, o geógrafo e médico Josué de Castro chamou a atenção para o erro de identificar a fome com a falta de calorias ou alimentos ca-lóricos. A falta de energia na alimentação revela uma entre muitas fomes específicas. De resto, as doenças e a baixa lon-gevidade desses escravos, bem como um estudo minucioso da sua dieta, revelam a falta de tudo para além da energia: proteínas, vitaminas, etc. O escravo, tal como uma máqui-na, devia ter uma vida útil (produtiva) e, para minimizar os custos, a sua dieta era composta apenas do essencial para o seu funcionamento. Essa perspectiva simplista, puramente economicista e altamente lucrativa, foi levada a cabo pelo capitalismo brasileiro na sua forma esclavagista e continua no capitalismo na sua forma de exploração natural através do trabalho assalariado. Assim, quando Cavaco e Silva apa-drinhou há cerca de 5 anos um projecto de relevância para o mar português, tinha em mente a sua exploração enquan-to reserva de produtos de luxo e não de alimentos para po-pulação. O acesso pela população trabalhadora a alimentos como o peixe de mar encarece o custo da mão-de-obra e é contrário à rentabilidade capitalista.

O boletim do INE publicado em Novembro de 2010, chamado Balança Alimentar Portuguesa 2003-2008, informa-nos que a dieta dos portugueses está cada vez a afastar-se mais da dieta saudável que sempre caracteri-zou a alimentação dos países mediterrânicos. As pessoas alimentam-se apenas de forma a garantir a energia neces-sária para continuarem a produzir, para se manterem de pé. Sentem-se saciadas mas manifestam carências alimen-tares por vezes graves, tais como: falta de vitaminas, nu-trientes, sais minerais e proteínas de qualidade. Ou seja: os alimentos não são encarados como algo fundamental para a garantia de uma vida mais saudável e de melhor qualidade, mas como “combustível” para se continuar a trabalhar. Infelizmente, os trabalhadores cujos salários médios são bastante baixos não conseguem suportar um orçamento alimentar que lhes permita o acesso a uma ali-mentação saudável. As próprias crianças cedo começam a beber refrigerantes de marca branca, carregados de açú-car, mais baratos que sumos de fruta naturais. O aumento do preço dos alimentos, nomeadamente em produtos bá-sicos, relaciona-se drasticamente com esta mudança. Se-gundo a Balança Alimentar Portuguesa de 2003/2008, os desequilíbrios da dieta alimentar portuguesa acentuaram-se neste período.

Os portugueses têm uma alimentação hipercalórica – média de 3883 kCal por dia. O valor médio recomendado para um adulto é de 2000 a 2500. Consomem excessiva-

À mesa... sem bacalhauComo o capitalismo empobreceu a dieta dos trabalhadores portugueses

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à periferia da Europa, ficando os mais fracos mais fragi-lizados. A exposição do crédito público então pôs a nu a capacidade de o estado garantir o financiamento das suas actividades, inclusive o subsídio agrícola. Essa real possi-bilidade saldou-se na inflação do preço dos alimentos ve-rificada então.

Apesar da recuperação da produção industrial dos EUA, voltamos a ver uma grande inflação nos preços dos alimentos em 2012. Alguns fenómenos avançados para explicar esse aumento, de acordo com a imprensa são: au-mento dos preços dos combustíveis, quebra nas colheitas de milho e trigo nos EUA, aumento do consumo, especu-lação nos preços. Na verdade, de acordo com os dados da FAO, o índice de preços em termos reais, tomando como referência o ano de 2002/2004 (100), manteve-se em tor-no desse valor entre 1990 e 2007, para iniciar uma subida que o levou aos 141 pontos em 2012. Enquanto observa-mos aumentos em quase todos os produtos individualmen-te, o maior peso deve ser atribuído aos cereais (155,7 pon-tos em 2012). Trata-se de um aumento consistente num

período de cinco anos. Ao longo desse período, o volume da produção mundial permaneceu estável, com as flutua-ções normais. Desta maneira, procurar uma resposta para o problema através de manifestações ocasionais resulta num manifesto encapotamento do problema.

A verdadeira questão é que, depois da crise de 2008, o crédito público, em particular na Europa, continua debai-xo de fogo. Ninguém consegue garantir a capacidade desse mecanismo estatal continuar a cumprir a sua função de re-curso de última instância do crédito privado (leia-se ajudar à banca assumindo os seus prejuízos) e a sua simultânea capacidade de fazer frente aos gastos do Estado, muito em particular garantir o pagamento da renda de um número limitado de parasitas. Esse problema não só continua na ordem do dia como o seu arrastar pode significar o sistema capitalista encontrar os seus Estados completamente inca-pazes de agir no próximo choque cíclico.

A única solução para este dilema é uma reforma agrária capitaneada por uma revolução socialista. Ou seja, a terra para quem a trabalha!

mente calorias e gorduras saturadas. O consumo de pro-dutos hortícolas, leguminosa e frutos é reduzido, a carne de porco é a mais consumida (38%). No entanto, a carne de animais de capoeira tem uma importância cada vez maior (33%). Por ser a carne mais barata, o seu consumo tem vindo a aumentar.

A redução do consumo de bacalhau, tão característico na mesa dos portugueses, foi de 20% devido à subida do seu preço que, em 2007, foi de 6% e, em 2008, foi de cerca de 9%.

Há uma clara substituição de raízes e tubérculos por cereais (produzidos em monocultura intensiva). Actual-mente a alimentação dos trabalhadores é essencialmente à base de cereais. Vamos buscar os hidratos de carbono aos cereais (57%), a carne que comemos é alimentada com cereais e até a cerveja passou a ser a bebida alcoólica mais consumida entre os portugueses – em detrimento do vinho.

O aumento dos preços da produção de leite cru reflec-tiu-se numa retracção no consumo de produtos de alto valor acrescentado como o queijo e os iogurtes.

A viverem cada vez mais afastados do campo e com restrições legais aplicadas à pesca lúdica, os portugueses vêem-se cada vez mais dependentes das cadeias de super-mercados para se alimentarem. Entretanto, os produtos de qualidade do nosso país – como o peixe do Atlântico – começam apenas a ser consumidos pelas classe altas. Uma alimentação cuidada e variada passou a ser um privilégio dos ricos. Para os trabalhadores restam os cereais, os açú-cares e as gorduras – mais baratos, sobretudo para os pa-trões que assim não têm que aumentar salários.

Todos estes movimentos descritos mostram uma rea-

dequação da produção e distribuição alimentar em Portu-gal de acordo com um embaratecimento da mão-de-obra através da substituição alimentar. É muito provável que esse processo só esteja no início. No entanto, ajudado pela perda do poder de compra dos trabalhadores – devi-do ao desemprego e aos cortes salariais –, provavelmente dará um salto nos próximos anos.

Temos acompanhado nos últimos tempos o aumento drástico do preço dos alimentos. Esse problema – aliado à queda do poder de compra dos trabalhadores devido à conjuntura económica portuguesa –, torna uma simples ida ao mercado um martírio. Nesse sentido, vemos vá-rios sectores a apontar a dedo a destruição da produção agrícola portuguesa, que nos expõe a uma incontornável dependência da importação. Longe de uma visão catas-trofista da produção agrícola portuguesa, o seu nível de produção tem crescido nos últimos tempos – com algu-mas excepções, como o pescado, por exemplo. A verdade é que o único limite à capacidade alimentar portuguesa relaciona-se com a sua estrutura de produção capitalista, cada vez mais direccionada para a produção e consumo globalizado. A variedade de consumo de um trabalhador português não pode afastar-se muito da do trabalhador americano – não interessando se esse vive no tórrido Te-xas ou no Alasca.

A alimentação é uma necessidade básica e todas as pessoas deviam ter acesso a uma dieta variada e rica, inde-pendentemente da sua condição social. É importante que os trabalhadores ganhem consciência de que esta é mais uma batalha pela melhoria das suas condições de vida e dos seus filhos. A fome e a má alimentação são opções po-líticas.

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Pelo mercado morre o peixePescas, proletarização e empobrecimento da dieta alimentar – uma viagem a Peniche com o pescador Floriano Sabino

Rui Viana Pereira esteve em Peniche, onde recolheu o testemunho de Flo-riano Sabino, um pescador que conta de memória a história da pesca em Portugal. Uma panorâmica geral sobre o modo de vida e riqueza alimentar, os abates de embarcações, a destrui-ção das zonas de desova, os truques dos intermediários, os efeitos nocivos da indústria de peixe em cativeiro. Um artigo que é também a história da nos-sa economia nas últimas 3 décadas.

Existem situações particulares em que podemos ob-servar, com limpidez e simplicidade, as leis de desenvol-vimento da sociedade capitalista em acção. Em Peniche podemos assistir a olho nu à prova viva de que a ideia de «livre iniciativa» numa sociedade capitalista não passa de rematado mito.

O holocausto das embarcaçõesUma das medidas adoptadas para vencer pela força

bruta o vigor da indústria portuguesa do pescado, quan-do da entrada de Portugal na CEE, foi a atribuição de prémios a quem abatesse os seus barcos de pesca. Esta campanha foi levada a cabo com fundos nacionais e inter-nacionais caídos do céu1 e lançou à fogueira grande nú-mero de embarcações, como os infiéis e os livros noutros

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tempos, pintando um espectáculo de holo-causto que assombrou os sonhos de muita população marítima durante anos – era todo um modo de subsistência, de vida e de pensar o mundo que estava ali a ser queimado.

A época alta deste extermínio foi-nos re-centemente descrita por Floriano Sabino, um pescador de Peniche cujo testemunho integra parcialmente o documentário «Amigos de Peniche» (Clara Games, 2010)2. O que mais salta à vista no relato do Floriano Sabino é o facto de o abate das embarcações ter implica-do não só a destruição duma parte importante da economia e das exportações, mas também, como se verá adiante, a destruição de novas formas de organização e autogestão dos traba-lhadores que estavam então em curso e amea-çavam alastrar a outras áreas do trabalho.

Os prémios oferecidos para abate das em-barcações rondariam os 15 a 20 mil contos, se a memória do Floriano Sabino não erra. Nessa época uma embarcação de pesca nova custaria cerca de 40 a 50 mil contos. Quanto aos pescadores, não só não receberam nada, como se viram sem alternativas de trabalho.

Diversos tipos de dificuldades facilitaram a decisão dos armadores. Umas, inerentes à faina normal da pesca (épo-cas de escassez de peixe, embarcações e redes perdidas no mar, etc.); outras, de cariz económico, resultantes em gran-de parte da influência dos países dominantes e dos acordos de pesca. Uma das formas de acossar economicamente os pescadores e armadores é o aumento do preço do combus-tível para embarcações de pesca – um factor determinante com o qual os governos actuais continuam a jogar.

Antes dos prémios para abatimento dos barcos havia em Peniche cerca de 80 embarcações de grande porte; em 2010 não chegavam a 15; agora que a política de abatimen-tos voltou a entrar em vigor, é de crer que não cheguem a 6. Em suma, a actividade pesqueira tornou-se residual. Mes-mo a pesca artesanal e de subsistência é perseguida à exaus-tão pela ASAE e outras entidades fiscalizadoras, sobretudo de Peniche para sul.3

Como forçar a mãoHá ainda outras formas mais subtis de destruir a indús-

tria pesqueira de um país. Uma delas tem a ver com os lo-cais de desova. No caso português grande parte dos princi-pais locais de desova e crescimento dos peixes jovens foram transformados em marinas, complexos turísticos, etc. Os

locais de desova e crescimento do Algarve e doutros luga-res da costa portuguesa eram essenciais não só para a pesca nacional mas também para uma grande parte da Europa, visto que daqui saíam os peixes adultos para outras águas, desde o Mediterrâneo até ao mar do Norte. A destruição deliberada da riqueza marinha (uma riqueza que deveria ser decretada colectiva, à semelhança da água e de outros recursos naturais) acarretou a destruição parcial dos recur-sos dos países interessados – logo, um aumento dos custos de produção.

