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JUNHO 2014_ REVISTA COLABORATIVA QUINCAS_ Edicão 02_ SONHO_

Revista Quincas | Edição SONHO

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A Revista Quincas é um projeto de revista cultural colaborativa. A segunda Quincas é um SONHO.

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JUNHO 2014_REVISTA COLABORATIVA QUINCAS_Edicão 02_SONHO_

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Junho 2014

edição 02 . Revista Colaborativasonho

Projeto Gráfico_nAtALIA nunesedição_GIovAnA MoRAes suzIn

Ilustração da Capa_Geffen RefAeLI

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ilustração_Geffen RefAeLI

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Sonhou que deixava os sonhos esquecidos numa gaveta. Acordou com a garganta arranhando, como se aquela quimera estivesse entalada em algum lugar a caminho do esôfago. No banho, viu bolhas d’água esvaírem-se numa delonga inesperada até o ralo: pareciam levar junto sua lúcida alucinação. Vestiu-se com insustentável leveza e colocou a utopia que sobrara no bolso esquerdo. Encontrou a confidente e compartilhou seu idílio, que se dilatou até formar um barbante que as duas amarraram nos dedos. Saíram alegres, entorpecidas pelas novas possibilidades de devaneio que vestiam. Enfiaram as mãos no onírico e esculpiram novas folhas, com imagens em formato de sonho.

GIovAnA MoRAes suzIn_editora de Quincas

entRessonhAR

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Formou-se em Jornalismo e fez pós-graduação em Jornalismo Literário, mas vive na cozinha. Criou em 2010 o blog Tô Puta e Vou Cozinhar (www.toputaevoucozinhar.com.br), onde discorre, em uma sentada só, sobre suas desventuras culinárias. Erra muitas receitas e come mesmo assim. Desde 2012 mora em Curitiba e trabalha no jornal Gazeta do Povo como repórter de gastronomia. Também mantém o blog Verdura sem Frescura (www.gazetadopovo.com.br/blogs/verdura-sem-frescura), que fala sobre vegetarianismo.

Nasceu em Recife. Cresceu em Angola. Morou na Venezuela. Mudou-se para Teresópolis. Fez faculdade no Rio. Vive em São Paulo. Gosta das paredes do SolLewitt. Volta rouca do carnaval. Formada em publicidade pela ESPM. Atualmente é redatora da Loducca e pseudo-ilustradora de final de semana. http://cargocollective.com/luizavaldetaro

É mineira de Beagá. Estudou Comunicação Social na UFMG, veio a São Paulo para fazer o Curso Abril de Jornalismo e aqui se especializou em Jornalismo Literário. Na época, pensava em escrever sobre cultura em revista, mas acabou se tornando repórter de internacional no online. Numa visita a campos de refugiados na Cisjordânia teve certeza de sua paixão por direitos humanos. No ano passado, largou a redação para mergulhar no terceiro setor. Fez um curso de Negócios Sociais e hoje é responsável pela reformulação do Na Prática(www.napratica.org.br), plataforma de carreira da Fundação Estudar.

fLÁvIA sChIoChet_(Jaraguá do sul sC, 1989)

LuIzA vALdetARo_(Recife Pe, 1986)

CeCíLIA ARAúJo_ (Belo horizonte MG, 1985)>26

Paulistana, graduou-se em Design de Moda pelo Senac. Estudou Criação Artística Contemporânea em Portugal e agora vive em Londres. Seus projetos criativos são permeados pela idéia de um fazer com as mãos minucioso, quase que obsessivo, que demanda tempo e desafia a acelerada velocidade da maioria das formas de expressão contemporâ[email protected]

CeCíLIA vILeLA_(são Paulo sP, 1989) >27

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sonhAdoRes

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A ilustradora israelence se formou em comunicação visual na Academia Bezalel de Arte e Design de Jerusalém em 2010, e desde então trabalha como freelancer para vários jornais e editoras. No seu processo de criação, desenvolveu o dailydoodlegram, projeto em que desenha figuras estranhas e surreais, cada uma inspirada em fotos de outras pessoas no Instagram. Veja mais aqui : http://instagram.com/dailydoodlegram

