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Revista Especial Chasin

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educação e ciências humanas

Ano I, novembro de 2008 – Publicação semestral – ISSN 1981-061X

w w w . v e r n o t i o . o r g

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Verinotio

Coordenação EditorialEster Vaisman

EditoresAntônio José Lopes Alves, Vania Noeli Ferreira de Assunção, Antonio Rago Filho, Ester Vaisman, Lúcia Apareci-

da Valadares Sartório, Leonardo Gomes de Deus e Ronaldo Vielmi Fortes.

RevisoresVânia Noeli Ferreira de Assunção, Leonardo Gomes de Deus, Leandro Candido de Souza, Marcos André Ferreira de Assunção e

Sandro Assencio.

TradutoresRonaldo Vielmi Fortes, Olga Marques Chorro, Leonardo Gomes de Deus

Editoração EletrônicaRodrigo Pereira Chagas

Conselho EditorialAlex Ribeiro.Antonio José Romera Valverde (PUC-SP).Basílio Senko Neto.Celso Frederico (USP).Christian Castillo (Universidade de Buenos Aires).João dos Reis Silva Júnior (UFSCar).Leônidas Dias (Fumec-MG /Fabrai-MG). Luis Esteban Domingues.Márcia Kay (CUSC-SP).Maria Aparecida de Paula Rago (PUC-SP). Miguel Vedda (Universidade de Buenos Aires)Mônica Hallak Martins Costa (PUC-Minas). Marco Vanzulli (Università degli studi di Milano-Bicocca).Nancy Romanelli (FASB e PMSBC). Olga Marques Chorro.Roberto Adrian Ribaric.Ronaldo Gaspar (FAD e Unicastelo).Sabina Maura Silva (FHA-MG), Susana Jimenez (UECE).Vittorio Morfi no (Università degli studi di Milano-Bicocca).Vera Lúcia Vieira (PUC-SP).Zaira Rodrigues Vieira.

Conselho Consultivo:Ana Selva Albinati (PUC-Minas).

André Stuchi de Almeida.André Trevisan.Danilo Amorim.

Felipe Henrique Gonçalves da Silva.Fernando Marineli

Gláucia Fornazari (PMSP).Jacob Augusto Santos Portela (CUSC-RJ).

Leandro Candido de Souza.Maria de Annunciação Madureira (UEM).

Maria Luiza Oliveira Guimaro.Nanci Fonseca Gomes (UMESP).

Rosana Batista Monteiro (UFSCar).Roselaine Ripa.

Sarah Basílio de Toledo.Sandro Assencio.

Sérgio Augusto Malacrida.Thaís Lapa.

Vladmir Luis da Silva.Wanderson Fabio Melo (FAMA).

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Edição Especial : J. Cha si n

SUMÁRIO

EDITORIAL . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 9Ester Vaisman

ARTIGOS

MÚSICA E MÍMESES: UMA APROXIMAÇÃO CATEGORIAL

E HISTÓRICA AO PENSAMENTO MUSICAL . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 45Music and Mimesis: a categorial and historical approach to the musical thought

Ibaney Chasin

GRAMSCI SU VICO:

LA FILOSOFIA COME UNA FORMA DELLA POLITICA . . . . . . . . . . . . . . . . . 45

Marco Vanzulli

J. CHASIN: A ONTONEGATIVIDADE

DA POLITICIDADE EM MARX . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 45

Ana Selva Castelo Branco Albinati

J. CHASIN E DESCOBERTA DO ESTATUTO

ONTOLÓGICO NA OBRA DE MARX . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 45

Chasin and Discovery of the ontological statute of the Work of MarxAntônio José Lopes Alves

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PROCEDIMENTO INVESTIGATIVO E A FORMA

EXPOSITIVA EM MARX – DUAS LEITURAS: LUKÁCS/CHASIN . . . . . . . . . . 45

Investigation procedures and explanation in Marx –Two readings: Lukács/ChasinRonaldo Vielmi Fortes

A FILOSOFIA DE JOSÉ ARTHUR GIANNOTTI:

MARXISMO ADSTRINGIDO E ANALÍTICA PAULISTA . . . . . . . . . . . . . . . . . . 45José Arthur Giannotti’s thinking adstringed marxism and the “uspian analytics”

Antonio Rago Filho

A CRÍTICA CHASINIANA À ANALÍTICA PAULISTA . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 45

Chasin´s critique to the Sao Paulo School of SociologyVânia Noeli Ferreira de Assunção e Lúcia Ap. Valadares Sartório

J. CHASIN E A REALIDADE BRASILEIRA . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 45J. Chasin and the Brasilian reality

Milney Chasin

J. CHASIN E A TESE DA “VIA COLONIAL” . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 45Chasin and the thesis of “colonial path”

Sabina Maura Silva e Antônio José Lopes Alves

J. CHASIN: A CRÍTICA ONTOLÓGICA DO ANTICAPITALISMO

ROMÂNTICO TÍPICO DA "VIA COLONIAL". OS INTEGRALISMOS. . . . . . 45J. Chasin: the ontological critique to the romantic anti-capitalism typical of the “colonial via”. The integralisms.

Antonio Rago Filho

ENTREVISTA

DEZ ANOS SEM J. CHASIN . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 19Entrevista concedida por Ester Vaisman e Antonio Rago Filhoa Vânia Noeli F. Assunção e Lúcia Ap. Valadares Sartório

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Edição Especial : J. Cha si n

TRADUÇÕES

SPIEGEL: ENTREVISTA AO FILÓSOFO LUKÁCS

Introdução (O futuro é possível: o testemunho fi nal de Georg Lukács) . . . . . . . . . . . . 19Tradução e Introdução de Rainer Patriota

RESENHAS

GEORG LUKÁCS: ETAPAS DE SEU PENSAMENTO ESTÉTICO . . . . . . . . . 375de Nicolas Tertulian

Lúcia Ap. Valadares Sartório

DEPOIMENTOS

NORMAS PARA PUBLICAÇÃO . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 399

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educação e ciências humanasEspaço de interlocução em ciências humanas

Ano V, novembro de 2008 – Publicação semestral – ISSN 1981-061X

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Editorial

A Verinotio – Revista on-line de Educação e Ciências Humanas é uma revista semestral exclusivamente virtual e está fi liada ao Grupo de Pesquisa Marxologia e Estudos Con-fl uentes da UFMG, vinculado ao Diretório de Grupos de Pesquisas do CNPq – Ref.: UFMG. 0253. O propósito da Revista Verinotio é difundir produções teóricas e esta-belecer intercâmbio entre grupos de pesquisas que atuem no campo do marxismo, do humanismo e concepções fi losófi cas contracorrente – que desenvolvam críticas ao pen-samento predominante e diluído nas diversas vertentes do liberalismo, do marxismo vulgar, do anti-humanismo e do irracionalismo.

A nona edição da Revista Verinotio vem a público com um conjunto de artigos, entrevista e correspondências que elucidam – nas possibilidades e nos limites de uma revista - o perfi l, o itinerário e a obra de J. Chasin. Edição especial que homenageia os dez anos de sua morte, ocorrida em dezembro de 1998. Coletânea, cujo mérito, reside em abordar aspectos diferenciados da evolução intelectual do autor, os temas mais relevantes e sua importância, bem como os desafi os e as difi culdades inerentes a um intelectual que, da perspectiva marxiana, desde logo ousou criticar as proposi-turas teóricas e organizacionais das esquerdas, como também, o leque ideal e prático da direita, no âmbito nacional e internacional. Revista, deste modo, organizada em torno de temáticas que, desde a juventude, ou balizaram e fi zeram parte das preocu-pações teóricas e da crítica aguda de J. Chasin, ou foram se constituindo, ao longo de sua trajetória intelectual, em marco decisivo e inovador de sua ideação e de seus objetivos. Seja como for, este número especial emerge com o propósito de resgatar a memória, para o debate e a historiografi a brasileira, do intelectual singular, forjado no movimento de decifrar e compreender o caso brasileiro, não isoladamente, mas e nas desejáveis articulações com a crítica que permite o entendimento da realidade internacional. Movimento uníssono de uma subjetividade preocupada em responder conscientemente às urgências e dilemas do estado de coisas atual. De modo que este número se insere no movimento que quer a polêmica e não se furta à discussão e ao debate, mas com uma única exigência: a da honestidade intelectual capaz de re-conhecer identidades e desavenças solidamente argumentadas e no contraste do que

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Este r Vai sman

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empiricamente é possível observar. Assim, esperamos evitar – no debate - o puro subjetivismo de concepções arcaicas, muitas vezes amparadas na mera vontade das velhas agremiações partidárias ou, ainda, daquelas advindas dos meios acadêmicos cuja crença unilateral na vontade não é menor.

Comparecem, ainda, textos cuja orgânica se inspiram, embora mediatamente, com os assuntos e/ou legados afi ns deixados por J. Chasin. É o caso do artigo sobre Música e Mímeses, da entrevista de G. Lukács à revista Spiegel e da resenha do livro, recém lançado no Brasil, de Nicolas Tertulian. Temas atados à esfera estética, de Aristóteles a Lukács, cuja relevância dos autores examinados permite articular pon-tes com o pensamento de Marx e, deste modo, endossam os objetivos deste número especial. Já o artigo Gramsci sobre Vico se vincula ao propósito de explicitar a natureza do pensamento político do mais infl uente marxista italiano do século passado cujo debate, em nossos dias, é foco de polêmicas e disputas acerca de seu legado.

Cabe, ainda, algumas palavras sobre os artigos e sua unidade temática. Os artigos de Ana Selva Albinati e Antonio José Lopes Alves, intitulados J.

Chasin: a ontonegatividade da politicidade em Marx e J. Chasin e descoberta do estatuto ontológico na obra de Marx, respectivamente, se imbricam mutuamente em seu tecido teórico. Do primeiro, emerge a caracterização da crítica da política e do Estado formuladas por Marx, vale dizer: a ontonegatividade da política, pois, Marx concebe (a política) como predicado extrínseco ao ser social, isto é, como entifi cação presente e neces-sária só e apenas no longo percurso da pré-história humana. Em termos diversos, a política não é atributo eterno e natural ao ser social antes, pelo contrário, emerge dos constrangimentos societários que impedem o auto-desenvolvimento dos indivíduos e da sociabilidade. Assim, a crítica da política é caracterizada por J. Chasin como me-tapolítica, ou seja, cabe à política e sua prática superar a própria política e o Estado.

Do segundo artigo, comparece a caracterização do estatuto ontológico em Marx. A fi losofi a marxiana é compreendida na singularidade de crítica ontológica do existente e, deste modo, a realidade é chamada a amparar a ideação confi gurada. Diversamente, a crítica marxiana formulada ao estado atual de coisas tem o peso da sensibilidade que limita e fornece as condições em que a ideação ganha feitio analíti-co próprio. Assim, no e pelo contraste histórico Marx é levado a confi gurar a indivi-dualidade socialmente posta, nos interstícios do homem ativo, de seus dilemas e das perspectivas de se superar a barbárie como lepra da civilização, para usar uma expressão marxiana consagrada. De modo que J. Chasin, redescobre em Marx, o homem ativo, senhor de suas possibilidades, dono de potências infi nitas.

Ainda sobre as conquistas teorias no plano fi losófi co, fi gura o artigo de Ronaldo Vielmi Fortes, que representa esforço válido no sentido de identifi car as possíveis

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Editorial

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diferenças e identidades das refl exões sobre o caráter ontológico do pensamento de Marx entre Lukács e Chasin. De fato, trata-se de tarefa inadiável, posta a necessidade não só de evitar identifi cações que não respeitam a letra nem de um nem de outro, mas também evitar a banalização de esforço intelectual de grande monta.

Quanto aos artigos voltados à realidade brasileira, a unidade é exemplar. Os tex-tos de Antônio Rago (sobre Plínio Salgado) e Sabina Maura (Via Colonial) demons-tram a preocupação central de J. Chasin por compreender a realidade brasileira nas dimensões de sua formação ideal e histórica. Trata-se do encontro do pensamento agrário de Salgado que, no hiper-atraso de nossa condição social (a Via Colonial), emerge como possibilidade de fato, a sustentar um ideário radicalmente improgres-sivo e insustentável. Também com a atenção voltada aos textos de J. Chasin que se debruçaram sobre a “analítica paulista” – expressão por lê mesmo cunhada para designar as derivações do “marxismo adstingido” – Vânia Noeli e Lúcia Valadares empenharam-se de modo exitoso em, de um lado, caracterizar as linhas de inter-pretação da realidade brasileira e latino-americana que se tornaram dominantes em nosso meio acadêmico, mas com grande irradiação política, e a propositura crítica que Chasin desenvolveu frente ao que ele mesmo denominou em artigo de 1989 de “quadrúpede teórico”.

Por fi m, algumas considerações sobre a entrevista.Ao expor a memória de J. Chasin, a entrevista que ora se publica, nasce com

mérito preciso: evitar que a fi gura e o trabalho intelectual de J. Chasin se percam ou se diluam no tempo. Tarefa difícil ainda mais em épocas onde tudo é relativizado, tudo passa então, a ser subjetivamente sentido e visto. De modo que a entrevista entremostra o perfi l e o ideário de J. Chasin, sua formação e desenvolvimento e sua atuação política. Um leque amplo produzindo imagens de um intelectual aguerrido que sustentava suas teses e convicções até o fi m. Não por teimosia, mas simplesmen-te porque acreditava nas pessoas e nas suas potencialidades.

Ester Vaisman

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M ú s i c a e M í m e s i sUma Aproximação Categorial e Histórica

ao Pensamento MusicalIbaney Chasin*1

* Professor do Departamento de Música da UFPb.

Resumo: Este texto entende identifi car como a música foi fi losofi camente entendida e determinada ao longo da história. Partindo-se de Aristóteles, num caminho que desemboca em Lukács, constata-se que, em absoluta dominância, todo o pensamento a reconheceu como míme-sis – mímesis dos afetos. Música não é linguagem, mas vida anímica exteriorizada, alma humana sensifi cada.

Palavras-chave: Música; Mímesis; Afetos; Aristóteles, Mei, Doni, Rousseau, Hegel, Lukács.

Music and Mimeses A categorial and historical approach

to the musical thoughtAbstract: This text sets out how music was philosophically understood and determined throughout history. Taking Aristotle as point of depart in a timeline that leads to Lukács, the most infl uencial philosophers recognized music as mimesis – mimesis of affects. Music is not language but animical exteriorized life, sensed human soul.

Keywords: Music; Mimesis; Affects; Aristotle, Mei, Doni, Rousseau, Hegel, Lukács.

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A meu pai,

Ele era um homem, e, pelo seu todo, não mais verei ninguém igual a ele.

Hamlet

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Música e mímesis: uma aproximação categorial e histórica ao pensamento musical

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O tempo passado contém ensinamentos que devem levar os seus frutos para o futuro.

A eloqüência dos fatos estaria perdida para nós?Balzac, Fisiologia do Casamento

Este texto, breve, tem por télos marcar um reconhecimento teoricamente estru-tural, a saber: a música, no curso da história, foi dominantemente compreendida e determinada como esfera mimética. Música, afi rmou categoricamente o pensamento fi losófi co, é mí-mesis dos sentimentos, das paixões humanas. Efetivamente, o som musical carrega em si a alma humana, ou mais rigorosamente, sensifi ca o sentir, de modo que a arte dos sons, se esfera estética consubstanciada, não se atualiza ou pode se atualizar como mera sonoridade, como som in sonu: se objetivação ôntica, é via das paixões, paixões que pelos sons irrompem, se concretam, sensifi cam, se fazem arte, música.

No intento de substantifi car, grosso modo, tal reconhecimento – sem o talante desmedido de ir além de uma afi guração em silhueta –, tomamos a pena aristotélica, que, ponto de partida, é, ato contínuo, conectada à letra de Girolamo Mei e Gio-vanni Batista Doni; letras, a sua vez, que se ata às de Rousseau, Hegel e Lukács. As-sim, de um arco teorético – categorial e historicamente – representativo, ou que de Aristóteles desliza para Lukács – arco, histórico, entecido no interior de letra fi losófi -ca de substância induvidosa –, escava-se que o pensamento orientado à música assi-nalou, sempre, sua ingênita dimensão mimética, posta e resposta no curso da refl exão musical como categoria fundante desta arte. Assinalação que, reconhecimento categorial, não pode então ser teoricamente descuidada: se de música se trata, de vida anímica se trata. Vejamos, na brevidade que se impõe; logo, numa argumentação que mais esboça do que funda, que antes pontualiza do que desdobra, necessariamente.

1. Aristóteles Mimético

Na longa palavra autocitada, inceptiva:“A tematização do substrato mimético da vida e da arte alcança contornos matura-dos e iniludíveis na fi losofi a grega. Sinal vigoroso e terminante desta orientação era a posição ocupada por este complexo categorial nas páginas aristotélicas. A mimese aí surgia como a mediação incontornável dos modos de relação e adequa-ção do homem com o mundo exterior, como forma de apreensão e domínio do real concreto. Nos termos concisos de Lukács: “Os gregos não tinham dúvidas de que toda a relação humana com a realidade – tanto a científi ca quanto a artís-tica – se fundava numa refi guração da natureza objetiva de tal realidade.” [Estetica, Barcelona, Grijalbo, 1982, v.4, p. 8.]. Na Poética, a determinação do ato imitativo enquanto categoria humana imanente é esboçada no interior de uma argumentação

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que signifi cativamente quer desvelar também a origem da poesia. Deste ponto de fuga, o pensador grego fazia emergir e estabelecia a imanente e multíplice facul-dade imitativa do homem, como, outrossim, a natureza mimética da poesia. Na mesma Poética assim concebia e determinava:

À poesia parece dever sua origem, em geral, a duas causas, ambas naturais. O imi-tar é conatural ao homem, e nele se manifesta desde sua infância – o homem se diferencia precisamente dos outros animais pois é muito mais apto para a imitação e é por seu intermédio que adquire seus primeiros conhecimentos; em segundo lugar, todos os homens se comprazem no imitado.’ [Poetica, 4, 1448 a/1448 b.].

Logo, ‘Sendo o instinto de imitação próprio à nossa natureza, da mesma forma como a harmonia e o ritmo, pois é evidente que os metros não são mais que partes do rit-mo, os que ao princípio estavam mais dotados para tais coisas – fi rma Aristóteles – pouco a pouco deram origem, através de suas improvisações, à poesia.’ [Ibid]”.1

Radicado este suposto determinativo ontológico – a mímesis arma e sustenta vida cotidiana e arte, funda e alenta a atividade humana e o fazer artístico2 –, a cate-goria da imitação teria de surgir, como de fato ocorre, enquanto ser e fazer fundantes da esfera musical. Se o homem aprende in imitatione, se ele se forja in communitate, se o indivíduo se engendra a si no e pelo gênero – se a “vida individual e a vida genérica do homem não são diversas, por mais que também – e isto necessariamente – o modo de existência da vida individual seja um modo mais particular ou mais universal da vida genérica”3 –, a música, em Aristóteles, não poderia não irromper como mímesis, como ato nascido da relação entre o artista e a vida humana, que o alenta de si. Na Política assim considera, em reconhecimento categorial:

Nos ritmos e melodias, sobretudo, estão as mimeses mais próximas da natureza real da cólera, da doçura, e também da coragem e da temperança, e de todos os seus contrários, e de outras qualidades morais. Isto os fatos mostram claramente: ao ouvir tais mimeses, a alma muda de estado. E o hábito de se sentir dor ou alegria por tais similitudes está muito próximo daquilo que se sente em face da realidade.4

1. Ibaney Chasin, O Canto dos Afetos, São Paulo, Perspectiva, 2004, p. 51.2. Na palavra aristotélica, que concreta a determinação: “A epopéia e o poema trágico, assim como a comédia, a poesia ditirâmbica e grande parte da música de fl auta e de cítara são, de um modo geral, imitações/.../ Pois, assim como uns – seja pela arte, seja pelo hábito ou costume – imitam muitas coisas por meio das cores e do desenho, cujas imagens nos reproduzem, e outros imitam por meio da voz, igualmente ocorre com as artes mencionadas: todas realizam sua imitação por meio do ritmo, da linguagem e da harmonia [música], combi-nados ou não entre si.” [Poetica, I, 1447 a, tradução de Francisco Samaranch, in Obras, 2.ed. Madrid, Aguilar, 1973, p. 77.].3. Marx, Manuscritos Econômico-Filosófi cos, tradução Jesus Ranieri, São Paulo, Boitempo, 2004, p. 107.4. Aristotes, Politique, VIII, 5, 1340 a, tradução de Jean Aubonnet, Les Belles Lettres, Paris, 1989.

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Música e mímesis: uma aproximação categorial e histórica ao pensamento musical

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Ou ainda,as peças de música, pelo contrário, contém atualmente em si mesmas imitações de ca-racteres, e isto é evidente, pois que na própria natureza das simples melodias há diferenças [recíprocas], de modo que ao ouvi-las as pessoas sentem-se afetadas de diferentes maneiras, e não têm os mesmos sentimentos em relação a cada uma delas; escutam, umas, com um espírito lamurioso e mais retraído, como, por exemplo, o modo chamado mixolídio; outras, num estado suave e brando da mente, como são as melodias livres; outras num estado de equilíbrio e da maior serenidade, como parece que, entre todas, alcançam somente as do modo dórico; enquanto que o modo frígio infunde entusiasmo aos homens. Estas coisas, com efeito, foram bem determinadas pelos que estudaram esta forma de educação, já que eles extraíram a evidência de suas teorias dos fatos atuais da experiência.5

Aristóteles é translúcido e categórico: música é um ato mimético; mais especifi -camente, é expressão da vida afetiva, é interioridade que se exterioriza, subjetividade que sente, mímesis do anímico. Ritmos e melodias – afl oração do interno – sensifi -cam sentimentos, o que se experiencia e comprova praticamente: “ao ouvir tais mime-ses, a alma muda de estado” – acompanha e reproduz animicamente o mélos que ouve, que sente. Em termos que desdobram, modo (musical) e sentimento se atam intrinsecamen-te: aquele é via deste, de sua objetivação. Ao argumentar sobre o canto na tragédia antiga, Doni toma e cita o fi lósofo grego, com o que entremostra tanto a orgânica da música grega, quanto o jaez – mimético – da refl exão musical aristotélica; assim elabora, extensamente:

Sabe-se que o ofício dos coristas era muito diverso dos histriões ou atores cênicos. E ao se mostrar que havia diferença entre a melodia daqueles e destes, acredito que facilmente se concluirá que não apenas os coristas cantavam, mas também os atores. Aristóteles, na seção das questões musicais propõe, entre outros, este Pro-blema: porque os coros da tragédia não cantam no modo hipodórico ou hipofrígio; e então responde [numa passagem que Doni cita no original grego e traduz na seqüência]: “Talvez porque estas duas harmonias, ou modos, não possuam uma melodia fl ébil, calma, patética, tão necessárias ao coro. Pois a hipofrígia possui um caráter ou maneira ativa, e por isso em Gerione a abertura e o desarmamento foram nela modulados. Mas a hipodórica tem o caráter magnífi co, constante, por isso, entre todas as harmonias, é a mais adequada à música dos citaredos, isto é, às cantilenas acompanhadas pela cítara e lira. Música que por suas qualidades é desproporcional ao coro, logo, conveniente aos atores cênicos, que representam os heróis, viventes só entre os antigos e príncipes. Isto é, o povo é constituído de homens comuns, pelos quais é composto o coro. Assim, a este convém um caráter e canto fl ébil e brando, características propriamente humanas, e que se encontram em outras harmonias, com exceção da hipofrígia, furiosa e báquica. Mas principal-mente a mixolídia possui aquelas propriedades [humanas], e por ela se exprimem os afetos passivos, sendo as pessoas débeis mais sofridas do que as fortes. Então,

5. Aristoteles, Politica, VIII, 5, 1340 b, in Obras, op. cit. (Grifo nosso).

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esta convém aos coros, dado que a hipofrígia e hipodórica exprimem um caráter ativo, impróprio ao coro, que é um curador ocioso, pois não oferece outro obsé-quio a quem lhe assiste do que a simples benevolência.6

A letra do Trattato se urde em diafaneidade: a modalidade, pontualiza Doni-Aristóteles, são modos humanos de sentir – vale dizer, o modo grego é, in essentia, um modus afetivo. Então, amantar o coro com uma intemperada – dramática – har-monia hipofrígia, coro este que é constituído por “homens comuns”, cuja natureza, não heróica, não báquica, é, antes, comedida – não terminante, mas tendencialmente prudente, não vocalmente aguda, mas complacente, talhada verossimelmente em medianidade –, implicaria em impropriedade musical, rigorosamente porque generan-te de uma impropriedade anímica. Posto distintamente, o mixolídio, sustenta o Trattato, por suas propriedades humano-sonoras intrínsecas é mais próximo ao ânimo do coro, o que signifi ca, categorialmente, que um modo musical é ou expressa um pulso anímico espe-cífi co, que diz respeito e se ata à vida interior, aos batimentos do espírito. Lógica ou ser-assim dos modos que lhes projeta artisticamente para muito além da sonoridade enquanto sonoridade, do som enquanto entidade físico-acústica, enquanto abstrata beleza sonora: o som modal é expressão, atualização – concretamente, é esfera afeti-va, mímesis, música. Na palavra que arremata, pois mais aqui não se pode: na pena aristotélica, a esfera musical é mímesis da alma, vale dizer, alma que sente, e isto na ôntica medida em que nos ritmos e melodias, sobretudo, estão as mimeses mais próximas da natureza real das paixões. Disto Aristóteles não tinha dúvidas, porque os fatos isto nos mostra efetivamente, pois objetivamente.

2. Algumas refl exões renascentistas sobre a música

O século XVI, século de sínteses históricas, desaguadouro maturado daquilo que o revoluteante ventre renascentista “italiano” quatrocentista gestara e concebera socialmente, não menos substanciou em seara musical. Teoria e prática musicais quinhentistas remataram tendências e perspectivas paridas de um fl uxo humano que os tempos de Poliziano, sem dúvida, sintomatizavam. Prenúncio de uma arte sono-ra timbrada pela expressividade, música que Claudio Monteverdi, nascido em 1567, conduziria à máxima realização compositiva do tempo. Nesse sentido, o universal reconhecimento teorético renascentista de que a música coeva, assim como a grega, plasmavam-se a partir e no interior da esfera dos sentimentos, corroborava, no cam-po estético-musical, as sínteses ou consubstancializações históricas parturidas, conquan-to tal reconhecimento genericamente compartilhado pela teoria musical fosse urdi-do na distinção das argumentações, disposições e ênfases. Girolamo Mei e Giovanni

6. Giovanni Batista Doni, Trattato della Musica Scenica, Cap. II, in O canto dos Afetos, op. cit., p. 93.

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Música e mímesis: uma aproximação categorial e histórica ao pensamento musical

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Batista Doni, centrais nas formulações teórico-musicais tardo-renascentistas, são nomes cujas refl exões destilam teses e posturas que estão defi nitivamente inscritas no pensamento renascentista. Colhamo-las, minimamente, com o que se esboça, e não mais do que isso, o pulso teórico-musical destes pensadores e de seu momento.

Ao estudar a música grega, Mei, fi lósofo e fi lólogo – para quem a “Poética [aris-totélica] se constituiu no fundamento de sua estética musical”7 –, elabora uma re-fl exão sobre a música de talhe ôntico.8 Referido mais concretamente, ao tomar em exame a música dos antigos, ou melhor, e não poderia ser diverso, a teoria musical concernente – seu objeto musical por excelência,9 Mei – bem como Doni, igual e posteriormente –, enforma um ideário cuja universalidade deve ser aqui sublinhada-mente radicada. Por seus estudos, longos e exaustivos, Mei tange e evidencia cate-gorias acrônicas da música, porquanto alcança e reconhece atributos fundantes do ser-precisamente-assim musical. Atributos que, gregos, são analogamente renascentistas ou contemporâneos. Tomemos a questão, in brevi manu.

7. Claude Palisca, Girolamo Mei (1519-1594): Letters on Ancient and Modern Music to Vincenzo Galilei and Gio-vanni Bardi. 2.ed. rev, [s.l.], American Institute of Musicology, 1977, p.35.8. Ainda da palavra de Palisca, quatro pontuações sobre este fl orentino, esclarecedoras e relevantes: “Mei pre-tendia reconstituir toda a substância da teoria [musical] grega a partir da estrutura da prática antiga. Esta teoria era para ele a matéria-prima da história, e não, como para muitos de seus predecessores, uma doutrina universal a ser ditada para os músicos de todas as épocas.” [Palisca, op. cit., p. 35.]; e ainda, “/.../com o trabalho de Mei encontramos pela primeira vez uma pesquisa histórica pura no campo da música. Não só por sua objetividade, mas ainda por seu alcance exaustivo, a investigação de Mei sobre a música grega supera toda e qualquer tenta-tiva anterior neste campo.” [Ibid.]; Nesse sentido, “O centro da música grega, mais do que as racionalizações para uma prática moderna, era o objeto das investigações de Mei. Ele começou por reconstruir desapaixona-damente a história da música grega. E somente buscou constituir uma moral para seu próprio tempo quando se fez seguro de que possuía um corpo de verdades constatáveis. Ele não era um músico e não compartia dos prejuízos dos teóricos musicais de sua época, o que provavelmente foi uma de suas maiores vantagens, pois o salvou de cair nos erros de seus contemporâneos. Mas Mei tinha uma vantagem ainda maior: era o único fi lólogo e historiador treinado dentre os que buscavam os segredos da música grega.” [Ibid, p. 2]. Em suma, “Como fi lólogo e acadêmico participara, em Florença, de muitos dos mais signifi cativos trabalhos dos humanistas tardios - perspicazes críticas textuais, estudos sobre prosódia grega e latina, a edição dos textos de Aristóteles, pesquisas sobre a história local e política, e a preparação das edições defi nitivas das peças gregas. Dessa experiência Mei extraiu para o pensamento musical um complexo de atitudes completamente novo.” [Ibid, p. 80.]. Sobre vida e obra de Mei, Doni e Galilei, cf. O Canto dos Afetos, op. cit.9. Da música grega, nada restou, efetivamente. Signifi ca que o estudo desta arte circunscrevia-se, e se circuns-creve, ao campo teorético, incontornavelmente. Na palavra que conjectura: quanto aos gregos, “vários indícios induzem a pensar que até o século IV a.C. não estava posta a exigência de se escrever a música: o caráter substancialmente repetitivo da melodia, que mesmo nas possíveis variações se adequava a fi guras melódicas tradicionais, e o ensino “aural” do canto e da prática instrumental /.../ Um outro argumento ex silentio pode confi rmar a hipótese de que a música grega arcaica e clássica nunca tenha sido escrita: a tradição manuscrita dos poetas gregos, que remonta em grande parte às edições dos gramáticos alexandrinos, não conservou nenhum texto com notação musical. Se na época helenística os editores tivessem tido a possibilidade de trans-crever, ao lado dos textos literários, também as relativas linhas melódicas, certamente não teriam transcurado este elemento essencial da poesia.” (Giovanni Comotti, La musica nella cultura greca e romana, Torino, Edizioni di Torino, 1991, p. 9.).

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1.

De uma carta de 1572, de Mei a Vincenzo Galilei, extrai-se a seguinte assertiva, que, teoricamente estrutural, surge logo ao início:

Tive a convicção que todo o coro cantasse uma mesma ária [melodia] ao notar que a música dos antigos era tomada como valoroso meio de comover os afetos, o que se encontra em muitas observações narradas pelos escritores [da antiguidade].10

Mais à frente, em proposição roborante, de nítido jaez aristotélico, considerava ao destinatário, analogamente: o objetivo da música grega era “conduzir outrem, através deste prazer auditivo, à mesma afeição que guarda em si.”11 Posto de chofre, para Mei, a música dos gregos é mímesis dos afetos: o canto, a melodia, nada mais fazem do que manifestar a interioridade. E assim a música opera porque a comoção que me invade, movendo-me afetivamente, é posta por uma invasão melódica, que mudando o sentir d’alma é, pois, seu revérbero, sua objetivação anímica in sonu. Ao refl etir sobre a modalidade grega, Mei atualiza o reconhecimento de Aristóteles de que a sonori-dade modal é um modus anímico, de que é expressão das paixões, do universo afetivo, universo que o mélos, por sua agudez, gravidade e mediania, manifesta, exterioriza, con-creta; a Galilei refere, in mímesis:

É coisa igualmente sabida que, dos tons [= modos], os da mediania - que estão entre a extrema agudez e a extrema gravidade - são aptos a demonstrar calma e moderada disposição de afeto; os muito agudos são de alma muito comovida e exaltada, e os muito graves expressam pensamentos tanto abjetos quanto íntimos. Da mesma forma que um número mediano entre a velocidade e a lentidão revela ânimo pousado, e a velocidade, concitado; a tardança, espírito lento e mandrião. E é claro que, em conjunto, todas essas qualidades da harmonia [= sonoridade melódica] e do número hão de mover [na alma de outrem], por suas naturais fa-culdades, aquelas afeições semelhantes a si próprias.12

A segunda carta de Mei a Galilei, conquanto tematicamente menos fi losófi ca, confi rma os assertos mimético-catárticos da primeira. Consentâneo, assim, tomar-lhe um momento, que, sucinto e claro, ata música e imitação, tomadia pela qual se desdobra e avigora a sustentação teorética da natureza mimética do pensamento musical meiano. Na carta de 1577 – que com a de 1572 e mais outras três compõe o conjunto de epístolas com o qual o fi lósofo fl orentino responde às questões que lhe foram postas por Vincenzo sobre a lógica da música grega, epistolário musical que enforma determinações teórico-musicais categorialmente fundantes, assinale-se –, lê Galilei a determinado passo, assertivo: “a virtude da música [grega] consistia em fazer da melodia expressão adequada daquele afeto que, com as palavras, se queria

10. G. Mei, Carta de 1572 a Vincenzo Galilei, in o Canto dos Afetos, op. cit. p. 12. (Grifo nosso).11. Ibid, p. 25. (Grifo nosso).12. Mei, Carta de 1572 a V. Galilei, in O Cato dos Afetos, op. cit., p. 14. (Grifo nosso).

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manifestar”.13 Ora, a pena epistolar, esteticamente roborante, é o reconhecimento de que a melodia – o evoluir de uma voz que faz actus sua imanente potentia expressiva – existe como expressione, isto é, como affectus. Signifi ca que o ato musical se positiva, escava-se de Mei, enquanto tecido mimético, tecido que, canto, se urde in mímesis. Numa palavra, que prenuncia proposições venturas: na letra meiana, aquilo que en-gendra a arte sonora não é o som, mas a expressão – imanente – do som, expressão que parture música – som ad hominem. Prossigamos com Doni, cujo caminho refl exivo é completação argumentativa, que esclarece, ato contínuo, sobre a esboçada lógica da letra de Mei.

2.

Como Girolamo, a refl exão musical de Doni, aqui aduzida em ingenerosa exem-plifi cação, é reconhecimento da categoria da mímesis enquanto categoria musical basilar.14 No Trattato della Musica Scenica, onde refl ete detidamente sobre o problema da presença e lugar da música na tragédia grega, como também acerca do nascediço canto cênico coetâneo, pontualiza, em talhe de natureza ontológica:

Os afetos veementes são potentes incentivos à música, e quando representados em cena se requer maximamente a melodia. O que pode ser reconhecido na medida em que ao elevar-mos naturalmente a voz – como ocorre nos lamentos, ameaças, júbilos, e outras paixões humanas – nos avizinhamos do canto; não sendo este mais do que uma variação de tom, feita ao se soltar a voz com um maior esforço das artérias através de diversos intervalos harmônicos e prolongamentos das vogais. É por isso que se pode observar que os oradores, comumente nas comiserações de seus epílo-gos, costumam alterar muito a voz, aproximando-se assim das cantilenas. Nesse sentido, Teofrasto demonstrou claramente em seus livros de música que de três tipos de afetos (aos quais os outros se reduzem) a música deriva sua origem: da alegria, tristeza e entusiasmo, isto é, furor divino – entendido também enquanto ímpeto

13. Mei, Carta de 1577 a V. Galilei, in Girolamo Mei (1519-1594): Letters on Ancient and Modern Music, op. cit., p. 132. (Grifo nosso).14. Sobre Doni, uma passagem que traceja um perfi l e uma perspectiva: “As linhas iniciais do sucinto comen-tário que o abade Passeri estampa no Appendice do Trattato entremostra a dimensão de seu autor e obra, isto é, pontua em termos gerais a importância histórica dos estudos donianos, e marca a relevância, em particular, de suas refl exões no campo da música cênica. Avalia o abade de Pesero: ‘A música cênica, quando se observa o modo como os antigos a manejaram, é a parte mais difícil de tal faculdade. Nos escritos, apenas traços redu-zidos e esparsos foram conservados, reclamando o trabalho de uma grande inteligência que, apta a cavar sua orgânica, juntasse à vasta erudição necessária para pesquisas desta natureza, uma franca capacidade na língua grega e grande perícia em música, o que raramente ocorre. Tais requisitos integraram o imortal Gio. Batista Doni.’ Imortal, talvez, mais do que por qualquer outro fato ou razão porquanto reconhecesse e destacasse teoricamente o vívido fundamento humano da música grega - o que Passeri parece ter compreendido, pois no Prefácio da Lyra Barberina refere precisamente que a música ‘deve secundar [a natureza ] na expressão das paixões, para onde, principalmente, se voltou o doutíssimo Doni com seus ensinamentos. Notou Aristóteles que nos ritmos existem as imagens da ira, do amor, da dor, e da docilidade. Eis então a música obrigada a se orientar pela fi losofi a acerca da índole e modo de proceder de cada uma destas comoções. Quem fi zer diversa-mente poderá cantar bem, mas nunca moverá a alma’”. [Ibaney Chasin, O Canto dos Afetos, op. cit., pp. 6-7.].

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generoso. Por isso então se deve adotar a melodia onde afetos símiles são expressos.15

E em letra contígua:De outro lado, o canto cênico sem o condimento do falar patético resulta, como hoje se vê, friíssimo e pouco grato ao ouvido, pois lhe falta aquele incentivo que dá alma à melodia, que fertiliza, como sal fecundo, o terreno, preenchendo a imagi-nativa do compositor.16

A refl exão é induvidosa: a música, grega ou não, se consubstancia em sua condi-ção de fundo, objetiva-se em profi cuidade artística, positiva a potentia de sua vocação mais íntima, se atualização anímica. O canto, fi rma Doni, é parido por necessidades anímicas, para a expressão intensifi cada, concreta dos sentimentos. Sua irrupção, este é o elemento de fundo, supõe e implica vida afetiva, que então se sensifi ca. Signifi ca que o ato cantado é, geneticamente, um ato in mímesis: uma melodia é alma objetivada in affectu. De sorte que, pondera o fi lósofo sobre o teatro grego, se “/.../um ator fala movido por algum afeto – como nas deplorações feitas no fi nal das tragédias, tenho por certo que estas fossem cantadas”.17 “Nas Troadas de Eurípides [– exempli-fi ca –] onde Cassandra, depois de ter proferido vários iambos contínuos prossegue o discurso com aqueles dezoito trocaicos, sem dúvida que aí se dava o início do cântico. E para mencionar um caso latino, no Ippolito, de Sêneca, aqueles trocaicos proferidos por Teseo – Pallidi fauces Averni, certamente eram cantados”.18 Para Doni, enfi m, escave-se em arremate de sua letra categorial, a melodia tem lugar e senso se sentimentos têm lugar, ser-assim anímico da música que a faz música, lógica miméti-ca reconhecida que funda sua refl exão, armando ser e dever-ser musicais de sua pena teorética.

3.

Delineado este sucinto universo teorético, que se constituiu, rigorosamente, na e pela palavra textual, necessário evidenciar o esteio ou fundamento que permitiu a Aristóteles, Mei e Doni sustentarem a relação música-mímesis dos afetos. Movimen-to que ao nitidizar a razão-de-ser e pertinência desta atação, expõe o pulso ôntico do pensamento musical examinado.

Na carta de 1572, Mei assim considera:visto que a música que concerne ao canto gravita em torno das qualidades da voz, e nisto, especialmente, em ser aguda, média ou grave, pareceu-me que deveria ser

15. Doni, Trattato della Musica Scenica, V, in O Canto dos Afetos, op. cit., pp. 75-76. (Grifo nosso).16. Ibid, p. 76.17. Ibid, IV, in Lyra Barberina, A. Gori & G. Passeri (org.). Fac-similar da edição fl orentina de 1763. Bologna, Forni, 1974, vol. II, p. 10.18. Ibid.

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primordial que a virtude desta arte repousasse seu principal fundamento necessa-riamente nestas disposições. E, ademais, não havendo semelhança entre cada uma destas paixões da voz [grave, média, aguda], seria irrazoável que tivessem as mesmas faculdades. De fato, por serem contrárias entre si – nascidas de disposições [hu-manas e sonoras] contrárias, ocorria, necessariamente, que tivessem propriedades contrárias, as quais, por sua vez, tinham força para produzir reciprocamente efei-tos contrários. Visto que a voz foi concedida pela natureza aos seres animados, e ao homem, em particular, para a signifi cação de seus próprios conceitos, era efetivamente racionável que estas suas qualidades diversas – fundamentalmente divergentes umas das outras – fossem adequadas, cada uma por si e distintamente, para expressar afeições determinadas.19

Ora, o que nesta passagem Mei refere a seu interlocutor epistolar – e este reco-nhecimento é musicalmente fundamental – é que a voz expressa, de per si, paixão huma-na. Sentimentos que se manifestam ou são paridos pelo movimento ou modulação da voz na exata medida em que esta, ou seus diferentes registros – agudo, médio e grave – atualizam a interioridade, externam aquilo que se sente. Voz é anímica: seus registros são regiões anímicas, ou mais rigorosamente, aqueles as transparecem, sensifi cam. Em termos distintos,

A voz foi especialmente dada ao homem pela natureza não apenas para que ele manifestasse através de seu simples som, como fazem os animais despossuídos da razão, o prazer e a dor, mas para, na conjuminância com o falar signifi cante, exprimir adequadamente os conceitos da sua alma.20

Vale dizer, a voz, que é sonoridade, é, geneticamente, afetividade exteriorizada, porquanto sonoridade que naturalmente se efetiva enquanto expressione. Ou ainda, a voz se atualiza como instrumento, “/.../concedido ao homem com suas inúmeras qualidades especialmente para a perfeita expressão de seus conceitos e afetos”,21 isto é, como mediação da fala, de um lado, e, essencialmente – primariamente, enquanto expressão, mímesis, via das paixões sentidas. Na consentânea letra aristotélica, ôntica: “Os sons da voz são refl exos das afecções da alma”.22

Num fugaz desdobro em campo aristotélico, que importa tecer. Na Retórica, no espaço voltado a problemas estilísticos, surge, logo ao início [III, 1, 1403 b], a seguinte determinação, que denota o caráter ou natureza do ato vocal, o em-si onto-imanente da voz; considera Aristóteles:

A recitação concerne à voz e ao modo pelo qual esta deve ser usada para exprimir cada uma das emoções – quando, por exemplo, deve ser forte, quando fraca, quando

19. Mei, Carta de 1572 a Galilei, op. cit., p.13. (Grifo nosso).20. Ibid, pp. 31-32.21. Ibid, p. 33.22. Aristote, Organon, De L’Interprétation, I, 16 a, tradução de J. Tricot, Paris, Libraire Philosophique, 1994, p. 77. (Grifo nosso).

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média, e ao modo pelo qual a voz deve se servir dos tons – agudo, grave e médio, e quais ritmos devem ser usados em cada caso.23

Posto sem mais: a letra fi losófi ca reconhece a ingênita e fundante dinâmica ex-pressiva da voz. A recitação, esboça a Retórica – recitação, marque-se, que é voz na objetivação mais concreta de seus atributos, de sua orgânica, porque voz é sonoridade hu-mana –, é voz “usada”, realizada, para exprimir emoções. Voz, portanto, que na ação recitativa – que é ação de expressividade – positiva-se como tal. Em palavra análoga, em Aristóteles, a objetivação do anímico encontra meio nos e pelos movimentos vocais do dizer, pelas modulações da voz, que torneiam a palavra. Em argumento concreto: as infl exões, na fala, que trazem a voz do agudo para o grave, empurram-na do grave para o agudo, a deslocam do medial para o agudo ou grave, etc., sensifi cam pulsos afetivos, pois a voz ao ser – ao modular, infl ectir, acompanhar, secundar (sonoramente) o dito – imediatamente os atualiza, isto é, exprime “cada uma das emoções”, o que se atina, pontue-se, pela vivência cotidiana imediata. Ser-assim da voz que então destila, in limine, sua natureza, mimética: sons – inarticulados – que, vindos do interno humano, assim manifestam sua vida afetiva. Na letra hegeliana, sintetizadora:

a voz, como já indiquei, é o próprio ressoar da subjetividade total, que também chega a representações e palavras, e encontra na própria voz e no canto o órgão adequado quando quer exteriorizar e perceber o mundo interior de suas representações como penetradas pela concentração interior do sentimento.24

Em termos análogos, Mesmo fora da arte, o som, como interjeição, como grito de dor, suspiro ou riso, constitui a expressão imediata e mais viva dos estados de alma e dos sentimentos, aquilo que eu chamaria os oh! e os ah! da alma. Estamos em presença de uma objetivação da alma por e para si mesma25.

Determinação esta que implica e signifi ca a existência de uma atação indelével – porque real – entre voz e interioridade, entre modulação vocal e estado da alma. Ata-ção que, realidade sensível, não poderia escapar a ideários que propendiam à objetividade.

O Trattato, nesse sentido, substantifi ca uma refl exão que, por sua clareza, deve ser exposta. Refl exão em cujo coração determinativo pulsa veemente a relação voz-vida anímica, de sorte que pela condução da palavra doniana corrobora-se o expos-to, que se nitidiza. Movimento que fi naliza a argumentação em curso.

Os registros vocais, afi rma Doni, dão concretitude à interioridade que sente, isto é, da voz, dispõe o Trattato della Musica Scenica, escorrem batimentos afetivos sentidos: pela modulação daquele que fala, prorrompe, no ato do dizer, seu sentir. Em propositura

23. Aristotele, Retorica, tradução de Marco Dorati, Milano, Oscar Mandadori,1996, p. 297. (Grifo nosso).24. Hegel, Cursos de Estética, São Paulo, Edusp, 2002, vol. III, p. 337.25. Hegel, Esthétique, France, Flammarion, 1979, vol. 3, p. 335.

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escavada, para este pensador fl orentino, voz é subjetividade in affectu, o que sua letra plasma em argumento ôntico, irrefutável; assim elabora, reconhecendo e pontuali-zando uma imbricação real, concreta:

considere-se, na mesma pessoa, a variação de entoação. Pois um homem que fala em seu tom natural – sem forçar a voz num tom agudo (que chamamos quilio), ou num grave (que não tem nome) – demonstra uma postura pousada, calma, constante, um ânimo verdadeira-mente estóico, que não se deixa comover por nenhuma paixão. Por isso, e prudentemente, é que os gregos destinaram a este tom (que nós chamamos de corista) o modo dórico, que possui algo de melancólico e grave. Precisamente por isso era natural, e mais estimado pelos dóricos do que por qualquer outra nação grega. Dóricos cuja nação era a mais numerosa, como a mais grave e de hábitos mais severos e incorruptos. De sorte que a este tom convém, dentre as três espécies de melodia [aguda, média, grave], aquela do meio, que chamavam de Hesychastica,26 isto é, instauradora de calma e tranqüilidade. Mas, se este mesmo homem falar em um tom mais esforçado e intenso, demonstrará veemência de afeto tanto na tristeza quanto na alegria, com aquela diferença acima referida. Por isso é que tanto o modo frígio – destinado a exprimir o furor divino, o desdém, o ardor militar, quanto o lídio – apropriado à alegria, ao júbilo, festas e bailes, eram cantados pelos coristas num tom mais agudo e intenso. E por outro lado ainda, se a mesma pessoa usar de um tom de voz mais grave do que o seu natural, exprimirá certo cansaço, fraqueza, langor, e, entre os afetos, preguiça, temor, uma tristeza fria e dolente, mas não concitada e desesperada. Em tom quedo, porém, cantava-se o modo ou harmonia hipolídia, criticada por Sócrates e depois por Platão (que a chamava de lídia, como de costume naquele tempo), pois não era usada senão para exprimir um comportamento languente vezeiro, ou um prazer exagerado, por inebriamento ou congêneres.27

No pulso determinativo nascido do ventre doniano, e sem mais: voz, alma in sonu.

4.

E se assim o é – e então se pode atinar com a razão de fundo do reconhecimento da dimensão mimética da música sustentada por Aristóteles, Mei e Doni –, a músi-ca que é canto – canto que nada mais é do que voz in melodia –, é, incontornavelmente, mímesis das paixões. Em desdobramento que entende nitidizar. Canto: dizer onde a voz se fez predominante, onde irrompe materialmente em predomínio e proeminência; canto é voz que envolve e entranha a palavra de si, amantando-a pois, melodiando-a. De sorte que o canto é uma objetivação mimética: ontologicamente, radical expressão dos afetos. Na letra que substancia. O canto se distingue da fala, in limine, na medida em que naquele a voz – os sons inarticulados – consubstancia-se ampliada, medrada, tipifi cada em sua orgânica, a tal ponto que, feita melodia, assume prevalência auditi-va sobre o dito. No canto a voz se universaliza, fazendo-se mélos, que subsume a si a

26. O índice onomástico do Trattato traduz por hesychastica o termo grego ήσυχαςιχή.27. Doni, Trattato della Musica Scenica, XIV, in O Canto dos Afetos, op. cit., pp. 80-81. (Grifo nosso).

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palavra, impondo-lhe uma carga emotiva que lhe seria desconhecida sem esta voz dominante, sem este mélos, que então plasma o dito in affectu, que necessariamente se faz prevalente frente à palavra, porque esta foi invadida pela melodia, tomada pela vo-calidade. Numa propositura categorial, da qual se escava ser o canto voz que estendeu-se a si, que determinou-se em seu ser-precisamente-assim – em suas curvas, infl exões, modu-lações, pelas quais se atualiza:

alguém surpreendido por excessiva alegria, oprimido por uma grande dor, ou tomado por uma ímpeto extraordinário ou furioso, facilmente costuma alterar e curvar a voz de tal modo que se reconhece um princípio de canto.28

Signifi ca, portanto, que o canto supõe e implica, em relação à fala cotidiana, uma reordenação estrutural das formas de relação entre palavra e voz no sentido de uma intensifi cação ou concreção desta. Reordenação pela qual, rigorosamente, a melodia é parida. Na retomada de uma assertiva (nota 16),

ao elevarmos naturalmente a voz – como ocorre nos lamentos, ameaças, júbilos, e outras paixões humanas – nos avizinhamos do canto; não sendo este mais do que uma variação de tom, feita ao se soltar a voz com um maior esforço das artérias através de diversos intervalos harmônicos e prolongamentos das vogais. É por isso que se pode observar que os oradores, comumente nas comiserações de seus epílogos, costumam alterar muito a voz, aproximando-se assim das cantilenas.

Em outros termos, que sintetizam:Entre os homens se pode distinguir três modos de falar. O primeiro, e mais sim-ples, é o que usamos quando falamos familiarmente uns com os outros, ou mes-mo quando se fala em público à maneira de predicantes e oradores. O segundo é aquele dos poemas, recitados um tom um tanto alterado, e que se avizinha mais do verdadeiro canto. E o terceiro é o das cantilenas, onde expressamente aparece maior alteração de tom e de intervalos29,

isto é, onde a voz atualizou sua potentia, plenifi cou-se, incontornavelmente predo-minando sobre a palavra: canto – vida anímica, predominante, porque voz, expandida.

Uma melodia então, vocal ou instrumental – esta porque, lato sensu, dimana da-quela, que é sua protoforma, sua referência, ainda que abstrata, seu ventre mediato, seu mediato de-onde-para-onde –, por ser a sonoridade do homem objetiva-se in mímesis. Voz que, via das paixões, quando expandida, determinada, atualizada in melodia, ne-cessariamente verticaliza, aprofunda, substancia sua genética condição expressiva, imitativa. Então, se de canto se trata, de um homem in plenitude afetiva se trata, porque canto implica ou supõe a voz – uma voz positivada na universalização de sua potentia mimético-anímica ingênita. Potentia realizada que, universalização da voz dial, funda o canto, cuja expressividade intrínseca, portanto, é medrança das possibilidades da

28. Doni, apud Ibaney Chasin, in O Canto dos Afetos, op. cit. p. 89. (Grifo nosso).29. Idem, Trattato della Musica Scenica, VIII, in O Canto dos Afetos, op. cit., p. 83.

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vocalidade. Voz que in canto supera as circunscrições expressivas próprias da voz in fala, voz que nesta sua condição cotidiana subordina-se ao dizer, à palavra, à língua, à ação comunicativo-conceitual, que adstringe sua expressione, atributo que lhe fun-damenta, especifi ca, faz.

Aristóteles, Mei e Doni não poderiam, assim, determinar a música se não como o universo da interioridade: humano reconhecimento, e intemporal. Em tom per-guntante, que arrima, sintetiza e projeta esta acronia real: o canto que se urde auten-ticamente in voce, não se consubstanciará sempre enquanto mímesis dos afetos, da alma que sente? Intemporalidade teorética é intemporalidade categorial, porque os sons que engendram a música são sons ad hominem, ad anima, tenhamos ou não cons-ciência disto. Consciência que, grega e renascentista, se afi rmará pelo pensamento iluminista, bem como por um dos nomes mais substantivos da história da fi losofi a. Neste terreno mimético-fi losófi co adentra a pena teórica.

3. Considerações de Rousseau e uma pontuação hegeliana

1.

Se a pena teorética do abade Du Bos traça passos incoativos na direção de con-fi gurar, no interior do pensamento ilustrado, a natureza do fazer musical – o que signifi cou, estruturalmente, buscar escavar, reconhecer e propor a já suposta e assu-mida lógica mimética da música30 –, deve-se fi rmar, não obstante, que é Rousseau o personagem que mais efetivamente substantifi ca uma refl exão musical. Na palavra de Fubini, terminante: entre os enciclopedistas que escreveram sobre música, e mes-mo fora deste círculo intelectual específi co,

Rousseau é, indubitavelmente, a personalidade de maior relevo, o teórico mais acreditado dos bufonistas; foi, talvez, também por sua particular competência que se lhe tenha confi ado a redação do núcleo mais importante dos verbetes musicais da Enciclopédia, que mais tarde formaram o corpo do seu Dictionnaire de Musique.31

Nesse sentido, e em função dos limites a que este texto se deve ater, toma-se, quanto ao ideário musical da ilustração, tão somente a palavra do genebrino, a qual, sem dúvida, sintetiza tendências teóricas de seu tempo. Vejamos, num traçado ape-nas silhuetado e pontual.

No Ensaio sobre a origem das línguas, na colação entre música e pintura, Rousseau denota, por determinação negativa, a natureza mimética de ambas, natureza pela qual se fazem arte. Em extensa assertividade que importa considerar:

30. Cf. Enrico Fubini, L’Estetica Musicale dal Settecento a Oggi, Torino, Einaudi, 1987, pp. 27-33. 31. Ibid, p. 54.

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Tal como os sentimentos despertados em nós pela pintura não vêm das cores, o império que a música possui sobre nossa alma não é obra dos sons. Belas cores bem graduadas agradam à vista, mas tal prazer é uma sensação pura. São o de-sejo e a imitação que conferem vida e alma a essas cores, são as paixões por elas reveladas que comovem as nossas, são os objetos por elas representados que nos afetam. O interesse e o sentimento não dependem das cores. Os traços de um quadro tocante também tocam numa estampa. Tirai os traços de um quadro e as cores nada serão. A melodia constitui exatamente, na música, o que o desenho representa na pintura – assinala traços e fi guras, nos quais os acordes e os sons não passam de cores.32

E logo depois substanciará:Como, pois, a pintura não é a arte de combinar algumas cores de um modo agra-dável à vista, também a música não é a arte de combinar os sons de uma maneira que agrade ao ouvido. Se só fossem isso, tanto uma quanto outra fi gurariam entre as ciências naturais e não entre as belas-artes. Somente a imitação as eleva até esse grau. Ora, que faz da pintura uma arte de imitação? – o desenho. E da música? – a melodia.33

Duas páginas à frente, roborando a determinação, acresce que, se de uma melo-dia se trata, de uma mímesis in affectu se trata. Assim elabora:

Enquanto se continuar considerando os sons unicamente pela excitação que des-pertam em nossos nervos, de modo algum se terá verdadeiros princípios da músi-ca, nem noção de seu poder sobre os corações. Os sons, na melodia, não agem em nós apenas como sons, mas como sinais de nossas afeições, de nossos sentimentos. Desse modo despertam em nós os movimentos que exprimem e cuja imagem neles reconhecemos.34

Em termos análogos, nos quais se entrevê, sublinhe-se, o reconhecimento de que a voz é via do anímico, reconhecimento categorial pelo qual o canto, voz em dominân-cia, pode ser intrinsecamente atado aos afetos:

A melodia, imitando as infl exões da voz, exprime as lamentações, os gritos de dor ou de alegria, as ameaças, os gemidos. Devem-se-lhe todos os sinais vocais das pai-xões. Imita as infl exões das línguas e os torneios, ligados, em cada idioma, a certos impulsos da alma. Não só imita como fala, e sua linguagem, inarticulada mas viva, ardente e apaixonada, possui cem vezes mais energia do que a própria palavra. Disso provém a força das imitações musicais, e nisso reside o império do canto sobre corações sensíveis35.

Efetivamente, para Rousseau a voz é o som da alma, do sentir; são as infl exões (exteriorizadas) das paixões; voz, sentimento sentido sensifi cado:

32. J-Jacques Rousseau, Ensaio sobre a origem das línguas, XIII, Os Pensadores, São Paulo, Abril Cultural, 1978, p.194.33. Ibid, p. 195. (Grifo nosso).34. Ibid, XV, p. 197. (Grifo nosso).35. Ibid, XIV, p.196.

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A cólera arranca gritos ameaçadores, que a língua e o palato articulam, porém a voz da ternura, mais doce, é a glote que modifi ca, tornando-a um som. Sucede, apenas, que os acentos são nela mais freqüentes ou mais raros, as infl exões mais ou menos agudas, segundo o sentimento que se acrescenta.36

E se assim reconhece, sua letra não poderia não dispor e radicar que o canto se urde in affectu; de fato, uma melodia é anima in sonu, ou que pelos sons do homem se substantifi ca, exterioriza. Num dizer rousseauniano arrematante, de nítidíssima procedência aristotélica, que reentece a imbricação entre mélos, voz e sentimento, ôntica imbricação:

As paixões possuem seus gestos, mas também suas infl exões, e essas infl exões que nos fazem tremer, essas infl exões a cuja voz não se pode fugir, penetram por seu intermédio até o fundo do coração, imprimindo-lhe, mesmo que não o queiramos, os movimentos que as despertam, fazendo-nos sentir o que ouvimos.37

Em passo fi nal, que consubstancia. Para Rousseau, som não é música; esta são os afetos que a melodia plasma e estila, melodia que nos fazendo sentir aquilo que encerra em si mostra que a música é necessariamente ação in mímesis. Mímesis que ao plasmar o universo dos sentimentos tem no som o seu meio, não um fi m, na rigorosa medida em que os sons na melodia – atina e fi rma o pensador ilustrado – não agem em nós apenas como sons, mas como sinais de nossas afeições, de nossos sentimentos. E poderia, ontologica-mente, não ser melodicamente assim?

2.

Ao tomar em exame a música, a pena hegeliana é notavelmente clara ao deter-minar a lógica de sua orgânica. Na concisão terminante, que ecoa Aristóteles, e pela qual se enceta o brevilíneo percurso por um Hegel musical: “Música [– categoriza –] é espírito, alma”,38 isto é, “A interioridade subjetiva constitui o princípio da música”.39 E assim o é e Hegel pensa porque do som do homem – da voz, o próprio ressoar da subjetividade total –, então do som musical escorre – ou deve escorrer – vida anímica (ainda que da música pura esta dimane necessariamente em pulso mais abstrato, ou mesmo rarefeito, numa indeterminação predominante). Vida anímica que, esfera própria da composição, na e pela melodia se substantifi ca. Melodia que, garra mimética da música – porque é o que o desenho –, não deve ser confundida com pura sonoridade, mas se atualiza enquanto melodia se carregada de humanidade, de afetos; se mimeticamente ativa, se alma in sonu. Na assertiva ôntica, que avoca Rousseau, de pronto:

36. Ibid, XII, p. 192.37. Ibid, I, p. 167. (Grifo nosso).38. Hegel, Cursos de Estética, vol.III, São Paulo, Edusp, 2002, p. 324. (Grifo nosso).39. Ibid, p. 335. (Grifo nosso).

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O peito humano, a disposição do ânimo, constitui em geral a esfera na qual o compositor tem de se mover, e a melodia, o puro ressoar do interior, é a alma mais pró-pria da música. Pois a expressão verdadeiramente plena de alma, o som, apenas alcança pelo fato de que é introduzido nele um sentimento e que ressoa a partir dele.40

Em termos distintos, que nitidizam:A harmonia, a saber, abrange apenas as relações essenciais que constituem a lei da necessidade para o mundo dos sons, mas tampouco como o compasso e o ritmo ela abrange a música propriamente dita, e sim apenas a base substancial, que são o fundamento e o terreno regulares sobre os quais se move a alma livre. O poético da música, a linguagem da alma, que derrama o prazer interior e a dor do ânimo em sons e nesta efusão se eleva suavemente acima da força natural do sentimento, na medida em que faz da comoção [Ergriffensein] atual do interior uma percepção de si mesmo, um demorar livre junto a si mesmo e dá ao coração, desse modo, igualmente a libertação da pressão advinda da alegria e do sofrimento – o livre soar da alma no campo da música é primeiramente a melodia.41 [E em com-pletação, à frente considera:] o compasso, o ritmo, e a harmonia, tomados por si mesmos, são apenas abstrações, que em seu isolamento não possuem nenhuma validade musical, mas apenas por meio da melodia e no seio dela, como momen-tos e lados da melodia mesma, podem chegar a uma existência verdadeiramente musical.42

Para Hegel, pois, e sobre isto se deve insistir, a sonoridade artística opera in mí-mesis, a melodia, síntese estética da alma, consubstancia-se como imitação. Se de música se trata, da alma in affectu, da expressão de uma interioridade que sente, de uma sub-jetividade in mélos, essencialmente se trata. Subjetividade que, expandida em verossímil poderia ser anímico, é arte, música, sonoridade, ópera. Na letra hegeliana, que desdo-bra e concreta esta assertiva:

Na ópera autêntica, ao contrário, que executa uma ação totalmente de modo mu-sical, somos elevados de uma só vez desde a prosa para um mundo artístico mais elevado, em cujo caráter também se mantém toda a obra, quando a música toma por seu conteúdo principal o lado interior do sentimento, as disposições singulares e universais nas diversas situações, os confl itos e as lutas das paixões, a fi m de ressaltar primeiramente os mesmos de modo completo por meio da expressão a mais completa dos afetos.43

40. Ibid, p. 323. (Grifo nosso).41. O que talvez explique, pontue-se polemicamente, o fato do monódico ter sido historicamente atributo musical fundante, mesmo se de contraponto se tratasse.42. Hegel, Cursos de Estética, op.cit,. pp. 315-317.43. Ibid, p. 335.

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Numa palavra, em síntese,A poesia exprime ela mesma e diretamente os sentimentos, as representações e as intuições, e é mesmo capaz de nos oferecer as imagens dos objetos exteriores, ainda que não possa atingir nem a plasticidade da escultura nem a interioridade da música,44

pois esta, diferentemente da poesia ou de qualquer outra arte, sensifi ca o sentir, isto é, nos dá, concretamente, o lado interior do sentimento. Sensifi cação que é atualização sensível do universo anímico, isto é, atualização sensível dos sentimentos sentidos, e que por isso toca as cordas de nossa afetividade de modo especialmente ativo. Em proposição fi nal, que resgata: Música é espírito, alma, in concreto, e isto Hegel não pro-façaria.

4. Uma última pontuação: a palavra lukácsiana

Sem dúvida, o elo coevo mais efetivo desta corrente teórico-musical que, grega, alcança Hegel, é György Lukács. Sua Estética, conscientemente plasmada no intento de substantifi car um corpus aestheticus radicado na fi losofi a marxiana, ou que desta buscou tomar o substrato categorial que lhe fundaria, é categórica na afi rmação da na-tureza mimética da música. De fato, ao reconhecer na vida concreta, cotidiana, no ser e ir sendo objetivos e subjetivos do homem o de-onde-para-onde da arte, Lukács teria de tomar a música como o campo estético do anímico. Neste sentido, quando refere que a teoria da arte sempre a concebera como mímesis da interioridade, esta consta-tação que desde logo surge no capítulo que trata da música, ordenando-o, não poderia deixar de fundá-lo. Inceptivamente assim dispõe, histórica e categorialmente:

a teoria das artes, e especialmente a da música, a conceberam durante milênios, numa naturalidade que parecia excluir qualquer necessidade de argumentação, como refl exo, precisamente, da vida interior humana. Claro que tal consenso não pode, por si mesmo, valer como prova, pois os erros podem por vezes sobreviver por épocas inteiras. Porém, aqui, trata-se de outra coisa, e maior. A concepção da música como uma espécie particular de mímesis acentua energicamente, com uma segurança dialética nada surpreendente nos gregos, tanto aquilo que, do ponto de vista da mímesis, à música é atado no mundo das artes, quanto, ao mesmo tempo, e inseparavelmente, o que a separa das demais artes, ou o que constitui sua pecu-liaridade específi ca. Não havia dúvida para os gregos de que toda a relação huma-na com a realidade, tanto a científi ca quanto a artística, se funda numa refi guração da natureza objetiva de tal realidade. /.../ Por outro lado, os gregos viram com toda clareza que o objeto mimeticamente reproduzido pela música se distingue qualitativamente dos das demais artes: é a vida interior do homem.45

44. Hegel, Esthétique, op. cit, v.3, p. 332. (Grifo nosso).45. Lukács, op. cit., p. 8.

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Em palavra completadora, que vale apor:Pode-se afi rmar, sem vacilação, que toda a estética – até o passado mais recente e a atualidade – reconheceu a natureza mimética da música. Até um representan-te tão destacado do subjetivismo epistemológico e do irracionalismo fi losófi co como Schopenhauer funda sua teoria da música, tão fantasmagórica e metafísica, aliás, em seu caráter mimético. Também ele se esforça em distinguir entre o es-pecífi co da mímesis musical e o das demais artes, mas sem nunca por em dúvida sua base mimética.46

No ideário musical lukácsiano, que assinala o reconhecimento estético universal da natureza mimética da música, esta é, pois, a esfera artística da expressividade, do interno. Numa palavra, em Lukács, a música é parida pelo ventre da alma.

À substancialização desta assertiva, um longo argumento sobre a relação pala-vra-música em Otelo, terra das paixões humanas, fi rma a letra lukácsiana. Paixões que predominam sobre a palavra poética, que então se reestrutura em sua orgânica, em sua forma, em sua prosódia: na medida em que se faz palavra melodizada, é consubs-tanciada e regida pela melodia, que a transmuta sonoramente. Em refl exão que ecoa o Trattato – as determinações donianas sobre a função e lugar do canto na tragédia grega –, eco que não poderia inexistir posto um fundamento teorético compartido:

Ao pensarmos no texto de Boito para o Otelo de Verdi – que é talvez, em nossa opinião, a melhor transposição de um drama importante em um libreto de mú-sica –-, observa-se que já as meras supressões mostram uma tendência análoga à exposta por Brahms. Boito, sem vacilar, suprime toda a história poética do nasci-mento do amor entre Otelo e Desdemona; dela só se conservam os fragmentos liricamente utilizáveis, na grande cena de amor do fi nal do primeiro ato. Também se elimina conseqüentemente a relação de Otelo com a república de Veneza – pouco considerada por muitos comentadores do drama, mas sumamente impor-tante para a tragédia –, que confi gura o fundo adequado ao fl orescimento e ruína do grande amor no drama, atravessando toda a obra de Shakespeare, da exposição até o suicídio de Otelo. Inclusive quando Boito conserva algo deste complexo –

46 Ibid, pp. 9-10. Na palavra de Fubini, que corporifi ca a lukácsiana: “Na concepção de Schopenhauer existe um salto qualitativo, não mais somente quantitativo, que separa a música das outras artes. A música está fora da hierarquia, sobre a pirâmide, e se põe como linguagem absoluta, como limite insuperável, alcançável apenas pelo gênio artístico.” Então, do ponto de vista de Schopenhauer, “Como se pode falar da música se, dada a sua posição privilegiada em relação às outras artes, estará, a bem da verdade, além dos conceitos, que alcançam apenas o mundo fenomênico, do qual a música é totalmente independente? Dela só se poderá falar por metáfo-ras, porquanto existe um paralelismo entre música e idéias – ambas objetivações da vontade”. (Fubini, op. cit., p 131.). Em proposição que nitidiza: para Schopenhauer, “A música pode colher, exprimir, todas as manifes-tações da vontade, todas as suas aspirações, satisfações, excitações, etc. Nesse sentido, pode exprimir também todos os sentimentos do homem em todas as suas nuances, ou melhor, mais que exprimir pode representar um análogo, porque a música não é fenômeno, mas a própria idéia. A música nos dará a essência, o em si [a forma pura, in abstracto, dos sentimentos], não o fenômeno”. (Ibid, p.133). A tempo, mas em termos apenas axiomáticos: na refl exão musical de Nietzsche pulsa igualmente uma dimensão mimético-afetiva – metafísico coração da música.

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como certas partes do esplêndido monólogo de Otelo onde espedaça sua fé em Desdemona, quando o grande herói e estadista passa defi nitivamente em revista à sua vida e dela se despede, sabendo que a partir deste momento suas paixões o precipitarão inexoravelmente no abismo –, a conexão intelectual e emocional é completamente diversa: na tragédia, este monólogo é um momento de repou-so, a última calma insegura antes da tempestade; na ópera, [Otelo] é arrastado impetuosamente pelo desbordamento das paixões desencadeadas pelas insídias de Yago e perde toda a independência anímico-sensível. É-nos aqui impossível entrar nos detalhes, pesem ser muito interessantes em sua conseqüência, como, por exemplo, a simplifi cação do caráter de Emília, etc. Esta coerência se baseia na intenção de estreitar a ampla e compreensível base vital da tragédia em função do destino amoroso de dois seres humanos, para que a curva trágica – que vai desde a felicidade amorosa ditirâmbica do começo, passando pela fúria dos céus e solidão dos que até então estavam intimamente unidos, até o assassinato e o suicídio –, se expresse puramente no meio homogêneo das emoções e paixões totalmente expostas sobre a base do mínimo imprescindível de desencadeadores causais.47

A refl exão é clara: a música é o universo do sentir. O texto shakespeariano é alterado por Boito porque o drama tem de se adequar à necessidades musicais, vale dizer, e este é o ponto, à mimese dos afetos. Necessidades que artisticamente do-minantes fundam a textura operística, que, palavra amantada pela melodia, poesia in voce, é voz prevalente, canto, música, vida afetiva positivada in arte. O texto tem de incitar ao canto, sustenta Doni, tem, em última instância, de suscitar a irrupção da alma, entende Boito, que transfunde Shakespeare, que então se faz plataforma dos afetos, afetos que, assevera Lukács, fundam a arte sonora, pois o som musical, estaque-se, é o som do homem, é a sua sonoridade imanente, o seu som.

E se neste batimento pensa e dispõe Lukács, não nos deve surpreender que sua pena se tivesse voltado ativamente contra aquelas correntes de pensamento que desantropomorfi zavam a música, que a entendiam como ausência do humano – como som autoconsubstanciado enquanto som, isto é, enquanto casca, enquanto som que se autoconsome, que se efetiva na consumação de sua própria materialidade; vale dizer, que a entendiam como simples domínio de infi losófi cas abstrações sonoras inafetivas. Ao pontualizar que a arte, então a música, opera uma universalização, ao radicar que a arte cria um mundo, necessário e verossímil, Lukács reconhece na arte dos sons a potentia de uma experiência que humana. Que humana porque é expandida vida afetiva ad hominem, vida esta que existe in arte porque ser e dever-ser existem in vita. A criação artística original é ato escavado da vida cotidiana, e que responde socialmente aos indivíduos, ainda que estes não tenham consciência disto. Arte, vida humana universalizada in dever-ser. Na palavra fi losófi ca que arremata, porque mais não se pode, palavra que se Rousseau tivesse escutado provavelmente levaria em conta:

47. Ibid, pp. 68-69.

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O fato indiscutível de que toda autêntica obra de arte musical cria um “mundo”, é o fundamento estético mais profundo à recusa de todo o ponto de vista for-malista, e daquelas teorias que vêem na vivência musical uma fusão quase mística do ouvinte com o ouvido. O profundo efeito da música consiste precisamente em que introduz o receptor em seu “mundo”, o faz viver nele e vivenciá-lo; po-rém, pese à penetração mais profunda, a mais veemente liberação das emoções, constrói este mundo sempre como diverso do eu do receptor, como um mundo distinto dele e para ele signifi cativo precisamente em função desta diversidade es-pecífi ca. A obra de arte musical recebe de fontes de conteúdo o caráter de “mun-do” para-si: da madura totalidade das emoções que nela se revelam. Só quando estas emoções são, vistas humanamente, coisa essencial, só quando são capazes de desenvolver até as últimas conseqüências as emoções que elas mesmas desen-cadeiam, só então pode surgir um “mundo” no sentido da arte./.../A questão de quais são as emoções que promovem e suportam que delas nasça um “mundo” é um problema, primeiramente, histórico-social. [E completa: mas] /.../quando o “modelo” das emoções musicalmente refi guradas está preso à particularidade do homem cotidiano e esta música se limita a levar a interna insufi ciência, a frag-mentação interna deste homem a um arredondamento “conciliador” aparente e formal, a mímesis desta mímesis [isto é, a música] não pode nunca criar um “mun-do”, não pode, portanto, cobrar uma forma artística autêntica. Uma música assim pode recolher as tradições mais confi rmadas ou as inovações mais audazes em sua dação de forma: apesar disso, a trivialidade do meramente particular o arrastará inteiramente para baixo, até a grosseria e a vulgaridade de gosto48;

à inafetividade!