A isto junta-se o abuso da pesca de arrasto de grandes proporções, autorizada a companhias estrangeiras, que destrói os fundos marinhos, pondo fim aos pastos de uma infinidade de espécies.

Até a água do mar, situada a 5 metros da lota de Peni-che e necessária à lavagem e amanho do pescado, passou a ser monopólio privado.

Esta privatização e intermediarização de tudo foi um dos factores determinantes da morte da indústria nacional da pesca e seus derivados. Na lota, por onde todo o pes-cado tem de passar por lei, reinam as grandes companhias intermediárias, que estabelecem (baixam) os preços de compra aos produtores (mantendo ou subindo os preços de venda aos consumidores) e açambarcam todo o pesca-do, armazenando-o com fins especulativos. Outra conse-quência visível da acção dos intermediários é o completo desaparecimento de peixe fresco num país à beira-mar plantado, obrigando os consumidores a comerem peixe tão congelado e pouco fresco como se vivessem na Sibéria.

Depois do 25/Abril/1974 uma nova estrela norteou a vida de muitos pescadores: a autogestão e a propriedade colectiva dos meios de produção

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Há que suspeitar da existência de fortes relações de in-teresses entre os capitais da actividade intermediária e os da indústria de produção de peixe em cativeiro, obviamen-te beneficiada com o asfixiamento da pesca em alto mar.

O carácter peculiar das relações de tra-balho e da cultura na pesca

A pesca no mar é uma actividade dura, perigosa, que fazia sentir diariamente a presença invisível da morte.4 É uma actividade de intensa cooperação colectiva. No entan-to esta organização colectiva do trabalho exerce-se duma forma diferente da que encontramos no processo industrial actual. Embora seja necessária uma direcção centralizada e indiscutível no acto (factor comum a qualquer embarca-ção, seja ela pesqueira ou não, por imperativo de sobrevi-vência), na faina da pesca todos os elementos da companha correm o mesmo risco de vida; todos têm responsabilidade idêntica no rendimento final; é-lhes inevitável a consciên-cia de que a sua vida depende do comportamento dos com-panheiros, e vice-versa.

Nas épocas de escassez de peixe, nos períodos de mau tempo em que não se pode sair ao mar, a falta de recursos e meios de subsistência gera em terra um espírito de solida-riedade e entreajuda semelhante ao que é imposto na faina do mar – com a diferença de que em terra o papel das mu-lheres tende a ser preponderante.

Este conjunto de condicionalismos materiais gerou, ao longo dos séculos, o espírito de entreajuda e uma forma equitativa de repartir o produto da pesca. Mesmo após a progressiva introdução de barcos de pesca industrial, a re-partição por quinhões [quota-parte] dos rendimentos da faina manteve-se – não é fácil convencer um trabalhador assalariado a enfrentar diariamente a morte por um salário de miséria arbitrariamente estabelecido, sobretudo se ain-da retém na memória o tempo em que todos repartiam equita-tivamente o valor do produto do trabalho, como de resto ainda hoje se faz em certas praias e al-deias piscatórias.

Por conseguinte, e pelo menos até à década de 1970, a situação laboral de uma grande parte dos pescadores era muito especial. Não eram assalariados, no sentido de terem um salário ou um período de contratação fixos; recebiam uma quota do valor do pescado – ou nada, se nesse dia não houvesse peixe. Não tinham garantias, colecti-vas ou individuais, de trabalho; em certas épocas do ano, aliás, a pesca é suspensa. Por outro

lado, encontravam-se numa situação capitalista clássica, idêntica à de todos os proletários: trabalhavam, produziam valor, mas não detinham os meios de produção (barco, re-des, aparelhos, gasóleo, etc.).

25 de Abril e relações de trabalhoAntes do 25 de Abril de 1974, um aprendiz ia para o

mar adquirir o ofício e não ganhava nada; passado algum tempo, recebia um quarto de quinhão, depois meio qui-nhão, mais tarde ¾ e por fim, se tudo corresse bem, ganha-ria o quinhão que cabe a cada tripulante; o marinheiro (ou moço) ganhava um quinhão e meio; o mestre, responsável pelo barco, pela tripulação e pela pesca, ganhava 4 qui-nhões; o chofer e o contramestre, também eles com res-ponsabilidades crescidas na sobrevivência da companha, ganhavam 2 quinhões cada um.

«Andei perto de 20 anos ao mar», recorda Floriano Sa-bino, «e a melhor coisa que me aconteceu na vida foi sair de lá. O mar é horrível. A pesca já é difícil para quem gos-ta de andar ao mar; para quem não gosta é simplesmente terrível. Depois acontece que cada barco tinha um patrão, que geralmente também era o mestre a bordo. Qualquer palavra mal dada, qualquer refilice dava sempre o mesmo resultado: “Estás despedido”. E nós tínhamos de aguentar, porque era o único meio de ajudarmos a sustentar a famí-lia. Às vezes ficávamos vários dias no mar. Mas os barcos não tinham condições nenhumas, não eram nada que se parecesse com os de hoje em dia. Muitas vezes não havia beliches para todos. Comíamos o peixe que apanhávamos. Quando podíamos saltávamos à terra para comprar pão e fruta, mas às vezes as condições do mar nem isso permi-tiam. Muitas vezes a embarcação vinha a terra descarregar e voltava ao mar sem dar tempo de lavar e secar os porões [onde se arrecada o peixe] – o cheiro tornava-se nausea-

bundo e fazia vomitar.» Por ou-tro lado, havia muitas fábricas de conservas, o peixe consumia-se com facilidade.

De maneira geral, a vida des-tes pescadores situava-se nos limites da miséria. As famílias dependiam frequentemente dos biscates que conseguissem ar-ranjar além da pesca. Mas o mais que uma rendeira de Peniche consegue ganhar à hora ainda hoje é um euro...

O mecanismo de ajuda de que os pescadores dispunham era a solidariedade mútua – um mecanismo entranhado que os levava por vezes a ajudar os presos políticos do Forte de Pe-niche, mesmo que (como acon-

«Antes dos prémios para abate dos barcos havia em Peniche cerca de 80 embarcações de grande porte; em 2010 não chegavam a 15; agora que a política de abates voltou a entrar em vigor, é de crer que não cheguem a 6»

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teceu em muitos casos) não es-tivessem de acordo com as suas ideias.

Depois do 25/Abril/1974 o pescador começou a perguntar a si mesmo se não poderia aspi-rar a uma vida diferente. Foram criados sindicatos de norte a sul do país.

O único período de descan-so semanal do pescador era entre sábado à tarde, após a descarga, e domingo à tarde, quando volta-vam a embarcar. A primeira luta dos pescadores de Peniche foi pelo descanso semanal.

A seguir veio a luta salarial. Antes do 25/Abril/1974, retira-da à cabeça a parte do armador, sobrava para a companha uma percentagem inferior a 43% do produto da pesca. Graças à luta colectiva organizada nos sindicatos, esta percentagem foi aumentando progressivamente, até chegar aos 47%.

Por essa época, um pequeno grupo de pescadores for-mou uma cooperativa que singrou bem, gerando noutros o entusiasmo cooperativo. O sector das pescas foi um da-queles em que mais rapidamente os trabalhadores compre-enderam que mesmo sem patrões a Terra continua a girar no seu eixo.

Com a criação das cooperativas e a reinstituição da res-ponsabilidade compartida, a questão salarial equilibrou-se de vez: o tripulante passou a ganhar um quinhão, o moço um quinhão e um quarto, o contramestre um quinhão e meio, e o mestre dois quinhões – a disparidade passou de 4:1 para 2:1. Entretanto, o arranque do movimento coope-rativo de Peniche, onde chegou a haver cerca de 20 coope-

rativas, viria a alargar-se a outros portos do país.

Na opinião de Floriano Sa-bino, este período das coope-rativas de Peniche foi particu-larmente bom para a vida das pessoas. As fábricas continua-ram a laborar e a comprar peixe, a pesca de cerco «enriqueceu de uma maneira espectacular».

Pouco a pouco, depois da década de 80, o movimento coo-perativo foi morrendo. Algumas cooperativas fundiram-se em empresas de pesca, que viriam a ser definitivamente estrangu-ladas pela banca. «Restam hoje duas cooperativas, que pescam bem e conseguem sobreviver. Mas há 30 anos que não se fabri-ca em Peniche um barco novo para a pesca da sardinha.»

De facto, antes de entrar as portas da muralha de Peniche, a primeira coisa que o visitante vê, no lugar onde as fotografias

antigas mostram uma profusão de estaleiros e fábricas de conservas, são as ruínas das fábricas e as carcaças fantasma-góricas dos barcos abandonados.

1 O céu, para quem não sabe, situa-se no bolso dos contribuintes, ou seja, dos trabalhadores.

2 Ver http://www.amigospeniche.blogspot.pt/.3 Testemunhos recentes dão conta de que no litoral nortenho vol-

tou a aparecer o velho hábito das vendas de peixe nas ruas e praias – provavelmente a rudeza combativa dessas populações terá imposto algum respeito aos fiscais da ASAE.

4 O carácter cultural e a intensidade com que as populações pes-queiras vivem muitos aspectos do seu dia-a-dia em terra (desde os actos de devoção aos santos padroeiros, a proliferação de ex-votos, até às formas de relacionamento sexual) tem origem nas condições materiais de vida e na vaga sensação diária, permanente, da possível proximidade morte – todos os dias o dia de hoje pode ser o último que gozarás.

O que resta: sentar-se ao sol, aquecer os ossos e cantar para a curiosidade das câmaras os fados de Peniche, onde se preserva a memória duma forma de viver e produzir destruída por sucessivos governos e capitais

«Há que suspeitar da existência de fortes relações de interesses entre os capitais da actividade intermediária e os da indústria de produção de peixe em cativeiro, obviamente beneficiada com o asfixiamento da pesca em alto mar»

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Como surgiram os piqueteros? NIC: O primeiro que se tem que ter em conta é que,

na Argentina, o movimento trabalhador e o movimento popular teve, desde o princípio do século XX, muita for-ça. Quando a recessão começou, no final dos anos de 1990 do século XX, mais ou menos 1998 – que depois rebenta na crise de 2000 e 2001 –, começam a surgir milhares de trabalhadores desempregados, muitos dos quais tinham a experiência da organização sindical e a transmitiram às or-ganizações de desempregados.

A outra vertente é a organização dos habitantes dos bairros pobres, dos bairros da lata, que também tinha uma larga tradição desde a década de 1970. Mais ou menos a partir do princípio da década de 1980 começa um fenóme-no que se chama ocupações de terras, por pessoas que não tinham casa, para construir um local para morar. Agora es-tas áreas já não são bairros de lata mas casas em tijolo, mas são igualmente bairros muito pobres. Nessa fração social, o desemprego foi sempre elevado, com muita precariedade, muita instabilidade.