Escorpiana, paulistana e apaixonada por visual. Gosta das coisas bem feitas e bonitas. Diz que lê tarô e revistas de arte, é dessas. É filha de Iemanjá, negra e troca qualquer programa por um mergulho no mar. Sonha em morar em Nova Iorque ou na Bahia. Desenha em tudo quanto é pedaço de papel, e quer desenhar na pele também. www.carolalmeida.com www.ouime.tumblr.com

Jornalista, ecóloga, videomaker, nômade. Curiosa profissional. Acaba de adquirir seu primeiro óculos de grau, em tempos de muito ecrã. É canhota, mas insiste em tocar violão como destra. É ruim do mesmo jeito. Tateia, cheira e escuta o mundo para ver se se entende. Está sempre “a um passo de”.

É formado em Design Digital pela Universidade de Santo Amaro, tem MBA em Gestão Empresarial pela FGV e cursa pós-graduação em Mídia, Informação e Cultura na USP. Trabalhou em diversas agências de publicidade como diretor de arte digital. É fundador do projeto cultural Samba Rock Na Veia e integrante da equipe de comunicação da Kultafro, rede de empreendedores e artistas da cultura negra, onde realizou projetos como produtor cultural. Ao longo de sua carreira, desenvolveu outra atividade que se transformou em paixão, a fotografia, que já lhe rendeu publicações na imprensa, editoriais e exposições. www.calixtojunior.com.br

Geffen RefAeLI_(tel Aviv)

CARoLInA ALMeIdA_(são Paulo sP, 1986)

MAnoeLA MeyeR_ (Rio de Janeiro RJ, 1986)

neGo JúnIoR_(são Paulo sP, 1980)

>07>35

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“Nos meus sonhos, nunca sou deficiente visual. Enxergo normal. Sempre lugares bonitos, com a mulher da minha vida. Já sonhei mais de cinquenta vezes o seguinte: eu e ela, na Avenida Paulista. Ela, com um vestido verde e detalhes brancos e laranjas, indo na minha frente do Trianon para o Conjunto Nacional. Sempre ela, que conheci depois que perdi quase toda a visão. Mais bonita que a Brooke Shields. Precisa ver os olhos dela. Inchadinhos. Usa óculos, cabelo bem enrolado e curto.Meus sonhos são muito melhores que antigamente. Quando eu enxergava 100%, só tinha pesadelos. Era sempre acidente, desastre. Sempre medo. Hoje, tomo susto só às vezes: na hora de acordar. Mas assim que me lembro do sonho, já me sinto melhor. Parece me dar perspectiva de uma vida melhor. Fico feliz de enxergar o pouco que enxergo. Não há nada melhor do que ser acordado com a claridade do sol.”

texto_MAnoeLA MeyeRilustração_LuIzA vALdetARo

os sonhos dos CeGos

Valdir Donizette Faria, 54 anos_ Em 2008 sofreu descolamento de retina em ambos os olhos por conta

de diabetes e atualmente enxerga 8% com um deles.

“Nos meus sonhos, enxergo com um olho só. Mas tudo é nítido. Sem o embaçamento e as deformidades de imagem que vejo no dia-a-dia. Há vezes em que sonho com cores e lugares que nem conheço, que talvez nem sejam do mundo real. Outros em que meu cotidiano aparece, como que transportado lá para dentro. Acho que têm muitos motivos para eu sonhar com tanta nitidez. Parte das minhas lembranças são de antes de 2011, quando minha visão era melhor. Muitos dos meus sonhos têm relação com voltar a enxergar bem, que não deixa de ser um desejo meu. E talvez seja até algo espiritual, como se minha alma pudesse enxergar melhor que meus olhos.”

Milene Cristina Orifisi, 37 anos_Por causa de um glaucoma congênito e uma conjuntivite posterior,

mantém 15% de visão no olho esquerdo.