5. Um movimento quase conclusivo, e que problematiza

Ao fi m, considerado o exposto, se tem de assinalar que este texto deixa intoca-do um problema categorial de fundo, a saber: que afetos ou sentimentos pulsam na mímesis musical? Isto é, e referido sinteticamente, afi nal, a música enforma senti-mentos em si ou, distintamente, expressa pulsos anímicos, a subjetividade que sente, a alma in affectu?

Posto o implexo da questão, desta não se tem como afi gurar nem mesmo um pálido contorno determinativo. Para tanto, remeto ao Canto dos Afetos, como tam-bém a meu estudo mais recente: Música, Serva d’Alma – Claudio Monteverdi, Ad Voce Umanissima, com previsão de lançamento para maio de 2009 (Ed. Perspectiva), onde problemas categoriais da voz e do canto são extensivamente tratados. Seja como for, e isto é o que importa radicar dados o cerne e télos deste artigo, na distinção teoré-tica entre os diferentes pensadores em relação ao ser-assim mimético-afetivo da arte sonora – refl exões estas, advirta-se, que no mais das vezes transpiram lacunas deter-minativas e/ou ambigüidades –, a categoria da mímesis fundou, de forma inconcussa, a fi losofi a da música, o pensamento categorial sobre a arte dos sons. De Aristóteles

48. Ibid, pp. 81-82.

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a Lukács – ou mais rigorosamente, na refl exão fi losófi co-musical atualizada a partir e/ou no interior de seu por-si imanente – inexistiram, lato sensu, incertezas estruturais quanto à sua natureza, anímica.49

E se esta é a contextura, se da música a teoria da arte reconheceu o fundamento anímico – incluso aqui o ecoante pensamento musical de Santo Agostinho, que, se forjado em descendência pitagórico-platônica, bate outrossim em jaez aristotélico, pois a experiência prática com a música faz o fi lósofo sentir e constatar sua dimensão mimético-afetiva (cf. Confi ssões) –, tomá-la como linguagem, ainda que como lingua-gem não conceitual (o que, de per si, é uma irrazoabilidade ôntica), é desnaturação teórica, ou teoria que a descompreende. Desnaturação em nada ingênua, mas contrafactum de uma práxis que aproximando, imbricando música e natureza, arte sonora e fi sicidade do som – música e som enquanto som, autonomizado das entranhas humanas –, desafortunadamente lhe extirpa o homem, desentendendo-a como um fazer mimé-tico. Fazer que, vocação genética, ventre que lhe parture, signifi ca sua mais efetiva condição de ser, e dever-ser.

No pulso de uma ultimação: música é mímesis – paixões que se atualizam em aristotélico poderia ser, em sentir animicamente universalizado, expandido, humanado –, não linguagem; é expressividade, não discurso; vida anímica, não beleza (ou feiúra) dos sons; espírito in sonu. Ao menos parece que assim a história inscreveu. Inscriptione que Monteverdi tão bem sintetizou no prefácio do seu último livro de madrigais, sín-tese que ata pelas vísceras vida e música, voz e sentimentos, paixões e canto. Com as seqüentes palavras o compositor o principia, palavras que educam porque conscientia ex post, letra prefacial incoativa que ora se faz desfecho, in mímesis:

49. Mesmo do pensamento de Adorno, pontue-se, recalcitrante em relação ao jaez mimético da música, toma-se, numa teoria que então parture incontornável ambigüidade determinativa, o reconhecimento – enevoado e dissaboroso – desta sua condição ou natureza, que a faz ser. De fato, a negação da mímesis implica, em última instância, a impossibilidade de uma refl exão que se enteça em razoabilidade argumentativa, do mesmo modo que um fazer musical não mimético conduz a música à denegação de suas categorias. Nesse sentido, o pulso metafísico do humanamente desacolhedor pensamento musical de Hanslick não deve surpresar, embora até ele – até ele! – contrabandeie para O belo musical a dimensão (mimético-) espiritual da música. Que o tenha feito de um modo teoricamente inarticulado e periférico; que desnature a categoria da mímesis; e ainda sem referir como este “espírito” é plasmado e se enforma – apenas afi rma: ‘as formas que os sons produzem não são vazias, mas plenas; não são simples contornos de um vazio, mas espírito que se plasma interiormente’ [Hanslick, apud Fubini, op. cit., p. 200.] –, o fato, não obstante, é que sua teoria, nubilosa e despossada de argumento probante, tem de dar lugar, de algum modo, ao homem, ao preço de, posta sua ausência, impropriar-se in limine, descam-bar para uma refl exão egra, porque desalmada. Na letra de Fubini, que ato contínuo toma a de Hanslick, passo pelo qual se esboça e entrevê seu imbróglio teorético, ou a contradição de fundo que eiva O belo musical: para Hanslick, “Ainda que o primeiro propósito de um musicista que se põe a trabalhar não seja o de representar uma paixão, mas o de inventar uma melodia, as obras [– assevera, entanto –] espelharão simbolicamente ‘como imagens totais as individualidades de seus criadores’, ainda que tenham sido compostas [– sustenta Hanslick –] ‘sem outro fi m que si mesmas, como beleza autônoma e puramente musical’”. [Ibid, pp. 200-201.].

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Três são as principais paixões ou afeições da alma. Assim considerei, bem como os melhores fi lósofos. São elas a ira, a temperança e a humildade ou súplica, como mostra, aliás, a própria natureza da nossa voz, que se faz alta, baixa e mediana; na música, claramente referidas por concitado, mole e temperado. Não pude, porém, encontrar nas composições do passado exemplos do gênero concitado, apenas do mole e temperado, mesmo que o gênero concitado tivesse sido mencionado por Platão no terceiro livro de Retórica/.../; e sabendo ainda que o que move efetiva-mente nossa alma são os contrários, e que a fi nalidade da boa música é mover, me dispus com não pouco esforço e estudo a realizá-lo,50

isto é, a expressar a alma, a fazer música.

Música. Arte que não é dação de forma a afetos em si, mas a plasmação de sen-timentos sentidos, dos pulsos anímicos de uma interioridade, que então se exteriorizam, sen-sifi cam, ao menos se de canto se trata. Mas, calemo-nos! Que esta alusão seja apenas um incitamento ao leitor. Pois isto é tema para outras refl exões sobre a arte dos sons, sobre a alma que sente, sobre a alma humana. Alma humana.

50. Monteverdi, Prefácio do Livro VIII, in Gian Francesco Malipiero (ed.), Tutte le opere di Claudio Monteverdi, Livro VIII, Wien, Universal Edition, 1926-1942.

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educação e ciências humanasEspaço de interlocução em ciências humanas

Ano V, novembro de 2008 – Publicação semestral – ISSN 1981-061X

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Gramsci su Vico: la fi losofi a come una forma della politica

Marco Vanzulli*1

* É ricercatore da Università degli Studi di Milano-Bicocca e pesquisador visitante na Pós-Gra-duação em Filosofi a da Faculdade de Filosofi a e Ciências Humanas da Universidade Federal de Minas Gerais

Resumo: Através de um levantamento da leitura feita por Gramsci nos Quaderni del carcere da obra de Giambattista Vico, entende-se mostrar a natureza da concepção gramsciana da história da fi losofi a, isto é a união de teoria e prática em que consiste a fi losofi a da práxis gramsciana. Apesar de sua pretendida superação da velha separação de teórico e pratico, a fi losofi a da práxis (assim Gramsci passa a denominar o marxismo) se confi gura como uma concepção desbalanceada que se move em torno duma «concepção subjetiva da realidade», em que a fi losofi a é totalmente reduzida ao plano histórico contingente como «fato real», isto é como instrumento hegemônico de um determinado grupo social dentro da luta de classe. Esta redução da fi losofi a à política é o resultado de uma reforma de temas neo-idealistas cujo culturalismo se torna, através do primado absoluto atribuído à política, incapaz de responder de forma satisfatória à questão da fi losofi a come verdade que desvenda as estruturas ontológicas do ser, e do conhecimento histórico como desco-bridor, materialisticamente, de nexos reais.

Palavras-chave: Filosofi a; História; Política; Verdade; Subjetividade; Objetividade.

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Ma rco Vanzul l i

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Non ci si propone in questo testo di discutere una supposta e ipotetica infl uen-za di temi vichiani nell’opera di Gramsci e segnatamente nei Quaderni del carcere. Se anche essa fosse in qualche misura effettiva, lo sarebbe attraverso la mediazione determinante dei due fi losofi del neoidealismo italiano, Benedetto Croce e Gio-vanni Gentile, fondamentali nella formazione intellettuale gramsciana, e che, pro-prio negli anni di gioventù del comunista sardo, s’impegnano in una nuova lettura dell’opera di Vico, del tutto funzionale e congeniale alle fi losofi e idealistiche che stanno elaborando.1È certo, come già notava Eugenio Garin, che Vico ha operato in Gramsci solo indirettamente, e che i temi vichiani presenti nei Quaderni sono solo quelli che erano ormai divenuti un patrimonio comune, quasi topoi, della cosiddetta «rinascita idealistica»; così i pochi rinvii gramsciani a Vico appaiono generici e di seconda mano. Il riferimento di Gramsci rispetto a Vico è peraltro essenzialmente Croce, la cui monografi a del 1911, se pure non l’aveva letta, gli era certo in qualche modo nota.2 È, in effetti, soprattutto attraverso la discussione in cui s’impegna con Croce che i pochi riferimenti gramsciani a Vico e alla sua opera acquistano un signi-fi cato nelle note dei Quaderni.

Posto allora che Vico non è, per dirla vichianamente, un «autore» di Gramsci, attraverso ed a partire da una ricognizione nelle osservazioni su Vico sparse nei Qua-derni del carcere, s’intende qui svolgere una rifl essione sulla fi losofi a e la forma della sua dimensione pratica, a partire dal modo in cui Gramsci legge le fi gure fi losofi che e la storia della fi losofi a. Intese infatti esse da Gramsci come espressioni della es-senziale politicità della storia e del pensiero fi losofi co, si pone la questione di quale statuto sia dato al rapporto fra teoria e pratica implicito in questo presupposto, si pone cioè la questione correlata di quale sia il nesso istituito dal politico sardo tra l’atto politico e il mondo storico in cui esso s’inscrive.

Dunque, nell’intuizione gramsciana di Vico – e ciò vale per lo stesso marxismo, che, secondo alcuni interpreti, non sarebbe, proprio per la precedenza e interpo-sizione crociana, da considerarsi come una componente fondamentale della for-mazione gramsciana3 –, è la lezione di Croce a giocare un fondamentale ruolo di mediazione. I riferimenti a Vico dei Quaderni del carcere sono infatti legati alla ricerca sulla storia, sono cioè fondamentalmente interni alla discussione di Gramsci con

1. La fi losofi a di Giambattista Vico di Croce esce nel 1911 (Bari, Laterza, 19804 [1911]); nel 1915 gli Studi vichiani di Gentile (Firenze, Sansoni, 19683 [Messina, Principato, 1915]).2. Cfr. E. Garin, Vico in Gramsci, «Bollettino del Centro di Studi Vichiani» 6 (1976), pp. 187-189.3. «L’idealismo e, non tanto il marxismo, quanto il socialismo, accolto come un’esigenza istintiva ma guardato attraverso il prisma dell’idealismo crociano, sono le due componenti iniziali della sua personalità culturale: ma è il primo che prevale e dà il tono al pensiero» (M.A. Manacorda, La formazione del pensiero pedagogico di Gramsci (1915-1926), in Pietro Rossi (a cura di), Gramsci e la cultura contemporanea. Atti del Convegno internazionale di studi gramsciani tenuto a Cagliari il 23-27 aprile 1967, Roma, Editori Riuniti – Istituto Gramsci, 1970, vol. I, p. 232).

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Croce: «Altro concetto da ridurre da speculativo a storicistico è quello di ‘razionali-tà’ nella storia (e quindi di ‘irrazionalità’), concetto legato a quello di ‘provvidenza’ e di ‘fortuna’, nel senso in cui è adoperato (speculativamente) dai fi losofi idealis-ti italiani, e specialmente dal Croce. Occorrerà perciò vedere l’opera del Croce su G.B. Vico, in cui il concetto di ‘provvidenza’ è appunto ‘speculativizzato’, dando inizio così all’interpretazione idealistica della fi losofi a del Vico».4 Qui il riferimento a Vico è, come si vede, tutto interno a quell’opera di ritraduzione dello speculativo in storicistico volta a costituire una nuova fi losofi a della prassi, che prenda le dis-tanze dal materialismo volgare alla Plechanov o alla Bucharin, attraverso il recupero degli elementi validi, realistici (e, secondo Gramsci, desunti surrettiziamente pro-prio dall’originario materialismo storico5) presenti nella fi losofi a contemporanea più avanzata, che per Gramsci è appunto quella di Croce. Inoltre, Gramsci collega, come aveva fatto Croce, il concetto vichiano di «provvidenza» a quello hegeliano di «astu-zia della ragione»,6 solo che lo riporta come «astuzia della natura»7 o come «astuzia della provvidenza».8

Facendo riferimento al saggio di Ettore Ciccotti, Elementi di «verità» e «certezza» nella tradizione storica romana, apparso in due puntate sulla «Rivista d’Italia» nell’estate del 1927, e ancora sulla scorta di Croce, Gramsci concorda nel ritenere non valide le interpretazioni positivistiche di Vico. Commentando l’interpretazione della conver-sione del «certo» nel «vero» data da Ciccotti, osserva che si tratta di «una sociologia molto positivistica; una interpretazione positivistica del Vico». E subito prima aveva osservato che «la conversione del ‘certo’ nel ‘vero’ dà luogo a una costruzione fi loso-fi ca [della storia eterna], ma non alla costruzione della storia ‘effettuale’: ma la storia non può che essere ‘effettuale’».9 Con ciò Gramsci rimanda alla questione dell’unità della teoria e della pratica, cioè al carattere specifi co della sua fi losofi a della praxis. Alla stessa questione rinvia l’interesse per il principio vichiano del «verum-factum», letto appunto come unità della teoria e della pratica, unità che sarebbe, secondo Gramsci, caratteristica fondamentale del marxismo, il quale, a sua volta, l’avrebbe

4. A. Gramsci, Quaderni del carcere, Edizione critica dell’Istituto Gramsci (a cura di V. Gerratana,), 4 voll., Einaudi, Torino 1975, p. 1089. Si riporta dall’apparato di note di Gerratana la seguente indicazione su La fi losofi a di Giambattista Vico di Benedetto Croce, uscito per le edizioni Laterza nel 1911 e, in seconda edizione, nel 1922: «Questo libro, che con ogni probabilità Gramsci conosceva, non è però conservato tra i libri del carcere. Gramsci aveva presente invece certamente gli scritti su Vico compresi nel volume di Croce, Saggio sullo Hegel, seguito da altri scritti di storia della fi losofi a [3a edizione riveduta, Bari, Laterza, 1927], e in particolare lo scritto Fonti della gnoseologia vichiana, pp. 235-261, dove si polemizza con le critiche mosse al libro crociano su Vico» (ivi, p. 2815). 5. Cfr. ivi, pp. 1209-1210.6. Cfr. B. Croce, La fi losofi a di G.B. Vico cit., p. 223.7. A. Gramsci, Quaderni del carcere cit., pp. 821 e 1228.8. Ivi, p. 1767.9. Ivi, p. 300.

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mutuata dall’hegelismo. Di qui «la proposizione di Vico ‘verum ipsum factum’» sa-rebbe addirittura quella da cui, «nelle sue origini hegeliane», «certamente dipende il materialismo storico».10 Riporta qui Gramsci Vico ad Hegel perché possa acquistare un orizzonte di senso storico.

Ed è in effetti incentrato sulla questione della rilevanza ed effettualità storica del pensiero vichiano il passo più importante dei Quaderni su Vico, l’unico peraltro che contenga un giudizio esplicito sull’autore della Scienza Nuova: «Quale ‘movimen-to’ storico reale testimonia la fi losofi a di Vico? Quantunque la sua genialità consis-ta appunto nell’aver concepito il vasto mondo da un angoletto morto della storia, aiutato dalla concezione unitaria e cosmopolita del cattolicismo…».11 La genialità dell’isolato pensatore cattolico, cosmopolita (e quindi non nazional-popolare) come tutti gli intellettuali italiani, è contrapposta alla «storicità» del fi losofo Hegel, al cen-tro degli avvenimenti che vanno dal 1789 al 1815, «che sconvolsero tutto il mondo civile di allora e obbligarono a pensare ‘mondialmente’. Che misero in movimento la ‘totalità’ sociale, tutto il genere umano concepibile, tutto lo ‘spirito’».12 Sta quindi «in ciò la differenza essenziale tra Vico e Hegel, tra dio e Napoleone – spirito del mon-do, tra la pura speculazione astratta e la ‘fi losofi a della storia’ che dovrà portare alla identifi cazione di fi losofi a e di storia, del fare e del pensare, del ‘proletariato tedesco come solo erede della fi losofi a classica tedesca’».13

Pur non essendo questo il contesto in cui mettere in luce il carattere complesso – perché segnato dai due momenti della accettazione e della confutazione, tra loro legati – della relazione tra la rifl essione gramsciana nei Quaderni del carcere e i temi della fi losofi a crociana, non si può evidentemente non partire, per un commento di ampio respiro di questi passi, dal ruolo centrale assegnato da Gramsci nelle sue note carcerarie alla discussione con Croce ai fi ni di una riformulazione del materialismo storico in fi losofi a della prassi. Tanto che è stato scritto che: «il Croce è lo Hegel del suo marxismo […]. È il Croce che impone a Gramsci tutti i temi della sua rifl essione. E se egli cerca di trattarli secondo l’ottica di Marx e di Lenin, essi restano tuttavia sempre suggeriti dal Croce. Questo è talmente vero che il nostro autore non esce mai dalla problematica del pensatore napoletano, a tal punto che i limiti del pensiero di

10. Ivi, p. 1060. Il «testo C» – secondo la nomenclatura data da Gerratana ai testi trascritti da Gramsci nei quaderni monografi ci, da lui stessi chiamati «speciali» –, di questo passo elimina il riferimento alle «origini hegeliane» e indica solo che la concezione corrispondente al «verum ip-sum factum» «deve essere messa in relazione colla concezione propria della fi losofi a della prassi» (cfr. ivi, p. 1482).11. Ivi, p. 504 (testo A) e p. 1317 (testo C).12. Ibidem.13. Ibidem.

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Gramsci sono i limiti stessi del pensiero del Croce».14 Nell’«Anti-Croce» dei Quaderni, dunque, la rifondazione della fi losofi a della praxis passa da una confutazione hege-liana della fi losofi a crociana. Croce, per Gramsci, «rappresenta il momento mondiale odierno della fi losofi a classica tedesca», tanto che «come la fi losofi a della praxis è stata la traduzione dell’hegelismo in linguaggio storicistico, così la fi losofi a del Croce è in una misura notevolissima una ritraduzione in linguaggio speculativo dello storicismo realistico della fi losofi a della praxis […] occorre rifare per la concezione fi losofi ca del Croce la stessa riduzione che i primi teorici della fi losofi a della praxis hanno fatto per la concezione hegeliana. È questo il solo modo storicamente fecondo di determinare una ripresa adeguata della fi losofi a della praxis, di sollevare questa concezione che si è venuta, per la necessità della vita pratica immediata, ‘volgarizzando’, all’altezza che deve raggiungere per la soluzione dei compiti più complessi che lo svolgimento attu-ale della lotta propone».15 Si tratta cioè «solo di tradurre in linguaggio storicistico il linguaggio speculativo, nel trovare cioè se questo linguaggio speculativo ha un valore strumentale concreto che sia superiore ai precedenti valori strumentali».16 La cate-goria di «strumentale» è fondamentale in una visione pragmatistica del sapere quale quella di Gramsci. Infatti, la relazione con l’idealismo (qui «concezione soggettiva della realtà») è presentata dal politico sardo in termini positivi nella misura in cui l’idealismo, come la fi losofi a della prassi, concepisce il ruolo attivo delle concezioni del mondo o ideologie di determinati gruppi sociali nella costituzione del mondo so-ciale: «la fi losofi a della praxis è connessa […] alla concezione soggettiva della realtà, in quanto appunto la capovolge, spiegandola come fatto storico, come ‘soggettività storica di un gruppo sociale’, come fatto reale […] la forma di un contenuto concre-to sociale e il modo di condurre l’insieme delle società a foggiarsi un’unità morale».17 La «concezione soggettiva della realtà» è così storicizzata nel ruolo formativo nelle e sulle società delle concezioni fi losofi che come «fatti reali», cioè come strumenti ege-monici di gruppi sociali. La fi losofi a della praxis pone dunque in relazione le diverse «concezioni soggettive della realtà» nella loro «storicità», perché ogni «concezione soggettiva della realtà» è sostituita da «una nuova coscienza morale». «La fi losofi a della praxis assorbe la concezione soggettiva della realtà (l’idealismo) nella teoria delle superstrutture, l’assorbe e lo spiega storicamente, cioè lo ‘supera’, lo riduce a un suo ‘momento’. La teoria delle superstrutture è la traduzione in termini di storicismo

14. A.R. Buzzi, La teoria politica di Gramsci, Firenze, La Nuova Italia, 1973, tr. it. di S. Genovali, pp. 109 e 55.15. A. Gramsci, Quaderni del carcere cit., p. 1233.16. Ivi, p. 1222.17. Ivi, p. 1226.

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realistico della concezione soggettiva della realtà».18 Il carattere attivo, di formazione del mondo delle concezioni della realtà va cioè collocato, nell’intendimento di Gra-msci, nel fuoco della lotta storico-sociale, non come momento di analisi contem-plativa o di rispecchiamento del vero, ma come strumento egemonico-culturale di permeazione e universalizzazione di un contesto politico.

Pragmatisticamente, è questa per Gramsci la distinzione tra ideologia e fi lo-sofi a: la fi losofi a è l’avvenuta universalizzazione di una concezione del mondo (di un’ideologia), che supera l’immediato piano dell’azione economico-giuridica e si di-ffonde nelle istituzioni tutte della società civile, permeandole di contenuto etico-politico. Così: «La storia della fi losofi a come si intende comunemente, cioè la storia delle fi losofi e dei fi losofi , è la storia dei tentativi e delle iniziative ideologiche di una determinata classe di persone per mutare, correggere, perfezionare le concezioni del mondo esistenti […] ossia per mutare la attività pratica nel suo complesso».19 La fi -losofi a di un’epoca è una combinazione delle «concezioni del mondo delle grandi masse», di «quelle dei più ristretti gruppi dirigenti (o intellettuali)» e dei «legami tra questi vari complessi e la fi losofi a dei fi losofi », «è una combinazione di tutti questi elementi che culmina in una determinata direzione, in cui il suo culminare diventa norma d’azione collettiva, cioè diventa ‘storia’ concreta e completa (integrale). La fi losofi a di un’epoca storica non è dunque altro che la ‘storia’ di quella stessa epoca, non è altro che la massa di variazioni che il gruppo dirigente è riuscito a determinare nella realtà precedente: storia e fi losofi a sono inscindibili in questo senso, formano ‘blocco’».20 Il pensiero, concepito così nella sua effettualità storica, non solo perde completamente il carattere contemplativo che erroneamente gli si attribuisce comu-nemente, ma trova anzi un’identifi cazione totale con la prassi storica tale da mutarsi in una forma di attività del tutto omogenea con l’evenemenzialità storica stessa. Il pensiero è essenzialmente un atto storico-politico. Per questo, Gramsci pensa a Vico come a un genio che da «un angoletto morto della storia» ha potuto elaborare sì una visione del «vasto mondo», ma nella forma della «pura speculazione astratta», mentre Hegel, che ha pensato tra la Rivoluzione francese e Napoleone, ha potuto erigere quella «fi losofi a della storia» che, gravida di storia e di effettualità storica, riuscirà ad identifi care fi losofi a e storia, fare e pensare, e della cui effettualità sarà davvero erede il proletariato tedesco.

Lo stesso marxismo è concepito così come un pensiero che è innanzitutto una forma d’azione, inteso sostanzialmente come l’ideologia (la «fi losofi a della prassi») della transizione dal capitalismo alla società regolata: «Si può perfi no giungere ad

18. Ivi, p. 1244.19. Ivi, p. 125520. Ibidem.

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affermare che mentre tutto il sistema della fi losofi a della prassi può diventare caduco in un mondo unifi cato, molte concezioni idealistiche, o almeno alcuni aspetti di esse, che sono utopistiche durante il regno della necessità, potrebbero diventare ‘verità’ dopo il passaggio ecc. Non si può parlare di ‘Spirito’ quando la società è raggruppa-ta, senza necessariamente concludere che si tratti di… spirito di corpo […] ma se ne potrà parlare quando sarà avvenuta l’unifi cazione ecc.».21 Il materialismo storico è in effetti inteso come una concezione del mondo funzionale all’azione politica, e quan-do la sua funzione politica sarà compiuta, «tutto il sistema della fi losofi a della prassi può diventare caduco»; torneranno valide, allora, «molte concezioni idealistiche, o almeno alcuni aspetti di esse», diventeranno allora «verità», parola che Gramsci scrive tra virgolette, come a relativizzarla.

Ci si dovrebbe interrogare su quale marxismo sia allora questo di Gramsci, che, facendo del materialismo storico una Weltanschauung, una «concezione del mondo» atta alla lotta comunista, ne misconosce il carattere oggettivistico, e con ciò la conna-turata scientifi cità. Basterebbe una lettura dell’opera giovanile di Gramsci22 per ren-dersi conto di come molti temi del suo marxismo siano sostanzialmente omogenei e improntati alla revisione di Marx fatta da Croce e Gentile alla fi ne del XIX secolo, e di come Gramsci accetti pacifi camente come qualcosa di acquisito il carattere ide-alistico della fi losofi a della prassi. E in questo, del resto, egli non costituisce affatto un’eccezione, si può rilevare anzi come tutto il marxismo italiano sia segnato da questo carattere idealistico, e come, coincidentemente, l’operazione di presentazione e liquidazione del materialismo storico condotta in Italia dal neoidealismo sia stata accompagnata da grande fortuna e abbia infl uenzato o, più precisamente, impron-tato di sé tutta una generazione, impostando, attraverso una politica culturale di cui la liquidazione del marxismo era aspetto centrale, tutta una temperie culturale. Su questo punto, peraltro, Gramsci è assai lucido nei Quaderni, quando vede il carattere essenziale della fi losofi a crociana nel revisionismo,23 ma ciò convive in lui con l’idea che il momento più alto della fi losofi a mondiale sia la fi losofi a crociana, fi losofi a speculativa arricchita dalla concretezza della fi losofi a della prassi.24 La problematica marxiana di Gramsci risente perciò marcatamente di tutti quei temi che costituisco-

21. Ivi, p. 1490.22. Non è possibile in questa sede riportare alcuni signifi cativi passi giovanili gramsciani al riguar-do, ci limitiamo a rimandare al nostro Gramsci e Labriola. Teoria della storia e fi losofi a politica in Gramsci attraverso un confronto col marxismo di Antonio Labriola, in Atti del convegno di studi «Antonio Gramsci e la storia d’Italia» (in corso di pubblicazione presso l’editore Unicopli di Milano). 23. «Croce dal 1912 al 1932 (elaborazione della storia etico-politica) tende a rimanere il leader delle tendenze revisioniste per condurle fi no a una critica radicale e alla liquidazione (politico-ideologi-ca) anche del materialismo storico attenuato» (A. Gramsci, Quaderni del carcere cit., p. 1207).24. Ivi, pp. 1209-1210.

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no la problematica marxiana com’era stata presentata da Croce,25 e tale presentazio-ne non si era certo costituita all’insegna dell’apertura dell’intelligenza fi losofi ca del marxismo. La diversa e anzi opposta appartenenza politica di Gramsci rispetto al fi losofo napoletano rende certo più complessi i termini di questa fi liazione, ma sem-bra che la originalissima teoria politica gramsciana non alteri i limiti fi losofi ci della sua problematica di partenza, ma che piuttosto resti da questi limitata. Ha scritto Ma-rio Tronti: «Dopo che il pensiero di Marx è passato attraverso le maglie della cultura idealistica, che cosa ne è rimasto? Croce ha negato che esistesse un Marx ‘fi losofo’; Gentile lo ha concesso, ma lo ha considerato contraddittorio e quindi improponi-bile; Mondolfo lo ha defi nito un ‘fi losofo della prassi’. Ebbene, quest’ultima è da considerarsi la conclusione logica che scaturisce da quelle premesse. Il marxismo come ‘fi losofi a della prassi’ è ciò che rimane del marxismo, dopo che è stato liquidato dall’interpretazione idealistica. Rimane cioè una teoria dell’azione, una fi losofi a della volontà, una guida per il comportamento sociale, una tecnica per il processo rivoluzionario, l’identità di conoscere e fare, di pensiero e prassi; un vichianesimo corretto dal moderno pragmatis-mo. Gramsci ha dietro di sé tutto questo passato. E senza capire tutto questo pas-sato, non possiamo capire Gramsci; tanto meno il ‘marxismo’ di Gramsci».26 Così, il primato attribuito alla «concezione soggettiva della realtà» sarebbe l’effetto di una sopravvalutazione del mezzo egemonico culturale, retaggio di un’originaria e mai abbandonata ascendenza idealistica con la preminenza data al fare umano nella sto-ria.27 La fi losofi a della prassi, nella sua versione gramsciana, si defi nisce così come totalmente inclusiva della teoreticità stessa nella sfera dell’azione, totalmente ridut-tiva della teoria alla prassi, della fi losofi a alla politica. La determinazione soggettiva, propria del fare umano, si trova così costituita in determinazione storica tout court. La «fi losofi a della prassi» per ciò stesso non si accetta come «teoria» nel senso tradizio-

25. Cfr. al riguardo S. Timpanaro, Sul materialismo, Milano, Unicopli, 19973, pp. 203-204.26. M. Tronti, Tra materialismo dialettico e fi losofi a della prassi, in A. Caracciolo e G. Scalía (a cura di), La città futura. Saggi sulla fi gura e il pensiero di Antonio Gramsci, Milano, Feltrinelli, 1976, pp. 85-86.27. Si veda com’è posta, nei Quaderni, la questione dell’oggettività: «Mi pare che sia un errore domandare alla scienza come tale la prova dell’obbiettività del reale: questa è una concezione del mondo, una fi losofi a, non un dato scientifi co […]. In quanto si stabilisce questa oggettività [nella scienza], la si afferma: si afferma l’essere in sé, l’essere permanente, l’essere comune a tutti gli uo-mini, l’essere indipendente da ogni punto di vista che sia meramente particolare. Ma anche questa è una concezione del mondo, è un’ideologia […] ciò che più importa non è dunque l’oggettività del reale come tale ma l’uomo che elabora questi metodi […] cioè la cultura, cioè la concezione del mondo, cioè il rapporto tra l’uomo e la realtà. Cercare la realtà fuori dell’uomo appare quindi un paradosso, così come per la religione è un paradosso (peccato) cercarla fuori di Dio […]. Senza l’attività dell’uomo, creatrice di tutti i valori anche scientifi ci, cosa sarebbe l’‘oggettività’? Un caos, cioè niente, il vuoto, se pure così si può dire, perché realmente se si immagina che non esista l’uomo, non si può immaginare la lingua e il pensiero» (A. Gramsci, Quaderni del carcere cit., pp. 466-467)».

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nale del termine. Certo, il punto di vista di Gramsci è quello delle classi subalterne, la sua prospettiva quella del comunismo, e questo fa sì che la volontà collettiva che si realizza nell’azione divenga il metro di misura di questo fare umano creatore di storia; è la volontà collettiva appunto il vero soggetto, e solo la passività delle masse può lasciare campo all’azione di volontà sociali parziali.28 È questo il punto di vista della praticità essenziale della fi losofi a della prassi sviluppato nella monografi a su Gramsci di Giorgio Nardone, per il quale appunto «persino la categoria che intende esprimere il momento massimo dell’oggettività non sfugge alla praticità che è nota defi nitiva di ogni certezza […]. Solo la prassi, in sostanza, può dichiarare l’effi cacia del proprio strumento e la verità della propria condizione»; le concezioni del mondo e le ideologie «hanno esistenza solo in connessione alla volontà collettiva affermatasi nell’azione […]. Vi è regolarità storica nella ipotesi che esista una volontà collettiva capace di azione regolare e permanente […] Gramsci non trova la ragione suffi ciente della regolarità storica in fatti di ordine strutturale».29

Gramsci traduce in questo modo la concezione crociana della contemporanei-tà di ogni storiografi a, l’idea secondo cui il passato è sempre letto a partire dalle preoccupazioni pratico-politiche del presente; Gramsci traduce cioè così la rinun-cia crociana all’oggettivismo storiografi co, effetto di una concezione della storia fi n dall’inizio segnata dal prevalere di una tematica neokantiana che separa sfera catego-riale ed empiricità dell’accadere, scienza e storia.30 In Gramsci, l’infedeltà alla teoria crociana dei distinti – di cui pure, come si è visto, si pone la questione della traduci-bilità in termini di fi losofi a della prassi, in termini non speculativi31 –, insieme alla sua assimilazione di una concezione non oggettivistica del sapere storiografi co, conduce

28. Così, per esempio, la nozione di fatalità storica, in Gramsci, dipenderebbe solo dalla passività della massa, soggetto trascendentale della storia, soggettivazione formatrice. L’azione politica è la negazione della passività delle masse, che rompe ogni schema di prevedibilità storica costruito su modelli di sviluppo naturale (come nel socialismo positivista e riformista) (cfr. G. Nardone, Il pensiero di Gramsci, Bari, De Donato, 1971, pp. 31-35).29. Ivi, pp. 308-309 e 329.30. È questo l’aspetto irrazionalistico della fi losofi a di Croce rilevato da Lukács, ne La distruzione della ragione (cfr. G. Lukács, La distruzione della ragione tr. it. di E. Arnaud, Torino, Einaudi, 1974, pp. 19-20). Cfr. anche R. Racinaro, La crisi del marxismo nella revisione di fi ne secolo, Bari, De Donato, 1978, pp. 42-43.31. «In una fi losofi a della prassi la distinzione non sarà certo tra i momenti dello Spirito assoluto, ma tra i gradi della soprastruttura e si tratterà pertanto di stabilire la posizione dialettica dell’attivi-tà politica (e della scienza corrispondente) come determinato grado superstrutturale […] l’attività politica è appunto il primo momento o primo grado, il momento in cui la superstruttura è ancora nella fase immediata di mera affermazione volontaria, indistinta ed elementare […]. In che senso si può identifi care la politica e la storia e quindi tutta la vita e la politica. Come perciò tutto il si-stema delle superestrutture possa concepirsi come distinzioni della politica e quindi si giustifi chi l’introduzione del concetto di distinzione in una fi losofi a della prassi. Ma si può parlare di dialet-tica dei distinti e come si può intendere il concetto di circolo fra i gradi della superestruttura?» (A. Gramsci, Quaderni del carcere cit., pp. 1568-1569).

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all’identifi cazione di fi losofi a, politica ed economia: «Se queste tre attività sono gli elementi costitutivi necessari di una stessa concezione del mondo, necessariamente deve esserci, nei loro principi teorici, convertibilità da una all’altra, traduzione reci-proca nel proprio specifi co linguaggio di ogni elemento costitutivo: uno è implicito nell’altro, e tutti insieme formano un circolo omogeneo»32. L’immanenza assoluta della realtà signifi ca, per Gramsci, la sua politicità, è infatti la politica ad avere la pre-minenza tanto sull’economia quanto sulla fi losofi a, «perché l’atto politico ingloba il passato, il presente e l’avvenire, presuppone l’economia e attua la fi losofi a, fonde in un blocco la struttura e la sovrastruttura, realizza l’unione della teoria e della pratica, l’attività cosciente organizzata che fa la storia».33 Nella sua teoria della traducibilità dei linguaggi scientifi ci, Gramsci propone infatti la riduzione a politica di tutte le fi losofi e speculative: «Riduzione a ‘politica’ di tutte le fi losofi e speculative, a momento della vita storico-politica; la fi losofi a della praxis concepisce la realtà dei rapporti umani di conoscenza come elemento di ‘egemonia’ politica».34 Infatti, scrive: «La proposizione contenuta nell’introduzione alla Critica dell’economia politica che gli uomini prendono coscienza dei confl itti di struttura nel terreno delle ideologie deve essere considerata come un’affermazione di valore gnoseologico e non puramente psicologico e mora-le. Da ciò consegue che il principio teorico-pratico dell’egemonia ha anch’esso una portata gnoseologica […]. La realizzazione di un apparato egemonico, in quanto crea un nuovo terreno ideologico, determina una riforma delle coscienze e dei metodi di conoscenza, è un fatto di conoscenza, un fatto fi losofi co. Con linguaggio crociano: quando si riesce a introdurre una nuova morale conforme a una nuova concezione del mondo, si fi nisce con l’introdurre anche tale concezione, cioè si determina una intera riforma fi losofi ca».35 Ne consegue che: «Tutto è politica, anche la fi losofi a o le fi losofi e […] e la sola ‘fi losofi a’ è la storia in atto, cioè è la vita stessa. In questo senso si può interpretare la tesi del proletariato tedesco erede della fi losofi a classica tedesca».36

In questo primato della politica, assimilata alla storia e alla fi losofi a, Gramsci vede l’aspetto conclusivo della sua riforma del pensiero di Croce, che non aveva potuto spingersi fi no alla identifi cazione della politica con la storia e con la fi loso-fi a – e che però implicitamente aveva realizzato proprio questa identifi cazione: non era Croce il miglior storiografo del trasformismo liberale?37 –, e la conseguente

32. Ivi, p. 1493.33. A.R. Buzzi, La teoria politica di Gramsci cit., p. 213.34. A. Gramsci, Quaderni del carcere cit., p. 1244.35. Ivi, pp. 1249-1250.36. Ivi, p. 886.37. «[Croce] Crede di trattare di una fi losofi a e tratta di una ideologia, crede di trattare di una religione e tratta di una superstizione, crede di scrivere una storia in cui l’elemento di classe sia

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identifi cazione assoluta della teoria e della pratica, colte attraverso la politica nella loro identità. È la politica che unifi ca i termini dello storicismo assoluto gramsciano –e, secondo Gramsci, è da trovarsi nella mancata esplicitazione di questo termine unifi catore il carattere ideologico deteriore dello storicismo assoluto crociano –, è la politica che spiega la differenza tra ideologia e fi losofi a come una differenza non esprimibile in termini di verità, ma che si dà «solo per gradi (quantitativa) e non qua-litativamente», in virtù cioè dell’universalizzarsi di una concezione del mondo, del suo passare da un livello immediato, economico-corporativo, ad uno più universale, etico-politico, in virtù cioè dell’estensione della sua prassi trasformatrice. Gramsci ritiene allora di aver portato alle estreme conseguenze la nozione crociana della con-temporaneità di ogni storia, spingendola appunto fi no alla sua assimilazione con la politica, all’identifi cazione di ideologia e fi losofi a.38

È dunque per Gramsci la fi losofi a vichiana, come «pura speculazione astratta», di poco momento, privata com’è d’incidenza storica, opera isolata e distante dai centri europei, dai centri dell’azione storica, politica e fi losofi ca. Ad essa Gramsci applica così solo negativamente la sua defi nizione di storia della fi losofi a – che si è riportata sopra – come storia di una lotta ideologica tra concezioni del mondo, o me-glio come storia del perfezionamento delle concezioni del mondo volto a «mutare la attività pratica nel suo complesso»; una defi nizione che, riducendo la fi losofi a appun-to a «concezione del mondo», e insistendo sul carattere pratico-politico di questa, ha certo il merito di negare la pretesa autoreferenzialità delle fi losofi e, vincolandole alla «vita» e intendendole come politica, ossia come aspetto sovrastrutturale del confl itto sociale, del confl itto tra le «grandi masse» e i «gruppi dirigenti». Ciononostante, c’è in questa impostazione un elemento di disconoscimento della maggior complessità del pensiero fi losofi co, che non è solo trasformazione, non ambisce solo, attraverso concetti, a diventare «norma d’azione collettiva», a diventare cioè «‘storia’ concreta

esorcizzato e invece descrive con grande accuratezza e merito il capolavoro politico per cui una determinata classe riesce a presentare e far accettare le condizioni della sua esistenza e del suo sviluppo di classe come principio universale, come concezione del mondo, come religione, cioè descrive in atto lo sviluppo di un mezzo pratico di governo e di dominio. L’errore di origine pra-tica non è stato commesso in tal caso dai liberali del secolo XIX, che anzi praticamente hanno trionfato, hanno raggiunto i fi ni propostisi; l’errore di origine pratica è commesso dal loro storico Croce che dopo aver distinto fi losofi a da ideologia fi nisce col confondere una ideologia politica con una concezione del mondo, dimostrando praticamente che la distinzione è impossibile, che non si tratta di due categorie, ma di una stessa categoria storica e che la distinzione è solo di gra-do; è fi losofi a la concezione del mondo che rappresenta la vita intellettuale e morale (catarsi di una determinata vita pratica) di un intero gruppo sociale concepito in movimento e visto quindi non solo nei suoi interessi attuali e immediati, ma anche in quelli futuri e mediati; è ideologia ogni particolare concezione dei gruppi interni della classe che si propongono di aiutare la risoluzione di problemi immediati e circoscritti» (ivi, p. 1231)38. Cfr. ivi, pp. 1241-1242.

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e completa (integrale)». Per Gramsci, «la fi losofi a di un’epoca storica non è dun-que altro che la ‘storia’ di quella stessa epoca», e, come abbiamo visto, la storia di un’epoca è senz’altro politica. La fi losofi a è politica. Ma una tale identifi cazione risente di un grado d’astrazione ancora una volta tutto crociano nel rimuovere dalla considerazione della storia tutti quei nessi «oggettivi» che sono nelle «cose stesse», intendendo l’accadere storico come quella somma di dati empirici bruti cui si oppo-ne un universo categoriale spirituale e umano, intendendo cioè la storia come quel relativo, quel contingente che è per l’idealismo il terreno su cui si esercita il fare uma-no creatore, l’assoluto,39 facendo così della storia soltanto il campo d’azione della volontà umana, un campo di lotta tra concezioni del mondo, riducendo appunto la storia a politica, limitandola a campo d’azione della prassi trasformatrice, svincolan-do così la teoria da ogni compito di rappresentazione dei nessi reali, di rilevazione delle strutture ontologiche che della storia costituiscono la realtà; perdendo di vista, infi ne, nel cogliere la correlazione (o meglio, ancora, l’identità) dell’aspetto «pragma-tico» e dell’aspetto «teoretico», la loro distinzione. O intendendo la loro distinzione nell’unica forma possibile della «pura speculazione astratta». Diceva già Labriola che certo il marxismo era nato dal comunismo, cioè dal movimento moderno sorto in seno al capitalismo per il superamento di questo; e tuttavia osservava che una tale dottrina, nata dal comunismo, avrebbe continuato ad essere vera anche se il socialis-mo non avesse dovuto trionfare.40 Labriola intendeva dire che anche se il socialismo non avesse dovuto estendersi a movimento sociale egemone o comunque acquisire una maggiore universalizzazione, anche se esso non fosse stato più pensato o sos-tenuto da nessuno, non avrebbe perduto per questo il proprio carattere di verità e oggettività, la propria dimensione veritativa, cioè teoretica. La «fi losofi a» – e il marxismo per Labriola è anche una fi losofi a – non è insomma «ideologia», mantiene rispetto ad essa una differenza qualitativa, e non solo di grado, per quanto sia da vincolare alla prassi da cui sorge ed alla prassi che è capace di suscitare. Siccome alla determinazione della struttura ontologica del reale, della storia, non ci si può mai sottrarre, l’identifi cazione gramsciana di fi losofi a e politica, la riduzione della prima alla seconda, riproduceva il dualismo di spirito-materia ereditato dal neo-idealismo italiano; lungi quindi dall’eliminare ogni dualismo, come riteneva di aver fatto la fi losofi a della prassi, eliminava il dualismo di pratico e teorico, soltanto annullan-

39. E in particolare per l’attualismo André Tosel notava come la libertà positiva dell’atto storico fosse ereditata, dai Quaderni del carcere nella teoria dell’unità delle strutture e delle soprastrutture, cioè nella teoria del «blocco storico», cfr. A. Tosel, Marx en italiques. Aux origines de la philosophie italienne contemporaine, Mauzevin, Trans-Europ-Repress, 1991, p. 109.40. Dagli appunti del corso di fi losofi a della storia tenuto da Labriola all’università di Roma nell’anno 1894-1895, citati in Luigi Dal Pane, Antonio Labriola nella politica e nella cultura italiana, Torino, Einaudi, 19752 [1935], p. 377.

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do il secondo nel primo. Al di là di Gramsci, quindi, la politicità della fi losofi a va defi nita nella sua relazione con un’ontologia storica, attraverso una differente e più aperta teorizzazione del nesso tra teoria e pratica, rinunciando anche, d’altro lato, ad un’unilaterale connotazione della politica, e forse limitandone, nonché l’autonomia, la stessa portata trasformatrice.

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educação e ciências humanasEspaço de interlocução em ciências humanas

Ano V, novembro de 2008 – Publicação semestral – ISSN 1981-061X

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José Chasin: a ontonegatividade da politicidade em Marx

Ana Selva Castelo Branco Albinati*1

* Professora de Filosofi a da PUC – Minas.

Resumo:

Palavras-chave:

Abstract:

Keywords: .

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O mínimo a que somos elevados pela de-terminação onto-negativa da politicidade,

confi gurada por Marx, é à percepção de que a prática política é por natureza irresolutiva, de modo que é uma ilusão castradora assen-tar sobre ela a esperança de que as questões humano-societárias possam por seu meio ser

efetivamente resolvidas. Chasin, 2000, p.39

O propósito desse artigo é trazer à tona o trabalho realizado por José Chasin na elucidação de um aspecto central do pensamento de Marx, que é a crítica à política. O signifi cado do esforço de Chasin está em que ele nos remete à fundamentação ontológica de tal crítica, tratando-a com o rigor e o alcance devidos à dimensão e originalidade com que Marx a propõe. A compreensão da relação entre a atividade política e a existência social, entre o ser social e o Estado, possibilitada pelos estu-dos de Chasin permite, aos leitores de Marx, o resgate do sentido profundo de sua proposição fi losófi ca, qual seja, a possibilidade da emancipação humana, desentra-nhada dos equívocos e ilusões sobre os quais se sustenta a concepção tradicional do sentido e da razão de ser da política.

A tradição ocidental nos legou, a partir dos gregos, uma concepção da política como ciência superior, conhecimento racional que visa uma normatividade fundada sobre o que seriam os elementos da natureza humana que estão envolvidos direta-mente na vida em comunidade: a racionalidade e a liberdade na determinação de valores, normas e instituições que garantam a vida em comunidade.

Nessa perspectiva, temos o reconhecimento de uma positividade na ação po-lítica, positividade referida aqui à destinação da política e ao reconhecimento de sua qualifi cação intrínseca para esta destinação. Em outros termos, a política é tida como a esfera privilegiada da expressão da liberdade e da isonomia humanas, como esfera racional de conformação das relações sociais a partir do estabelecimento (ra-cional) de critérios para uma vida justa. A politicidade seria o elemento por excelên-cia do humano.

Essa concepção da política permanece ainda hoje como o horizonte ao qual devem se voltar as práticas políticas, e resiste a despeito do exercício sempre faltoso em relação ao seu conceito. Em outros termos, se as práticas políticas são imper-feitas, isso não é sufi ciente para abalar a confi ança na politicidade, entendido como

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atributo inerente ao ser social, e isso parece constituir o núcleo da fi losofi a política da antiguidade aos nossos tempos.

Mesmo um autor como Maquiavel, a quem devemos o grande questionamen-to do sentido da política e do papel do Estado, ainda se inscreve no interior dessa perspectiva, diferenciando-se, no entanto, ao apresentar, de forma realista, a essência da atividade política em um momento no qual a relação entre o indivíduo e a co-munidade já se apresentava muito mais cindida e complexa e, portanto, exigia uma explicitação mais clara do papel do Estado na condução dos problemas sociais.

A questão central para Maquiavel era a preservação da unidade de um povo, que ele via ameaçada quando do desmoronamento da ordem feudal e do surgimento dos novos elementos da ordem capitalista. A emergência do indivíduo e sua predo-minância sobre o comunitário ensejava todo um modo novo de viver que parecia ameaçador para o autor. Como observa Chasin,

Sua enérgica denúncia e rejeição, sistematicamente reiteradas, do presente cor-rompido, assim como a concepção resolutiva dos choques e confrontos que ado-ta, comprovam que não é do realismo com que reconhece a desagregação moderna que extrai o pólo norteador da parte concludente de sua refl exão, mas de uma luz que vem do passado, para se transfi gurar em suas mãos num claro-escuro revela-dor. (CHASIN, 2000, p. 225)

O signifi cativo da infl exão realizada por Maquiavel em relação à política é que ele desvela o modo de ser da política, modo de ser agora claramente exposto, que se refere à sua relação intrínseca com a forma da sociabilidade. A política é uma in-tervenção, assegurada pelo monopólio do poder e da violência legitimada, sobre as contradições da sociedade, sobre as fi ssuras internas à existência social, de forma a mantê-las sob controle.

Ainda segundo Chasin, um dos grandes méritos de Maquiavel foi ter constatado e admitido a existência do fenômeno social que, bem mais adiante, recebeu o nome técnico de contradição, porém, sob a forma reduzida e dessubstanciada do que também posteriormente foi chamado de confl ito. (2000, p. 227)

Vale dizer que a grandeza de Maquiavel de reconhecer a desunião e a desordem como elementos da vida em sociedade, rompendo com a mística da harmonia social, recua na medida em que essas não são compreendidas como contradições a serem superadas, mas como confl itos diante dos quais não pode haver superação, remeti-dos a uma antropologia naturalista que lhes dá subsistência ad eternum.

A percepção de uma ordem social pautada sobre contradições, e o remetimento destas ao estatuto de confl itos, originários e eternos, próprios da natureza humana, possibilitam a Maquiavel a leitura da política como artifício de assegurar a ordem

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frente a seus elementos negadores. Para tanto, a razão política se descola da razão ética, baseada na homologia com a harmonia da physis, e ganha os contornos de uma arte de estabilizar as contradições.

O caráter irresolutivo da política, em relação às questões sociais, se manifesta in-tegralmente na refl exão de Maquiavel, assumindo, no entanto, uma fundamentação naturalista, na qual a realidade empírica de seu tempo se ancora sobre uma antropo-logia do egoísmo como dado irrecusável das relações humanas.

O desenvolvimento fi losófi co de tal fundamentação se dará em Hobbes, cujo pensamento consagra a necessidade do Estado como condição sine qua non da sobre-vivência dos indivíduos e a idéia do estado de natureza como ameaça constante que ronda os indivíduos fora do domínio da sujeição ao Estado.

A questão que perpassa a fi losofi a política diz respeito à legitimidade do poder do Estado. Em outras palavras, temos que, a partir de uma constatação da neces-sidade de regulação das contradições sociais, o Estado é entendido como esfera que dispõe do monopólio do uso legítimo da força para intervir internamente nas questões sociais, bem como para garantir a segurança frente às outras nações, como afi rmará Max Weber.

De forma bastante simplifi cada, a existência do Estado se justifi ca pelo reco-nhecimento das difi culdades de se viver em sociedade. A positividade da atividade política está em atuar como uma arte de resolução de confl itos.

O que fi ca, no entanto, oculto, nessa formulação, é a razão de ser e o caráter dessas difi culdades que, em sua incompreensão, são tomadas como parte da condi-ção humano-social, entronizando assim, a politicidade como elemento essencial da existência social.

A trajetória de Marx rumo à determinação onto-negativa da politicidade

É contra essa determinação da política como atributo constitutivo do ser social, que Marx se coloca. E, ao fazê-lo, ele reconfi gura toda uma tradição no que se refere à relação entre indivíduo-sociedade e Estado.

Não se trata só da conhecida questão do fi m do Estado, uma vez que esta se coloca no interior de uma determinação mais ampla e profunda que é a do signifi ca-do da política, e da negação da politicidade enquanto atributo inerente à existência social.

Esse aspecto fundamental do pensamento de Marx foi exaustivamente trabalha-do por José Chasin, que procurou trazer à tona a radicalidade da proposição marxia-na através do termo “ontonegatividade da politicidade”.

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A ontonegatividade se refere à negação da política ou da politicidade, ou seja, da dimensão política, como componente ineliminável da vida social. A atividade políti-ca não se assenta sobre uma dimensão constitutiva da vida social, nem representa a vocação universalista de uma dada essência humana. Em outras palavras, ela não é imprescindível nem como elemento superior da relação humano-social, nem como mal necessário.

A politicidade indica, ao contrário, uma insufi ciência da sociabilidade, e não o seu corolário. A atividade política, enquanto meio para a regulação social, expressa não um mérito, mas um défi cit social. Se até então as contradições sociais eram compreendidas como confl itos inerentes à condição humano-social, Marx procurará compreendê-las em sua gênese, retirando-lhes assim o caráter de necessidade e eter-nidade, para o qual a melhor resposta seria a política.

O Estado surge como resposta às contradições entre interesses privados e inte-resses coletivos que são, por sua vez, oriundos da divisão do trabalho que separa os indivíduos em redutos específi cos que os impedem de compartilhar de uma forma concreta a universalidade do gênero.

A questão de que o Estado venha a representar um dado conjunto de valores e interesses particulares como sendo universal se acrescenta a essa compreensão primeira.

Trata-se para Marx de fazer a crítica da forma da sociabilidade sobre a qual se erige a necessidade do Estado. Esta trajetória se inicia com a Crítica da fi losofi a do direito de Hegel, texto de 1843.1, no qual o autor concentra-se sobre os parágrafos da obra de Hegel, Princípios da fi losofi a do direito, que tratam do Estado.

O texto de Marx se compõe de camadas de críticas e considerações a respeito da relação entre sociedade e Estado, tal como colocada por Hegel, que se assentam sobre uma crítica de caráter ontológico, qual seja, a identifi cação da inversão ontoló-gica que Hegel realiza entre o sujeito e o predicado. Isso equivale a dizer que Hegel toma a Idéia como sujeito e a realidade como predicado desta Idéia, como já havia sido denunciado por Feuerbach.

Segundo Marx, Hegel “deduziria” a relação entre Estado e sociedade civil a partir de uma lógica que lhe é imposta de fora. Assim sendo, em Hegel, “a lógica não serve à demonstração do Estado, mas o Estado serve à demonstração da lógica.” (MARX, 2005, p.39)

1. No período anterior a 43, os textos de Marx expressavam uma consonância com a determi-nação onto-positiva da política, como se pode observar nas análises realizadas por Chasin em “Marx-a determinação ontonegativa da politicidade” (2000, p.129-161), ou ainda por Eidt (2001, p.79-100).

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O fenômeno político passa a ser uma aplicação da lógica hegeliana, na qual a idéia que se desdobra no Espírito objetivo, nas esferas da família e da sociedade se recupera, agora plena de determinações, no Estado.

Sendo a idéia o sujeito, temos, segundo Marx, que em Hegel, A realidade empírica é tomada tal como é; ela é também enunciada como racio-nal; porém ela não é racional devido à sua própria razão, mas sim porque o fato empírico, em sua existência empírica, possui um outro signifi cado diferente dele mesmo. O fato, saído da existência empírica, não é apreendido como tal, mas como resultado místico. (2005, p.31)

Assim, a crítica ao edifício lógico de Hegel, que tem na fi losofi a do espírito obje-tivo o Estado como ápice, é feita por Marx no sentido de indicar neste procedimento a inversão da relação entre ser e idéia, e a mistifi cação que dela se deriva.

A crítica ao procedimento especulativo se enlaça à crítica do próprio Estado, que já se inicia neste texto, vindo culminar numa compreensão absolutamente pecu-liar ao pensamento marxiano do signifi cado da política.

Se a princípio, trata-se não da recusa do Estado enquanto instância de universa-lidade, mas da recusa do procedimento especulativo que qualifi caria qualquer Estado existente como racional e, nessa medida, insere-se a defesa da democracia em con-traposição ao reconhecimento da monarquia constitucional como expressão legítima do Estado moderno por Hegel, encontra-se, no entanto, elementos nesse texto que já propiciam a ruptura com a determinação positiva da política.

Temos, em Hegel, que o grande mérito do Estado moderno é a manutenção das particularidades na vida civil e a conciliação de seus interesses na vida política. O passo decisivo que Marx dá, neste texto, é a tematização das razões que levaram historicamente a este distanciamento entre interesse privado e interesse público.

Nesse sentido, enquanto o que Hegel identifi ca como mérito da modernidade, fruto do desenvolvimento da Idéia de liberdade, qual seja, o distanciamento entre as esferas civil e política e a conciliação via Estado moderno, Marx verá este dis-tanciamento em sua constituição histórica e em sua signifi cação contraditória, e a conciliação, a princípio, possível apenas na forma democrática.

Marx contrapõe a democracia à monarquia, atribuindo à primeira forma de go-verno a capacidade de conciliação verdadeira entre os interesses particulares e os interesses universais do gênero humano.

A relação entre vida civil e vida política se torna clara quando Marx afi rma:Na monarquia, o todo, o povo, é subsumido a um de seus modos de existência, a constituição política; na democracia, a constituição mesma aparece somente como uma determinação e, de fato, como autodeterminação do povo. Na monarquia temos o povo da constituição; na democracia a constituição do povo. A democra-

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cia é o enigma resolvido de todas as constituições. Aqui a constituição, não apenas em si, segundo a essência, mas segundo a existência, segundo a realidade, em seu fundamento real, o homem real, o povo real, e posta como a obra própria deste último. (2005, p.50)

A sociedade civil aparece neste texto, mesmo que ainda não em seu contorno defi nitivo, como o pólo determinante das relações políticas e jurídicas, em oposição à colocação hegeliana do Estado como fundamento e síntese das esferas da família e da sociedade. Esta reconfi guração da relação sociedade-Estado possibilitará a Marx uma abordagem radicalmente distinta da de Hegel da política e do Estado.

Na análise marxiana, o Estado moderno estaria divorciado da sociedade civil. Esse divórcio se traduziria efetivamente na cisão entre o cidadão do Estado e o indi-víduo enquanto membro da sociedade, em sua vida privada.

Marx dirá que o indivíduo privado não se reconhece na determinação universal abstrata, e o cidadão não se traduz na sua realidade empírica.

Estado e sociedade são então esferas antitéticas, na medida em que a primeira é apenas a expressão formal da determinação humana, porém vazia de conteúdo e a segunda é a esfera da fragmentação, do material que não encontra uma vinculação com sua expressão mais genérica. Por isso, a conciliação que se pretende via Estado não passa de uma conciliação formal.

Na Crítica a fi losofi a do direito de Hegel, a superação desta fragmentação se daria através da democracia. A continuidade dessa temática nos textos subseqüentes, no entanto, indica que a própria democracia seria o caso limite desta conciliação via Estado.

O ponto ao qual Marx chega é uma reconsideração radicalmente distinta da rela-ção entre Estado e sociedade, que se coloca na contraposição à tese da positividade da politicidade.

A partir da Crítica de 43, o seu foco se desloca para a compreensão do movimen-to da sociedade civil, como base do entendimento da relação Estado-sociedade.

De acordo com a análise histórica oferecida pelo autor, a separação entre os interesses sociais e os interesses políticos teve sua origem a partir do fi nal da Idade Média. Esta progressiva abstração do Estado seria o movimento de descolamento da imediatidade do social, decorrente das mudanças estruturais ocorridas na passagem da sociedade feudal à sociedade moderna.

Na sociedade feudal, identifi ca-se a presença explícita dos interesses privados na esfera política, a constituição política traduz de forma imediata a vida civil, marcada por toda sorte de privilégios. Marx refere-se a essa situação dizendo que “na Idade

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Média a vida do povo e a vida política são idênticas. O homem é o princípio real do Estado, mas o homem não livre”, ou ainda caracteriza a Idade Média como “a demo-cracia da não liberdade.” (2005, p.52)

No movimento histórico de autonomização do político, ocorre exatamente a perda dessa referência imediata ao conteúdo social em favor de uma concepção representativa e universalista. O Estado moderno se caracteriza, segundo Marx, por uma relação de exterioridade em relação à vida civil, resguardando a universalidade que faltava aos “Estados de unidade substancial”, nos quais a tradução da vida civil se pautava pela manutenção da desigualdade e dos privilégios privados na esfera política.

Essa universalidade formalizada na modernidade, no entanto, se relaciona com a fragmentação da vida civil moderna de forma semelhante ao que se verifi ca no fenômeno religioso. A constituição política moderna é “o céu de sua universalidade em contraposição à existência terrena de sua realidade.” (MARX, 2005, p.51)

Questão que ele desenvolve em A Questão Judaica ao dizer que:O Estado elimina, à sua maneira, as distinções estabelecidas por nascimento, posi-ção social, educação e profi ssão, ao decretar que o nascimento, a posição social, a educação e a profi ssão são distinções não políticas; ao proclamar, sem olhar a tais distinções, que todo o membro do povo é igual parceiro na soberania popular, e ao tratar do ponto de vista do Estado todos os elementos que compõem a vida real da nação.. No entanto, o Estado permite que a propriedade privada, a educa-ção e a profi ssão atuem à sua maneira, a saber, como propriedade privada, como educação e profi ssão, e manifestem a sua natureza particular. Longe de abolir estas diferenças efetivas, ele só existe na medida em que as pressupõe; apreende-se como Estado político e revela a sua universalidade apenas em oposição a tais elementos. (MARX, 1989, p.44)

O Estado se mostra como uma esfera de pseudo-conciliação, de universalidade apenas formal, independente da forma política. Não se trata mais do regime político, mas da essência do Estado que seria marcada por uma tentativa sempre insufi ciente de reparação da cisão fundamental advinda da sociedade civil, e que nunca pode ser resolvida na esfera política.

Marx procura demonstrar a insustentabilidade da tentativa de Hegel de unifi car os interesses privados da sociedade com o interesse universal do Estado:

Hegel não chamou a coisa de que aqui se trata por seu nome conhecido. É a con-trovérsia entre constituição representativa e constituição estamental. A constituição representativa é um enorme progresso, pois ela é a expressão aberta, não-falseada, conseqüente, da condição política moderna. Ela é a contradição declarada. (MARX, 2005, p.93)

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É a fragmentação vivida pelos indivíduos privados que sustenta a universalidade idealizada no Estado e na fi gura do cidadão. Marx percebe na política a mesma rela-ção “espiritual” que se estabelece entre o céu e a terra, entre o reino da idealidade e o campo de batalha dos interesses confl itantes, e daí a sua consideração na Introdução à Crítica da fi losofi a do direito de Hegel, do Estado como sendo a forma profana de alie-nação, nos mesmos moldes que a religião seria a sua forma sagrada.

O Estado proclama uma igualdade e uma universalidade em contraposição à efetiva realidade da vida social. De acordo com Marx, esse estado de coisas começa a se revelar não como um “acidente” na relação do Estado com a sociedade, para o qual, por exemplo, a democracia poderia ser o corretivo, mas como a relação real e possível entre a esfera política e a esfera social na sociedade moderna.

Ao contrário da concepção clássica de política, na qual a virtude do Estado consiste em ser, ao menos potencialmente, o depositário dos princípios universais que tornariam todos os homens iguais nos seus direitos e deveres, Marx sustenta que o Estado se origina exatamente das insufi ciências de uma sociedade em realizar em si mesma, de forma concreta, estes ideais universalistas, ou seja, de garantir em sua dinâmica a igualdade de condições sociais.

José Chasin se dedica à recomposição e análise desta trajetória de Marx, em vários de seus textos.2 Na trilha aberta por Marx, Chasin dirá então de uma ontone-gatividade do Estado, cuja presença indica o “caráter anti-social” da vida civil. Essa determinação tem caráter ontológico já que se refere à natureza do Estado, ao seu “ser-precisamente-assim”.

Mas se é assim, a questão a se enfrentar não é mais a do aperfeiçoamento do Estado e da política, mas sim a da compreensão do ser social que leva à necessida-de da política. O reconhecimento do texto crítico de 1843 como sendo o texto de transição que marca a ruptura com a tradição idealista se justifi ca na medida em que Marx traz à tona, a partir daí, a existência social como o elemento primário a ser considerado em sua relação com o Estado, contrariamente à proposição hegeliana. Como bem analisa Enderle,

O esforço de Marx em Kreuznach rendera-lhe a preciosa noção de “autodeter-minação da sociedade civil”. Subsistia, no entanto, uma grave insufi ciência:a con-tradição entre Estado e sociedade civil permanecia nos quadros de um problema de ordem política, uma defi ciência localizada no terreno da “vontade”. Imedia-tamente após a Crítica, nos Anais Franco-alemães, Marx tratará de superar essa posição. A gênese da alienação política será detectada no seio da sociedade civil, nas relações materiais fundadas na propriedade privada. Conseqüentemente, não se tratará mais de buscar uma resolução política para além da esfera do Estado abs-

2. A este respeito, temos os diversos artigos que compõem a revista Ensaios AdHominem 1, tomo III – CHASIN, José: Política – a determinação ontonegativa da politicidade.

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trato, mas sim uma resolução social para além da esfera abstrata da política.Na Crítica, Marx encontrou seu objeto.Faltava desvendar sua “anatomia”. (2005, p.26)

Ou seja, a partir de um certo momento do texto de Marx, o Estado deixa de ser uma presença espiritual, pairando sobre a sociedade civil, e esta “espiritualidade universal” passa a ser entendido como uma necessidade vinculada aos interesses materiais da sociedade civil.

De acordo com Chasin, em contraste radical com a concepção do Estado como demiurgo racional da sociabilidade, isto é, da universalidade humana, que transpassa a tese doutoral e os artigos da GR, irrompe e domina agora, para não mais ceder lugar, a ‘sociedade civil’ - o campo da interatividade contraditória dos agentes privados, a esfera do metabolismo social - como demiurgo real que alinha o Estado e as relações jurídicas. (CHASIN, 1995, p. 362)

A partir dessa consideração, Marx distingue entre o que seja a “emancipação po-lítica” e a “emancipação humana”, distinção que aponta para os limites da primeira, enquanto forma parcial da liberdade, uma vez que

O Estado político aperfeiçoado é, por natureza, a vida genérica do homem em oposição à sua vida material. Onde o Estado político atingiu o pleno desenvolvi-mento, o homem leva, não só em pensamento, na consciência, mas na realidade, na vida, uma dupla existência – celeste e terrestre. Vive na comunidade política, em cujo seio é considerado com ser comunitário, e na sociedade civil, onde age como simples indivíduo privado, tratando os outros homens como meios, degra-dando-se a si mesmo em puro meio e tornando-se joguete de poderes estranhos. (MARX, 1989, p.45)

Resgatadas essas passagens de Marx, podemos compreender melhor o termo cunhado por Chasin de uma “determinação ontonegativa da politicidade”, que apon-ta no sentido de que a política não é um atributo intrínseco ao ser humano, mas sim que ela é gerada como um subproduto de uma sociabilidade “anti-social”.

Para Marx, cobrar do Estado uma efetivação de seu conteúdo universal é cobrar a sua extinção, uma vez que ele se sustenta sobre a contradição entre o público e o privado, contradição esta gestada a partir da divisão do trabalho. Desta forma pode-se entender o porquê da impotência administrativa do Estado frente às mazelas sociais.

No artigo Glosas Críticas marginais ao artigo “O Rei da Prússia e a reforma social”, es-critas em 44, Marx, ao polemizar com Arnold Ruge a respeito do sentido da revolta dos tecelões da Silésia, introduz uma segunda distinção entre revolução política e revolução social, que aprofunda a distinção entre emancipação política e emancipa-ção humana.

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Esclarecendo com mais rigor a gênese do Estado, ele dirá que o Estadodescansa na contradição entre a vida pública e a vida privada, na contradição entre os interesses gerais e os interesses particulares. Daí que a administração deva limitar-se a uma atividade formal e negativa, pois sua ação termina ali onde começa a vida civil e seu trabalho. Mais ainda, frente às consequências que derivam do caráter anti-social desta vida civil, desta propriedade privada, deste comércio, desta indústria, deste mútuo saque dos diversos círculos civis, é a impotência a lei natural da administra-ção. Com efeito, este desgarramento, esta vileza, esta escravidão da vida civil constitui o fundamento natural em que se baseia o Estado moderno, do mesmo modo que a sociedade civil da escravidão constituía o fundamento sobre o qual descansava o Estado antigo. (MARX, 1987, p.513)

Uma vez que o Estado moderno se sustenta sobre a sociabilidade marcada pelos interesses particulares antagônicos, não se pode esperar dele uma erradicação des-tas mazelas, mas tão somente a eternização das mesmas de maneira administrada, através de medidas paliativas. Dessa forma é que Marx argumenta que, mesmo nos países mais desenvolvidos politicamente, permanecem essas mazelas sociais. Assim, os bolsões de miséria identifi cados em todos os países modernos são tidos como elementos constituintes, para os quais o Estado só pode propor a assistência social conjugada com a penalidade jurídica.

Portanto, trata-se de diferenciar o que seja emancipação política, com o seu correlato, o Estado moderno e a sociedade civil, e o que seja emancipação humana, o rompimento da lógica política, com o advento de uma sociabilidade que permita um mais pleno desenvolvimento das potencialidades do ser social. Continuando em sua argumentação, Marx acrescenta que

quanto mais poderoso for o Estado e mais político seja portanto o país, menos se inclinará a buscar no princípio do Estado, e portanto, na atual organização da sociedade, cuja expressão ativa consciente de si e ofi cial é o Estado, o fundamento dos males sociais e a compreender seu princípio geral. O entendimento político o é precisa-mente porque pensa dentro dos limites da política. E quanto mais vivo e sagaz seja, mais incapacitado se achará para compreender os males sociais. (1987, p.514)

O aspecto a se ressaltar neste trecho é a determinação das limitações originárias do Estado, o que determina a impotência não de uma facção ou outra que esteja na administração, mas do Estado enquanto tal. Se assim é, nenhuma revolução política, por melhor intencionada que seja e, portanto, mais vontade política demonstre em efetivar uma boa administração, será sufi ciente para levar a cabo as transformações sociais necessárias para dirimir as questões da miséria. A esperança de que a questão social possa ser resolvida através da política se baseia, de acordo com Marx, em uma incompreensão dos limites da política.

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E aqui Marx toca numa questão que é muito cara aos tempos atuais: a cidadania e a correlata fé na “vontade política”.

Com Marx, nós nos colocamos num terreno absolutamente outro, no qual estas noções teriam que ser reavaliadas inteiramente. Não se trata de extrair daqui que Marx tenha rechaçado a política, que ele tenha tomado como equivalentes quaisquer proposição e ação políticas, ou mesmo tomado como indiferentes quaisquer gover-nos ou regimes políticos. Do que se trata é de esclarecer a essência da politicidade, de compreender a esfera política em sua gênese, em sua relação com a forma da sociabilidade, e em seus limites efetivos, derivados de sua condição ontológica. Ao fazê-lo, coloca-se em questão a crença na política baseada na noção de uma “vontade política”, exatamente porque, como dirá Marx, a crença na onipotência da vontade como fundamento da política desvia o foco da questão fundamental, que é a das insufi ciências da existência social. É por isso que ele afi rma que “se o Estado mo-derno quisesse acabar com a impotência de sua administração, teria que acabar com a atual vida privada. E se quisesse acabar com a vida privada, teria que destruir-se a si mesmo, pois o Estado só existe por oposição a ela.”(1987, p.514)

A compreensão da sociedade civil em sua totalidade e sistematicidade passa a ser o objeto de Marx, uma vez compreendida a precedência desta sobre o Estado e as formas jurídicas, de tal forma que a questão se desloca, a partir de Marx, do campo da política para o terreno da vida social concreta.

Esse aspecto do pensamento de Marx é central para a recomposição de sua proposição, segundo Chasin, na medida em que

O ser e o destino do homem, que abstrata e, muitas vezes, mesquinhamente atraves-sa a história recente da fi losofi a, não é para Marx meramente aquilo que a pobreza de uso acabou por conferir ao termo humanismo; não é um glacê sobre o oco, mas a questão prático-teórica por excelência, o problema permanente e constante, que não desaparece nem pode ser suprimido. (2000, p. 120)

Ou seja, a questão central que alinha toda a perspectiva marxiana é a da eman-cipação humana, que, no entanto, não pode ser reduzida simplesmente a um apelo ético ou a uma esperança colocada num horizonte a jamais ser alcançado. Trata-se de enfrentar a questão em seu terreno legítimo, o da forma da sociabilidade, buscando ali a gênese das contradições, das contrafações, dos impedimentos, dos limites, para que desta inteligibilidade, se possa perscrutar alguma alternativa objetiva de supera-ção.

Sabemos o quanto o termo “humanismo” foi questionado ao longo da fi loso-fi a no século XX. Assumi-lo como elemento central da fi losofi a marxiana não se torna, em vista disso, uma tarefa fácil. Daí a preocupação de Chasin em discernir o caráter do humanismo em Marx. Uma outra questão à qual ele não poderia deixar

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de responder, correlata a esta, diz respeito à persistência ou não de tal temática, a relação entre emancipação humana e humana política, no conjunto dos textos de maturidade de Marx. Atento às críticas que poderiam surgir em relação à sustenta-ção de uma determinação onto-negativa da politicidade em Marx, Chasin cuidou de analisar em textos de sua fase de maturidade, a presença e o desenvolvimento dessa questão, de tal forma a poder sustentar que tal temática não constitui um mero ar-roubo de juventude do autor. De acordo com a sua análise, se a questão da emanci-pação humana atravessa a obra de Marx como o ponto de convergência de todos os seus esforços, a questão específi ca da relação entre Estado e sociedade se encontra presente, sobretudo, na trilogia A guerra civil na França, Lutas de classe em França e O 18 Brumário, recebendo nessas obras um desenvolvimento coerente ao que Marx já tratara nos textos anteriores.