MCC: Devo acrescentar algo: a organização dos de-sempregados deu-se exactamente em 1998, 1999 e 2000, e tem a ver com o que se acaba de dizer, ou seja, a experiên-cia tanto da organização sindical como da organização dos pobres nos bairros, mas também se deve às lutas que repre-sentaram o gatilho, nomeadamente os cortes de estradas

na província de Neuquén, em Cutral Có, nos anos de 1996 e 1997, seguidos pelos corte de Jujuy .

Mas como foi a primeira acção? NIC: Penso que neste caso de Cutral Có é exemplar e

parecido com o que se passa noutros lugares. As pessoas estão desempregadas, forma-se uma comissão de desem-pregados, fora ou dentro do sindicato. Em Salta, na zona de Mosconi-Tartagal, tem-se uma mobilização muito gran-de e cortes de estradas com uma participação massiva. São também ex-trabalhadores da indústria do petróleo que se reúnem porque foram postos no desemprego, a quem fo-ram prometidas indemnizações e em alguns casos que tive-ram mesmo a indemnização, mas depois apercebem-se de que não têm trabalho.

Como se construiu isso? Houve uma transformação muito grande na Argentina; passou-se de um estado de bem-estar (ao estilo europeu), que dava assistência às pes-soas, para uma situação cada vez pior a partir do golpe de 1976 e que depois, com o regresso à democracia, não se resolveu. Vinha de arrasto essa raiva. E as pessoas saíam à rua porque realmente não tinham alternativa. Historica-mente, a taxa de desemprego, desde que há registo, (dé-cada de 1960), era sensivelmente entre 3 e 6%. Era esse o máximo histórico. Em 2000, num universo de população economicamente activa de 10, 11 milhões, passa-se para

O movimento dos desempregados da crise argentinaEntrevista com os professores universitários Nicólas Iñigo Carrera e Maria Celia Cotarelo / Entrevista de Alcides Santos, Ana Rajado, Duarte Guerreiro.

Piqueteros

12% de desemprego e depois para 22%. Depois de meados dos anos de 1990, quando a política neoliberal se faz sentir fortemente, o desemprego passa a ser 16, 17, 18%, diminui depois para 12% – mesmo assim o dobro do máximo his-tórico anterior (6%) – e depois, quando rebenta a crise de 2001, chega a 22%.

A táctica emblemática dos piqueteros é o bloqueio das estradas. Mas esta táctica prejudica a imagem pú-blica desses grupos. Surgiram outras formas de actuar?

NIC: Deixa-me fazer uma correcção. O corte de estra-das é um instrumento que todos usam. Não só os desem-pregados ou os piqueteros, mas também os trabalhadores empregados.

WW: De que viviam os desempregados? Tinham al-gum tipo de apoio?

NIC: No início não. Na Argentina existe um seguro de desemprego que praticamente ninguém usa, ou antes, nin-guém usava, porque não havia tradição de o usar.

MCC: Porque era para trabalhadores com uma certa antiguidade, e trabalho formalizado, e portanto os que es-tavam em condições de aceder a isso eram muito poucos.

NIC: Primeiro a exigência é «queremos trabalhar». Depois começa a ir juntamente com «queremos subsí-dio».

Como se juntavam as pessoas?NIC: Quando se fala de movimento piquetero, é muito

importante perceber que estamos a falar de 10% dos de-sempregados.

MCC: Sucede que adquiriram um peso político muito importante, o que não acontece com os que estão organiza-dos pela igreja ou pelos partidos, pelos partidos do regime.

NIC: As pessoas juntavam-se para protestar, inclusiva-mente antes que existirem os subsídios. E depois começam a organizar-se.

No caso de Jujuy, há uma organização que começou por ser de desempregados e neste momento tem 70.000 afiliados e é o terceiro empregador da província: o pri-meiro é o estado provincial, uma empresa privada muito grande, aquela que tem o engenho de açúcar, e depois vem esta organização que se chama Tupac Amaru. Como se or-ganizavam eles? Faziam uma coisa que se chama «o copo de leite». Iam aos comerciantes ou outros que tinham um pouco de dinheiro, compravam e doavam leite e organiza-vam uma cantina para as crianças, às quais davam um copo de leite e pão. Isso foi crescendo e «o copo de leite» con-verteu-se em refeitório e então já davam almoço e jantar. Outra coisa que faziam era «os roupeiros»: pediam roupa usada, rota, velha, que arranjavam e depois vendiam muito barato. Esta era então outra forma de juntar as pessoas.

Tudo isto era em simultâneo com formação política. O que gerava uma grande discussão. Os grupos afirmam que a formação política foi um êxito mas a mim parece-me que é muito relativo.

Porque acham que o êxito foi relativo?NIC: Porque vários dos organizadores nos disseram

que a maioria ia por «comida». Isso não quer dizer que não tenha havido alguma formação política.

Qual era a política que os piqueteros tinham relati-vamente à questão da dívida pública?

NIC: Esse tema era uma bandeira em todas as orga-nizações. Agora a nossa dúvida era quanta gente se mo-bilizava contra o pagamento da dívida e quanta gente se mobilizava pelo copo de leite ou pelo prato de comida.

Qual era o grau de escolaridade que tinha os pique-teros?

NIC: Os militantes eram universitários e a base tinha a escola primária ou secundária. No geral eram pobres, mui-to pobres. O exemplo da organização Tupac Amaru é im-

«Existe uma velha tradição. Ir ao padeiro e dizer-lhe: “o pão que vendes hoje à noite, que amanhã já não vais poder vender, porque não mo dás e nós com isso…”. Procura-se solidariedade. Isso ao início teve peso. Mas depois foi secundarizado em relação aos subsídios»

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pressionante: alguns dos seus militantes têm uma origem lumpen, jovens, pobres, alguns ladrões e drogados, que deixam estas actividades para se tornar militantes.

Os sectores médios da sociedade envolveram-se com os piqueteros?

MCC: Em 2002, depois da queda do governo em De-zembro de 2001, no verão, havia o mote «piquete e caça-rola: a luta é uma só». O piquete era o instrumento dos desempregados, a caçarola da classe média. Faziam mobi-lizações conjuntas.

NIC: Houve um momento, no período de crise mais aguda, de simpatia. Mas isso só durou 6 meses…

Porque foi que se deu a rotura entre a “classe mé-dia” e os piqueteros?

NIC: Penso que há dois elementos. Um é histórico: o temor aos pobres por parte da classe média. O outro é que houve uma campanha muito forte dos meios de comuni-cação, do governo, de todas as organizações do establish-ment contra as acções de corte de estradas. Dizia-se que eram pobres que não queriam trabalhar e que queriam o subsídio para não trabalhar ou que a exigência era legítima mas o método errado porque não se deve cortar as estra-das.

Mas o governo, de alguma forma, privilegiou a clas-se média?

NIC: Não me parece. Ao sair da crise, a classe média rapidamente se encontrou numa melhor situação que os pobres. Além da política do governo, tem que se ter em conta o movimento relativo ao ciclo económico. No mo-mento agudo da crise, estão todos mal. Mas quando come-ça a recuperação, os que têm alguma propriedade, algum negócio, rapidamente começam a orientar-se, enquanto os mais pobres, se não é através do subsídio e das coope-rativas que montam, realmente não têm saída. Creio que é algo parecido com o que se passa agora na Europa. É que há uma grande parte da população que já não tem lugar na economia capitalista. Não importa o que façam. Têm que ser feitos mais investimentos. Mas mais investimen-tos implicam mais tecnologia; e mais tecnologia expulsa os trabalhadores. Então, mais investimento implica menos trabalho, e esta massa de pobres não tem outro caminho que não o subsídio, o emprego estatal, como empregado público para nada fazer. Na Argentina já há exemplos ane-dóticos como o de um posto de saúde que tinha 1 enfer-meiro e 18 empregados; é claro que os 18 empregados não iam trabalhar, nem sequer iam ao local de trabalho. São também formas de encobrir a sobrepopulação relativa.

Antes de terem tido os subsídios do governo, como se organizavam? De donde vinha o dinheiro para as pri-meiras acções? Como começaram?

NIC: Funcionavam quase sem dinheiro. Funcionavam com doações. Dependendo dos lugares, funcionavam com algum sector da igreja. Por vezes, com o amparo de algum sector político. Mas é como dizia antes: existe uma velha tradição. Ir ao padeiro e dizer-lhe: «o pão que vendes hoje à noite, que amanhã já não vais poder vender, porque não mo dás e nós com isso…». Procura-se solidariedade. Isso ao início teve peso. Mas depois foi secundarizado em rela-ção aos subsídios.

Como agiram os governos com os líderes dos pi-queteros? Houve a clássica tentativa de captação das lideranças?

NIC: Isso também aconteceu. Mas era tal a mobiliza-ção nas ruas, que havia pouco espaço para isso. É muito claro nalguns dos cortes de estradas em Jujuy: nas assem-bleias de desempregados elegem um representante que vai negociar com o governo, que por sua vez lhe dá uma série de coisas, mas quando volta, destituem-no e colocam outro porque não estão contentes com o que lhes deram.

Os piqueteros têm um impacto político muito gran-de num dos principais países da América-Latina. Como conseguiram uma dinâmica que fizesse cair 4 presiden-tes em tão pouco tempo?

NIC: Tiveram a ajuda dos presidentes! E atenção que isso não se pode reduzir ao movimento piquetero. Foi uma mobilização muitíssimo mais ampla. Juntaram-se várias coisas. Desde Dezembro, ou um pouco antes, desde Julho de 2001, até Março de 2002, havia todos os dias manifes-tações por diferentes motivos, com gente a bater nas pane-las, com pessoas a marchar, de manhã, à tarde, à noite… os bancos todos entaipados, com protecção de metal porque senão as pessoas destruíam-nos. Os políticos não podiam sair à rua. Se viam um político conhecido na rua, batiam-lhe.

Trata-se de um momento de muitíssima mobilização. Mas mesmo assim faltavam duas coisas: uma condução política (nem sequer revolucionária, pois neste caso temos que medir as distâncias – a Argentina há 40 anos… é um abismo, pois há 40 anos o problema da revolução estava em cima da mesa enquanto que hoje ninguém vê essa possibili-dade, pois está absolutamente fora do programa).

A outra coisa a considerar é que o regime de dominação reage rapidamente para acalmar a situação: cede a algumas reivindicações, convoca eleições para legitimar o governo e recebe o apoio dos partidos políticos, das organizações de empresários, do movimento sindical, em todas as suas variantes, dos organismos de direitos humanos, das igrejas católica, protestante, judaica e muçulmana, de organiza-ções não governamentais, de organizações de consumi-dores e utentes; ou seja, de todas as trincheiras do regime. Montou-se uma Mesa do Diálogo Argentino em que parti-cipam todas essas organizações.

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Todos aqueles que têm alguma vivência no movimento dos trabalhadores, mesmo sem terem pleno conhecimento das reivindicações e do desenrolar concreto da luta, ficam natural e imediatamente do lado dos mineiros, brutaliza-dos por uma polícia que veio ajudar a companhia mineira a quebrar a greve. Mas o estranho em tudo isto é que o prin-cipal sindicato mineiro, mesmo sem dirigir a luta, não de-nunciou os perpetradores desse bárbaro crime. Dedicou-se a atacar o sindicato que deu apoio à luta e não se colocou inteiramente solidário com uma luta que, no momento de escrever esta nota, ainda persiste e envolve cerca de 3000 mineiros.