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“Através do sonho eu conheço as cores branca e azul. Não consigo explicar direito como são. Só sei que são ‘cor clara’. Meus sonhos costumam ser claros. E neles, eu enxergo. Mas não me enxergo. Vejo mato, flores, roupas. Teve uma vez que sonhei que eu estava andando em volta de um poste, mas indo para algum lugar. Sonhos misteriosos como esse costumam se repetir por alguns dias. Normalmente, porque quero decifrar eles. Seus significados. Enquanto não descubro a resposta, peço para continuar sonhando. Os pesadelos são sempre escuros. Mas há também sonhos escuros. Não são ruins, mas são aqueles que não queremos ter. Como sonhar com ex-namorado.”

Cega desde os dois anos de idade. Sheila Franco da Silva, 31 anos_

“Eu sonho a partir das minhas experiências e memórias reais. Não posso dizer que sonho com o vermelho, por exemplo, porque não sei o que é cor. Seria mentira dizer que enxergo algo durante o sonho. Não vejo nada. Sei que já sonhei que estava caindo de uma ponte porque senti a água do rio. Eu ouço e tateio as coisas, no meio do mesmo vácuo visual do meudia-a-dia.”

“Lembro de algumas coisas de quando enxergava. Nos sonhos, consigo ver cores, imagens e rostos de pessoas. São sempre baseados no meu dia-a-dia ou naquilo que estou planejando fazer, mesmo quando eu nem apareço no sonho. Sempre tive pesadelos. Quando eu era pequena, era traumatizada por não poder enxergar. As pessoas também não ajudavam: falavam para as crianças não irem para o escuro porque um bicho iria pegá-las. Imaginava sempre um sapo sendo jogado em mim. Não sonho em voltar a enxergar. Se tivesse uma cirurgia para isso, eu não faria. Tenho uma vida boa, consigo me virar como qualquer outra pessoa e sei valorizar coisas que para os outros não têm importância. Então os meus sonhos, onde enxergo, são como um pesadelo para mim.”

Etevaldo Vieira Santos, 52 anos_Perdeu a visão com um ano e seis meses de idade, por conta de glaucoma.

Rebeca Dalila Santana Andrade, 20 anos_Cega desde os dois anos e nove meses de idade, por causa indefinida.

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fotos_neGo JúnIoR

Conta-se que o sonho de padaria surgiu na Alemanha com o nome de krapfen, uma massa doce fermentada, recheada com geleia de fruta vermelha, frita e polvilhada com açúcar. Não se sabe como a receita veio parar aqui no Brasil.Ao buscar nesses pequenos confeitos algo mais íntimo e natural, Nego retratou em imagens aqueles sonhos que um dia fizeram ou farão parte de nossas vidas. O grande sonho da noite inteira, o sonho partido ao meio – de algo que não deu certo, os vários sonhos de uma noite só, sem nenhuma conexão, e o sonho desejado da vontade reprimida na consciência. Talvez seja preciso todos os sonhos de padaria do mundo para refletir a pluralidade do que é sonhado por todas as gentes.

Modelo: Jessica Kelly; Maquiagem: Greice Gonçalves.

doCe e AMARGo

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O que começou com um artifício para economizar dinheiro virou uma obsessão. O plano era: fazer os mesmos pratos que minha mãe preparava quando eu morava com ela, em uma quantidade que rendesse mais que uma refeição e usando os ingredientes que eu tivesse em casa. Acabou ficando mais sério que isso; com o passar dos anos comecei a cozinhar novas coisas e perceber que poderia ser um bom hobby. Eu precisava de um hobby. Eu precisava comer pelo menos três vezes por dia.