Ao examinar o material preparatório para a elaboração de A guerra civil na França, texto de 1871, Chasin chama a atenção para passagens nas quais Marx retoma essa temática, aprofundando-a:

Tanto quanto o aparelho de Estado e o parlamentarismo não constituem a verda-deira vida das classes dominantes, não sendo mais do que os organismos gerais de sua dominação, as garantias políticas, as formas e as expressões da velha ordem das coisas, igualmente, a Comuna não é o movimento social da classe operária e, por conseqüência, o movimento regenerador de toda a humanidade, mas somente o meio orgânico de sua ação. (apud CHASIN, 2000, p. 95)

Vê-se nessa passagem que o poder político, ainda que em sua forma reconheci-damente superior, como analisa Marx em relação à Comuna, não constitui um fi m em si mesmo, mas, ao contrário, apenas deve atuar como meio que cria “o ambiente racional no qual a luta de classes pode atravessar suas diferentes fases do modo mais racional e mais humano”. (MARX apud CHASIN, 2000, p. 95).

Com o que Chasin conclui que “em suma, à política só cabem as tarefas negati-vas ou preparatórias; a obra de ‘regeneração’, de que fala Marx, fi ca a cargo inteira-mente da revolução social.” (2000, p. 96)

Outras passagens deste teor podem ser encontradas nos textos de análise políti-ca do Marx maduro, nas quais ele se refere ao Estado como uma “excrescência para-sitária sobre a sociedade civil, fi ngindo ser sua contrapartida ideal” ou ainda como “o poder governamental centralizado e organizado, que, usurpador, se pretende senhor, e não servidor da sociedade”. (MARX, apud CHASIN, 2000, p. 159)

A ação política, orientada para a emancipação humana, não pode, portanto, se pautar por uma eternização ou aperfeiçoamento do poder político, mas pela sua superação. É a isso que Chasin se refere ao dizer de uma metapolítica, uma política que se coloque como fi m o fi m da necessidade da política, enquanto instância que se assenta sobre as defi ciências societárias.

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Analisando os pontos essenciais da proposição marxiana, Chasin sintetiza:1. a emancipação política ou parcial é um avanço irrecusável, mas não é o ponto de chegada da construção da liberdade; resume-se à liberdade possível na (des)ordem humano-societária do capital; sua realidade é o homem fragmentado, impotente como cidadão e emasculado como ser humano, diluído em abstração na primeira metade e reduzido à naturalidade na segunda;

2. a emancipação universal ou humana não é mais da lógica das liberdades restritas, condicionadas pela malha de determinações externas ao homem, mesmo que por ele próprio construídas, mas a constituição da mundaneidade humana a partir da lógica inerente ao humano, ou seja, do ser social, cuja natureza própria ou “segredo ontológico” é a autoconstituição;

3. a emancipação humana ou revolução social do homem compreende:A. a reintegração pelo homem real da fi gura do cidadão, ou seja, a reincorporação e o desenvolvimento da capacidade de ser racional e justo, mera aspiração pie-dosa na esfera da política, tornando a ética possível, porque imanente ao ser que se auto-edifi ca, de modo que ele não mais aliene de si força humano-societária, degenerada e transfi gurada em força política, assim tornando impossível, além de inútil, o aparecimento desta, o que derruba as barreiras atuais para a retomada da autoconstrução do homem;B. o reconhecimento e a organização – racional e humanamente orientada – das próprias forças individuais como forças sociais, de tal sorte que a individualidade, isolada e confundida com o ser mudo da natureza, quebre a fi nitude do ser orgânico e se alce à universalidade do seu gênero. (2000, p. 151-2)

Trata-se de uma completa contraposição à concepção tradicional da política, na medida em que a formulação marxiana é uma reiteração da autoconstrução humana, cujo télos não se encontra na expressão política de uma universalidade formal, mas aponta para uma forma de sociabilidade que alinhe a unidade indivíduo-gênero em sua vida concreta.

Isso equivale a dizer de uma desnaturação da política como elemento intrínseco à vida social, e em termos concretos, exigiria a superação da sociabilidade do capital e o estabelecimento de uma outra forma de existência social, na qual a questão seja a administração das diferenças, a superação das contradições, mas não mais a con-tradição não-resolvida, o que signifi ca a manutenção “estável” dos antagonismos sociais.

Quando Chasin se detém na análise do signifi cado de Maquiavel na fi losofi a política, ele chama a atenção para o fato de que

Com efeito, a visão desencantada do homem, a malvadez como identidade da alma humana é uma instauração da modernidade, e em seus albores Maquiavel foi seu grande arauto, para cujas mazelas sua voz conseqüente, através da consis-tência de uma fórmula matrizante, anunciou também a terapêutica sem cura do poder político.

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Sem dúvida, essas dimensões do pensamento maquiaveliano não estão confi nadas a si mesmas, mas integram um complexo movido e movente no interior do cau-dal renascentista, que impulsionou a dissolução da unidade harmônica da cultura medieval, cuja base foi demolida ao longo dos séculos XV e XVI: a cadeia hierár-quica do ser, na qual todas as coisas, positiva e defi nidamente, tinham seu lugar próprio, fi rme e indiscutível dentro da ordem geral. Confl uindo a nascente ordem do capital e o sistema heliocêntrico, ambos envolvendo decididamente o presente e impulsionando com vigor para o futuro, se conjugaram e potencializaram no movimento real e ideal que arrebatou do homem sua antiga condição privilegia-da, o qual, drasticamente desvalorizado, foi convertido em exilado no interior do universo infi nito e em desterrado no interior do cosmos social pulverizado. Sozinho e depreciado – e depreciado porque sozinho -, sem outro arrimo, lançou e foi coagido a lançar suas esperanças à conjunção abstrata dos homens na união imposta e ilusória do Estado. (CHASIN, 2000, p. 238)

A questão desenvolvida por Chasin, a partir de Marx, diz respeito ao entendi-mento do surgimento do Estado moderno como universalidade ilusória, e se refere à alternativa colocada frente ao futuro: o aperfeiçoamento do poder político ou a perspectiva de sua superação. Ao primeiro, correspondem as medidas paliativas do controle do poder do Estado, através do apelo à ética, da ênfase na idéia de cidada-nia, da vigilância às formas de corrupção e, na mais avançada das proposições, no investimento em uma democracia mais abrangente. À segunda, corresponde uma visão que recusa a naturalização da condição humana e a naturalização das relações sociais tais como se apresentam a partir da modernidade, bem como a eternização da sociabilidade do capital, insistindo em fazer cintilar no horizonte a distância entre a emancipação política e a emancipação humana.

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educação e ciências humanasEspaço de interlocução em ciências humanas

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Chasin e a descoberta do estatuto ontológico da obra de Marx

Antônio José Lopes Alves*1

* Professor de Filosofi a do CEFET-UFMG.

Resumo: O presente artigo pretende abordar e explicitar os principais resultados do esforço de pesquisa desenvolvido pelo Professor José Chasin acerca da obra marxiana, no que denominou de Retorno a Marx. Uma das principais conquistas teóricas do mencionado projeto foi sem dúvida a determina-ção mais precisa do caráter da tematização de Marx, pondo em relevo o que constitui a especifi cida-de de sua refl exão: um conjunto de demarcações de cunho ontológico, em particular, o primado da objetividade das coisas. Crivo de cunho eminentemente materialista o qual teria, segundo Chasin, formatado o exame de entes e processos, e por este último continuamente enriquecido, dentro do que denomina unidade do saber. O que surge também é a postulação de uma nova relação entre fi losofi a e ciência, dentro da qual as duas formas de conhecimento se incrementam e se criticam reciprocamente, fazendo progredir ambas as instâncias do conhecer, tanto a particular quanto a universal.

Palavras-chave: Marxologia; Cientifi cidade; José Chasin; Ontologia.

Chasin and Discovery of the ontological statute of the Work of Marx

Abstract: This article aims to discuss and explain the main results of the search effort developed by Profes-sor José Chasin about the work’s Marx, as called Return to Marx. One of the major theoretical achievements of that project was undoubtedly a more precise determination of the character of tematização of Marx, putting emphasis on what is the specifi city of his refl ection: a set of demarca-tions of ontological stamp, in particular, the primacy of the objectivity of things. Sieve of highly materialistic stamp who would, according Chasin, formatted the test of loved and processes, and continuously enriched by the latter, which calls within the unity of knowledge. What also emerges is the postulation of a new relationship between philosophy and science, within which the two forms of knowledge is increased and that criticize each other, making progress both bodies of knowledge, both on the particular universal.

Keywords: Marxology, Scientifi c Standard, José Chasin, Ontology.

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Escrito que pode ser entendido tanto como termo provisório de uma rota de investigação, quanto um novo ponto de partida, Marx: Estatuto Ontológico e Resolução Metodológica demarca um momento de infl exão na pesquisa marxológica, com conse-qüências que extravasam o terreno meramente acadêmico. Itinerário inaugurado sob a pressão teórico-prática de um diagnóstico grave: a inexistência nos círculos mar-xistas e afl uentes – opositivos ou simpáticos a Marx – de um efetivo entendimento da natureza verdadeira do pensamento marxiano. Ausência que não apenas fere de morte a aproximação à obra de Marx, mas também condiciona como determinação adstringente o baixo nível da produção teórica acerca das diversas dimensões dos processos histórico-sociais. Nesse sentido, a importância do empreendimento cha-siniano de Retorno a Marx se mede pelo caráter extremamente gravoso das circuns-tâncias e do ambiente em que foi proposto e realizado. Um conjunto atravessado seja pelo desentendimento da refl exão marxiana, seja pela pura e simples hostilidade visceral ou epidérmica para com o padrão de racionalidade inaugurado pelo pensa-dor alemão. Retorno a Marx que signifi ca, num primeiro momento, necessariamen-te, ater-se aos termos e aos sentidos próprios dos escritos investigados e analisados. Ou seja, Marx por seus próprios textos, Marx em seus próprios termos.

Obedecendo a essa diretiva intelectiva, anima o texto chasiniano a posição do corpus teórico marxiano sob a forma de passos de apreensão do real, por meio da produção de abstrações e concreção destas a partir do material. Não repisando, portanto, o caminho comumente trilhado de imputar a Marx uma forma lógica qual-quer – “dialética” ou não – como o segredo de sua teorização. Tal compreensão foi pela primeira vez indicada e defendida por José Chasin em seu texto, a partir da tese da existência de uma teoria das abstrações em Marx. Seguindo os passos analíticos e os indicativos recolhidos da própria obra de Marx acerca desta questão, em especial os contidos em Introdução de 1857, Chasin desenvolve um exame cuidadoso das princi-pais determinações dos procedimentos marxianos, buscando confi gurar um esboço de conjunto desta problemática.

Chasin explicita analiticamente certos elementos que constituem, segundo ele, o arcabouço da cientifi cidade marxiana, tais como as noções de articulação, de momento preponderante (übergreifendes Moment), de abstração razoável (verständige Abstraktion), e de complexo (Cf. Chasin1995, pp. 420 a 433). Igualmente, chama a atenção ao fato de que a questão do conhecimento só pode obter resolução, do ponto de vista marxiano, em referência ao quadro mais geral de reconhecimento do por-si da coisa enfren-tada, da posição de objetividade e da subsunção ativa do sujeito que conhece. Este último, ele mesmo um ente, determinado e complexo sintético de determinações objetivas de natureza social, em consonância com observações marxianas contidas no posfácio à segunda edição de O Capital (Cf. Marx, 1998, pp. 25 a 28).

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Indicações e elementos de procedimentos que não confi guram um método, no sentido usual, pois em Marx, como o afi rma Chasin:

Não há caminho pré-confi gurado, uma chave de ouro ou uma determinada me-todologia de acesso ao verdadeiro. (...) Não há guias, mapas ou expedientes que pavimentem a caminhada, ou pontos de partida ideais previamente estabelecidos. O rumo só está inscrito na própria coisa e o roteiro de viagem só é visível, olhando para trás, do cimo luminoso, quando a rigor, já não tem serventia, nem mesmo para outras jornadas, a não ser como cintilação evanescente, tanto mais esquiva ou enganosa quanto mais à risca for perseguida, exatamente porque é luminosidade específi ca de um objeto específi co. (Chasin, 1995, p.516)

Emerge aqui, a nosso ver, a tese de um “anti-método” em Marx. Não obstante a imprecisão inicial de nossa formulação, os termos evidenciam os rastros de uma ruptura cabal de Marx em relação a todo pensamento moderno, desde Descartes até a confi guração plena do método na fi losofi a especulativa de talhe hegeliano. Impli-cação referida por Chasin, mas que em razão do escopo do seu escrito, articular todo um esforço de leitura estrutural, exame categorial e refl exão analítica da obra mar-xiana, não tenha sido talvez aprofundada em todas as suas dimensões críticas.1 No entanto, não apenas a questão do método, mas também a articulação como armação da forma de ser, entre outros aparece como tópicos para futuras investigações. Temas e problemas que indicam o texto chasiniano como verdadeiro luminar de pesquisa, ponto inicial de clarifi cação de determinadas questões e de indicativos precisos de rotas de pesquisa possíveis. Igualmente ressaltamos que não estando o pensamento marxiano centrado na questão de um método como chave do saber, mas da captação dos aspectos essenciais das coisas e processos, uma questão pertinente é aquela da natureza das próprias categorias em Marx. Ou seja, recolocando a discussão acerca do método em seu verdadeiro nicho, como determinada e não determinante, Chasin assevera a centralidade da questão da delimitação precisa da coisa faceada.

Não se trataria então de encravar mais um estandarte epistêmico no terreno das pugnas entorno da fundamentação. Algo que se observa, entre outros, no texto de Manfredo de Oliveira, publicado no mesmo volume, Pensando com Marx, como prefácio. Já nas primeiras páginas podemos verifi car a motivação de Oliveira em sua descrição do suposto cunho dialético de Marx: “(...) como situar a dialética dentro da disputa atual a respeito da racionalidade? A dialética ainda pode levantar a pretensão de emergir como discurso sensato?” (Oliveira, 1995, p. 13). Modo de abordar a obra marxiana que não se cinge pelo caráter particular da mesma, mas se perfaz partindo de uma demanda externa e a ela estranha, aquela a respeito do fundamento prévio do discurso científi co. Ao lado disso, tem-se imediatamente a localização do pensamen-to marxiano, sem mais, dentro do que se convencionou a chamar de tradição dialética,

1. Cf. Chasin, 1995, pp.389 a 390 e 515 a 519.

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procedimento igualmente visível em Ruy Fausto, por exemplo.2 O que resulta na defesa de um tipo de tratamento do texto marxiano que o enlaça necessariamente às questões trazidas pelo desenvolvimento das querelas fi losófi cas sobre o fundamento do saber: “Isso signifi ca que não podemos mais ler Marx hoje sem levar em conside-ração o nível de consciência epistemológica que se gerou pelo confronto com a crise da razão” (Oliveira, 1995, p. 14). Resulta dessa maneira de por as coisas, que o texto perde sua contextura de objeto, de algo por-si, possuindo uma malha determinativa própria, para tornar-se, objeto posto por um terceiro, aqui, pela leitura formatada por outra questão endógena: a crise da racionalidade abstratamente tomada. Nesse contexto, a produção marxiana emerge como momento ou parte integrante de uma facção científi co-fi losófi ca, a dialética, entendida como “paradigma de pensamento” (Oliveira, idem).

Indo no sentido exatamente oposto, Chasin buscará determinar o caráter da refl exão marxiana tomando como ponto de partida o desvendamento de sua lógica interna, tendo por objeto inevitável e irrevogável a objetividade dos textos, peculiar, dos sentidos que os integram e os perfazem. Num momento chave do texto, Cha-sin se ocupa da afi rmação marxiana segundo a qual as categorias são Daseinsformen, formas de ser, de estar-aí, de ser atualmente, constante de Introdução de 1857. Decla-ração que não somente clarifi ca a posição de Marx acerca do estatuto da teorização e da sua relação com o mundo, mas também ressalta e reafi rma o caráter próprio de seu padrão de refl exão. Padrão esse que se construiu por meio de um itinerário, cujas motivações extravasam o terreno puramente acadêmico. Caminho que Chasin acompanha em partes anteriores do escrito em exame, como processo de gênese que se dá pelo exercício de três críticas de cunho ontológico à tradição. Frise-se o ontológico, porquanto não dirigida apenas, e nem primariamente, aos modos de abor-dagem do objeto, mas da concepção mesma do objeto. O alvo principal, mas não único, foi, desde os primeiros momentos da elaboração do pensamento propria-mente marxiano, a identidade hegeliana ente Ser e Idéia. Segundo Chasin, o que põe em movimento a crítica marxiana, desde meados de 1843, é a oposição resoluta ao padrão especulativo, no empenho de alcançar a determinação precisa da lógica da coi-sa, da forma de ser particular a cada ente ou processo. Nesse sentido, a identifi cação das categorias como Daseinsformen ou Existenzbestimmungen, é ponto de chegada da elaboração que se edifi cava desde Crítica da Filosofi a do Direito Hegeliana, da crítica da especulação e não a afi rmação de um preceito metodológico.

Quem diz formas do ser, determinações de existência, categorias, etc., imediata e inevita-velmente aponta para questões de natureza ontológica. Entender as categorias como o material transposto e traduzido para a cabeça do homem, como o faz Marx no posfácio a

2. Cf. Fausto. Marx: Lógica e Política, Editora Brasiliense, São Paulo, 1987, prefácio.

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O Capital acima referido, longe de ser tão-somente um indicativo de procedimentos, é antes a colocação da questão do ser, das formas imanentes e dos modos pelos quais se é possível abordá-lo. Ou seja, o projeto de esquadrinhar na obra marxiana de maturi-dade os elementos que apontam para a confi guração de uma cientifi cidade de tipo específi co, como analítica das formas de ser, necessariamente tem de reportar-se a este problema mais geral. Não signifi cando então a mera classifi cação da refl exão marxiana em algum tipo de discurso acerca da fundamentação do saber ou nalguma corrente epistêmica.

Tema pela primeira vez levantado por Lukács, num dos capítulos de sua última obra (Para uma Ontologia do Ser Social) 3, a existência de uma “ontologia” na obra mar-xiana e das relações desta com a questão de método foi também objeto de exame ri-goroso no texto Marx: Estatuto Ontológico e Resolução Metodológica, acima referido. Exa-me este que, entre outras determinações e descobertas importantes, delimita a nosso ver com precisão o problema atinente à correta aproximação da obra de Marx:

(...) a determinação do que é antecede a admissão e o tratamento de temas gno-sio-epistêmicos. Ao contrário de qualquer abordagem sob critério [ou posição] gnosiológico [a], em que um pré-discurso nesse diapasão pretende fundamentar o discurso propriamente dito a respeito do objeto, no pensamento marxiano o tratamento ontológico dos objetos, sujeito incluso, não só é imediato e indepen-dente, como autoriza e fundamenta o exame da problemática do conhecimento (Chasin, 1995, p. 400).

Ou seja, no interior do modus refl exivo marxiano a questão do saber, enquanto determinação de maneiras de abordagem e tratamento dos objetos, não obstante sua importância, não se põe como lugar central e determinativo. Ao revés, o centro do exame é aqui ocupado pela concreta dilucidação e exposição dos nexos efetivos da coisa, ao menos dos mais decisivos, e da articulação havida entre estes. É somente a partir do cumprimento desta etapa, na qual já se aborda o material, é que se pode discutir de modo adequado o problema do método. É característico, a este respeito, o momento em que, nos textos marxianos, aparece a exposição de procedimentos: sempre após o exame de um complexo de categorias qualquer, nunca como funda-mento deste exame. Os indicativos metodológicos nunca são apresentados como base da pesquisa, como espaço dos movimentos cognitivos previamente circuns-critos através da eleição de um princípio procedimental. Mas como conjunto de procedimentos já realizados, no transcurso dos quais os nexos mais essenciais das categorias foram trazidos à tona. Vale mencionar, neste sentido, por exemplo, o caso da discussão crítica do método da economia política na Introdução de 57, a qual aparece apenas na parte 3, somente depois de Marx, na parte anterior, ter mostrado

3. Cf. Lukács. Capítulo 1 Questões metodológicas preliminares.

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como se articulam as categorias de produção, consumo, troca e distribuição no complexo categorial da produção em geral, indicando na análise a determinação recíproca existente entre elas.4

Além disso, cabe deixar fi xado com Chasin que:(...) a ontologia marxiana não é uma resolução de caráter absoluto, nos moldes do sistema convencional, mas a condição de possibilidade de resolução do saber. É, em outras palavras, um estatuto movente e movido de cientifi cidade, orienta e é orientado pela ciência e pela prática universal dos homens. Orienta e é orientada, guia e é guiada, corrige e é corrigida. Ou seja, não é um absoluto inquestionável, uma certeza estabelecida por dedução a partir de axiomas, de uma vez para sem-pre. (Chasin. APUD Vaisman, 2001, p. IX).

A posição ontológica marxiana, deste modo, segundo as descobertas chasinianas, nunca se apresenta como um todo fechado de categorias encadeadas numa ordem de determinações a priori e sistemática, nem se postula como último e permanente delineamento da forma do ser. Ao revés, coloca-se, antes de tudo, como

(...) afi rmação da objetividade do mundo e a possibilidade de ser conhecido, pos-sibilidade que é sócio-historicamente determinada, exercendo a função de base e guia para a ciência da história, especifi camente como ontologia regional do ser social, e que se nutre das ciências e a elas respondem tanto quanto elas mesmas têm de responder aos lineamentos ontológicos pelos quais se guiam, mas os quais não tomam como coágulos de saber imutável. De sorte que ontologia e ciência se potencializam e se criticam recíproca e permanentemente (Chasin. APUD Vais-man, 2001, p. VIII).

Não sendo então um conjunto de noções abstratas das quais, sob a égide de um esquema por estas conformado, se extrairiam os resultados particulares. Em verda-de, é desta última etapa, a compreensão dos resultados, que se ergue uma ontologia estatutária. Assim, a esfera mais geral e a mais particular, no ato de conhecimento, guardam uma relação bem específi ca, não de concorrência ou excludência, mas de promoção e correção mútuas e contínuas.

O fato de haver na analítica marxiana uma ontologia de natureza estatutária, como estamos indicando, não será diretamente abordado aqui, dados os limites do presente artigo. A ontologia estatutária não se apresenta como as elaborações altamen-te sistemáticas, e especulativas, consagradas pela tradição fi losófi ca, mas somente aparece referida às questões específi cas enfrentadas pelo padrão de cientifi cidade de Marx. Ou seja, como tematização ou refl exão atinente àquela dimensão mais geral das coisas analisadas. Examinada ou apontada por Marx sempre no interior da es-cavação efetiva das formas de ser, na particularidade concreta dos objetos faceados,

4. Cf. Marx. Einleitung zun den Grundrissen der Kritik der Politischen Ökonomie, In Marx-Engels Werke, Band 42, Dietz Verlag, Berlin, pp. 24-34..

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nunca como momento sistemático de natureza absoluta contraposta ou superposta aos mesmos. Deste modo, um conjunto sintético e provisório dependente priorita-riamente da decifração dos traços específi cos dos entes e processos. O fazer cientí-fi co marxiano, inclui, como momento seu, a indicação do modo como aparece no aquela dimensão referente ao universal, mas sempre de modo subordinado ao des-vendamento das formas de objetividade social, cada uma com suas peculiaridades e determinações.

Assim a dimensão mais universal, compreendida sempre na simplicidade de ca-ráter comum (Gemeinsame)5 não está contraposta à particular, e nem a determina univo-camente. Por esta razão, Chasin a denomina de ontologia estatutária, à qual

(...) compete o reconhecimento dessa dimensão mais geral, base para a decifração científi ca concreta dos casos efetivos, que por sua vez confi rmam ou não critica-mente a determinação mais geral, ontológica. Não há, portanto, um abismo se-parando ontologia de ciência, mas a continuidade de momentos distintos de uma mesma unidade de conhecimento, que interagem e se medem reciprocamente, se apoiam, estimulam e criticam num infi nito processo constitutivo das certezas (Chasin. APUD Vaisman, 2001, p. XVII).

Sendo por conseqüência, “o momento mais abstrato do reconhecimento da identidade das coisas por si, enquanto tal um dos momentos distintivos da unidade do saber, do qual participa um segundo, a ciência” (Chasin. APUD Vaisman, 2001, p.XXII). Fixe-se, unidade dos momentos do conhecer, não sua identidade, nem a mera redução de um ao outro. Nem, de um lado, deducionismo a priori, nem, de ou-tro lado, pura coleta abstrata de dados da empiricidade imediata, mas escavação ca-tegorial, identifi cação de determinações, de articulações e de diferenças específi cas, em suma, a elucidação da lógica específi ca de uma coisa específi ca. Nesse contexto, as relações entre fi losofi a e cientifi cidade assumem um caráter bem diverso daquele pos-tulado tradicionalmente. Não são formas concorrentes e/ou excludentes de conhe-cimento, nem é razoável supor a submissão de uma a outra. Não se tem, tampouco, aqui a concatenação entre ontologia tomada num sentido geral e ontologias regionais. São, ao contrário, dois exercícios cognitivos diferentes em nível de escavação do real e de escopo, mas, simultaneamente, instâncias comunicantes e interdependentes. Ciência e fi losofi a incrementam-se reciprocamente na medida em que o exercício de intelec-ção penetra a articulação categorial da concretude, extraindo suas determinações e relações essenciais, ao mesmo tempo em que permite a percepção e a tematização dos aspectos mais gerais da confi guração do real. Abordagem da universalidade que não pode ser feita sob pena de recair na especulação, em divórcio com a marcha de desvendamento da differentia specifi ca de cada ente ou processo examinado. Por outro

5. Cf. Marx. Einleitung zun den Grundrissen der Kritik der Politischen Ökonomie, In Marx-Engels Werke, Band 42, Dietz Verlag, Berlin, p. 20-21.

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lado, as conclusões de cunho geral permitem o contorno dos horizontes da intelec-ção e a fi xação de alguns parâmetros úteis à pesquisa e à refl exão particulares.

É exatamente a demonstração disso que a última parte do escrito chasiniano em tela, analítica das coisas, oferece à avaliação do leitor. Concebido pelo autor como recopilação de testemunhos, esse momento busca pôr em relevo a posição onto-cognitiva marxiana. No interior daquela unidade de saber que caracteriza o padrão de cientifi ci-dade de Marx, o próprio método aparece não como chave fundante da possibilidade do conhecimento, mas como exercício, sempre particular, do próprio conhecer. O método marxiano se revela, então, como enfrentamento cognitivo do mundo pelo in-divíduo dotado de forças sociais de apropriação do mundo sem a interposição de qualquer critério ou instrumento ideal, prévio, que o organiza para a tarefa em tela. A não-certeza inicial como ponto de partida da obtenção da certeza e do elucida-mento do real em suas conexões íntimas. É interessante notar que para Chasin, o padrão marxiano de cientifi cidade se caracteriza pela “inexistência de qualquer tipo de ante-sala lógico-epistêmica ou apriorismo teórico-metodológico”, o que constitui o lado negativo ou expressão da propositura teorética de Marx, ou seja, da ausência de todo problema de uma fundamentação a priori do saber. Tal expressão, longe de desvelar-se como puro défi cit ou lacuna, de outra parte, em sua positividade sustenta “a prioridade e a regência do objeto ou, mais rigorosamente, da coisa enquanto tal - do entifi cado real ou ideal em sua autonomia do ato cognitivo - em todo processo do conhecimento” (Chasin, 1995, p.508). Deste modo, ato ideal e idealidade não podem ser tomados como atividade e produto auto-sustentados. A prioridade da coisa, em seu irremediável e incontornável por-si, é que se afi rmará, segundo Chasin, por toda obra marxiana o cunho distintivo, dos primeiros momentos, da crítica à especulação impulsionada pelo enfrentamento feuerbachiano do pensamento hege-liano aos momentos derradeiros constantes das Glosas a Adolf Wagner. De passagem, é importante frisar que a identifi cação assim feita do núcleo gerativo do pensamento marxiano interdita também a postulação de uma ruptura ou corte entre as fases de sua constituição. Este Caráter é reafi rmado por Chasin, quando examinando nova-mente nas páginas seguintes as relações de Marx com Feuerbach, indica:

(...) a aguda inclinação marxiana pelos objetos reais e pela aproximação cognitiva dos mesmos sem qualquer tipo de intermediação metódica antecipadamente es-tabelecida, gênero da prática teórica esta última que, por natureza, carrega em si o vício da pretensão à autonomia em face das coisas examinadas (Chasin, 1995, p.511).

Determinada deste modo a atividade cognitiva como escavação rigorosa e sub-missão ativa ao objeto tratado revela uma aparente simplicidade, por trás da qual se revelam

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(...) as difi culdades de sua exercitação pelo complexo da determinação sócio-his-tórica do pensamento e da teoria das abstrações”, pois, o “desafi o das coisas não se altera ou dissolve pela mera disposição ativa do sujeito enfrentar a decifração das mesmas, nem porque detenha a visualização do roteiro analítico a ser cum-prido, e sempre como difi culdade se repõe a cada objeto faceado (Chasin, 1995, p. 515).

O que faz sentir aqui com toda força o peso da regência do objeto, o qual con-tém uma lógica própria que não se desvela imediatamente, nem possui uma relação de adequação com a força de abstração, sendo que igualmente ressalta-se neste passo já que a marcha das abstrações e a escavação das coisas não se constitui num diktat metodológico.

Retomando uma passagem do prefácio da edição francesa de O Capital, onde se lê Não há estrada principal para a ciência, e apenas aqueles que não temem a fadiga de galgar suas escarpas abruptas é que têm a chance de chegar a seus cimos luminosos, Chasin indica a difi culdade como elemento constante e ineliminável do processo de escavação do real, seguindo a advertência marxiana de que não existe um caminho pré-confi gurado na trilha da verdade, não sendo possível a suposição nem a busca de uma chave que abra todas as portas, facultando-nos a apreensão segura e infalível do objeto. Dada a dupla determinação social acima aludida, de um lado as condições sociais da cog-nição, e de outro, a existência do objeto enquanto tal, não há método que garanta a completa e imediata acessibilidade aos nexos essenciais das coisas. Assim sendo, fi el à raiz mesma do termo mšqodoj (caminho tortuoso em grego), Chasin completa a argumentação de modo forte asseverando, numa das passagens que julgamos ser das mais belas já lidas, a qual permitimo-nos citá-la integralmente, que:

Não há guias, mapas ou expedientes que pavimentem a caminhada, ou pontos de partida ideais previamente estabelecidos. O rumo só está inscrito na própria coisa e o roteiro de viagem só é visível, olhando para trás, do cimo luminoso, quando a rigor já não tem serventia, nem mesmo para outras jornadas, a não ser como cintilação evanescente, tanto mais esquiva ou enganosa quanto mais à risca for perseguida, exatamente porque é luminosidade específi ca de um objeto específi co. As pegadas que fi cam podem ser esquadrinhadas e repisadas, não são inúteis, mas não ensinam a andar, precisamente como procede a teoria das abstrações, que descreve [grife-se isto!] a universalidade das passadas, sem prescrever por si só um único passo concreto de qualquer escalada concreta, mérito e segredo do método marxiano, que centra no respeito à integridade ontológica das coisas e dos sujeitos - estes reconhecidos objetivamente em posição [Standpunkt] e, correlativamente aos graus de maturação dos objetos, suscetíveis de intensifi cação ou desatualização para devassa analítica daqueles e de si próprios - a resolução do complexo proble-mático do conhecimento (Chasin, 1995, p. 516).

Tornam-se patentes todas as conseqüências da afi rmação de que não há em Marx, a rigor, uma questão de método, ou seja, a recuperação do rumo tracejado na

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apreensão da lógica das coisas, enquanto caminho do cérebro, é apenas de cunho descritivo, jamais pode pretender à prescrição metódica. Neste contexto, cada enti-fi cação concreta teria seu método, cada destino, que somente existe como destino a ser alcançado, o verdadeiro, não dominado no início, tem sua própria rota. Negação de segredos metodológicos ou de um passe-partout epistemológico que facultassem o descortino do objeto que é, concomitantemente, a afi rmação por princípio da possibilidade do conhecimento objetivo, não evidentemente da inevitabilidade da verdade. O verdadeiro é uma meta e, ao mesmo tempo, uma aquisição ou conquista do exercício da cognição, o qual não pode pretender a posse de uma garantia ou cer-teza a priori arrimada na mera eleição de um conjunto de procedimentos de suposta validade absoluta.

A descoberta chasiniana, mais que trazer à tona alguns dos elementos essenciais da construção teorética marxiana, põe na ordem do dia a objetividade do mundo como princípio fundante da intelecção. Posição teórico-prática que se coloca imediatamen-te no terreno de luta ideológica, porquanto se a enuncia na contramão das linhas dominantes na academia, com vigor especial nas ciências humanas. Nada mais de-sagradável em tempos nos quais vige a triste ilusão de uma subjetividade tida como onipotente, que em sua aparente pluripotência cria mundos, que a reafi rmação do primado do efetivo. Não no sentido da destituição do sujeito, mas no da revelação do sujeito como algo mais que subjetividade. O sujeito é ele mesmo um objeto real, concreto, social, dotado de aspectos e propriedades que podem ou não incrementar-se, podem ou não, dependendo das determinações histórico-sociais, tornarem-se ca-pacidades operativas e criativas. A escavação da obra marxiana, com o achado de seu estatuto ontológico, de seu caráter e conteúdo de ser, estimula e exige, simultaneamente, uma reconfi guração das formas pelas quais se entende o sujeito e o mundo humanos.

Referências Bibliográfi cas:

CHASIN, José. Marx: estatuto ontológico e resolução metodológica. In: Pensando com Marx: Edi-tora Ensaio, São Paulo, 1995.

VAISMAN, Ester. Dossiê Marx: itinerário de um grupo de pesquisa. In: Ensaios Ad Hominem, nº 1, tomo IV: Estudos e Edições Ad Hominem, Santo André, 2001.

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educação e ciências humanasEspaço de interlocução em ciências humanas

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Procedimento investigativo e a forma expositiva em Marx Duas leituras: Lukács/Chasin

Ronaldo Vielmi Fortes*1

* Professor do Departamento de Música da UFPb.

Resumo: Este artigo trata das diferenças e identidades das refl exões sobre o caráter ontológico do pensamento de Marx entre Lukács e Chasin, no esforço de identifi car as questões que eles desenvolveram em torno do pensamento marxiano.

Palavras-chave: Investigação; Categorias; Abstrações; Ontologia; Marxiano; Trabalho.

Investigation procedures and explanation in Marx Two readings: Lukács/Chasin

Abstract: This article discusses the differences and identities of refl ections developed by Lukács and Chasin on the onthological character of Marx´s thought and attempts to identify the issues both developed in the fi eld of the Marxian thought.

Key words: Investigation; Category.

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As relações possíveis de serem estabelecidas entre ambos pensadores aqui em tela é no mínimo multifacética. Vários são os pontos que podem ser diretamente comparados. Em grande medida isto se deve ao terreno comum sob o qual ambos se movem, a afi rmação de que o pensamento de Marx se caracteriza fundamental-mente por ser acima de tudo uma refl exão ontológica sobre a sociabilidade Chasin insistia no fato de que o primeiro a reconhecer esta base essencial do pensamento de Marx havia sido Lukács e, precisamente no esteio deste desvelamento, efetuou grande parte de sua pesquisa em meio a um diálogo declarado com a obra do pen-sador húngaro. É certo que o centro de suas pesquisas se dirigia principalmente ao próprio texto marxiano, porém dadas as dimensões alcançadas pelo trabalho de Lukács, o debate com suas teses mais prementes não poderia deixar de se realizar. Isto não coloca o pensador brasileiro como um discípulo de Lukács, pelo contrário, o que verifi camos no curso de seu pensamento é a constante necessidade de colocar à prova os resultados lukacsianos com as palavras de Marx.

Em virtude deste trabalho rigoroso de cotejamento, que não chegou a se con-cluir em sua plenitude, a dimensão deste debate se torna ampla e, portanto, difícil de ser abordada em suas várias perspectivas no texto que ora apresentamos. Foi neces-sário portanto lidar com um problema bem circunscrito: a análise que G. Lukács e J. Chasin fazem acerca daquilo que poderíamos designar como as proposituras onto-lógicas basilares de Marx quanto ao procedimento investigativo e o modo de expo-sição presentes em O capital. Sob esta orientação este trabalho pretende apresentar alguns argumentos que fornecem indícios de que são estudos que complementam um ao outro, pois se em Lukács a ênfase recai sobre a forma expositiva de O Capital, em Chasin a tônica é dada ao procedimento investigativo propriamente dito. Se este último constitui uma lacuna em Lukács, igualmente podemos constatar a ausência em Chasin – nem este era o objetivo central do texto que ora analisamos – de uma análise que demonstre como que os passos dados por Marx em sua obra econômica maior, são expressões contundentes de uma forma expositiva fundada sobre a pers-crutação ontológica do complexo econômico da sociabilidade do capital.

Lukács trata diretamente do problema aqui em pauta na segunda seção do ca-pítulo destinado à análise do pensamento marxiano, que constitui o capítulo 4 da parte histórica de sua Ontologia. O autor abre sua análise com a observação sobre a malversação tradicional no marxismo em relação ao problema do método em Marx, cujo refl exo particularmente expressivo podemos constatar na incompreen-são e descaso pelo único fragmento em que o pensador alemão trata diretamente o tema, manuscrito escrito no fi nal da década de 1850, costumeiramente chamado de Introdução de 57 – publicado por Kautsky pela primeira vez na edição de Para a

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crítica da economia política, em 1907. As razões para a desconsideração [Vernachlässigen] quase que completa da Introdução de 57, pode ser em grande parte explicada pelo predomínio das questões epistemológicas no campo da fi losofi a – cujos primórdios remontam ao pensamento kantiano. Esta hegemonia gnosiológica repercutiu forte-mente no interior do próprio marxismo de um modo generalizado e, na maior parte dos casos, levou grande parte dos pensadores marxistas “ao abandono da crítica da economia política para substituí-la por uma simples economia como ciência no sentido burguês” [OGS, 578/283]. O que fi cou obliterado foi a crítica ontológica à economia enquanto forma da sociabilidade posta e direcionada pelo capital, dimen-são do pensamento marxiano que foi substituída por uma concepção da economia entendida nos moldes da cientifi cidade burguesa.

Contra as tendências predominantes no século XX, Lukács recoloca a deter-minação da prioridade das determinações próprias do ser em relação à consciência, insistindo na necessidade de estabelecer a forma e o meio pelo qual a objetividade pode ser conhecida e idealmente apropriada pela consciência. Estas advertências iniciais não apenas repõem o problema da necessária confrontação da ontologia com a gnosiologia, mas adensam a discussão ao introduzir toda uma série de elementos relevantes do pensamento marxiano que contribuem de maneira crucial para este debate e que rompem na raiz com a tradição fi losófi ca predominante. Sob esta di-retriz argumentativa Lukács descreverá logo de saída a posição de Marx frente ao problema que separa nitidamente dois complexos distintos: “o ser social, que existe independentemente do fato de que venha a ser conhecido mais ou menos correta-mente, e o método para apreendê-lo idealmente da maneira mais adequada possível” [OGS: I, 578/283].

A forma pela qual Lukács se contrapõe aos equívocos que desvirtuam as de-terminações de Marx o leva àquilo que caracterizará todo o conjunto de suas ela-borações nesta seção: ao abordar o tema do caráter das abstrações no interior do pensamento marxiano são conjuntamente expostos lineamentos que permitem esta-belecer a base de uma teoria das categorias – lineamentos estes que constituem para nosso autor “os princípios ontológicos fundamentais de Marx”. Em outros termos, tratar do problema do conhecimento em Marx impõe caminhos completamente dis-tintos, trata-se, primeiramente, de estabelecer os princípios ontológicos mais funda-mentais de uma teoria sobre o ser para a partir de então lidar com o problema acerca do modo pelo qual a realidade pode ser apreendida pelo pensamento. No entanto, vale advertir que não há uma clara linha de demarcação entre as duas discussões, na

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medida em que se elucida o caráter das abstrações em Marx vêm à luz os elementos gerais da teoria das categorias1.

A linha de discussão apresentada por Lukács remonta o texto dos Manuscri-tos Econômicos-Filosófi cos, onde encontra-se a afi rmação da prioridade do ontológico sobre o conhecimento. Tal passagem confronta não apenas a idéia da consciência como elemento de síntese preponderante no processo do conhecimento, mas esbo-ça aquilo que na problematização lukacsiana aparece como o princípio ontológico fundante da fi losofi a de Marx: a primazia da objetividade sobre a consciência. O texto marxiano é diretamente citado:

Um ser que não tenha sua natureza fora de si não é um ser natural, não faz par-te da essência da natureza. Um ser que não tem nenhum objeto fora de si não é um ser objetivo. Um ser que não é por sua vez objeto para um terceiro ser não tem nenhum ser como objeto seu, isto é, não se comporta objetivamente, seu ser não é objetivo. Um ser não objetivo é um não ser (Unwesen). [MARX: MEF:CXXI/578].

Com essa citação nosso autor explicita sua primeira consideração importante acerca da posição do problema no interior do pensamento marxiano:

Marx já aqui rejeita toda concepção segundo a qual determinados elementos “últi-mos” do ser teriam ontologicamente uma posição privilegiada em relação aqueles mais complexos, mais compostos, e segundo a qual no caso destes últimos as funções sintéticas do sujeito cognoscente desempenharia certo papel no o que e no como da sua objetividade. [OGS, 579/284]

A segunda observação presente nesta passagem, bem mais óbvia que a primeira, volta-se contra o pensamento kantiano. Como se sabe na gnosiologia formulada por Kant o sujeito ocupa papel de destaque por ser quem cumpre a cada momento a síntese concreta do conhecimento em relação a uma objetividade concreta – a coisa em si é incognossível. A referência ao pensador idealista alemão não se dá por aca-so: Lukács observa o infl uxo de sua fi losofi a no interior do próprio marxismo que, por se encontrar distante da perspectiva ontológica, por vezes se vê às voltas com o kantismo – e outras vertentes da fi losofi a – no intuito de complementar supostas lacunas presentes no pensamento de Marx.

A primeira observação exposta nesta mesma citação, não tão clara quanto a que analisamos acima, somente será devidamente tratada e elucidada linhas a frente. As-sociada à citação do próprio Marx, Lukács põe em destaque a categoria da ‘relação’, que aparece já logo de saída determinada como um atributo imprescindível de todo

1. A temática da construção de uma teoria das categorias, como veremos mais a frente, encontra-se posta pelo próprio pensador húngaro, que em uma passagem do capítulo aqui analisado refere diretamente o problema (cf. OGS I, 585/OSS I, 291).

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ente objetivo, cujo corolário é a objetividade implica ser objeto para outrem. Esta de-terminação terá grande relevância na ontologia do pensador húngaro. A relação não aparece apenas como um detalhe fortuito, casual – em suma como mero acidente –, muito menos é um processo de síntese promovida pelo sujeito do conhecimento, mas constitui uma efetividade e um atributo ineliminável da constituição ontológica de todo ser. Por via de conseqüências, deste lineamento inicial veremos se estabele-cer de uma forma mais ampla páginas à frente a idéia de que os elementos, categorias e propriedades do ser aparecem sempre de forma imbricada, suas categorias guar-dam sempre uma posição específi ca no interior de um complexo, em suma estão em uma constante interação e inter-relação no interior do todo que compõe o ser. Não apenas esta determinação aparece como tese central da ontologia lukácsiana, mas o seu desdobramento desemboca na demonstração de pelo menos mais três elemen-tos centrais da ontologia: a idéia de prioridade ontológica diretamente associada à noção de momento preponderante, de abstração isoladora e da idéia da interpene-tração entre a esfera econômica e as esferas extra-econômicas. É a elucidação destes princípios o objetivo principal da análise que faremos daqui em diante.

Para determinar a peculiaridade inovadora do método marxiano nosso autor nos remete às páginas dos Grundrisse, onde se encontra de uma maneira mais clara e consolidada a contraposição marxiana à vertente gnosiológica. A discussão sobre o método que se reporta aos Grundrisse reforça a ênfase já presente nos textos dos Manuscritos Econômicos-fi losófi cos onde é posto em destaque a importância que a cate-goria da totalidade – e por via de conseqüências da noção de complexo – assume no interior das refl exões do pensador alemão.

Quando se afi rma que a objetividade é uma propriedade primário-ontológica de todo ente, afi rma-se em conseqüência que o ente originário é sempre uma tota-lidade dinâmica, uma unidade de complexidade e processualidade. [OGS, 578/OSS, 284]

O ponto de partida da exposição marxiana da questão principia por uma refe-rência direta à totalidade. No entanto partir da totalidade não signifi ca assumir uma postura empirista, que associa de forma direta a verdade com esta experimentação direta do mundo. Pelo contrário, seguindo os indicativos dados pelo próprio pensa-dor alemão, Lukács afi rma que a totalidade tem o caráter de um “princípio generalís-simo” [Allerallgemeinste Prinzip] não conferindo de modo algum, de maneira imediata, sua essência e sua constituição, muito menos é capaz de prescrever o modo mais adequado para conhecê-la. Esta perspectiva se faz bem clara em Marx, quando este inicia toda sua análise destacando que de um modo imediato esta totalidade aparece como a população, que constitui “o real e o concreto”. Contudo, assim considerada

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temos apenas uma representação caótica do todo, atingimos apenas meras represen-tações que não nos fornecem a riqueza de determinações e relações que enforma o conjunto efetivo de nexos da realidade em questão. Analisando esta passagem, Lukács apresenta o problema nos seguintes termos:

Se nós tomarmos a própria totalidade imediatamente dada ou seus complexos parciais, o conhecimento imediatamente direto sobre a realidade imediatamente dada encontra sempre meras representações. Estas portanto devem ser melhor determinadas com abstrações isoladoras. A economia como ciência no início de-sembocou de fato nesta estrada; andou sempre mais adiante pela estrada da abs-tração, até que nasceu a verdadeira ciência econômica, que parte dos elementos abstratos lentamente adquiridos para “empreender de novo a viagem de volta”, até chegar novamente à população “mas desta vez não como uma representação caótica do todo, ao contrário como uma rica totalidade de determinações e rela-ções”. [OGS, 580/OSS, 285]

Com suas próprias palavras Lukács reproduz as idéias desenvolvidas por Marx em sua Introdução. O que se faz notar aqui é o fato de que Lukács substitui todo um conjunto de expressões utilizadas por Marx, tais como “determinações mais preci-sas” [nähere Bestimmung], “conceitos simples” [einfachere Begrife], “abstrações rarefeitas” [dünnere Abstrakta]2, etc., sintetizando o procedimento da investigação das categorias econômicas por meio da expressão por ele mesmo cunhada: isolierende Abstraktio-nen. Não se trata aqui de destacar uma simples peculiaridade no uso de expressões, mas demonstrar que a opção do pensador húngaro já indica os caminhos do seu entendimento acerca das determinações tratadas por Marx neste texto. Esta noção ocupará um lugar central nas idéias que serão desenvolvidas a partir deste ponto da sua análise3. O que Lukács parece pretender fi xar com este termo é a resultante fi nal daquilo que em Marx, por meio das expressões acima citadas, aparece como o cami-nho da construção dos “conceitos simples”, instante inicial da investigação em que se identifi ca na realidade componentes específi cos do complexo em questão. Não seria exagero dizer que a preocupação do pensador húngaro é determinar em termos precisos o caráter das abstrações no interior do pensamento marxiano, preocupação esta que vai desde a consideração do papel das abstrações no trabalho de investiga-

2. “Finge ich also mit der Bevölkerung an, so wäre das eine chaotische Vorstellung des Ganzen, und durch nähere Bestimmung würde ich analytisch immer mehr auf einfachere Begriffe kommen; von dem vorgestell-ten Konkreten auf immer dünnere Abstrakta, bis ich bei den einfachsten Bestimmungen angelangt wäre.” (“Se portanto começar pela população, então eu terei uma representação caótica do todo e, por meio de uma determinação mais precisa, pela análise, alcançarei conceitos sempre mais e mais simples; do concreto fi gurado eu passarei a abstrações sempre mais rarefeitas, até chegar às determinações mais simples”.) [MARX, Karl. Grundrisse der Kritik der politischen Ökonomie. Berlin: Dietz Verlag, 1953, p. 21]3. Cremos que é precisamente neste ponto que a análise de Lukács toma um rumo diferente daquele que será assumido na obra de Chasin. Os elementos suprimidos aqui por Lukács são precisamente os indicativos centrais do procedimento investigativo.

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ção das categorias da economia até o modo peculiar da exposição destas no interior das obras de Marx – particularmente em O Capital.

O ponto de partida de suas refl exões tem por princípio a seguinte determina-ção:

Apenas não devemos esquecer que tais ‘elementos’ na sua forma generalizada, obtida por via de abstrações, são produtos do pensamento, do conhecimento. Ontologicamente são também complexos processuais do ser, mas de constituição mais simples e portanto mais fácil de apreender conceitualmente se tomarmos como comparação os complexos totais dos quais são ‘elementos’. [OGS I, 581/OSS I, 286]

Há aqui a clara diferenciação entre a objetividade e o modo pela qual esta é apropriada pela consciência. O caminho percorrido pelo conhecimento, por meio das abstrações, “é tão somente o caminho do conhecimento e não aquele da própria realidade. Este último é feito de concretas e reais interações entre tais ‘elementos’ no interior do quadro da graduada totalidade que opera ativa ou passivamente” [OGS, 580/OSS I, 286]. Mantendo-se fi el ao texto de Marx, Lukács cita a passagem em que o pensador alemão se reporta diretamente a Hegel criticando-o por confundir o caminho percorrido pelo pensamento para a apreensão da realidade com a própria constituição e movimento da realidade. O ponto chave de sua afi rmação é a ênfase no fato de “que é a própria essência da totalidade econômica que prescreve a estrada para conhecê-la” [OGS, 580/OSS, 285].

Portanto, levando em consideração os caminhos que devem ser percorridos pela abstração, em um primeiro momento cabe isolar conceitualmente, pela via da abstra-ção, elementos da realidade, sem que neste instante inicial sejam estabelecidas as de-vidas inter-relações e interações concretas existentes entre eles. Este primeiro passo constitui aquilo que será designado como experimento ideal. Este procedimento, em suas linhas mais gerais, constituiu em grande medida no trabalho dos grandes nomes da economia política, como por exemplo David Ricardo. E de fato, os precursores da economia política estabeleceram grandes conquistas neste campo. Faltou a eles, no entanto, empreender o “caminho de retorno” – tal como salientado por Marx em seu texto – que leva das abstrações simples à representação dos nexos reais e efetivos da realidade, que passa, após trilhar todo este caminho, a fi gurar no plano da ideação como o concreto pensado.

No que tange ao processo investigativo marxiano propriamente dito Lukács delineará os passos decisivos que o diferenciam do método da economia política:

É portanto da máxima importância esclarecer com a maior exatidão possível, em parte por meio de observações empíricas, em parte por meio de experimentos ideais abstrativos, o tipo de sua funcionalidade conforme a determinadas leis, isto

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é, ver com clareza como eles são em-si, como entram em ação – em sua pureza – suas forças internas, quais inter-relações surgem entre esses e outros ‘elementos’ quando são excluídas as interferências externas. É claro portanto que o método da economia política por Marx designado como “viagem de retorno” pressupõe uma permanente colaboração entre o modo de trabalhar histórico (genético) e o modo de trabalhar abstrato-sistematizante, que esclarece as leis e as tendências. A inter-relação orgânica e portanto fecunda destes dois caminhos do conhecimento é todavia possível apenas sobre a base de uma permanente crítica ontológica de todo passo, já que ambos os métodos aspiram compreender por aspectos diferen-tes o mesmo complexo de realidade4. A elaboração puramente ideal pode, deste modo, cindir aquilo que no plano do ser é ligado e atribuir a suas partes uma falsa autonomia, indiferentemente de ser uma elaboração empírico-histórica ou abstrativa-teórica. Somente uma ininterrupta e atenta crítica ontológica daquilo que vem conhecido como fato ou conexão, como processo ou lei, pode restaurar idealmente a verdadeira inteligência dos fenômenos. (OGS I, 581/OSS I, 286)

A resolução metodológica marxiana consiste em uma síntese de novo tipo, que une em seu procedimento tanto o experimento ideal abstrativo, quanto a observação empírica. A observação empírica difere da experimentação ideal por se dirigir princi-palmente ao problema da gênese histórica dos complexos. Esta funciona em grande medida como reguladora do procedimento abstrato-sistematizante, impedindo este último de estabelecer falsas conexões, ou seja, de reconstruir por critérios meramen-te lógicos a totalidade, em detrimento das efetivas conexões que de fato constituem a realidade. Por outro lado, a simples observação empírica não seria capaz por si mesma de estabelecer as leis e tendências mais gerais da realidade econômica. A mul-tiplicidade de determinações que constitui o emaranhado da realidade impede que se vislumbre na forma aparente estas tendências e leis, sendo necessário, portanto, o trabalho de isolar abstratamente complexos parciais, de modo a fazê-los operar, de uma forma pura, sem as interferências que obscurecem a essência de suas relações. Junto a estas considerações fi ca patente o rechaço do idealismo pela denúncia dos perigos contidos em seus procedimentos investigativos, assim como a recusa do em-pirismo. Ambos os procedimentos, embora de natureza fundamentalmente distinta, comportam riscos pois tendem a atribuir falsas autonomias a partes do todo, fazen-do desaparecer a verdadeira conexão histórica do processo em seu conjunto.

Em Marx esta possibilidade seria evitada. Seu pensamento se ergue sobre o prin-cípio de que a realidade é acima de tudo um complexo de complexos. Todo elemento se encontra nela posto em uma ineliminável interação e inter-relação com os demais, cabendo pois ao pensamento apreender idealmente os efetivos nexos dos elementos do complexo. Não se trata da construção de um sistema econômico nos moldes clás-

4. Nesta passagem o tradutor italiano confere um ar excessivamente fi gurativo ao texto: “miram por angulatu-ras diversas compreender o mesmo complexo de realidade”.

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sicos, mas de uma descrição analítica da dinâmica efetiva dos processos da realidade. Talvez pudéssemos falar neste contexto de uma ontologia da esfera econômica.

Expresso por meios destas determinações gerais as postulações lukácsianas em torno do método de Marx aparentam ser algo dúbio – não é nem um nem o outro procedimento, mas os dois ao mesmo tempo – e difícil de precisar, porém se con-ciliarmos estas palavras com as análises que o autor fará da forma expositiva do livro III de O Capital, tais considerações tornam-se mais claras. Convém, portanto, antecipar as conclusões de Lukács; isto não implicará de forma nenhuma desviar da construção de seu raciocínio, apenas pretende tornar mais claro aquilo que em seu texto somente fi gurará de maneira defi nitiva ao fi nal da seção. Se observarmos o curso dos próprios acontecimentos históricos, veremos que as fi guras do capital comercial, monetário, e a própria renda da terra, são formas de relações econômicas que antecedem ao capital industrial – que se torna na sociedade capitalista fi gura central preponderante das tendências econômicas. Porém, esta factualidade histórica não confere a reta compreensão sobre suas funções no interior deste processo de produção. O que nos coloca diante do seguinte problema: a observação empírica, histórica neste caso, não revela a verdadeira natureza dos nexos destes complexos parciais na efetividade da sociabilidade vigente. Expondo a natureza deste problema, Lukács assim se pronuncia:

E essa a razão pela qual o Livro III contém os mais amplos e detalhados excursos sobre a história dos complexos econômicos que surgem novamente em seu con-texto. Sem isso, seria de todo impossível integrar o capital comercial e monetário, assim como a renda da terra, no quadro concreto do conjunto da economia. A gênese histórica deles é o pressuposto para compreender teoricamente sua atual operatividade no sistema de uma produção autenticamente social, ainda que — ou precisamente porque — essa dedução histórica não seja capaz de explicar di-retamente o papel que eles assumiram fi nalmente nesse sistema. Com efeito, esse papel depende da subordinação deles à produção industrial; antes do surgimento dessa última, capital comercial e monetário e renda fundiária haviam conhecido por longo tempo uma existência autônoma; e, nessa autonomia, apesar de certa conservação de suas peculiaridades, haviam desempenhado funções econômico-sociais inteiramente diversas. [OGS I, 603/310].

Trata-se de falar de complexos econômicos específi cos que são refundados pela lógica do novo que determina de maneira decisiva estes mesmos complexos ante-riormente existentes. Somente por meio da abstração isoladora, que põe como cen-tro da refl exão as categorias decisivas da forma vigente do ordenamento social, po-de-se localizar com rigor o conjunto de tendências e leis, que moldam, remodelam,

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conferem novas funções, às categorias pré-existentes. Signifi ca dizer que, em sua essência e em sua constituição, estes elementos outrora autônomos e independentes, transformam-se, adquirindo novas funções e nexos no interior de uma totalidade que os enforma de acordo com novas necessidades.

Basta recordar aqui a exposição feita por Marx em As teorias da mais valia, onde demonstra como as formas do capital produtor de juros, do capital comercial, da renda, são reconfi gurados, de forma a continuarem sua existência de maneira subor-dinada à nova ordem estabelecida pelo capital.

Sendo a forma comercial e a dos juros mais antiga que a produção capitalista, o capital industrial, que é a forma fundamental da relação capitalista – as outras formas apenas aparecem como derivadas desta ou como secundárias: derivadas, como o capital produtor de juros; secundárias, como o capital investido em uma função particular (que faz parte do seu processo de circulação), como o capital comercial –, não apenas domina a sociedade burguesa, deve submeter a si no seu processo de formação esta forma e transformar em forma derivada ou em par-ticular função de si mesmo. Estas formas mais antigas, ele as encontra na época de sua formação de sua origem. As encontra como pressupostos, mas não como pressupostos por ele estabelecidos, não como formas do seu próprio processo vi-tal. As encontra como originariamente encontra a mercadoria, mas não como seu próprio produto; como encontra a circulação do dinheiro, mas não como um mo-mento da sua própria reprodução. Assim que a produção capitalista se desenvolve em toda a amplitude de sua forma, se torna o modo de produção dominante, o capital produtor de juros é dominado pelo capital industrial, e o capital comercial não é mais que uma fi gura do próprio capital industrial derivado do processo de circulação. [MARX: Mehrwert III, 460/491]

Lukács poderia também neste contexto se valer de passagens do texto que ele tinha em mãos, ou seja do próprio Rohentwurf – que são diretamente citados e anali-sados por J. Chasin em seu texto – onde Marx afi rma de maneira decisiva:

Come in generale per ogni scienza storica e sociale, nell’ordinare le categorie eco-nomiche si deve sempre tener fermo che, come nella realtà così nella mente, il so-ggetto — qui la moderna società borghese — è già dato, e che le categorie perciò esprimono modi d’essere, determinazioni d’esistenza, spesso soltanto singoli lati di questa determinata società, di questo soggetto, e che pertanto anche dal punto di vista scientifi co essa non comincia affatto nel momento in cui se ne comincia a parlare come tale. Questo fatto deve essere tenuto ben presente, perché offre elementi decisivi per la ripartizione della materia. Per esempio, niente sembra più naturale che cominciare con la rendita fondiaria, con la proprietà fondiaria, dal momento che essa è legata alla terra, alla fonte di ogni produzione e di ogni esis-tenza, e alla prima forma di produzione di tutte le società in qualche modo con-solidate, e cioè all’agricoltura. E tuttavia nulla sarebbe più errato. In tutte le forme di società vi è una determinata produzione che decide del rango e dell’infl uenza di tutte lê altre, e i cui rapporti decidono perciò del rango e dell’infl uenza di tutti gli altri. È uma illumina-

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zione generale in cui tutti gli altri colori sono immersi e che li modifi ca nella loro Particolarità. È una atmosfera, particolare che determina il peso specifi co di tutto quanto essa avvolge. [Marx: Rohentwurf, ed. Italiana, p. 39]

Embora a gama de problemas tratados por Marx seja bem mais ampla que a questão a que ora nos dedicamos, nela vemos fi gurar de forma clara o entendimento marxiano da gênese e transformação histórica das categorias. O trabalho que aqui tivemos de acrescentar elementos que não são citados pelo próprio autor, tem o ob-jetivo de destacar que a tese aqui proposta encontra respaldo ao longo de uma série de textos do pensador alemão.

O caráter destas determinações que constituem a base dos lineamentos onto-lógicos de Marx confere, inclusive, à própria abstração um aspecto completamente outro daqueles que encontramos nos sistemas econômicos formados nos moldes típicos da já mencionada cientifi cidade burguesa – que se estrutura sob a infl uência decisiva dos postulados gnosiológicos. A abstração isoladora não é de forma alguma um conceito, no sentido de uma simples formulação ideal no interior de um sistema que representa dados nexos passíveis de serem demonstrados na realidade. As cate-gorias são para Marx, e Lukács insistirá nisto diversas vezes, “formas do ser, deter-minações da existência”. Signifi ca dizer que a abstração não é uma construção ideal do pensamento na busca da compreensão da realidade, mas é parte constitutiva da própria realidade. A abstração é factível, algo realmente, concretamente, efetivamen-te posta no plano da materialidade; é atributo do próprio ser. É também nas páginas de O capital que Lukács localizará os elementos necessários para demonstrar sua tese, particularmente no Livro II, quando onde Marx trata do problema da reprodução simples. O próprio Marx se pronuncia dando destaque ao caráter da abstração que ele realiza neste momento:

Die einfache Reproduktion auf gleichbleibender Stufenleiter erscheint insoweit als eine Abstraktion, als einerseits auf kapitalistischer Basis Abwesenheit aller Akkumulation oder Reproduktion auf erweiterter Stufenleiter eine befremdliche Annahme ist, andrerseits die Verhältnisse, worin produziert wird, nicht absolut gleichbleiben (und dies ist vorausgesetzt) in verschiednen Jahren. Die Voraus-setzung ist, daß ein gesellschaftliches Kapital von gegebnem Wert, wie im vo-rigen Jahr so in diesem, dieselbe Masse Warenwerte wieder liefert und dasselbe Quantum Bedürfnisse befriedigt, obgleich die Formen der Waren sich im Re-produktionsprozeß ändern mögen. Indes, soweit Akkumulation stattfi ndet, bildet

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die einfache Reproduktion stets einen Teil derselben, kann also für sich betrach-tet werden, und ist ein realer Faktor der Akkumulation.5 [MARX: Kapital, II, p. 393-4]

Os elementos que fi rmam a tese lukácsiana da abstração isoladora parecem transparecer aqui com o máximo vigor. O que se elimina neste momento na abstra-ção analítica empreendida por Marx são os aspectos quantitativos da relação posta em causa, assim como determinadas funções do complexo da reprodução no in-terior do processo capitalista. Abstração não é neste contexto, artifi cialização do problema, e neste sentido a criação de uma forma inexistente, meramente fi gurativa e antagônica ao efetivo, mas o isolamento parcial de um complexo de funções e di-nâmicas efetivamente existentes. As palavras de Marx são reveladoras neste sentido: “Entretanto, quando tem lugar a acumulação, a reprodução simples constitui sempre uma parte desta, pode portanto ser considerada por si e é um fator real da acumula-ção” [Idem, 393]. Vale lembrar que este isolamento é tão somente um momento da análise, algo provisório uma vez que logo na seqüência aqueles elementos postos de lado na análise deste complexo parcial são reintroduzidos para pensar a reprodução em sua forma ampliada.

A isto Lukács acrescenta outra dimensão importante que abstração possui no pensamento de Marx. Trata-se da categoria trabalho abstrato, que nada mais é que o trabalho indiferenciado, uma abstração que suprime as diferenças entre as diversas atividades laborativas, manifestando-se na realidade apenas como o tempo social-mente necessário para a produção de mercadorias. Esta abstração é uma operação real – uma objetividade sensível supra-sensível, se quisermos nos valer dos termos de Marx – que existe efetivamente no plano das inter-relações estabelecidas pelos indivíduos no seio da sociabilidade do capital.

Estes dois princípios fundamentais até aqui esboçados confl uem diretamente a determinação decisiva do procedimento marxiano, já por nós anunciada como a noção da realidade como complexos de complexos:

[...] jamais se deve reduzir o contraste entre o “elemento” e a totalidade à simples antítese entre aquilo que é em si simples e aquilo que é em si composto. As ca-tegorias gerais do todo e das suas partes ganham aqui uma complicação ulterior, sem no entanto virem a ser suprimidas como relação fundamental: cada “elemen-

5. La riproduzione semplice su scala invariata appare come un’astrazione in quanto, da un lato, su base capi-talistica, l’assenza di ogni accumulazione o riproduzione su scala allargata è un’ipotesi improbabile, dall’altro, le condizioni nelle quali si produce non rimangono perfettamente invariate (e questo è presupposto) in anni differenti. Il presupposto è che un capitale sociale di valore dato fornisca tanto nell’anno precedente che nel presente nuovamente la stessa massa di valori-merce e soddisfi la stessa quantità di bisogni sebbene possano mutarsi le forme delle merci nel processo di riproduzione. Ma, quando si svolge l’accumulazione, la ripro-duzione semplice ne costituisce sempre una parte, può essere quindi considerata a sé ed è un fattore reale dell’accumulazione.

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to”, cada parte, é também um todo, o “elemento” é sempre um complexo com propriedades concretas, qualitativamente específi cas, um complexo de forças e relações diversas que atuam em conjunto. Tal complexidade, porém, não elimina o caráter de “elemento”: as categorias autênticas da economia são – propriamente na sua complicada, processual complexidade – efetivamente – cada uma a seu modo, cada uma em seu posto – algo “último”, ulteriormente analisável, mas não ulteriormente decomposto na realidade. [OGS I, 582/OSS, 287]

Em suma, retomando os elementos até aqui apresentados, vemos que ser objeti-vo implica em ser algo para outro, signifi ca afi rmar que a objetividade tem por cen-tro a categoria da relação, esta constitui a base de toda a argumentação que estabe-lece as diferenças das abstrações em Marx e nos outros pensadores. Por meio desta categoria, parte-se de uma determinação fundamental, culminando como corolário na afi rmação da objetividade como um complexo, pela qual, se deve inclusive con-ceber os elementos constitutivos deste como complexo dinâmico com propriedades concretas. Precisamente porque os elementos são totalidades parciais, por estarem sempre entrelaçados com outras categorias do complexo de que eles fazem parte, deve-se destacar a distinção do papel das abstrações no interior do pensamento mar-xiano: o experimento ideal extrai por via das abstrações os momentos mais decisivos de um complexo parcial, pensa estes momentos em sua forma pura, por meio das inter-relações categorias diretamente vinculadas à categoria posta como centro da refl exão, sem no entanto perder de vista a totalidade do complexo do ser social, que é o objetivo último a que se pretende chegar, ou seja: a reprodução ideal da riqueza de determinações da totalidade – que corresponde ao mencionado, porém ainda não detalhado por nós, caminho de retorno. Em outras palavras, estes lineamentos iniciais acerca da doutrina das categorias em Marx formam a base para a explicitação das diferenças das abstrações no interior de seu pensamento.

Esta idéia culminará, logo à frente, na idéia da prioridade ontológica [ontologische Priorität], que reinvidica igualmente como centro fundante a categoria da relação.

Esta relação contém pois não apenas a ordenação lateral [paritária - Nebenordnung], mas também a sobre-ordenação [Über-] e a subordinação [Unterordnung]. [OGS I, 582/OSS I, 287]6

A relação existente entre determinadas categorias ou complexos de categorias envolve a idéia de uma anterioridade necessária de determinados elementos que via-biliza a existência de outros complexos e de outras categorias. A noção de prioridade

6. Tanto a tradução italiana quanto a edição brasileira suprimem o termo Überordenung. Temos que reconhecer a difi culdade de vertê-lo para as respectivas línguas, dada a ausência de um correspondente direto, porém a sobre-ordenação (neologismo por nós utilizado) é um elemento decisivo para o pensamento de Lukács, pois corresponde diretamente às noções de prioridade ontológica [ontologische Priorität] e de momento preponderante [über-greifende Moment].

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ontológica é a afi rmação de que uma categoria “pode existir sem a outra, enquan-to que o contrário é ontologicamente impossível” [OGS I, 582/OSS I, 288]. Esta determinação é, segundo nosso autor, similar à tese materialista segundo a qual o “ser tem uma prioridade ontológica sobre a consciência”, uma vez que esta última somente pode existir sob o fundamento de algo que é. Ampliando o campo em que este princípio ontológico fundamental se faz presente, Lukács nos remete às palavras de Engels, que em seu discurso pronunciado no velório de Marx, lembra que antes de os homens se ocuparem com política, arte, religião, etc. devem comer, beber, etc. As palavras de Engels endossam a idéia da prioridade ontológica das categorias da produção e reprodução da vida em relação às outras funções igualmente existentes no âmbito do ser social.

No entanto é no próprio Marx que serão buscadas as bases para a sustentação e demonstração da razoabilidade do problema posto em pauta. Quando Marx con-sidera o “conjunto das relações de produção” como a “base real” para o “conjunto das formas de consciência” tem em mente não a afi rmação de um determinismo, mas a demonstração da prioridade ontológica do primeiro sobre o segundo, ou seja, o conjunto das relações de produção forma a base sobre a qual se desdobra o pro-cesso social, político e espiritual dos homens. Este primeiro constitui, neste sentido, o pressuposto para o desdobramento das formas de consciência. Vale lembrar as próprias palavras de Marx, que fornecem indícios claros sobre o problema aqui tra-tado, quando afi rma que “não é a consciência do homem que determina o seu ser, mas o seu ser social que determina sua consciência”. Vê-se claramente como que por meio destas palavras o pensador alemão não apenas retira da consciência o papel de prioridade ontológica, como também não se inclina a afi rmar a consciência como um produto imediato da estrutura econômica, mas como algo que se forma sob a base dos processos de interação e inter-relação que os homens estabelecem entre si e com a natureza. Destes argumentos se originam uma tese interessantíssima de Lukács: a acusação da existência de um economicismo no interior do pensamento de Marx é fruto quase sempre da incapacidade de perceber o problema da priori-dade ontológica e – como veremos mais à frente – do momento preponderante. O marxismo vulgar sucumbiu à idéia do determinismo da esfera econômica sobre as demais exatamente por não ter percebido a discussão que Marx realiza em torno da produção e reprodução da vida como a prioridade ontológica no âmbito do ser so-cial. Esta prioridade não implica um determinismo desta sobre a vida espiritual dos homens, mas uma anterioridade, um pressuposto que fornece o campo de possíveis desdobramentos “do mundo das formas de consciência”. A dimensão do problema é bem mais complexa do que a tacanha e estreita afi rmação de uma diretiva imediata

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e necessária da economia sobre as outras esferas.Porém antes de encerramos nossos comentários acerca da noção de prioridade

ontológica, vale lembrar que o mesmo tema é retomado em um outro contexto, quando nosso autor acusa sua presença na construção do livro III de O capital. A demonstração que ali encontramos redimensiona o âmbito e a forma de atuação deste princípio, quando não o vincula mais a análise à determinação da interação das esferas distintas do ser, não o vinculando também ao problema da relação da esfera econômica com as outras esferas da prática social, mas demonstra no interior da própria da sociabilidade do capital já constituída como que nas relações econômicas a sobre-ordenação [Überordnung], a subordinação [Unterordnung] e o ordenamento pa-ritário [Nebenordnung] se fazem presentes.

Somente na terceira parte é que o capital comercial e monetário (assim como a renda da terra) adquirem um papel concreto na repartição do lucro. A prioridade ontológica da mais-valia, que domina em absoluto, como vimos, revela-se tam-bém aqui ineliminável, em última instância, na medida em que se trata do único ponto onde surge valor novo; agora, porém, a mais-valia transformada em lucro é dividida entre todos os representantes economicamente necessários, mesmo que não criem valor novo, à divisão social do trabalho; e a análise desse processo, que não podemos examinar aqui em seus detalhes, constitui o aspecto essencial na terceira parte. [OGS /309]

A categoria da mais-valia constitui uma prioridade ontológica, na medida em que é pressuposto necessário para as categorias do lucro, lucro-médio – acrescente-se a estas o juro e a própria renda da terra. È o único âmbito em que surge um novo valor, as outras fi guras do capital tem sua dinâmica determinada pela distribuição entre estas ramifi cações deste novo valor que surge a partir do capital industrial. Sob a forma do lucro e da taxa media de lucro a mais valia é repartida entre estas fi guras distintas. Estas, portanto, existem na sociabilidade do capital assentadas sobre esta base. A autonomia destas últimas é sempre relativa, uma vez que nesta forma da sociabilidade estas categorias adquirem suas funções e características na condição de subordinadas à mais-valia – que é condição sine qua non para o seu persistir como ins-tância operativa na sociabilidade do capital. Palavras complicadas estas últimas, mas que se fazem necessárias, pois como vimos que o juro pré-existe ao capital indus-trial, mas tem suas funções e diretrizes completamente reconfi guradas e redefi nidas com o advento desta forma de sociabilidade. Em suma a prioridade ontológica atua neste caso no interior do ordenamento societário do capital, tem uma validade não universal, mas histórica, pois está posta como necessária apenas no contexto desta sociabilidade e permanecerá vigente enquanto este persistir. Toda esta discussão que conclui pela afi rmação da prioridade ontológica das referidas categorias econômi-

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cas – valor e mais-valia – vincula-se de um modo direto ao problema do momento preponderante, pois a anterioridade que se realiza nesta situação é a da centralidade de uma categoria que se põe como a articuladora decisiva dos nexos existentes, de uma categoria hierarquicamente decisiva no ordenamento e diretriz assumida pelo complexo em questão. Retomaremos esta discussão mais a frente.