O apartheid económico mantém-seForçoso é verificarmos o contexto em que se dá esta

greve e os factos que a envolveram. O marco é dado pela transição negociada por Mandela e pelo ANC (Congres-so Nacional Africano), que permitiram que as estruturas básicas de poder económico ficassem nas mãos das gran-des empresas. Mais do que isso, o ANC aderiu entusiasti-camente aos preceitos neoliberais e liderou uma onda de privatizações que vendeu a preços de saldo algumas das principais empresas do país, demitiu centenas de milhares de empregados públicos e autorizou as grandes empresas sul-africanas a deslocar as suas sedes para Londres, passan-

Um divisor de águas na época pós-apartheidAs imagens sobre o massacre de 34 mineiros por polícias fortemente armados suscitaram uma forte reacção em todos aqueles que conservam na memória uma das lutas mais justas do século XX: a batalha de décadas dos trabalhadores e da maioria negra da África do Sul contra o apartheid. Waldo Mermelstein es-creve um artigo detalhado sobre a situação do trabalho nas minas, o papel dos sindicatos e do Governo do ANC, naquele que é o mais odioso massacre de tra-balhadores desde o fim do apartheid.

O massacre de Marikana

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do a beneficiar do liberalismo das leis britânicas. Um pro-grama de promoção dos negros do país (o BEE) que, entre outras coisas, exigia a participação de negros na direção das empresas, permitiu que uma pequena elite negra tivesse acesso a participar em algumas grandes empresas. No en-tanto, as condições em que a maioria negra vive continuam muito, mas muito distantes da elite branca e dos seus pou-cos parceiros negros.

Os índices sociais do país demonstram que o apartheid permanece na sua essência e o país é recordista em desi-gualdade social: 70% da população vive abaixo do nível de pobreza, sendo que um terço da população vive com menos de 432 rands por mês (1 euro = 10,5 randes) e o desempre-go chega a cerca de 35-40% , sendo maior entre mulheres e jovens. 5% da população apropria-se de 43% da renda do país. Como era de esperar numa economia que permanece nas mãos dos grandes grupos capitalistas brancos, a relação entre os rendimentos de negros e brancos mantém-se qua-se a mesma dos tempos do infame apartheid: se em 1993 os brancos tinham rendimentos 8,5 vezes superiores aos dos negros, em 2008 essa relação era de 7,68 vezes (ver em http://dx.doi.org/10.1080/0376835X.2012.645639), sendo que o índice de Gini, um dos que medem a desigual-dade, aumentou de 0,66 para 0,70 no mesmo período.

Como se corrompe um sindicatoUm dos sectores mais importantes na economia sul-

africana foi sempre a mineração – tradicionalmente as mi-nas de ouro e cada vez mais as minas de platina, utilizada em jóias e catalisadores de carros. As condições de vida dos mineiros sempre foram muito duras: se durante o apar-theid os trabalhadores viviam em dormitórios comuns nas próprias minas, agora vivem em barracas miseráveis nas comunidades ao redor das minas, com as suas famílias, sem

condições de saneamento e sempre sujeitos às doenças profissionais características da profissão: a tuberculose e a silicose que, aliadas aos acidentes, reduzem drasticamente a vida desses trabalhadores. Se na época do apartheid havia uma diferença salarial grande entre trabalhadores negros e brancos, o fim do regime levou a que as empresas utili-zassem a arma da subcontratação para diminuir os salários médios, utilizando trabalhadores das regiões mais pobres do país e incontáveis trabalhadores migrantes, que perfa-zem cerca de 1/3 da força de trabalho.

O sindicato mais importante que representa histori-camente os mineiros, o NUM (National Union of Mi-neworkers), foi fundado em 1982 e foi uma peça central na luta contra o apartheid e na construção da principal central sindical do país, a COSATU. No entanto, o final do regi-me e a íntima relação do sindicato com o ANC e respectiva política determinou mudanças importantes no seu papel. São crescentes as críticas às suas relações com as empresas mineiras. Não é de admirar que o seu último congresso, em 2012, tenha recusado a luta pela nacionalização das minas, bandeira histórica do movimento na África do Sul.

Por outro lado, a sua estrutura tornou-se uma via de ascensão social para os delegados e dirigentes sindicais. Há um mecanismo para promover isso: o NUM criou em 1995 uma empresa, a Mineworkers’ Investment Trust, que em 2011 possuía ativos de 2800 milhões de rands (14 vezes mais do que o valor anual das quotizações dos seus afilia-dos) e que possui investimentos inclusive nas empresas de mineração, como a Lonmin. Esse fenómeno estimulou o enriquecimento dos seus dirigentes. O exemplo mais gri-tante, mas não o único, é Cyril Ramaphosa, ex-dirigente máximo do NUM, que se tornou um milionário e acionista minoritário da própria Lonmin. Mas a própria estrutura sindical mudou: tornar-se um delegado sindical no NUM

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significa um aumento salarial im-portante, mesmo para os que não são funcionários a tempo inteiro, auferindo um salário 3 a 4 vezes superior ao que recebia como mi-neiro. Fica registado como empre-gado do sector de pessoal e quan-do deixa de ser delegado sindical não retorna ao poço e às galerias da mina. Os dirigentes de topo ganham salários milionários pa-gos pelo sindicato. O salário que o sindicato paga ao atual secretário-geral, Frans Baleni, é de 105 mil rands, ou seja cerca de 25 vezes o que ganha um britador.

É bastante óbvio que estes factos determinam uma mudança na atividade e na representatividade do NUM, especialmente entre os sectores mais mal pagos, os sub-contratados (somente 10% dos seus membros são subcon-tratados), ainda que continue a ser o principal sindicato mineiro do país. Em 2001, alguns dirigentes expulsos do NUM em 1998, sem acusações claras, fundaram um novo sindicato, o AMCU (Association  of Mineworkers and Construction  Union), que passou a fazer parte do mo-vimento sindical mineiro. Com a perda de prestígio do NUM, especialmente na região das minas de platina, de-vido ao seu papel nas greves dos últimos anos, o AMCU foi-se fortalecendo e conquistou o direito de representar os trabalhadores em algumas minas. Não é possível ainda predizer o caminho que adotará o AMCU, mas a verdade é que faz parte do panorama sindical dos mineiros, não é um sindicato criado pelas companhias mineiras, como alega o NUM. Aliás, seria uma péssima ideia a de criar um sindi-cato que agora apoia uma greve que paralisa já há 22 dias

o complexo de 28.000 mineiros de Marikana...

O conflito de MarikanaCom a crise mundial, a par-

tir de 2008 diminui a procura de platina por parte das empresas automobilísticas e as companhias mineiras procuram diminuir ainda mais os seus custos salariais. Daí resultaram várias greves e ocupa-ções na região da mineração de platina, com milhares de demiti-dos e alguns mortos. A violência

policial é uma constante na África do Sul pós-apartheid: a polícia mudou a cor dos seus agentes, mas não as suas prá-ticas, como pudemos acompanhar nos vídeos sobre o mas-sacre e nas justificações posteriormente apresentadas pelas autoridades policiais.

A insegurança com relação ao emprego, os aumentos dados a um setor de trabalhadores em detrimento de ou-tros, os aumentos conquistados por outras minas vizinhas são o combustível que levou 3000 mineiros, os britadores – que com o corpo parcialmente coberto pela água, com britadeiras de 25 kg, sob o risco de desabamentos e esma-gamento por rochas, ganham cerca de 4000 rands líquidos (ou seja, menos de 400 euros) – a entrarem em greve. Não conseguindo resolver o conflito, a empresa mineira apela ao seu recurso tradicional: a polícia. A ação da polícia visou claramente «dar uma lição» aos mineiros. Entrou em cam-po com armamento pesado, helicópteros, encurralou os mineiros e massacrou-os covardemente quando estavam numa colina que não era propriedade da empresa. Como disse a relações públicas da polícia horas antes do massacre,

«Cyril Ramaphosa, ex-dirigente máximo do NUM, sindicato dos mineiros pró-governo da África do Sul, tornou-se um milionário e acionista minoritário da própria Lonmin»

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«infelizmente, hoje é o dia D». Após o massacre foi como se todo um enredo ainda um pouco obscuro se fizesse evi-dente no país: a polícia é a mesma, as empresas mineiras são as mesmas, o sistema económico essencialmente o mesmo, com a pequena adição de uma elite negra. O NUM e a CO-SATU em nenhum momento expressaram a sua solidarie-dade incondicional com os mineiros massacrados e com a sua luta (até hoje não apoiam a luta, pois esta é pretensa-mente ilegal segundo as leis do Es-tado capitalista da África do Sul), cobrindo de vergonha a gloriosa tradição da classe trabalhadora sul-africana, que sempre se guiou pelo princípio de que “an injury to one is an injury to all” [quem ofen-de um, ofende a todos]. O mesmo fez o Partido Comunista da África do Sul, parte do governo do ANC (além de participar na chamada Aliança Tripartida que governa o país, formada pela COSATU, ANC E PC, que tem o Ministério da Educação), que preferiu atacar o sindicato dissidente e não se dis-sociar do governo que enviou a polícia nem prestar a sua solidarie-dade aos mineiros em luta.

Pior, após o massacre, o NUM, a COSATU e o PC sul-africano dedicaram-se a atacar o sindicato rival, dizendo que os operários ti-nham sido enganados, que eram atrasados, que a greve era dema-gógica. Quanta distância do herói-co sindicato mineiro que defendia os trabalhadores negros superex-plorados durante o apartheid!

A onda de greves no setor mi-neiro segue um padrão em que os operários se organizam, começam uma luta e pedem em vão aos sindicatos que os apoiem. Por isso vimos o líder do AMCU ir ao conflito, pedir que desocupem a colina e retirar-se após a recusa.

A greve continuou após o massacre, organizada nas comunidades das imediações da mina, e estendeu-se a ou-tras minas. Enquanto 250 trabalhadores da Lonmin estão presos, acusados de violência e de greve ilegal, o NUM, a COSATU e o PC viram-lhes as costas, chegando mesmo a atirar acusações contra o ACMU e a pedir a prisão dos seus dirigentes.

O NUM está perante uma encruzilhada: irá consolidar-se como um sindicato amigo das empresas mineiras e cada vez mais representante dos trabalhadores de colarinho branco e dos que não estão no subsolo e ser superado por

outros sindicatos, ou retomará as suas gloriosas tradições? Da mesma forma a COSATU, que terá seu congresso em setembro, terá que avaliar a sua aliança com o governo do ANC, o seu crescente peso nos setores mais bem pagos dos trabalhadores do país e o crescente distanciamento dos se-tores mais combativos e explorados dos trabalhadores.

O governo, embaraçado, tenta evitar a óbvia associação entre o massacre e a longa história do apartheid – o que não

o salva de seu envolvimento num acontecimento que já é designado «o Sharpeville do ANC» (refe-rência ao massacre de 69 negros que se manifestavam pacificamen-te em 1960 contra a Lei do Passe, que impedia a livre circulação dos negros durante o apartheid, confi-nando-os aos bantustões e favelas imensas, como o Soweto).

Os representantes do NUM não podem pôr o pé nas comu-nidades mineiras vizinhas. Os 2 milhões de rands oferecidos por Cyril Ramaphosa para o enterro das vítimas foram rejeitados e os mineiros sabem que essa triste fi-gura comprou recentemente um búfalo por 18 milhões de rands.