Resumindo: sete anos depois, vejo que me tornei uma pessoa monotemática. Chata pra cacete. Passo horas falando de comida. Garimpo livros sobre o assunto (gasto um rim neles, se preciso). Espalho pela casa receitas coletadas em post-its, blocos de anotação, cadernos velhos, salvo documentos do Word em qualquer pasta. Quando começo a cozinhar, dificilmente os consulto. Nem sempre encontro as cópias, nem sempre abro os livros. Cheguei a um ponto em que reconheço que a cozinha é o lugar que mais sinto necessidade de estar – talvez por isso eu semeie anotações por aí – e que preciso aprender a dividi-la com outras pessoas. Somos três usando a mesma, depois de cinco anos morando sozinha em apartamentos pequenos. Uma cozinha desconhecida, ainda por

o sonho do GRAnIto PRóPRIotexto_fLÁvIA sChIoChet

cima, que nos intimida com seu piso alvo e rejuntes ainda sem mofo.

Nunca é fácil deixar a cozinha amada para trás (imaginar que ela será amada por outrem então… me mata). E é menos fácil ainda conseguir amar outra cozinha imediatamente após a mudança, por mais perfeita, limpa e reluzente que ela seja. Enquanto se procura uma nova casa, qualquer metro quadrado com granito enche os olhos. Meu bom Jesus, granito! Gra-ni-to! Finalmente terei espaço para abrir massas com aquele rolo de macarrão que nunca usei! Nunca mais vou sentir falta da minha antiga cozinha apertada com um paneleiro e três gavetas, pensei.

Na nova cozinha, além do granito, há um armário espaçoso, uma bancada à parte com tomadas. Fórmica novinha. Já pensou, mais de uma tomada por parede? Ai, até me palpita o coração. Assinado o contrato, a antiga cozinha se desmonta. A nova ainda está na caixa.

Nenhuma estante parece boa para deixar a batedeira. Que inferno essa porta que fecha sozinha. Como faço para alcançar aquela estante? Depressão. A nova cozinha é o triplo do tamanho da antiga e não faço a menor ideia do que fazer com tanto espaço.

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Me sinto idiota por me abalar com isso e parece que não vou superar tão cedo. Deito em posição fetal. Choro antes de dormir. Odeio mudanças.

Meu subconsciente começa a me torturar. Talvez eu não tenha estrutura emocional para amar outra cozinha.

***

Estou em um galpão imenso, com várias panelas fundas ao meu redor, muita gente entre elas e eu não consigo sair do lugar. Enfio a cabeça em uma das caçarolas e puxo com as mãos o vapor, fazendo movimentos circulares para que ele se insinue até mim. Trago-o ao meu nariz e respiro fundo. Não sei o que é. Nenhum aroma que conheço se parece com aquilo. Não consigo ver nada. O lugar está tomado por um monte de fogareiros

ilustração_Geffen RefAeLI

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que de repente ficam mais altos que eu e vejo minha cara afobada no reflexo da panela. As pessoas continuam atrapalhando a passagem e a fumaça aumenta. Fico atordoada. Com uma colher que não sei de onde veio, mexo o conteúdo de uma delas furiosamente e alguém grita uma ordem em uma língua que não conheço. Imagino que o que temos que fazer é falar em voz alta o nome de todos os ingredientes que conseguimos identificar pelo cheiro – e não podemos provar nada.

Desespero. Paralisia. Quero chorar e não consigo. O sentimento de impotência me faz tremer e tento pedir ajuda para quem está em volta. Ninguém me vê. Um barulho de conversa estoura e percebo que todo mundo sabe o que há em suas panelas, menos eu. Sou um fracasso. Eu sabia que iriam perceber que não sei cozinhar. O que estou fazendo aqui? Decido arriscar o nome de qualquer ingrediente básico em um ensopado e brado: “Cebola!” “Cenoura!” “Alho!”

Acordo desesperada com medo de ter perdido a hora ou queimado algo. Minha boca está seca, não consigo saber se acordei porque gritei ou se é só porque preciso fazer xixi. Levanto meio grogue, calçando as pantufas e tateando no escuro. Mal passou das três da manhã. Acendo a luz, aperto os olhos e fito o bebedouro. Gostaria de morar dentro dele. Ser uma bactéria. Ou viver de fotossíntese. Qualquer coisa que não me obrigasse a provar que sei cozinhar. Odeio ter pesadelos. Volto para a cama. Odeio levantar de madrugada. Que inferno, minhas preocupações são tão idiotas. Que porra de cozinha grande. Tenho que

dar uns vinte passos a mais para fazer o trajeto do meu quarto até ela. Quero ser um cachorro. Um mosquito. Uma minhoca. Nunca mais quero cozinhar. Merda, preciso pegar no sono.