Não podemos perder de vista que nas páginas iniciais de sua elaboração Lukács está apenas delineando aspectos gerais da doutrina das categorias, somente mais à frente quando se dedica a analisar diretamente a obra marxiana estes aspectos são apresentados operando diretamente sob a forma da relação real das categorias da esfera econômica. Este é o motivo que nos leva a transitar de um modo mais livre sobre as páginas do texto de Lukács, objetivando vincular deste o início suas con-siderações mais gerais sobre a ontologia, com a demonstração mais clara da forma de sua realização no pensamento de Marx. A obra que ganha atenção especial, na demonstração dos princípios fundamentais da ontologia, é O Capital. Lukács não negligencia os textos anteriores – principalmente os manuscritos que constituem os materiais preparatórios para a construção de sua obra principal – porém considera que

O chamado Rohentwurf, ainda que pleno de instrutivas análises sobre complexos e conexões não analisadas em O capital, todavia na sua composição completa ainda não possui o modo de exposição novo, metodologicamente claro e ontologica-mente fundamental, da obra prima conclusiva. [OGS I, 584/OSS I, 289]

Talvez o que escapa a Lukács neste momento é a percepção de que todo o tra-balho ali realizado fornece fortes indícios do procedimento investigativo de Marx – ou se preferirmos usar os termos cunhados pelo próprio Lukács, é o trabalho de experimentação ideal no curso de sua construção formativa. Ao que tudo indica os propósitos do pensador húngaro é evidenciar sobretudo o problema do método expositivo deixando de lado o problema a investigação propriamente dito. Muito embora não devamos nos esquecer que os caminhos seguidos pela investigação se encontram de certo modo esboçados em toda discussão preliminar sobre os prin-cípios ontológicos tidos como fundamentais para nortear a própria investigação; suas noções de elemento como complexo parcial, a idéia de relação, de prioridade ontológica, etc. orientam de saída, sob a forma de uma diretiva geral, não determi-nativa, aqueles princípios mais gerais constitutivos de todo ser. Em outros termos, a identifi cação destes princípios ao longo do próprio procedimento investigativo apontam a direção pela qual o pensamento pode atingir aqueles complexos mais prioritários que determinam de modo decisivo a dinâmica de um dado complexo de ser. Contudo, convém ressaltar que, se estes elementos indicam o problema, o fazem

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de uma maneira evidentemente indireta.Em O Capital Marx já está de posse da riqueza de determinações do concreto,

portanto o elemento abstraído neste momento e tratado de forma pura, mais preci-samente a abstração isoladora que é identifi cada à teoria do valor, expressa a forma necessária de exposição do complexo em questão, não coincidindo de modo algum com a descrição do processo investigativo que permite a Marx localizar nesta catego-ria o ponto de partida. O valor é o centro por ser o pressuposto de todos os outros elementos, a conexão que vincula os vários elementos da dinâmica econômica e extra-econômica.

Precisamente em vista disso um pouco mais à frente, ele acrescenta que o valor é

uma abstração sui generis: a sua base é a efetiva lei fundamental da circulação social das mercadorias, uma lei que em última instância se afi rma sempre na realidade econômica, não obstante todas as oscilações dos preços, em uma totalidade que funciona normalmente. Por isso esta não opera como uma abstração quando se trata de esclarecer seja os nexos econômicos puros, seja as suas inter-relações com os fatos e tendências extra-econômicos do ser social; por isso, toda a primeira parte do livro O Capital se apresenta como uma reprodução da realidade, e não como um experimento ideal abstrato. A razão reside, mais uma vez, no caráter ontológico desta abstração: isso signifi ca, nem mais nem menos, que ao isolá-la se pôs em evidência a lei fundamental da circulação das mercadorias, a ela foi permi-tido agir sem interferências ou obstáculos, sem que fosse desviada ou modifi cada por outras relações estruturais e por outros processos, que em uma sociedade são, ao contrário, necessariamente operantes. Por isto, em tal redução abstrativa ao dado essencialíssimo todos os momentos – econômicos e extra-econômicos – aparecem sem deformações; enquanto que uma abstração não fundada ontolo-gicamente ou dirigida a aspectos periféricos leva sempre a deformar as categorias decisivas. (I, 302)

O primeiro tema aqui presente – a abstração isoladora – já se encontra esboçado em nossas considerações anteriores, o que merece destaque portanto são os dois outros lineamentos ontológicos mencionados neste contexto: momento preponde-rante e a interpenetração entre a esfera econômica e extra-econômica..

Lukács lança mão do problema da relação entre econômico e extra-econômico para estabelecer não apenas a discussão em torno do momento preponderante, mas inclusive a discussão sobre a centralidade da categoria do valor. Logo de início nosso autor fala abertamente da importância deste problema – e isto é decisivo para os nossos propósitos – para a doutrina das categorias: “Este mútuo compenetrar-se do econômico e do extra-econômico no ser social incide a fundo na própria doutrina das categorias [Kategorienlehre]” [OGS I, 585/OSS I, 291]. Frase chave para o entendi-mento das idéias que estão sendo desenvolvidas nesta seção. O que Lukács procura

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fundar é a interpenetração e inter-relação irrevogável das categorias econômicas e extra-econômicas sob a base de uma categoria que unifi ca e intercambia estes dois pólos distintos. Em síntese, pelo menos duas conseqüências importantes decorrem desta afi rmação: 1) a discussão sobre a importância do problema da doutrina das categorias; e 2) a determinação da continuidade e interpenetração das categorias que compõem esferas distintas do ser social, como lineamento decisivo para a conside-ração desta doutrina. Por meio desta segunda conseqüência aqui anunciada Lukács refuta aquelas tendências que separam rigidamente a dimensão material e espiritual do ser do homem. A tomada de posição em relação a este problema atravessa toda a obra de Lukács.

O problema neste instante consiste em saber como e em que sentido a categoria valor aglutina em si estes lineamentos mais fundamentais até aqui descritos. Quanto à determinação do momento preponderante logo se vê, como já argumentado, que esta lei eminentemente econômica incide diretamente na esfera extra-econômica, fundando o campo e a base diretiva dos desdobramentos da luta de classes – além de outra passagem signifi cativa citada já acima que fala sobre “os comportamentos e relações que derivam necessariamente da sua existência”.

Sua argumentação toma por base a especifi cidade da mercadoria força de traba-lho, da qual, segundo Lukács, “necessariamente deriva a presença contínua de mo-mentos extra-econômicos na realização da lei do valor também da compra e venda normal desta mercadoria” [585/291]. Em uma referência direta a O Capital, Lukács procura demonstrar como que a luta entre o “conjunto de capitalistas” e o “conjunto de operários” ilustra o modo como momentos extra-econômicos da cotidianidade dos homens se encontram determinados pela “necessidade ditada pela própria lei do valor”. A demarcação desta interpenetração entre estas duas esferas está, segundo ele, claramente presente na obra marxiana, onde as exposições iniciais sobre a lei do valor, presentes logo no começo dos seus escritos, são posteriormente remetidas ao problema da acumulação primitiva. Esta parte do texto constitui para Lukács o momento em que são apresentadas “uma secular cadeia de atos de força extra-econômicos” que criaram as “condições históricas que fi zeram da força de trabalho aquela mercadoria especifi ca que constitui a base da legalidade teórica da economia do capitalismo” [586/292]. A interpenetração do econômico e do extra-econômico é revelada por Lukács com o exemplo dos meios violentos por meio do qual foram implantadas na Inglaterra as bases da sociedade capitalista. Não apenas a lei econô-mica determinou seu nascedouro, mas um conjunto de medidas não diretamente econômicas foi adotado para que sua implementação fosse viabilizada. O econômi-co e o extra-econômico são esferas distintas que se determinam mutuamente. As leis da economia prescrevem um conjunto de tendências, que só se efetivam porém, na

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medida em que um conjunto de ações não diretamente vinculadas a esta esfera cria as condições para a sua plena realização.

Tudo isto revela tão somente os aspectos iniciais da exposição das categorias econômicas feitas por Marx em sua obra. Os passos posteriores subentendem a dissolução deste preliminar grau de abstração realizada nas páginas iniciais. Basta pensar na própria estrutura da obra marxiana para ver como que do mais abstrato, parte-se em direção à “totalidade concreta”: a exposição da forma pura da lei do va-lor vai culminar, após uma série de mediações importantes, no manuscrito inacabado sobre as classes. Ou para usar as palavras de Lukács:

ali se põem experimentalmente conexões legais puras, homogêneas na sua abstra-ção, e a ação exercitada sobre esta, por vezes até superá-la, por componentes mais amplos, mais vizinhos à realidade, inseridos sucessivamente, para chegar no fi nal na concreta totalidade do ser social. [586/292]

O momento abstrato, eminentemente econômico, culminará na parte fi nal do li-vro, no encontro com os momentos extra-econômicos vigentes na totalidade do ser social: neste caso, a luta de classes – em sua dimensão mais ampla, que compreende não apenas o confl ito entre trabalhadores e capitalistas, mas do capitalista industrial com o capitalista que opera no comércio, no mercado monetário, etc, – como com-posição diretiva da cotidianidade dos homens.

É necessário frisar que esta autêntica demarcação sobre a estrutura da obra de Marx, vale como argumento para a tese da interpenetração do econômico e do extra-econônomico e é usada neste contexto fundamentalmente para demonstrá-la. Retor-nando, portanto, ao problema anunciado mais acima, o momento preponderante, é a delimitação da lei diretiva decisiva que regula a interpenetração entre as duas esferas. A defi nição desta lei aparece atrelada à determinação da categoria central da obra marxiana: o valor.

Não por acaso Marx, em O Capital estudou como primeira categoria, como “ele-mento” primário, o valor. E em particular a estudou no modo pela qual esta se apresenta na sua gênese: de um lado esta gênese revela a história de toda a reali-dade econômica em um resumo geral, em abstrato, reduzida a um só momento decisivo, de outro lado a escolha mostra claramente a sua fecundidade porque esta própria categoria, junto com os comportamentos e relações que derivam necessa-riamente da sua existência, iluminam centralmente aquilo que de mais importante existe na estrutura do ser social, a sociabilidade da produção. [OGS I, 587/OSS I, 293]

Sob estas determinações, merece destaque o fato de que a forma expositiva não é uma escolha aleatória defi nida pela subjetividade do autor, pois o próprio objeto impõe os lineamentos de sua exposição. A dialética – termo alías pouco utilizado

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por Lukács ao longo de sua análise – aparece neste sentido não como uma escolha ou como uma aplicação de método para referenciar a exposição de um problema, mas é a expressão do movimento e da dinâmica interativa e inter-relacional posta pelo próprio complexo em questão. A análise do valor não é pois uma abstração conceitual que introduz os elementos primeiros da economia, mas é o tratamento “puro”, a exposição dos nexos mais decisivos da esfera econômica tomadas de uma forma isolada, sem a interferência de outros elementos presentes na totalidade, que se tomados em consideração neste momento obscureceriam a autenticidade de seus nexos. Abstração aqui é portanto o isolamento de um complexo parcial da realidade. O complexo isolado abstratamente é algo tão existente quanto qualquer outro ele-mento desta realidade, o que ocorre neste momento é que, por meio do experimento ideal, isola-se este complexo parcial para delinear sua dinâmica de forma mais clara e precisa.

Em O Capital podemos observar o declarado caminho das abstrações até a via-gem de retorno ao mais concretamente determinado.

Se nós procurarmos determinar de maneira generalíssima os princípios decisivos de sua estrutura [de O Capital], então nós podemos dizer de forma introdutória que se trata de um grande processo de abstração como ponto de partida, a par-tir do qual, dissolvendo as abstrações metodologicamente inevitáveis, etapa após etapa vem aberta a estrada que conduz o pensamento a apreender a totalidade em sua concretude clara e ricamente articulada. [OGS I, 584/OSS I, 289]

Lukács introduz neste parágrafo a segunda etapa necessária na reta exposição dos complexos de ser. Se em um primeiro momento cumpre isolar determinadas ca-tegorias e complexos decisivos por meio da abstração isoladora, o passo subseqüen-te implica recompor a totalidade, em seu multiverso de articulações e interações. Trata-se de um procedimento que evolve aquilo que o nosso autor denomina como dissolução das abstrações [Abstraktionsaufl ösungen], momento que constitui a conso-lidação do processo do conhecimento, apreensão ideal da riqueza de determinações do concreto. O trabalho de Lukács é, portanto, demonstrar como este movimento aparece nas páginas de O Capital: das abstrações isoladoras até a construção ideal do concreto pensado.

Lukács percorrerá toda a obra de O Capital, demonstrando como a construção marxiana expressa o caminho de retorno ao mais ricamente determinado, além de demonstrar em linhas gerais o caráter das abstrações mais centrais e decisivas dos três livros da obra. O centro de sua argumentação é a tese de que não são simples abstrações, mas momentos reais, realmente existentes, porém que na realidade não se encontram jamais atuando isoladamente, de forma pura.

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A verdadeira construção de O Capital mostra que Marx lida decerto com uma abs-tração, mas evidentemente extraída do mundo real. A composição do livro con-siste, precisamente, em introduzir continuamente novos elementos e tendências ontológicas no mundo reproduzido inicialmente sobre a base dessa abstração; consiste em revelar cientifi camente as novas categorias, tendências e conexões surgidas desse modo, até o momento em que temos diante de nós, e compreen-demos, a totalidade da economia enquanto centro motor primário do ser social. O passo imediatamente sucessivo conduz ao próprio processo de conjunto, visto inicialmente em sua generalidade. 57

As considerações de Lukács encontram respaldo direto no texto de Marx. Nas primeiras linhas que abrem o seu manuscrito que compõe o livro III de O capital, Marx explicita de imediato a estrutura geral de sua obra, destacando a forma da exposição por ele assumida, que vai da explicitação do processo da produção capi-talista tomado em si mesmo e considerado por meio de um isolamento abstrativo, passando por uma intensifi cação gradativa dos diversos níveis de complexidade da economia – por meio da descrição da gênese determinativa de outras categorias e processos (a circulação) –, até a explicitação e exposição da forma pela qual esta eco-nomia aparece na superfície da sociedade, como dado imediatamente perceptível.

Im ersten Buch wurden die Erscheinungen untersucht, die der kapitalistische Pro-duktionsprozeß, für sich genommen, darbietet, als unmittelbarer Produktions-prozeß, bei dem noch von allen sekundären Einwirkungen ihm fremder Umstän-de abgesehn wurde. Aber dieser unmittelbare Produktionsprozeß erschöpft nicht den Lebenslauf des Kapitals. Er wird in der wirklichen Welt ergänzt durch den Zirkulationsprozeß, und dieser bildete den Gegenstand der Untersuchungen des zweiten Buchs. Hier zeigte sich, namentlich im dritten Abschnitt, bei Betrachtung des Zirkulationsprozesses als der Vermittlung des gesellschaftlichen Reprodukti-onsprozesses, daß der kapitalistische Produktionsprozeß, im ganzen betrachtet, Einheit von Produktions- und Zirkulationsprozeß ist. Worum es sich in diesem dritten Buch handelt, kann nicht sein, allgemeine Refl exionen über diese Einheit anzustellen. Es gilt vielmehr, die konkreten Formen aufzufi nden und darzustel-len, welche aus dem Bewegungsprozeß des Kapitals, als Ganzes betrachtet, her-vorwachsen. In ihrer wirklichen Bewegung treten sich die Kapitale in solchen konkreten Formen gegenüber, für die die Gestalt des Kapitals im unmittelbaren Produktionsprozeß, wie seine Gestalt im Zirkulationsprozeß, nur als besondere Momente erscheinen. Die Gestaltungen des Kapitals, wie wir sie in diesem Buch entwickeln, nähern sich also schrittweis der Form, worin sie auf der Oberfl ä-

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che der Gesellschaft, in der Aktion der verschiedenen Kapitale aufeinander, der Konkurrenz, und im gewöhnlichen Bewußtsein der Produktionsagenten selbst auftreten. [Kapital, III, 34]7

A descrição destes três momentos da investigação desenvolvida apresenta em graus diferentes de exposição as peculiaridades que podem ser discriminadas na forma acabada do capital. O primeiro momento, que corresponde ao primeiro livro, destaca analiticamente apenas o processo de produção capitalista abstraindo-se toda e qualquer “infl uência secundária” que são “estranhas” a este momento específi co provisoriamente isolado. Tal procedimento põe em destaque uma faceta específi -ca do capital, o que não esgota evidentemente todas suas nuances e todas as suas possíveis formas ou fi gurações. O livro III tem como objetivo “expor as formas concretas do processo de movimento do capital considerado como um todo”, o que corresponde ao momento fi nal da exposição, onde se conclui pela reprodução no pensamento da totalidade do objeto em questão, em toda sua gama de determi-nações, o que, para usar uma expressão do próprio Marx, pode ser referido como a fase de conclusão na qual se constitui de forma cabal o concreto pensado. Após o desvelamento das principais tendências inerentes à sociabilidade do capital, trata-se portanto de empreender a elucidação da forma fenomênica, isto é, revelar a forma da sua articulação com suas determinantes mais decisivas, assim como estabelecer a gênese daquelas categorias que aparecem de forma mais clara e com maior evidência na superfície dos processos econômicos.

Importa dizer que Lukács após uma longa série de demonstrações sobre a natu-reza das abstrações e as etapas de sua dissolução ao longo da obra de Marx, sintetiza todo o percurso marxiano da maneira que se segue:

Tão-somente a aproximação da concreta constituição do ser social, possibilitada pela compreensão do processo de reprodução em seu conjunto, é que permite a Marx dissolver [Aufl ösung] — em nível ainda mais concreto — as abstrações do

7. “Nel I Libro si sono analizzati i fenomeni che il processo di produzione capitalistico, preso in sé, presenta come processo di produzione immediato, astraendo ancora da tutte le infl uenze secondarie di circostanze ad esso estranee. Ma questo processo di produzione immediato non esaurisce il corso dell’esistenza del capitale. Esso, nel mondo della realtà, viene completato dal mondo della circolazione, il quale ha costituito oggetto del-le indagini del II Libro. Vi si mostrava, specialmente nella III sezione, che tratta del processo della circolazione quale mediazione del processo di riproduzione sociale, che il processo di produzione capitalistico, preso nel suo complesso, è unità di dei processi di produzione e di circolazione. Scopo del presente Libro non può es-sere quello di esporre rifl essioni generali su siffatta unità; si tratta piuttosto di scoprire ed esporre le forme concrete dal processo di movimento del capitale, considerato come un tutto. Nel loro movimento reale, i capitali assumono l’uno nei confronti dell’altro tali forme concrete, in rapporto alle quali l’aspetto del capitale nel processo immediato di produzione, così come il suo aspetto nel processo di circolazione, appaiono soltanto come momenti parti-colari. Gli aspetti del capitale, come noi li svolgiamo nel presente volume, si avvicinano quindi per gradi alla forma in cui essi si presentano alla superfi cie della società, nell’azione dei diversi capitali l’uno sull’altro, nella concorrenza e nella coscienza comune degli agenti stessi della produzione.”

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início. Isso acontece na teoria da taxa de lucro. Valor e mais-valia continuam a ser as categorias ontológicas fundamentais da economia do capitalismo. Na etapa de abstração da primeira parte, basta afi rmar que apenas a qualidade específi ca da mercadoria força-de-trabalho é capaz de criar valor novo, enquanto os meios de produção, matérias-primas, etc, simplesmente conservam o seu valor no processo de trabalho. A concretização da segunda parte fornece uma análise do processo global que, em muitos aspectos, ainda se mantém sobre essa base; isso ocorre na medida em que, como elementos do ciclo, fi guram o capital constante e o capital variável, assim como a mais-valia. Aqui resulta verdadeiro que, no processo de conjunto – considerado em sua generalidade pura, ou seja, prescindindo com consciência metodológica dos atos singulares que o formam na realidade –, a lei do valor continua em vigor sem alterações. E trata-se novamente de uma cons-tatação justa e importante no plano ontológico, já que os desvios da lei do valor — na totalidade do processo — compensam-se de modo necessário. Com uma formulação simples, pode-se dizer: o consumo (inclusive o consumo produtivo da sociedade) não pode ser maior do que a produção. Naturalmente, aqui se abstrai do comércio exterior; mas se trata de uma posição correta, já que — precisamente nesse caso — é sempre possível suprimir pura e simplesmente essa abstração e estudar as variações que essa supressão introduz no conjunto das leis; deve-se notar, de passagem, que toda a questão perde seu sentido se o objeto imediato da teoria for a economia mundial. [OGS I, 600/306-7]

Nos dois primeiros livros as categorias do valor e da mais-valia encontram-se fi xadas pelo patamar de abstração empreendido, portanto, são apresentadas de um modo em que elas aparecem irretocadas, manifestando-se sempre como pano de fundo sobre o qual se desdobra a dinâmica da realidade econômica, ainda pensada sob a forma de abstrações que isolam complexos parciais da totalidade. Mesmo no livro II, onde o processo de circulação é introduzida na análise, a lei do valor conti-nua como momento ontologicamente prioritário uma vez que a circulação não pode prescindir nunca do processo de produção, regido e posto em movimento sob a base da produção de mais valia. Nos termos de Lukács, nestes dois primeiros momentos da exposição empreendida por Marx, a lei do valor fi gura sem os desvios – parti-cularmente do lucro-médio – pela qual ela se efetiva no plano da realidade econô-mica. Justifi cável a abstração isoladora, na medida em que no âmbito da realidade manifesta, ela continua a operar como decisiva, pois a compensação de todos estes “desvios” têm a orientação de fundo determinados por esta lei.

No parágrafo subseqüente encontramos a explicitação da derradeira dissolução das abstrações empreendida nos dois livros anteriores:

De qualquer modo, o problema da terceira parte é o seguinte: no interior do ciclo total, agora compreendido, investigar a legalidade que regula os atos econômicos singulares, e não apenas para-si, mas precisamente no quadro da compreensão do processo de conjunto. Esse infl uxo dos atos singulares sobre o processo global,

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capaz de modifi car ontologicamente as categorias, tem porém duas premissas histórico-reais: em primeiro lugar, o crescimento das forças produtivas, com a conseqüente diminuição do valor; em segundo, a ampla possibilidade que tem o capital de migrar de um ramo para outro. Ambos os processos pressupõem, por seu turno, um grau relativamente elevado de desenvolvimento da produção social, o que mostra novamente como as categorias econômicas, em sua forma pura e explicitada, requerem um funcionamento evoluído do ser social; em ou-tras palavras, a sua explicitação enquanto categorias, a superação categorial das barreiras naturais, são um resultado do desenvolvimento histórico-social. [OGS I, 601/307]

No livro III as abstrações iniciais culminam em sua completa dissolução. Esta consiste para Lukács na consideração daqueles atos singulares que atuam diretamen-te sobre o conjunto de leis e tendências vigentes na realidade econômica. As cate-gorias da economia aparecem desta vez em sua real e concreta articulação com as categorias mais superfi ciais, isto é, aqueles que se põem no plano da imediaticidade ou da superfície. A lei do valor nesta dimensão agora analisada sofre a determinação de outras tendências presentes na própria realidade, sem perder no entanto o perfi l de elo tônico, que articula de forma decisiva – momento preponderante – a dinâmica da totalidade. Ganha destaque neste momento conclusivo da análise marxiana, o fato de que é que no complexo total da economia estes momentos específi cos da esfe-ra econômica – leis tendenciais tomadas no seu “para-si” e os atos singulares – se encontram em mútua determinação. Estes últimos não são portanto, meros epife-nômenos ou refl exos passivos de uma lei perene, rígida e irrevogável, mas incidem sobre ela alterando a própria forma pela qual ela se realiza na efetividade econômica. Em termos mais diretos, a lei originária que põe em curso a viabilidade de outras leis e dinâmicas – igualmente importantes – sofre o infl uxo direto daquilo que se põe na escala do tempo como instante secundário. A lei do valor determina, permanece determinante, porém é igualmente determinada, sobreposta e redimensionada por um conjunto de elementos que existem assentados sobre ela – neste caso os atos singulares dos indivíduos, que a realiza em suas tendências e a transforma em meio às suas atividades cotidianas.

Reconfi gurada no interior desta complexa interação com outros complexos de determinações mais ricas, ela – a lei do valor – adquire o perfi l de uma tendência latente no interior deste processo total. Uma vez dissolvida as abstrações ela aparece em sua real fi guração no interior da dinâmica efetiva das interações econômicas. Não devemos nos esquecer que todo este movimento abstrativo empreendido nos livros anteriores se fazia necessário, pois sem ele permaneceria obscura as raízes ge-

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néticas das categorias mais periféricas da economia capitalista; permaneceria velado, inclusive, o elemento articulador dos nexos e movimentos assumidos pela dinâmica categorial da economia.

Por meio de todo este conjunto de exposições até então destacadas, procurou-se demonstrar como a natureza dos argumentos lukácsianos em torno do proble-ma ontológico em Marx, dá ênfase ao problema dos princípios ontológicos que se encontram já realizados e efetivados em seu pensamento, e nesta medida, embora revele aspectos relevantes do pensamento marxiano, não destaca o que vem a ser o procedimento investigativo propriamente dito, na medida em que concentra sua atenção no desvelamento das bases ontológicas sob as quais o pensador alemão constrói sua obra e na explicitação dos fundamentos necessários que justifi cam a estrutura presente em O Capital. A questão do procedimento investigativo fi ca, de forma evidente, em aberto.

É precisamente este ponto, ausente nas refl exões de Lukács, que Chasin focali-zará grande parte da análise desenvolvida na terceira parte de seu livro, intitulada A resolução metodológica. O autor brasileiro dirige sua atenção ao mesmo texto de Marx que dá início, como vimos, às refl exões de Lukács acerca do tema. Analisando a Intro-dução de 57 é trazida à tona a categoria da abstração razoável [verständige Abstraktion], que, para Chasin, cumpre o papel decisivo de ser o ponto de partida da investigação. Do mesmo modo como faz Lukács ao seguir os passos descritos por Marx em seu, Chasin destaca os problemas em se tomar a realidade imediata como ponto de par-tida de um modo acrítico. Tal como o faz Lukács, o autor dá ênfase aos dizeres de Marx que adverte:

Se portanto começar pela população, então eu terei uma representação caótica do todo e, por meio de uma determinação mais precisa, pela análise, alcançarei con-ceitos sempre mais e mais simples; do concreto fi gurado eu passarei a abstrações sempre mais rarefeitas, até chegar às determinações mais simples. [MARX, Karl. Grundrisse der Kritik der politischen Ökonomie. Berlin: Dietz Verlag, 1953, p. 21]

Chasin identifi ca este momento na obra do próprio Lukács, dando destaque ao fato que por meio desta passagem o pensador húngaro estabelece o conceito de abstração isoladora. No entanto, os rumos de sua análise tomam um curso distinto. Neste momento, ele considera que os passos aqui descritos nos enviam diretamente ao problema das abstrações razoáveis, constituindo uma discussão que remete muito mais à questão do procedimento investigativo do que ao problema do caráter das abstrações no interior da estrutura expositiva desenvolvida por Marx, como o faz Lukács.

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Acerca desta noção, nos esclarece Chasin:A razoabilidade de uma abstração se manifesta, pois, quando retém e destaca aspectos reais, comuns às formas temporais de entifi cação dos complexos fenomê-nicos considerados. A razoabilidade está no registro ou constatação adequados, “através da comparação”, do que pertence a todos ou a muitos sob diversos mo-dos de existência.

As abstrações razoáveis constituem, por sua vez, “relações gerais ou as mais sim-ples das categorias”, ou seja, são determinações apreendidas sob a forma dos aspec-tos mais gerais de uma dada categoria. Diferentemente do que possa parecer a pri-meira vista, a abstração razoável não constitui escolha aleatória ou uma formulação fundada exclusivamente sob as bases do pensamento, pelo contrário, como destaca Chasin, ela é antes de tudo “algo geral extraído das formações concretas, posto à luz pela força da abstração, mas não produzido por um volteio autônomo da mes-ma, pois seu mérito é operar subsumida à comparação dos objetos que investiga” [Chasin, 422]. O que signifi ca dizer que já em seu início, as determinações trazidas à tona pelo pensamento são “determinações da existência, formas do ser”. Assim como Lukács, Chasin constata esta asserção essencial de Marx, concedendo a ela o devido peso no interior do seu pensamento, coisa que para transparece como um mero enunciado protocolar.

A abstração razoável cumpre pelo menos dois papéis fundamentais no processo da investigação: 1- ao fi xar os elementos mais gerais de uma dada categoria permite que, por comparação, sejam postas com maior evidência as diferenças essenciais (termo empregado por Marx) existentes entre as diversas formas específi cas de sua realiza-ção; 2- por meio dela, tem início o trabalho inicial de identifi cação e de depuração dos elementos mais simples que compõem o complexo posto como centro da aná-lise, ou em outros termos, em meio ao todo caótico que se apresenta de um modo mediato à percepção humana, tem início o trabalho de depuração de determinados elementos que compõem a efetividade em causa. Arrimado nesta dupla perspectiva das abstrações razoáveis que se encontram presentes nas considerações marxianas, Chasin busca estabelecer os passos que compõem a démarche do pensamento no tra-balho de elucidação do concreto analisado. Nelas já se encontram presentes elemen-tos que descrevem o caminho da captura ideal dos nexos reais, que são elucidados por meio da noção de intensifi cação ontológica. Em termos gerais, esta noção pode ser defi nida como a consideração histórica da diferenciação essencial pela qual se efetivam as categorias. Trabalho que implica a necessária transformação paulatina do ponto inicial, ou seja, no “deperecimento da abstratividade” presente em um primeiro mo-mento na forma provisória da abstração razoável.

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Um dos aspectos fundamentais dessa transformação compreende a intensifi cação da razoabilidade dessas categorias simples, ou seja, a atualização das virtualidades de sua natureza ontológica enquanto forma de apropriação ideal dos objetos reais. O que é operado pela exata aproximação e comparação delas aos traços efetivos, portanto, determinados e delimitados dos objetos, de modo que sejam medidas por eles e, conseqüentemente, ajustadas aos mesmos, de forma que sua capacidade de os reproduzir se torne mais precisa e, por isso mesmo, maior. Em termos bem sintéticos, na rota que vai do simples ao complexo, do abstrato ao concreto, as abstrações razoáveis devem perder generalidade por especifi cação, adquirindo os perfi s da particularidade e da singularização, ou seja, a fi sionomia de abstrações razoáveis delimitadas. [Chasin, p. 426]

Neste sentido, a dinâmica trazida à tona por Chasin, demonstra quea investigação marxiana está remetendo à multilateralidade determinativa de toda conformação fenomênica, ou seja, referindo que todo objeto, intrínseca e extrin-secamente, é e se manifesta como um feixe entrelaçado de inúmeras determina-ções, para cuja adequada reprodução teórica são indispensáveis a delimitação e a articulação das abstrações razoáveis. Desde logo porque a articulação, fase con-clusiva do processo analítico, é também uma exigência de delimitação, levado em conta que as abstrações razoáveis, umas em face das outras, têm de ser compa-tibilizadas entre si, o que implica recíprocas determinações delimitadoras, pelas quais são estabelecidas as proporções com que integram a reprodução fi nal do objeto investigado. Proporções, é evidente, que não dizem respeito, simples e essencialmente, ao tamanho ou à extensão conceitual com que são incorporadas à síntese, mas às qualidades com que participam da mesma, pois, as abstrações razoáveis, sob a intensifi cação ontológica que as delimita, não apenas continuam a ser “um conjunto de determinações diferentes e divergentes”, mas, a rigor, têm sua diversidade acentuada por especifi cação, mesmo porque ajustadas à coabita-ção, harmônica ou contraditória, com as diferenças essenciais, de modo a se torna-rem capazes de reproduzir o concreto do ser-precisamente-assim, o que signifi ca aproximação e tradução máximas possíveis da profusa malha de determinações interconexas do mesmo.

A fase conclusiva do trabalho analítico transparece aqui sob as bases de um per-curso que paulatinamente, em um esforço investigativo diretamente voltado para o objeto em questão, delimita as várias nuances, particularização e singularidades conti-das na “coisa” analisada. Ao fi nal, o pensamento deve dar provas da recta apreensão da riqueza e complexidade de determinações que compõem a realidade. Momento que lembra as palavras de Marx reproduzidas mais acima, que estão contidas no livro III de O Capital, onde, como adverte Lukács, o pensador alemão aproxima de modo direto o esforço analítico ao desvendamento da face mais aparente, superfi cial, do complexo econômico. Porém, de uma tal maneira, que a expressão mais aparente da economia é posta em destaque com toda aquela armação categorial dinâmica que se encontrava velada no momento inicial da elucidação do complexo.

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É patente que Chasin não incorre no risco de se valer de expressões consagradas na história do pensamento fi losófi co – como o faz Lukács com os termos experimento ideal e observação empírica – ao buscar elucidar a natureza do problema em Marx. No entanto, pondo de lado esta dimensão específi ca do uso das expressões tradicio-nais, em grande medida as observações de ambos os autores coincidem em pontos importantes. Dentre estes pontos merece relevância a afi rmação de que os nexos, relações, propriedades, categorias dos complexos analisados, não são de modo al-gum formações específi cas do pensamento, mas reprodução ideal da efetividade dos mesmos, o que confere destaque ao primado da objetividade sob a própria consci-ência que se apropria idealmente da realidade. Ainda como ponto coincidente, cabe destacar a proximidade que a idéia de “deperecimento da abstratividade” ressaltada por Chasin guarda com o noção de “dissolução da abstração” tal como enfatiza Lukács em sua Ontologia.

No entanto, a noção de abstração isoladora, cunhada por Lukács, em termos bem claros tem um sentido distinto deste ora apresentado. Não pode ser identifi cada com o que é posto em destaque por Chasin: a abstração razoável. Quando Lukács busca elucidar a noção de abstração isoladora à luz das elaborações de Marx contidas em O Capital, suprime a discussão dos meios pelos quais determinadas categorias puderam ser elucidadas como centrais no interior do complexo de complexos, ou seja, o seu ponto de partida para a discussão e elucidação implica o trabalho da investigação como já realizado, implica portanto a já acabada identifi cação da categoria central ou de determinados complexos parciais que norteiam a dinâmica da efetividade. A noção de abstração razoável, por sua vez, procura identifi car o ponto de partida da investigação, busca estabelecer o trabalho de delucidação, de construção e apreensão paulatina dos nexos e conexões efetivas do complexo tratado.

Sem pretender fechar a questão acerca do problema, tudo parece indicar que escapa a Lukács a temática do procedimento investigativo propriamente dito. Obvia-mente, o fato determinante desta ausência não pode ser concebido como idêntico à concepção gnosiológica que desvia-se em termos claros e declarados da proposição ontológica da recta reprodução ideal da realidade; neste aspecto em particular, o pensador húngaro guarda uma profunda diferença com as tendências predominan-tes do marxismo, não se conduzindo de modo algum por um viés epistemológico no resgate que realiza dos textos de Marx – fato que era reconhecido por Chasin, prin-cipalmente quando se toma em consideração a ontologia lukacsciana. Se a natureza do problema passa desapercebida para Lukács, não é obviamente por este se encontrar circunscrito ao debate gnosiológico, mas trata-se de um problema de outra ordem, que pode em parte ser explicado pela necessidade que o autor tinha de se contrapor

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Procedimento investigativo e a forma expositiva em Marx – duas leituras: Lukács/Chasin

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às tendências epistemologizantes da obra marxiana. Contra a procura frenética do cerne metodológico do pensador alemão, Lukács percorre as páginas de O Capital demonstrando a inexistência de um método que estabeleça a priori as determinantes diretivas por meio das quais a realidade deva ser tomada em consideração, ou por meio do qual o pensamento age ativamente conferindo, sob a bases de suas próprias categorias, os encadeamentos e os nexos dos fatos analisados; pelo contrário, ele insistirá em demarcar a presença de uma recta consideração marxiana da realidade tomada em sua intrínseca constituição efetiva. As categorias são determinações da existência, formas do ser, portanto, toda e qualquer explicitação das relações, cone-xões, nexos captados pelo pensamento, são a expressão das reais interações e inter-relações existentes na objetividade. Do mesmo modo, os princípios ontológicos fundamentais identifi cados por Lukács no pensamento de Marx, não constituem um receituário prévio, mas são determinações somente trazidas à tona após a escavação do objeto, ou seja, estes princípios se revelam enquanto tais somente no destrincha-mento real do complexo posto no centro da refl exão.

Demonstrar isto é em grande medida destacar o caráter das abstrações em Marx, sobre a qual o pensador húngaro tracejará sua compreensão por meio da noção das abstrações isoladoras. Esta constitui o ponto inicial da exposição do complexo tra-tado, que culmina com a integral dissolução da abstração, momento fi nal em que a reprodução ideal se aproxima de forma inequívoca da riqueza de determinações da realidade. Por mais que Lukács se atenha muito mais ao problema da forma exposi-tiva de O Capital, vale insistir que esta não é algo aleatório, simples escolha subjetiva do autor, mas é refl exo direto da matéria tratada, que circunscreve caminhos, formas e liames necessários para ser descrita. É certo que o elemento subjetivo não pode ser totalmente eliminado deste percurso expositivo, porém é igualmente fato que o objeto impõe ao investigador os caminhos possíveis para sua descrição uma vez que a perscrutação de seus liames e nexos impõe passos necessários de serem seguidos. Neste sentido, a forma expositiva de O Capital não é a exposição “dialética” do com-plexo de problema da economia calcada em uma metodologia que traça o esboço da investigação científi ca, mas é a explicitação do movimento, nexos e dinâmicas da própria coisa. E é neste segundo sentido que ela é dialética – em sua acepção ontológica –, enquanto expressão efetiva do movimento, interações e inter-relações das categorias. Remontando aos próprios dizeres de Marx que em sua crítica de 43 a Hegel insiste na exposição da “lógica da coisa”, contra aquelas formulações teóricas que são o fruto da “coisa da lógica”.

Em Chasin também encontramos considerações quanto à forma expositiva da obra marxiana. No entanto suas considerações não chegam à explicitação paulatina

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dos passos dados por Marx em O Capital, análise que Lukács desenvolve de modo contundente nas páginas de seu livro aqui estudadas. A análise lukacsiana da estru-tura da obra marxiana desmonta toda uma série de interpretações que sugerem um conjunto epistêmico previamente estipulado que suporta os elementos analíticos presentes em seu pensamento. O movimento da construção categorial desenvolvida por Marx segue os caminhos indicados pela prioridade ontológica e, conseqüentemente, pela primazia determinativa – momento preponderante – de seus elementos.

Toda a análise aqui realizada, procurou dar destaque àqueles aspectos que julga-mos mais relevantes e que concerniam diretamente ao tema proposto no início de nosso trabalho. Não pretende, obviamente, ser a palavra fi nal a respeito do proble-ma, pois sabemos que sua complexidade envolve uma ampliação de toda a discussão posta aqui em tela. Por exemplo, o problema da determinação social do pensamento, tal como explicitado por Chasin em sua obra, é imprescindível para a elucidação mais acurada do problema da resolução metodológica. Tal problema mereceria ser comparado com os apontamentos que Lukács efetiva em sua Ontologia acerca dos desvios que a recta apreensão dos nexos da realidade pode sofrer em virtude das de-terminações históricas da vida cotidiana. Somente por meio da consideração deste problema em particular, assim como de outros (a forte presença de Hegel no pensa-mento de Lukács, por exemplo) poderia nos dar uma dimensão mais defi nitiva sobre as convergências e divergências existentes entre os dois pensadores aqui analisados.

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educação e ciências humanasEspaço de interlocução em ciências humanas

Ano V, novembro de 2008 – Publicação semestral – ISSN 1981-061X

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A fi losofi a de José Arthur Giannotti marxismo adstringido e analítica paulista*1

Antonio Rago Filho*2

* Publicado originalmente nos Cadernos de Ciências Sociais 1. “Ciência e Engajamento”. Colegiado de Ciências Sociais do CUFSA, 2005.** Prof. Dr. do Colegiado de Ciências Sociais do Centro Universitário Fundação Santo André e Programa de Estudos Pós-graduados em História e Departamento de História da Faculdade de Ciências Sociais da PUC-SP.

Resumo: Este artigo busca compreender a “leitura incoerente” de José Arthur Giannotti sobre a ontologia es-tatutária de Marx. Parelho a Althusser, Giannotti divisa dois Marx, o da juventude e o da maturida-de. Da primeira fase, o fi lósofo alemão alinha-se à perspectiva de um paraíso perdido, de harmonia natural. Da segunda, alinha-se à dialética hegeliana, à categoria da identidade da identidade e da não-identidade, dessa forma, subsumindo ao especulativismo, ao espírito absoluto na forma de um sujeito universal, Marx cai no ardil do “misticismo lógico”. Com a “redescoberta do pensamento de Marx” de J. Chasin torna-se inteligível a imputação hermenêutica do “marxismo adstringido” próprio da Analítica Paulista.

Palavras-chave: História do Marxismo Brasileiro; Marxismo Adstringido; Filosofi a; Politicismo; Analítica Paulista.

José Arthur Giannotti’s thinkingadstringed marxism and the “uspian analytics”

Abstract: This article searches to understand José Arthur Giannotti’s “incoherent reading” of the statutary ontology by Marx. Similarly to Althusser, Giannotti perceives two Marx, one of the youth and one of the maturity. Regarding the fi rst phase, the German philosopher is aligned with the perspective of the lost paradise, the natural harmony. Regarding the second one, he is aligned with the Hegelian dialectic, with the category of the “identity of identity and non-identity”, and so, submitted to the speculativism, to the absolute spirit in the form of a universal subject, Marx falls into the trap of the “logical mysticism”. With the “rediscovery of Marx’s thinking”, by J. Chasin, it is possible to turn intelligible the hermeneutical imputation of the “adstringed Marxism”, peculiar to the “Uspian Analytics”.

Key words: Brazilian Marxism history; Adstringed Marxism; Philosophy; Politicism; Uspian Analytics: Uni-versity-of -São Paulo Analytics.

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Seria um cientista ou um visionário que teria na-morado com o linguajar hegeliano?

J. A. Giannotti

Desde as suas origens, em fi ns da década de 50, o grupo de estudos sobre O Capital, conhecido como Seminário de Marx, foi capitaneado pela fi gura de um fi lósofo paulista, altamente infl uenciado pela fenomenologia e pelo estruturalismo francês, que acabou por matrizar certo modo de interpretação do pensamento mar-xiano. Este, apresentado em dois momentos disjuntivos: a obra de juventude se oporia à da maturidade, ao feitio do corte epistemológico de Louis Althusser. José Arthur Giannotti, nascido em 1930, na cidade de São Carlos, é o artífi ce principal de um esforço analítico que visava a superar o pensamento de esquerda de baixo padrão desenvolvido por ideólogos hospedados no PCB, o mais infl uente partido de esquerda na década de 60 no Brasil.

As posições giannottianas são caracterizadas por um forte viés gnosiológi-co, entrelaçado pelo politicismo, e que questionam as possibilidades históricas do próprio ser social da classe operária, com o banimento da revolução do trabalho. Consagram, desse modo, um marxismo adstringido, que vai se tornando outra coisa, radicalmente distante do fi lósofo alemão, na medida em que nega a ontologia estatuá-ria, a imanência histórica presente nos lineamentos ontológicos do pensamento de Marx.

Em sua última produção, transcorridas algumas décadas do Seminário de Marx, Giannotti busca dar a derradeira estocada na fi losofi a marxiana. O fi lósofo alemão não teria se libertado das armadilhas metafísicas da dialética hegeliana, pois, sem ter efetuado os acertos devidos, mesmo se propondo materialista, capitularia em sua tentativa de fazer ciência, atropelando-se numa utopia de uma aventada revolução que superaria o sociometabolismo do capital e a politicidade, tendo na irrealização da fi losofi a o cerne de sua lógica mística.

Está claro que esta concepção não é nova e não será a última a “liquidar” a fi losofi a radical de Marx. O fi lósofo paulista rechaça de chofre o esforço de compre-ensão da obra de Marx, com o mesmo procedimento que este praticava, a crítica on-tológica dos objetos históricos, ou seja, a captura do multiverso do mundo concreto, apropriando-se da integridade dele em sua maturação histórica, seja na forma ideal ou material, por meio da decifração de sua determinação social, dos nexos constitu-tivos que o especifi cam, assim como da fi nalidade histórica que cumpre no evolver histórico. Giannotti rechaça o prisma ontológico do autor de O Capital, mostrando a impossibilidade da redescoberta do pensamento marxiano que não seja por meio

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interpretativo – com suas imputações hermenêuticas –, e as apropriações devidas ou mesmo indevidas que produzem o destino trágico do pensamento marxiano nas mãos de outros, por seus resultados práticos. Afi nal de contas, na “família” dos mar-xistas – de Engels a Lenin, de Gramsci a Lukács, de Lenin a Trotski, podendo incluir Althusser, Colletti, André Gorz e Castoriadis, por exemplo, já que tudo é possível e o fenomenólogo angula Marx principalmente por seus efeitos. Em sua hermenêutica, encontramos uma penca de visões e posições díspares e divergentes que pretendem desdobrar os conceitos marxianos e, assim, emprestar-lhes novos signifi cados.

Não se pode dizer, entretanto, que, em suas idas e vindas no escarafunchar da obra marxiana, Giannotti não tenha iluminado questões pontuais e mesmo essenciais da ontologia estatutária de Marx. Todavia, a fi nalização da obra resulta em seu con-trário, o abandono do próprio marxismo e o retorno ao kantismo, à fenomenologia, aos “jogos de linguagem” de Wittgenstein, o que redunda na desfi guração completa da obra marxiana. Há que reconhecer sua posição no cenário intelectual do país. Giannotti marcará época com o texto “O ardil do trabalho” (GIANNOTTI, 1973). Basta atentar para a qualidade da argumentação apaixonada, a fi na erudição e o seu domínio da história da fi losofi a, suas críticas demolidoras contra “as vagas e vogas de idéias” como aquelas dirigidas a Althusser, Foucault, Habermas, Toni Negri, entre outros, além de não poupar os célebres autores da “Escola de Frankfurt”, incluindo também os clássicos da antropologia e da sociologia. Quem não foi infl uenciado por trabalhos como “A sociedade como técnica da razão: um ensaio sobre Durkheim” (1971), “Notas sobre o conceito de modo de produção – para uso e abuso dos soci-ólogos” e assim vai? Há mesmo quem diga que “talvez não seja exagerado afi rmar, sem nenhuma ironia, que pertence a Giannotti o justo título de primeiro fi lósofo brasileiro” (BARROS E SILVA, 2003, p. 87).

Sem desejarmos entrar no exame de seus desdobramentos, no espaço que nos é concedido, caberia recorrermos à memória e autocrítica dos próprios integrantes. Após a subida de seu príncipe ao tope do poder, houve uma espécie de desarruma-ção e dissidência entre seus pares. Um dos mais argutos críticos brasileiros no campo da arte, Roberto Schwarz retoma a gênese do Seminário de Marx. “Qual a origem do seminário?” A esta interrogação segue a análise:

Como tudo que é antediluviano, ela é nebulosa e há mais de uma versão a respeito. Giannotti conta que na França, quando bolsista, freqüentou o grupo Socialismme ou Barbarie, onde ouviu as exposições de Claude Lefort sobre a burocratização da União Soviética. De volta ao Brasil, em 1958, propôs à sua roda de amigos, jovens assistentes de esquerda, que estudassem o assunto. Fernando Novais achou que

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era melhor dispensar intermediários e ler O Capital de uma vez. A anedota mos-tra a combinação heterodoxa e adiantada, em formação na época, de interesse universitário pelo marxismo e distância crítica em relação à URSS (SCHWARZ, 1999, p. 87).1

No dizer do crítico dissidente, somada às obsessões lógicas, a “tirania metodo-lógica”, mais especifi camente a técnica de explication de texte, a exegese rigorosamente praticada, constitui a principal contribuição do mestre para os estudiosos dos semi-nários sobre O Capital. “/.../Se não me engano, a inovação mais marcante foi outra, também devida a Giannotti, que na sua estada na França havia aprendido que os grandes textos se devem explicar com paciência, palavra por palavra, argumento por argumento, em vista de lhes entender a arquitetura” (SCHWARZ, 1999, p. 91). Em seu reexame do Seminário de Marx, Schwarz destaca que

A intensidade intelectual do seminário devia muito às intervenções lógico-meto-dológicas de Giannotti, cujo teor exigente, exaltado e obscuro, além de sempre voltado para o progresso da ciência, causava excitação. /.../ Por Giannotti e Ben-to Prado interpostos, o estudo de Marx tinha extensões fi losófi cas, que nutriam a nossa insatisfação com a vulgata comunista, além de fazerem contrapeso aos manuais americanos de metodologia empírica, que não deixávamos também de consumir. Apesar de desajeitada, a tensão entre esses extremos foi uma força do grupo, que não abria mão do propósito de explicar alguma coisa de real, e nesse sentido nunca foi apenas doutrinário.2 (SCHWARZ, 1999, p. 91)

Segundo Emir Sader, em consonância com as linhas de Schwarz, os Seminários foram uma resposta à vulgarização dos textos marxianos e marxistas praticada pelo

1. Há que registrar os principais nomes que vão constituir a nata de nossas ciências sociais. Schwarz salienta em continuidade que “Quando o seminário começou a se reunir, as fi guras constantes eram Giannotti, Fer-nando Novais, Paul Singer, Octavio Ianni, Ruth e Fernando H. Cardoso. Com estatuto de aprendiz, apareciam também alguns estudantes mais metidos: Bento Prado, Weffort, Michael Löwy, Gabriel Bolaffi e eu. A compo-sição era multidisciplinar, de acordo com a natureza do assunto, e estavam representadas a fi losofi a, a história, a economia, a sociologia e a antropologia. Vivíamos voltados para a Universidade, mas nos remetíamos fora dela, para estudar com mais proveito, a salvo da compartimentação e dos estorvos da própria instituição” (SCHWARZ, 1999, p. 87). 2. De sua parte, o sociólogo Emir Sader salienta que “Quanto ao que mais teria faltado ao seminário, que para Roberto [Schwarz] seriam os frankfurtianos, eu diria que, além deles, a ausência mais importante era a das mediações históricas e políticas concretas, presentes nos textos de Gramsci, nas análises históricas de Marx, nas obras de Lenin e de Trotsky. O horizonte internacional estava aberto para os seminários – as polêmicas com os principais autores da época o demonstram – mas faltavam as mediações teóricas para uma elaboração frutífera da realidade nacional, latino-americana e mundial. Tanto assim que a herança daquele período fi cou relativamente com a teoria da dependência. Cortados pelo AI-5, pelo exílio, pela dispersão, pela derrota, vieram tempos menos propícios para assaltos ao céu. Gramsci retornou mais como ‘teórico das superestru-turas’, um marxismo domesticado pelo eurocomunismo foi re-importado, o próprio FHC passou da teoria da dependência para a teoria do autoritarismo com toda a carga ideológica que mencionamos, a esquerda se desentendeu com o socialismo, para fi xar seu horizonte na democratização. A miséria da teoria abriu caminho para a miséria da política – sem refl exões estratégicas, sem abordagens globais sobre o capitalismo e, portanto, sem força para recriar um pensamento anticapitalista” (SADER, 1996, p. 77).

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PCB et caterva, à particularidade da Revolução Cubana, à crítica ao próprio pensa-mento dito revolucionário, à reação à guerra do Vietnã e à própria carência de Marx na USP e nas universidades.

No que tange, todavia, às suas próprias convicções fi losófi cas, como o fi lósofo pensa a sua posição? Por que nosso fi lósofo se pensa como um reator que responde às exigências teóricas de nosso tempo?

Não prego nenhuma posição fi losófi ca. Sou apenas um reator: eu reajo às minhas paixões. Eu me apaixonei pela fenomenologia e tentei, por meio do estudo de intencionalidades noemáticas, entender melhor o que era a Lebenswelt (o mundo da vida) de Husserl. Isso me predispôs a atentar para os nexos do capital na vida cotidiana. Depois me apaixonei por Marx e quis ver como essas intencionalidades podem ser contraditórias e ocultar ao mesmo tempo as atividades visadas indivi-dualmente. Terminei me apaixonando por Wittgenstein na medida em que ele es-toura a noção de proposição e amplia a própria idéia de expressão. E assim por diante. Afi rmar que possuo posição fi losófi ca seria falsear a perspectiva correta, pois o fi lósofo brasileiro é simplesmente alguém que luta contra vagas, é um “antivaga” ou “antivoga”. Nesse sentido, o traçado da minha vida é aquele de um professor, que vê na boa formação de seus alunos uma forma de incentivar a resistência a pensamentos que não têm raízes em nossa experiência cotidiana. Daí essa mistura de investigação própria e de polêmica. Estou sempre pensando por meio de al-guém contra alguém (GIANNOTTI apud REGO; NOBRE, 2000, p. 102).

Ao explicitar as intenções do grupo de estudos de O Capital, Giannotti explicita que

Esse seminário se tornou um mito e, em função disso, foram esquecidas suas limitações e suas implicações. Ora, tratava-se de um grupo de estudos. /.../ Cabia ler o próprio Marx e foi o que fi zemos. Comecei com a análise do primeiro capí-tulo d’O Capital e me lembro que ela já foi motivo de uma polêmica com Bento [Prado Jr.], pois ele, como bom sartriano, queria encontrar ali uma antropologia fundante. Eu criticava essa antropologia e puxava a interpretação para o plano de uma lógica. O seminário era variado, somando pontos de vista diferentes, cada um trazendo sua própria experiência. Depois do seminário, jantávamos e discutíamos política brasileira (GIANNOTTI apud REGO; NOBRE, 2000, p. 95).

Sobre a sua relação com o marxismo, o fi lósofo também esclarece o seu verda-deiro interesse fi losófi co.

Sempre me interessei mais por Marx do que pelo marxismo. Isso implica pensar, de uma maneira muito cuidadosa, a distinção feita por Marx, en passant, entre a história contemporânea das categorias, seu desdobramento formal, e a história do vir-a-ser: de um sistema. De um lado, como as categorias se repõem através de comportamentos, particularmente o processo de trabalho, cujos parâmetros são reafi rmados e adaptados no fi m do ciclo produtivo; de outro, como a história vai construindo situações e instituições determinadas – o dinheiro, o trabalho

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livre etc. – que passam a ter novo sentido quando se integram num novo sistema. Existe nessa passagem uma invenção, uma liberdade, que não está confi gurada no mero decorrer do tempo. Mas isto abre uma cesura entre a regra e o processo efetivo de segui-la, pois só assim a repetição da regra pode desenvolver sentidos que, se são roubados para que ela possa ser reposta, deixam rastro cujo signifi cado vai ser aproveitado num novo sistema normativo (GIANNOTTI apud REGO; NOBRE, 2000, pp. 102-3).

Refutando a lógica hegeliana, que “parte do pressuposto de que a expressividade se dá no nível do conceito, da relação silogística da regra com seu caso”, e também a vulgata marxista, que visa a “antepor à lógica formal uma lógica de contradição”, Giannotti recorre aos supostos da Lógica de Wittgenstein, porque “Sem uma am-pliação do conceito de expressão, acabaria caindo na besteira de imaginar que existe, de um lado, uma lógica formal e, de outro, uma lógica da contradição, e de achar que esta última consiste em ver os objetos como ao mesmo tempo iguais e contraditó-rios”. E qual é sua solução para esta duplicidade?

Acontece que é preciso legitimar essa duplicidade. Mas para mim existem siste-mas formais e lógica, o estudo de várias gramáticas. /.../ Afi rmar a existência da contradição real não eqüivale a afi rmar a existência da luta e dos antagonismos, implica ainda transformar o real num logos, numa forma de expressão. Enquanto isso não for explicado de um ponto de vista distante da especulação hegeliana sobre o Absoluto, a crítica de Marx à economia política e ao capital deixa de ter sentido, pois toda ela se ancora na idéia de que capital e trabalho se contradizem (GIANNOTTI apud REGO; NOBRE, 2000, p. 106).

O que Giannotti deixa de lado inteiramente é se este seu amarramento ao con-ceito de expressão, no sentido wittgensteiniano, livra-o dos problemas da fi losofi a especulativa. Isto, aliás, será uma constância. A versão é o que importa, será sempre o elemento preponderante em face do pensamento marxiano. Preocupa-se com a resolução lógica sem atentar que o pensamento marxista, que reproduz o mundo concreto na cabeça, objetiva seu revolucionamento. Este é um padrão de compor-tamento fi losófi co muito usual nele, pois, de repente, põe na boca de Marx as suas próprias falas e perspectivas, os seus próprios interesses. O que resulta naquilo que Chasin chama de marxismo adstringido, corporifi cando-se nas derivações próprias às “imputações hermenêuticas” exteriores ao objeto considerado.

Seu opúsculo Marx: vida e obra, mais do que apresentar as idéias do revolucio-nário, é uma chance para José Arthur Giannotti explicitar as suas profundas dife-renças com os lineamentos ontológicos da obra de Marx. O que permite ao autor apresentar sob a forma popular, em tom rasteiro, discrepante com o seu provado grau de sofi sticação teórica, as suas construções subjetivas atribuidoras de signifi cações. Segundo Giannotti, não se trata de tentar o impossível, a saber, reproduzir o real pe-

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las abstrações razoáveis até descender à efetividade concreta enquanto pensamento concreto. É impossível alcançar plenamente a objetividade no plano da idealidade. No principal formulador da “analítica paulista”3, que do marxismo adstringido cai inteiramente no campo da fenomenologia, a razão é sempre descentrada com rela-ção aos seres reais. Há um giro ou rebatimento lógico que diz respeito sempre ao giro do próprio pensamento. A verdade não é concreta, como acredita Marx, pois, ao se passar no plano do pensamento, opera na esfera das regras lógicas específi cas à idealidade, aos jogos de linguagem.

Giannotti insiste que todas as suas proposituras partem de um mundo já consti-tuído, dado. Diante de sua obsessão de extração kantiana acerca da possibilidade do conhecimento, sua resposta é nítida:

Sim, kantiana, mas passando pelo viés da fenomenologia, pela necessidade de pensar esse enraizamento no mundo como um forma de deitar raízes no cotidia-no, numa prática que logo se revelou muito mais complicada do que o trato com o arado ou com o lápis, e muito mais perto do uso do telefone, dos instrumentos tecnológicos – em suma, de uma segunda natureza que se abre para nós como uma forma de linguagem da qual é preciso dominar os signos e à qual temos acesso pelo ato de compra e venda. Pensar nosso enraizamento no mundo da vida também é pensar nossa relação com o capital (GIANNOTTI apud BARROS E SILVA, 2003, pp. 89-90).

Isto não signifi ca, portanto, que Giannotti não opere com elementos da realida-de, mas esta é mera descrição empírica, os sentidos que os indivíduos dão às coisas numa situação conjuntural, dados isolados sem as mediações e nexos constitutivos do processo de vida real.

Giannotti passa por cima da crítica ontológica do pensamento marxiano por meio da análise imanente, gênese e necessidade histórica da própria obra. Por essa razão, responde que é muito complicada a posição daqueles que intentam estabelecer uma diferença entre pensamento de um autor e de seus discípulos. Já que uma inter-pretação abre para múltiplas interrogações de sentido, para uma construção subjeti-va que articula uma “leitura incoerente”, opta, desse modo, com esse procedimento, às imputações e convenções lógicas de fora do objeto posto em tela. Em suma, deita e rola, o que objetivamente signifi ca o desrespeito pelas próprias formulações de uma obra ou autor – no caso, a fi losofi a de Marx. Segundo sua interpretação, esta repõe o “fantasma da Filosofi a”, a crença “metafísica” nas possibilidades objetivas de instauração no mundo de formas do pensamento. Sua justifi cativa:

3. A analítica paulista comporta, segundo Chasin, o “quadrúpede teórico” formado pelas teorias do popu-lismo, da dependência, do autoritarismo e da marginalidade. Da perspectiva liberal-democrata, esta analítica confi gura tipos ideais que visam a abarcar a complexidade dos fenômenos societários brasileiros, todavia, fi cando aquém de seu projeto ambicioso.

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Por mais despretensiosa que pretenda ser esta minha introdução aos seus pen-samentos, ela há de levar em conta que está sendo escrita depois da derrocada do marxismo como força social. Por isso vamos adotar o termo “marxiano” para indicar o que é relativo ao próprio Marx, reservando o termo “marxista” às idéias e aos processos sociais que invocaram seu pensamento, mas com muita cautela (GIAN-NOTTI, 2000a, p. 13).

Cautela de sua incoerência e desrespeito, na medida em que fratura a dimensão ontológica da obra do autor visado, desmontada a ontologia estatutária marxiana (diga-se de passagem, confundida como sistêmica, uma vez que os textos não pos-suem objetividade – com o descarte de sua imanência ontoprática e histórica –, pois se constituem numa janela aberta para interpretações e dações de signifi cados). Nesse sentido,

Não convém examinar os textos tais como se apresentam no cruzamento de suas várias dimensões, considerando-os como um baluarte a ser conquistado por vá-rias frentes? Sob esse prisma prefi ro cair numa leitura às vezes incoerente do que pressupor no texto uma harmonia que ele não possui, muito menos ensaiar uma reconstrução que expurgasse qualquer contradição do terreno que o próprio Marx balizou, pois me importa sobretudo mostrar o caráter muito particular que assumem os conceitos pelos quais ele tenta entender o processo de desdobramen-to do capital, como esses conceitos se conformam na tentativa de revirar a dialética hegeliana, ao invés de pensá-los simplesmente como os únicos parâmetros capazes de pôr a nu a realidade do capitalismo moderno. E se chegar a perceber contradições no seu discurso, prefi ro antes de tudo fi car atento aos limites do dizer e do pensar que elas estão indicando (GIANNOTTI, 2000a, p. 65, grifos nossos).

Contrapondo-se publicamente ao principal crítico da analítica paulista, Giannot-ti responde ao texto de José Chasin inscrito na obra Pensando com Marx:

Ao dizer que “marxiano” diz respeito ao que o próprio Marx escreveu, e “mar-xista”, a tudo aquilo que foi feito devida ou indevidamente em nome dele, isso não nos livra da responsabilidade de refl etir sobre sua obra levando em conta as leituras e tudo aquilo que elas provocam. Sem dúvida essa distinção serve para subli-nhar as contradições entre o que ele mesmo ensinou e o que pregaram em seu nome, mas não deve criar a ilusão de que se pode reler Marx sem ter o marxismo no horizonte (GIANNOTTI, 2000a, pp. 6-7).

Será possível aceitar sem mais nem menos essa proposição? Mesmo com suas torções propositais e arbitrárias? Ao reconhecer Marx como uma idealista que na-mora a linguagem hegeliana, e mais do que isto, aprisionado nas armadilhas do lo-gicismo místico, de que posição ideológica Giannotti se permite taxar um pensador disto ou daquilo?

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Então, o fi lósofo, com seu ponto de vista, acrescenta que o pensamento de al-guém sempre será perpassado por seus continuadores, que completam ou modifi cam o pensamento do formulador. Afi nal, “assim como não se pode distanciar as teses de Aristóteles do aristotelismo, pois este as vai esclarecendo conforme elas mesmas se desdobram e se contorcem, também o pensamento de Marx esfolha seus sentidos, tendo no horizonte as vicissitudes do próprio marxismo” (GIANNOTTI, 2000a, pp. 13-4).

Não estamos próximos de ouvir que a falência e barbárie do Leste europeu têm que ver com a falência dos marxismos, e “o fracasso do comunismo” tem um pé no formulador clássico? Como já podemos depreender de seu discurso, o fi lósofo paulista procede do mesmo modo que as fi losofi as da suspeita praticam: pinçam pe-daços do mundo a partir de sua ótica fragmentada e do ponto de vista do indivíduo isolado e egoísta. Recorde-se que, por meio da “leitura incoerente” ou das versões dos marxismos, dois Marx continuam a existir. Há um “darwinista”, evolucionista, como também, um “hegeliano”, “místico lógico”. Há um que fala na centralidade da atividade prática sensível, da práxis; há outro que pensa de modo especulativo e místico a lógica do capital e sua superação pela revolução da “classe universal”.

As suas torções, em verdade, não se constituem em novidade nos críticos de Marx – são mais habituais do que se supõe; por exemplo, na concepção de E. P. Thompson, a imputação segundo a qual Marx, desconhecendo o termo experiência (a atividade prática sensível? A práxis?), simplesmente substituiu a Lógica do Espíri-to (Hegel) pela Lógica do Capital. Isto é asseverar a mesma raiz do idealismo ativo:

logo no início de sua carreira já se encontram in nuce os elementos que serão desenvolvidos muito mais tarde, marcando-a para sempre. As diversas maneiras pelas quais vai digerindo a dialética idealista indicam como se reporta ao quadro teórico delineado pelo idealismo alemão. Por mais que se consagre ao estudo da realidade capitalista, seus adversários sempre imputarão ao seu pensamento o defeito da Metafísica. Mas não seria metafísica a própria realidade do capital? (GIANNOTTI, 2000a, p. 29)

A chave da interpretação de Giannotti reside na célebre distinção de raiz kan-tiana entre “contradição” e “contrariedade”. Segundo Orlando Tambosi, a posição kantiana já dera conta dessa questão ao diferenciar contradição de contrariedade. “O marxismo – especialmente na versão do ‘materialismo dialético’ – não perce-be, portanto, que as contradições são somente lógicas, que só o pensamento pode

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contradizer-se e que na realidade ocorrem apenas confl itos, choques, lutas – aquilo que Kant chamou de Realrepugnanz ou Realopposition” (TAMBOSI, 1999, p. 279)4.

Nosso autor se mostra incapaz de pensar a realidade por meio de uma teoria marxiana das abstrações razoáveis – como o projeto chasiniano da redescoberta de Marx nos revelou –; mais ainda, assim como Marx não confundia as duas ordens, a do pensamento e do mundo objetivado, supõe que, como estas ordens são ontolo-gicamente distintas, o pensamento jamais poderá agarrar a raiz das próprias coisas. Ele se põe, portanto, no campo da linguagem. É forma de pensamento, produto de “jogos de linguagem”.5 Lógica autonomizada. Portanto, a verdade está no âmbito da lógica. Sendo assim, há uma impossibilidade de reconhecimento do pensamento como pensamento que reproduz o mundo concreto. De acordo com o fi lósofo da analítica paulista, esta posição marxiana está inteiramente carregada de viés hegelia-no, de misticismo lógico.

Giannotti bate pesado contra Marx, pois supõe falsamente que o fi lósofo ale-mão substituíra o “Espírito Absoluto” pela “História” regida por uma teleologia de fundo religioso. Considera o equívoco de Marx ocorrendo em função de sua proposta de “realização da Filosofi a”, na medida em que no desenvolvimento da “lógica do capital”, pela negação da “classe universal” própria ao desenvolvimento das forças produtivas materiais, não pode nascer uma consciência totalizadora da história humana.

Desse passo para uma afi rmação que lhe garante o acesso à lógica de Marx, afi ança de pés juntos que “é preciso levar muito a sério a advertência do próprio Marx de que suas categorias não são unicamente construções do analista, mas ten-tam captar formas de pensamento (Gedankenformen) pelas quais atuam efetivamente no cumprimento de suas respectivas tarefas” (GIANNOTTI, 1995, p. 65-6). Gian-

4. Referindo-se a Lucio Colletti, o autor diz: “Este é um ponto fundamental na teoria collettiana, porque corrobora a enfática afi rmação de que não existem contradições reais, objetivas, ou seja, não existem fatos contraditórios entre si: a contradição é exclusivamente lógica, do pensamento. /.../ Na realidade, para Colletti, só ocorrem oposições, confl itos, choques, lutas. Admitir – à maneira de Hegel e do marxismo – a existência de ‘contradições objetivas’, como se a realidade fosse regida por ‘contradições dialéticas’, implica violação do princípio de não-contradição” (TAMBOSI, 1999, p. 216). Esta noção também é desenvolvida por N. Hart-mann, de acordo com Tamposi (p. 217).5. Em várias passagens de O jogo do belo e do feio Giannotti fornece ao leitor sua “leitura” de Wittgenstein: “Um jogo de linguagem é, pois, uma invenção construída para mostrar como funcionam expressões signifi cativas, sendo que tais expressões podem ainda ser consideradas sob um ângulo a partir do qual seu sentido se exibe. /.../ Os jogos de linguagem são montados e descritos, montados à medida que passam a exibir regras que regulam a conduta de indivíduos capazes de aprendê-las; descritos, porém, a partir de nossa própria língua, que assim enuncia o modo de ser de tais regras.” (GIANNOTTI, 1995, pp. 12-4) Além disso, “Se um jogo de linguagem é sempre abertura para o novo, pois desde o início suas regras encarnadas em costumes estão sempre reque-rendo reajustes, a imagem do mundo exerce sua condição de meio de apresentação cercando-se de uma zona cinzenta em que o adequado e o inadequado fi cam em suspenso.” (GIANNOTTI, 1995, p. 17)

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notti não se dá conta, ou melhor, não diz ao leitor, que sua “leitura incoerente”, que se afasta da “doutrina ortodoxa” de um prisma só, de um único ponto de vista, já está vacinada e amoldada a toda uma produção ligada à teoria dos “jogos de linguagem” de Wittgenstein, e que continua a recorrer a empréstimos do estruturalismo de Lévi-Strauss, do sociologismo reifi cado e da fenomenologia.

Mas, se Giannotti sustenta que sua leitura, ou a sua interrogação dos sentidos e signifi cações da lógica marxiana, irão passar pelo marxismo (os fi éis ou não discí-pulos de Marx), não é isto que irá apresentar, pois se vale de “novos paradigmas”, no caso específi co, os “jogos de linguagem” de Wittgenstein, que possibilitariam decifrar a “gramática do capital”. E a teoria da expressão, lacuna que constata na obra de Marx.

Com a pretensão de descartar e liquidar o mais rapidamente possível a “re-descoberta de Marx”, identifi ca nele um caráter idealista, na medida em que estaria contaminada com o “vírus do misticismo lógico depois de terem sido mordidos pelo hegelianismo”. Estranha posição de quem demonstra a impossibilidade da consci-ência reproduzir o real enquanto “concreto pensado”. Em sua crítica a Chasin, o principal disseminador da ontologia estatutária de Marx em nosso país, Giannotti, porém, acaba por explicitar de modo mais visível o seu posicionamento:

Diria que se trata de um hiper-realismo, uma tentativa desesperada de saltar a dua-lidade do ser e do pensar, mas que me parece retomar um caminho que só pode levar à intuição intelectual do universal no caso. Contra Lukács, que aceita como um fato a passagem do universal para o singular por meio da particularidade, Chasin pretende expurgar qualquer viés gnosiológico, qualquer separação entre o ser e o pensar. As abstrações, mesmo aquelas razoáveis, que não possuem referente defi nido mas servem para estruturar o pensamento, resultam, como indica o próprio Marx, de operações praticadas pelos próprios agentes. Uma “análise efetiva e sua correlata produtividade só podem se manifestar pela escavação direta dos próprios objetos, reconhecidos como entifi cações engendradas e desenvolvidas por distintos movimentos contraditórios”, pois “tudo o que existe, tudo o que vive sobre a terra e sob a água existe e vive graças a um movimento qualquer” (primeira ob-servação da Miséria da Filosofi a), “ou, por outros termos, quando a determinação é voltada à esfera particular da sociabilidade” (GIANNOTTI, 2000b, p. 66)

Giannotti, sem levar em conta a totalidade das afi rmações ontológicas de Chasin, imputa à “redescoberta do pensamento de Marx” do criador do Movimento Ensaio o padecimento cruel do “hiper-realismo”; assim, a mesma lógica formal que diz encontrar na visão marxiana, perpassada por uma “intuição intelectual do uni-versal”, própria do idealismo ativo, que busca a identifi cação de um sujeito absoluto, está barrada de “fazer ciência”, ao tangenciar a linguagem hegeliana e brandir profecias e utopias da revolução do trabalho. É “hiper-realismo” supor a reprodução categorial

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do mundo concreto, a posse de uma consciência totalizante rente às contradições do movimento real? Aliás, como pretendemos mostrar, é Giannotti quem está todo devorado pelo logicismo. Marx, ao revés desta torção ideológica, verdadeira “impu-tação hermenêutica”, jamais poderia ser acusado de “misticismo lógico”, pois não se encontra uma sobra ou resquício de idealismo ou fi losofi a especulativa em seus trabalhos. Como não cansava de repetir Lukács, com sobras de razão, não há na obra marxiana nenhuma afi rmação que não seja de natureza ontológica.

O fi lósofo do marxismo adstringido prossegue com sua exposição desqualifi -cadora:

A partir daí Chasin passa a falar de uma “intensifi cação ontológica” da categoria simples a fi m de que ela possa transformar-se em complexa e mais rente aos fe-nômenos socioeconômicos. Dois pressupostos se infi ltram nessa maneira de pensar: o de que um movimento pode ser simplesmente lido como uma contradição de fato e o de que uma categoria ela mesma, porque resulta de procedimentos sociais defi ni-dos, de uma abstração sendo operada pelos próprios agentes em estudo, possui a virtude de vir a ser carregada de realidade efetiva. Somente não se sabe qual é o sentido de uma contradição de fato, nem como uma categoria que não seja momento do Absoluto tem a virtude de pôr seus casos. Poucos se livram do vírus do misticismo lógico depois de terem sido mordidos pelo hegelianismo (GIANNOTTI, 2000b, p. 66, grifos nossos).