A rebelião dos pobresO massacre de Marikana tam-

bém se insere num contexto de lutas importantes nas comunida-des mais pobres, que aumenta-ram significativamente a partir da assunção de Jacob Zuma como presidente. Essas mobilizações levantam milhares de pessoas, segundo as estatísticas da própria polícia sul-africana,. Represen-tam o protesto das comunidades

pobres e são genericamente designadas «rebelião dos pobres». Vários ativistas morreram nas mãos da polí-cia, como Andries Tatane, professor, quando participava numa mobilização de 4000 pessoas da cidade de Ficks-burg, em 2011.

Começa a definir-se uma procura de explicações e al-ternativas a uma liderança nacionalista que, como tantas outras no continente africano, após a libertação da opres-são nacional ou racial desenvolveu uma política de manu-tenção das estruturas do capital e criação de uma burgue-sia negra a partir das estruturas do Estado. É um processo doloroso, mas que irá desenvolver-se no próximo período no país e do qual depende o futuro de milhões de traba-lhadores sul-africanos.

«O país é recordista em desigualdade social: 70% da população vive abaixo do nível de pobreza, sendo que um terço da população vive com menos de 432 randes por mês e o desemprego chega a cerca de 35-40%, sendo maior entre mulheres e jovens. 5% da população apropria-se de 43% da renda do país.»

Entrevista com o mineiro asturiano Jorge Fernández Jorge Fernández Moral tem 34 anos. É mineiro nas Astúrias desde os 20 anos de idade. Esteve em Madrid, na noite memorável em que a marcha dos mineiros iluminou a cidade com o apoio dos trabalhadores locais. É sindicalizado na Corriente Sindical de Izquierda (CSI) e fala-nos nesta entrevista do sindicalismo de com-bate. / Entrevista de Alcides Santos, Duarte Guerreiro, Raquel Varela.

«Emocionei-me com o apoio»

nhamos combinado várias reuniões. No mesmo dia da ma-nifestação dos mineiros, à tarde, fez-se outra em Madrid, dos sindicatos alternativos, muito grande; encheram a Pra-ça do Sol. Eu emocionei-me com o apoio.

E como é o teu trabalho na mina? Trabalhas quantas horas por semana?Já não desço, já o fiz. Agora trabalho cá em cima, no labora-tório. 40 horas semanais.

Qual é o teu salário mensal? 1400 euros.

Líquidos?Sim, líquidos.

Neste momento vocês estão sob ameaça de desempre-go real?Sim. O que foi tornado público foi que haverá cortes, o que nos prejudica, sobretudo nas minas privadas. Hoje voltá-mos a trabalhar. Acabou a greve. Mas há minas que hoje (3 de Agosto de 2012) já estão fechadas. Não deixaram entrar os trabalhadores.

O que se passa com os empregados que vão para o de-semprego?Pois ficam desempregados!

Jorge, foste a Madrid na marcha dos mineiros?Não fui na marcha das Astúrias a Madrid, reuni-me com eles em Madrid. E qual foi a sensação ao ver tanta gente?Excelente. Eu chorei com o apoio que tivemos. Não só pela manifestação da parte da manhã, mas pela recepção que tivemos à noite. Na manifestação havia muitos políticos, interesses, etc. Mas eu fiquei por lá 3 dias mais, porque tí-

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O que pensas tu desta situação?As pessoas ficam desempregadas! Que queres que pense? É uma vergonha. O Governo está a exigir-nos sacrifícios, a toda a população, mas não cumpre com o que se com-promete. Nós tínhamos um acordo assinado até 31 de Dezembro deste ano, em que nos concediam subsídios. Mas não são só as ajudas. Havia uma produção acordada. Mas cortam as ajudas e a produção. Porque essa é a outra cara da moeda. Cortam-te a produção e ficas ainda com menos dinheiro.

Estes novos movimentos, como o 15 M, Indignados, criticam muito as actuações dos sindicatos. Mas em Espanha vemos que há sindicatos combativos. A que sindicato pertences? Pertenço à Corrente Sindical de Esquerda.

Porque pertences a esse sindicato? Porque é combativo. É um sindicato da minha região, das Astúrias, que eu conheço desde criança, que é muito combativo e que tem uma forma de funcionar que não de-pende de Madrid e não é afim a qualquer partido político, que é o que eu gosto. Não como a UGT ou Comissiones Obreras. Na CSI quando atacam um, atacam todos. Não se deve favores a nenhum partido. Uma vez por mês faze-mos manifestações, movemo-nos muito. Acontece que os meios de comunicação não o mostram…

O que impressionou todo o mundo foi a combativida-de dos mineiros e a capacidade de agredir a polícia, de confrontar-se com o Estado. Os novos movimentos sociais criticam muito a organização. Ora, para com-bater a polícia dessa forma, tem que se ter alguma or-ganização, não é?Evidentemente. À maluca não se faz nada. Ou seja, há organização. São sobretudo grupos pequenos. Temos o problema da repressão, de infiltração da polícia secreta e antiterrorista…

Que tipo de solidariedade vocês têm recebido?O mais importante foi o apoio e dar-nos a conhecer. Por vezes sabia-se fora do país, mas Madrid não se sabia o que estava a acontecer. Principalmente recebemos mui-to apoio moral. Mas também recebemos muito apoio económico. A UGT tinha umas contas abertas, para que as pessoas fizessem depósitos, e não sei quanto deposi-taram. Mas sei que estamos a receber bastante ajuda. É uma ajuda muito importante e necessária. Como dizia, sofremos repressão exagerada. Não é tanto se recebemos ou não, mas as multas que nos passaram (por acções de resistência que o Estado considera ilegais), que são bas-tante grandes, há um dinheiro guardado para isso.

Diz-nos como tomam decisões sobre as formas de

luta? É em plenário aberto a todos os trabalhadores ou é o sindicato que decreta a forma de luta? Inicialmente houve uma divisão muito grande entre os dois sindicatos maioritários (UGT e C.O.). Cada uma das cúpulas queria fazer coisas diferentes.

Cá ouvimos dizer que as C.O. não vão dar dinheiro aos mineiros se estes cortam as estradas ou se fazem algo ilegal. Confirmas essa notícia? Isto é verdade?Não, isso não é verdade. A maior discrepância foi o tema do fecho. Em conjunto tinha-se convocado uns dias de greve, dois dias por semana, mas a UGT quebrou o acor-do e pôs gente a fechar a mina para que a greve fosse in-definida. Mas uma greve indefinida é difícil de manter. O Governo dá um passo atrás, as pessoas não vêem nenhu-ma saída e ficam sem dinheiro para viver, pagar os em-préstimos da casa… O C.O. lutava por se fazerem greves semanais, cortes de estradas e deixar a greve indefinida como último recurso. Agora estamos numa situação um pouco ridícula. Voltámos todos ao trabalho, depois de es-tar dois meses e tal em greve e sem ter obtido nada. Nada de nada.

Que pensas que vá passar daqui para a frente?Não sei. Penso que se vai fazer mobilizações mas com um pouco mais de lógica. Não tão esgotantes. O que sabemos é que não vamos desistir. Temos que seguir em frente.

Que fazem vocês quando há conflitos entre sindica-tos? Há muitos problemas entre as centrais maioritárias. Acon-tece que o tipo de reivindicações é muito antigo. Foram os nossos pais há alguns anos, e os nossos avós há muito mais anos. Portanto, mesmo que as cúpulas tenham pro-blemas, nós sabemos o que temos que fazer. Porque já o fizemos antes. Quando há problemas, não necessitamos que a cúpula nos diga o que temos que fazer.

O tipo de relação que se estabelece entre pessoas que têm um trabalho físico como vocês é completamente diferente daquele que se estabelece entre pessoas que trabalham num escritório. Parece-te que o facto de o vosso trabalho ser físico influenciou a vossa forma de luta e o vosso companheirismo e por isso teve o im-pacto que se viu?Pode ser. Mas não é só isso. Há outros trabalhos mais fí-sicos. Acontece que nas minas trabalham populações in-teiras, e que ficam sem trabalho. Mas o mais importante é que as lutas são muito antigas e vivemos com elas desde criança. Ao contrário de outras profissões, nós somos or-gulhosos de sermos mineiros. É algo que se tem que sen-tir. Podemos ter problemas entre nós, mas no momento em que temos que lutar, lutamos em conjunto. Como te digo, sentimos orgulho em sermos mineiros.

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Entrevista com Paulo Nakatani

«A dívida dos Estados, de uma forma ou outra, atende aos interesses do capital. Então, em última instância, do ponto de vista dos trabalhadores, ela deveria ser anulada ou cancelada»Paulo Nakatani é hoje um dos economistas marxistas que mais estudou a questão da dívida pública. Em várias obras argumenta que não se pode falar em «legitimidade» da dívida sem denunciar o mecanismo da dívida como uma forma privada de acumulação de capital. Neste número publicamos a primeira parte desta entrevista, que nos abre as portas ao conhecimento mais detalhado deste modelo de espoliação – dívida pública – agora aplicado na periferia da Europa. / Entrevista de Filipa Lopes, Raquel Varela, Renato Guedes.

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O que é a dívida pública?Antes de mais queria dizer que é um prazer poder con-

versar com vocês, conversar com companheiros portugue-ses que se interessam por uma visão marxista da economia e da sociedade.

A questão da dívida pública tem de ser entendida den-tro da concepção do Estado capitalista. O estado capitalista é um estado que em última instância, tirando todas as ou-tras determinações mais concretas, está ao serviço do ca-pital. A dívida pública inicialmente foi criada como forma de financiamento de gastos do estado – na idade moderna, nos séculos XVII e XVIII, a grande despesa do estado eram as guerras. Para alguns Estados, essa despesa continua a ser o maior gasto no século XXI. Na actualidade a sociedade foi criando necessidades em que o estado tem de financiar o capital. Normalmente isso não é explicado, mas mesmo quando o estado se propõe inclusive a ajudar os trabalha-dores, em última instância está também a ajudar o capital. Vou dar-vos um exemplo: a maior parte dos estados capi-talistas tem um sistema de educação e saúde, programas de apoio aos pobres. Por exemplo, no caso brasileiro, nós temos actualmente o programa chamado Minha Vida, Mi-nha Casa – o governo brasileiro tem um programa de cons-trução de casas para os pobres. Mas além dos pobres que vão receber estas casas, o capital que produz as matérias-primas para fabricação de casas, o material de construção, etc., vão ser beneficiados. Então o mecanis-mo de funcionamento do estado capitalista faz com que os gastos capitalistas sempre acabem, em úl-tima instância, apoiando o capital, melhorando certas fracções, certos sectores, certas actividades. Mes-mo quando o objectivo imediato é o apoio aos trabalhadores.

Quando o Estado cria dívida é para ajudar o capital. Mas nas últimas décadas, no chamado pe-ríodo neoliberal, existem coisas muito mais complicadas. É que grande parte da dívida dos estados é construída a partir do pagamen-to de juros da remuneração dos empréstimos que já foram feitos anteriormente. Vou dar-vos um outro exemplo, aqui no Brasil, du-rante a crise da dívida dos anos 80. Em 1979 os americanos mudaram a política de juros e passaram a au-mentar a taxa de juros; o governo brasileiro então estatizou a dívida externa privada. A dívida externa brasileira em De-zembro de 1980 era de 53,8 mil milhões de dólares. Dez anos depois era de 96,5 milhões. O total de juros pagos nes-

ses dez anos foi de 103,6 mil milhões. Pagou-se em juros desta dívida mais do que o dobro do que se devia.