Meu primeiro impulso ao me mudar para a cozinha gigantesca foi me enfiar nos armários gigantescos ao lado da geladeira gigantesca. O cheiro era de madeira e fórmica recentes – ninguém havia passado as mãos nessas estantes antes de mim, fantasio. Eu até caberia, mas não executei o plano. Tentei rolar pelo granito da pia, no entanto, e quase abracei a torneira. Eu estava genuinamente feliz em trocar uma cozinha velha por uma cozinha nova, mas sua assepsia me oprimiu assim que a mudança terminou. Uma vez, quando morava em outro apartamento, escrevi um breve texto para meu blog falando como seria minha cozinha dos sonhos.

Não é nada parecida com a que estou atualmente. Seria uma coisa rústica, cheia de panelas e louças à mostra, com um espaço para minha horta bem próximo ao fogão e com uma trança de cebola pendurada – pelo menos essa parte eu consegui concretizar. Ela está longe de ser aconchegante e colorida, é voltada para o sul da cidade e um prédio à sua frente a deixa escura, com uma luz horrível para tirar fotos. Mesmo assim, é minha cozinha. É uma cozinha invejável, planejada, de novela. Preciso fazê-la me aceitar e tornar real a impressão que os outros têm de nós duas: de que somos um par perfeito.

Estamos nos entendendo aos trancos. Olhando de um certo ângulo, vejo que o granito já está machucado, com

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vincos na pedra que demonstram o maltrato ao qual a submetemos. Os azulejos das paredes estão manchas de mãos engorduradas. O canto do piso está encardido. Acabamos com a assepsia, agora precisamos de alguém para reverter essa situação medonha que criamos.

E ela é temperamental, a cozinha. Veja, eu lavo a louça de um jeito destrambelhado. Uma gota de água pinga do meu braço e cai fora do tapete. Passo um pano para secar e ela vira uma mancha preta, como uma graxa. Bufo. Jogo desengordurante, esfrego bem. Falo em voz alta: ‘que bela bosta’. O piso parece que fica limpo a contragosto. Assalta-me um pensamento que estou tentando evitar há dias.

Uma noite, encolhida na cama em estado alfa, imaginei que há uma força sobrenatural me desconcertando de propósito e que isso combinaria perfeitamente com os barulhos estranhos que a geladeira faz no meio da madrugada e com o vento encanado que assovia pela fresta da janela. No meu delírio, um ótimo cozinheiro morou neste apartamento, morreu de forma trágica (com certeza na cozinha) e quer me ver louca mamando uma bisnaga de maionese Hellmann’s. Não vou ceder. Vá fritar almas à milanesa, seu filho da puta. Me deixe sã. Me deixe desfrutar dessa cozinha linda e alvíssima, fruto de uma reforma maravilhosa feita logo depois que você morreu de botulismo. Vá embora, seboso.

E então, os pesadelos. Faz meses que não entro em um supermercado e inexplicavelmente estou em

uma gôndola suja de uma rede de supermercados populares escolhendo um pacote de macarrão. Um monte de gente passa empurrando e pegando vários pacotes enquanto eu titubeio entre duas marcas. Decido levar um de sêmola, mais caro e com uma embalagem bonita. Olho pro lado e absolutamente todas as pessoas do meu dia a dia estão paradas do outro lado do corredor me julgando com o olhar. “Nossa, Flávia, sério que você vai levar esse aí? Qual a diferença entre comer este aí ou um macarrão mais barato?” Fico muito abalada. Quero a aprovação dos meus amigos. Quero que eles deem tapinhas nas minhas costas e me congratulem pela decisão. Não consigo verbalizar nada e todo mundo me dá as costas e vai embora. Afinal, não há motivos para continuarem a sair comigo, porque sou uma fresca. Acordo me sentindo culpada por não ter escolhido a marca mais barata.