Está claro que, para o crítico da analítica paulista, torna-se um procedimento lógico o de separar o modo de produção teórico do modo de produção real. Além disso, “erro hegeliano”, não é possível a categoria contradição, como categoria real, expressar sujeitos históricos vivos e atuantes, porquanto, pela natureza do capital, as representações são ilusórias.

Em “Marx além de Marx”, título emprestado de Antonio Negri, Giannotti, des-considerando inteiramente a teoria marxiana das abstrações, se vale de uma “con-tradição lógica”:

Seria possível seguir regras contraditórias? A pergunta parece paradoxal, visto que a contradição tem a virtude de inibir qualquer conduta. Como obedecer ao comando “mate e não mate”? A questão, pois, só pode ter sentido se as repre-sentações que pilotam o comportamento dos agentes forem negadas radicalmen-te na perseguição dos efeitos. Se esse for o caso, não se está investigando uma curiosidade gramatical, mas um modo muito peculiar de seguir uma regra, cujos resultados são o inverso daquilo a que o agente visa no primeiro momento. Isso é muito mais do que as conhecidas conseqüências involuntárias de uma ação (GIANNOTTI, 2000c, p.5).

Está claro que Giannotti não perdeu o seu vinco com as margens inscritas no pensamento fenomenológico, que busca a apreensão categorial – enquanto forma

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de pensamento – pela intencionalidade e sentidos dados pela consciência, transfor-mados em esquemas lógicos. “Como explicar a identidade dessas diferenças sem cair numa dialética do Absoluto ou, correndo maior risco, numa dialética negativa?” Daí, a idéia de contradição e a apropriação das contradições reais, na lógica giannottiana, serem problemáticas. Se para Marx, “Um ser sem objetividade é um não-ser, uma absurdidade”, as categorias ontológicas em sua complexidade, múltiplas, relacionais e carentes exprimem formas de seres históricos, modos de existência; para Gian-notti, com sua torção especulativa, “cada categoria é uma forma de pensamento” (GIANNOTTI, 2000a, p. 81).

Giannotti argumenta que “pedregoso será esse caminho de volta às próprias coisas”. Toda a sua interpretação será o de interrogar “em poucas palavras, como a dialética especulativa há de servir de modelo a um novo materialismo” (GIANNOT-TI, 2000a, p. 35). Um dos equívocos manifestos em Marx, dado pela ontologia do lógos, segundo Giannotti, é o de confundir os planos da universalidade abstrata com as formas sensíveis, não percebendo a natureza peculiar da “contrariedade” e da “con-tradição”. O real sempre apresenta oposições, no entanto, isto não conduz à negação da ordem das contradições. Capital e trabalho formam essa situação, que não leva necessariamente à ultrapassagem numa nova síntese produzida por um Absoluto.

Desde Origens da dialética do trabalho Giannotti imputará a Marx o “vínculo lógi-co” com o idealismo hegeliano, a mesma temática está enunciada: “Qual é porém a viabilidade dessa lógica manter-se fi el ao pensamento dialético? Por mais anti-hege-liano que seja seu princípio, nunca deverá romper inteiramente com a matriz antiga, pois será preciso conservar ao menos o movimento ternário do conceito e a teoria da contradição” (GIANNOTTI, 1966, p. 24).

Se Marx tem de completar o movimento ternário, o que é uma absurdidade, a contradição entre capital e trabalho deve necessariamente seguir o caminho con-ceitual. A ruptura contra o capital e a politicidade não implica, como pretende essa interpretação, uma “nova síntese” do movimento ternário. Marx jamais sinalizou para uma equação lógica. Em Miséria da fi losofi a, rebatendo as teses hegelianas de Proudhon, Marx explicitava que

Reduzidas todas as coisas a uma categoria lógica e todo movimento, todo ato de produção ao método, a conseqüência natural é a redução de qualquer conjunto de produtos e de produção, de objetos e de movimento a uma metafísica aplicada. /.../ Mas o que é este método absoluto? A abstração do movimento. E o que é a abstração do movimento? O movimento em estado abstrato. O que é o mo-vimento em estado abstrato? A fórmula puramente lógica do movimento ou o movimento da razão pura. Em que consiste o movimento da razão pura? Consiste em se pôr, se opor, se compor, formular-se como tese, antítese, síntese ou, ainda, afi rmar-se, negar-se, negar sua negação. (MARX, 1982, pp. 104-5).

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Ora não precisamos reproduzir todo o restante das refl exões marxianas, que precisamente se exaspera contra o pensamento metafísico de Proudhon. Esse “mé-todo absoluto”, bem o sabemos, cumpre uma fi nalidade concreta, a de elidir as contradições objetivas do processo real da vida social.

Os lineamentos ontológicos da fi losofi a marxiana orientam-se na direção da produção e reprodução da vida material capturando as determinidades da “existên-cia primária dos grandes complexos do ser” (Lukács),

pondo em primeiro plano o metabolismo humano-societário que as relaciona, que a sociabilidade transforma sem cessar em sua auto-edifi cação cada vez mais puramente social, consumando o progressivo “afastamento das barreiras natu-rais”, que tipifi ca o auto-engendramento do ser humano, no sentido da presença necessária, mas não determinante, da natureza na infi nitude intensiva e extensiva dessa entifi cação” (CHASIN, 1995, p. 381).

Chasin deixou confi guradas as três críticas ontológicas que se enlaçam dialetica-mente – a crítica da fi losofi a especulativa, da politicidade e do capital e suas expres-sões teóricas – a fi m de “ascender à decifração da mundaneidade imperfeita em sua realidade, para a esclarecer, compreendendo sua gênese e necessidade, ou seja, para a capturar em seu signifi cado próprio, por meio da determinação das lógicas específi cas que atualizam os objetos de seu multiverso” (CHASIN, 1995, p. 377).

Nesse sentido, um arcabouço teórico pré-concebido em relação ao real a ser desvendado é uma impropriedade no âmbito do complexo ontológico de Marx. “Se por método é entendido uma arrumação operativa, a priori, da subjetividade, con-substanciada por um conjunto normativo de procedimentos, ditos científi cos, com os quais o investigador deve levar a cabo seu trabalho, então, não há método em Marx” (CHASIN, 1995, p. 389). O próprio Lukács, em sua Ontologia do ser social, sina-lizou para o escasso tratamento marxiano das relações entre ontologia, gnosiologia e lógica, e mais especifi camente das questões gnosio-epistêmicas. Todavia, enfatiza Chasin,

não terá sido por resquícios de hegelianismo que Marx rompeu com o método lógico-especulativo, nem se situou, pela mediação do pressuposto ineliminável da atividade sensível do homem, para além da fundamentação gnosiológica. Isto equivale a admitir que a suposta falta seja antes uma afi rmação de ordem teórico-estrutural, do que uma debilidade por origem histórica insufi cientemente digerida (CHASIN, 1995, p. 390).

Não bastasse a destituição das contradições sociais como efetividades históricas passíveis de serem superadas pela práxis crítico-revolucionária e de acordo com a

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maturação histórica dos pressupostos práticos, segundo a explicação giannottiana, a concepção da contradição entre o desenvolvimento das forças produtivas mate-riais da sociedade com as relações sociais de produção existentes – cerne da teoria marxiana –, levaria a duas leituras inscritas na própria interpretação de Marx. “Na primeira versão, o homem como ser-genérico é posto no início e no fi m da história, seguindo um processo darwiniano de evolução das espécies. É o ponto de vista predominante quando Marx sublinha o aspecto histórico-natural desse movimento.” (GIANNOTTI, 2000d, p. 60, grifos nossos)

Como se vê, Giannotti repõe a sua velha cisma com um a essência humana incrustada na produção teórica de Marx, aproximando-a da generidade muda de Feu-erbach, porém modulada pelo evolucionismo darwinista. Num rebaixamento total, estranho ao talento do fi lósofo paulista, que jamais se permitiu tal descompostura intelectual, e tangenciando a vulgata marxista, prossegue com seus traços obsessi-vos:

Em virtude de sua própria generalidade refl exionante, como acontece com as espécies animais cindidas pela oposição macho-fêmea, a rede das relações sociais se particulariza segundo o modo de apropriação (propriedade) do excedente eco-nômico. E a história se constitui, assim, graças à sucessão temporal dos modos de produção, numa evolução contínua que culmina no modo de produção capitalista. Neste último passo, a oposição entre trabalho morto e trabalho vivo se cristaliza na contradição entre capital e trabalho, a qual, sendo levada a seu limite, cria o movimento de sua própria superação, repondo assim a generalidade do homem numa forma mais perfeita, o comunismo (GIANNOTTI, 2000d, p. 61).

A partir daí, Giannotti identifi ca na visão marxiana uma história teleológica de “cunho religioso”. Ridiculariza a revolução humana e a posição revolucionária de Marx comparando-o a um verdadeiro profeta: “A estrutura do capitalismo constitui-ria o termo fi nal de um longo processo evolutivo, cuja superação culmina na repo-sição da universalidade primeira em sua plenitude, salvando assim a humanidade do pecado do trabalho e da luta de classes” (GIANNOTTI, 2000d, p. 61).

Que estranha abordagem, que estranho e paradoxal desconhecimento das teses marxianas! Feita a chicana, típica de certa prática deformante, Giannotti mostra a impossibilidade de os pensamentos marxiano e marxista refl etirem as contradições das classes sociais no modo de produção capitalista.

Seja do ponto de vista historicista, seja da óptica da estruturação do sistema ca-pitalista, a difi culdade continua sendo pensar a luta de classes como processo contraditório, cujo movimento de clausura requer a intervenção de uma aparência necessária. Sem esse jogo necessário do aparente e do efetivo, do desenvolvimento de formas categoriais e empuxo das forças produtivas, não haveria contradição real, pois a mera oposição de formas ou de forças não pode, sem mais, ser dita con-

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traditória. Mas disso resultará uma série de problemas relativos a uma lógica do sen-sível, que, como veremos em seguida, escapa ao âmbito tradicional do marxismo (GIANNOTTI, 2000d, p. 62).

Como Giannotti não compreende o processo da individuação social no interior da interatividade humano-societária, evolver da autoconstituição humana no bojo de contradições reais, não compreende a lógica onímoda do trabalho, porquanto tudo se arma pelo construtivismo produzido pelos juízos extraídos de regras gramaticais, regras da lógica imputativa, porquanto não extraída por meio das abstrações reais. E, é claro, ainda que o crítico de Marx não a mostre, sua perspectiva é a do social-democrata que, descrendo da revolução humana ou do trabalho, prostra-se diante das mazelas da vida capitalista e espera o maior alcance do estado em, ao menos, diminuir tais sofrimentos humanos. O seu apelo maior, como se sabe, é mostrar o caminho pedregoso de Marx. A sua “relação ambígua” com a fi losofi a especulativa de Hegel.

No fi nal das contas, ele insinua, “Seria um cientista ou um visionário que teria namorado com o linguajar hegeliano?” “Desenvolve Marx uma análise científi ca ou simplesmente está propondo uma metafísica do social?” (GIANNOTTI, 2000a, p. 63) Segundo Giannotti, o fi lósofo alemão tem um modo de ver a “Ciência” que está mais próximo dos idealistas alemães do que a dos ingleses e franceses. A “Ciência” especulativa alemã,

Esta, como sabemos, se converte de imediato numa ontologia do lógos, pois a identidade in fi eri dos elementos do discurso deve ser a mesma das unidades da realidade em movimento racional. Obviamente essa identidade não pode ser man-tida pelo marxismo, pois este nega que tudo, em última instância, se revele mo-mento do Espírito. O que vem a ser então uma dialética da contradição que não tem o Absoluto como termo de partida e termo de chegada? (GIANNOTTI, 2000d, p. 62).

No entanto, esta indagação virá com a resposta devidamente antecipada: “Na juventude ou na maturidade por certo encontramos o mesmo esquema pelo qual um universal abstrato, a essência genérica do homem, há de converter-se, graças à negação e alienação, provocadas pela divisão social do trabalho, e à atividade regene-radora do proletariado, no universal concreto do comunismo. Mas essa negatividade possuirá a mesma lógica interna ao funcionar em estruturas diferentes? (GIAN-NOTTI, 2000a, p. 41).

No ensaio “Dialética futurista e outras demãos” Giannotti afi rma: Se a negação pode ter vários signifi cados, se a nenhum cabe sentido originário, torna-se impossível separar radicalmente a contradição da contrariedade. /.../ Mas desse meu ponto de vista torna-se crucial examinar como as oposições anta-

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gônicas se articulam e se diferenciam. As mudanças de forma pelas quais passam os produtos do trabalho, segundo as análises de Marx, entendidas como expressões de um produto por seu outro, aparecem então como um objeto privilegiado para examinar como é possível que agentes sigam regras contraditórias. Sob esse as-pecto, contradições passariam a existir na realidade, mas apenas naquela realidade que ela mesma é modo de expressão, forma de discurso tecendo uma forma de sociabilidade. Daí o interesse renovado em se estudar a fonte inspiradora dessa problemática: a lógica especulativa hegeliana. (GIANNOTTI, 2000b, p. 61-2).

Da mesma forma, interroga-se: “Ao elaborar um novo conceito de capital, do-tado de uma gramática própria, não empresta à alienação do trabalho uma nova dimensão, aquela de fetiche?” (GIANNOTTI, 2000a, p. 42). Assim, Giannotti ex-prime seu ponto de vista, que considera autenticamente científi co, porque professa a neutralidade axiológica ao apresentar o mundo por suas expressões lógicas. Gian-notti acredita que está procedendo nos mesmos moldes de Marx, todavia, sempre que pode anuncia a adesão marxiana ao procedimento crítico de Hegel.

É porque a crítica possui o sentido hegeliano de pôr em xeque a positividade do ser que o capital poderá ser entendido como sujeito-substância que requer a desmistifi cação das estruturações aparentes. Mas se esse procedimento imita o movimento das determinações de refl exão da lógica da essência, tal como Hegel o descreve, seu fundamento, em vez da Idéia, será o desenvolvimento das forças produtivas. Não somos então obrigados a esmiuçar o texto de Marx, a nos demo-rar nas conexões de suas formas lógicas para então compreender o próprio objeto a que ele visa? (GIANNOTTI, 2000d, pp. 32-3)

Ou, em outra passagem adiante: No entanto, convém não perder de vista que Marx, embora aceite que as contra-dições tenham sentido, nunca se propôs a estudar como isso pode ser possível, porquanto para ele existem contradições na realidade, de sorte que o discurso pode falar delas precisamente porque existem da óptica da não-identidade. Já que exis-tem, nossa tarefa é conhecê-las. Frisarei /.../ que as categorias do modo de produ-ção capitalista são formas de pensar, conseqüentemente formas discursivas, mas não é por isso que pensamento e realidade se identifi cam, como se todo ser fosse racional e vice-versa. Ao tratar de fazer Ciência, embora a seu modo, Marx subli-nha a diferença entre o “concreto espiritual” (geistiges Konkret) (G, 22) da teoria e o concreto tal como ele é e permanece sendo, a despeito de todo esforço de teoriza-ção. Pensa esse esforço em termos de uma apropriação, que produz seu resultado de verdade, de modo diferente, entretanto, das outras apropriações efetuadas pela consciência (GIANNOTTI, 2000d, p. 132).

Recorde-se, mais uma vez, que estamos diante de uma posição idealista que apresenta o mundo sempre por uma lógica especulativa, que busca diferenciar o ter-reno próprio das regras gramaticais que são “formas do pensamento”. Porque,

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Se Marx concebe a consciência teórica e a consciência artística sob o mesmo pa-radigma da produção coletiva, não é por isso que a transposição do material para o cérebro segue as mesmas regras nas ciências e nas artes. E o que importa é a especifi cidade dessas regras, que não são regras do pensamento ou da imaginação em geral, mas se conformam e ganham sentido junto dos conteúdos apropriados (GIANNOTTI, 2000d, p. 133).

Como se pode extrair disso, Giannotti mais uma vez põe a sua colher de contor-cionista para sua interpretação enviesada. Do seu ponto de vista, os termos produz e diferente signifi cam que são objetos existentes numa dada gramática real, mas que são também interpretações de sentidos múltiplos criando outra gramática no campo da lógica. Segundo lhe parece, Marx construirá, a partir de uma ordem de oposições, uma lógica de contradições, a fi m de alcançar o Aufhebung do capital pela revolução do trabalho (que não veio e não virá), ilusão das ilusões que jamais pode ser atingi-da.

A dação de sentido, no universo das contrariedades e contradições, aqui, na transmutação giannottiana, a partir de seus vícios logicistas, reside no fato de que a razão é sempre descentrada com relação ao ser, a verdade se situa sempre no plano da construção lógica. Há, portanto, como já salientamos, duas ordens de realidades. A ordem construída pelos juízos lógicos e aquela expressa no mundo das coisas. Vícios logicistas, diga-se de passagem, que não estão isentos de determinação so-cial, de perspectiva e horizonte social, sentido posto em seu próprio ser social. De Giannotti poderíamos dizer, do mesmo modo que Marx se dirigiu às boas intenções dos jovens hegelianos, que “nenhum desses fi lósofos teve a idéia de perguntar pela interconexão da fi losofi a alemã com a realidade efetiva alemã, pela interconexão da crítica deles com a própria circunstância material deles” (MARX, 1983, p. 186).

Segundo Giannotti, em sua “visão de sobrevôo” (Wittgenstein), o cientista deve abandonar a idéia de possuir uma visão privilegiada do todo histórico por represen-tar os interesses da classe trabalhadora e a ilusão de que poderia abarcar todos os se-gredos de um corpus teórico de um único ponto de vista (cf. GIANNOTTI, 2000a, p. 65). Entre o decifrar da lógica do capital, com o seu modo de ver a “Ciência”, e a postura revolucionária de “realização da fi losofi a”, de intervir “privilegiada e iluso-riamente”, Marx não teve como resolver os impasses que ele próprio se enredou.

Por isso desconfi o que entre o pensamento econômico de Marx e seu pensamen-to político se abre um abismo, travando a continuidade de seu trabalho. Não é à toa que permanece inacabado. Marx, como os melhores pensadores do ocidente, termina por levar ao limite uma forma de pensar, sua atividade criadora é mais forte do que a armação que levantou, de sorte que, quando seu discurso perde o pé, não lhe resta outro recurso a não ser escrever textos inconciliáveis entre si (GIANNOTTI, 2000a, p. 98).

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Dessa maneira, há um imbróglio que Marx não pode resolver. E aí reside o ba-nimento da revolução do trabalho no projeto giannottiano:

Que base formal teria o proletariado para se constituir em classe quando as cate-gorias mais complexas do sistema fi brilam, isto é, colocam-se como pressuposto das ações dos atores sem contudo fornecer-lhes os meios de medir a parte da riqueza social que lhes cabe? Como a contradição entre capital constante e capital variável, sempre sendo pressuposta, poderá encontrar suas determinações quanti-tativas, que somente se confi guram na comprovação do ato de medir? E se, além do mais, se esboroa a oposição entre trabalho produtivo e improdutivo – como calcular o trabalho produtivo que produz computador ou se realiza por ele? – onde os operários vão encontrar a medida que os transformaria em classe social? E sem essa demarcação, como o objeto da produção da riqueza social parte do trabalho morto sempre requerido por ela, converter-se-ia no sujeito que, além de construí-la, seria capaz de se apropriar dela? (GIANNOTTI, 2000a, p. 98).

Está claro, pois, que a própria movimentação do capital soterraria a teoria mar-xiana do valor-trabalho, facultada pela metafísica inerente ao sistema e pela desmedida do valor:

O capital variável traz vida nova para a totalidade do sistema, surge como se fosse parte do capital, trabalho morto, embora seja a única fonte de mais-valor. Mas se ele revigora a comunidade das coisas, com a introdução de máquinas tecnologica-mente avançadas, também vê anulada sua capacidade negadora: coloca-se medido como trabalho morto, mas se exerce dissolvendo a fronteira entre trabalho produtivo e improdutivo de mais-valia, vale dizer, impossibilitando a medida que lhe foi im-posta. Denuncia na prática a ilusão de fechamento do sistema, necessária para que ele seja posto como morto. Marx paga o preço de sua grande descoberta: a socia-bilidade capitalista é metafísica, funciona como um deus capaz de criar seu pró-prio mundo, mas a criação divina consiste na aparência da criação de um trabalho, que perde sua forma natural de se socializar (GIANNOTTI, 2000a, p. 103).

A história contemporânea não caminha no sentido que Hegel supunha, haja vista que

A força das coisas não carrega em seu bojo o motor de sua transformação em es-pírito, como queria Hegel. As coisas sensíveis/supra-sensíveis perdem seus perfi s ao longo do caminho de suas próprias individuações. Os processos responsáveis por suas respectivas produções, ao invés de se transformarem em discurso, em Verbo referindo-se a si mesmo conforme o mundo mostra-se o lado opaco de sua atividade pura, escapam da rede que os transformavam em coisas medidas e fazem valer o peso da matéria que o capital não é capaz de dizer. As relações sociais de produção não podem mais exprimir a totalidade das forças produtivas que elas mobilizam, a própria comunidade que o capital postula e repõe como força produtiva foge de maneira pela qual ele deveria exprimi-la (GIANNOTTI, 2000a, p. 104)”.

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Buscaremos demonstrar a pertinência ou não dessas questões. Contudo, po-demos sinalizar a partir de uma resenha da obra Certa herança marxista, feita por um amigo dileto, no Caderno Mais! da Folha de S. Paulo, na qual aparece, de modo nítido, quem são os suportes fi losófi cos do pensamento giannottiano. Numa antiga resenha de Giannotti ao positivismo de Gilles Granger, o fi lósofo uspiano se valia do conceito de “autoprodutividade do social”. Bento Prado Jr. explicita a base trans-cendentalista de sua concepção:

Nem será difícil entender essa passagem, aparentemente insólita, da fi losofi a da lógica para a ontologia do social, se lembrarmos a origem husserliana e transcen-dental de nosso fi lósofo. Com efeito, não é a idéia de constituição crucial no proce-dimento fenomenológico? Não opera ela tanto no nível da lógica transcendental como no das ontologias regionais? Mas a maior originalidade, nesse momento, e que distingue sua empresa de outras semelhantes na tradição fenomenológica, é a articulação que proporá entre a idéia de constituição e aquilo que poderemos chamar de a “lógica” do Capital (PRADO JR., 2000).

Sendo que, sob o fetiche do capital, “as condições de existência já estão grama-ticalmente articuladas, de sorte que o real é simultaneamente práxis e pensamento” (GIANNOTTI, 2000a, p. 85), não se apresenta a possibilidade de ruptura com estas “regras gramaticais”, o que leva a um “eclipse da revolução”. Bento Prado Jr. de-nuncia, dessa maneira, os limites de “uma certa idéia de razão” na visão do mundo giannottiana. “Qual é a conclusão fi nal de Giannotti? Ele encerra seu livro com a seguinte proposição: ‘Qual é, porém, o sentido da luta de classes, a luta pelo controle da norma, numa sociedade em que a norma fi brilou, serve para marcar intervalos cujo espaço intermediário, contudo, é preenchido por decisões ad hoc?’”. Bento Pra-do Jr. arremessa uma lança certeira sobre a impotência dessa crítica, em seu incrusta-do “fi m da história” e, por conseguinte, na sobrevida dada ao capitalismo. Visto que, “Grosso modo, haveria problema com o ‘projeto iluminista modesto’ de Giannotti, já que o recurso a Wittgenstein implica o reconhecimento de um limite essencial no processo de ‘desalienação gramatical’.” Bento Prado Jr. aponta para os limites dos propósitos giannottianos de santifi cação e prostração diante do capital, assim, vai mais longe ainda do que a crítica feita por outro cebrapiano a Giannotti. “Mas é preciso reconhecer que parece difícil conceber, como insiste Balthazar6, um projeto iluminista, mesmo modesto, ‘porque faz parte, eu penso, de qualquer gramática transcendental, a preservação da necessidade do erro gramatical’.” E arremata, com uma tijolada: “Santifi cação do que está aí?”.

A nova gramática da sociabilidade construída por Giannotti aponta para algu-

6. Referência ao fi lósofo Balthazar Barbosa Filho, professor do Departamento de Filosofi a da UFRGS.

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mas dimensões do mundo que afi rmam a falência do projeto de emancipação radical de Marx. O mundo do capital, com suas benesses e males, soterrou a força social – com a fragmentação do trabalho – portadora da emancipação do gênero humano e a fi losofi a radical norteadora de uma transformação social não se libertou de suas próprias contradições, fi cando impotente diante do ardil do Absoluto. A ilusão de revolução do trabalho de Marx – de que o historicamente novo brotaria do histori-camente velho – não se confi gurou, a não ser com a transformação dos sonhos em pesadelos.

Uma questão de fundo da fi losofi a giannottiana é o banimento da emancipação humana geral e o processo social de individuação. José Chasin apontou com precisão para o fato de que o marxismo adstringido se constitui por meio de

operações redutoras que perfi laram uma versão do marxismo circunscrito à con-dição de lógica ou método analítico e de ciência do capitalismo, para a qual fi cou irremediavelmente perdido o centro nervoso do pensamento marxiano – a pro-blemática, real e idealmente inalienável, da emancipação humana ou do trabalho, na qual e somente pela qual a própria questão da prática radical ou crítico-revolucio-nária encontra seu télos, identifi cando na universalidade da trama das atividades sociais seu território próprio e resolutivo, em distinção à fi nitude da política, meio circunscrito dos atos negativos nos processos reais de transformação (CHASIN, 2000, p. 7).

Giannotti deposita as refl exões de Marx como mais um capítulo das intenções utópicas que desembocaram no lixo da história. A “classe universal” do proletaria-do foi esmigalhada pela revolução tecnológica e pela desmedida do próprio valor-trabalho.

Em verdade, Giannotti está preso às posições de Georg Lukács de História e consciência de classe, transferindo suas problemáticas para as de Marx. Com suas raízes hegelianas, Giannotti atribuía ao proletariado a capacidade de produzir, com a revo-lução socialista, uma identidade entre o sujeito histórico com a própria vida históri-ca. O proletariado seria a única classe revolucionária a possuir o “ponto de vista da totalidade”. Marx, entretanto, jamais colocou a questão da revolução social do pris-ma gnosiológico. Para Giannotti, com a globalização do capital, o “sujeito universal” e o prisma da totalidade se despedaçam. Em nosso presente, com a globalização do capital e a superação do “marxismo” e do “comunismo”, gerando a “fragmentação e a perda da centralidade do trabalho” no sociometabolismo do capital, como ima-gina Giannotti, a classe operária não possui mais o ponto de vista da “totalidade” e tampouco pode cumprir a missão do “sujeito universal” da revolução. Posto dessa maneira, estamos diante de um falseamento e transplante de um parecer lógico para a práxis histórico-social, invalidando por meio de uma atribuição gnosiológica as

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possibilidades concretas da emancipação humana geral.Como se pode depreender disso, Giannotti opera com uma ontologia restrita à

esfera do trabalho, e não uma ontologia estatutária do ser social em sua processua-lidade histórica. A perspectiva da emancipação dos indivíduos sociais, da lógica oní-moda do trabalho, “não pode extrair sua poesia do passado, mas sim do futuro”. A nova forma histórica implica a superação do capital e da política, implica uma orien-tação metapolítica que se dirija ao auto-revolucionamento das personalidades em seu cotidiano universalizado pelo desenvolvimento das forças produtivas materiais, o que vale dizer, com as capacidades subjetivas cada vez mais ampliadas, genéricas e possibilidades virtuais a seu alcance para o atendimento pleno – ainda que sempre marginado por circunstâncias históricas a serem transformadas – de seus carecimen-tos de modo infi nito e permanente.

Não precisaria tanto esforço para saber que Marx está à cata de um Absoluto e este é o “sujeito universal”: o proletariado. Desse modo, o “sujeito universal”, como se apresenta no marxismo adstringido, é uma aberração no que tange às refl exões de Marx. Alimentar essa ilusão é o mesmo que dizer que uma revolução social é fruto do “misticismo lógico” de talhe hegeliano, que Marx tinge com as cores de seu materialismo, para torná-lo cego diante da realidade histórica. É imaginar uma porção utópica, uma espécie de viseira que tangencia o projeto marxiano acerca da necessidade de um novo metabolismo social, não mais sob o estatuto organizador do capital, mas do trabalho. Giannotti, sem ter essa pretensão, abraça as teses do “fi m da história”. Só nos resta, portanto, admitindo suas teses, o esforço político em aprimorar as regras democráticas do universo regido pelo capital.

Mesmo um autor que sempre se pôs num tom apologético ao atual desenvol-vimento das forças produtivas materiais, autêntica revolução dos instrumentos de produção, mostra-se, no entanto, constrangido a afi rmar que “Mais do que o jogo do poder pelo poder, circunscrito por uma gramática própria, essa política, para que não seja impossibilitada pela dispersão das forças econômicas atuais, requer que se proponha a colocar um limite na expansão de forças produtivas que criam tanto a riqueza como a miséria dos homens”. Dessa maneira, Giannotti pretende, por meio da política, barrar o avanço das forças vitais da sociabilidade, organizar a dispersão causada pelo capital, uma vez que há uma desmedida em sua reprodução ampliada, o capital perde o seu metro, “coloca-se a tarefa de conciliar as contradições que ele cria sem poder resolver no mesmo plano em que se move. A história contemporâ-nea escapa de sua gramática e perde de vez sua referência natural” (GIANNOTTI, 2000a, p. 104).

Jamais poderá, portanto, compreender, nos termos chasinianos, que:

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A revolução social como possibilidade real, posta pela lógica onímoda do trabalho, não é a afi rmação de uma classe – dita universal, mas a afi rmação universal do homem. Não é a afi rmação do proletariado como classe universal, mas da sua condição de classe negada, de uma classe que não é uma classe da sociedade civil; é essa condição de classe negada – que não reivindica nenhum privilégio histórico, mas a simples condição humana – que é a mediação para a afi rmação da universalidade humana dos indivíduos universalizados. (CHASIN, 2000, p. 62)

Giannotti se lança, assim, à crítica de Marx a partir de uma posição contemporâ-nea, da perspectiva do futuro ausente, numa época que se caracteriza pela suprema-cia, sem resistência radical, do capital, pela potencialização inaudita das forças pro-dutivas e pelo fracasso do Leste europeu. Crítica esta que não mais pode se deter no âmbito do próprio pensamento do autor, e que também deve se reportar às inúmeras interpretações dos conceitos marxianos em seus “desdobramentos e contorções”, o que signifi ca se conformar com a regência do capital, a forma superior imbatível, no que tange à produção das riquezas.

Com esta propositura, Giannotti se distancia do próprio mundo, desconhecen-do a natureza do metabolismo social do capital nos países do Leste europeu, iden-tifi cadas como modo de produção comunista. Daí sua certeza: o modo de produzir de riquezas sob a lógica do capital se mostrou superior a qualquer outra forma de organização produtiva, incluindo a “comunista”.

Nas palavras do fi lósofo da analítica paulista, “Não parece haver, para o modo de produção da riqueza, outra forma que não o capitalismo”. Nesse sentido, o capitalismo sur-ge como uma espécie de fi m da história – ainda que Giannotti continue a negar esta visão –, faltando a impregnação da ética política da perspectiva social-democrata, da edifi cação de um estado político ajustador das mazelas que essa mesma forma par-ticular de metabolismo social segrega, como causa do desenvolvimento das forças produtivas materiais ilimitado e sem peias políticas. O capitalismo cria a fi gura dos sem-emprego, “recria o trabalhador isolado de suas condições de existência, colo-cando-o sob a ameaça de fi car de fora do metabolismo que o homem mantém com a natureza”. Por esta razão, o sujeito histórico da revolução, como vimos, esboroa-se pelo processo de desenvolvimento das forças produtivas. Giannotti faz crer que, ao tentar o desvelamento da lógica do capital, Marx visa à captura de sua racionalidade. O marxismo “rejeita a mera justaposição da moral à ciência, procurando descobrir no âmago da racionalidade capitalista aquele empuxo capaz de transformá-la por dentro e por inteiro e, desse modo, pavimentar o caminho para emancipar o gênero humano desse vale de lágrimas” (GIANNOTTI, 2000d, pp. 8-9).

Nas oposições destacáveis do capitalismo, Marx supunha que “o lado negati-vo, o proletariado, nada tendo a perder a não ser suas próprias cadeias, terminasse

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sabendo exercer o positivo inscrito em sua negatividade”. A dupla negação captada e projetada por Marx, transforma-se em sua visão, num positivo que emerge da negatividade. Vislumbre metafísico inscrito no projeto marxiano, “o comunismo anunciaria a verdade da luta de classes, processo de superar os confl itos passados a fi m de desenhar aquela totalidade que confi gura uma história universal a englobar na sua presença a arquitetura do passado” (GIANNOTTI, 2000d, p. 10).

Em suma, Marx jamais afi rmou que a revolução contra o sistema metabólico do capital, no fi m da linha, abraçaria a “arquitetura do passado”. Seria isto a harmonia do homem com ele e com a natureza? No que consiste essa afi rmação de Giannotti? O “comunismo” seria expressão de uma dialética hegeliana, que o passado se re-constitui sob outra forma no momento de uma nova síntese? Porém, para o nosso fi lósofo, a derrocada das formações pós-revolucionárias mostrou que essa raciona-lidade do capitalismo se constitui numa força insuperável. Aí está porque temos de ler Marx a partir do presente: o mercado não pode ser ultrapassado (é arquitetura do passado?), o capital, nessa visão social-democrata, não pode ser superado totalmen-te: “Não duvido que o fracasso do socialismo levante muitas questões para todos aqueles que apostaram na completa abolição de uma economia de mercado, na denúncia dos engodos da economia e da política, ambas havendo de ser substituídas pela adminis-tração racional das coisas” (GIANNOTTI, 2000d, p. 11).

Como vimos ao longo de todo esse tempo, Giannotti se contorce por meio de suas “imputações hermenêuticas”, mostrando que a fi losofi a de Marx está permeada do “misticismo lógico” próprio à fi losofi a de Hegel. Porquanto,

Ao afi rmar que o capital é uma contradição existente em processo de resolução, até que ponto Marx não se compromete com esta Ciência da Lógica que, para poder separar o princípio da identidade e o princípio da contradição, necessita fundir num único cadinho determinações de pensamento e determinações do ser? Mas, assumindo o ponto de vista da fi nitude, denunciando o misticismo de um lógos capaz de absorver integralmente as peripécias do real, que reviravoltas Marx necessitou praticar para ver no capital um sistema de antagonismos irredutíveis caminhando para sua auto-superação? Seria um cientista ou um visionário que teria namorado com o linguajar hegeliano? (GIANNOTTI, 2000d, p. 11).

Por outra parte, é notável que Giannotti é de fato quem está impregnado de fi losofi a especulativa, atravessado por um idealismo mistifi cador7. Com a sua ma-

7. Cabe assinalar que estamos diante de um falseamento e transplante de um construto lógico para a práxis histórico-social, invalidando por meio de uma atribuição gnosiológica as possibilidades concretas da emanci-pação humana geral. Como adverte Mészáros: “Visto que Marx sempre afi rmou a primazia da prática social como o ‘Übergreifendes Moment’ da dialética entre teoria e prática, não via vantagem alguma em utilizar princípios fi losófi cos abstratos – como a ‘identidade do Sujeito e do Objeto’ hegeliana – para realizar o traba-

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gistral crítica à Marx e aos seus herdeiros, abraçado às denúncias ideológicas de extração conservadora, a pergunta que nos resta a fazer é: se a fi losofi a é sempre metafísica, qual é o projeto político de Giannotti, a não ser a de uma minguada social-democracia à brasileira conciliada à terceira via dominante?

Dessa forma, reduzida à sua forma parlamentar, a democracia – meio orgânico da dominação burguesa – deixa intocada a natureza da relação-capital, fundada no corte entre proprietários dos meios de produção e da riqueza socialmente produzida e os não-proprietários. Portanto, tal como na visão liberal, que eterniza a diferença his-tórico-social, estabelecendo, assim, uma divisão ilusória do poder plural de categorias sociais antagônicas. Fica excluída, pois, a idéia cara a Marx de que o estado moderno, em qualquer de suas formas, é sempre forma de opressão, “excrescência parasitária”, monopólio da violência e da lei, ditadura de classe, obstáculo à efetivação de uma autêntica emancipação humana; não sendo assim, senão o “anel de ferro” que repro-duz, moto-contínuo, a sua anatomia. Ou, como enfatizava Chasin:

A questão, hoje, não se esgota no reconhecimento de que a revolução não está na linha do horizonte prático, nem que o capital, refulgente, consolidou a prorroga-ção de sua utilidade histórica, mas indagar, diante da miséria material, que se am-plia, e da miséria espiritual já universalizada (já contando inclusive com o discurso justifi catório da desrazão contemporânea), se pode ser eterno o conformismo diante do mal-estar da humanidade, do mal-estar indisfarçável de cada individu-alidade, do apodrecimento radical de toda individualidade, pois no processo da individuação capitalista são indissociáveis o enriquecimento e o apodrecimento da individualidade, pois sem o apodrecimento ela não subsiste no quadro vigente. A crítica é a luta contra o apodrecimento e não se pode limitar à suposta “crítica ra-dical”, que só leva à desolação. Só pode ser entendida como crítica radical àquela que se autotranscende, que vai para além dela, que por seu valor se confi rma na prática. (CHASIN, 2000, pp. 52-3).

Mesmo que se possa reconhecer que o proletariado “não foi capaz de se realizar como a dupla negação prevista por Marx” (CHASIN, 2000, p. 66). Se a humanidade está envolta numa nova etapa da acumulação capitalista sem paralelos, o proletariado – antiga ponta da lógica onímoda do trabalho num determinado desenvolvimento histórico – também padece das conseqüências do revolucionamento das forças pro-dutivas e, portanto, de sua forma social de existência. O que vem a ser, então, essa “dupla negação” anunciada por Marx? Chasin responde que este ser social

materializou-se apenas enquanto primeira negação, enquanto expressão da po-breza e da opressão, só como fi gura da exploração capitalista, lutou apenas como

lho da história real de modo apriorístico. Na verdade, sempre deu ênfase à maturação de algumas condições objetivas, sem as quais o ‘canto solo da revolução do proletariado’, por mais consciente que fosse, se tornaria inevitavelmente ‘um canto do cisne em todas as sociedades camponesas’ – ou seja, na maior parte do mundo.” (Cf. MÉSZÁROS, 1996, p. 355).

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vítima da miséria. Jamais se materializou como negação da negação, aquele que, ao negar a própria negatividade e se auto-suprimir, suprime a miséria espiritual e material de modo universal. Foi simplesmente incapaz de lutar como a negação da negação (CHASIN, 2000, pp. 66-7).

E numa formulação típica de sua força intelectual: O proletariado contém apenas a possibilidade de ser a negação da negação, que lhe é conferida de modo intrínseco e ineliminável pela lógica onímoda do traba-lho. Essa potência ou propriedade não é uma particularidade autônoma e exclu-siva do proletariado, ou de qualquer outro contingente temporário do trabalho alienado. Os contingentes de ponta em geral podem ter a possibilidade de encar-nar essa potência, mas não a realizam obrigatoriamente. Nem por isso, pelo fra-casso desse ou daquele agente concreto, essa possibilidade desaparece. É um bem potencial das formas mais avançadas do trabalho, não de um de seus agentes em especial, que se mantenha para sempre como categoria particular. Uma potência universal do trabalho que, enquanto tal, se conserva para além da era do capital como êmulo constante da revolução permanente do homem na infi nitude de sua humanização. Latência nas formas do desenvolvimento das forças produtivas do gênero, que pode ser encarnada, na sucessão histórica, por agentes distintos, cuja identidade será sempre a do contingente que trabalha com a tecnologia de ponta (CHASIN, 2000, pp. 66-7).

A grande questão que Chasin buscava responder estava inscrita nas alternativas concretas de nossa própria realidade universalizada: “o que é hoje a grande indústria, qual a base de sua criação do valor, e quem é seu ‘produto mais autêntico’”. Não se trata, assim, de restaurar um mito, de modo algum repor a idolatria do proletariado, com a viseira passadista da esquerda nacionalista e saudosista. É pertinente, pois, para o nosso debate, que seja enfatizado que os novos sujeitos que brotam do siste-ma metabólico do capital, em nova confi guração, referem-se aos produtores diretos que operam por meio das forças produtivas de ponta (cf. CHASIN, 2000, p. 69).

Refi nando sua própria análise, Chasin apreendeu como poucos as determina-ções essenciais da nova progressividade da acumulação mundial do capital:

O nível atual de desenvolvimento das forças produtivas está em contradição com as relações sociais de produção (relações de propriedade no plano jurídico), engen-dradas pela lógica da propriedade privada em sua forma histórica mais evoluída – o sistema de controle e ordenação do capital. Ou seja, a capacidade humana alcançada para a produção de seu mundo próprio é superior e mais potente do que a organização social que os homens permanecem obrigados a tolerar, contra a qual se debatem. As relações sociais, a partir das quais aquela capacidade foi produzida, não são capazes de conter e tirar proveito de sua realização, enquanto tais, para se conservarem ferem de morte a própria humanidade, tornam letal a sua maior realização: a) aniquila parte da própria humanidade, dos produtores da realização; b) aniquila a autoprodução da individualidade, acentua a alienação (do

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produto, do trabalho, do gênero); c) agora a dispensa do próprio trabalho (aliena-do) (CHASIN, 2000, p. 73).

A tentação óbvia, diante de nossa quadra histórica – o estancamento das tran-sições, o revigoramento das forças do capital, a supremacia bélica norte-americana, a morte das esquerdas e a hegemonia absoluta da “usina do falso” na cultura mun-dializada – é a de olhar para trás e apontar os equívocos e lacunas de Marx. Esta tentativa já foi feita à saturação pela inteligência manipulatória do capital. Está claro que o “futuro ausente” se apresenta como o molde atual, dado pelas circunstâncias históricas, mas que, ao invés de nos fazer recuar deve, muito pelo contrário, lançar-nos ao encontro do “otimismo ponderado”, que vislumbrava um traçado radical necessário à luta contra essa “impotência” e “apodrecimento sob a própria pele”. Porque, assegurava Chasin,

o futuro humano, se futuro houver, será posto pela possibilidade emergente das perspectivas da síntese do saber – a fusão entre o melhor e mais avançado do sa-ber científi co-tecnológico e o mais agudo e universal do saber humanista, ou seja, da aglutinação natural entre o saber do mundo e o saber de si. Hoje, o homem já está se tornando o demiurgo da natureza, falta se converter no demiurgo de si mesmo. Numa palavra, capacidade ilimitada de produção material, domínio da vida de seu próprio gênero e do planeta, e humanismo, no sentido de capacidade de produ-ção do humano. Em síntese, capacidade de produção da vida, inclusive da genuína vida consciente (CHASIN, 2000, pp. 72-3).

No centro de suas refl exões humanistas sobre as possibilidades abertas em nos-so tempo pelo “novo emergente” na complexa contraditoriedade do capital está a atividade crítico-revolucionária. Atividade que denuncia a miséria estrutural, física e espiritual, do universo regido pelo capital. Sem os “agentes sociais interessados” uma nova forma de interação humano-societária não pode emergir por um automa-tismo espontâneo propiciado pela própria lógica onímoda do trabalho.

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educação e ciências humanasEspaço de interlocução em ciências humanas

Ano V, novembro de 2008 – Publicação semestral – ISSN 1981-061X

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A crítica chasiniana à analítica paulista

Vânia Noeli Ferreira de Assunção*1

Lúcia Aparecida Valadares Sartório**2

* Socióloga, mestre e doutora em Ciências Sociais pela PUC-SP. Professora dos cursos de pós-graduação lato sensu: História, Sociedade e Cultura da Cogeae/SP; Fundamentos e Práticas de Promoção Social da Faculdade Paulista de Serviço Social de São Caetano do Sul; e Gestão Escolar da Unicastelo. Professora da graduação em Pedagogia e Serviço Social da Unicastelo.** Socióloga, mestre em Filosofi a pela PUC-SP, doutoranda em Educação pela UFSCar.

Resumo: Este artigo versa sobre as críticas realizadas pelo pensador marxista brasileiro J. Chasin (1937-1998) às teorias da escola sociológica ligada à Universidade de São Paulo, por ele designada analítica paulista, nominalmente: teorias da dependência, do autoritarismo, da marginalidade e do populismo.

Palavras-chave: Teoria da Dependência; Teoria do Autoritarismo; Teoria do Populismo; Escola Socioló-gica Paulista; José Chasin.

Chasin´s critique to the São Paulo School of SociologyAbstract: This article studies the critiques developed by the Brazilian marxist thinker J. Chasin (1937-1998) of the Sãa Paulo School of Sociology´s theories. These theories were linked to the University of Sao Paulo and named by Chasin as “analítica paulista”, nominally: theories of dependency, authoritarism, marginality and populism.

Key words: Dependency Theory; Authoritarism Theory; Theory of Populism; São Paulo School of Sociology; José Chasin.

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Dentre as inúmeras contribuições do pensador marxista brasileiro J. Chasin para a compreensão da realidade nacional avulta a crítica que fez a um conjunto de teorias que, durante a ditadura militar, ganhou notoriedade e grande primazia na pretensão de elucidar formação e realidade nacionais. Trata-se das teorias da margi-nalidade, do autoritarismo, da dependência e do populismo – produzidas quase ao mesmo tempo na tentativa de criticar a história do pré-64 e, concomitantemente, apresentar uma alternativa política e social para o país. Contudo, quase sempre camufl aram a compreensão das várias facetas que compõem a realidade brasileira, contribuindo para a não confi guração de um novo quadro econômico e social.

Chasin denominou as produções teóricas desenvolvidas pelos intelectuais que atuavam na USP e no Cebrap, como Fernando Henrique Cardoso, Francisco We-ffort, José Arthur Giannotti e outros, de analítica paulista. Caracterizada por uma visão adstringida do marxismo, a escola sociológica paulista constituía-se num ver-dadeiro amálgama com infl uxos weberianos (base da sociologia da modernização), estruturalistas e fenomenológicos, entre outros, sempre cimentados por uma pers-pectiva liberal-democrática que toma o estado liberal europeu como o “ideal” a ser perseguido – tanto teórica quanto praticamente.

Estas produções teóricas foram largamente disseminadas durante três décadas, o que torna ainda mais pertinente recuperar algumas refl exões realizadas por Chasin em torno delas. De fato, a crítica que este realizou à analítica paulista se mantém atu-al e pertinente, pois aqueles ideários não foram abandonados como explicação de certo período de nossa história, ainda que não tivessem dado conta das especifi cida-des de nossa formação. Na verdade, eles foram propriamente incorporados, tomados como pressuposto e, portanto, embasaram produções teóricas posteriores.

Outros autores também desenvolveram uma análise crítica sobre alguns as-pectos da sociologia uspiana. Gilberto Vasconcelos e Rubem Barbosa Filho, por exemplo, ressaltaram o vínculo da teoria do populismo com a liberal-democracia. O espanhol radicado na Colômbia Jesus Martin Barbero, sob uma vertente teórica ainda mais distinta, também chama a atenção para o modo como foram realizadas as análises sobre os governos latino-americanos entre as décadas de 40 e 60, redu-zindo todos aqueles processos de período populista. Limitamo-nos aqui a trazer à baila os elementos da crítica chasiniana, sempre levada a cabo na análise específi ca de situações sociais que sofriam infl uências daqueles corpos teóricos. Nossa tarefa nesse artigo é bem mais restrita, apenas relembramos os principais argumentos da crítica chasiniana, pressupondo que seja complementada pelos demais artigos que compõem esta coletânea comemorativa.

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Do Imperialismo à Interdependência

Com o fi nal da Segunda Grande Guerra, a Organização das Nações Unidas (ONU) disseminou pelos continentes núcleos que objetivavam apoiar o replaneja-mento das economias nacionais. No nosso caso, foi criada a Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe (Cepal), em 1948, com sede em Santiago do Chile, por onde passaram brasileiros como Celso Furtado, Maria da Conceição Tavares, José Serra, Luiz Gonzaga Belluzzo e João Manoel Cardoso de Mello. Suas atividades teóricas se intensifi caram entre fi ns dos anos 1950 e início da década seguinte, quan-do os processos de industrialização ocorridos na região mostraram sérias limitações que precisavam ser compreendidas.

Em suas análises econômicas, a Cepal, sob forte infl uência de Celso Furtado, criticava o liberalismo e aduzia a existência de um imperialismo conduzido pelos países centrais, que não apenas impediam o desenvolvimento econômico das empre-sas brasileiras como atrofi avam a existência de um capitalismo nacional. Em outros termos, a Cepal via o subdesenvolvimento latino-americano como relacionado a situações históricas recentes (e não apenas à colonização), ou seja, ao imperialis-mo, cujo maior interesse seria manter a América Latina produzindo bens primários. Desta forma, a divisão internacional do trabalho, que redunda em desenvolvimento desigual e combinado, reduzia-se a um vínculo abstrato e unidimensional, “através do qual a irradiação do pólo subordinante era responsabilizada sozinha por toda a determinação, dissolvendo, assim, a legalidade específi ca do pólo subordinado” (CHASIN, 1989, p. 74).

De outra parte, com uma visão mais voltada aos aspectos políticos, intelectuais do Instituto Superior de Estudos Brasileiros (Iseb) – como Álvaro Vieira Pinto, Ro-land Corbisier, Michel Debrun, Alberto Guerreiro Ramos, Ignácio Rangel, Rômulo de Almeida, Ewaldo Correia Lima, Nelson Werneck Sodré, Helio Jaguaribe e Candi-do Mendes de Almeida – avaliavam o desenvolvimento como um processo histórico que pressupunha uma revolução industrial e uma revolução nacional que tornasse o país apto à formulação e ao estabelecimento de uma estratégia nacional de de-senvolvimento. Partiam da idéia de que havia uma burguesia nacional que poderia representar os interesses gerais da nação, não obstante o caráter contraditório desta aliança. Seu objetivo era elaborar uma interpretação da crise em que o país estava inserido a fi m de esclarecer e mobilizar as esquerdas, lideradas por uma vanguarda esclarecida.

Como contrapartida ao imperialismo dominante, a Cepal e o Iseb (cuja análise política fora apropriada pelo PCB) propunham o desenvolvimento regional com base em uma estratégia que unisse as burguesias nacionais sob orientação dos técni-

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cos do estado. Tratava-se de uma proposta de desenvolvimento fundamentado num planejamento econômico com acentuado protagonismo estatal, baseado na indus-trialização e com viés nacionalista. Em sua visão, o desenvolvimento unia progresso técnico e elevação dos padrões de vida das massas populares, processo este iniciado com uma revolução capitalista de caráter nacionalista, capitaneada pelo estado e pelos capitalistas nacionais.

Assim, no dizer de Chasin, “a teoria vulgar do imperialismo era solidária com a fantasia do capitalismo nacional autônomo” (CHASIN, 1989, p. 75). Esta crença na possibilidade de completude do capitalismo nacional (em termos econômicos, so-ciais e políticos) se somava, no caso da Cepal, a uma visão parcial e linear do proces-so, que desconsiderava as confi gurações específi cas do desenvolvimento nacional, salientando unilateralmente a importância do pólo externo.

Rebelando-se contra tais insufi ciências teóricas, a teoria da dependência, surgida nos anos 1960, pretendia oferecer uma alternativa teórica e prática aos países latino-americanos. Foi formulada para tentar apreender a estruturação e a dinâmica do pólo subordinado, sua natureza concreta e as conseqüências desta advindas. Assim, inver-tiam-se os termos e “dependência” – qualifi cativo próprio à periferia – contrapunha-se a “imperialismo” – designativo da forma de dominação dos países centrais.

Se houve uma tentativa de realizar uma teoria da dependência de viés marxis-ta (especialmente com Theotônio dos Santos, Ruy Mauro Marini e André Gunder Frank), a maior infl uência veio de autores que se inspiraram largamente na teoria de Max Weber – nominalmente, Fernando Henrique Cardoso e Enzo Faletto. Com estes últimos, em especial, a teoria da dependência se afastou signifi cativamente dos parâmetros analíticos marxianos, incorporando outros referenciais teóricos e distan-ciando-se dos seus propósitos.

Seu objeto principal eram as relações das economias dos países periféricos com as dos países centrais, hegemônicos, dos quais os primeiros eram dependentes. Esta situação de dependência, diziam, estruturava as relações políticas, econômicas e sociais que caracterizavam o tipo de desenvolvimento dos países dependentes ou periféricos. Tratava-se de uma sorte de círculo vicioso em que as economias periféri-cas, baseadas quase sempre na produção agroexportadora, reforçariam a situação de dependência em relação aos capitais e tecnologias produzidos pelos países centrais, dependência esta que terminava por plasmar as possibilidades de decisão e ação de tais países.

Contrapondo-se à visão isebiana, os teóricos da dependência avaliavam que a burguesia nacional era uma impossibilidade histórica. Atribuíam o subdesenvolvi-mento não apenas ao imperialismo, mas também à incapacidade intrínseca à bur-

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guesia brasileira de dedicar-se a interesses legitimamente nacionais e persegui-los revolucionariamente. Chegavam a afi rmar que era inverídica a oposição do centro imperialista à industrialização da periferia, valendo-se dos exemplos das multinacio-nais que se instalaram no país desde os anos 50. Não haveria impedimento, e sim um condicionamento nefasto do desenvolvimento nacional (concentrador de renda no plano econômico e autoritário no plano político), mas a participação das empresas multinacionais e das instituições de empréstimo era tida por eles como imprescindí-vel ao desenvolvimento nacional.

Assim, diante da impossibilidade de uma revolução burguesa nacional, elidindo-se a força das formações subordinantes e descartando-se desde logo uma revolução socialista, restava a esta teoria propor uma associação com o capital estrangeiro, ou seja, terminava-se por legitimar o capitalismo dependente e associado que se instituía no Brasil. Da dependência chegava-se, por tais vias, à interdependência, com a supressão da relação desigual entre os estados nacionais. Ao justifi car dessa maneira o atraso econômico do país, a teoria da dependência acabou por considerar apenas a universalidade do capitalismo enquanto tipo ideal e, por isso, reduziu as diferenças internacionais a graus de desenvolvimento das nações, considerando a possibilidade de os países “subdesenvolvidos” alcançarem um patamar semelhante ao dos países centrais. Dissolveu, desta forma, toda “possibilidade de traduzir teoricamente o laço real que ata o país ao capitalismo mundial” e retomou “a velha quimera do supe-rimperialismo com suas expectativas de felicidade planetária, através da civilização racional do capital em dueto com a perfectibilização dos processos representativos e operacionais do estado” (CHASIN, 1989, p. 75). Nessa perspectiva, a teoria da dependência repôs as antigas teses do desenvolvimentismo produzidas pela Cepal e difi cultou tremendamente a compreensão correta do imperialismo – uma das facetas do historicamente velho.

Não apenas a via da universalização não foi entendida, mas também a própria entifi cação nacional enquanto circuito do capital. Em outros termos, esta tese pulve-rizou a categoria da particularidade, e dessa forma, descurou do efetivo processo de constituição do capitalismo no Brasil e das diferenças reais com relação aos países centrais – ou seja, das objetivações subordinante e subordinada. Com tudo isso, a teoria da dependência terminou recaindo no erro oposto ao que criticava na tese cepalina do imperialismo:

enquanto a refl exão sobre o imperialismo no pré-64 fazia desaparecer da análise a forma-ção subordinada, a nova perspectiva teórica operava a mágica de dar sumiço à irradiação das formações subordinantes e ao próprio nexo problemático da relação desigual entre as formações, esvaziando o caráter dessa vinculação fundamental nas generalidades dos temas referentes à internacionalização do capital (CHASIN, 1989, p. 75).

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O mesmo foi feito sobre a relação capital e trabalho: a teoria da dependência colocou à margem as classes sociais contraditórias para tratar das lutas sociais como efetuadas entre agentes em confl ito – via seja, indivíduos isolados cujos interesses duelam, mas podem ser conciliados pela política. Recai-se também aqui no mesmo resultado: tendo como pressuposto a incompletude do capital brasileiro, e afastando liminarmente a perspectiva do trabalho – o historicamente novo –, não poderia haver nenhuma alternativa à ordem capitalista e a modernização excludente seria a única saída possível.

Quando retirou “a própria identidade do capitalismo enquanto forma societária erguida sobre a contradição estrutural entre capital e trabalho”, esta teoria afastou-se da compreensão do modo de produção capitalista para ver as relações sociais apenas como resultado da “interatividade dos homens moldada pelo engenho tecnológico”, com o que todas as esferas sociais passam a ser entendidas como problema de or-dem política (CHASIN, 1989, p. 75). Esta desintegração do concreto é procedimen-to típico da perspectiva weberiana, que, diante do real, trata de desfazê-lo e refazê-lo abstratamente, devolvendo como teoria, em vez da estruturação específi ca dos obje-tos, um rearranjo subjetivo de fenômenos isolados artifi cialmente reagrupados.

Por outro lado, esta tentativa enviesada de compreender o real só é possível com a eliminação da categoria da particularidade. No caso específi co, esta elisão remete imediatamente os indivíduos à universalidade do mundo humano, sem que a relação seja mediada pela classe social, responsável pela inclusão de cada um na universalidade. Ao conceber indivíduo e sociedade como antípodas independentes, põe-se, ainda, a possibilidade para a separação entre estrutura material (o mundo do burguês egoísta) e esfera política (refazimento abstrato da comunidade, tendo por eixo o cidadão). A luta pelas garantias institucionais jungia-se a este mesmo procedi-mento, que elimina a particularidade da liberdade limitada da democracia burguesa para remetê-la liminarmente à liberdade em geral, perfazendo a identifi cação entre democracia, política e liberdade.

Reducionismo semelhante foi efetivado pela teoria que se propunha a explicar a forma de dominação instituída no Brasil em processo de industrialização. Partindo da idéia de uma grande “artimanha” das elites para ludibriar as massas e manter-se no poder, a teoria o populismo, não obstante o vínculo reivindicado com os inte-resses do proletariado, capitulou diante do ardil do politicismo e contribuiu para obnubilar o entendimento da realidade nacional.

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A Falsa Artimanha Populista e o Ardil do Politicismo

Nos seus primórdios, a teoria do populismo – cujos principais teóricos brasilei-ros foram Francisco Weffort, Octavio Ianni, Francisco de Oliveira, Décio Saes e José Álvaro Moisés – objetivava compreender os processos históricos entre 1930 e 1964. A teoria se apresentava como resgate da perspectiva proletária radical, cujo caráter classista estaria diluído pela política de massas da burguesia industrial ascendente. Para isso os teóricos se valiam “de um punhado de noções marxistas tomadas em sua pura expressão abstrata, que a infl uência weberiana tornou defi nitivamente genéricas na sua eclética e incriteriosa conversão a tipos ideais” (CHASIN, 1989, p. 80)1.

No percurso da ditadura militar este conceito foi transformado efetivamente em instrumento para diagnóstico da história brasileira, difundindo-se a ponto de tornar-se quase uma unanimidade nos meios acadêmicos. Os formuladores desta teoria vincularam a análise da realidade brasileira aos fenômenos europeus, procurando, assim, defi nir tipos de atuação política. Ao tentarem compreender os governos da América Latina, realizaram a mesma comparação ao modelo da liberal-democracia: segundo esses intelectuais, o Brasil não desenvolveu uma democracia liberal nem implantou governos totalitários nos moldes europeus, instituindo outro fenômeno, o populismo.

Sinteticamente, o conceito de populismo surgiu para defi nir uma prática política decorrente da manipulação das massas pelas elites que dominam o estado, por in-termédio de um líder carismático, cujo objetivo último seria retirar sua autonomia e visão dos próprios interesses. O populismo era explicado como uma prática política de um país socialmente atrasado, com instituições modernas ainda imberbes e fran-zinas, dada a pouco defi nida estrutura de classes sociais. Deveria dar conta de um período de transição – no Brasil, de 1930 a 1964 – da sociedade tradicional agrária para a moderna industrial e de um estado oligárquico para um democrático.

Nesse processo, inexistiria, porém, a hegemonia de uma nova classe social, abrindo-se um “vazio de poder”, o que tornaria necessário confi gurar um pacto composto pelos setores agrários, industriais e a grande massa que entrava no cenário político, embora subalternamente e de forma artifi ciosa. Nesta quadratura histórica, a sociedade, desprovida de canais de organização e de uma estruturação social mais desenvolvida, apelaria para uma relação direta entre as elites e as massas – mais pre-

1. Dados os objetivos limitados deste artigo, nem mesmo mencionaremos aqui outros autores que também se debruçaram de forma crítica sobre a teoria do populismo. Remetemos os interessados à leitura direta dos textos abaixo, entre outros que abordaram o tema: BARBOSA FILHO, Rubem. Populismo: uma revisão crítica. Tese (Doutorado) apresentada à Universidade Federal de Juiz de Fora; FERREIRA, Jorge. O imaginário traba-lhista. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2005; FERREIRA, J. (Org.). O populismo e sua história. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2001.

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cisamente, entre líderes demagogos e massas manipuladas, responsáveis pela susten-tação do status quo. As elites tratam de introduzir as massas de forma subalternizada, impedindo sua constituição enquanto classe autônoma, mas são obrigadas a fazer concessões econômicas e sociais. Haveria uma grande artimanha para engabelar as massas e mantê-las passivas mesmo diante de uma situação de ausência de hegemo-nia burguesa. Dominação torna-se mera questão de manipulação conseguida por meio da atribuição de uma falsa consciência.

Teoria do populismo e sociedade de massas estão estreitamente relacionadas no interior da liberal-democracia: ambas são formuladas como deformações de uma constituição democrática. A massa indiferenciada é dominada por paradigmas que lhe são externos, por meio da astúcia das elites dominantes. Da transição de uma so-ciedade tradicional para uma sociedade moderna poderia resultar uma sociabilidade determinada pela liberal-democracia ou uma democracia populista. O populismo ou a sociedade de massas seriam formas incompletas ou uma decadência da liberal-democracia, modelo pronto e acabado que se tem em mira. Esta teoria pressupunha, assim, que o grande dilema do populismo era não ter incorporado à perfeição a racionalidade ocidental, embebida em e determinada por formas políticas arcaicas, patrimoniais, mantidas por coalizões pluriclassistas entre setores modernos e elites tradicionais. O populismo terminaria logo que o desenvolvimento socioeconômico do país atingisse um novo patamar, cedendo lugar a uma ditadura ou a um legítimo regime democrático que contemplasse todos os agentes: completada a transição, as classes sociais estariam plenamente formadas e cônscias de seus interesses, incluindo aí a hegemonia política.

De fato, de acordo com esta teoria, o golpe de 1964 veio pôr fi m a esse fenôme-no social: era o colapso do populismo, ocorrido com o fi m de uma fase da acumulação capitalista (baseada na substituição de importações) e a organização autônoma dos trabalhadores, não mais enganados pelas elites. Avaliavam que o próprio populismo havia aberto a brecha para o golpe, dado seu desprezo pelas instituições, as conces-sões excessivas feitas às massas e a sua mobilização como instrumento de pressão diante do imperialismo ou de setores burgueses resistentes. Ficavam de fora das discussões as reformas de base, os projetos sociais reais e diferenciados que digla-diavam na cena nacional naquele momento – tudo é substituído pela artimanha do “pacto politicista” e de seu colapso. A trama societária é reduzida à esfera política – mais ainda, a um “estilo de política” do qual se originariam as lutas decorrentes da produção e reprodução da vida material. E o engodo deliberado em que se constitui o populismo signifi caria a suspensão temporárias das lutas de classes e o ensejo para sua convivência democrática. Há, portanto, um largo distanciamento da apreensão

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marxiana das lutas de classes – estas, para Marx, são forjadas exatamente na luta contra as classes oponentes.

Longe de pensarem numa alternativa à ordem do capital, os ideólogos do popu-lismo limitaram-se a propugnar que, para garantir a democracia, seria fundamental a manutenção das liberdades individuais e independência perante o estado. Somente dessa forma seria possível impedir que os indivíduos fossem manipulados pelo es-tado e se evitaria sua dominação total sobre a sociedade. Os teóricos do populismo tentaram explicar os governos que denominaram de populistas tendo como parâ-metro a liberal-democracia, cujo modelo previa uma estrutura política e jurídica do estado no intercâmbio com os grupos secundários, entidades de classes e associa-ções, como canais de mediação entre os indivíduos. Esta estrutura política poderia amortecer as pressões das camadas populares sobre as elites e, ao mesmo tempo, garantir os canais de comunicação entre os diferentes setores sociais, preservando, desse modo, o pacto social e a governabilidade.

J. Chasin chamou a atenção para a profunda “fragilidade dessa armação teórica, que se restringiu a um descritivismo empirista por cima do qual foi derramado um vago glacê de signifi cados através de conceitos muito problemáticos” (CHASIN, 1989, p. 80). Assim, por exemplo, ao mesmo tempo em que se sustentava haver um vazio de poder na década de 1930 na coalizão das classes sociais, afi rmava que aquele período fora marcado pelo fortalecimento do poder executivo. Na tentativa de expli-car a realidade nacional, perdeu-se a particularidade, a forma específi ca de domina-ção burguesa aqui existente, deixando-se, também, de esclarecer em que dimensão o populismo se diferenciava da dominação capitalista em geral (longe de explicar a especifi cidade da dominação local).

Os ideólogos do populismo acabaram caindo na mesma rede de abstrações que criticavam: buscaram explicar as transformações econômicas e sociais com base num modelo preestabelecido, a partir do qual concluíram que no Brasil há uma de-mocracia atípica em relação à das sociedades européias. O centro da análise se limita a verifi car se o período vivido é mais ou menos democrático, se existe manipulação das classes dirigentes, se existe a formação de instituições independentes na socie-dade civil. É, então, um corpo teórico construído por comparações, subordinando todas as contradições do real a uma dada forma de fazer política, um estilo político projetado pela conduta pessoal, que tem como fi m a manipulação das massas.

Esta teoria se arvorava em alternativa às análises desenvolvidas pelos intelectu-ais do Partido Comunista. Conseqüentemente, pretendia ser uma crítica às práticas políticas equivocadas dos seus fi liados no decorrer do pré-64. Dentre as posturas censuradas, tomava relevo a idéia de coalizão – entendida por eles como sinônimo

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de subordinação do proletariado às classes dominantes, o que estaria em curso du-rante o populismo. A contradição desta orientação estava no fato de que recusava as alianças políticas, mas aceitava de bom grado a adesão partidária; a confusão ins-taurada fez que não se refl etisse com seriedade sobre os signifi cados e as condições e possibilidades das alianças reais entre partidos aliados independentes. Ou seja, não foi esclarecida a questão da construção da independência de classe, com autonomia teórica, ideológica e orgânica, com militância lúcida, numerosa e inserida em dife-rentes poros sociais. A grande questão é o porquê de as esquerdas do pré-64 não estarem dotadas de tais características – e sobre isso a teoria do populismo nada tem a dizer. Como Chasin advertiu,

Operando simplesmente com universais, que supôs de extração marxista, e querendo ser, de início, a consciência teórica da imanente radicalidade operária, a teoria do populismo fi cou às voltas com a “anomalia” do quadro brasileiro. (...) Para a teoria do populismo, a democracia, o partido, o líder populista eram em conjunto ou a cada um per si o feiticei-ro nefasto, que executava a mágica insuperável de atar as massas aos setores dominantes (CHASIN, 1989, p. 80).

Esta busca de fazer a crítica à esquerda tradicional e resgatar a radicalidade es-pontânea dos trabalhadores se baseava no seguinte diagnóstico, feito pela teoria do populismo:

Não apenas as massas, despreparadas em sua inexperiência, mas a própria esquerda foi aprisionada pelo ardil do populismo, tornando-se incapaz de converter a política de massas em política de classes. Ou seja, não ofereceu uma formulação alternativa ao populismo, em consonância com o potencial revolucionário, que supostamente estava contido no quadro histórico-estrutural (CHASIN, 1989, p. 81).

Assim, a teoria do populismo reivindicava, corretamente, que a esquerda en-contrasse seu próprio caminho e abandonasse o reboquismo que havia marcado sua atuação no pré-64. Entretanto, partia da idéia de que a revolução brasileira era possível. “Tanto que até hoje, passados 30 anos, a teoria do populismo não arriscou se estender por uma teoria da revolução brasileira, nem há a menor possibilidade de que o faça de futuro, pois hoje ela é peça naturalmente integrada à atmosfera ‘pós-revolucionária’ em vigor” (CHASIN, 1989, p. 81).

Um dos maiores problemas originados de suas orientações foi o obscurantismo em que lançou a compreensão da sociedade, ao substituir a análise das classes sociais pela analogia de povo ou nação, como “comunhão de interesses ou a solidariedade própria das comunidades” (CHASIN, 1989, p. 81). Isso se explica, em parte, pelo fato de que os teóricos do populismo não se debruçaram sobre a esfera da produção, sobre o tipo de inserção que o Brasil manteve em seu percurso histórico diante do capitalismo mundial. Eles se restringiram à esfera política, como superior e regulado-

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ra das relações sociais. Trata-se de uma teoria embebida em viscoso politicismo. “Poli-ticizar é tomar e compreender a totalidade do real exclusivamente pela sua dimensão política e, ao limite mais pobre, apenas de seu lado político-institucional.” (CHASIN, 1982, p. 7) O politicismo, fenômeno simétrico ao economicismo, nada tem que ver com politização, com valorização da atuação política. Na verdade, desvirtua a pró-pria política, pois desmonta o complexo de especifi cidades que é a sociedade e toma cada uma das “partes” daí resultantes pelo viés político – pseudopolítico. Na prática e na teoria, toma a realidade complexa por apenas uma de suas facetas, a política, o que acaba por descaracterizá-la, por exacerbá-la arbitrariamente.

O politicismo expele da política a economia ou “torna o processo econômico meramente paralelo ou derivado do andamento político”, deixando de “considerá-los em seus contínuos e indissolúveis entrelaçamentos reais” e sem nunca admitir o caráter fundante, ontologicamente matrizador, do econômico (CHASIN, 1982, p. 7). Tra-ta-se de um procedimento tipicamente liberal, uma forma mesmo de acentuação do princípio liberal segundo o qual a economia pertence à esfera do privado, enquanto a política, “formalmente estufada”, vai para o terreno da coisa pública. O politicismo age, pois, como “Protetor da estreiteza econômica e política da burguesia” e, na me-dida em que “Efetivamente subtrai o questionamento e a contestação à sua fórmula econômica e aparentemente expõe o político ao debate e ao ‘aperfeiçoamento’”, “atua como freio antecipado, que busca desarmar previamente qualquer tentativa de rompimento deste espaço estrangulado e amesquinhado” (CHASIN, 1982, p. 8).

Assim, por meio do conceito de populismo, grupos intelectuais explicam o perí-odo transcorrido entre os anos 1930 a 1964 pelo viés politicista, segundo o qual perso-nalidades políticas e circunstâncias sociais se enquadrariam num determinado “estilo de política”. Por isso, esta teoria não permite uma apreensão mais ampla e correta da realidade nacional, nem apresenta propostas para propiciar para saltos efetivos na elevação do padrão de vida de uma grande parcela da população brasileira. Por seu politicismo visceral, não consegue perceber que as práticas políticas típicas do Brasil são resultantes da dinâmica de acumulação de capital que se deu interna e externa-mente por meio da produção calcada na superexploração do trabalho.

J. Chasin ressalta que, além de ser a mais antiga, a teoria do populismo, “mais do que qualquer outra das que integram o quarteto teórico dominante, é diretamente responsável pela maioria dos posicionamentos daqueles que – pessoas ou organi-zações políticas – pensam e querem fi rmar opções e atitudes de ou na esquerda” (CHASIN, 1989, p. 79). Entretanto, quando analisado de forma crítica, o conceito de populismo mostra-se por demais extenso, vago e dúbio, um tipo ideal frouxo ins-pirador de absurdos analíticos – e, pior, capaz de provocar equívocos práticos sérios pela história da chamada esquerda brasileira afora.

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Em suma, a teoria do embuste deliberado da burguesia – teoria do populismo – deveria ter-se interrogado acerca das razões pelas quais o capital não foi capaz de entifi car em nossa formação histórica um capitalismo verdadeiro, completo, ob-jetivando por estas plagas uma dominação socioeconômica do capital incompleta e incompletável – atrófi ca. Em outros termos, fenômenos postos como explicação dos caracteres nacionais deveriam, na verdade, ser tomados como problema e, por-tanto, ser investigados e explicados, em vez de tautologicamente aceitos. Por outro lado, a simples desqualifi cação da atuação dos trabalhadores e de seus representantes ideológico-políticos no pré-64 desta teoria decorrente é uma absoluta improprie-dade – mesmo porque, ainda que se admitam todos os erros do período anterior, a esquerda pós-ditadura militar muito perdeu em substância no que tange a aspectos teóricos e práticos. Pior: sendo reducionista e partindo de um arquétipo em que tenta e enquadrar a realidade, a teoria do populismo não consegue explicar o porquê do golpe de 64.

Tendo a aliança de classes populista entrado em colapso, o que teria resultado no golpe militar de 1964, a teoria do populismo cedeu espaço à teoria do autoritarismo, uma derivação piorada, que perdeu a historicidade – formalizou-se – e a pretensão de resgate da perspectiva radical operária. É com base no tipo ideal de democracia, na instituição de um oposto – o totalitarismo – e na comparação entre ambos que se instituiu a teoria do autoritarismo, que passamos a ver a seguir.

Democracia Arquetípica e suas “Degenerações”: a teoria do autoritarismo

A teoria do autoritarismo originou-se em estudos psicológicos e se estendeu posteriormente para a análise política, sociológica e jurídica. Em face do apoio que os Estados Unidos ofereciam às ditaduras latino-americanas que pipocaram a partir dos anos 1960, as questões do imperialismo e das formas de dominação autocráticas regionais apareciam como intimamente ligadas. A teoria do autoritarismo, abraçada por correntes diferentes, foi uma das que se propuseram explicar a situação.