Estes números são referentes à divida brasileira?Sim, na década de 1980. Os países tinham uma dívida

externa que praticamente duplicou em 10 anos e pagou-se o dobro de juros. O que está a acontecer na Europa hoje aconteceu na América Latina, em África, no resto do mun-do, nos anos oitenta. O que acontece nesse processo é que os governos vão assumindo dívidas para garantir condições de remuneração do capital.

Pode explicar-nos um pouco melhor a situação da Europa?

Há 10 anos o sistema monetário europeu foi modifica-do. Os diferentes países abdicaram da sua soberania sobre uma política monetária nacional. Países como Portugal, Grécia, Espanha não têm soberania monetária, então sub-metem-se ao Banco Central Europeu, que determina os mecanismos da política monetária. E mais: nem os bancos centrais nacionais e nem o Banco Central europeu podem financiar os tesouros nacionais; quando o BCE compra tí-tulos da Grécia, Espanha ou Portugal, ele compra-os aos bancos privados – não é um empréstimo aos governos. É totalmente diferente por exemplo do caso brasileiro, onde

o Banco Central do Brasil financia o Tesouro, ou seja, a dívida que o Tesouro tem é paga em última instância pelo Banco Central. Isso acontece em boa parte dos países que têm o banco central com uma certa soberania sobre a sua políti-ca monetária. Isso não quer dizer também que o Banco Central do Brasil tenha completa soberania.

Os gastos do estado em fun-ções sociais teriam como objec-tivo atender às necessidades das classes dominantes. Você en-quadra aqui a Segurança Social?

Sim, veja. Quando eu era crian-ça no interior do Brasil, as famílias cuidavam das crianças e dos idosos. O capitalismo acabou com isso. As crianças e os idosos cada vez mais deixam de ser criados pelas famí-lias. Principalmente os idosos. O capital para poder manter a sua reprodução precisa de ter traba-

lhadores com saúde, trabalhadores que a cada dia possam recuperar as suas energias e no dia seguinte estar disponí-veis para o capital. Parte do chamado estado do bem-estar social, que criou uma série de benefícios, existe para que

«O que está a acontecer na Europa hoje aconteceu na América Latina, em África, no resto do mundo, nos anos oitenta. O que acontece nesse processo é que os governos vão assumindo dívidas para garantir condições de remuneração do capital.»

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os trabalhadores se sintam melhor para poderem trabalhar para o capital. É claro que se eu vivo numa sociedade em que o estado me traz um conjunto de benefícios que outros não tragam isso é bom. Mas também é importante lembrar que o estado precisa gerir a força de trabalho.

A sua tese é que o motor dessa melhoria não é satis-fazer a necessidade dos trabalhadores, e sim satisfazer a necessidade do capital. E se no meio disso ganhamos alguma coisa é mera casualidade.

Não, eu não diria casualidade. Se os trabalhadores ga-nham é consequência de lutas, em que eles se defrontam contra os capitalistas. O que eu estou querendo colocar é o seguinte: o sistema necessita de força de trabalho. Assim, quando há excesso em algum país e existe a possibilidade de transferir actividades, por exemplo dos Estados Unidos ou da Europa para a China, para utilizar trabalhadores que recebem um salário mais baixo para aumentar a taxa de ren-tabilidade dos capitais europeus ou americanos, é melhor!

Nos países capitalistas há uma dívida legítima e uma dívida ilegítima?

Esse conceito de dívida legítima e ilegítima é controver-so. O conceito de dívida ilegítima, utilizado pelo Comité para a Anulação da Dívida no Terceiro Mundo, foi aplica-do inicialmente pelos norte-americanos a respeito das dí-vidas do Iraque. Eles argumentavam que as dívidas que o Saddam Hussein tinha contraído eram ilegítimas, porque ele era um ditador. A dívida ilegítima é quando um Estado faz uma dívida que não traz benefício para a sociedade e a dívida odiosa é quando ela é feita para uso contra o povo.

A questão da legitimidade da dívida é controversa tam-bém porque o que ocorreu em muitos países é que dívidas que eram privadas, dos capitalistas, foram estatizadas. Em 1979, no Brasil, cerca de 80% da dívida externa era privada e a maior parte dela foi estatizada, como explicámos. É cla-ro que actualmente esses dados são diferentes.

É preciso fazer uma auditoria, se aquilo que os tra-balhadores pagam ao Estado é mais do que recebem?

Em rigor não é necessário. Mas é que a auditoria se en-quadra dentro de uma norma chamada de legalidade.

Do ponto de vista da economia marxista, do ponto de vista mais abstracto, existem argumentos suficientes para dizer que não há dívida para ser paga pelos traba-lhadores.

O significado da dívida está relacionado com os proces-sos de endividamento de cada país, não é possível generali-zar. Em termos gerais, no sentido teórico marxista, a dívida pública constitui uma parte de um capital que existe, que é, vamos dizer, inicialmente empréstimos, recursos toma-dos pelo Estado que foram gastos e convertidos em títulos, onde a riqueza foi consumida e sobra uma representação da riqueza na forma de dívida. E essa representação exige o pagamento contínuo de juros. Nessa dívida não se pode nem culpar trabalhadores, nem capitalistas, nem governo. É o resultado de um processo. No sentido mais geral, mais amplo. O que é possível é que em cada caso concreto, cada dívida que foi assumida e que gera necessidade de paga-mento, essa dívida específica pode ser ilegítima ou odiosa e deveria ser cancelada.

«o que ocorreu em muitos países é que dívidas que eram privadas, dos capitalistas, foram estatizadas. Em 1979, no Brasil, cerca de 80% da dívida externa era privada e a maior parte dela foi estatizada»

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Lemos num artigo seu a explicação de mecanismos de permutação de dívida privada em dívida pública, ci-tando o exemplo brasileiro, nomeadamente a emissão de dívida para controlo da base monetária. Tem ideia de como se processa este mecanismo em países como Portugal? Sendo um país que tem um Banco Central Europeu.

Eu ando preocupado em conhecer um pouco melhor o sistema Europeu. Porque realmente não consigo entender o mecanismo todo. Há um tempo atrás você tinha o Estado que cobrava impostos e tinha despesas. As receitas tinham que ser pagas em dinheiro. Dinheiro era feito de ouro. E ti-nha uma instituição, às vezes pública, às vezes privada, que fazia esse dinheiro ouro. E todos os impostos eram pagos com esse ouro ou essa moeda de ouro ou prata. Teve um momento em que o estado passou a assumir a função de fabricar esse dinheiro. Ou seja pegar o ouro das pessoas e cunhar moedas, fazer o dinheiro (padrão ouro). E com o desenvolvimento chegou o momento em que o estado recolheu as moedas de ouro e colocou papel em seu lugar com a promessa de devolver o ouro em troca das moedas (padrão conversível). Mais tarde, devido a diversas razões, a conversibilidade do papel-moeda em moedas de outro foi eliminada (fim do padrão ouro). Todo o dinheiro que era riqueza pessoal das famílias e das empresas, o estado trocou-o por um papel-moeda que é uma dívida. Esse pa-pel-moeda que nós usamos hoje é uma dívida do estado. Temos o lado do Tesouro que cobra impostos. Então você pode pagar com este papel-moeda. E como o sistema ficou cada vez mais complicado, foi criado um Banco Central. O Banco Central ficou responsável de criar o papel-moeda que é a dívida do estado. E o estado começou a criar uma outra dívida, a dívida pública em papéis. Esses papéis cha-mados de Títulos do Tesouro ou Títulos de Dívida são diferentes do papel-moeda. Mas ambos são dívidas. Toda a relação do estado com o mercado, através do Banco Cen-tral, funciona com estes dois tipos de dívida.

O sistema hoje funciona assim, eu tenho um governo que pegou aquela riqueza das famílias, das pessoas, em for-ma de riqueza material, e trocou isso por papel-moeda, e ao lado ele criou uma dívida de papéis chamada de dívida pública, que rende juros ou que não rende juros. Os capi-talistas trazem dólares para comprar empresas, títulos do governo ou acções, que o Banco Central tem que comprar para permitir que a operação seja realizada na moeda na-cional. Quando o Banco Central compra esses dólares, cria moeda e para que a quantidade de moeda não aumente a inflação, segundo a teoria que o Banco Central segue, ele vende títulos públicos. No caso da Europa, a complicação que eu não consegui entender ainda, é que você não tem mais Banco Central para fazer isso, quem faz isso é o Banco Central Europeu. É o Banco Central Europeu que vai criar papel, que vai vender ou trocar papel pelos títulos dos ban-cos, e vai sobrar para os bancos centrais nacionais só uma

gerência de liquidez. Eu não entendo exactamente o que é essa gerência de liquidez.

Será o mercado aberto?O que eu entendo por mercado aberto é o seguinte: os

bancos centrais vão comprar e vender títulos dos governos, trocando aqueles títulos que não pagam juros por aqueles que pagam juros. Então parece-me que é só essa a função dos Bancos Centrais Europeus. Não tenho a certeza, terei de pesquisar mais.

Basicamente é isso, e também faz as operações de longo prazo.

Sim, converter curto prazo em longo prazo, fazer os ajustes temporais.

Mas em termos da dinâmica do capital o que me parece é que os bancos centrais dos países europeus não têm mais papel nenhum a jogar.

Quer dizer, fica ao critério de cada banco definir esse controlo de liquidez, de acordo com as taxas de re-ferência do Banco Central Europeu. Ou seja o Banco Central define a taxa e cada Banco Central local é que gerência.

Sim. Mas, são os bancos privados que determinam quanto será a taxa de juros que os governos devem pagar pelos seus títulos soberanos.

O BCE emitiu, há 3 semanas ou 4, 460 mil milhões de euros supostamente para recapitalizar a banca. Ora, não foi dito de onde é que vem esse valor. Que dinheiro é esse que foi emitido, porque não houve uma transfe-rência dos estados para o Banco Central Europeu. Isso é o quê? É um papel que não existe? Ou é um papel que daqui a uns tempos vai aparecer nas chamadas dívidas públicas de cada país?

É a maquineta a rodar e a imprimir. Antigamente quan-do a gente tinha dinheiro que era ouro, não tinha como criar dinheiro. Quando se acabou com isso, os governos criam dinheiro. Não tem limite. Então os bancos centrais de todos os países criam dinheiro assim. Eles criam activo e criam passivo nos bancos comerciais. É pura contabilidade.

Mas tem um preço: a inflação. Ou não?Não. Depende.

Como é que se pode imprimir de repente tanto di-nheiro na Europa, e isso não ter efeito na inflação?

Se você cria dinheiro e envia para famílias pobres que vão gastar o dinheiro, pode criar inflação para os produtos que não existe uma grande oferta. Se você criar dinheiro e entregar para os grandes capitalistas, que vão converter esse dinheiro em capital para ganhar mais dinheiro, não tem efeito nenhum sobre a inflação.

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Tombuctu foi tomado no início do ano. Ouve-se em Nouakchott que duas dúzias de pick-ups cheias de homens armados bastou para colocar o exército do Mali em debandada. Os charters com turistas europeus e norte-america-nos deixaram de se ouvir no aeródromo local. Uma unidade militar pouco ortodoxa entre os independentistas tuaregues do Sahel – Movi-mento de Libertação Nacional (MNLA) – e a Al-Qaeda do Magreb Islâmico (AQMI) gover-na de facto um território sem que nem ociden-te nem tropas dos países vizinhos ensaie uma aventura militar. O governo do Mali colapsou antes mesmo do golpe de Estado.