Vou benzer minha cozinha. Vou fazer terapia. Recobro o ceticismo: que sentimento besta, o que está acontecendo comigo? Sigo resoluta de que preciso tocar minha vida como se a loucura da mudança não tivesse me afetado. Há muito o que fazer, muito a escrever e muitas caixas de papelão cheias a ignorar. Escrevo como se não houvesse amanhã. Meu irmão aparece no escritório envolto em sua toalha de banho com um semblante desconfiado e intrigado:

- Meu, que cheiro é esse?!- Que cheiro?- Aqui perto da cozinha. Indo pra sala.

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Sem tirar a bunda da cadeira, falo:

- Não senti nada.- Parece mijo.- Credo, como assim?- Sei lá, lembra mijo.

Levanto e vou até a cozinha. Tento cheirar tudo: o batente da porta, o armário, o lixo orgânico, o chão. Pergunto se é o lixo, ele diz que não. Pergunto se vem da janela. Também não. Ele vira as costas e sai coçando o nariz:

- Vai ver é algum tempero que vocês usam.

Ou mijo do além. Fico sozinha na cozinha olhando ao redor, certa de que uma poça de xixi vai se materializar a qualquer momento e uma gargalhada vai ressoar. Nada acontece. Volto para o computador e termino as metas da noite. Minhas pernas doem e minhas costas também. Parece que levei uma surra.

Resignada, vou fazer o xixi que estou segurando há quase uma hora. A quantidade de caixas que ainda há para abrir não é muita, mas a mudança me cansou muito antes do primeiro casaco empacotado. Estou largada na privada, com preguiça de me mexer e imaginando que bom seria se eu automaticamente estivesse de banho tomado na cama, lendo qualquer coisa para dormir logo ou tomando um chá e fazendo palavras cruzadas.

Viajo olhando os azulejos psicodélicos à minha frente e encaro a última caixa meio vazia, com o resto da mudança. Leio: aspargos brancos

inteiros. Penso em quantas vezes comi aspargos: menos de uma dúzia. Penso em quantas receitas preparei com aspargos: nenhuma. Penso nas minhas experiências frustradas em textos, panelas, fotografias. São incontáveis. A decepção é inerente ao ser humano e preciso aprender a lidar com isso. Porque não importa se a pessoa vive pelas panelas, a cozinha sempre terá algo a ensinar. O imprevisto vai mostrar que você ainda é um lascador de pedras, um primata esfregando tocos de madeira para fazer faísca. Que não adianta passar metade da sua semana com a barriga no fogão, você sempre vai errar feio – na proporção, na combinação de ingredientes, no ponto de cozimento, no excesso de condimentos ou em uma sequência confusa de etapas executadas.

Naquela noite, tive um sonho kafkiano, em que eu tinha que entrar em dezenas de salas de aula de primário com cartazes e fogareiros em cima de carteiras. Não lembro o que tinha que fazer, mas havia um sentimento urgente de fugir dali. Era difícil respirar. Havia gente caçando um grupo de fugitivos. Antes de acordar, alguém me deu uma panela pequena, amarela, velha e sem tampa. Empunhei a panela como um amuleto em frente ao meu peito enquanto corria abaixada entre os corredores. Estava certa de que ela seria muito útil para dar como um tacape na cabeça de alguém ou me proteger de balas de fuzil – um pesadelo com final feliz, finalmente. Mas não faço ideia do que isso significa. Meu palpite é que estou fazendo progresso e que posso desmarcar o exorcista.

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A partir das palavras de Jung, a artista criou símbolos e estruturas geométricas, brincando de forma petulante para representar o (des)equilíbrio entre o consciente e inconsciente.

ilustrações_CARoLInA ALMeIdA

InCsnt

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ilustração_Geffen RefAeLI

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texto_CeCíLIA ARAúJo

entRe o AdÁGIo e o ALeGReto

Quando ouviu o primeiro acorde, entendeu como um convite a uma profunda viagem no tempo. Fechou os olhos, e toda uma nova cena se formou. Com as pontas dos pés voltadas para lados opostos, os quadris encaixados, os calcanhares bem unidos, dobrava ambos os joelhos em um plié perfeito.