São tidas como características de um regime autoritário a exclusividade no exer-cício do poder, a existência de arbitrariedades, o enfraquecimento dos vínculos jurí-dicos, a alteração da legislação institucional voltada à própria perpetuação no poder, o cerceamento das liberdades públicas e individuais, a perseguição aos dissidentes, a censura às opiniões e a tentativa de algum controle do pensamento e o emprego de métodos ditatoriais e compulsórios de controle político e social.

As análises aqui desenvolvidas não estiveram isoladas dos movimentos teóricos europeus, pelo contrário, estavam estreitamente relacionadas a elas. Por exemplo, Karl Mannheim (1893-1947) analisou as sociedades de sua época pautando-se no

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tipo ideal de democracia liberal européia. O conceito de totalitarismo foi desen-volvido por Hannah Arendt (1906-1975) para explicar o nazismo e o fascismo na Europa no período da Segunda Guerra Mundial. A produção teórica de Alexis de Tocqueville (1805-1859) foi resgatada e transformada em ferramenta de análise por estes autores na construção de suas teorias políticas e estudo dos grandes confl itos políticos ocorridos na primeira metade do século XX. Estas teorias alcançaram boa margem de difusão entre os intelectuais europeus e americanos e obtiveram inserção na América Latina por meio da sociologia da modernização de Gino Germani e Torcuato Di Tella, professores da Faculdade de Ciências Sociais do Chile no início da década de 1970.

Para esta teoria, antes do fi m da Primeira Guerra Mundial iniciava-se a história do totalitarismo, fenômeno político que teria marcado o século passado. Diante das necessidades geradas pela guerra e pelos imediatos acontecimentos posteriores, os representantes do poder executivo das frágeis democracias liberais européias en-veredaram para o fortalecimento próprio, em contraposição ao poder legislativo. Acreditava-se que seria temporário, ou seja, quando voltasse a paz, cada um desses poderes retornaria a seu papel original, previsão não consolidada – pelo contrário, a década seguinte acabou assistindo ao fenômeno do estado cada vez mais forte.

Fortemente ligado à noção de monopólio de poder, totalitarismo é, de acor-do com esta teoria, um regime político típico da sociedade de massas, fundado na ampliação do poder do estado a todos os espaços e esferas sociais e resultante de extremismos ideológicos e de uma concomitante desintegração da sociedade civil organizada. A banalização do terror, a manipulação das massas, a incorporação acrí-tica das mensagens do poder são algumas das características do totalitarismo; de outro lado, vêm a existência de um partido único estatal de massas em cuja direção se centralizam os processos de tomada de decisão; a burocratização do estado; a repressão à dissidência e a criação de um estado policial; o culto à personalidade do líder; o patriotismo exacerbado; a organização dos trabalhadores com intervenção estatal, via propaganda e apelo ao patriotismo; a censura aos meios de comunicação; a patrulha ideológica; e a militarização da sociedade e o expansionismo.

O nazismo e o fascismo, segundo a teoria mencionada, eram decorrentes do enfraquecimento da liberal-democracia e da confi guração de uma sociedade de mas-sas, facilmente manipuladas pelo estado. A sociedade de massas surge, segundo esta teoria, quando se dá uma ruptura na harmonia social estabelecida pela liberal-de-mocracia, quebrando-se os canais que compõem sua estrutura, o que desequilibra a participação popular, fi nalmente se perdendo o sentido da comunidade. Esse quadro geraria uma instabilidade na vida social e política, a que se somaria a falta de legitimi-

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dade da elite, que acaba favorecendo o confl ito ou a apatia social. Numa sociedade de massas, as elites seriam diretamente acessíveis à população, no sentido de que esta não age por meio de canais institucionais ou grupos secundários na resolução de questões presentes no momento.

Na explicação do totalitarismo como deformação do estado, Chasin desvenda o pressuposto que caracteriza o estado liberal defendido pela teoria:

o estado liberal vem a ser o sistema onde predominam a lei, a razão e a liberdade, garantidas pela difusão do poder e pela estrutura pluripartidária. E o estado totalitário, o sistema onde pre-valecem a violência extremada – o terror – e a dominação hipertrofi ada pela concentração do poder e nutrida pelo monopólio político do partido único (CHASIN, 1978, p. 49).

Assim, o estado liberal seria o regime da liberdade, da legalidade, da racionalida-de, enquanto o totalitário seria o regime da opressão e da violência. Os fenômenos nazista, fascista e stalinista foram explicados por esses intelectuais como manifesta-ções de totalitarismo, pela ausência completa de democracia nos países em que ocor-reram. Como as análises dos processos históricos foram dadas a partir do modelo da liberal-democracia e não das transformações históricas objetivas, estas ocorrências tão diferenciadas foram analisadas de modo indistinto. Trata-se de uma classifi cação em relação ao que contraria o modelo de democracia – não necessariamente a reali-dade, explique-se –, reducionista, por se situar na esfera da política, e que emprega universais abstratos que mais ocultam que esclarecem o que pretende analisar.

Como se vê, a teoria em tela surgiu entre os pensadores liberais que estabele-ceram a democracia burguesa como modelo político ideal e, para compreender o processo histórico de outros países, instituíram comparação com o arquétipo da democracia liberal. Assim, é possível perceber que as análises dos autores que desenvolveram ou veicularam o conceito de totalitarismo se pautaram pela incorporação do mundo burguês como forma acabada de sociabilidade e sua produção teórica se deu sob este limite: o estado como estrutura guardiã das relações sociais capitalistas.

Os teóricos do totalitarismo evitaram olhar a sociedade em sua totalidade, para se debruçarem apenas sobre a sua estrutura consolidada na sociedade capitalista. Como partem da posição burguesa, estabelecem como referência a relação entre estado – como grande gerenciador dos negócios burgueses – e sociedade civil: de acordo com eles, se o estado suprime o pluripartidarismo para impor um partido único, é o ter-ror, reina o totalitarismo. Mas se, ao contrário, o estado retirar o seu poder para deixar prevalecer a sociedade civil, a liberdade ganha dimensão.

Insiste-se, as determinações relacionadas ao totalitarismo nada mais são do que defi nições que se remetem à negação dos caracteres liberais. “Em última instância, a noção de totalitarismo nada mais refl ete do que o liberalismo com sinal trocado” (CHASIN,

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1978, p. 49). É esse “arquétipo democrático ou a democracia como critério de verda-de que faculta a edifi cação da teoria do autoritarismo” (CHASIN, 1989, p. 77). Cha-sin adverte que não se trata apenas de debilidade teórica, pois as posições explicitam claramente o interesse de separar as esferas que compõem a sociabilidade:

Confi gura-se, portanto, uma concepção cujos pressupostos necessários são: uma abstrata relação excludente entre poder material e poder jurídico, e a atribuição, também em abstra-to, de valor positivo ao campo jurídico e de negativo ao poder material. Pressupostos que implicam considerar o estado liberal uma sorte de fi m da história, portanto, racionalmente insuperável, eterno como valor prático e teórico (CHASIN, 1978, p. 50).

Como a teoria do totalitarismo não conseguia explicar alguns fenômenos da América Latina, apelou-se para outro conceito, que expressasse uma sociedade que não chega a ser totalitária, mas se afasta da democracia liberal típica: o de autorita-rismo. O ponto de partida para fundamentar o construto conceitual em exame foi a criação do arquétipo de democracia, do qual foram derivados os outros dois modelos de tipo ideal para explicar os fatos históricos no século XX, como salienta Chasin:

Por defi nição negativa, no pólo simétrico à democracia, aparece o totalitarismo como ex-pressão pronta e acabada de sua negação absoluta, e o autoritarismo como uma fi gura intermediária, desprovida enquanto tal de partes e procedimentos básicos do perfi l demo-crático, sem que atinja o cancelamento integral das liberdades que é o formato totalitário. Assim, o autoritarismo é a voz abstrata que domina os quadros em geral de carência demo-crática, a falta decisiva, ainda que parcial, de franquias públicas. Ou seja, enquanto o auto-ritarismo é a atrofi a ou a ausência, em graus diversos, de liberdade política, o totalitarismo é o regime do terror contra o indivíduo, movido pelo estado policial, que concentra em si todos os poderes e através deles exerce todos os controles sociais (CHASIN, 1989, p. 78).

A corrente desta teoria que alcançou maior expressão na América Latina foi a criada por Guillermo O’Donnell, para quem o autoritarismo era parte orgânica do aprofundamento do processo de acumulação em curso, ou seja, estava no bojo da adoção de tecnologias intensivas em capital nas indústrias de base e de bens de capital. Esta tese, adotada no Brasil pela analítica paulista, ligava-se à teoria da depen-dência, segundo a qual a poupança externa era necessária ao processo de industria-lização nacional – era necessária uma associação com o capital dominante estrangeiro para que houvesse o desenvolvimento nacional, e nesse processo incluíam-se formas de dominação autoritárias. Não deixou de ser, portanto, também ela uma teoria da transição transada, ou da auto-reforma lerda, longa e limitada do regime bonapartista.

Faz parte desta teoria um enquadramento classifi catório que tem como eixo cer-to paradigma de democracia. Em outros termos, tanto o conceito de autoritarismo como o de totalitarismo foram construídos a partir da comparação à democracia, ao estado liberal, pautado pela “sociedade política de direito, cujo poder difuso se ma-

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nifesta por controles sociais pluralistas” (CHASIN, 1989, p. 78). De um lado, põe-se o totalitarismo como absoluta negação desta democracia, e de outro o autoritarismo como nível intermediário. Mais ainda: ao mesmo tempo em que é critério de verdade, a democracia também é a fi nalidade da ação, ou seja, a análise é imediatamente regida pelos propósitos políticos e, por isso, pode se manter no nível da superfi cialidade.

A liberal-democracia é um modelo político que tem como princípio o liberalis-mo, a visão burguesa do mundo. Os pensadores liberais naturalizam as relações so-ciais e afi rmam que os homens são intrinsecamente isolados e egoístas, motivo pelo qual defendem a construção do estado como fundamental para garantir a convivência minimamente razoável entre os homens. A competitividade não é apenas naturali-zada: é também vista como a alma das relações humanas e somente a criação de um aparato jurídico coercitivo pode limitar o ímpeto da autodestruição da espécie. Com isto, o mercado – a livre concorrência entre os produtores privados, hoje sob o jugo dos monopólios e oligopólios – é tomado como intrínseco à vida humana. Ao se subtraírem ao exame das condições materiais de existência e ignorarem o palco das disputas travadas em defesa da propriedade privada, as teorias mencionadas atrelam a democracia imediatamente à liberdade do capital no mercado. Ao reduzirem todas as questões sociais à esfera meramente política, os teóricos do autoritarismo passa-ram a pleitear a democracia como “plenitude da forma do poder do estado”.

Assim, enquanto a esquerda tradicional atuante no pré-64 se perdia entre um abstrato revolucionarismo e o ativismo caudatário, seus críticos recaíam em outra forma de maniqueísmo: democratismo e autoritarismo. São duas correntes “necrófi las do corpus liberal”: ambas acreditam na instituição acabada, em solo nacional, seja da forma con-cluída do capital, seja da forma de dominação liberal-democrática – esquecendo-se de verifi car a possibilidade histórica de ocorrerem essas totalizações. “Subsumidas, as duas, ao universo teórico do capital, distinguem-se, neste campo, apenas pela modalização de suas ideologias: a esquerda tradicional efetiva esta encarnação como torcida liberal pela inintegralização do capital, e a nova esquerda toma o corpo da teimosia liberal, conversão da hipótese do liberalismo, numa formação de liberalismo impossível.” (CHASIN, 1985, p. XII)

De acordo com Chasin, o conceito do autoritarismo é um construto teórico que se resume a dividir a complexidade real em “partes” e autonomizar o círculo político em relação a todas as demais, em especial das bases materiais de existência. Dissolvendo-se a complexa realidade concreta em uma “calda” política, promove-se a hipertrofi a do político, uma espécie de hiperpolítica, que se nega a si própria. Em outras palavras, transforma a “totalidade estruturada do real – complexo de media-ções – num bloco de matéria homogênea” que, além de constituir uma falsifi cação

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intelectual, “confi gura para a prática um objeto irreal”, resultado do desprezo das dimensões social, política, ideológica e, especialmente, das relações e fundamentos econômicos que constituem o ente concreto (CHASIN, 1982, p. 7).

Assim, a teoria em exame deixou de levar em consideração a produção e a re-produção da vida, bem como as especifi cidades das formas de dominação política e as formações sociais em suas peculiaridades e particularidades históricas. Os cons-trutos teóricos mencionados não passaram de instrumentos subjetivos de aproxima-ção cognitiva – tipos ideais de talhe weberiano –, que na sua origem não pretendem mesmo corresponder à realidade enquanto tal. Pior, prestam-se à obscurecer o que pretendem explicar, as formas de dominação, pois só conseguem dizer o que não são, sem atinar para o que efetivamente são – e, portanto, sem trazer nenhuma pro-positura de ultrapassagem das condições concretas de limitação das liberdades.

Considerações Finais

O quarteto nada fantástico cujas idéias mais centrais apenas enumeramos, reto-mando a espinha dorsal da crítica chasiniana, pauta-se por uma perspectiva analítica muito pouco inocente. Seu nervo consiste em subentender a sociedade capitalista sob forma liberal-democrática e tomá-la como modelo ideal pelo qual se aquilatam formações sociais reais e específi cas. Assim, em apenas um movimento, conseguem naturalizar e legitimar a sociedade capitalista, arrogar à democracia o qualitativo de forma de organização social mais desenvolvida e arrojar a temática da emancipação humana ao latão de lixo da história. Ainda assim, a infl uência das teorias elaboradas pela analítica paulista foi avassaladora nos meios da chamada “esquerda” brasileira, no seu esforço de fazer a crítica e ultrapassar os limites dos seus antigos represen-tantes institucionais, além das teorias da Cepal e do Iseb.

As teorias da marginalidade, da dependência, do autoritarismo e do populismo – esta mais que todas as outras – tentaram explicar a realidade brasileira por meio de uma comparação com moldes europeus, anulando as relações existentes entre o ca-pitalismo constituído no Brasil e o conjunto da burguesia mundial. Portanto, é pos-sível afi rmar que serviram para camufl ar a entifi cação específi ca do modo de produ-ção do capitalismo no país e o papel que o estado exerce nesse processo. Ademais, por se pôr à esquerda do capital, sem ultrapassar o ideário que norteia o pensamento liberal, este corpus teórico resultou no arrefecimento da esquerda e no abandono de qualquer perspectiva de transformação social que altere o sistema produtivo vigente. Tais teorias resultaram, por caminhos diversos, na capitulação em relação à ordem metabólica do capital e a toda a sua barbárie, embrutecimento e alienação. Não obs-tante suas propaladas intenções de compreender a realidade nacional, contribuíram

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para elidir as características particulares da formação brasileira e, com isto, por sua larga disseminação no seio da assim chamada esquerda, tiraram da perspectiva do trabalho a “arma da crítica”.

Mesmo com – ou, talvez, exatamente pelas – suas graves insufi ciências internas, estas teorias se colocaram como instrumento de análise e de condução de práticas sociais e políticas em nosso país, infl uenciando largamente a prática de movimentos sociais e partidos que vão do PSDB ao seu primo pobre, o PT – não obstante as auto-proclamadas diferenças radicais entre os escopos teóricos de ambas as agremiações.

Assim, passados 40 anos da ditadura militar, já puída (sem ser devidamente feita!) a discussão sobre a consolidação da democracia brasileira, os principais re-presentantes teórico-ideológicos da esquerda do capital nada têm a dizer, porque esgotados em seus próprios referenciais, e a “esquerda” continua desorientada em meio à grande usina do falso em que se constituiu o capitalismo atual.

As críticas de Chasin apontam alguns caminhos, que necessariamente exigem uma séria revisão teórica e prática de maior rigor sobre a história brasileira, direcio-nada a retomar uma práxis transformadora da realidade:

é preciso fazer – não alguma coisa, mas a coisa certa. Re-começar. Sem mito e sem mística, o re-começo é antes de tudo um re-encontro da classe, uma retomada da razão do trabalho, como potência central de uma dada ação política, que faz política para além da mera razão política. Ação política, nem politicismo, nem economicismo, ou seja, movimento social que visa a matriz e por seu meio o complexo da sociabilidade que ela engendra e mantém (CHASIN, 1987, p. 199).

Referências Bibliográfi cas

Chasin, J. Politização da totalidade: oposição e discurso econômico. Revista Temas de Ciências Humanas. São Paulo, Editorial Grijalbo, n. 2, 1977.

______. O integralismo de Plínio Salgado – forma de regressividade no capitalismo híper-tardio. São Paulo, Livra-ria Editora Ciências Humanas, 1978.

______. Lukács: Vivência e Refl exão da Particularidade. Revista Ensaio. São Paulo, Ensaio, n. 9, 1982.

______. A Esquerda e a Nova República. Revista Ensaio. São Paulo, Ensaio, n. 14, 1985.

______. A Sucessão na Crise e a Crise na Esquerda. Revista Ensaio. São Paulo, Ensaio, n. 17/18, 1989.

______. “Marx: Estatuto Ontológico e Resolução Metodológica”. In: Pensando com Marx. São Paulo, Ensaio, 1995.

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educação e ciências humanasEspaço de interlocução em ciências humanas

Ano V, novembro de 2008 – Publicação semestral – ISSN 1981-061X

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J. Chasin e a realidade brasileira

Milney Chasin*1

* Professor do CEFET-MG.

Resumo: O artigo narra o desenvolvimento intelectual de J.Chasin, iniciado na década de 60 até a confi guração do seu pensamento maduro. Trata-se, pois, de evidenciar características marcantes de sua refl exão, tais como a propensão à objetividade, ideação marcada pelo contraste do que empiricamente é passível de observação; de outro, um pensamento em-breado pela crítica da realidade ideal e histórica do Brasil, de suas principais categorias sociais revelando, assim, os possíveis nexos e condicionantes nacionais e internacionais que, sobremaneira, afetaram e afetam a dinâmica e prospectiva do Brasil.

Palavras-chave: Realidade Brasileira; Crítica; História; Objetividade.

J. Chasin and the Brasilian realityAbstract: The article describes J. Chasin’s intelectual development from the 60’s until the confi gu-ration of his maturity thought. It emphasizes the most prominent features of his ideas, such as the propensity to objectivity, ideation marked by contrast of what is empirically observable. On the other hand, it is a thought moved by the criticism of Brazilian both ideal and historical reality and also by an analysis of Brazilian main social categories. The study of those categories allowed Chasin to disclose the possible national and in-ternational connections and conditionings that affected most and still affect Brazilian dynamics and prospections.

Key words: Brazilian Reality; Critique; History; Objectivity..

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Milne y Chas in

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Em 1962, aos 25 anos, em seus primeiros escritos1 J.Chasin parece defi nir, des-de cedo, um dos traços marcantes de sua trajetória intelectual: a propensão à obje-tividade, a refl exão forjada e exposta a partir dos problemas sociais mais urgentes, ou seja, suas idéias (e a urgência em concebê-las) sempre se ataram a perspectiva de que cabe ao pensamento responder aos desafi os societários, historicamente re-levantes. De outro, a propensão à objetividade se esboça no fato de que o pensar e suas possibilidades emergem das formações sociais, isto é, os fenômenos sociais só podem ser amplamente compreendidos se historicamente desvelados. Não é outro o sentido dos textos que já emergiam nos idos da Maria Antônia que nitidamente refl etiam este posicionamento que, com o passar dos anos, foi recorrentemente aprofundado. De modo que tais textos entremostram, assim, a preocupação inicial do autor com temas ligados à sociabilidade brasileira, aos problemas historicamente vividos no plano nacional e suas implicações (se houver) no universo internacional. Assim, J.Chasin inicia sua trajetória intelectual tendo, por norte, a dissecação da reali-dade brasileira, um envolver-se cada vez maior que, no tempo, o levará ao encontro com o pensamento marxiano e marxista, à crítica das esquerdas e a confi guração original do capitalismo no Brasil.

Os textos que se afi guram a época permitem reconhecer este traço decisivo de sua refl exão: “Jânio, do parto à sepultura (1962)”, “Algumas considerações sobre o movi-mento estudantil brasileiro (1962)”, “Luta ideológica – objetivo central do movimento estudantil (1962)”, “Contribuição para a análise da vanguarda política do campo (1962)”. Es-critos que esboçam uma identidade temática e uma preocupação intelectual precisa: o Brasil, seus dilemas e as lutas sociais. É neste quadro que emerge a análise sobre Jânio Quadros e os movimentos sociais mais relevantes. Assim, no ensaio “Jânio, do parto à sepultura” ao enveredar pelo exame histórico da sociabilidade brasileira Cha-sin, de pronto, recusa qualquer análise meramente psicológica do fenômeno janista: “Não pretendemos, no entanto, uma análise meramente pessoal ou psicológica do sucesso janista. Falar em desequilíbrios, loucuras e idiossincrasias não basta e pouco explica.”2 Linhas à frente o autor esclarece:

Queremos, isto sim, compreender os motivos da decomposição política de um homem que tinha estofo para ser um autêntico e honesto líder popular e que muito depressa teve que embair a massa para se sustentar como político /.../ Queremos as raízes econômicas, políticas e sociais desse fenômeno que muitos erroneamente encararam como pessoal, mas que é evidentemente o produto de uma fase histórica do processo evolutivo da sociedade brasileira..3

1. Cf. Apenso Arqueológico in A Miséria Brasileira, pp.305-367.2. Ib., p.305-6.3. Ib., p. 306.

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O feitio analítico esboçado acima arrima, fortemente, nossa exposição ao de-marcar a propensão à objetividade que o texto ilustra, ou seja, Chasin analisa o fenômeno janista a partir das condições históricas que o geraram, na interioridade do “processo evolutivo da sociedade brasileira”. Em termos diversos, o fenômeno janista só pode ser elucidado se, por princípio, forem elucidas as necessidades históricas que levaram à emergência e ao estabelecimento da política janista encarnada na fi -gura de Janio Quadros. De fato, comparece, desde logo, uma dupla necessidade ao pensamento de J.Chasin: em primeiro lugar os temas envolvidos e pesquisados são urgentes do ponto de vista societário, isto é, envolvem dilemas universais, pers-pectivas humanas. De outro, a resolução possível destas urgências sociais depende, sobremaneira, do entendimento e compreensão do tecido societário em questão, do Brasil e de sua formação histórica.

Em Algumas considerações sobre o movimento estudantil brasileiro e Luta ideológica – obje-tivo central do movimento estudantil, Chasin analisa os caminhos do movimento estudan-til à época, suas defi ciências e despreparo para atuar politicamente. Ao buscar um perfi l que permita compreender suas insufi ciências, afi rma:

Desde logo, duas questões fundamentais devem ser tratadas: o que é atualmente e o que deve ser o movimento estudantil brasileiro. Evidentemente não poderemos estudar as referidas questões isoladamente, fora do contexto global da sociedade brasileira. Muito pelo contrário, só e somente só pela caracterização desta última e pela identifi cação de seu estágio atual de desenvolvimento é que poderemos re-conhecer a importância e atribuir um papel político adequado à camada estudantil da nação.4

Note-se que o exame do fenômeno janista, como também, do movimento es-tudantil são arrimados na compreensão decisiva da realidade, ou seja, só o tecido social amplo e historicamente dinâmico é capaz de fornecer os elementos para a efetiva cognição dos fenômenos sociais. Assim, existe o reconhecimento de que os fenômenos sociais são conexos, pois, ao isolarmos (da sociedade) um atributo ou qualidade específi ca dos entes enveredamos pela impossibilidade de apreensão concreta do caso examinado, vale dizer: ao desenraizar os objetos somos obrigados a enfatizar desmedidamente um dos seus aspectos em detrimento das reais conexões do fenômeno no interior do tecido social.

Esta ideação incapaz de compreender os fenômenos sociais e suas reais cone-xões societárias estava presente, segundo Chasin, no interior do próprio movimento estudantil emergindo, deste modo, como problema capital, pois, “o problema no meio universitário não é de honestidade, mas da incapacidade ou do temor de quase todos os seus responsáveis em observar a realidade tal como ela se apresenta e a

4. Ib., p.312.

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partir dela elaborar objetivamente o trabalho.”5 Em outros termos, a crítica à ideação do movimento estudantil pressupõe que os objetivos pretendidos devam ser postos na exata medida em que

A fi xação exata de tais objetivos e métodos requer, no entanto, um trabalho pre-liminar: a análise crítica das condições que presidiram a formação do movimen-to estudantil nacional, tanto do ponto de vista das condições político-sociais da nação como das características peculiares do meio estudantil então existente; e ainda o condicionamento gerado por tais origens e que, apesar das transforma-ções ocorridas na vida brasileira, marca profundamente, até hoje, toda a atividade política da juventude estudantil do país.6

Assim, torna-se nítido, o caráter objetivo ou a propensão à objetividade dese-nhada pelo texto chasiniano em seus pródromos, isto é, tanto o plano cognitivo como a ação política devem se pautar e se reconhecer nas possibilidades que a ani-mam e que as tornam possível, ou seja, o reconhecimento de que as ações humanas (aqui exemplifi cadas pelo campo político) devem ser forjadas no conhecimento e reconhecimento evolutivo das sociedades e de seus problemas. Em termos diversos comparece, desde logo, a preocupação de que a ações ganhem corpo e condições no enlace que as possibilite, vale dizer, na compreensão das “condições político-sociais da nação”. Em suma, existe por parte do jovem J. Chasin uma recusa consciente de um procedimento teórico descolado da realidade e impotente no exame dos proble-mas sociais. Em verdade, o que se afi gura paulatinamente é o adensamento de uma subjetividade capaz de compreender e criticar as inúmeras faces da realidade brasi-leira, suas matizes teóricas, políticas e seu desenvolvimento histórico. Preocupação constante que jamais será abandonada pelo autor. De sorte que, a década de 70 será marcada pelo reconhecimento do caso brasileiro, ou seja, pelo estudo histórico que permitiu a Chasin caracterizar o capitalismo nos moldes da via colonial reconhecendo, assim, a gênese formativa do capitalismo em nosso país, as insufi ciências e limites da burguesia nacional e, por extensão, de nossas esquerdas em contexto historicamente adverso. De sorte que vale tomar, de pronto, sua tese doutoral.

Com o objetivo de dar consecução aos estudos da realidade nacional J.Chasin envereda, na década de 70, pelo exame do complexo ideal e real de entifi cação do capitalismo brasileiro. Tratava-se, portanto, de apreender sua natureza, seja no plano das formações ideais, a raiz constitutiva do nosso pensamento, ou no plano econô-mico-social, isto é, das determinações históricas e particulares do caso brasileiro.

O maior esforço nesta direção diz respeito à tese doutoral intitulada: O Inte-gralismo de Plínio Salgado: forma de regressividade no capitalismo híper-tardio, defendida em

5. Ib., p.312.6. Ib., p.314.

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1977. Nesta, Chasin expõe o ideário de Salgado, expondo sua gênese e necessidade, enquanto fruto de uma formação social industrialmente tardia, isto é, de um capita-lismo atrasado e atado economicamente ao campo. Assim, ao estudar o ideário de Salgado, Chasin incursiona decisivamente pela análise da realidade brasileira buscan-do no “contexto global da sociedade brasileira” as causas que animaram e engendraram o movimento integralista.

Ao iniciar os estudos do fenômeno integralista, Chasin constata que, em termos predominantes, o fenômeno integralista foi subsumido a um viés e exame puramen-te analógicos, vale dizer, o integralismo é equiparado ideológica e praticamente ao fenômeno nazi-fascista europeu, pois

Enquanto Plínio Salgado, ao longo do tempo, reiteradamente afi rma a originalida-de de seu pensamento, a raiz brasileira de suas idéias e sua distinção do fascismo europeu, empenhando nisto um esforço contínuo e sistemático, os autores que a ele se referem têm primado em desconhecer por completo tais argumentos, insis-tindo exatamente em teses diametralmente opostas /.../ Reduzindo, portanto, os protestos e as afi rmações de Salgado a mero resultado de dissimulações táticas.”7

Assim, ao desenhar a análise predominante do fenômeno integralista, Chasin salienta que - para estes autores - “o integralismo é um “fascismo”, e as condições históricas do Brasil de 30 são entendidas como fundamentalmente semelhantes às da Itália, Alemanha e outros países da mesma época”.8

Em contraste analítico, J. Chasin afi rma: Fragmento da consciência social do Brasil, o integralismo continuava indecifrado, oculto em convencional e abstrata defi nição com o fascismo. Determinar sua efe-tiva natureza, especifi cá-lo na especifi cidade brasileira era projeto que se impunha com grande evidência, no imperativo mais vasto, até hoje sofrivelmente atendido, de examinar o conjunto, ou pelo menos os momentos principais, dos eventos ideológicos no Brasil. Foi assim, então, que de fato nasceu este estudo, e que se restringiu deliberadamente ao ideário de Plínio Salgado9

Tome-se sua argumentação de raiz que muito bem lembra os argumentos do início da década de 60: J.Chasin examina o fenômeno integralista a partir de suas reais condições históricas, ou seja, “especifi cá-lo na especifi cidade brasileira”. O objeto era outro, mas o sentido era o mesmo quando autor, em 62, lidava com o fenômeno janista e o movimento estudantil, pois já havia a inequívoca discordância em relação a um discurso que, descolado da realidade, tornava-se incapaz de compreender o fenômeno janista (atribuindo sua explicação às dimensões meramente pessoais) ou, no que tange ao movimento estudantil, conquanto seus líderes sejam caracterizados

7. José CHASIN, O Integralismo de Plínio Salgado, p.33.8. Ibid., p.35.9. Ibid., p.23.

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como subjetivamente incapazes para compreender e identifi car o “estágio atual de de-senvolvimento” da sociedade brasileira e, a partir desta identifi cação, formular adequa-damente os objetivos de sua inserção nas lutas sociais. Assim, de modo mais denso e desdobrado, o ideário chasiniano se consolida na percepção de que a ideação cienti-fi camente correta não trabalha por analogias abstratas, por universais tão amplos que permitem toda e qualquer homogeneização de fenômenos intrinsecamente distintos. Observa-se, assim, a inclinação de que o pensamento deve operar a partir da par-ticularidade, isto é, é preciso analisar cada caso concreto em sua dinâmica e gênese própria. De fato, Chasin recusa o domínio de um empirismo grosseiro cuja inob-servância da realidade conduz o pensamento a impropriedade de, a partir de alguns elementos topicamente parecidos, estabelecer a unidade e essência entre fenômenos distintos. É preciso rejeitar análises que desconsideram diferenças importantes ao uniformizar, no plano ideal, “a realidade de um país economicamente subordinado, predominantemente agrário-exportador com a de países altamente industrializados e que já atuam, dentro de particularidades históricas específi cas, como pólo dinâmico do grande capital.”10 Assim, afi gura-se a refl exão que se impõe pela objetividade, vale dizer: o pensar que valida a si mesmo quando ancorado nos ditames da vida social, no evoluir sensível das dimensões que a compõem e matrizam. Deste modo, o autor de o Integralismo de Plínio Salgado recusa a análise convencional do fenômeno integralista, na pena de H. Trindade, ao entender que este cria um modelo mimético que fundamenta sua análise, tomando-o como ponto de partida arbitrário, onde a história é forçosamente homogeneizada, isto é, alguns fenômenos historicamente parecidos entre o Brasil de 30 e a Itália e Alemanha são, no modelo mimético de Trindade, forçosamente equiparados para explicar o movimento integralista, atrelá-lo mais fa-cilmente ao fascismo italiano e também, quando necessário, ao nazismo alemão. Assim, Chasin afi rma:

Tudo isto nos permite dizer que, na concepção adotada por Trindade, o mimético não nasce da “constatação empírica”, já vem dado como possível e politicamente efi ciente no plano teórico-metodológico. É o modelo, a abstração que se impõe à realidade, e esta, posteriormente “colhida imaculadamente” por “rigorosos” questionários quantifi cáveis, nada acrescenta de fundamental, preenche simples-mente as formas que, em última análise, a criaram, e não a descrevem como se supunha ser seu objetivo11

A constatação é importante: é “o modelo, a abstração que se impõe à realidade, e esta, posteriormente “colhida imaculadamente”. De modo que, a realidade torna-se importante na medida em que se encaixa nos pressupostos metodológicos, vincados e atados a

10. Ibid., p.37..11. Ibid., p 43.

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modelos à priori. Trata-se da apreensão do fenômeno integralista a partir do modelo, da fi gura do totalitarismo. De fato, Trindade procede por modelos, pois o conceito de totalitarismo do qual faz uso é, de certa forma, um amálgama capaz de englobar todo e qualquer fenômeno que se apresente como essencialmente violento, de parti-do único, com concentração brutal de poder e supressão das liberdades individuais. Assim, o conceito de totalitarismo muito mais embaraça do que os esclarece, pois, ao

transformar o conceito de totalitarismo na noção chave para a explicação do fas-cismo, a primeira decorrência é situar todo o problema na esfera do político, isto é, é descaracterizar o todo histórico que ele representa em benefício de uma descrição que o encerra na esfera do poder, tomada esta de forma isolada e auto-sufi ciente. É encaminhar a explicação do político pelo político, do político por ele próprio. É pressupô-lo, portanto, independente, autônomo da sociedade civil. Conseqüentemente, a explicação se faz sem referência ao modo de produção em que se manifesta; com desprezo pela historicidade do fenômeno; sem preocupa-ção de investigar as relações infra-estruturais concretas em que emerge.12

Uma vez mais, Chasin ressalta a importância de que o pensamento se vinque a historicidade, ao concreto sensível que estimula e permite a apreensão conceitual dos fenômenos; de outro, descarte de todo e qualquer modelo, pois intrinsecamente um estorvo ao hiper-valorar um elemento da realidade em contraste com os demais reduzindo, deste modo, a orgânica e estrutura do objeto à simples expressão formal, vazia de conteúdo.

Então, com formato defi nido a refl exão chasiniana (em sua tese doutoral) en-contra o contorno maduro daquela preocupação inicial dos anos 60 em que o pen-samento desunido da realidade histórica é levado a valorizar, de modo arbitrário, dimensões psicológicas (a análise convencional do fenômeno janista) ou a hiper-valorizar fenômenos secundários na gênese e explicação dos problemas. Sendo as-sim, objetividade (realidade histórica) e subjetividade (tomada em sua capacidade cognitiva e de intervenção social) são preocupações marcantes e decisivas do ideário constituído por J.Chasin, vale dizer: identifi car as raízes formativas da sociedade brasileira, suas classes sociais e as condições subjetivas de intervenção e mudança da sociedade em questão. Isto, como um todo, balizou o centro de seu trabalho teórico. Deste modo, Chasin é levado a identifi car a natureza da burguesia nacional, sua peculiaridade e limites; de outro emerge a análise da categoria do trabalho e das condições objetivas e subjetivas de sua intervenção no quadro político e social bra-sileiro. De modo, que sua tese doutoral é, para além da caracterização da ideologia pliniana, a caracterização do caso brasileiro e de suas perspectivas, investigação das possibilidades assentadas nas classes sociais e prospectiva de emancipação humana.

12 Ibid., p 51-52

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A investigação da formação do capitalismo no Brasil, sua gênese e particulari-dade leva Chasin à determinação concreta da via colonial, quadro que singulariza o capitalismo brasileiro que se ordenou a partir de condições históricas peculiares (a condição de colônia). Em verdade, ao lado das indicações clássicas e prussianas de objetivação do capitalismo comparece, para o autor de o Integralismo de Plínio Salgado, uma gama de países (entre os quais o Brasil) que emergem para o capitalismo só mui-to tardiamente e em condições ainda mais adversas se comparadas à exemplaridade inglesa e francesa, como também, italiana e alemã. E assim, ao se debruçar sobre a emergência do capitalismo no Brasil, o autor afi rma:

É, pois, sob tais circunstâncias, profundamente retardadoras e retardatárias, con-fi gurantes de um capitalismo híper-tardio brasileiro, que se põe a industrialização, à época que nos ocupa, de tal forma que ‘A revolução de 1930 marca o fi m de um ciclo e o início de outro na economia brasileira: o fi m da hegemonia agrário-ex-portadora e o início da predominância da estrutura produtiva de base urbano-in-dustrial. Ainda que essa predominância não se concretize em termos da participa-ção industrial na renda interna senão em 1956, quando pela primeira vez a renda do setor industrial superará a da agricultura’/.../ É o que fundamentalmente nos competia estabelecer, no âmbito das necessidades do nosso trabalho: a presen-ça concreta, sim, porém incipiente e ultra-retardatária dos primeiros momentos signifi cativos da objetivação do “verdadeiro capitalismo” no Brasil, exatamente nos anos em que o ideário pliniano foi elaborado. Anos que para os países que efetivamente conheceram o fascismo são, já de algum tempo, de plena atividade imperialista, e até mesmo uma guerra dessa natureza já se conta em sua história. Tal a disparidade do estágio de desenvolvimento do capitalismo brasileiro, em face daqueles países, que quaisquer igualizações ou identifi cações, além de impossíveis, são verdadeiramente uma brutalidade teórica.13

Assim, “a brutalidade teórica” ganha forma e robustez quando se considera que, em última análise, o que se está equiparando são elos débeis da cadeia imperialista, portanto fenômenos do capitalismo altamente avançado, entida-des da fase superior do capitalismo, com uma formação que integra precisamente as áreas da disputa imperialista, faz parte justamente do território colonial que os elos débeis forçam por ver redistribuído.14

Em outras palavras, a tese doutoral avança pela determinação e identifi cação do capitalismo brasileiro, seu caráter retardatário e os problemas advindos de tal contextura: o nascimento de uma burguesia frágil, regressiva em suas possibilidades, antidemocrática por excelência e pragmaticamente politicista; de outro, a categoria do trabalho cuja lógica e necessidade esteve a reboque do politicismo de nossa burguesia. De fato, as condições históricas e sociais de nossas classes sociais enformaram os

13. Ibid., p 587.14. Ibid., p 588.

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horizontes, limites, perspectivas e atos de nossas categorias sociais. Em termos con-cretos: a emergência do capitalismo nos moldes da via colonial, na situação de ex-colô-nia, é imposta de fora para dentro, ou seja, a ascensão capitalista é erigida a partir das burguesias centrais que, historicamente, instalam suas indústrias a partir da década de 50. Redundando, para, Chasin numa subsunção da burguesia local aos interesses econômicos das burguesias centrais. É o caso da super-exploração do trabalho, do arrocho salarial necessário para remunerar as burguesias interna e externamente.

No que se refere à burguesia brasileira, Chasin a identifi ca a partir de sua raiz politicista. Politicismo examinado, primeiramente, na vivência do processo eleitoral bra-sileiro de 1982. De pronto, Chasin caracteriza a situação daqueles tempos: “Principio por uma afi rmação sumária: estamos vencidos porque o processo político eleitoral foi politicizado por interesse e iniciativa do sistema e pela hegemonia ideológica cas-tradora a que estão submersas as oposições”.15

Tomemos o centro de seu argumento: as eleições de 1982, as primeiras desde o golpe militar de 64, estão perdidas, pois imersas no politicismo consciente do sistema e das oposições. Politicismo que tipifi ca nossa burguesia, seu perfi l e modo de exis-tência, ou seja,

nossa burguesia, para quem o liberalismo econômico (a livre troca para sustentar e ampliar sua própria natureza exploradora, através da associação crescente com a exploração hegemônica e universalizante do capital externo) foi sempre apropria-do e conveniente, nunca pôde, nem sequer poderia ter aspirado a ser democrática, tem no politicismo sua forma natural de procedimento. Politicista e politicizante, a bur-guesia brasileira, de extração pela via colonial, tem na forma de sua irrealização eco-nômica (ela não efetiva, de fato e por inteiro, nem mesmo suas tarefas econômicas de classe) a determinante de seu politicismo. E este integra, pelo nível do político, sua incompletude geral de classe. Incompletude histórica de classe que a afasta, ao mesmo tempo, de uma solução orgânica e autônoma para a sua acumulação capitalista, e das equações democrático-institucionais, que lhe são geneticamente estranhas e estruturalmente insuportáveis, na forma de um regime minimamen-te coerente e estável. O politicismo atua neste contexto, enquanto produto dele, como freio e protetor. Protetor da estreiteza econômica e política da burguesia; estreiteza, contudo, que é toda a riqueza e todo o poder desta burguesia estreita. Efetivamente subtraí o questionamento e a contestação à sua fórmula econômica, e aparentemente expõe o político a debate e ao “aperfeiçoamento”. Portanto, atua como freio antecipado, que busca desarmar previamente qualquer tentativa de rompimento deste espaço estrangulado e amesquinhado16.

Tome-se, assim, o politicismo conquanto modus operandi de uma burguesia estreita, incompleta econômica e politicamente. No plano econômico obriga-se à superex-

15. Hasta Cuando? in Miséria Brasileira, p. 123. 16. Ibid., p.124.

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ploração do trabalho, ao arrocho que a nutre em orgânica associação com as bur-guesias centrais. Nos termos de As maquinas param, germina a democracia, escrito em 1980:

A política econômica do sistema no poder consiste, grosso modo, numa forma de acumulação capitalista subordinada ao capital estrangeiro, em que a produção é direcionada para dois pólos principais. De um lado, intensifi ca-se a produção de bens de consumo duráveis (automóveis, eletro-eletrônicos e correlatos); para seu consumo é estruturado, internamente, um mercado privilegiado e reduzido. É o pacto com o segmento alto das camadas médias. Paralela e combinadamente, é desencadeado um esforço exportador. Para que tal mecânica funcione, nas con-dições de um país subordinado ao capital estrangeiro, são necessários o concurso dos dinheiros internacionais e a aplicação do arrocho salarial sobre a grande mas-sa dos trabalhadores. O primeiro aparece sob a forma de investimentos diretos e muito especialmente de empréstimos. O arrocho preserva a existência da mão-de-obra barata e faculta a produção de bens, ditos competitivos, para o mercado internacional. É da lógica do sistema remunerar especialmente o capital fi nanceiro internacional, seus parceiros nacionais e reservar uma parcela para um segmento privilegiado das camadas médias.; bem como obrigatoriamente implica também a depressão salarial da massa trabalhadora. Numa palavra, a organização dada à produção nacional é que determina a avassalante desigualdade na distribuição de riqueza. Em outros termos, a forma atual da produção da riqueza é que causa diretamente a superexploração do trabalho, isto é, a miséria das massas trabalha-doras.17

A orgânica que estrutura a burguesia de extração colonial, notadamente a brasi-leira emerge de condições históricas assumidamente adversas, vale dizer: a incomple-tude e estreiteza assinaladas existem, em primeiro plano, conquanto impossibilidade das classes burguesas, de extração colonial, de operarem economicamente por si, fazendo valer, autonomamente, seus interesses econômicos. Em termos diversos, é identifi cada uma classe social que para se por como classe social é obrigada a submeter-se, no plano econômico, às exigências de acumulação dos sistemas capita-listas centrais, isto é, na forma de empréstimos (divida externa e investimentos) que garantam a produção e reprodução societárias em mão dupla, da burguesia nacional e internacional. De concreto, temos: o capital externo fi nancia as condições econô-micas do país, sua produção e aquisição dos meios necessários à produção. Cria-se uma produção vincada ao mercado externo, pois, internamente a população é maci-çamente arrochada enquanto hiper-exploração do trabalho permitindo, assim, uma produção com mão de obra barata (pois na associação com as burguesias centrais, a burguesia brasileira ao impor o arrocho salarial garantia, necessariamente, as condi-ções econômicas de remuneração das burguesias) e, por outro lado, a ausência de um

17. As maquinas param, germina a democracia! in A Miséria Brasileira, p. 85.

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mercado interno, induz a produção a voltar-se para o mercado internacional, ainda que em termos restritos no universo da produção de mercadorias. Assiste-se, assim, a um duplo movimento: associação e subordinação ao capital internacional; de outro, arrocho salarial e mercado externo, unidos no tripé que sustenta e alimenta a burguesia nacional. Vínculo carnal que a tipifi ca e constitui, ou nos termos de A Miséria da Republica dos Cruzados, escrito em 1986, cuja tônica remete à transição politicista encapada pelo sistema com a anuência das oposições. Assim, o autor reitera suas convicções acerca do capital de extração colonial, gestado no Brasil:

Este, fi lho temporão da história planetária, não nasceu da luta, nem pela luta tem fascínio. De verdade, o que mais o intimida é a própria luta, posto que está entre o temor pelo mais forte que lhe deu vida, e o terror pelos de baixo que a podem vir tomar. Toda revolução para ele é temível, toda transformação uma ameaça, até mesmo aquelas que foram próprias de seu gênero. É uma espécie nova, covarde, para quem toda mudança tem de ser banida. E só admite corrigendas na ordem e pelo alto, aos cochilos em surdina com seus pares18

De pronto, é retomada a veia politicista de nossa burguesia, proteção que nasce das condicionantes que a enformam, ou seja, ser politicista, nos termos da burguesia nacional, signifi ca “tomar e compreender a totalidade do real exclusivamente pela sua dimensão política e, ao limite mais pobre, apenas de seu lado político-institucional.”19 Em termos desdobrados, a burguesia brasileira opera a

liquefação da rica carnação da realidade concreta em calda indiferenciada, que é suposta como a política /.../ convertendo a totalidade estruturada e ordenada do real – complexo real de mediações – num bloco de matéria homogênea /.../ bárbara amputação do ente concreto, que sofre a perda de suas dimensões sociais, ideológicas e especialmente de suas relações e fundamentos econômicos /.../ Ex-pulsa a economia da política ou, no mínimo, torna o processo econômico mera-mente paralelo ou derivado do andamento político, sem nunca considerá-los em seus contínuos e indissolúveis entrelaçamentos reais, e jamais admitindo o caráter ontologicamente fundante e matrizador do econômico em relação ao político.20

Em termos concretos, ao supor a prevalência do político sobre a totalidade social, em especial sobre as dimensões econômicas, a burguesia brasileira opera na direção de que qualquer mudança (mesmo que mínima) deve-se ater ao universo do aperfeiço-amento institucional, das regras da convivência democrática; do mesmo modo, tal prevalência protege os mecanismos auto-reprodutores: o elo econômico vital com as burguesias internacionais e o arrocho salarial, bases de uma equação econômica excludente. Assim, ao privilegiar o político, nossa burguesia encontra o lugar de

18. A miséria da república dos cruzados, in A Miséria Brasileira, p. 169.19. Hasta Cuando? in Miséria Brasileira, p. 123. 20. Ibid, pp. 123-124.

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sua própria equação mesquinha: aperfeiçoar (dentro de limites factíveis) as regras e formas do poder político em detrimento das questões econômicas que, na particu-laridade de sua entifi cação, não podem ser alteradas ou minimamente equacionadas em patamares menos perversos.

É, pois, desta herança funesta que se nutre nossas oposições, partidos e traba-lhadores. Então, ao considerar a emergência histórica da esquerda brasileira, nos quadros da via colonial, Chasin em A Esquerda e a Nova República, texto de 1985, assi-nala: a “esquerda brasileira /... / não nasceu contra a cabeça e o corpo de um antigo revolucionário. Não se deparou com uma entifi cação histórico-social integralizada. Viu-se em face da integralização histórico-social de um inacabamento”21. É retoma-do, frise-se, o centro de sua argumentação, pois, ao indicar o inacabamento histórico de nossa burguesia, Chasin, simultaneamente, explicita o terreno adverso em que nascem nossas esquerdas e suas perspectivas, ou seja, no espaço de uma burguesia economicamente subordinada e politicamente incapaz de gestar em termos mais favoráveis o estado democrático propriamente dito. De modo que a

crítica prática e teórica dos trabalhadores, aqui, não principiou por onde os pro-prietários haviam concluído. Estes não só não haviam terminado como não po-dem terminar nunca. E a esquerda bracejou no abismo do inacabamento do capi-tal, convertida em empreitada de uma obra por fi nalizar. Obra que, sob a mesma planta, jamais poderia ser sua /.../ a esquerda principia, neste caso, aquém dos li-mites da crítica burguesa clássica, e toma os parâmetros abandonados desta como se fossem os supostos de itinerário e de projeto da burguesia de extração colonial, dos quais nem esta nem ela própria poderiam pretensamente escapar22.

Inacabamento que, torneando nossa burguesia, imprime ferozmente a tônica de nossas esquerdas: completar historicamente uma forma particular da burgue-sia que, em si mesma, é incompleta e inacabável. Assim, as esquerdas tomam por bandeira e objetivo a criação das condições de uma revolução burguesa que gerasse maior autonomia econômica e menor pobreza às camadas mais desfavorecidas; de outro e concomitantemente, a luta pela construção da democracia no Brasil. Ban-deiras construídas e efetivadas normalmente pelas burguesias clássicas que, no caso das burguesias coloniais, não se alçavam à condição efetiva. Em termos concretos: completar a nossa burguesia, ensejar orgânica e acabamento próprios são o cerne que estimulou boa parte das ações de nossas esquerdas ao imprimirem à luta so-cial um conteúdo isoladamente antiimperialista, ou seja, tinham por objetivo forjar uma burguesia nacional autônoma, desgarrada e economicamente autárquica face as burguesias hegemônicas. Um voltar-se a um nacionalismo redentor das mazelas de

21. A esquerda e a nova república in Miséria Brasileira, p. 159.22. Ibid, p, 159.

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um capital inconcluso. Plataforma de boa parte da esquerda brasileira que buscava “o desenvolvimento capitalista nacional, sob a iniciativa e os estímulos do estado, inclusive como forma de integração/incorporação das massas excluídas”.23 O que, para Chasin, confi gura um anacronismo de um modo de ser e pensar a realidade próprio aos movimentos de esquerda que buscaram integralizar o capital ou mesmo aperfeiçoá-lo. De fato, Chasin entende que ontem e, especialmente, hoje

pensar a partir do nacionalismo é pensar não apenas a partir das forças extenuadas de uma perspectiva vencida, mas de um cadáver, em especial e especifi camente para a esquerda, pois é pensar contra a lógica do irreversível movimento histórico atual, é ser esquerda às avessas, não se guiar pelas possibilidades reais de futuro, mas a partir de uma lógica esgotada do passado, que no próprio passado se mos-trou inviável e impossível24

Importa, pois, demarcar que os apegos ao nacionalismo amplamente difundido nos partidos, sindicatos e organizações da sociedade civil denotam suas raízes na irrealização histórica das burguesias de extração colonial, atadas economicamente aos capitais clássicos e prussianos; laços que imprimem, vale reprisar, uma lógica econômica essencialmente desigual e perversa combinada à regressividade política. Em verdade, tal contextura acaba por lançar os partidos, sindicatos e oposições de esquerda para a aventura de se completar o capital, almejando dar-lhe uma face, no plano econômico e político de autonomia e de democracia, respectivamente. Será, pois, na bandeira do nacionalismo-estatal que as esquerdas alcançam seu politicismo e seu próprio fracasso. Querem que o estado seja capaz de regular e administrar o capitalismo (de extração colonial) para os interesses das massas, como se a correção de problemas estruturais dependesse, apenas, da mera vontade política. De modo que em Rota e Prospectiva de um Projeto Marxista, escrito inacabado de 1998, Chasin reafi rma os problemas de uma esquerda oriunda e imersa no politicismo e na falta de clareza teórica:

Hoje a discussão fi ca entre a evocação de discutíveis glórias ou heroísmos passa-dos e a domesticação ou democratização do capitalismo, a título de uma terceira via, o que equivale a buscar o bom estado, o estado que funcione, pois o antigo o nacional-estatista não funcionou (para os de baixo), e o de hoje, o estado-mínimo, neoliberal, também não; ou seja, estão buscando um capitalismo e um estado pro-pícios aos de baixo - o que não é apenas não ter bandeiras, mas também buscá-las onde não pode existir. Mais uma vez a falta de cultura marxista é massacrante25.

Tome-se, em primeiro plano, a tônica nacionalista e politicista da “domesticação ou democratização do capitalismo /.../ buscar o bom estado (para os de baixo)”. Projeto ilumi-

23. Rota e Prospectiva de um projeto marxista in Revista Ad Hominem, tomo III, política, p.47. 24 Ibid, p. 48.25. Ibid., p.45.

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nado a partir da crença cega na política, que Chasin qualifi cou como massacrante falta de cultura marxista. Assim, o nacionalismo é tido como propositura prática em que o estado é capaz de equacionar ou minimizar as mazelas típicas do capitalismo e que se faz ainda mais importante em contextos historicamente mais adversos, casos dos países de extração colonial. O bom estado, voltado para setores estrategicamente mais importantes da produção em nome e benefício das populações mais carentes. Equação política que, no século XX, dominou a prática e o sentimento de inúmeras organizações progressistas, partidos e sindicatos de esquerda, especialmente atados às formações capitalistas mais atrasadas. Sentimento que arrasta o estado à condição de demiurgo da sociedade, ou seja, o estado é encarado positivamente enquanto elo político a corrigir as disfunções crônicas do capitalismo, de exterminar a miséria ou de contê-la em níveis menos perversos. É deste politicismo que se nutre a prática das esquerdas brasileiras, tomando o terreno político (do estado) como condição, talvez única, da resolução ou contenção de mazelas de um tipo de capital (economicamente incompleto) e politicamente avesso às formais mais democráticas de dominação. As-sim, enquadradas em território politicista, as oposições no Brasil desfi brinam as lutas sociais ao enveredarem para o terreno eminentemente legal, da disputa e das formas democráticas do poder. Nos termos de A Esquerda e a Nova República:

em vez de partir da materialidade das lutas dos trabalhadores (da cidade e do cam-po) para atingir e moldar as instituições políticas, tem-se partido do formalismo destas para atingir e moldar os trabalhadores. Ou seja, tem sido levada aos traba-lhadores a perspectiva formal das instituições, ao invés de levar às instituições a perspectiva material dos trabalhadores.26

Apresenta-se, pois, o cerne da crítica chasiniana ao politicismo: os partidos, sindica-tos e frentes de esquerda operaram e operaram na direção de que o conteúdo pró-prio das lutas sociais (sua dimensão essencialmente econômica) seja diluída em ma-triz meramente política, conquanto a solução se enverede para o desenvolvimento e aperfeiçoamento do aparato político-jurídico do estado. Assim, a vontade política é hiper-valorada, tudo se restringe, em síntese, em quem será o timoneiro do estado. De fato, e assim agindo, as esquerdas tornam-se obstáculo à criação de condições verdadeiramente subjetivas que permitiriam o enfrentamento das urgências sociais, estampadas nas greves de 78-80:

O retorno depois de muitos anos, dos trabalhadores à cena política brasileira deri-vava de premências econômico-sociais e continha a perspectiva real de mudanças estruturais. Barradas e levadas ao refl uxo, as lutas operárias e sociais tiveram seu curso desviado, pela intervenção politicista da ditadura e das oposições, para a campanha eleitoral de 82. Na seqüência, foi a vez da gigantesca ansiedade popu-

26. A Esquerda e a Nova República in A Miséria Brasileira, p. 154.

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lar pelas mudanças sofrer a canalização para o território institucional das diretas-já, depressa recodifi cada em escalada ao colégio eleitoral, em benefício de uma tran-sição indefi nida, rumo a uma suposta democracia só determinada pela falta de conteúdo27

Tome-se, pois, o argumento em tela que esclarece a prática das esquerdas brasi-leiras do pós-64: o conteúdo econômico das lutas sociais é posto secundariamente e a reboque face às exigências de aperfeiçoamento das instituições políticas. Em ver-dade, comparece a crença de que os problemas econômicos encontram uma solução meramente política ou que dependam, apenas, da vontade de um governo popular, amparado em amplo contexto de massas. Horizonte castrador que remete a universo mesquinho e estéril de apenas questionarem “as formas do poder e nunca o próprio poder, formas da prática política e nunca a própria prática política”28. Em síntese, as agremiações, sindicatos e partidos de esquerda no Brasil jamais se interrogaram pela natureza do poder político (e por extensão do estado) o que, para Chasin, sinaliza, vale repetir, massacrante falta de cultura marxista. Disto resulta uma esquerda às avessas, cuja fé na política confi gura a própria negação de si mesma. Esquerda cujo perfi l politi-cista e a incultura marxista torneiam a natureza de partidos, sindicatos e agremiações cujos liames ganham o torno de esquerda no gradiente do capital. Assim, em 1989, no texto A Sucessão na Crise e a Crise na Esquerda, Chasin sustenta a tese inovadora da morte das esquerdas. No Brasil tal tese engloba as agremiações tradicionais (PCB, PC do B e sindicatos), como também, da chamada nova esquerda ou esquerda não marxista cuja exemplaridade é o próprio PT e seus sindicatos. Agremiações eivadas pelo marxismo vulgar de inspiração stalinista-maoísta e pelo taticismo político. Chasin, então, expõe seu argumento:

o século e meio de lutas compreendidas entre 1848 e 1989 foi um século e meio de insucessos e fracassos, onde o “socialismo” real é a derrota culminante dessa dura história de derrotas. É urgente compreender que as derrotas de hoje são de natureza totalmente diversa daquelas sofridas no século passado e em princí-pios deste. Enquanto nas mais antigas, mesmo episodicamente vencidas, a lógica onímoda do trabalho se afi rmou e rasgou perspectivas, nas mais recentes é o esgotamento de todo um itinerário que se manifesta, envolvendo caminhos e ins-trumentos. Muito em especial, rotas e ferramentas políticas mitifi cadas, que não só não correspondem às concepções clássicas, mas que, na forma aberrante em que se impuseram e difundiram, acabaram por se converter, em sua espúria iden-tidade, em motivos fundamentais da própria liquidação da esquerda, enquanto posição e organização política matrizada pela perspectiva da sociabilidade virtual do trabalho29

27. Ibid, p. 154.28. Democracia Direta Versus Democracia Representativa in Revista Ad Hominem, tomo III, política, p.110.29. A Sucessão na Crise e a Crise na esquerda in A Miséria Brasileira, p. 201.

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A tese é, pois, original, pois não procura culpados ou meras justifi cativas para as mazelas de ontem e hoje. Compreende a falência das esquerdas e a necessidade de se repor, urgentemente, uma nova perspectiva de esquerda. Nos termos de A Sucessão na Crise e a Crise na Esquerda:

Vencida até aqui, o que derrota a humanidade para muito além do estreito univer-so da política, no entanto, a potência onímoda da lógica do trabalho não foi nem poderia ser extinta, de modo que um futuro renascimento da esquerda, reassen-tada sobre a autêntica legalidade humano-societária do trabalho, compreenderá uma diversidade cabal na ordem da organização e efetuação políticas, bem como na prática das lutas sociais e sindicais, redefi nidas em contraste com as “matrizes” do século XX, o que não implica a ruptura com heranças e princípios legítimos, que as revoluções do século foram incapazes de respeitar e sustentar. Reconhecer, em toda a extensão de sua gravidade prática imediata, a morte da esquerda real e a ressurreição do liberalismo não é, portanto, manifestação de pessimismo, nem muito menos uma declaração do fi m da história. Pelo contrário, é cumprir a exi-gência revolucionária elementar de aferição objetiva do quadro histórico vigente, facultada exatamente pela manutenção de perspectivas, que suscita senso crítico e de realidade, inclusive em circunstâncias de extrema adversidade, como a dese-nhada nestes fi nais de século. Quanto mais concreta for a representação do atual momento desfavorável, tanto mais solidamente poderão ser fundadas as esperan-ças, pois a morte da esquerda não é a extinção da perspectiva histórica da esquerda30

Tese radical, pois alcança a raiz dos dilemas humano-societários. Enfrenta os problemas para além das circunscritas dimensões político-organizacionais dos par-tidos e sindicatos ou dos erros e equívocos de ordem ético-individuais. Reconhece o tecido apodrecido das agremiações, sua prática improgressiva e a necessidade da emergência de novas formas da esquerda. Novas formas que obrigariam repensar o sentido e o signifi cado de ser de esquerda, ainda mais, no atribulado século e meio de derrotas. É, pois, neste contexto que se insere a emergência da Ensaio: Movimento de Idéias, Idéias em Movimento.

Tomemos, pois, inicialmente o depoimento do próprio J.Chasin: Há uns tantos anos, pouco mais de duas décadas, elididas rotas e convicções bem mais pessoais e remotas, emergiu o projeto Ensaio, antecedente espiritual e passo primeiro destes novos Ensaios AD HOMINEM. Foi na época, amálgama de dire-tivas ponderadas, alguma experiência e muita observação das vicissitudes sofridas pela esquerda brasileira e mundial desde os percalços do pré-6431.

E desdobra,No início dos anos 80, o panorama nacional exibia a reconversão da ditadura militar em distensão democrática, ao lado do refl uxo afl itivo da movimentação

30. Ibid, pp. 201-2. 31. Rota e Prospectiva de um Projeto Marxista in Miséria Brasileira, p. 5.

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dos trabalhadores, abatida na seqüência imediata à sua vigorosa reemergência nos dois últimos anos da década anterior – lampejo marcante, mas episódico, que não teve alento para engendrar sua auto-sustentação e foi minado pela sua imediata instrumentalização político-partidária.. O instante exibia também a derradeira fa-lência da esquerda tradicional e a inconsistência dos credos e propósitos da então chamada nova esquerda. Tudo transpassado por uma carência antiga, tornada ainda mais aguda e complexa: a sabida e reiterada falta de produção teórica de qualidade nos círculos da esquerda organizada, defeito capital cujas raízes tinham assento, sem falar nos constrangimentos extrateóricos, no desconhecimento do pensamento marxiano e nas suas versões aleatórias e disformes32

O cenário apontado pelo autor é importante: no Brasil, no início dos anos 80, é fi nalizada a transição da ditadura militar para a distensão democrática; processo conduzido e armado, essencialmente, pelo regime militar evidenciando, deste modo, a falência prático-teórica da esquerda tradicional e da nova esquerda. A politicização das lu-tas sociais, instrumentalização político-partidária do movimento dos trabalhadores. Ausência de produção teórica e desconhecimento da obra marxiana pela esquerda organizada. É, pois, neste contexto adverso que se esboça, para Chasin, a necessi-dade de se erguer, a partir de parâmetros novos, o movimento Ensaio. Em termos que esclarecem:

Afrontando mitos e preconceitos da prática vulgar que engolfou o século, emer-giu então, não sem alguns enganos e tropeços iniciais, a evidência da prioridade radical, na ordem das necessidades intrínsecas ao campo da esquerda, de um Mo-vimento de Idéias, voltado à produção e difusão teóricas e direcionado à redescoberta da obra de Marx, bem como à tematização da problemática brasileira. Projeto am-bicioso por seus alvos, foi desde logo equilibrado pela prudência e comedimento de sua prática intelectual, pretendendo antes rigor no próprio trabalho do que conquista imediata de infl uência, muito mais abrir um caminho do que lutar por reconhecimento, indiferente em especial aos aplausos fáceis, complacentemente permutados33

Movimento de Idéias pensado e conduzido como necessidade, pois, intrinsecamen-te novo na recusa e nos procedimentos que se mostraram historicamente falidos e teoricamente equivocados. Movimento que se põe e expõe no enfrentamento de uma lógica sindical-partidária organicamente incipiente, viciada em seus erros e pou-co afeita à auto-refl exão. Movimento, pois,

compreendido e praticado como suposto necessário para uma correta e concreta intervenção social, exigida e orientada pela lógica humano-societária do trabalho. Isto sumariza, no quadro nacional, forma diferente ou original de conceber e vir a exercitar os atos inerentes à prática de esquerda, matrizada pela sua própria inte-gridade e conduzida à efi cácia. Movimento de Idéias como exigência de pressuposto

32. Ibid. PP.5-6.33. Ibid. P.6.

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incancelável, que deita raízes na exemplaridade de autores e eventos históricos que, em sua grandeza e perenidade ou na mesquinhez e contingência de sua con-trafação, constituem a base para o deciframento das revoluções dos séculos XIX e XX, de cujo balanço emergem lineamentos para as revoluções do século XXI. Movimento de Idéias afi rmado como pré-requisito da disposição e dos dispositivos so-ciais, legítimos e imprescindíveis à ação lúcida e resolutiva, que jamais foi atendido nos adventos dos partidos brasileiros de esquerda, sempre tomados nos estreitos limites da política, e jamais compreendidos como formas categoriais de identifi -cação social. Entre suas debilidades de origem, essa é uma das fundamentais na explicação de seus fracassos e falências34.

Assim, o itinerário que ora se fecha não pretendeu e nem poderia pretender ir além da simples narrativa, do apontar, mais ou menos organizado, de problemas importantes que moveram e constituíram o ideário de J.Chasin. Espero ter aguçado o leitor e, se possível, de levá-lo aos textos chasinianos. Se isto ocorrer, está será a melhor homenagem aos dez anos de sua morte.

Referência Bibliográfi ca:

CHASIN, J. A Miséria Brasileira, Santo André: Estudos e edições ad hominem, 2000, 367p.

_________. Tomo III, Política. Revista de Filosofi a, Santo André: Estudos e edições ad hominem, 2000, 243p.

_________. Manifesto Editorial I in A Burguesia e a Contra-revolução, São Paulo: Editora Ensaio, 1993, 98p.

34. Manifesto Editorial I in A Burguesia e a Contra-Revolução, PP. 7-8.

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educação e ciências humanasEspaço de interlocução em ciências humanas

Ano V, novembro de 2008 – Publicação semestral – ISSN 1981-061X

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Chasin e a tese da "via colonial"

Sabina Maura Silva*1

Antônio José Lopes Alves**2

* Mestre em Filosofi a pela UFMG, doutoranda em Educação pela UFMG, Professora do Instituto Superior de Ensino Anísio Teixeira da Fundação Helena Antipoff-MG.** Mestre em Filosofi a pela UFMG, doutorando em Filosofi a pela UNICAMP, Professor do Colégio Técnico da UFMG.

Resumo: O presente artigo pretende explicitar as principais determinações categoriais e a articulação destas, que cons-tituem a tese da Via Colonial de desenvolvimento da sociabilidade capitalista. Cunhada por José Chasin como uma das resultantes teóricas mais importantes de sua pesquisa de doutoramento empreendida em torno do pen-samento conservador no Brasil, especifi camente o Integralismo de Plínio Salgado, a propositura em questão se apresenta na obra do pensador brasileiro como explicação da rota particular de constituição e consolidação do capitalismo entre nós, bem como das manifestações político-ideológicas havidas na sociedade brasileira. Ca-racterizado como de matriz atrófi co, dado o caráter incompleto do capital sobre o qual se assenta, o conjunto de relações que perfazem o capitalismo brasileiro é entendido como uma forma específi ca e peculiar de entifi cação do capital, a qual somente pode ser entendida em remetimento às condições históricas igualmente particulares da mesma. O que não signifi ca a proposição de um “capital brasileiro”, mas de uma articulação entre as di-mensões gerais e particulares de desenvolvimento do capital na sociedade brasileira. Além disso, pretende-se explorar as implicações e prospectivas relativas ao esgotamento ou à superação dessa forma de ser capital pelo desenrolar histórico mundial recente.

Palavras-chave: Marxismo; Capital; Capitalismo hiper-tardio; Via Colonial; Brasil.

Chasin and the thesis of “colonial path”Abstract: This article identifi es the main categorical determinations and their articulation in what represents the thesis of the Colonial Way of development of capitalist sociability. Conceived by José Chasin as one of the most im-portant theoretical results of his doctoral research on the conservative thought in Brazil, specifi cally the Plínio Salgado’s integralism, the proposition is presented in the work of this Brazilian thinker as an explanation of the particular route of formation and consolidation of capitalism among us, and the ideological-political mani-festations held in Brazilian society. Characterized as from an atrophic matrix, due to the , incomplete nature of the capital on which it rests, the set of relationships that distinguish Brazilian capitalism is understood as a specifi c and peculiar form of capital’s objectifi cation which can be understood only considering the Brazilian specifi c historical conditions. That does not imply the proposition of a “Brazilian capital” but a link between the general and individual aspects required for the development of the capital in Brazilian society. Moreover, the paper is intended to explore the implications and prospects of the Colonial way exhaustion or at least how this form of being capital was overcame by the changes in recent world history.

Key words: Marxism; Capital; Hyper-late Capitalism; Colonial Way, Brazil.

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I

Observando-se com atenção e discernimento rigorosos o cenário da produção marxista no Brasil durante o século XX, percebe-se que uma das contribuições mais importantes para o conhecimento da realidade nacional é a consubstanciada na tese da “Via Colonial”. Denominação cunhada por Chasin, tendo como referência crítica a determinação de “Via Prussiana” (Chasin, 1999, p. 571/572), refere-se ao modo particular de objetivação do modo de produção capitalista no Brasil e em paí-ses que tiveram a confi guração histórica de extração colonial. É um “modo e estágio de ser, no ser e no ir sendo capitalismo” (Chasin, 1999, p.568).

Há que ressaltar, inicialmente, a diferença específi ca com relação tanto à sua antecedente imediata, acima referida, quanto às demais que pretendem amoldar cognitivamente a realidade a partir de modelos culturalistas ou antropológicos1. Não pretende ser, nem pode ser tomada, como um modelo metodológico ou tipo ideal teórico. Ao contrário, constitui-se em uma compreensão teórico-explicativa de um processo efetivo, de um modo de ser das categorias que perfazem o capital num ambiente histórico-social deter-minado. Em outros termos, trata-se da análise de um contexto de relações historicamente forjadas, em muito distinto daquelas confi gurações societárias que objetivaram o modo de produção capitalista da maneira reconhecida por Marx como casos clássicos, especifi camente os processos ocorridos na Inglaterra e na França. Separa-se assim, inclusive, da formação ideal consagrada por Lênin, a qual Chasin assume como primeiro ponto de partida. Ponto de partida de um itinerário que não é repetido ou apenas reposto no caminho a ser trilhado, mas serve como plataforma refl exiva a ser superada pela apreensão dos nexos particulares efetivos do processo sócio-econômico brasileiro. É o desvelamento argumentativo da pro-cessualidade concreta do capital conforme se formou e se consolidou entre nós. Dessa ma-neira, a via colonial é um caminho particular em direção ao “verdadeiro capitalismo”, “posto pela forma do capital industrial” (Chasin, 1999, p.575). Refere-se à “particularidade de uma formação imperialisticamente subsumida, e que principia hiper-tardiamente a consecução da forma industrial de produção” (Chasin, 1999, p. 588). Portanto, “Via Colonial” designa o processo hiper-tardio de constituição da industrialização brasileira, processo este que se dá sob a subordinação imperialista. Nesse sentido, a propositura chasianiana não é, pois, uma forma vazia à espera de conteúdos históricos empiricamente recolhidos, os quais seriam ordenados por uma taxonomia sociológica ou historiográfi ca.

Por conseguinte, é uma construção ideal de caráter científi co-fi losófi co que projeta apanhar ou fl agrar as determinações próprias ao processo de objetivação do capitalismo brasileiro. Tal como identifi cadas por Chasin, objetivações capitalistas tardias e hiper-tardias, “não são acompanhadas pelo progresso social que marca os casos clássicos” (Chasin, 1999, p. 579). Ou seja, o desenvolvimento material está

1. Referimo-nos aqui a abordagens presentes, por exemplo, em Casa-Grande & Senzala, de Gilberto Freire, e Raízes do Brasil, de Sérgio Buarque de Hollanda.

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dissociado do desenvolvimento social. Esta apreensão se mostra vital para se enten-der correta e justamente as desventuras e mazelas reconhecidas no desenvolvimento da vida social brasileira; pense-se a este respeito na irresolução crônica da questão do Estado, para não referir à já igualmente maltratada, prática e teoricamente, demanda social, sempre confundida, em sua emergência e enfrentamento, com desafi os pos-tos pela falta de “vontade política”, de “solidariedade” e de administração proba de “políticas sociais”. A tese da Via Colonial impõe na enunciação de seus pressupostos e argumentos, bem como na conseqüência rigorosa de suas implicações, teóricas e ideológicas, a recusa decidida dos modos habituais de se pôr os problemas da difu-são aparentemente desproporcional da riqueza socialmente produzida, porquanto identifi ca na particularidade do processo brasileiro a constituição igualmente pecu-liar das estruturas que equacionam e regulam o fl uxo da corrente de distribuição. Tomando por base o preceito marxiano da determinação das formas de distribuição por aquelas da produção, Chasin arrima o formato da sociedade brasileira na sua constituição histórica concreta. Desse modo, a

(...) decisão estruturante (que se dá no interior das nações: “onde na imediaticidade é decidido quem vive e come, material e espiritualmente, e de que maneira”) diz respeito, em suma, à relação entre evolução nacional e progresso social e /.../ é muito diversifi cada no interior da universalidade do capital. Retoman-do os exemplos da história da França e da Inglaterra, constata-se que ambos se apóiam e estimulam mutuamente, em contraste com o que se passou na Alemanha, onde a evolução nacional se afi rmava contra o progresso social. A contraposição, sob as condições de existência geradas pela via colonial, é ainda mais perversa, porque a evolução nacional é refl exa, desprovida verdadeiramente de um centro organizador próprio, dada a incompletude de classe do capital, do qual não emana nem pode emanar um projeto de integração nacional de suas categorias sociais, a não ser sob a forma direta da própria excludência do progresso social, até mesmo pela nulifi cação social de vários contingentes populacio-nais (Chasin, 1989, p.49).