O impacto na Mauritânia é imenso e é fácil confirmar que há muitos jovens que se estão a deslocar para a frente de guerra. Elemine ould Mohamed Baba, professor de história na Uni-versidade de Nouakchott, é um estudioso da cidade e da sua evolução desde o tempo da sua fundação. Lamenta algumas das coisas que se perderam e eram, de alguma maneira, patrimó-nio colonial; mas não se considera um saudosis-ta, à exceção, confessa, «do cinema».

A Mauritânia é uma das três Repúblicas Islâmicas do mundo. Se sobre a primeira e a segunda muito se escreve, a Mauritâ-nia costuma ser resumida ao país que fica a Sul de Marrocos e por onde, em tem-pos, passava o Paris-Dakar. É tida como o campo de recrutamento da Al-Qaeda para o Magreb Islâmico (AQMI), sobretudo para alimentar a frente de guerra no Norte do vizinho Mali. Uma vez que a contiguida-de do deserto nunca se desenhou pelo compasso dos colonos nem foi capaz de delimitar culturas, não se lhe pode pedir para travar a transumância da artilharia. Está na sua natureza – o deserto é um fio condutor, não uma barreira. Mas as razões da guerra estão mais ligadas à economia do que à geografia, à política ou à fé da região. / Renato Teixeira

O capitalismo, a crise e o desemprego estão a levar a juventude para o fundamentalismo

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Oriundo de uma família muito tradicional, Elemine ould Mohamed Baba recorda as idas ao cinema às escon-didas do pai ainda no tempo do colono. «Arriscava tudo para ver o Jackie Chan», seu herói da adolescência. Ques-tiona a excessiva islamização da sociedade mauritana e a apatia em que acha que as novas gerações se encontram: «Na universidade os meus alunos só se entusiasmam com duas coisas: Islão e futebol», conta, à medida que se prova o borrego sacrificado para a ocasião. «Depois do maoismo nos anos 70 e do nacionalismo árabe, os dois movimentos que marcaram a juventude do meu tempo, os jovens de hoje não gostam da política, não gostam dos políticos.»

Elemine conta que «os salafistas estão a ganhar força mas ainda são marginais na sociedade mauritana. Estão na oposição, tal e qual como a coligação das forças pro-gressistas». Para ele, «o aumento do desemprego favo-rece essas correntes, que olham com desprezo para os políticos que estão no poder».

Identifica que há um processo de tribalização, «o vín-culo geracional está a voltar a ganhar preponderância e isso é consequência da crise de identidade que vivemos. A noção de tribo devolve-lhes o sentimento de pertença».

No seu tempo os jovens estavam furiosos com os acordos pós-coloniais feitos com os franceses, sobretu-do os acordos económicos, de exploração das riquezas nacionais; mas os movimentos de protesto, duramente reprimidos, foram paulatinamente confiando nas lideran-ças que emergiram da independência nacional. «Os mo-vimentos maoistas foram derrotados por culpa própria, boa parte deles acabaram integrados no regime e são hoje grandes figuras do Estado. Saíram do campo da esquerda e viraram-se para outros grupos. A maior parte deles nem sequer se preocupou com os lugares do Estado e hoje são grandes homens de negócios.»

Houssein Mahand, diretor do Al-Amel al-Jadid – A Nova Esperança –, um jornal oposicionista, é peremptó-rio: «O partido islamista – o Tawassoul – abandonou a aliança com o partido do governo e procura agora fazer uma com a oposição progressista [A RFD – Coligação das Forças Democráticas (RFD) e os socialistas]. Ambos procuram partir o regime. Fazê-lo cair. Desestabilizá-lo.»

Conta-nos que a sua base é formada nas mesquitas, onde contam com o apoio de destacados clérigos, apesar do esforço de institucionalização feito pelo Estado.

A crise económica internacional também pauta a vida na Mauritânia, política e economicamente, e os jovens começam a tomar consciência e a intervir mais na socie-dade. «Houve expressões nacionais da dita Primavera Árabe, mas ainda muito embrionárias», admite Mahand.

Para este jornalista o Irão continua a ser a referência para a maioria das pessoas: «É um ator principal nos dias que correm. A sua dimensão política e ideológica é incon-tornável em todo o mundo muçulmano, mesmo fora dos

grupos xiitas. São uma espécie de farol e são, para o bem e para o mal, um elemento de coesão.»

A oposição que fazem à ordem internacional, sobretu-do aos americanos, constitui para Mahand um catalisador de entusiasmo popular, uma vez que considera que as li-deranças dos países ocidentais estão muito mal cotadas na região. «O Ocidente mas também os povos sunitas estão a reconhecer a importância que o projeto político xiita tem no mundo muçulmano. Estejamos a falar da Síria, do Líba-no ou do Iraque. Têm uma aura mobilizadora, sobretudo entre os mais jovens.»

Entende que uma eventual guerra entre o Ocidente e o Irão será catastrófica para todo o mundo e alerta que os efeitos da crise internacional, que também é uma reali-dade na Mauritânia, podem ter efeitos imprevisíveis. «A gasolina sobe sistematicamente. A vida está mais cara. A instabilidade política que se vive no Mali funciona como um catalisador da crise económica, e o contrário também é verdadeiro. O desemprego afeta a esmagadora maioria das pessoas e isso é insustentável. Se o governo não en-contrar soluções, esta realidade vai produzir efeitos devas-tadores.»

Haverá eleições dentro de um ano e Mahand nota que isso está a gerar sinais de alguma abertura por parte do go-verno, em dialogar: «Houve uma chamada para negociar com a oposição as principais reformas do país e alguns par-tidos responderam afirmativamente.»

Sobre o conflito do Mali não lhe sobram dúvidas: «A AQMI recruta em todo o lado. Aqui, no Mali, no Níger, na Argélia, em Marrocos, na Líbia. O problema é muito com-plicado. Estão reforçados com as armas que conseguiram com o desmantelamento do exército do Kadhafi, têm mui-tos meios e apoios em todo o mundo e estão prestigiados na juventude. O MLNA só quer a independência do Sahel e por isso aceitou fazer uma unidade tática com a AQMI. Vai ter que ser encontrada uma solução política onde o re-conhecimento da independência do norte do Mali seja ne-gociado, tendo como contrapartida a retirada da AQMI.»

No seu entender, sem independência, ou no mínimo um regime autonómico, continuarão a existir as condições ideais para que a AQMI continue a crescer, a ganhar in-fluência e a alargar as fronteiras do conflito ao Níger, ao Senegal, a Marrocos, à Argélia e à Líbia, países com lide-ranças que a AQMI considera inimigas. «Pode pensar-se que as fronteiras coloniais estão na base do problema, mas isso não nos conta toda a verdade sobre o problema. É um elemento que existe há meio século e nunca originou tanta conflituosidade. O que me parece determinante é o empo-brecimento das populações, a falta de justiça social.»

Na Mauritânia a refeição é sempre um bom pretexto para um convite e Yahya ould al-Bara, professor univer-sitário, especialista em fatwa e também ele oposicionista, aceita o convite aproveitando o intervalo de uma confe-rência sobre os escritos de um clérigo importante.

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É uma figura muito controversa na Mauritânia e esteve envolvido em boa parte dos processos políticos das últimas duas décadas. Fala sem papas na língua, à medida que apre-cia o esforçado bacalhau à lagareiro com que se retribui o sacrifício de vários borregos e alguns carneiros: «O petró-leo cumpre um papel fundamental. Veja o que se passa em todo o Golfo Pérsico. Começam em Bassorá e controlam toda a costa do Golfo. O Paquistão não tem a importância que se apregoa, apesar de terem a bomba atómica. A Arábia Saudita tem muito petróleo, relações de submissão com-plexas face aos EUA e ao mesmo tempo financia alguns dos grupos wahabitas do Mali ao Paquistão.»

Entende que «a islamofobia do Ocidente leva-o a co-meter muitos erros, muitas generalizações» e que é dado demasiado protagonismo à Al-Qaeda ou às correntes jihadistas, apesar de reconhecer que estão em crescimen-to: «O discurso deles ganha apoio nomeadamente por-que é apresentado como um obstáculo aos interesses do Ocidente.»

Irrita-se quando lhe pergunto o que pensa sobre a Primavera Árabe: «Não gosto dessa expressão, sobretu-do porque conduz a um equívoco. Olhe a realidade no Egipto, na Líbia ou mesmo o que está em curso na Síria.» Para ele o que se passa aproxima-se mais a um Inverno do que a uma Primavera, e acha que esses processos «estão a ser manipulados pela aliança entre os países do Golfo, destacando-se o Catar e a Arábia Saudita, e os norte-ame-ricanos».

Para Yahya, muitos jovens olham para a jihad como uma saída coerente para o que se passa na Palestina, no Iraque e no Afeganistão, mas também para as dificuldades económicas a que estão sujeitos: «Os jovens estão frus-trados e sentem-se humilhados enquanto muçulmanos. Há muitos jovens daqui que foram lutar para o Mali, onde muitos dos muftis que lá estão são oriundos da Mauritâ-nia. A Al-Qaeda recruta com muita facilidade face à radi-calização dos jovens muçulmanos», explica.

Para este professor «não está a ser feita uma interpre-tação correta do Islão», e muitas das figuras das novas lideranças, institucionais mas também na frente de com-bate, têm uma má educação religiosa: «São sobretudo jovens furiosos com o desemprego e a pobreza e apaixo-nados pela questão palestiniana. O jihadismo é mais o re-sultado da situação política e social dos povos do que uma consequência de qualquer leitura do Corão.»

Encontra exceções no campo dos movimentos arma-dos – dos quais globalmente se afasta. «Só o Hamas e o Hezbollah, ou um ou outro grupo de resistência no Iraque e no Afeganistão, podem dizer que estão a fazer a jihad. Só nessas condições é que a luta armada pode ser apoiada. No Mali trata-se de um fenómeno completamente diferente, apesar da questão do Sahel. A Al-Qaeda está pouco preo-cupada com o Islão. São uma nebulosa de difícil compreen-são. O seu comportamento é demasiado errático e apenas

parece clara a unidade militar com os independentistas do Sahel por estes serem contra o governo de Bamaco.»

Mohamed Ould Sidi, funcionário do Ministério da Educação, é um entusiasta e um especialista no movimento islâmico internacional e uma das vozes mais polémicas no debate político e teológico. Esteve na Tunísia, no Irão, no Egipto e, como não podia deixar de ser, em Paris, onde co-nheceu boa parte dos intérpretes do movimento islâmico, sejam os salafitas tunisinos, a irmandade muçulmana egíp-cia ou os islamistas da revolução iraniana. Começou como dirigente estudantil e ainda hoje, apesar de relativamente afastado das grandes decisões, é uma autoridade muito res-peitada.

«Sou um grande entusiasta da revolução iraniana», assume orgulhoso e sem qualquer hesitação. Crítico do ocidente, não deixa de reconhecer que também no movi-mento islâmico há uma crise de quadros e de valores. «Há algum oportunismo, as pessoas mudam sistematicamente de posição apenas para garantir a sua posição particular. Sempre fui um nacionalista árabe, um defensor do movi-mento islâmico, mas não é tolerável o caminho que esco-lheram algumas das nossas principais figuras, sobretudo aqui na Mauritânia.»