Seu coração acelerava acompanhando o ritmo crescente da canção. A felicidade de estar no centro do palco superava sua ansiedade. Na plateia, olhos atentos brilhavam diante das melhores bailarinas da cidade. Sim, Luana era uma delas, depois de tantos anos de treino e dedicação.

Enquanto alongava um dos braços, preparando para uma pirueta completa, sentia a música dentro de si. Conseguia imaginar o toque suave dos instrumentistas nas cordas dos violoncelos – eram oito – e as vibrações de sua soprano favorita. Na nota mais alta, voltava à primeira posição.

Por vezes, o canto soava como um choro, o que a fazia se lembrar de que aquele cenário não mais lhe pertencia. Em outras horas, sua juventude e excitação pareciam muito reais. De repente, podia jogar uma das pernas para o alto como se fizesse uma abertura total no ar, um lindo grand jeté.

Estranhamente, já sabia como o espetáculo terminaria, talvez por ter revivido tantas vezes essa mesma noite. Os aplausos categóricos não cessariam por longos minutos, mas Luana aguardava esse momento sem pressa. A música parecia girar em círculos, e sua pele tocava outra no pas de deux.

Mal percebia ela os arranhados no disco antigo e as limitações do seu corpo já idoso. Não se lembrava de onde realmente estava, apesar do cheiro forte de hospital. Ainda com os olhos fechados, cantarolava baixinho, com a voz rouca e falha, o verso que mais lhe doía. “A cruel saudade que ri e chora...”

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sonhos teCIdostricô_CeCíLIA vILeLA

fotos_AsheR heRR

Meus pensamentos, minhas memórias e meus sonhos, o que passou pela minha cabeça enquanto eu estava acordada, com os olhos abertos e bem abertos, ou o que se manifestou em meus sonhos sonhados de olhos fechados. Uma dança entre o consciente e o inconsciente organizada em palavras que de repente se alinham. Literalmente. Discorridos em uma sequência que parece não ter fim. Posso pegá-los com as mãos se eu quiser. Tornam-se palpáveis. Posso mudá-los de lugar, juntá-los num canto. Posso trabalhá-los com as mãos, até virar tricô. Cada centímetro daquela linha, palavra por palavra, repassada pelos dedos e cuidadosamente tecida, ganhando uma forma nova e própria. Posso entrar ou sair dela, virá-la do avesso ou fazê-la o meu avesso. Eu posso sê-la.

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sonhAndo CoMA ReALIdAde ALheIA

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sonhAndo CoMA ReALIdAde ALheIA

ilustrações_Geffen RefAeLI

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As imagens que rechearam essa edição pertencem ao dailydoodlegram. O projeto, criado em 2012, começou como uma experiência de prática de desenho a partir das fotos que os amigos da autora postavam na rede social Instagram. Esse processo criativo cria ilustrações surreais e oníricas.

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Todos os direitos reservados aos autores

Publicação indePendente

direção de arte_nAtALIA nunes (Macatuba sP, 1984)

edicão_GIovAnA MoRAes suzIn (vacaria Rs, 1987) É jornalista e historiadora e trabalha no Almanaque Abril, na Editora Abril, em São Paulo. É curiosa, insone, exagerada e coleciona pequenos prazeres - seus e alheios. Nascida gaúcha, tem o coração catarinense, mas seus pés são ciganos e não gostam de acomodação. Gosta de gente, de se perder em viagens e em sonoridades múltiplas. Escreve sobre música e outras pirações no blog http://pandorga.mus.br/

É designer de formação, e o que mais gosta de fazer é se envolver em propostas como a Quincas. Adora mesmo, pararia todo o resto do que está fazendo para se debruçar em projetos atraentes. Mantém uns blogs de referências, os quais também acha atraentes, como o http://fuckmeproperly.tumblr.com/

ilustração_Geffen RefAeLI

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