Perversidade histórica que não é fruto simplesmente de uma debilidade antro-pológica das classes dominantes em se fazerem como tais no sentido de um mínimo progresso humano universalizado ou, pior ainda, por uma maldade e/ou idiotia ina-tas, e sim por via de conseqüência do processo histórico no qual se deu efetivamente a invenção do Brasil. O que não signifi ca a construção de uma mera genealogia do capi-tal brasileiro, coisa tão a gosto das humanidades atuais levadas em sua discursividade pelos caminhos das correntes fi losofi camente dominantes, de extração nietzscheanas e heideggerianas. Ao contrário, a refl exão de Chasin propõe a reconstrução catego-rial do desenvolvimento histórico de uma formação social concreta, e não apenas a narrativa do incremento de um gérmen cuja “face é a de um embrião maldito conde-nado a uma gestação eterna. Cresce e encorpa na reprodução de sua incompletude, engrossando sempre mais os cordões umbilicais que o atam às fontes que o tolhem

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e subordinam” (Chasin, 2000, p. 158). História que se tece com fi os a esgarçar-se a cada trama urdida no tear das relações societárias capitalistas no Brasil. Apartamento de fi os, separação da urdidura que perfaz não o nada, mas uma dada confi guração de ir sendo capital, que se revela incompleto em seus momentos de infl exão e de repro-dução sócio-econômica, assim como desvela a sua própria incompletude como um dos traços distintivos de sua totalidade concreta. Totalidade de relações de produção que, na sua fi gura castrada e claudicante, foi-se consolidando temporalmente como um modo particularizado de articulação das categorias do capital em terras brasi-leiras. Modo de ser das categorias que explica e implica em sua atrofi a original, em sua fi gura lacunar primitiva, continuamente reproduzida e ampliada, em associação necessariamente subordinada com os capitais centrais, as diversas incompletudes sociais que dilaceram a sociabilidade brasileira, e elevam a potências inimagináveis os dilaceramentos imanentes à ordem do capital enquanto tal:

Desprovido de energia econômica e por isso mesmo incapaz de promover a ma-lha societária que aglutine organicamente seus habitantes, pela mediação articu-lada das classes e segmentos, o quadro brasileiro de dominação proprietária é completado cruel e coerentemente pelo exercício autocrático do poder político. Pelo caráter, dinâmica e perspectiva do capital atrófi co e de sua (des)ordem social e política, a reiteração da excludência entre evolução nacional e progresso social é sua lógica /.../ (Chasin, 1989, p.49).

Consolidação histórica concreta de um modo de capitalismo que fez da repro-dução de sua rombuda limitação o meio próprio de ir existindo como forma mo-derna de sociabilidade. Frise-se forma moderna, na medida em que nunca se tratou da reedição curiosa e intempestiva de modalidades de ordenamento sociais já superadas nas sociedades centrais. Não sendo a permanência de restos feudais ou coisa parecida, nem que seja pela razão de que empiricamente a brasilidade se gesta no interior de um processo econômico já ele mesmo tipicamente moderno. É a processualidade da existência de uma forma atrófi ca de capital, com todo o séquito de relações sociais que o acompanham necessariamente:

Em síntese, à via colonial de efetivação do capitalismo é inerente o estrangulamento da potência auto-reprodutiva do capital, a limitação acentuada da sua capacidade de reordenação social, e a redução drástica da sua força civilizatória. Desse modo, ao mesmo tempo que encobrem por inacabamento, seus processos empuxam, pela via da irresolução crônica das questões mais elementares, a contradição entre capital e trabalho (Chasin, 1989, p.49).

Essa particularidade de desenvolvimento, a reprodução continuada e ampliada de uma restrição, realiza-se plenamente na ausência de uma revolução propriamente burguesa, ou ainda na sua impossibilidade original e visceral. Desse modo, o “novo”

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emerge sem que haja a superação do “velho”. A política, tão identifi cada – e pouco compreendida – da formação de frentes e/ou de direcionamento de processos por meio de compromissos, os quais excluem obrigatoriamente qualquer menção a rup-turas concretas e a demarcações históricas, encontra, a partir da compreensão da Via Colonial, então, a sua explicação:

Na particularidade da formação do capitalismo brasileiro /.../ [é] marcadamente próprio desta a conciliação entre o historicamente velho e o historicamente novo, de tal forma que o novo paga pesado tributo ao velho no seu processo de emersão e vigência, o confronto entre as componentes agrária e industrial do modo de pro-dução capitalista, no caso brasileiro, teria forçosamente de assumir modalidade específi ca; digamos assim, formas abrandadas e veladas (Chasin, 1999, p. 566).

A história brasileira do capital, como historicidade concreta da incompletude e da não ruptura, engendra a fi gura de suas personæ, como formas peculiares de indi-viduação e de classes sociais capitalistas. O que se gestou na rota de constituição da forma social capitalista brasileira foi uma burguesia à imagem das relações sociais de produção do capital que aqui vicejaram. Capital atrófi co e, por conseguinte, atro-fi ante, que circunscreve e, no caso específi co, adstringe o campo de possibilidades societárias. Incompletude de classe no âmbito econômico, no que tange às formas de organizar a extorsão social de mais-valor, a qual se expressa, conseqüentemente, no âmbito político, como uma espécie de inapetência para o domínio propriamente moderno. O que a ela restou foram as ilusões próprias à politicidade em geral, sem compartilhar das potencialidades sociais. Como bem observa Chasin,

Desprovido de energia econômica e por isso mesmo incapaz de promover a malha societária que aglutine organicamente seus habitantes, pela mediação articulada das classes e segmentos, o quadro brasileiro de dominação proprie-tária é completado cruel e coerentemente pelo exercício autocrático do poder político (Chasin, 1989, p.49).

Logo, “Politicista e politicizante, a burguesia brasileira, de extração pela via colo-nial, tem na forma da sua irrealização econômica (ela não efetiva, de fato e por intei-ro, nem mesmo suas tarefas econômicas de classe) a determinante de seu politicismo” (Chasin, 2000, p. 153). Por esse motivo, a burguesia brasileira

Nunca foi a cabeça de sua própria criação e nunca aspirou a não ser não ter aspi-rações. Não consumou suas luzes políticas, porque só abriu os olhos quando estas já estavam extintas. Nunca teve que desacreditar do ideal do estado representativo constitucional, simplesmente porque este nunca foi seu ideal de estado. Também não abandonou a salvação do mundo e os fi ns universais da humanidade, porque sempre só esteve absorvida na salvação amesquinhada de seu próprio ser mes-quinho, e seus únicos fi ns foram sempre seus próprios fi ns particulares (Chasin, 2000, p. 159).

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Modo de ser do capital atrófi co que determina e condiciona o desenho não ape-nas das classes que dominam a produção, e exercem este domínio politicamente de maneira canhestra, mas igualmente daquelas a estas contrapostas pela divisão capi-talista do trabalho. A fi gura social do trabalho, como expressão em classe, do funda-mento real da produção do capital – uma vez que é impossível ser processo de produção do capital sem ser imediatamente processo de produção, de trabalho – acaba também se realizando como forma de ser social incompleta. E isso, tanto em sua fi guração concreta, no processo imediato de produção, como nível baixo ou retardatário de capacitação, quanto na expressão política de sua antítese social ao capital, na pessoa de suas agremiações de classe ou políticas. A incompletude de classe da burguesia brasileira determina a incompletude de classe dos trabalhadores:

A esquerda brasileira, portanto, não nasceu contra a cabeça e o corpo de um antigo revolucionário. Não se deparou com uma entifi cação histórico-social inte-gralizada. Viu-se em face da integralização histórico-social de um inacabamento. /.../ A crítica prática e teórica dos trabalhadores, aqui, não principiou por onde os proprietários haviam concluído. Estes não só não haviam terminado, como não podiam terminar nunca. E a esquerda bracejou no abismo do inacabamento do capital, convertida em empreiteira de uma obra por fi nalizar. Obra que, sob a mesma planta, jamais poderia ser sua (Chasin, 2000, p. 159).

Assim, como modo de ser da articulação das categorias do capital, a via de cons-tituição do capitalismo brasileiro determina como espelhamento da incompletude de seu fundamento semelhante inacabamento da persona social a este contraposta. Persona social ou classe que enfrenta a dos detentores da massa de condições so-ciais objetivas da produção como capital no terreno minado por uma incompletude imanente e inerente. Capital que se reproduz na atrofi a de sua essência e condiciona a predicação social e política de suas expressões como confl ito entre classes. Como imagem especular do inacabamento do capital, a prática confl ituosa específi ca do caso brasileiro impõe, curiosamente, às classes trabalhadoras, não o repto histórico de derrubar a forma social capital, mas sim de realizá-la de maneira completa. O que de per se se constitui num escândalo histórico-social, que vai caracterizar a anomia e a anemia das lideranças do trabalho e de suas expressões políticas. Conseqüentemen-te,

A esquerda brasileira nasce, portanto, submersa no limbo, entre o inacabamento de classe do capital e o imperativo meramente abstrato de dar início ao processo de integralização categorial dos trabalhadores. Alma morta sem batismo, não atina para a natureza específi ca do solo em que pisa, nem para a peculiaridade de pos-tura e encargo que este chão dela demanda e a ela confere. Posta entre a mera possibilidade genérica de uma revolução abstrata, e a reali-dade concreta de um capital incompleto e incompletável, a esquerda sucumbe,

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naturalmente, à presença real e às tensões e pressões efetivas da segunda. Entre a idealidade esgarçada de uma revolução incogitável e o credo na fi nalização neces-sária do capital, é arrastada para o objetivismo da empreitada que visa à última. É a subsunção aos nexos mortos do que fora a lógica do capital concluso. É a submis-são à lógica extinta do ideário liberal. No caso, duas vezes morta: a primeira vez, enquanto cadáver ideológico da própria burguesia de ‘tipo europeu’; a segunda, enquanto fantasma de empréstimo do conservantismo civilizado, boneco ‘liberal’ na ventriloquia da autocrática burguesia brasileira. O devaneio de principiar a inte-gralização de classe dos trabalhadores reduz-se a miserável voto piedoso. Ao mes-mo tempo, a empresa impossível de levar à completude o capital incompletável amesquinha-se, progressivamente, em simples e melancólico ativismo caudatário (Chasin, 2000, p. 159-160).

A tese da Via Colonial, nesse contexto, auxilia sobremaneira na iluminação das causas dos vícios e das vicissitudes que assolam e fl agelam as esquerdas brasileiras no terreno das contendas sociais e políticas. Compreendem-se então os problemas particulares da esquerda no Brasil não por uma refl exão de cunho moral ou pelo diagnóstico abstrato da incapacidade congênita à propositura revolucionária, mas pelo remetimento daqueles ao desenho da totalidade das relações sociais capitalistas em sua forma particularizada. Totalidade que pode aparecer, por conseguinte, agora, como conjunto particular de nexos de produção e reprodução do capital, que perfaz a miséria brasileira:

A conjunção entre o embrião maldito do capital incompletável /.../ e a insubs-tancialidade teórica e prática da esquerda organizada, é a determinação da miséria brasileira. Miséria brasileira é determinação particularizadora, para o âmbito do capital e do capitalismo de extração colonial, da fórmula marxiana de “miséria alemã”. Com-preende processo e resultantes da objetivação do capital industrial e do verdadeiro capitalismo, marcados pelo acentuado atraso histórico de seu arranque e idêntico retardo estrutural, cuja progressão está conciliada a vetores sociais de caráter infe-rior e à subsunção ao capital hegemônico mundial. Alude, portanto, sinteticamen-te, ao conjunto das mazelas típicas de uma entifi cação social capitalista, de extra-ção colonial, que não é contemporânea de seu tempo (Chasin, 2000, p. 160).

II

O quadro assim delineado da via particular de realização do capital no Brasil, não obstante bem caracterizado, restaria ele mesmo incompleto sem sua referência determinativa à reprodução do capital em sua forma completa, uma vez que a de-terminação do capital em sua fi gura atrófi ca se dá por sua ligação particular com o circuito principal do capital. Nesse âmbito, pode-se observar outra virtude teórica da tese da Via Colonial, dado que escapa tanto da tendência de assinalar unilateralmen-

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te as determinações externas, como o fazem certas posições do marxismo terceiro-mundista, quanto o contrário abstrato destas, que acentuam empírica e abstratamente o caráter vicioso das relações de produção e de suas personæ como tipos ideais. No primeiro caso, a incompletude do capital aparece como resultante de uma trama malévola do capital central, cabendo como resposta a enunciação de um projeto de país. No segundo caso, como ausência de modernização do circuito interno, a qual se cumpriria pelo caminho privilegiado das grandes armações de cunho político que tornariam possíveis pactos e ajustamentos de posições para a reconfi guração do Estado e dos liames societários.

Na recusa decidida tanto de uma quanto da outra ponta da concorrência acadê-mico-ideológica, a propositura chasiniana procura compreender a incompletude do capital interno por sua referência necessária aos movimentos e infl exões do capital como sistema de produção global. Globalidade essa que se acentua e exerce uma sobredeterminação crescente quanto mais a rede inerente de interdeterminação da produção do capital, seja entre seus ramos, seja entre seus nichos geográfi cos, pro-gride e tende à posição de si como sistema da totalidade da produção humana. A relação capital subordinante – capital subordinado, portanto, emerge como o segredo oculto pelos sortilégios do capital, tanto do caráter necessariamente subordinador e assimé-trico das relações entre economias, quanto das carências e padecimentos imanentes a cada uma delas. Causa secreta que, certamente, sofre transmutação na forma das articulações – não sendo, portanto, lícito sustentar o Imperialismo como categoria ex-plicativa da realidade do capital mundializado – mas que nem por isso torna o mun-do do capital o melhor dos mundos, com a inauguração de uma meritocracia econômica de natureza simétrica em escala mundial. As economias não participam todas em um mesmo patamar do circuito de trocas múltiplas e multilaterais que caracterizam o mercado mundial:

É sabido que a mundialização do capital subsume formações sociais distintas e engendra desenvolvimentos desiguais e combinados. /.../ O que importa ressaltar /.../ é que pela via colonial da objetivação do capitalismo, o receptor tem de ser reproduzido sempre enquanto receptor, ou seja, em nível hierárquico inferior da escala global do desenvolvimento. Em outras palavras, pelo estatuto de seu ar-cabouço e pelos imperativos imanentes de sua subordinação, tais formações do capital nunca integralizam a fi gura própria do capital, isto é, são capitais estrutu-ralmente incompletos e incompletáveis ( Chasin, 1989, p. 41).

Como totalidade de relações inter-econômicas, a interação entre capitais, em suas formas subordinadas e subordinantes, exige como espaço de circulação e re-produção do capital global essas modalidades, isto é, a incompletude de umas como pressuposto da completude de outras. Portanto, o capital atrófi co é incompletável

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em função da relação que mantém com o capital subordinante. A incompletude do capital atrófi co é a condição de possibilidade para a reprodução do capital subordi-nante.

Julgamos aqui estar a chave para o entendimento do fi m da via colonial, como modo particular de produção e reprodução do capital no Brasil. Esta se encerrou não em função de sua resolução, mas em função da reconfi guração do padrão de acumulação do capital, ou seja, em função da superação do capital monopolista pelo capital globalizado. Neste sentido, a subordinação brasileira se põe em outro plano: o desaparecimento do capital atrófi co em função da integração desigual. Acabamento que não põe necessariamente a solução das inviabilidades, mas as repõe num nível novo de determinação internacional do capital, a qual se buscará esclarecer a seguir.

Chasin observa, no texto A Sucessão na Crise e a Crise da Esquerda, que uma su-peração da via colonial poderia se dar a partir de uma reorganização do “sistema de produção, [que] sem perseguir a superação do modo de produção, [promoveria] a desestruturação dos aspectos mais gravosos da efetivação do capital atrófi co e de sua (des)ordem societária” (Chasin. 1989, p. 47), confi gurada por ele no que deno-minou de Primeira Transição. Tal ocorreria no contexto de uma alteração essencial de algumas mediações chave da organização do capital no Brasil, que indicaria a virtualidade, não a necessidade fatal, de uma superação, em longo prazo, do sistema do capital enquanto tal. Há que evidenciar, no entanto, que a “via colonial” não foi superada por uma reconfi guração interna, uma vez que não se deu a reorganização da produção, aludida naquela ocasião.

Chasin retoma a questão, na década seguinte, no texto “O Poder do Real”, pu-blicado como verbete relativo ao Brasil, em O Mundo Hoje 95/96, apontando, por ou-tro lado, as perspectivas de integração do país no atual padrão de acumulação capita-lista, caracterizado pela produção e circulação globalizada. Entende a mundialização do capital como processo atravessado e enviesado por desenvolvimentos desiguais, marchas e contramarchas, “uma via geradora, em suma, também de contraditorie-dades sem precedentes, tanto por seus conteúdos, quanto pelo gigantismo de seus efeitos” (Chasin, 1996, p. 102). Atentando que não se trata apenas de uma mudança conjuntural de rumos ou de natureza geopolítica, mas de uma verdadeira metamor-fose sistêmica, em que as relações de subordinação de capitais ganham a forma da interdependência fi nanceira e da mobilidade incessante e incontornável dos capitais em suas diversas formas (mercadorias ou dinheiro em-si), o que reformula o circuito anterior, tornando impossível a manutenção do esquema antecedente, ao menos em sua integralidade e imediatidade:

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O sistema produtivo nacional, desde sempre, encarnou seus perfi s e o teor de suas modernizações subordinado aos empuxos dos pólos hegemônicos mundiais. Não é diverso o que se passa agora, diante da mais radical das revoluções tecnológicas, combinada ao quadro da globalização econômica (idem).

Nesse sentido, o Brasil sempre esteve inserido no quadro de uma economia in-ternacionalizada. “Todavia, dada a qualidade e a envergadura destas e o próprio grau de desenvolvimento material alcançado no país, as margens de manobra nos ajustes e seus efeitos possíveis também se diferenciam, ao mudarem de natureza” (ibidem). É importante ressaltar que Chasin chama a atenção para a mudança de natureza do processo de acumulação e reprodução do capital, a qual determina a mudança de natureza da subordinação brasileira. É, pois, neste sentido que pode se entender o “fi m da via colonial”, dado que,

Para o bem e para o mal, aqui se fecha e fi ca para trás um longo ciclo, cujas ca-racterísticas dominaram a maior parte do cenário brasileiro neste século. Traços que reduzidos ao essencial, conferiram ao país o semblante de uma entifi cação na-cional que pelejava para completar sua formação capitalista, mas que reproduzia sempre, apesar da multiplicação das formas de crescimento e diversifi cação eco-nômicas, a incompletude de seu capital e, por conseqüência, suas peculiares mazelas sociais e políticas. Toda essa problemática perdeu suas âncoras e se transfi gurou, no bojo dos novos parâmetros internacionais do sistema de produção e circulação de mercadorias (Chasin, 1996, p. 104).

De modo que o fi m da via colonial se deu em função do ultrapassamento da lógica do capital que a enformava: “os contornos de uma produção de mercadorias ainda delimitada ou de escala relativamente modesta, cuja circulação era efetivada, em regra, no âmbito bilateral de mercados mais ou menos restritos e cativos, sob a regência das potências centrais” (Chasin, 1996, p. 105). Dado a isso é que o receptor tinha que necessariamente ser reproduzido enquanto tal. Agora, em face da “produ-ção ampliada a grandezas sem limites e o intercâmbio comercial elevado ao primado das trocas infi nitas e superpostas, sem embaraços de fronteira” (idem), as delimitações sistêmicas alteram as exigências do padrão produtivo interno do capital, não mais como potência subordinada diretamente, por meio do fi nanciamento externo de sua reprodução, a um dado capital localizado, pois

crescer passou a supor a capacidade de ocupar nichos na infi nitude da malha de produção atualizada, universo no qual os mercados interno e externo não mais se distinguem: ao capital social global corresponde agora o Mercado Único das trocas levadas ao paroxismo” (ibdem).

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Chasin, por isso, considerava

(...) impensável o Brasil dissociado das novas tecnologias e do mercado globali-zado. Até porque, independentemente de todas as inconsistências peculiares com que as tenha percorrido até aqui, as trilhas do país sempre estiveram imbricadas nos avanços mundiais dos meios de produção e à dinâmica das trocas internacio-nais (Chasin, 1996, p. 104).

Face a isso, julgava que “no caso brasileiro, a transição demandada é antes uma regulagem de caráter jurídico, por certo de largo alcance, do que uma reviravolta na essência das coisas” (Chasin, 1996, p. 104/105), uma vez que o que ocorreu foi uma mudança de natureza na relação do Brasil com a dinâmica internacional. Outrossim, considerava que:

O Brasil, no futuro imediato e palpável, é do grupo restrito de nacionalidades pe-riféricas que maior proveito pode tirar da nova forma de acumulação ampliada do capital. Em verdade, não tem alternativa: ou participa desta civilização ou envereda pela estagnação degenerativa. Pelo seu porte econômico, cultura e modernização tecnológica e a recém-adquirida estabilidade política, tem inserção produtiva asse-gurada nos planos regionais e internacionais, inclusive pela experiência acumulada no comércio exterior. As reforma constitucionais no plano econômico buscam homologia e coerência, em relação à nova lógica do sistema, dos movimentos fi nanceiros e do fl uxo dos investimentos, abrindo espaços às inversões nacionais e estrangeiras na alavancagem do crescimento. Pelo seu potencial, em uma década ou duas, o país poderá estar alçado em alguns graus no quadro dos mais abonados (Chasin, 1996, p. 105).

III

Portanto, a “via colonial” é uma particularidade de objetivação capitalista, relati-va a um determinado padrão de acumulação do capital. É um modo particular de um padrão específi co de universalidade do sistema do capital. Com a superação desse padrão, tem-se a conseqüente revogação do modo particular caracterizado pela via colonial. Com o seu ”fi m”, conforme observa Chasin em um escrito postumamente publicado,

(...) a lógica e as possibilidades do desenvolvimento autônomo capitalista desapa-receram, mesmo como simples modernização subordinada, se restrito à dinâmica no interior das fronteiras nacionais, pois no perímetro destas só resta o latejamen-to de problemas, não mais a dinâmica das soluções. Na globalização as diferenças não desaparecem, é o que dramatiza a transição [de uma economia pré-globaliza-da para uma economia globalizada], mas não a susta. Todavia, a globalização na forma da alienação barra estruturalmente o saber humanista (Chasin, 2001, p.74)

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Alteração de padrão de acumulação que, entretanto, não signifi ca uma cabal transformação social, com a revogação das formas características de ser social do modo capitalista de produzir a vida humana. É uma alteração da natureza do capital, da-quele cujo centro da reprodução global se situava na relação imperialista ou fi nancista entre capitais subordinados e subordinantes, para aquele que se determina como arrimado no movimento multilateral dos capitais particulares, numa rede de interde-pendência crescente. Mas é também, e principalmente, uma mudança de natureza do capital. Ambiente de interdependência que não implica, por outro lado, a afi rmação de uma indeterminação ou de uma equivalência, sequer aparente, entre os capitais que se trocam e circulam mundialmente. A chamada globalização, que outra coisa não é senão o conjunto dos movimentos de constituição do que Marx denominava de Weltmarket, não coloca em pé de igualdade absoluta, senão na mera alçada formal, os entes da troca mundial; as diversas economias e a capacidade reprodutiva no tempo de cada uma delas. Processos econômicos nacionalmente dados e constituídos que são forçados a se adequar a determinados protocolos de universalização da produ-ção capitalista. Protocolos que passam a exigir igualmente certas alterações de monta em mediações específi cas, como a do equacionamento da produção e a da relação desta com o Estado.

Neste sentido, embora se tenha modifi cado a natureza da acumulação capita-lista, embora tenha fi ndado a “via colonial”, terá a burguesia nacional alterado seu padrão de comportamento? Quanto a isso, vale frisar, com Chasin:

A globalização não é uma política, nem a prática política tem força e capacida-de para engendrar a globalização e as forças produtivas que, mais do que tudo, subjazem ao processo, a política não é capaz de engendrar ou de se contrapor à globalização. Por isso a política, na transição para a globalização, ou se torna seu agente inteligente ou brutal, ou se manifesta como agente perturbador de curto fôlego (Chasin, 2001, p. 75).

A globalização aparece como processo inerente à lógica do capital, e não como forma de dominação política, não obstante tenha de engendrar a sua. O que está em marcha como processualidade contraditória de universalização da produção é um estágio complicadíssimo, em parte, inclusive, por sua natureza inicial, de acumulação mundial. Forma de produzir e acumular global que não se contrapõe ao capital, mui-to embora adensem ao mesmo novas modalidades de contradição de monta:

A globalização como efeito da acumulação de capital principiou com a forma-ção dos estados nacionais a partir das cidades-estado. Do Renascimento aos dias atuais tivemos, então, estados nacionais, colonização, imperialismo, e agora a ex-pansão alcança a circunscrição de todo o espaço planetário. Quem estiver ou fi car fora, deixa de existir, pois tenderá a regredir e degenerar (Idem).

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A tematização chasianiana em torno da globalização do capital, não obstante tenha levantado em seus aspectos gerais uma série de elementos e determinações centrais, permaneceu incompleta, até por conta da fatalidade da morte extremamente preco-ce de seu autor. O que demanda, da parte de quem deseja alcançar um olhar lúcido sobre as prospectivas humanas, uma compreensão objetiva da nova confi guração do real, principalmente levando-se em conta os atuais desdobramentos em curso – a primeira grande crise do mercado mundial. E isso tanto mais urgente quando se ob-serva como “solução” apresentada, seja pelos sicofantas de sempre do capital, seja pe-los que ainda se arrogam “de esquerda”, nada mais nada menos que a administração político-moral do ambiente que gera, e não tem como não engendrar, crises e mais crises... Posição essa que pressupõe uma oposição abstrata entre capitais especulativos e capitais produtivos, como se os primeiros não pressupusessem os segundos e estes últimos nada mais fossem que a forma fi nal da produção capitalista, ou seja, a meta dos capitais individuais invertidos na extração de mais-valor; a transformação fi nal de capital-valor na mercadoria em capital como tal.

Referências Bibliográfi cas:

Chasin, J. O integralismo de Plínio Salgado: forma de regressividade no capitalismo hiper-tardio, Belo Horizonte: UNA Editora/Estudos e Edições Ad Hominem, 1999.

_______. A Miséria Brasileira: 1964-1994 – do golpe militar à crise social, São Paulo: Estudos e Edições Ad Ho-minem, 2000.

_______. O poder do real, in O Mundo Hoje 95/96, São Paulo: Editora Ensaio, 1995.

_______. Rota e prospectiva de um projeto marxista, in Ensaios Ad Hominem, número 1, tomo III, São Paulo: Estudos e Edições Ad Hominem, 2001.

_______. A Sucessão na Crise e a Crise da Esquerda, in Ensaio 17/18, São Paulo: Editora Ensaio, 1989.

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educação e ciências humanasEspaço de interlocução em ciências humanas

Ano V, novembro de 2008 – Publicação semestral – ISSN 1981-061X

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J. Chasin: a crítica ontológica do anticapitalismo romântico típico da "via colonial". Os integralismos.*1

Antonio Rago Filho**2

* Publicado originalmente com o título “A crítica ontológica à oposição romântica da ‘miséria brasileira’: os in-tegralismos de Plínio Salgado, Gustavo Barroso e Miguel Reale”, Posfácio à segunda edição da obra de Chasin, O integralismo de Plínio Salgado. São Paulo/Belo Horizonte, Ad Hominem/Ed. Una, 1999.** Prof. Dr. do Colegiado de Ciências Sociais do Centro Universitário Fundação Santo André e Programa de Estudos Pós-graduados em História e Departamento de História da Faculdade de Ciências Sociais da PUC-SP.

Resumo: A historiografi a convencional, descartando as especifi cidades sociais do solo histórico, identifi ca o integralismo ao fascismo por meio do recurso mimético, fenômeno à mercê dos infl uxos externos. A ideologia integralista se confi gura como uma utopia reacionária que intenta frear o desenvolvimento da industrialização e das forças produtivas materiais, haja vista que a progressividade do capital industrial in limine levaria ao comunismo, ao materialismo e ao fi m da religião. Um dos primevos partidos de massa, a Ação Integralista Brasileira (1932-1937) constituiu-se numa frente de direitas, com Plínio Salgado à testa, que ambicionava a instauração de um estado integral forte por meio de uma revolução espiritual ancorada na doutrina social da Igreja. José Chasin efetiva uma verdadeira revolução historiográfi ca, afi rmando que, ao revés de ser homólogo do fascismo, o inte-gralismo é uma utopia reacionária, forma particular de anticapitalismo romântico da via colonial de objetivação do capital no Brasil.

Palavras-chave: Integralismo; Utopia Recionária; Revolução Espiritual; Anticapitalismo Romântico; Capitalismo hiper-tardio.

J. Chasin: the ontological critique to the romantic anti-capitalism typical of the “colonial via”. Th e integralisms.

Abstract: The conventional historiography, discarding the social particularities of the historical ground, identifi es the integralism with the fascism through the mimetic resource, a phenomenon at the mercy of external infl uences. The integralist ideology takes shape as a reactionary utopy that tends to restrain the development of indus-trialization and the material productive forces, considering that the progressivity of the industrial capital “in limine” would lead to the communism, the materialism and the end of religion. The Brazilian Integralist Action (1932-1937), one of the initial mass parties, was constitutued as a front of rightists, with Plinio Salgado at the head, and aspired to the institution of a strong, integral state, by means of a spiritual revolution anchored in the social doctrine of the Church. José Chasin accomplished an actual historiographic revolution stating that instead of being homologous to the fascism, the integralism is rather a reactionary utopia, a peculiar form of romantic anticapitalism of the colonial via, objectifying the capital in Brazil.specifi c historical conditions. That does not imply the proposition of a “Brazilian capital” but a link between the general and individual aspects required for the development of the capital in Brazilian society. Moreover, the paper is intended to explore the implications and prospects of the Colonial way exhaustion or at least how this form of being capital was over-came by the changes in recent world history.

Key words: Integralism; reactionary utopia; spiritual revolution; romantic anti-capitalism; hyper-late capitalism.

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Antoni o R ag o Fil h o

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Compreender consiste em captar a lógica específi -ca do objeto específi co.

Karl Marx

Quem, diante de um mundo assombrado e atemorizado pela ascensão dos mo-vimentos fascistas, não se colocaria, de um pólo oposto, no combate efetivo contra o corporativismo embutido na proposta do integralismo e na instauração do estado integral? Quem, diante de uma frente de direita comandada por líderes, cujos gestos e rituais se aproximariam às milícias de seus aparentados europeus, alardeando a tomada do poder contra os democratas liberais, os socialistas e os comunistas, não se lançaria contra os “galinhas verdes” no Brasil?

Diante desse legado e dessas evidências empíricas, a crítica acadêmica do in-tegralismo jamais se questionou acerca da possibilidade real desta identifi cação. É possível que – mesmo se reconhecendo a distância entre o desenvolvimento histó-rico da Alemanha e Itália e o do Brasil – em contextos históricos distintos possam brotar fenômenos ideológicos idênticos? Segundo a analítica convencional, a resposta é indiscutível: o integralismo é uma cópia brasileira do fascismo europeu.

Qual é a arma teórica, política e pessoal capaz de ultrapassar as exterioridades e as formas fenomênicas do integralismo, reconhecida a sua validade como objeto, a fi m de alcançar a sua verdadeira natureza histórica? Somente com a alta competên-cia e rigor – aliada à dignidade de caráter, à “condição subjetiva de isenção científi -ca”, balizada pela arma do estatuto ontológico de Marx, que se orienta pelo empenho à objetividade – foi possível o discernimento da especifi cidade histórica do discurso integralista e o desmonte da cristalização de uma identifi cação do senso comum transformada em verdade científi ca. A obra monumental de José Chasin (1937-98) intitulada O integralismo de Plínio Salgado: forma de regressividade no capitalismo híper-tardio pode ser considerada, no campo das humanidades, uma verdadeira re-volução científi ca na esfera da crítica ontológica da ideologia e na captura da particularidade histórica da objetivação capitalista no Brasil.

Grosso modo, a historiografi a do integralismo passa então – após o terremoto cha-siniano – a ser polarizada por duas vertentes, radicalmente contrapostas, uma de natureza culturalista e outra ontológica; a que considera o discurso integralista “fora de lugar” e, posta numa formulação sintética, não encontrando as mesmas condições históricas: “Copia-se (sic!) os módulos políticos e culturais da Europa, mas vocifera-se ao mesmo tempo contra o mimetismo – eis a contradição que atormentou os

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J. Chasin: a crítica ontológica do anticapitalismo romântico típico da "via colonial". Os integralismos.

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integralistas” (VASCONCELLOS, 1979, p. 193). E, do primado ontológico, a cap-tura da particularidade concreta feita por Chasin, que considera a diversidade entre os fundantes das objetivações ideológicas em causa. Nesse sentido,

Ostensivamente, e até mesmo de forma acusada por adeptos do fascismo, as bases fundantes do integralismo e do fascismo são distintas e perfeitamente discerní-veis, repercutindo isto no nível do conjunto dos dois ideários, e de forma decisiva. Diríamos melhor, que necessidades de objetivação social diferentes, em condições diversas, levaram a refl exões de naturezas distintas, determinando ideologias que de modo algum podem ser confundidas. De fato, entre ter, como suposto último, uma concepção que se identifi ca com o catolicismo tradicional ou o racismo biológico, vai uma grande distância (CHASIN, 1978, p. 650).

Ao contrário das teses consagradas que apontam a identidade fascista do integra-lismo pela via do mimetismo ideológico – a assimilação do fascismo dar-se-ia no terreno da idealidade ao copiar-se o “modelo europeu” –, Chasin faz ver que, precisamente, pela particularidade da objetivação capitalista num caso e noutro, o fascismo e o in-tegralismo, reconhecidos como realidades históricas distintas no universo do capital, conformaram, concretamente, fenômenos diferentes que não podem ser reduzidos a uma mesma confi guração histórica. Daí, a tese central desta obra: “Ontológica e teleologicamente, fascismo e integralismo se põem como objetivações distintas”.

Revelando sua enorme sensibilidade, pois se coloca como um não-especialista do tema, Antonio Candido aponta suas concordâncias e dissonâncias em relação à obra chasiniana; permanecendo ainda no terreno da generalidade abstrata, detecta as possíveis similitudes entre os dois fenômenos históricos:

Por exemplo: o fato do fascismo e integralismo serem formas de falso anticapi-talismo, mas na verdade funcionarem como defesa deste, seja ele pleno, “tardio” ou “híper-tardio”. O fato de ambos insistirem nos direitos dos operários e na ini-qüidade da burguesia mas, ao mesmo tempo, preconizarem todas as medidas ne-cessárias para o domínio desta e oferecerem àqueles uma espécie de miragem de aburguesamento. Com efeito, assim como os nazistas e fascistas, os integralistas pregavam a substituição da luta de classes pela ascensão dos melhores, para renovar as camadas dirigentes gastas e continuar estrutural e funcionalmente o seu papel na sociedade. (CANDIDO, 1978, p. 17)

Mesmo não descartando a identidade fascista atribuída ao integralismo, e já media-tizando sua maneira de interpretar esse movimento político por parâmetros postos pela tese chasiniana, o crítico Antonio Candido inferiu:

Estejamos ou não de acordo com a premissa de Chasin (o integralismo não é um fascismo), o fato é que não será mais possível ver o fenômeno integralista com os mesmos olhos, porque ele realizou um dos feitos mais difíceis para um estudio-so: alterar as noções dominantes e transformar em problema o que era considerado

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como fato estabelecido. Se pessoalmente não aceito a sua premissa, sinto que não poderei mais falar do assunto sem passar por ela e sem que ela me leve a matizar o meu ponto de vista. (CANDIDO, 1978, p. 20)

Nada mais justo, todavia, nada mais próximo da verdade histórica do que esta autêntica apreciação de “alterar as noções dominantes”, as quais simplesmente anu-laram as especifi cidades históricas, tornando-as indistintas, porque, de fato, a crítica chasiniana do fenômeno integralista alça a um verdadeiro divisor de águas, que nos obriga a repensá-lo em sua integridade ontológica. De outra parte, Antonio Candido reclamará um certo exagero em suas demonstrações, uma “certa prolixidade” em suas minúcias; porém, o intento chasiniano, próprio à sua obsessão, era o de não dei-xar escapar nenhuma determinidade que pudesse gerar alguma dúvida, que abrisse alguma brecha para o debate desqualifi cador. Daí, a força probante da tese chasiniana, levada à saturação. O combate deveria ser travado no domínio da objetividade his-tórica.

Certamente, Chasin se propunha a reestruturar este trabalho, não só no sentido de torná-lo mais enxuto, porém, mais diretamente, no que tange à parte teórico-metodológica, ainda tributária de certas imprecisões das refl exões lukacsianas, que mais tarde seriam criticadas, especialmente no capítulo “Da teoria das abstrações à crítica de Lukács” de sua obra Marx - estatuto ontológico e resolução metodológica (1995) e ao descortino pleno do estatuto ontológico imanente ao pensamento marxiano; todavia, jamais no sentido de alterar ou desmentir sua descoberta básica: o integralismo não é o fascismo brasileiro. É bom que se grife: nesta obra, todos os conteúdos estão submetidos ao diapasão ontológico, nessa medida, Chasin não renuncia por um só momento às abstrações razoáveis próprias à captura da objetividade histórica, do con-creto enquanto concreto pensado.

Se a tese punha de modo cabal a importância da crítica ontológica da ideologia – para o desvelamento dos produtos espirituais e da particularidade histórica da objetiva-ção capitalista em nosso país, da natureza de suas classes sociais, da variedade das formas de nacionalismo e da especifi cidade da oposição romântica à miséria brasileira –, a recepção da tese à esquerda, no entanto, foi um rotundo fracasso. A tática da guerra de silêncio se constitui desde aí. Na medida em que Chasin renovava com um autên-tico e rigoroso procedimento científi co, alargando as possibilidades da crítica das ideologias, trabalhando com profundidade a própria realidade nacional, por meio do desvendamento do tecido teórico de Marx e com as contribuições de Lukács sobre as determinações da via prussiana e de seu complexo cultural, particularmente, desdo-bradas na obra A destruição da razão –, a esquerda torcia o nariz julgando até mesmo desnecessário o esforço despendido, enquanto a academia desdenhava a validade de estudo científi co de objetos “menores”.

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Mesmo um autor do porte de Florestan Fernandes foi categórico na rejeição de tal empreitada. “O que me põe de quarentena é o assunto.” Comenta ao prefaciar a obra Ideologia Curupira (1979) de G. Vasconcellos: “Hoje está na moda dizer-se que se deve estudar o integralismo. Não compartilho dessa opinião. Nem mesmo devemos nos preocupar com destruí-lo. /.../ O que nos coube, na ‘virada fascista’ da história recente, merece mais a novela picaresca que a investigação sociológica séria” (FER-NANDES, 1979, p. 13). Todavia, a sua argumentação se insere na mesma lógica da análise convencional, uma vez que, segundo Fernandes, os integralistas teriam forjado uma consciência social, com a aparência de autonomia ao capital estrangeiro, mas que, na verdade, buscavam “fi xar a consciência burguesa” em nosso país. “Eles se adaptaram a um fascismo destituído de visibilidade fascista”, portanto, se apresen-tam como engodo deliberado.

Chasin advertia em sua epígrafe que os integralistas deveriam ser combatidos por aquilo que foram objetivamente em sua efetividade histórica. Ora, o que tem sido o “combate” da esquerda a não ser empunhar de forma oportunista a arma das inversões rústicas da vulgata marxista? Corajosamente, Chasin enfatizava: “há que sentenciá-los por aquilo que são, não por aquilo que seus válidos inimigos entende-ram, ou puderam entender, que fossem. E isto, acima de tudo, para o nosso próprio bem”. O que causa estranheza é essa posição que justifi ca a identifi cação do integra-lismo como uma forma de fascismo – daí, mais ainda, a necessidade imperiosa de sua crítica até a raiz -, ao mesmo tempo em que o relega a uma manifestação grotesca típica das fi guras risíveis do romance picaresco, de uma “utopia narcisista” ou mes-mo do “janismo populista”. Numa outra posição, próxima à do tipo obscurantista “Não li e não gostei”, de um renomado editorialista, ofendido por ter travado um combate idealizado, foi a resposta do principal responsável pela difusão nos meios acadêmicos da tese que anula as especifi cidades históricas, que tornam integralismo e fascismo irmãos gêmeos.

Em seu ensaio “Integralismo: teoria e práxis política nos anos 30”, Helgio Trindade tentou a desqualifi cação da obra chasiniana apontando para o fato de que esta seria teoricamente monolítica (modo de imputar arbitrariamente a um marxista como estreito e dogmático), uma vez que centrada apenas nos discursos plinianos, tendo se descuidado de tratar os “mais fascistas”, tais como o Secretário Nacional de Doutrina, Miguel Reale (e, poderíamos dizer, na mesma linha de argumentação, o “mais nazista”, por causa do seu propalado anti-semitismo, Gustavo Barroso, o Chefe Nacional da Milícia. O fato de Chasin se centrar no principal formulador do integralismo, ter mostrado a linha de continuidade de seu pensamento – dado que a constituição de sua ideologia já estava delineada bem antes da existência da Ação

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Integralista Brasileira (AIB), presente na estrutura interna de O estrangeiro, o conhe-cido romance de 1926 e ter destacado a coerência ideológica de Plínio Salgado para além da extinção do movimento ocorrida em 1937 –, é visto como uma arte retó-rica e manipulatória de Chasin. Trindade chega ao desplante de afi rmar que Chasin desconhece a chicana de Salgado, que se valeria de adulterações de seus próprios textos e manifestos. Porque, conclui, “o chefe integralista, no afã de escamotear a linguagem fascista do seu discurso ideológico (menos enfático deve-se reconhecer do que transparece nas obras de Miguel Reale), provocou deliberadamente adulte-rações nos textos originais dos documentos ofi ciais transcorridos” (TRINDADE, 1981, p. 311). Acusando Chasin de não ter apoio documental sufi ciente para sua tese, Trindade reafi rma o recurso ao mimetismo ideológico como sendo a determinante fundamental da existência do fascismo no solo brasileiro, em suma, o integralismo nasce pela força do discurso fascista. Não é a existência social que determina a cons-ciência, mas a formação ideal que gera a vida.

Certamente, quem, por infelicidade, não tiver acesso ao livro de Chasin, mas a esta dissimulada e deformada denúncia, fi cará totalmente com a impressão de que este possuía um modelo apriorístico, e que, forçando a barra, o “aplicou” de modo impróprio ao objeto posto em exame. Em defesa de sua tese, Chasin teria aderido a um dogma. O procedimento chasiniano, no entanto, segue o caminho exatamente oposto às conceituações e conclusões de Trindade. Há que ler com atenção a orien-tação ontológica dada por Marx aos populistas russos e pressuposto ineliminável da obra chasiniana, que rege todos os seus passos:

Assim, pois, eventos notavelmente análogos que, porém, ocorrem em meios his-tóricos diferentes conduzem a resultados totalmente distintos. Estudando em se-parado cada uma dessas formas de evolução e comparando-as depois, pode-se encontrar facilmente a chave deste fenômeno. Nunca porém se chegará a isto me-diante o passaporte universal de uma teoria histórico-fi losófi ca geral cuja suprema virtude consiste em ser supra-histórica. (MARX apud CHASIN, 1978, p. 29).

Em seu livro Integralismo: o fascismo brasileiro na década de 30, Trindade precisa-mente opera com construtos subjetivos – típicos do viés psico-comportamental – que subsumem amplo material empírico coletado por meio de depoimentos, a fi m de encaixar as opiniões e posições dos integralistas como produtos de dissimulação tática. O paradoxo entre as declarações integralistas de que eram diferentes e superiores à concepção fascista e a imputação de “fascistas” por seus adversários será resol-vida da forma a mais bisonha, pois, segundo a analítica convencional, os integralistas passaram o tempo todo dissimulando a sua verdadeira face: cópias emprestadas ao fascismo. Quando eles se proclamam como originais e autônomos com respeito às formulações estrangeiras, a analítica convencional vê um engodo deliberado, um ato

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em permanente estado de mistifi cação, sem jamais se questionar acerca da validade ontológica de tal recurso gnosiológico.

O que deveria ser posto como um problema a ser investigado, por uma abstração irrazoável, torna-se uma arbitrariedade. Nada mais evidente do que a rejeição ao em-penho à objetividade, ao respeito à lógica imanente do objeto histórico, uma vez que Trindade é explícito quando diz sem titubear que “O fenômeno fascista /.../ teria podido se desenvolver no Brasil, nesta época, com um discurso ideológico e uma organização nacionais. A realidade, porém, foi outra. /.../ A análise da Ação Integralista nos leva a concluir que sua natureza, organização hierárquica, estilo do chefe e ritu-ais não se podem explicar sem levar em consideração a infl uência do modelo de referência externo.” (TRINDADE, 1974,l p. 289).

Como se pode notar, o autor é obrigado a se esforçar ao máximo para fun-damentar o seu ponto de partida, o empréstimo ideológico condiciona a vida, a referência ao modelo externo é a determinante, própria ao viés culturalista de sua construção, acabam por compor o objeto da investigação. Como demonstrar, po-rém, que, em meios históricos diferentes, em realidades econômicas historicamente desiguais, com categorias sociais diferentes, brote uma mesma ideologia por um proces-so de cópia, por infl uxos externos que condicionam o comportamento ideológico? A sua resposta, diretamente dirigida a Chasin, tropeça mais uma vez em seus limites idealistas e especulativos:

Não seria o caso de questionar se a viabilidade de um mimetismo ideológico não su-poria que as idéias estivessem ‘fora de lugar’, e que o objeto de explicação deveria, justamente, em se tratando de sociedades econômica e socialmente diferentes, como estas idéias conseguem ser importadas e reelaboradas não só pelas elites intelectuais, mas também como penetram em segmentos mais amplos da socieda-de? (TRINDADE, 1981, p. 313)

Com esta resposta à pergunta chasiniana, o autor ainda permanece na mesma tecla, adicionando que a cópia não é igual ao original. É o movimento em torno do mesmo círculo.

Dentre as ambigüidades do culturalismo, vamos encontrar a afi rmação de que o equívoco da maioria dos críticos do integralismo está em que parte de uma posição apriorística, confi gurando a realidade por meio de idéias preconcebidas, tais como as de “vazio, atraso, tardio, desigual, imaturo, importado”, relevando com isso o indeter-minado do movimento histórico: “Assim em lugar de assumirmos a indeterminação inicial pela qual haverá processo, supomos que no ponto de partida do caminho histórico e do trabalho teórico tudo já está determinado, restando-nos apenas a tare-fa de articular os dados esparsos para recuperar o caráter plenamente determinado da situação” (CHAUÍ, 1978, p. 29). Em sua primeira posição face ao fenômeno do

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integralismo, Chauí se mantém presa às formulações da analítica convencional, esfor-çando-se em demonstrar: “Que essa importação é determinada pelo ritmo interna-mente necessário do capitalismo brasileiro para ajustar-se ao compasso da música internacional, é coisa de que não duvidamos” (CHAUÍ, 1978, p. 35), sem colocar que permanece no mesmo terreno problemático do formalismo dos intérpretes. Não se põe em discussão, desse modo, se a doutrina integralista é produto ou não de um mimetismo ideológico, mas que “no caso específi co do pensamento autoritário, a importação de idéias possui um sentido peculiar” (CHAUÍ, 1978, p. 36) Assim, Chauí busca justifi car o empréstimo de idéias produzidas em solo europeu, na deter-minante do “autoritarismo”, porque aqui sua forma vazia foi devidamente preenchida por “conteúdos locais”. O engodo deliberado ocorre na medida em que “O pensar autoritário tem a peculiaridade de precisar recorrer a certezas decretadas antes do pensamento e fora dele para que possa entrar em atividade” (CHAUÍ, 1978, p. 37).

A engenhosidade epistemológica monta agora seu fundamento no quadro da “cultura autoritária”, que permite enquadrar e interpretar qualquer fenômeno políti-co desta época. Desvendar as razões que permitem à ideologia comandar as opera-ções de ocultamento e dissimulação. Tal como no caso do conceito de totalitarismo, este construto subjetivo não nasce desprovido de determinação social, uma vez que, como especifi ca a crítica ontológica, “a noção de totalitarismo nada mais refl ete que o liberalismo com sinal trocado” (Chasin, 1978, p. 49). Referindo-se ao vigor da crítica chasiniana, que denuncia a improcedência da equalização entre fenômenos históricos distintos, Antonio Candido observa que

O seu principal ponto de apoio teórico talvez seja a discussão sobre o conceito de totalitarismo, que funcionaria, para os que os identifi cam, como denominador comum de ambos os movimentos. Mas é claro que a sua veemente discussão mira mais longe; visa ao próprio conceito, que serve à crítica liberal para operar a assimilação mais grave entre fascismo e comunismo, na medida em que ambos seriam afastamentos de um modelo ideal, supra-sumo da fi losofi a e da organiza-ção política – o do liberalismo (CANDIDO, 1978, pp. 13-4)

Este obnubilamento criado pela conceituação liberal se serve de universais abstra-tos para tentar descrever o real e, com isso, tal conceituação fi ca impossibilitada – d exatamente pela determinação social de sua perspectiva – de apropriar-se dos univer-sais concretos por meio das mediações e determinações concretas. Este procedimento formalista, de natureza politicista, além de tornar equivalentes fenômenos históricos, por mais distintos que possam ser, acaba por reduzir a história a uma construção eventista. Assim sendo, ao contrapor a todo monopólio de poder, a todo estado totalitário, os valores do estado liberal, a análise convencional oculta a questão da própria hegemonia de classe, operando-se, assim, a eternização do estado e da dominação de classe.

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Confundindo manifestações históricas concretas, e reduzindo-as à sua expressão política, o conceito de totalitarismo opera simplesmente uma sorte de tautologia ao “determinar” o fascismo, o nacionalismo e tantos outros eventos que ele se permite englobar e que de algum modo contrariam o perfi l liberal. /.../ Com isto não estamos querendo confundir ou dissolver as distintas formas de hegemonia; pelo contrário, queremos ressaltá-las, afi rmando que ela, a hegemonia, sempre está presente ao fenômeno do poder, ao contrário do que a análise liberal pressu-põe (CHASIN, 1978, pp. 53-4).

Submersa ao conceito de autoritarismo, de corte liberal, a ideologia integra-lista, segundo a versão de Chauí, como todo “pensar autoritário”, reduz-se a uma “região das conseqüências sem premissas, (que) precisa localizar em algum ponto externo, anterior e fi xo um conjunto de afi rmações protocolares graças às quais entra a pensar” (CHAUÍ, 1978, p. 38) O passo subseqüente desse ato especulativo, que se transforma em seu novo ponto de partida, está em assinalar que a peculia-ridade desse pensamento é “o de operar com imagens em lugar de trabalhar com conceitos” (CHAUÍ, 1978, p. 40) O que faculta a operação da ideologia autoritária, transformando os integralistas em peritos na arte de manipular, em produzir ima-gens, algumas por meio de “livre associação” sem nenhum espelhamento com o real. Como se vê, Chauí – que transita num ecletismo sofi sticado, que começa com Marx e acaba nas refl exões de Lefort –, age como se estivesse num mesmo campo teórico. Com isso, jamais poderá responder acerca da determinação social do pensamento integralista. Qual é a posição e o sentido da utopia reacionária ou do paraíso rural no integralismo de Plínio Salgado? Em seu empreendimento intelectual não poderemos encontrar essa resposta.

Ainda mais porque estamos diante de uma analítica que, elidindo a objetividade da produção histórica de uma subjetividade determinada, propõe-se a “não tomar como critério a adequação ou inadequação entre o texto e o real, mas a represen-tação do real veiculada pelo texto e, então, interpretar as diferenças e os confl itos entre os documentos segundo as representações que oferecem do social, do político e da história e, conseqüentemente, segundo os destinatários que elegem” (CHAUÍ, 1978, p. 34).

Esta postura dará margem para imputações as mais diversas aos comportamen-tos dos integralistas – como se eles fossem governados pelo poder de manipular de acordo com o destinatário a que se dirigem –, promovendo uma autêntica auto-nomização do pensamento em relação ao sujeito histórico que o produziu. Mesmo Salgado sendo católico assumido, tecer a sua concepção com a doutrina social da Igreja Católica, ter escrito a Vida de Jesus, Chauí acredita estar revelando um segredo taticista: “Sem dúvida, um texto como o Sofrimento universal, ciclo de conferências de

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Salgado para os católicos portugueses, é prova de que o catolicismo é um elemento tático e ideológico de grande envergadura, porém, é preciso não ignorarmos a natureza do público a que era destinado: salazaristas convictos” (CHAUÍ, 1978, pp. 76-7).

Chauí, que identifi ca ideologia com representação imaginária, passa por cima da pertinência da afi rmação marxiana, acerca da natureza ontológica da consciência social: “Se a expressão consciente das relações reais dos indivíduos é ilusória, se em suas representações põem a realidade de cabeça para baixo, isto é conseqüência de seu modo de atividade material limitado e das suas relações sociais limitadas que daí resultaram”. Comentando esta problemática, Chasin esclarece que

Vincadas à sociabilidade, dela nascendo, as formas do pensamento “são a expres-são consciente – real ou ilusória – de relações e atividades efetivas”. Em outras palavras, verdadeiras ou falsas, as representações dos indivíduos, os únicos dota-dos de capacidade espiritual, brotam sempre do terreno comum do intercâmbio social. Correta ou fantasiosa, efetiva reprodução ideal de um objeto, ou rombudo borrão mental, as ideações não são auto-engendradas, variando de um pólo a outro em função do potencial societário em que se manifestam. (CHASIN, 1995, p. 406).

A chave está na especifi cação da natureza do ser social que se estrutura no “sujeito decifrado como atividade sensível, do qual o espírito é inerência reiterada na própria confi rmação objetiva daquele. O que há, então, de escandaloso em constatar que tal como os indivíduos manifestam sua vida, assim eles pensam? A extravagância não está, exatamente, em sustentar o oposto?” (CHASIN, 1995, p. 408)

Como não encontramos as premissas efetivas nos textos do “imaginário inte-gralista”, com sua liberdade de associar imagens, visto que os textos integralistas são “textos onde as conclusões se sucedem com total ausência de premissas” (CHAUÍ, 1978, p. 34), trata-se de encontrar o destinatário representado para o qual devem con-vergir os interesses das classes dominantes e, conseqüentemente, as suas manipula-ções. Esta será, inclusive, considerada a causa do fracasso da corrente integralista, a saber, a ideologia integralista peca por estar direcionada às “classes médias”, pois o sucesso do getulismo foi o de dirigir-se aos operários. Não é exagero dizer que toda a sua análise está ancorada nessa concepção de ideologia como arte de ocultar e mis-tifi car, que em seu movimento apresenta “ofertas” e “promessas” às necessidades mais “sensíveis” do destinatário.

Se o integralismo se vale de uma “história imaginária”, uma fi cção típica do “pensar autoritário”, tal como é supostamente construída por seus ideólogos, sem nexo com a realidade histórica, trata-se, então, de apontar – mais uma vez pelo viés politicista – se o determinante externo ainda convém à análise do fenômeno integralista. O recurso ao mimetismo ideológico torna-se, assim, descartável:

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Nessa medida, torna-se de menor importância saber se houve importação dos fascismos europeus, pois o que interessa compreender é que, importando ou não idéias que não poderiam espelhar a situação brasileira, as formulações integralistas exprimiram, na forma da construção pura, a verdade do nacionalismo como polí-tica autoritária, mesmo quando os militantes aderiam à AIB pelo medo ao comu-nismo ou pelo antiliberalismo, na esperança de ver realizados ideais que, de outra maneira, permaneceriam como simples desiderata (CHAUÍ, 1978, pp. 116-7).

A grande novidade da análise de Chauí, segundo suas próprias palavras – ao contrário do “lugar-comum da historiografi a brasileira, isto é, a afi rmação do atre-lamento da classe-média à classe dominante”, que supõe o fato de seus dirigentes e militantes terem se transformado em massa de manobra de Vargas –, é que “sob a bandeira do combate ao comunismo, a classe média desse período serve de ponta-de-lança para a repressão exercida contra o proletariado”. Getulismo e integralismo se articulam, então, com a fi nalidade de barrar o movimento operário, nesse sentido, “Não se trata sequer da suposta convergência político-ideológica entre integralistas e o golpe de 37, nem se trata do suposto fascismo de uns e de outros, mas, sim de que, por motivos diferentes, o autoritarismo e a ditadura surgem para dominantes e classe média integralista como freio indispensável quando se tem em mira a paralisia operária” (CHAUÍ, 1978, p. 108).

Chauí aos poucos vai se livrando da importação das idéias fascistas e, portanto, do preenchimento integralista das formas vazias emprestadas do mundo europeu fascistizado, para garantir que, em certo sentido, o integralismo, em vez de ser um mimetismo, estaria mais próximo de um “populismo janista” (Weffort), um estilo de política “oposto ao paternalismo e ao clientelismo do líder, em nome da moralidade, da autoridade e da burocratização estatal, pelos quais o chefe deve ser responsável” (CHAUÍ, 1978, pp. 111-2) Completando, por fi m, que

O Integralismo pode ser tido como fenômeno político-ideológico local, prenún-cio de um populismo falhado, diverso do de Vargas, e que não se ocuparia com o “povo operário”, mas como o “povo-classe média”. Sob este prisma é possível supor que o fracasso da AIB tenha algo a ver com o sucesso de Vargas, não porque este teria estado mais à altura da “grande política”, mas sim porque não permaneceu cego à prática operária, enquanto o movimento do Sigma, estabelecendo uma cisão entre o “monstro comunista” e o “mísero obreiro”, aprisionou-se nas imagens pequeno-burguesas do social e do político, permanecendo apenas à altura do destinatário de seu discurso (CHAUÍ, 1978, p. 112) No campo da análise convencional, outros intérpretes tentaram explicar a ideologia integralista como estruturada no mi-metismo dos fascismos europeus, fora do lugar, e cujo comportamento é dita-do pela tática do engodo deliberado. Seguindo o viés culturalista de Trindade,

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Gilberto Vasconcellos abre sua obra A ideologia curupira com o alvo pretendi-do: “A busca da especifi cidade do integralismo enquanto discurso fascista que se insere numa sociedade capitalista periférica”. Nesse sentido, tenta buscar e precisar a “especifi cidade” da cópia do fascismo europeu: “embora de ponta a ponta mimético, o discurso integralista ostenta um traço que o diferencia de seus congêneres europeus, e cuja razão de ser nasce da resposta equivocada (mas sociologicamente compreensível) à heteronomia de país periférico, a saber: a fantasmagoria de uma utopia autonomística em relação às nações capitalistas hegemônicas”. Pois, como deseja o autor, tendo como base os resultados da analítica paulista: “o pano de fundo: mostrar que o contexto da dependência, no qual se moviam os camisas-verdes, acabou por afetar (independentemente de sua consciência) a apropriação dos fascismos europeus” (VASCONCELLOS, 1979, p. 17).

Vasconcellos tenta provar que aqui não ocorre uma relação orgânica entre ide-ologia e estrutura social tal como se verifi ca em países capitalistas dominantes, pois estes não sofrem da “heteronomia estrutural da dependência” do imperialismo, pro-porcionando, desta forma, aos países periféricos uma espécie de “indeterminação social” do pensamento, caindo assim no campo das ideologias “de segundo grau”. Com isso, tenta consubstanciar “as idéias fora do lugar” do movimento integralista, pois, “Em outros termos, é justamente através da ausência de organicidade entre superestrutura ideológica e a base material da sociedade que se realiza o modo par-ticular de as idéias se produzirem socialmente na periferia”. Concluindo que, no discurso do “fascismo caboclo”, “transparece o timbre característico da vida ideo-lógica na periferia: o funcionamento dessa não se auto-impulsiona em conexão com a estrutura social que lhe corresponde, permanece mais à mercê dos infl uxos externos. Em suma, ele se enquadra perfeitamente naquilo que Schwarz denomina ideologia de ‘segundo grau’, ou seja, ideologias que ‘não descrevem falsamente a realidade, e não gravitam segundo uma lei que lhes seja própria! Um discurso fora do lugar, a expressão que aqui se justifi ca” (VASCONCELLOS, 1979, p. 190).

Mas como Vasconcellos se propôs à compreensão da “especifi cidade” das for-mas do “irracionalismo fascista”, as determinações essenciais próprias à via colonial de objetivação capitalista são descartadas, ainda que o autor se esforce em apontar que os confl itos sociais não se encontravam sob o mesmo plano de radicalidade que no capitalismo avançado. Por isso, reconhece que,

Tendo em mira o contexto brasileiro dos anos 30, a emergência de um irraciona-lismo fascista do tipo camisa-verde não corresponde a um resultado da evolução

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social. Noutras palavras, se o discurso integralista segue os parâmetros das doutri-nas fascistas européias, concluindo que há no Brasil um nítido descompasso entre ele e a estrutura social. Falta a base social fundamental que acompanha a reação fascista e que faz desta um discurso eminentemente contraconceitual (oposição ao liberalismo e ao marxismo), a saber: organização política da classe operária. A perspectiva de uma revolução proletária era uma quimera dos anos 30; e nem mesmo havia o “desafi o do bolchevismo” (E. Nolte), pré-requisito essencial dos movimentos fascistas. (VASCONCELLOS, 1979, p. 182).

Comparando as formas históricas distintas, o capitalismo tardio com o capi-talismo subordinado brasileiro, Vasconcellos aponta que os “fascistas caboclos” não encontraram uma classe operária altamente organizada disputando o poder; as clas-ses médias não se sentiam ameaçadas com a destruição da ordem que as “educam” para o fascismo; aqui, o liberalismo não se põe como um inimigo político, tal qual no mundo europeu. Assim, com a varinha mágica na mão, é possível afi rmar que, como há correspondência, no mundo europeu, entre grande capital e fascismo (obviamen-te esta única generalização é abstrata), no caso brasileiro, como “as idéias estão fora do lugar” não encontram sua determinação social (a sua burguesia monopolista impe-rialista no confronto com a classe operária organizada), resta a Vasconcellos aderir à proposta de Trindade.

Eis uma outra via que desemboca no núcleo deste ensaio: ao contrário do que su-cede com o fascismo europeu, cujo laço com o capitalismo monopolista salta aos olhos, a demanda que “solicita” a emergência do discurso integralista nos anos 30 não se localiza no plano da estrutura social. /.../ Como se vê, do ponto de vista das condições ideológicas internas, a busca da gênese do discurso integralista se afasta da estrutura social propriamente dita; ela tem mais a ver, conforme sugerem as conclusões de Trindade, com a esfera cultural: é sobretudo o fi lão nacionalista que o informa. Ora, esse não esteve imune à glosa das idéias hegemônicas do Ocidente. É decisivo, portanto, o peso dos infl uxos ideológicos externos. (VAS-CONCELLOS, 1979, pp. 189-90).

É interessante observar que, ao se considerar o “peso externo”, não levando em conta a signifi cação interna do discurso ideológico integralista, Vasconcellos não se detém objetivamente em sua estrutura interna, determinação social e fi nalidade no âmbito de seu complexo histórico, com isso, acaba por desqualifi car a expressão e o protesto do projeto integralista. O próprio autor – atualmente assumindo de peito aberto as cores do nacionalismo trabalhista, renuncia a qualquer conciliação com a analítica paulista – em seu estudo focaliza mais intensamente o “nacionalismo verde-amarelo”, considerado a fonte nacional do discurso “fascista”, do que a doutrina inte-gralista propriamente dita.

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Desse modo, a “utopia reacionária” ou o “paraíso rural”, a denúncia e barragem ao desenvolvimento das forças produtivas materiais, às formas da “civilização urba-no-industrial”, à “materialização da vida”, à acumulação ampliada do capital, que o integralismo tentou promover como realização das “verdades eternas da raça e da terra”, contra o domínio do “banqueirismo internacional”, ganham uma total inver-são: regressivismo econômico vira, nessa leitura, expansionismo, pois nesse condão

a utopia integralista pode ser vista como um ensaio de realizar, no plano imaginário, as condições plenas da acumulação de capital. Noutras palavras, ele espelha – ainda que ao avesso a própria impotência da burguesia brasileira em realizar o desenvolvi-mento capitalista auto-sustentado. /.../ A saída para essa situação seria a ”Inde-pendência do Brasil de toda e qualquer infl uência estrangeira”, única maneira de escapar à “civilização artifi cial’ (VASCONCELLOS, 1979, p. 59).

Ora, é precisamente num momento histórico em que se processa a transição de uma ordem agroexportadora para a ordem urbano-industrial, graças s uma “conci-liação pelo alto”, uma recomposição das frações dominantes no estado autocrático dos proprietários, é que surge um movimento político de tolhimento (ou melhor, de tentativa ilusória) do avanço das forças produtivas materiais contra os “reis da fi nança” ou o “espírito burguês”.

Miguel Reale, que tomou assento no “triunvirato” do Conselho Nacional da AIB, ao lado de Salgado e Gustavo Barroso, em seu primeiro livro de memórias Destinos cruzados, atenta para esta dimensão histórica desprezada pelos críticos con-vencionais: a situação anacrônica verifi cada entre o anticapitalismo integralista e as próprias condições particulares da entifi cação capitalista em nosso país. O criador do sigma e fi gura de proa na construção do ideário integralista constatou este “anacro-nismo”, num país essencialmente agrário, onde os integralistas se infl amavam contra uma industrialização incipiente. Em seus próprios termos: “Se a idéia nacionalista ti-nha a legitimá-la vários fatores (a ferrenha política estadualista, ou os pruridos sepa-ratistas, com perda do sentido global dos problemas brasileiros) e se o anticapitalismo brotava da experiência de um incipiente industrialismo selvagem (sem se olvidarem notórias interferências imperialistas em nossa economia), parece-me que na atitude integralista havia certo anacronismo. No fundo, éramos fervorosos anticapitalistas e antiburgueses num país ainda sem capitalismo” (REALE, 1986, p. 79)

É bom que se recorde: o integralismo se constituiu, de fato, numa frente de direita assumida tacitamente. Miguel Reale foi enfático na caracterização das tendências que se aglutinavam na AIB:

Como já observei, a AIB não formava unidade compacta do ponto de vista dou-trinário, nela atuando correntes de opinião diversifi cadas. Pelo menos três delas persistiram até o término do movimento: uma, a mais numerosa, liderada por

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Plínio Salgado, fundamentava-se na doutrina social da Igreja e na exaltação na-cionalista; uma outra, que dava ênfase especial aos problemas sociais e sindicais, assim como aos problemas jurídico-institucionais do estado; e na terceira, mais preocupada com os valores tradicionais da história pátria, a que acrescentava um anti-semitismo de frágil mas espalhafatosa fundamentação, com Gustavo Barroso à frente (1986, p. 80).

Em outro lugar, o jurista de renome, caracterizava a corrente pliniana, reafi r-mando a centralidade do espiritualismo da doutrina, do catolicismo tradicional, aproximando-se do objeto histórico, apontava para o traço antimessiânico do chefe integralista, que o distingue ainda mais da posição fascista:

Outros (e constituíam a maioria) eram mais seduzidos pelos valores do naciona-lismo ou da “reação espiritualista” no desempenho da vida política , como se dava sobretudo com Plínio Salgado, o qual se considerava menos um chefe, no sentido ple-no dessa palavra, do que o condestável da nação mais inspirando do que exercendo o poder. Profundamente integrado na doutrina social da Igreja Católica, era a partir dela que Plínio pregava a reorganização social do país, com grande carga emocio-nal, dando ênfase ao culto dos valores nacionais numa campanha de intenso valor cívico que, pela primeira vez em nossa história, conseguiu congregar centenas de milhares de brasileiros, de maneira permanente, e não para o fi m episódico de pleitos eleitorais (REALE, 1983, p. 9).

Cabe, então, aqui, repor, ainda que nesse breve espaço, algumas questões de-vidamente esclarecidas por Chasin. Consciente do estágio em que se encontrava a historiografi a brasileira sobre nossa formação histórica, e na medida em que o integralismo era composto de integralismos, impunha-se a real necessidade de sua compreensão em seu conjunto, Chasin explicava que, enquanto

fragmento da consciência social no Brasil, o integralismo continuava indecifrado, oculto em convencional e abstrata defi nição como fascismo. Determinar sua efe-tiva natureza, especifi cá-lo na especifi cidade brasileira era projeto que se impunha com grande evidência, no imperativo mais vasto, até hoje sofrivelmente atendido, de examinar o conjunto, ou pelo menos os momentos principais, dos eventos ideológicos no Brasil (CHASIN, 1978, p. 23).

Esta obra, na verdade, fazia parte de um projeto coletivo de maior envergadu-ra, era um primeiro assentamento, que permitiria a edifi cação de inúmeros outros trabalhos, perfazendo um “círculo de círculos”. O exercício da crítica ontológica da ideologia abarcaria um leque mais amplo de pensadores, que Chasin arrolara a fi m de compreender a natureza da ideologia brasileira, com o mesmo intuito que Marx e Engels tiveram quando escreveram A ideologia alemã. Uma pletora de ideólogos foi elencada: do integralismo com suas várias vertentes, Plínio Salgado, Gustavo Barro-so, Miguel Reale, Olbiano de Mello, Severino Sombra (obviamente, os dois últimos

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se distinguiam dos principais ideólogos integralistas). Do pensamento conservador, de Oliveira Vianna a Golbery do Couto e Silva, dos ideólogos do estado novo, como Azevedo Amaral e Francisco Campos, dos pensadores isebianos, de Hélio Jaguaribe a Guerreiro Ramos, dos economistas, de Eugênio Gudin a Roberto Campos etc. etc. Este projeto intentava, por meio de análises imanentes desses pensadores singulares, alcançar uma autêntica síntese da ideologia dominante no Brasil. E não, ao contrá-rio, pinçando alguns temas de alguns ideólogos, articulados arbitrariamente, com a fi nalidade de traçar a matriz de toda uma cultura nacional.

Destrinchando pela raiz a doutrina pliniana, Chasin detectou vários nódulos ideológicos que compõem a sua confi guração básica, tendo como núcleo diretor a utopia ruralista, a saber: o espiritualismo católico tradicional; o antimaterialismo; a hostilidade absoluta à civilização urbano-industrial; uma postura antimessiânica; visceral ojeriza à liberal-democracia; o corporativismo de inspiração cristã; o entro-nizamento da intuição como o único processo válido de captação da verdade; entre outros. É importante destacar a contraposição do corporativismo integralista com o de molde fascista, pois, enquanto para o fascismo a sua função residia precisamente na potencialização da produção, no caso do integralismo, o corporativismo de inspi-ração católica e de estilo medieval, “Seriam corporações de ofícios que ordenariam a representação moral, profi ssional e dos partidos políticos, que se extinguiriam. Entretanto, o seu corporativismo não estimularia o desenvolvimento do modo de produção capitalista, é mais um instrumento para deter a expansão das forças pro-dutivas, especialmente o capital industrial.” (CHASIN, 1977, p. 6.)

Nessa mesma entrevista dada a Getúlio Bittencourt, logo após a defesa da tese doutoral, o jornalista da Folha de S. Paulo pôs uma questão pertinente: “Um estudo baseado exclusivamente em textos não pode conduzir a distorções, na medida em que um político pode dizer uma coisa mas fazer outra – ou seja, na medida em que não se compara a verbalização com a ação?” Assumindo a sua dívida para com as refl exões lukacsianas, numa clara e densa resposta, Chasin esclarece a sua posição ontológica:

Vou começar pelo contrário: se decidimos que o que vale são exclusivamente os atos e não o pensamento, suprimimos portanto a manifestação da consciência. Parcializamos a própria realidade, pois um todo histórico é um conjunto de fatos objetivos e subjetivos, e o que caracteriza a ação humana é um embricamento das duas coisas. O homem não tem um pensamento que se separa da realidade por um abismo; esse abismo é criado por metodologias falsas. Predominantemente, as metodologias separaram a consciência do objeto e depois não conseguiram reuni-las. /.../ O homem faz a história, mas em condições que ele não escolhe. Por isso a sua consciência não é absoluta, pois por mais que tenha conhecimentos, sempre há dados da realidade que ele desconhece. Dialeticamente, não é possível uma ação que não seja precedida de uma intenção ou prévia ideação. Veja, quando al-

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guém defende a democracia, mas age contra a democracia, a sua ideologia eviden-temente é antidemocrática. No plano verbal, portanto, essa pessoa perpetra um engodo. O seu momento ideológico verdadeiro não é enunciado. Muito bem, mas a ideologia seria muito simples se fosse um ato deliberado de enganar os outros. O que faz da ideologia um fenômeno difícil, complexo e importante, é que ela freqüentemente manifesta um auto-engano: a pessoa engana a si mesma, acredita sinceramente numa visão distorcida da realidade. (CHASIN, 1977, p. 6)

Com relação às fontes e infl uências nacionais de Plínio Salgado, as descobertas chasinianas são reveladoras. Se não, vejamos.

Se lemos, superfi cialmente a obra de Plínio Salgado, podemos chegar à conclusão de que quase todas as personalidades importantes do Brasil e de Portugal con-tribuíram para a formação de sua ideologia. Qualquer manifestação regressivista, ainda que sem nenhuma ligação com as propostas integralistas, é incorporada por ele, a partir do Infante Dom Henrique. Mas a sua principal fonte de inspiração é realmente Farias Brito, no campo de espiritualismo – um Farias Brito já conver-tido ao cristianismo. Também Jackson de Figueiredo, sob um duplo aspecto, o infl uenciou: no cristianismo militante e fanático e na ideologia da ordem e do es-tado forte. Tristão de Athayde, antiliberal cristão nos primórdios do integralismo, saúda em Plínio Salgado “um pensamento novo”. Oliveira Lima e Oliveira Vianna (deste, uma noção de corporativismo), além de Alberto Torres (o nacionalismo agrário e a distinção Brasil real - Brasil legal) são outras fontes de Plínio Salgado (CHASIN, 1977, p. 6.)

O valor da tese chasiniana sobre o integralismo não se reduz, entretanto, ao exame do conjunto essencial dos escritos de Plínio Salgado, o principal ideólogo do movimento, o principal formulador da visão integralista do mundo, antes, durante e depois da própria existência da AIB (1932-1937), mas alcança a explicitação do mar-xismo como um novo patamar teórico dotado de uma ontologia estatutária. Ressal-te-se aí a força das abstrações razoáveis – tematização que, mais tarde, será amplamente desenvolvida em sua mais consistente refl exão sobre Marx: estatuto ontológico e resolução metodológica, de 1995 –, por meio da qual buscou concretar a efetiva análise imanente do discurso pliniano, respeitando-o em sua integridade própria, realizando em graus mais abstratos as determinações relativas ao solo histórico, sempre no empenho à objetividade, enquanto pensamento concreto, e o resultado desta efetiva concreção, a re-produção do complexo categorial da miséria brasileira ou da via colonial de objetivação capitalista em suas determinações essenciais.