Explica que a Al-Qaeda é uma evolução útil do pensa-mento wahabita e explica as razões do seu sucesso: «O seu estilo provocante face ao Ocidente, o facto de serem per-seguidos, de estarem na clandestinidade e o facto de terem muito dinheiro» são os seus grandes argumentos. Acusa-os de fazerem uma leitura distorcida do Islão e alerta que o uso sistemático da violência é um caminho que não vai produzir resultados. Apesar disso, reconhece que possa «ser utilizada para vencer algumas batalhas, mas têm que ser períodos curtos, caso contrário transformam-se numa nova ferramenta de opressão».

Demarca-se do que se passa na Tunísia ou nos países que «começaram uma revolução pela aplicação da Sharia» e elogia a estratégia da Irmandade Muçulmana, que lhe pa-rece mais capaz de lidar com a diversidade do movimento emancipatório: «Eu não gosto da estratégia proibicionista. Não garante que os avanços sejam consolidados.» Advoga que «é preciso defender a emergência de um novo regi-me, mais capaz que o anterior, algo que mude o paradigma como foi capaz de fazer o Irão em 1979».

Outro dos líderes que aplaude é Hassan Nasrallah, figu-ra de proa do Hezbollah libanês e que considera «o maior craque da política árabe». Confessa que não recorda outro com a sua capacidade: «O que o Hezbollah já conseguiu, quer face a Israel quer face à sua situação interna, nenhum outro movimento islâmico conseguiu nos últimos anos. É um dos mais fiéis defensores da causa palestiniana, que é central para todos os muçulmanos; aliás, é, estou conven-cido, a questão central para qualquer uma das religiões monoteístas, e também por isso é porventura o líder mais respeitado em todo o mundo árabe.»

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Na sequência da greve dos docentes das Universidades, entraram em greve também os professores das Instituições Federais de ensino técnico e os servidores técnico-admi-nistrativos das instituições federais de educação em geral. Um exemplo de luta seguido hoje por mais de 30 categorias de trabalhadores do serviço público federal que se encon-tram paradas no Brasil.

Os professores universitários brasileiros possuem uma história já longa de movimentos grevistas, iniciada na dé-cada de 1980. Porém, desde 2005 não realizavam uma greve nacional e desde pelo menos 2001 não viviam uma mobilização da dimensão da atual. O que explica esta greve e sua força é o sentimento nacionalmente espalhado entre os docentes de que a pauta do movimento é justa e repre-senta seus interesses. Uma pauta centrada em dois pontos: a definição de uma nova carreira para o magistério federal e a melhoria das condições de trabalho.

A defesa da nova carreira se relaciona à avaliação obje-tiva de que os professores universitários são uma das mais mal remuneradas carreiras de servidores públicos com for-mação superior, mas também a uma tentativa de reverter a marcha em curso de precarização da atividade docente, submetida a formas «informais» de contratação (bolsas várias, professores substitutos/temporários, etc.) e a um modelo produtivista de avaliação de desempenho (ele-vação da carga de trabalho em sala de aula, combinada a cobranças de indicadores quantitativos de publicação, par-ticipação em congressos, orientações, patentes, etc.).

Já a demanda por melhoria das condições de trabalho relaciona-se basicamente a um programa de expansão das

Universidades Federais, posto em prática a partir de 2007 pelo governo de Lula da Silva. O programa, denominado REUNI, é baseado num modelo de abertura de novas uni-versidades, novos campi das universidades existentes, am-pliação das vagas para estudantes, mas através de cursos de duração mais curta, «interdisciplinares», com maior número de alunos por professor. Na prática, o que se ob-serva hoje são salas de aula superlotadas, pois a expansão física das universidades foi muito limitada, gerando novas universidades desprovidas de bibliotecas e laboratórios e novos campi funcionando em contentores metálicos ou em prédios adaptados de escolas de ensino fundamental.

Até aqui, foram necessários mais de 50 dias de greve para que o governo de Dilma Rousseff apresentasse algu-ma proposta ao movimento grevista. Ainda assim, uma proposta tão ruim que foi imediatamente rechaçada pelos grevistas em todas as universidades paralisadas. A greve, portanto, está longe de chegar a uma definição. No en-tanto, nestes dois meses de paralisação das atividades já é possível perceber certas conquistas políticas fundamen-tais do movimento. Algumas delas me parecem muito re-levantes. A saber:

1.º A greve revela que está em questão um embate entre projetos opostos para a Universidade Pública e o ensino superior brasileiro. Os trabalhadores e estudan-tes das Universidades federais se unem em torno de um conceito de Universidade em que a gratuidade continue a ser uma garantia de possibilidade de acesso para os traba-lhadores e seus filhos; em que o funcionamento e gestão

Uma greve,várias liçõesA greve das universidades federais no Brasil em 2012No momento em que escrevo este artigo (20 de julho de 2012), os professo-res das Universidades Federais brasileiras completam dois meses de greve. São mais de 100 mil professores parados, de 58 das 59 Universidades Federais existentes, envolvendo mais de um milhão de estudantes universitários, a maior parte deles também em greve declarada. Por Marcelo Badaró Mattos1

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das instituições sejam marcados por regras democráticas, pela autonomia e pelo respeito pelo sentido público da Universidade; e em que a qualidade seja mantida no pro-cesso de expansão, através do respeito pelo preceito cons-titucional da indissociabilidade entre ensino, pesquisa e extensão2. De outro lado um projeto de Universidade vol-tada para o mercado, com cursos de duração mais curta, muitas vezes oferecidos via Internet nas modalidades de «ensino à distância», salas de aula mais cheias, restrição e regras hierarquizadas para o financiamento à pesquisa, financiamento público irrigando fundações privadas ditas «de apoio», gestão por critérios empresariais, avaliações produtivistas do trabalho docente e cursos pagos. Um projeto que tomou corpo mais definido a partir de 2007, com o REUNI. Cinco anos depois, professores, técnico-administrativos e estudantes conseguem fazer um ba-lanço do programa e perceber que a expansão se dá de forma precarizada, gerando uma elevação no número de diplomados, mas com diplomas de cursos de qualidade muito duvidosa. Para os que trabalham na Universidade, a certeza de que as jornadas e a intensidade do trabalho se elevam mais e mais a cada dia. A inspiração dessa política para o ensino superior, que a greve tenta barrar, o leitor europeu conhece bem: o modelo de Bolonha, destinado a converter de vez a educação superior à lógica da mer-cadoria;

2.º No campo do sindicalismo docente, a greve tam-bém está tendo a função de deitar abaixo as máscaras. O sindicalismo brasileiro viveu, nos anos 1980, uma fase de

ascensão das lutas coletivas, com diversas greves gerais e a fundação de centrais sindicais – a principal delas a CUT – cujo papel na superação da ditadura militar e na retoma-da de um protagonismo político da classe trabalhadora é inegável. Os docentes universitários começaram a se or-ganizar sindicalmente e a fazer greve no embalo daquele «novo sindicalismo». Só com a Constituição de 1988 os servidores públicos conquistaram o direito à sindicaliza-ção, mas os docentes já se organizavam através de uma Associação Nacional de Docentes do Ensino Superior (ANDES), que em 1989 se converteu no Sindicato Na-cional da categoria (ANDES-SN). A década foi marcada por conquistas importantes para os professores univer-sitários, que impediram a implantação de planos priva-tizantes nas Universidades Públicas, implantaram uma carreira docente isonômica entre todas as instituições federais e avançaram em definições constitucionais sobre o caráter público, a gratuidade, a autonomia e o padrão de qualidade das universidades. Os anos 1990, entre-tanto, foram marcados pelo avanço das contra-reformas neoliberais no Brasil. No setor universitário viveu-se a acelerada expansão das instituições privadas (que hoje respondem por cerca de 80% das matrículas, recebendo subsídios estatais vários) e a estagnação das instituições públicas, com uma estagnação salarial sem precedentes dos trabalhadores dessas instituições. As greves foram muitas, mas seus objetivos muito mais defensivos, sen-do as conquistas efetivas limitadas a deter políticas pri-vatistas mais arrojadas. No plano maior do sindicalismo brasileiro, os recuos foram imensos, com os setores antes

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mais combativos, como a CUT, sendo tragados pela lógi-ca da ação no interior da ordem. O que acabou por atin-gir o sindicalismo docente, com o surgimento de setores de oposição no interior do ANDES-SN comprometidos com um sindicalismo de resultados e dispostos a aceitar a submissão das Universidades à lógica neoliberal. Entre 1998 e 2000 esses setores chegaram a dirigir o sindicato, sendo em seguida derrotados nas três eleições sindicais seguintes. Com Lula da Silva, a partir de 2003, a inflexão do outrora combativo sindicalismo da CUT foi comple-tada, com a absorção total da central originada do novo sindicalismo pela estrutura estatal. O ANDES-SN foi um dos primeiros a reagir a esse processo, desfiliando-se da CUT e trabalhando para construir uma nova central sin-dical. Acabou por incluir-se entre os fundadores da atual CSP-Conlutas. A resposta governamental e cutista no in-terior do movimento docente veio com a criação, a partir

da oposição sindical derrotada nas urnas, de um «fórum», que buscou transformar-se em «federação» de sindicatos, denominado PROIFES, que, mesmo tendo uma duvidosa legitimidade como representante de uma parte dos docentes universitá-rios, foi desde 2005 convocado pelo governo para fazer parte das mesas de negociação com a categoria, trans-formando-se numa linha auxiliar dos discursos e propostas ministeriais. Com a greve hoje em curso, a verda-deira identidade do PROIFES como instrumento das políticas do governo vem sendo revelada, na medida em que os docentes das Universidades que aquela entidade de carimbo afir-

ma dirigir se declararam em greve, contra suas proclama-das direções, apoiando a pauta e o comando nacional de greve do ANDES-SN;

3.º É difícil avaliar uma greve sem conhecer seu desfe-cho, mas um terceiro e talvez decisivo elemento positivo de balanço parcial deve ser aqui mencionado. Nas duas últimas décadas o processo de conversão das Universida-des Federais ao modelo do ensino superior subordinado ao mercado avançou muito. O trabalho docente foi in-tensificado, mas também hierarquizado e fragmentado, sob a égide de avaliações produtivistas e da desvaloriza-ção das atividades de ensino, em paralelo à concentração dos recursos para a pesquisa nas mãos de alguns poucos «centros de excelência». O individualismo competitivo, a valorização de uma meritocracia medida por discutíveis critérios quantitativos e a lógica do «empreendedorismo acadêmico» (do professor que vende seus serviços ao mercado) passaram a ser parte do ethos que se pretendeu

impor ao professor universitário. Numa greve tão forte e tão ampla quanto esta, o que se vê é o (re)emergir de ou-tros valores, pautados pela solidariedade de classe, pelo espírito do trabalho coletivo e pelo comprometimento com um projeto de Universidade destinada a contribuir para a mudança qualitativa da sociedade brasileira.

Nestes tempos tão sombrios, isso está longe de ser pouco.

1 Marcelo Badaró Mattos é professor titular de história do Brasil na Universidade Federal Fluminense. É pesquisador da his-tória do trabalho e do sindicalismo. Foi dirigente do Sindicato Na-cional dos Docentes de Ensino Superior entre 2000 e 2002.

2 Chama-se extensão no Brasil à ligação da universidade à co-munidade. O conceito baseia-se na ideia de que os saberes acumu-lados na universidade não podem servir apenas para formar novos alunos – devem servir a população em geral, através de acções de campo.

«O individualismo com-petitivo, a valorização de uma meritocracia avaliada por discutíveis critérios quantitativos e a lógica do “empre-endedorismo acadêmi-co” (do professor que vende seus serviços ao mercado), passaram a ser parte do ethos que se pretendeu impor ao professor universitário»