Em virtude de o integralismo apresentar uma larga dimensão retórica em seu dis-curso, os intérpretes convencionais o caracterizaram como uma forma permanente de dissimulação e mistifi cação. Como esta analítica deixa de lado a parte residual desse discurso, deixa de lado a objetividade do corpo ideológico, os conteúdos signi-fi cativos que expressam o ser social limitado, de natureza ruralista, a debilidade de sua

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manifestação ideológica, forma de regressividade posta num trânsito à consolidação do capital industrial em nossa formação histórica.

Chasin, ao contrário, em respeito à integridade do objeto histórico, desvenda no irracionalismo pliniano a especifi cidade de “um ideário que, por impossibilidade intrínseca de ser convincente, se mostra visceralmente persuasivo” (CHASIN, 1978, p. 605). Para o teórico da via colonial, o discurso pliniano, por ser basicamente persuasivo, retórico, está longe de construir uma argumentação articulada por nexos racionais no sentido de convencer, uma vez que a apropriação do verdadeiro só se dá pela intuição ou pela revelação. Com isso, tem-se que, no discurso do ideólogo do sigma, “o retó-rico não é o residual; ao inverso, o residual ... é, aí, o não-retórico” (CHASIN, 1978, p. 606).

É precisamente aqui, na porção residual da doutrina, naquilo que sobra, em que se revela por inteiro o sentido histórico do integralismo, que Chasin divisa os dois limites teleológicos da oposição romântica à miséria brasileira, que escapou inteira-mente à versão hegemônica do integralismo, a saber:

O limite máximo, que designamos por utopia reacionária ou regressiva, que visiona a conversão do país numa pletora de pequenas propriedades, quase que exclusiva-mente rurais, e que, pela sua total inviabilidade, e até mesmo absurdidade, jamais é inteiramente explicitada. O limite mínimo, também de solução ruralista, mas que, por assim dizer, se conforma em transigir um pouco, busca pelo menos frear ou estancar a acumulação capitalista. (CHASIN, 1978, p. 607)

A crítica chasiniana desvenda, portanto, o devido lugar, a condição e a fi nalidade – a necessidade histórica – dessa utopia reacionária, e, ao contrário da historiografi a ofi cial, descobre “o sentido do desesperado esforço pliniano de persuasão, cegando-se para a evidência de que, se não podia convencer, isto não seria razão sufi ciente, nem muito menos, para Salgado deixar de querer e de propor exatamente aquilo pelo qual se esforçaria decididamente por persuadir” (CHASIN, 1978, p. 607).

É só a partir daí, uma vez efetuada a crítica ontológica da ideologia pliniana, a captura de sua destinação histórica por seus signifi cados internos, articulados à sua determinação social na via colonial de objetivação capitalista –, que Chasin pode partir para uma comparação ontologicamente posta entre os dois fenômenos históricos distintos. Chasin não capitula em nenhum momento à dimensão liberal-democrática que sustenta o formalismo dessa analítica pelo recurso aos conceitos de totalitaris-mo e de autoritarismo, e que, graças ao viés politicista, tornam indistintos e idênticos objetos históricos de naturezas diversas. O conceito de fascismo ganha, portanto, sua precisa especifi cação no que concerne à sua natureza particular: “abrange todos os casos de objetivação tardia do capitalismo que tenham emergido, de fato, como elos débeis da cadeia imperialista e nos quais o fascismo tenha se manifestado” (CHASIN, 1978, p. 637).

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Nesse sentido, adotar a tese de que integralismo e fascismo são entes concretos que se distinguem historicamente, implica também distinguir a via prussiana, como forma não-clássica de objetivação capitalista, que propiciou às formações capitalistas singulares, como a Itália e, principalmente, a Alemanha, um salto sem precedentes de uma condição de atraso histórico para posição de um capitalismo monopolista já no estágio imperialista. O fenômeno do fascismo, portanto, é produto dessa lógica particular do desenvolvimento do capitalismo avançado. O fascismo é considerado, assim, expressão do grande capital, que busca expandir-se por meio de uma ideolo-gia de mobilização para a guerra imperialista, a fi m de se forçar uma redivisão das esferas já dominadas pelos pólos hegemônicos do grande capital. A via prussiana é tomada não como modelo, mas como exemplaridade histórica. O integralismo, muito ao contrário, põe-se como utopia reacionária no interior dos condicionamen-tos de outra forma não-clássica, a via colonial, subordinado ao imperialismo, como movimento que buscou estancar o desenvolvimento do capital industrial em nossa singularidade histórica.

Segundo seu formulador, o conceito de miséria brasileira ou, mais precisamente, via colonial de objetivação capitalista, designa um complexo concreto historicamente determinado; da mesma maneira que o caminho prussiano, caracteriza-se como uma forma não-clássica do desenvolvimento do capitalismo.

Miséria brasileira é determinação particularizadora, para o âmbito do capital e do capitalismo de extração colonial, da fórmula marxiana de “miséria alemã”. Compreende processo e resultantes da objetivação do capital industrial e do ver-dadeiro capitalismo, marcado pelo acentuado atraso histórico de seu arranque e idêntico retardo estrutural, cuja progressão está conciliada a vetores sociais de caráter inferior e à subsunção ao capital hegemônico mundial. Alude, portanto, sinteticamente, ao conjunto das mazelas típicas de uma entifi cação social capi-talista, de extração colonial, que não é contemporânea de seu tempo (CHASIN, 1985, p. XI).

Recorde-se, num outro contexto, com maior concreção, Chasin salientava que a mundialização do capital subsume formações sociais distintas e engendra de-senvolvimentos desiguais e combinados. /.../ O que importa ressaltar /.../ é que pela via colonial da objetivação do capitalismo, o receptor tem de ser reproduzido sempre enquanto receptor, ou seja, em nível hierárquico inferior da escala global do desenvolvimento. Em outras palavras, pelo estatuto de seu arcabouço e pelos imperativos imanentes de sua subordinação, tais formações do capital nunca inte-gralizam a fi gura própria do capital, isto é, são capitais estruturalmente incomple-tos e incompletáveis (CHASIN, 1989, p. 41).

Em virtude dessa natureza, aqui a evolução nacional se manifesta contrariamen-te ao progresso social. Segundo a especifi cação chasiniana, a modernização capita-

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lista se faz sem ruptura, o historicamente novo paga alto tributo ao historicamente velho, a dominação autocrática dos proprietários se põe de modo perverso, sem os processos democráticos de incorporação das massas. Daí,

A contraposição, sob as condições de existência geradas pela via colonial, é ainda mais perversa, porque a evolução nacional é refl exa, desprovida verdadeiramente de um centro organizador próprio, dada a incompletude de classe do capital, do qual não emana nem pode emanar um projeto de integração nacional de suas categorias sociais, a não ser sob a forma direta da própria excludência do pro-gresso social, até mesmo pela nulifi cação de vastos contingentes populacionais (CHASIN, 1989, p. 49).

A exigência integralista de um estado forte se insere no contexto do autocratismo burguês, determinidade intrínseca do capital atrófi co, tal como Chasin especifi ca em sua teoria da via colonial.

A nossa burguesia, para quem o liberalismo econômico (a livre troca para susten-tar e ampliar sua própria natureza exploradora, através da associação crescente com a exploração hegemônica e universalizante do capital externo) foi sempre apropriado e conveniente, nunca pôde, nem sequer poderia ter aspirado a ser democrática, tem no politicismo sua forma natural de procedimento. Politicista e politicizante, a burguesia brasileira, de extração pela via colonial, tem na forma de sua irrealização econômica (ela não efetiva, de fato e por inteiro, nem mesmo suas tarefas econômicas de classe) a determinante de seu politicismo. E este integra, pelo nível do político, sua incompletude geral de classe. Incompletude histórica de classe que a afasta, ao mesmo tempo, de uma solução orgânica e autônoma para a sua acumulação capitalista, e das equações democrático-institucionais, que lhe são geneticamente estranhas e estruturalmente insuportáveis, na forma de um regime minimamente coerente e estável. O politicismo atua neste contexto, enquanto produto dele, como freio e protetor. (CHASIN, 1982, pp. 7-8)

Pesando os traços específi cos, Chasin estabelece as diferenças concretas entre particularidades históricas distintas entre si, que possuem similitudes se comparadas com as determinações imanentes à via clássica, porém, deixa consignado que esta-mos diante de predicados abstratos, cuja concreção efetiva somente se obtém em sua consideração histórica, a saber:

no momento em que se determina que, no caso alemão, se está indicando uma grande propriedade rural proveniente da característica propriedade feudal posta no quadro europeu, enquanto no Brasil se aponta para um latifúndio procedente de outra gênese histórica, posto, desde suas formas originárias, no universo da economia mercantil pela empresa colonial. Do mesmo modo quanto à expansão das forças produtivas. Em ambos os casos o desenvolvimento é lento e retarda-tário em relação aos casos clássicos. Mas, enquanto a industrialização alemã é das últimas décadas do século XIX, e atinge, no processo, a partir de certo momen-to, grande velocidade e expressão, a ponto da Alemanha alcançar a confi guração

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imperialista, no Brasil a industrialização principia a se realizar efetivamente muito mais tarde, já num momento avançado da época das guerras imperialistas, e sem nunca, com isto, romper sua condição de país subordinado aos pólos hegemô-nicos da economia internacional. De sorte que o “verdadeiro capitalismo” alemão é tardio, se bem que autônomo, ao passo que o brasileiro, além de hiper-tardio, é caudatário das economias centrais (CHASIN, 1977a, p. 156)

De posse desse profundo domínio dos objetos investigados, não operando com nenhuma forma de concessão e reducionismo, Chasin pôde explicitar as especifi -cidades que distinguem os dois fenômenos históricos, e com isso as necessidades ideológicas determinadas, pois,

o fascismo é uma ideologia de mobilização nacional para a guerra imperialista, que se põe nas formações de capitalismo tardio, quando estes emergem na condi-ção de elos débeis da cadeia imperialista, e o integralismo uma manifestação de regressividade nas formações de capitalismo híper-tardio, uma proposta de freagem do desenvolvimento das forças produtivas, com um apelo ruralista, no preciso momento em que estas principiam a objetivar o “capitalismo verdadeiro” (CHA-SIN, 1978, p. 647).

Chasin, portanto, em seu estudo sobre O integralismo de Plínio Salgado, delucida a questão da natureza histórico-social desse fenômeno particular, precisamente como uma crítica romântica ao capitalismo de fundo ruralista. Com isso, ilumina a desti-nação histórica da ideologia integralista, o centro de onde se ramifi cam os principais nódulos ideológicos do fenômeno do integralismo. A utopia reacionária do paraíso rural, o núcleo ideológico diretor, que passou inteiramente despercebido pelos intér-pretes da análise convencional.

Rumo à terra!, a chave do integralismo pliniano, surge, assim, numa época das guerras imperialistas, entre os anos que abrangem as duas décadas, de 1922 a 1937. A signifi cação concreta dessa palavra de ordem revela-se como a matriz segundo a qual se elevaria, naturalmente, uma organização econômico-social adequada ao espírito nacional e, também, ao desenvolvimento do sentimento cristão do povo brasileiro. Se o ideário pliniano forma-se anteriormente aos eventos de 30, e se mantém intei-ramente coeso, nesse período, com as indeterminações advindas desse processo po-lítico, Salgado manifesta a urgência de organizar o movimento integralista no plano nacional.

Por esta razão, Chasin descreve os contornos que condicionam a emergência dessa propositura:

De modo que, enquanto o momento internacional vive o confronto imperialista, caracterizado pela luta em torno da redivisão territorial do mundo, suscitada exa-tamente pelas necessidades da expansão da produção, Salgado emerge com uma proposição de freagem da acumulação capitalista, recusa o modo de existência

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urbano-industrial, acena com uma vaga e longínqua civilização agrária que se im-porá espontaneamente à admiração mundial, e defende programaticamente para o Brasil um urgentíssimo retorno à terra. (CHASIN, 1978, p. 618)

Esta é, portanto, a determinação essencial da natureza ideológica do integra-lismo de Plínio Salgado, não detectada pela crítica convencional, como manifestação de oposição romântica ao capitalismo, de uma ótica do pequeno capital, que se põe contra os efeitos do desenvolvimento do capitalismo híper-tardio. Coloca-se, dessa maneira, com uma doutrina em face da urgência política, própria às indefi nições do processo aberto em 30, desenvolvendo para esta função social um discurso per-suasivo. “É”, afi rma Chasin, “a urgência de uma tentativa desesperada de tolher a progressão histórica”!

Entende-se, pois, a natureza social dessa forma de regressividade que luta deses-peradamente contra o maquinismo e o materialismo da ordem social burguesa, mirando um retorno à terra: “Queremos o indivíduo integral. Nós, caboclos dos trópicos, proclamamos, em face de uma civilização que nos quer deprimir, os sagrados direi-tos do homem brasileiro. O indivíduo como força moral é o centro da família, como força econômica é a razão de ser de sua classe. E é em conseqüência dessas duas forças que ele age, como força política no Estado”, escrevia Plínio no Manifesto da Legião Revolucionária de São Paulo, em janeiro de 1931. Ideologia esta que busca atingir aquilo que considera a raiz dos males que afetam a nação brasileira. O verdadeiro engendra-dor dos confl itos e dos contrastes sociais, “o Estado liberal democrático é um Esta-do opressor”. Por isto, no jornal A Razão de 17 de julho de 1931 Salgado condena: “A luta de classes tem a sua origem na concepção desse estado que exerce, através de sua força armada e do seu judiciário, apenas o papel de esbirro”.

Nesse sentido, preso à visão politicista do capital atrófi co, Salgado propõe a ins-tauração de um estado forte, que face ao raquitismo deste sujeito histórico, na acepção chasiniana, surge como um estado intermédio, uma vez que quer se diferenciar tanto do estado fascista como do liberal, suposto como um estado pequeno-burguês para fazer prevalecer um capitalismo pequeno-burguês de base rural. Este estado forte põe-se, assim, como instrumento da revolução espiritualista, que tem na família o seu esteio moral. A revolução espiritualista tem o signifi cado de um movimento de regres-são, de retomada dos valores imutáveis abandonados pela humanidade, a fi m de se reporem equilíbrios perdidos; nesse sentido, para Salgado, “A Revolução tem que lutar contra os fatos /.../. É aí que se evidencia o caráter subjetivo (leia-se: idealista, espiritualista) da Revolução. Pois ela não se conforma com o desenvolvimento das forças materiais da sociedade” (SALGADO apud CHASIN, 1978, p. 614).

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Na entrevista concedida à Folha de S. Paulo, ao delinear o nódulo ideológico da intuição, elemento básico do irracionalismo integralista, Chasin condensa esta formu-lação, nos seguintes termos: com

o entronizamento da intuição como o único processo válido de captação da ver-dade, ele rejeita, por exemplo, a ordenação teológica do cristianismo a partir da Idade Média. O indivíduo, para Plínio Salgado, é meramente alguém que faz um movimento cativo em torno do absoluto, e que age corretamente enquanto circu-la nas proximidades do absoluto, e age erradamente enquanto circula distante do absoluto. A revolução, para o chefe integralista, é o movimento que repõe equilí-brios perdidos, que reencontra o velho, perdido por um erro do espírito humano. É por isso que ele escreveu que, quando se pensa que se está indo para o passado, é quando se está indo para o futuro (CHASIN, 1977, p. 6).

Por meio desta revolução subjetiva, Salgado busca fundar uma organização cor-porativa, de fundo cristão, pois, deseja restabelecer a fraternidade e solidariedade humana assemelhadas às corporações medievais, a fi m de não permitir a acumu-lação desenfreada do capital e o domínio do capital estrangeiro. O corporativismo integralista visava, assim, a restringir a progressividade dos eventos históricos, que reordenaria o rumo da industrialização e materialização da vida social. A crítica cha-siniana, decifrando esta solução de meio termo, como expressão da debilidade estrutural desse sujeito histórico, conclui com primor: “Estado que é pensado num ponto intermediário entre o poder de autoridade decaída, consubstanciado pelo liberalismo, dado mesmo como em colapso desde a Primeira Guerra Mundial, e a autoridade abso-luta, absorvente e destruidora da personalidade, e que afi rma uma fi nalidade própria. Poder-se-ia falar aqui de um estado intermédio para um capitalismo intermédio” (CHA-SIN, 1978, p. 613).

Para Salgado, vivíamos uma época de terror conduzida pelo capitalismo, “o grande bolchevista”, porque olhando para “as causas das desgraças fi nanceiras do Brasil, veremos que o único culpado foi o capitalismo universal”. A terceira humani-dade seria, desse modo, o resultado das destruições causadas pelo capitalismo e pelo liberalismo, o que acabou por gerar uma época sem Deus, caracterizada pelo avanço das ciências e do materialismo. Diante desse quadro regido pelo domínio do ban-queirismo internacional e da ameaça comunista, o mundo europeu achava-se inteiramente dilacerado pelas lutas de classes. Nesse sentido, Salgado propõe um movimento de resistência rumo à direita. “Trata-se, da ótica pliniana, de um movimento de regenera-ção do poder de Estado, e das nacionalizações pela atualização, particularmente no caso italiano, do espírito hierárquico do poder de Roma imperial, e da organização medieval do trabalho”. Com isso, Chasin tenta mostrar a visão peculiar do fascismo construída pelo integralismo, a tão propalada “superioridade”, na medida em que “Salgado enfatiza que este transporta o Passado para o primeiro plano, para o Presente”.

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Na visão pliniana do mundo, que entende o evolver histórico como oscilação pendular do espírito humano entre o bem e o mal, numa permanente rotação em tor-no do Absoluto, como frisa Chasin, “Em nenhum instante o evolver gera algo que já não estivesse prefi xado. Não existe o novo, apenas presentifi cações, atualizações, na forma de essências perenes. /.../ Com a prevalência do materialismo sobre o espiri-tualismo, que se efetiva especialmente a partir do sempre estigmatizado século XIX, Salgado tematiza constantemente o caos produzido pela civilização ocidental com o desenvolvimento do capitalismo, a época terrível da absorção do homem pela má-quina” (CHASIN, 1978, p. 615). Nessa linha de crítica romântica marcada por forte teor espiritualista, o comunismo nada mais seria do que a fi nalização de um mesmo espírito, o completar-se do desenvolvimento do capitalismo. “Conseqüentemente, todo o combate ao comunismo implica um combate ao capitalismo e, inversamente, todo combate ao capitalismo obriga ao combate do comunismo. É aí que se mostra bem claramente o liame no pensamento pliniano, entre sua crítica romântica do ca-pitalismo e seu visceral anticomunismo” (CHASIN, 1978, p. 616).

É sabido que para Salgado o fascismo é considerado um estágio inferior com relação ao integralismo. “Em contrapartida, o integralismo é a doutrina de uma nova civilização, o pensamento do século XX, que supera a luta de classes, fenômeno típico do século XIX, pela luta das civilizações. E será através de tal doutrina que o Brasil, invertendo as tendências, até então em vigor, infl uirá sobre a Europa, quando esta se puser à altura e em condições de compreendê-lo. O integralismo será a palavra nova do Brasil para o mundo dos novos tempos.” (CHASIN, 1978, p. 616)

Em virtude de o Brasil fazer parte das civilizações geográfi cas – os fatos naturais matrizam as características formadoras da nacionalidade –, dessa maneira, não segue o destino caótico encetado pelas civilizações geológicas, que caminham no sentido da industrialização, mas sim a sua vocação “agrícola por fatalidade de suas condições” (Salgado). Armado da revolução espiritualista, o Brasil, país jovem, liberto das perturba-ções do mundo industrial e tecnológico, seguindo a sua via natural, poderia revelar a saída para essa “luta de civilizações” que avassala o universo. No plano econômico, o paraíso rural, com uma pletora de pequenas propriedades rurais e o artesanato a se harmonizarem; no plano étnico, a raça harmoniosa do futuro, a construção de uma raça que, graças ao elemento tupi, assimila as mais variadas etnias, consubstanciando-se numa concórdia nacional.

Trata-se, portanto, de uma visão do mundo que expressa o desespero de uma limitada categoria social, numa proposta inteiramente anacrônica, posta num mo-mento histórico específi co de nossa formação social: a passagem da ordem agro-exportadora capitalista para a ordem urbano-industrial. Precisamente nesse período

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de transição emerge a apologética integralista, que, tangenciando a superfície das contradições do capitalismo de extração colonial, divisa uma catástrofe e crise derra-deira da humanidade, e propõe um retrocesso, uma volta à agricultura, a resposta da “Quarta Humanidade”, que ensinaria as nações velhas e cansadas do ocidente.

Numa passagem longa, mas com expressivo rigor, em que sintetiza as deter-minações básicas que confi guram o fenômeno do integralismo, Chasin pode ca-racterizar a utopia reacionária de Salgado, no contexto da particularidade histórica do capitalismo brasileiro, do seguinte modo:

A antimodernização pliniana é a mais extremada, manifestando-se, na crítica ro-mântica do capitalismo, e na reação diante do que toma como a derrocada mundial deste (o primeiro confl ito mundial, as crises de superprodução e desemprego, a instauração do estado soviético), como um salto para trás em busca de formas pré-capitalistas de entifi cação social. De forma que, diante do capitalismo inter-nacional em crise, e em face da industrialização brasileira (que se levada adiante só poderia conduzir à mesma ruína capitalista em que o mundo desenvolvido já se encontra, e cuja última fase é o comunismo), aproveitando a lição das nações antigas e cansadas, Salgado, na evasão de um mundo desconfortável e inquietante - raiz de seu uto-pismo reacionário e do desespero pequeno-burguês – retoma a “vocação agrária” brasileira, agora pelo nível mais baixo dos pequenos proprietários. Para tanto, impõe-se a freagem da expansão das forças produtivas. Convicto de que é par-cela do cobiçado botim do imperialismo, e convencido também de que, em face dele, não dispõe, nem mesmo em percentagem mínima, dos recursos para uma defesa material efetiva, lança à arena de luta, o combate espiritual ao imperialismo. O anticosmopolitismo, o nacionalismo defensivo o expressam perfeitamente: é a dimensão de seu antiimperialismo regressivo. (CHASIN, 1978, pp. 644-5).

Por mais incrível que possa parecer, para os integralistas, a ameaça proletária não era posta como problema imediato. O pior estava na inconveniência do libera-lismo na vida nacional, que, com sua fórmula do sufrágio universal, deixava o estado nas mãos de interesses particulares, sem regular e controlar, de um ponto de vista moral, o desenvolvimento econômico de nosso país. Uma economia sem restrições, fatalmente, implicaria a destruição do pequeno proprietário e sua proletarização defi nitiva, em conseqüência, conduziria as massas a uma vida miserável e, aí sim, encontraríamos um grande risco: a situação de miserabilidade e de insatisfação das massas poderia fazê-las serem submetidas aos interesses comunistas. Aos seus olhos, as coisas lhes pareciam muito simples: como não ver que a política liberal é que está na raiz da política comunista?

Objetivada pela crítica chasiniana, sabemos então que essa manifestação de-sesperada do anticapitalismo romântico foi a expressão de uma luta dos pequenos

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proprietários contra o grande capital, a fi m de preservar e conservar o homem integral, identifi cando-o com o camponês e com o artesão. Alcança-se, assim, a diferença essencial que especifi ca fenômenos históricos distintos,

De modo que o “burguesismo – mal do século” não é uma farsa retórica, mas a forma da crítica romântica no capitalismo híper-tardio. E uma moral da resigna-ção, da pobreza edifi cante, se põe como a “revolução espiritualista”, e enquanto tal, é a defesa de uma totalidade inferior. Mas a defesa de uma totalidade, não o esfacela-mento de toda e qualquer totalidade. O fascismo esfacela para expandir; o integralis-mo retrocede com medo do esfacelamento. Ontológica e teleologicamente, fascis-mo e integralismo se põem como objetivações distintas. (CHASIN, 1978, p. 652)

Há que acrescentar, ainda, outra dimensão do integralismo, a vertente integralis-ta de Gustavo Dodt Barroso (1888-1959), o segundo homem da escala hierárquica do integralismo, que se distinguia das demais por seu forte anti-semitismo. A partir de seu ingresso nas hostes da AIB, em 1933, graças à infl uência de Madeira de Frei-tas, Gustavo Barroso, o fundador e primeiro diretor do Museu Histórico Nacional, toma conhecimento de obras anti-semitas, de fundo cristão, e, imediatamente se põe a ler as obras de Drumond e, em especial, As forças secretas da revolução - maçonaria e judaísmo (P. Alegre: Globo, 1931) de Léon de Poncins, assim como traduz com pres-teza a peça fraudulenta Os protocolos dos sábios de Sião, da versão francesa, em 1936. O que mais uma vez passou batido aos intérpretes convencionais é que não levam em conta o anticapitalismo romântico e a natureza cristã do anti-semitismo de Gustavo Barroso, no afã de explicar a analogia do integralismo com o nazismo, especifi cidade que a distingue do dogma da teoria da raça expresso no darwinismo social, tal como foi aventado na obra chasiniana.

A crítica imanente do conjunto das obras de Barroso, particularmente no perí-odo de sua franca atuação (entre 1933 e 1938), ainda que com o nódulo ideológico do anti-semitismo, revela a mesma identidade do nacionalismo defensivo nascido nos contornos da via colonial de objetivação capitalista. Como é sabido, Os protocolos constituem-se numa das maiores mistifi cações literárias já produzidas, divulgadas principalmente em solo russo, em princípios do século XX, mais intensamente, em 1905; aparentam ser uma súmula, na forma de transcrição de atas do “Primeiro Congresso Sionista” realizado na Basiléia, em 1897, e que narram, em tom farsesco, as razões e os objetivos de um plano conspirativo universal que seria levado a cabo por organizações secretas a fi m de instaurar o domínio judaico em todo o mundo cristão.

Os protocolos, na realidade, foram baseados na sátira de Maurice Joly, um ferrenho crítico do bonapartismo francês no século passado, e foram modifi cados pela Okra-na, a polícia secreta do tsar Nicolau II, reforçando os pogroms e a política de combate

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aos movimentos revolucionários, no sentido de que atribuíam aos judeus a condução desses processos. Em sua ideologia, Os protocolos consubstanciam toda uma gama de conteúdos contra-revolucionáros, com traços de reação feudal, que apontava o judaísmo como a fonte intelectual dos processos revolucionários que se espalhavam no mundo europeu.

Nessa peça, são apresentados os pontos programáticos de um plano secular, cuja fi nalidade reside num suposto domínio universal dos judeus sobre os cristãos. O mundo cristão é apresentado sempre com conotações positivas, no registro pro-tocolar, pelo suposto agente judaico, como um mundo hierarquicamente constituído, com base na religião e num poder assentado na autoridade divina, onde as multidões vivem pacifi camente, em perfeita harmonia espiritual. Por esta razão, a estratégia judaica, nessa peça fraudulenta, tem como objetivo a destruição dessa unidade espi-ritual e material da ordem cristã.

De acordo com esse simulacro, os tempos modernos se apresentam inteiramen-te corrompidos pela inteligência satânica dos judeus e sob o domínio do ouro. “Todas as engrenagens do mecanismo governamental dependem dum motor que está em nossas mãos: esse motor é o ouro”, escrevem os supostos “sábios de Sião”. A força moderna do ouro nas economias, aliada a seu culto e à especulação fi nanceira, ins-tauram o poder despótico do capital. Por esta razão, “O capital, para ter liberdade de ação, deve obter o monopólio da indústria e do comércio; é o que já vai realizando a nossa mão invisível em todas as partes do mundo” (OS PROTOCOLOS, 1939, p. 154).

Mesmo com a sua contundente condenação num fórum internacional em Ber-na, em meados da década de 30, conforme Gustavo Barroso, mesmo que tudo fosse inverdade, “Nos Protocolos está debuxado todo o plano estratégico de Israel para a conquista do mundo”. A melhor arma para enfrentar os “agentes sem pátria”, desig-nadamente os banqueiros, os especuladores, os industriais, os homens de negócio, os homens públicos, mancomunados com o cosmopolitismo, o imperialismo, a corrup-ção e os favores nos empregos públicos –, era a restauração da moral cristã que deveria ser levada a todas as esferas da nação brasileira. Mais ainda, com a centralização política e a descentralização administrativa assentada nos municípios autônomos, o estado integral deveria instituir a verdadeira “unidade integral do Brasil”, pois

Controlará a economia nacional de modo a impedir o intermediário de sugar as forças da produção, o trabalho de fi car reduzido pela lei da oferta e procura ao papel de mercadoria, a especulação de abafar consumidores e produtores, a so-berania econômica nacional de cair às mãos do judaísmo internacional. Naciona-lizará as minas, as estradas de ferro, a navegação, as quedas de água, as empresas de eletricidade e o banco. Terá o monopólio dos produtos que servem de base à alimentação pública. (BARROSO, 1935, p. 124)

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Barroso vê a possibilidade de invasão do capital fi nanceiro de modo intenso, o que acarretaria um aprofundamento da dependência econômica da nação, com os grandes proprietários dominantes de origem judaica a controlar o próprio estado nacional. Nesse sentido, os males do materialismo contemporâneo adviriam inevi-tavelmente com a grande indústria e o maquinismo. Na obra Espírito do século XX (1936), ele é bastante incisivo quando se reporta aos elementos desagregadores da ordem social: “O pai de todas as terríveis lutas que se processam no seio da socieda-de contemporânea é o capitalismo. O sistema capitalista produzido pelo liberalismo político e econômico implantou a grande indústria, sufocando a pequena e o artesa-nato, e fez triunfar a máquina, anemiando o valor do trabalho manual” (BARROSO, 1936, p. 271).

Na mesma direção de crítica social, Barroso se insurge contra o expansionismo imperialista, que leva à desestruturação da ordem social, em especial, à dissolução das pequenas propriedades e, conseqüentemente, conduz à proletarização de amplas parcelas da sociedade brasileira. Esse desespero diante das conseqüências do expan-sionismo do grande capital fi ca evidente em seu livro O quarto império (1935): “O mundo foi partilhado pelos sindicatos ocultos de fi nancistas e negocistas sem pátria, quase todos judeus. /.../ E a propriedade privada, sobretudo a pequena propriedade, começou a ser sugada, destruída e concentrada em blocos dependentes de pequeno número de detentores, de modo a se proletarizarem as classes sociais, encaminhan-do-as para uma defi nitiva escravidão econômica” (BARROSO, 1935a, pp. 126-7).

Confi rmando, dessa maneira, o aporte chasiniano que descortina a diferença histórica entre o conteúdo biológico da concepção rácica do nazismo, matriz da superioridade ariana sobre o povo hebreu, no anti-semitismo integralista, o “judeu” é a encarnação do “anticristo”; segundo Barroso, não se trata de um problema ra-cial, uma vez que “Ninguém combate o judeu porque ele seja da raça semita nem porque siga a religião de Moisés. Mas sim porque ele age politicamente dentro das nações, no sentido de um plano preconcebido e levado por diante através dos sécu-los” (BARROSO, 1935b, p. 119).

Esse barbarismo chega à imputação de que “Na verdade, grande parte dos ju-deus – já não professa religião alguma. /.../ A religião e a raça nada têm a ver, pro-priamente, com o antijudaísmo” (BARROSO, 1937, p. 87).

Trata-se, pois, de restaurar a ordem social, conservando intacta a estrutura pro-dutiva em nosso país, cortejando os grandes proprietários rurais, que sofrem a “tra-gédia do café” e pondo-se – e aí reside a particularidade social do integralismo – na defesa dos pequenos produtores rurais. Projeto restaurador que, de uma posição ruralista, tem como pressuposto a paralisia da história, por meio do fetiche de nossa

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singularidade social e a efetuação “integral” da colaboração das classes antagônicas. Só dessa maneira, acreditava Barroso, os confrontos de classe seriam evitados e a preservação do núcleo essencial da sociedade garantida: a família. A defesa da famí-lia, pela garantia de acesso à propriedade privada e a proteção de um estado integral, eis a fórmula da salvação do pequeno-burguês.

Segundo os parâmetros dados pelo fundador do integralismo, Barroso vê como fi m último do desenvolvimento do capital a sua conversão em capitalismo de estado. Sendo assim, para formar uma barreira a essa avalancha multiplicadora da materia-lização do mundo, restaria uma única saída: a criação de um “grande movimento ascético” de mobilização popular, visto que

o mundo espiritual reserva aos que nele crêem perspectivas ilimitadas. Somente ele poderá levar os homens a um destino capaz de acalmar na sua alma a inquietação que trazem do mistério insondável de sua origem. Diante do Anticristo, formado pelo comunismo, irmão e sócio do liberalismo burguês, reverso do capitalismo, impõe-se a volta ao Cristo para uma nova salvação. O Império da Animalidade e da Economia, o Império do Capricórnio só poderá ser vencido defi nitivamente por uma nova espiritualização da Humanidade (BARROSO, 1935a, p. 138).

O nacionalismo integralista visava, desse modo, à edifi cação de uma “democra-cia orgânica” que integrasse todas as categorias sociais. Daí, o símbolo emblemático do sigma. Vê-se, pois, que pretende efetuar uma conciliação de classes, no mais perfeito equilíbrio no interior da diferenciação entre as classes sociais, postas pela própria “desigualdade natural”, a fi m de se manter a totalidade orgânica brasileira. Defrontando-se com a possibilidade de objetivação do capital industrial em nosso país, os integralistas apresentaram a sua contra-revolução: a revolução do espírito. Acreditavam que uma verdadeira cruzada se fazia necessária para se combater o outro espírito que havia construído toda uma história: o espírito do materialismo. Para atacar este mal, essa revolução deveria se alçar a uma forma política, um estado inter-médio, porque “O Integralismo não pode ser extremismo, porque é uma síntese, um todo, não se colocando em extremo algum, porém, no meio, não caminhando para os lados, a distanciar-se cada vez mais do centro, porém marchando com esse centro na sua direção normal, para a frente” (BARROSO, 1936, pp. 236-7).

Quem se dispuser a ler os discursos integralistas, sem o viés politicista e cultura-lista, reconhecerá que há uma leitura integralista do próprio fascismo. Distinguindo-se do lema mussoliniano e do lema leniniano, expressões da forma totalitária, o ideólogo integralista acredita que “O estado totalitário, comunista ou fascista, forma os ho-mens. O estado integral é formado pelos homens /.../ formando uma democracia orgânica e não um estado absorvente. Ela [a concepção integralista] é profundamente cristã”, sendo assim, “Nazismo, fascismo e integralismo são cidades muito diferen-

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tes, diversas repúblicas. Todos querem, organizando os respectivos nacionalismos, ‘ven-cer a anarquia’, mas cada um tem sua doutrina própria e obedece a realidades humanas diferentes, que só os ignorantes ou os de má-fé negam ou escondem” (BARROSO, 1937a, p. 168) Nessa direção, a universalidade fascista é identifi cada a esta reação nacio-nalista que atua no sentido da nova espiritualização.

Por outra parte, Barroso reagiu, com veemência, à mera identifi cação do inte-gralismo com o fascismo, pois “Em primeiro lugar, nenhum doutrinador integralista defende a teoria do fáscio. Isso é uma inverdade fl agrante e manifesta. Todos os autores de livros integralistas mostram que o integralismo, na generalidade de seus princípios, possui pontos de contato com o fascismo e o hitlerismo, porém os supera no sentido espiritual, de consulta direta às realidades brasileiras”. Em suma, “O que nós defendemos são os princípios básicos da civilização cristã ocidental e, como esses princípios fundamentam todos os movimentos geralmente chamados fascismos por falta de mais apropriada designação, naturalmente com eles cruzamos aqui e ali”.

Qual é, todavia, o sentido histórico-social dado pela leitura integralista de Gus-tavo Barroso acerca da natureza desses movimentos? A sua resposta é peremptória: “A reação fascista tenta e realiza na Itália e na Alemanha a volta ao campo, a fecun-dação das glebas abandonadas pelo exagero das indústrias, o contato com a fonte de vida eterna, cuja profundidade ninguém mede. Na organização do estado integral brasileiro, o problema da terra, abandonado pelo nosso liberalismo de fancaria, será atacado como deve ser. E sua resolução fará do Brasil o celeiro do mundo” (BARROSO, 1935c, p. 80).

O retorno à terra! A hostilidade à ordem urbano-industrial! Esta percepção ingênua no tratamento da natureza do fascismo por parte dos integralistas – o que de modo algum os põe à margem do seu reacionarismo, ainda que numa outra especifi cidade – foi também colocada por Reale:

Não nego que tenha havido excessivo e até ingênuo entusiasmo pelas realizações fascistas ou mesmo hitleristas, mas é necessário nos situarmos na época (1932-37) para darmos conta desses desvios ideológicos: no fundo, sentíamos preservada, em seus valores próprios, a doutrina integralista fundada no corporativismo de-mocrático e num nacionalismo defensivo, para salvaguarda de um País no início de seu desenvolvimento industrial. O imperialismo fascista-nazista se, às vezes, me-receu ingênuas referências, não tinha guarida no cerne do pensamento integra-lista, nem havia razão para tal atitude no contexto da América Latina (REALE, 1986, p. 83).

Mais adiante, em outra referência, Reale salienta o equívoco de sua posição: “Via, naquela época, o corporativismo fascista como um meio de superação da polí-tica monopolista, sem antever que o estado fascista iria subordinar-se cada vez mais

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a injunções imperialistas, como a da Guerra da Abissínia, que iriam afastá-lo defi ni-tivamente da anunciada terza via” (REALE, 1986, p. 92).

Ora, o que o esforço chasiniano alcançou – despido de qualquer preconceito ideológico – não deixa margem à dúvida, colado às determinidades que o condi-cionamento histórico-social gerou, é possível alcançar as diferenças: “Enquanto, no integralismo, o suposto último é uma concepção espiritualista do universo e do homem, concretada essencialmente em termos do catolicismo tradicional, no caso ‘clássico’ do fascismo, temos uma expressão do darwinismo social, levado às últimas conseqüências, consubstanciando literalmente o dogma central da raça.” (CHASIN, 1978, p. 648)

Diante de sua contundente exigência, Chasin foi em busca do primeiro estudo acadêmico, em língua alemã, escrito em 1938, em que o autor explicita as debilidades de nosso integralismo ao não acompanhar a dimensão rácica do nazismo. É bastante reveladora, nesse sentido, a crítica de um ponto de vista nazista que se faz ao integralis-mo brasileiro, exatamente quanto à questão racial. Em Der Brasilianische Integralismus, Karl Heinrich Hunsche denuncia esta fraqueza:

o integralismo brasileiro adota a teoria assimilatória, antibiológica, do nativismo lusitano /.../. Destruindo, porém, os diversos grupos étnicos – e isto ocorre se se sacrifi cam as características particulares, que eles possuem por vontade divina, a favor de uma idéia vaga de uma raça mista no futuro –, destroem-se simulta-neamente também os valores inerentes a esses grupos. Sim, pode até ser dito que o integralismo concorda neste ponto com as idéias materialístico-estáticas do comunismo, que também não reconhece os limites por vontade divina dos povos, na sua originalidade disposta pelo destino. A teoria de Meltingpot (assimilatória) do integralismo está, portanto, diametralmente em oposição à sua própria idéia dinâmica de base, isto é, àquela qualidade pela qual o integralismo brasileiro supe-ra o seu homônimo português. (apud CHASIN, 1978, p. 649)

Em outros termos, o autor nazista critica exatamente esta falha do integralis-mo, creditada à tese de Salgado acerca da “raça harmoniosa do futuro”, na defesa energética do racismo biológico próprio da ideologia nacional-socialista. Nessa medida, é “impossível formar no Brasil”, reclama Hunsche,

qualquer movimento vivo político ou cultural ou de outra natureza sem que o mesmo adote uma perfeita atitude frente ao problema racial. Mas, na verdade, ele [o Brasil] adotou a atitude racial do nativismo lusitano que muito se assemelha à sua. Ambos afi rmam que o problema racial no Brasil só poderá ser solucionado de acordo com a realidade brasileira, em harmonia com a brasilidade, mas não com o que os cientistas europeus constataram em seus laboratórios. Mas se em outros pontos já constatamos a fragilidade e a interpretação subjetiva do conceito de brasilidade, com maior razão ocorre isto no problema racial. (apud CHASIN, 1978, p. 649)

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Recorde-se, mais uma vez, que, em vários momentos, o próprio Barroso pro-curou mostrar a diferença do seu anti-semitismo com respeito ao nacionalismo hi-tlerista, de natureza rácica. Em sua ótica, se o anti-semitismo alemão tem como base a “unidade dos povos germânicos”, isto de forma alguma se aplicaria ao caso brasileiro, em virtude das “verdades essenciais” de nossa tradição histórica. Isto por-que, escreve em Integralismo e catolicismo, “O Brasil não tem brasileiros exilados em minorias étnicas além de suas fronteiras e é um país cadinho de raças. Também a questão judaica aqui não se apresenta sob o mesmo aspecto. Temos de nos libertar da escravidão ao banqueiro internacional e temos de impedir a formação de forças paralelas ao estado, que entravam a ação deste e o levam a medidas favorecedoras de interesses de grupos políticos, econômicos e fi nanceiros” (BARROSO, 1937c, p. 114).

E, no caso do principal ideólogo do integralismo, qual era a sua posição diante desta questão? Salgado, numa fórmula sintética, enfatizará que o “problema do mun-do é ético e não étnico”. Numa carta de 1934, publicada na revista Panorama, deixa explícito que:

“Não sustentamos preconceito de raça; pelo contrário, afi rmamos ser o povo e a raça brasileiros tão superiores como quaisquer outros. Em relação ao judeu, não nutrimos contra essa raça nenhuma prevenção. Tanto que desejamos vê-la em pé de igualdade com as demais raças, isto é, misturando-se pelo casamento com os cristãos. /.../ O judeu capitalista é igual a um cristão capitalista: sinais de uma época de democracia liberal. Ambos não terão mais razão de ser porque a humanidade se libertará da escravidão dos juros e do latrocínio do jogo das Bolsas e das manobras banqueiristas. A animosidade contra os judeus é, além do mais, anticristã e, como tal, até condenada pelo próprio catolicismo. A guerra que se fez a essa raça, na Alemanha, foi, nos seus exageros, inspirada pelo paganismo e pelo preconceito de raça. (SALGADO apud CHASIN, 1978, p. 572)

Da mesma forma, ainda que a propositura pliniana esteja centrada na idéia da “harmonia das raças”, revela-nos que Salgado tampouco estava livre de preconceitos anti-semitas. “Todavia, não se trata nunca de um anti-semitismo que tenha por fundamento bases raciais. Enquadra-se, isto sim, no estereótipo da sovada fórmula do judeu-usurário, manipulador internacional dos dinheiros. E nem mesmo vem à tona o anti-semitismo de fundo religioso, tão comum em determinadas formas da prática católica” (CHASIN, 1978, pp. 572-3).

É interessante observar que essa utopia reacionária, perpassada por uma forma específi ca de anticapitalismo romântico, de fundo cristão, ensejou uma forte sedu-ção naqueles que acreditavam na sedutora “revolução espiritual” que, a partir das “verdades eternas da terra e da raça”, pudesse moralizar as mazelas da sociedade

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J. Chasin: a crítica ontológica do anticapitalismo romântico típico da "via colonial". Os integralismos.

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capitalista brasileira. Isto explica a massiva adesão à sua propositura ideológica. Ob-viamente, os problemas enfrentados pelos integralistas eram extraídos de suas con-dições concretas de vida; no entanto, estavam impossibilitados da real compreensão dos fenômenos apontados em face da determinação social de sua própria categoria social. Por isso, um reconhecido crítico pôde inferir que os integralistas “nas críticas que faziam atingiam o cerne dos problemas nacionais, comprovando como o nosso país era explorado pelos banqueiros internacionais, como o voto secreto, que tanto entusiasmava os tenentes, não melhorava as condições de vida das camadas humil-des, salientando a falta de espírito público, de formação ideológica dos políticos profi ssionais” (ANDRADE, 1980, p. 72-3). Contudo, se o integralismo é a cabal expressão e protesto de uma miséria real, a miséria brasileira, a constelação ilusória de seu nacionalismo defensivo acabou por se confi gurar numa visão do mundo profun-damente regressiva que, diante da sua fuga aos determinantes concretos da realidade nacional, dada a fraqueza congênita do seu ser social, sua proposta fi cou interditada de se realizar e ferir concretamente o núcleo real das contradições sociais de nossa formação histórica.

O mesmo esforço que Chasin empreendeu para efetuar a crítica ontológica do mundo do capital, em suas manifestações sociais, ideológicas, políticas e fi losófi cas – a partir do resgate e da memória de Marx, pela raiz, sem concessão e capitulação alguma – há que ser trilhado. Em respeito à sua memória e ao seu legado, há que ser sinalizado que os seus escritos merecem um lugar especial no empreendimento revolucionário, e da mesma maneira, com sofrimento e transfi guração, sob esta base, ao menos nessa parte do mundo, o esforço concentrado de uma parcela – seja o tamanho que for – na luta contra as formas da alienação e do estranhamento, que não se confunda e nem se submeta ao espírito mesquinho e medíocre que domina o homem contemporâneo, pode ensejar o recomeçar a partir desses fundamentos so-lidamente instaurados.

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educação e ciências humanasEspaço de interlocução em ciências humanas

Ano V, novembro de 2008 – Publicação semestral – ISSN 1981-061X

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A trajetória de J. Chasin:teoria e prática a serviço da revolução social

Entrevista com os Profs. Drs. Antonio Rago Filho e Ester VaismanPor Lúcia Ap. Valadares Sartório e Vânia Noeli Ferreira de Assunção

Por ocasião dos dez anos do falecimento do fi lósofo J. Chasin (1937-1998), reunimos em São Paulo dois de seus mais antigos e fi éis companheiros e interlocu-tores, Antonio Rago Filho e Ester Vaisman, para conversar sobre o legado teórico e prático deste grande marxista brasileiro. A escolha desses dois nomes não foi, de modo algum, aleatória ou arbitrária, ao contrário: entre as pessoas que conviveram com Chasin, Rago e Ester se mostraram os mais capacitados e confi áveis para uma entrevista desse teor. Das histórias relembradas por aqueles que estiveram a seu lado em boa parte de sua vida adulta impõem-se algumas constatações: a coerência prática, a lucidez teórica, a convicção pelo acerto científi co-fi losófi co do pensamen-to marxiano, a aposta no homem e a luta pela sua emancipação. E, acima de tudo, o ineditismo e a densidade de sua personalidade, marcante para todos aqueles que conviveram com ele. Como demonstra o longo depoimento a seguir, Chasin abra-çou com paixão e coerência toda uma série de atividades, muitas das quais hoje desconhecidas, esquecidas pela história. Só por este registro a entrevista já é válida, mas ainda constam dela análises sobre a realidade nacional efetuadas pelo fi lósofo, desdobramentos sobre o pensamento de Marx, comentários sobre autores e aspec-tos da sua vida particular, sempre atada à sua vida pública, as amizades sólidas e as traições sórdidas. Conteúdo, do começo ao fi m, que busca dar conta desta grande fi gura humana que foi J. Chasin e que torna a sua leitura obrigatória.

ENTREVISTA

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Vânia: Nosso objetivo hoje é realizar uma entrevista sobre a trajetória de vida e a obra do fi lósofo J. Chasin, com Ester Vaisman e Antonio Rago Filho. Ester, o que você pode falar sobre a infância dele, onde nasceu, quem era sua família?

Ester: Bom, esse relato que eu vou fazer é baseado naquilo que ele me contou, naquilo que, nos curtos períodos de contato que eu tive com a mãe dele, ela pôde me narrar. São características, são aspectos da vida dele enquanto criança, enquanto adolescente, que ele me contou, e é nessa condição que isso tem de ser levado em consideração, já que eu não fui testemunha dos fatos. Mas o que é importante ressal-tar, em primeiro lugar, é que Chasin nasceu em 1937 e é de origem judaica e, embora seja uma “contradição nos termos”, é de uma família judaica pobre. Ele nasceu na Mooca, que, na época, era um bairro em que viviam, principalmente, trabalhadores. Teve uma infância cheia de difi culdades fi nanceiras. Os pais não nasceram no Brasil: a mãe nasceu na Romênia, o pai nasceu na Polônia, provavelmente num lugarejo que fazia fronteira com a Lituânia. Ambos vieram na leva de imigração judaica, nas primeiras décadas do século XX, ou seja, antes da Segunda Guerra Mundial. Não se instalaram, como a maioria dos judeus dessa leva, no bairro do Bom Retiro, mas na Mooca. O pai de Chasin chamava-se Nochun Chasin, mas era conhecido por Nelson. Muitos judeus mudavam o nome porque eram comerciantes e, para que a clientela pudesse chamá-los pelo nome, entendê-los etc., mudavam o nome original, aportuguesavam, e virou Nelson. Era, realmente, um homem muito bonito quando

Da esquerda para direita: Vânia, Ester, Rago e Lúcia

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jovem: isso é possível ver nas poucas fotografi as que existem. A mãe também era igualmente bonita. O nome dela era Pepi Chasin. Chasin também tem um irmão chamado Jaques, nove anos mais novo que ele. Mas o que mais ele lembrava e con-tava a esse respeito era a avó. A família se estruturava em um esquema matriarcal, centrado na avó, mãe da mãe dele. Um esquema matriarcal, segundo o qual na casa da avó é que se reuniam todos os parentes, sempre na cozinha. A avó sempre tinha algo no fogão para servir para as visitas. Esquema, inclusive, semelhante ao italiano ou espanhol, muito característico desse tipo de imigração, em que as pessoas se reuniam na cozinha para conversar, para contar as novidades. A primeira língua que Chasin aprendeu não foi o português, e sim o iídiche. Ele começou a falar em iídiche, porque era a língua que se usava na casa da avó, na vida familiar. O pai era vendedor de roupa de porta em porta, algo que era muito característico dessa leva de imigrantes judeus, o vender roupa de cama ou peças de vestuário de porta em porta. Infelizmente, o pai foi internado duas vezes por tuberculose, por longos períodos, em Campos do Jordão. Foram momentos marcantes para a familia, que se viu às voltas com a resolução de problemas de sobrevivência, inclusive, é obvio, com o sen-timento da ausência paterna. A mãe teve, então, de assumir a criação dos fi lhos, as funções domésticas, mas também prover a casa. Então, ela saía com pacotes pesados de roupa de cama, pegava o bonde para bater de porta em porta, e vender – tentar vender – essas mercadorias. Então, era muito difícil. E, enquanto a mãe saía, dada a diferença de idade, que num determinado período da vida sabemos que é importan-te, Chasin ajudou a criar o irmão, cuidava de sua alimentação etc., porque, como já disse, a criança era pequena e a mãe tinha de sair para vender mercadorias.

Vânia: Ele não chegou a trabalhar nessa época?

Ester: Não chegou a trabalhar. Ele cuidava da casa e cuidava do irmão. Ele fi cava encarregado dessas funções, da função doméstica e tarefas afi ns. Houve um período em que a situação melhorou e eles contaram com o apoio de uma ajudante, de uma empregada doméstica. Mas houve períodos bem difíceis; eles não chegaram, evidentemente, a passar fome, mas foram períodos difíceis. Eu não sei perfeitamente a idade, mas foi ainda na primeira infância que Chasin teve reumatismo infantil. Na época, imagino que não havia tratamento à base de corticóides, de forma que ele teve de fi car deitado por um ano. Eles moravam em uma casa que só tinha um quar-to, então, ele teve de fi car deitado na sala, onde todo mundo fi cava quando chegava, o que era bem constrangedor. Era uma casa que fi cava na vila e ele via os meninos jogando futebol e não podia jogar também… Não podia brincar…

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Vânia: Eles eram judeus praticantes?

Ester: A mãe, principalmente. Era ortodoxa. O pai nem tanto… A mãe era or-todoxa, então, a comida servida na casa era kasher. Mas, enquanto a mãe era bastante séria e rígida, sob vários aspectos, o pai era mais brincalhão, era mais light, vamos dizer assim, e às vezes fugia do esquema kasher, ia ao boteco da esquina e comia arroz, feijão com lingüiça!! Era um cara muito brincalhão, gostava muito de futebol. Tinha um lado brincalhão que Jaques, o irmão do Chasin, tem, o próprio Chasin tinha, os fi lhos também têm, que é esse hábito de contar piadas etc. Quando ele ia à feira para fazer compras, todo mundo o conhecia, e ele fi cava apertando os tomates e, evidentemente, fazia comentários não muito… publicáveis a respeito do estágio de maturação dos tomates. Todo mundo na feira o conhecia: “Ah, o Sr. Nelson tá chegando…” Ele já vinha contando piada, fazendo comentários, todo mundo o conhecia. E Chasin, inclusive, quando esteve em Moçambique, mandou uma longa carta para o irmão, lamentando a morte do pai, ocorrida no início de 1978, pouco tempo antes de Chasin partir… Nessa carta, uma carta muito bonita, muito poética – Chasin tinha um traço poético, um traço literário na escrita –, ele comentava essas características do pai. Ele nunca se deu bem com a mãe, exatamente pelo rigor, pela ortodoxia religiosa dela. Ele veio a estabelecer um contato melhor com ela pouco tempo antes de ela morrer, dois anos antes de Chasin, em 1996, de um câncer na garganta.

Vânia: Eles tinham relações no meio judaico? Como era, nessa época, a circulação dele?

Ester: Eu não sei bem, mas acho que era um relacionamento mais familiar, mes-mo. Chasin estudou o antigo primário numa escola judaica, de que eu não lembro o nome, e depois ele começou a estudar em escola pública, e terminou o segundo grau em um colégio estadual de referência. Acho que ainda existe, fi ca no Parque D. Pedro [em São Paulo]. E o relacionamento com a comunidade judaica era mais via família propriamente. Na família, a única pessoa que tinha uma condição de vida melhor era o irmão da mãe, o tio, que possuía em casa um rádio. O Chasin menino gostava de ir à casa desse tio, porque lá ele tinha condições de ouvir o rádio, era um aparelho que tinha um botão ou alguma luz vermelha que o encantava enquanto criança. Não só porque a caixa falava, mas porque tinha uma luz vermelha que o hipnotizava na caixa… Então, era lá que ele ouvia rádio, música etc., na casa desse tio, que era irmão da mãe dele.

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Vânia: Ele conservou amigos de infância no decorrer da vida?

Ester: Não, não… Mas, por outro lado, há uma coisa muito característica da primeira geração de judeus que nasceram aqui no Brasil. Eu li, certa feita, um estu-do socioantropológico sobre isso, que afi rmava o seguinte: os fi lhos de imigrantes tentam se integrar de toda forma ao país. Eles querem se integrar para não fi car no limbo… Vejam, a primeira língua que Chasin aprendeu foi o iídiche, e a segunda, o português. Assim, ele fez um esforço muito grande de se integrar ao bairro, ao país, aos costumes, aos hábitos. Ele fez questão, inclusive, de fazer o CPOR1 quando es-tava na faculdade. Era tenente da reserva. Fez questão de servir ao Exército, porque considerava, achava – certo ou errado, ingenuamente ou não – uma forma possível de se integrar. Acho que isso é muito característico dessa primeira geração que nasce de pais que vieram na imigração. Mas, enfi m, ele teve uma infância muito difícil, confl itos domésticos, principalmente com a mãe… E confl itos domésticos com os pais, porque ambos tinham modos de ser muito diferentes: a mãe, muito rígida, mui-to ortodoxa, e o pai mais aberto, alegre, enfi m, encarava a vida de uma forma um pouco mais positiva que a mãe.

Vânia: Nesse período de infância e adolescência se manifestava, de alguma maneira que ele tenha transferido a você, uma tendência para a questão social, fi losófi ca?

Ester: Não. O que se manifestou na adolescência foi o interesse por discutir questões que estavam na ordem do dia. Por exemplo, no antigo colegial, ele orga-nizou um grande debate à época, na década de 1950 – imagina como isso deve ter gerado um frisson –, ele organizou uma série de palestras sobre amor livre. Por outro lado, em meados da década de 50, Chasin, com cerca de 18 anos, escrevia poemas. Evidentemente, poemas livres. Ele chegou a participar de concursos de poesias, mas nunca chegou a ganhar nada. As poesias dele, realmente, não eram grande coisa, mas, enfi m… Ele escreveu poesias… Mais tarde, tentou pintar… Artes plásticas… Os quadros que ele produziu também não são grande coisa (risos), mas, enfi m… Havia essa veia… E são poesias niilistas, pessimistas, de amores fugidios, enfi m, real-mente, transparece um niilismo acentuado… E ele escreveu também nesse período, uma coluna num jornal que se chamava União, um pequeno jornal comercial. Então,

1. “O Centro de Preparação de Ofi ciais da Reserva (CPOR) é a unidade de ensino do Exército Brasileiro responsável pela formação básica, moral, física e técnico-profi ssional do ofi cial subal-terno da 2ª Classe da reserva. /.../ através de seus Cursos de Formação de Ofi ciais da Reser-va (CFOR), formam aspirantes-a-ofi cial, habilitando-os ao desempenho de funções de coman-do das frações elementares da tropa, tanto na guerra como na paz”. Disponível em: < http://pt.wikipedia.org/wiki/CPOR>, acessado em 14 set. 2008. Cursar uma universidade dispensa o serviço militar, mas habilita o interessado a fazer o treinamento para ofi cial da reserva nos fi ns de semana, caso de Chasin.

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ele era mais da leitura, principalmente nesse ano em que ele fi cou de cama, ainda na infância… O tratamento era repouso e ele lia muito. Então, ele leu na juventude, na adolescência, tudo aquilo que a gente deveria ler, que são os autores clássicos, tanto nacionais como da literatura universal: Tolstoi, Dostoievski, Balzac… Então, tudo que era livro que lhe caía na mão, ele lia. O dinheiro que ganhava, com o pouco di-nheiro que ele tinha ele não ia comprar nem gibi, nem brinquedo, mas livro. Então, era alguém que desde cedo demonstrou uma preocupação, uma atenção, um gosto, um prazer pela leitura, pela escrita. Ele tentou desenvolver uma veia poética, mas não conseguiu.

Vânia: E ele saiu do colégio direto para a faculdade ou demorou para ingressar?

Ester: Acho que ele demorou um pouco. Ele não foi direto. Ele ingressou em 1959… Houve uma época em que ele trabalhou como bancário, ele estudava à noite e trabalhava em um banco. Ele fez o colegial à noite e foi nesse período, no colégio, que os amigos dele eram Luiz Weiss2 e Vladimir Herzog3. Eles saíam sem rumo pelas ruas do centro de São Paulo, entravam em algum bilhar ou coisa parecida. Ele andava muito, pois não tinha dinheiro para a condução, então, ele saía da Mooca e ia até o centro da cidade etc. É isso, eles andavam muito, porque os três não tinham dinheiro para pagar condução, bonde, seja o que for.

Rago: Há nesse período a formação de uma esquerda judaica, vamos dizer assim, de origem judaica, que milita no trotsquismo e no PCB.

Ester: Sim. A primeira esposa de Chasin, Hannah Profi s, participava dessa es-querda judaica. Ela era professora, inclusive, de iídiche, numa escola que fi ca no Bom Retiro, Scholem Aleichem. Hannah Profi s é que participou dessa esquerda judaica desde a juventude. Os pais dela vieram da Ucrânia, eram de esquerda e ela foi da Juventude Comunista. Já Chasin não teve participação na esquerda judaica.

Vânia: E ele decidiu estudar fi losofi a na USP.

Ester: Exatamente. Antes de ingressar na faculdade, ele fi cou muito impactado, foi muito infl uenciado pelas leituras que fez de Bertrand Russell, que era um agnósti-co. Então, o agnosticismo de Bertrand Russell, os textos dele, nessa época, o infl uen-ciaram muito, e eu penso que Chasin decidiu pelo curso de fi losofi a exatamente por conta da leitura que fez de Russell. Além disso, era alguém muito preocupado com as

2. Jornalista e sociólogo, atualmente no Observatório da Imprensa e no jornal O Estado de S. Paulo.3. Vlado Herzog (1937-1975), cuja morte, decorrente de tortura, nos porões do Destacamento de Operações de Informações - Centro de Operações de Defesa Interna (DOI-Codi) desencadeou uma onda internacional de protestos e marcou uma infl exão da ditadura militar.

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relações humanas, interesse já demonstrado nos temas ds palestras que ele organizou quando cursava o colegial. Ele só veio a conhecer Marx e a esquerda na universidade, pelas mãos de Hannah Profi s, que, como já disse, era da esquerda.

Vânia: Eles se conheceram na universidade?

Ester: Sim. Ela fazia o curso de ciências sociais, ele fazia o curso de fi losofi a. E, de uma forma bastante esperta, atraída por ele, ela pediu umas aulas particulares de fi losofi a. Eles freqüentavam a Biblioteca Mário de Andrade, começaram a namorar lá, durante as aulas de fi losofi a que Chasin dava para Hannah. E foi lá, exatamente, que ele conheceu Maurício Tragtenberg e conviveu com ele e um grupo de intelec-tuais que freqüentava a Biblioteca Municipal Mário de Andrade. Ele estudava lá e namorou lá também, entre os livros.

Rago: Isso é interessante, porque recentemente, em torno da morte de Bento Prado Jr., passou na TV Cultura o depoimento de amigos, como Giannotti e ou-tros… E eles recuperaram como grupos de intelectuais freqüentavam a Biblioteca Municipal e a troca intelectual que se tinha ali. Maurício Tragtenberg, certa feita, nos contava de sua aproximação da esquerda, em especial dos trotskistas. Contava como esses intelectuais liam e debatiam textos que não tinham tradução em português. Então, eles liam em francês, a pessoa anotava, o outro depois comentava… Uma vez perguntei a Maurício como ele aprendeu literatura, história, língua estrangeira… Maurício salientava o “grupo da Biblioteca” como fundamental para sua formação. Citava o próprio Bento Prado Jr., Flávio Rangel, Leôncio Martins Rodrigues, An-tunes Filho, Aracy Rodrigues, entre outros, como seus companheiros da Biblioteca. Ele aprendeu muito com esse “método”, com esses núcleos, nos quais se incluía a família Abramo – Leila, Athos, Perseu, Fúlvio. Maurício, posteriormente, relia a tradução que faziam, anotava, e depois confrontava com o texto original, de posse de dicionários. Isso nos faz pensar no tipo de intelectuais que freqüentava aquele ambiente, que permitia esse intercâmbio.

Ester: No caso, Hannah e Chasin eram estudantes, e enquanto tal absorviam esse clima, o aproveitavam, além do fato de que lá encontravam livros. Não se com-prava, eles não tinham condições de comprar livros. Eram poucos aqueles que con-seguiam adquirir livros na época da faculdade.

Vânia: Ele trabalhava na época da faculdade? Ou só estudava?

Ester: Eu não tenho idéia, mas acho que trabalhava, porque a família não tinha condição de mantê-lo apenas estudando. Lembro-me que ele dava aulas no cursinho do Grêmio da Faculdade de Filosofi a, em certo período.

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Vânia: Ele contou como foi o primeiro contato com Marx, como ele começou a se aproximar das questões marxistas e sociais, propriamente ditas?

Ester: Foi no saguão da [unidade da USP na R.] Maria Antônia. Porque, da mesma forma que havia essas discussões na Biblioteca Mário de Andrade, ele dizia que as discussões, aquilo de vivo que acontecia na faculdade de fi losofi a ocorria no saguão da Maria Antônia. Então, ali é que se travavam os grandes debates, as grandes discussões, e ele tomou conhecimento de Marx ali.

Vânia: Então, ele não tinha aulas que abordassem o pensamento marxiano, que o tivessem infl uenciado…

Ester: Não, não me parece que Marx era uma matéria… Não tenho certeza, mas me parece que Marx não era um tema, naquele período, muito presente no cur-so de fi losofi a. Talvez no curso de ciências sociais, que ele conhecia por Hannah, que fez este curso. Inclusive, quando FHC foi eleito pela primeira vez, numa foto que foi publicada da defesa de tese de doutorado dele, Hannah aparece assistindo…

Rago: É bom demarcar o período. Ele entra em 1959?

Ester: Exato! É importante ressaltar isso… Ele se envolveu no movimento es-tudantil, na época, logo de início, infl uenciado por esse relacionamento com Hannah e com outros que vinham do curso de ciências sociais. Ele viu nascer e acompanhou o famoso grupo de estudos sobre Marx que surgiu exatamente nessa época, em 59, e foi até 63, do qual participaram Giannotti, FHC, Ruth Cardoso, Weffort… Bento Prado participou num período, Roberto Schwarz também, como estudante. Enfi m, Chasin acompanhou isso. Ele tinha um ótimo relacionamento com Cruz Costa, que foi seu professor, e foi aluno de Giannotti, de Michel Debrun, de Gilles-Gaston Granger, enfi m, de toda essa geração que vinha para a USP para lecionar. Ele co-nheceu também Gérard Lebrun… enfi m, teve uma formação em fi losofi a bastante sólida, graças ao fato de que as turmas eram reduzidíssimas e os professores eram de primeira linha. Além de que foi um momento de intensa polêmica, de intenso debate sobre questões nacionais, questões intelectuais, que ele teve o privilégio de viver, enquanto estudante, nesse momento pré-64, no Brasil, participando também do movimento estudantil nesse período. Ele teve uma atuação muito intensa nesse período no movimento estudantil.

Vânia: Ele falava de amigos desse período, de companheiros do movimento?

Ester: Ele comentava de casos como Goldman, Alberto Goldman, que foi con-temporâneo dele e estudava na Poli…

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Rago: É preciso lembrar que em 1958 Giannotti volta do doutorado na França. Ele propõe o Seminário de Marx. O estudo de O Capital é proposta de Fernando Novais. Nessa organização havia, por exemplo, alguns estudantes, como Paul Singer e Roberto Schwarz – que eram, inclusive, os que entendiam alemão, uma língua que muitos não dominavam. Esse seminário produziu uma irradiação teórica muito grande entre os vários ramos das ciências humanas no Brasil, fenômeno que Chasin, mais adiante, passa denominar de analítica paulista, que inclui as teorias do populismo, do autoritarismo, da dependência e da marginalidade. Nela há esse marxismo redu-tor, adstringido, com seu viés epistemologizante das leituras de O Capital. Está claro que paulatinamente os desenvolvimentos epistêmicos desse marxismo adstringido serão expulsos desse corpo teórico. Mas eu só queria demarcar isso, nesse momento da entrevista: a presença desses dois braços na universidade, o braço do Partido Co-munista – com o marxismo vulgar – e esta linha da fi losofi a uspiana. De todo modo, Chasin sempre nos lembrava o feitio da leitura dos textos que era realizada à época, sobretudo seu rigor, o seu caráter de análise imanente.

Ester: Na época, chamava-se de análise estrutural, mas não tem nada a ver com o estruturalismo, evidentemente.

Rago: O fato de Chasin ter recebido uma formação séria por parte de Granger, de Debrun, do próprio Giannotti... foi muito importante para ele. Ao mesmo tempo, assiste-se à própria movimentação da realidade e dela se participa, pois era um ano de muita transformação, ou seja, a modernização é acelerada naquele momento, e no Brasil a modernização acelerada é excludente, como o próprio Chasin sempre anali-sou. Então, acho que esse ambiente que se apresentou na universidade obrigou-o a tomar certas posições. Nesse momento ele vai ter expressão enquanto estudante.

Ester: É. Ele tinha uma expressão, uma infl uência, uma irradiação, uma lide-rança importante nesse período, mas, como ele dizia: “eu entrei para o PCB porque, na época, não havia nenhuma outra organização”. As organizações trotskistas ou paratrotskistas eram muito restritas, quer dizer, o partido de esquerda que existia era o Partidão, mas desde o início a relação de Chasin com o PCB, mesmo enquanto es-tudante, foi extremamente problemática, confl ituosa. As propostas do Partidão para o movimento estudantil, ele sempre as questionou, a relação foi bastante tensa desde o começo, desde o início. Nunca foi uma relação de subserviência, de simples acei-tação das diretrizes que o Comitê Estadual ou a direção do movimento estudantil determinavam… Exemplo desse tipo de comportamento foi a campanha pela escola pública, na qual ele foi representante da UNE.

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Rago: Eu soube disso tardiamente, quando Chasin falou que era vice-presiden-te e Florestan era o presidente da Campanha pela Escola Pública. Em princípios dos anos 1960, Chasin foi convidado a participar do Congresso do PCB, por conta de sua atuação nos movimentos sociais. Mencionou, inclusive, que ele foi decisivo na discussão do Congresso. E, depois, temos a posição que ele assume no CPC4. Até então, eu não sabia que Chasin teve uma presença importante, aqui, em São Paulo, no CPC também. Infelizmente, num livro de Marcelo Ridenti, Em Busca do Povo Bra-sileiro, aparece uma pequena nota sobre o confl ito com o Partido Comunista, mas que dá a impressão de que Chasin teve uma posição negativa em relação ao CPC. E não localizam o problema no plano estético. Quer dizer, Chasin condenava a posição de levar a programática do Partido para o campo da arte. Aí, já aparece um tipo de vínculo com Marx e com Lukács. Aproveito a ocasião para mencionar a importân-cia de Caio Prado Jr. na formação intelectual de Chasin e da pesquisa que ele fará depois, porque isso poucas pessoas conhecem. Chasin é citado por conta de sua “Contribuição para a Análise da Vanguarda Política no Campo”, que foi publicada na Revista Brasiliense de fi nais de 19625.

Ester: Muitas pessoas desconhecem…

Rago: Muitas pessoas desconhecem, porque não há citações de autores n’A Re-volução Brasileira, que é de 1966, de Caio Prado Jr., a não ser a de Chasin. Assim, creio que, nesse momento, Marx, Lukács e Caio Prado Jr. são infl uências importantes e que, sem dúvida, permitiram que Chasin desenvolvesse uma posição extremamente crítica em relação ao PCB. Nós sabemos qual posição tinha Caio Prado Jr., mas sabemos também qual lugar ele ocupava frente aos stalinistas, ao marxismo vulgar. Chasin atuou na Revista Brasiliense, e isso foi fundamental, porque nessa revista ele publicará sob a forma de dois artigos a crítica a Mannheim6, que elabora já sob a infl uência do pensamento de Lukács7. Acho que é bom recuperar que a militância de Chasin nessa época: de um lado, há a fi gura de Caio Prado Jr. – Chasin, mais tarde, aprofundará certos aspectos da análise histórica caiopradiana – e, de outro, a pre-sença de Marx e Lukács, que também serão alvo de estudos profundos e minuciosos por parte dele.

4. Os Centros Populares de Cultura (CPCs) foram criados em 1961, no Rio de Janeiro, e eram ligados à União Nacional dos Estudantes (UNE). Esses Centros reuniam diferentes segmentos artísticos que atuavam junto às classes populares. 5. CHASIN, J. “Contribuição para a Análise da Vanguarda Política no Campo”. Revista Brasiliense. São Paulo, n. 44, nov./dez. 1962. Republicado na coletânea A Miséria Brasileira.6. Karl Mannheim (1893-1947), sociólogo judeu nascido na Hungria. Publicou Ideologia e Utopia em 1929, entre outras obras.7. Trata-se do trabalho intitulado “Dissertação sobre a Sociologia do Conhecimento de Man-nheim”, orientada pelo Prof. Michel Debrun. O texto foi publicado em dois números da Revista Brasiliense.

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Ester: Veja, aquilo que eu falei há pouco: ele assistiu ao nascimento do Seminá-rio sobre Marx, ou seja, ele foi testemunha ocular daquilo que estava acontecendo na USP. Evidentemente, esse seminário surgiu, me parece, por duas razões fundamen-tais, uma teórica e outra política. A primeira razão era a insatisfação dessas fi guras em relação ao estágio em que se encontravam as ciências sociais ou o pensamento social no Brasil. Essas fi guras estavam insatisfeitas com o ensaísmo brasileiro, ou seja, Gil-berto Freyre e Sérgio Buarque de Holanda. Em outros termos, eles não considera-vam toda essa produção propriamente científi ca. Ao mesmo tempo, os membros do Seminário Marx não concordavam nem com as teses de Nelson Werneck Sodré, nem com as de Alberto Passos Guimarães, nem com as de Caio Prado sobre a formação social brasileira. Então, eles foram ler Marx infl uenciados pela polêmica gnosiológica em torno do pensamento marxiano… Eles foram ler Marx com o intuito de per-seguir aquilo que poderia ser um método científi co, existente, implicitamente, na obra econômica. Supostamente, a partir da apreensão deste método, pleiteavam a sua uti-lização para a investigação da formação social brasileira e, nessa medida, oferecer um contraponto para a produção teórica direta ou indiretamente vinculada à esquerda ou ao ensaísmo de Gilberto Freyre e Sérgio Buarque de Holanda. É curioso, como Rago bem chamou a atenção, que, enquanto esse pessoal, professores e dois estu-dantes, rumavam por uma trilha desta natureza – evidentemente, Chasin foi alijado, e foi alijado exatamente porque ele tinha um vínculo com o movimento estudantil, ele tinha uma militância política e isso, na época, para esses digníssimos professores, era um ponto contra Chasin, era uma mácula. Chasin era um aluno que se destacava entre os demais, não só por conta de seu perfi l teórico, mas por sua dimensão crítica. Imaginem uma sala de aula, fi nal da década de 50, começo da década de 60, na Maria Antônia, na USP. Os rapazes iam de terno e gravata, as moças todas bem vestidas... Havia todo um comportamento respeitoso do aluno em relação ao professor. Tão respeitoso que era muito difícil ou mesmo impossível um aluno se manifestar em sala de aula! Um episódio que Giannotti nunca esqueceu foi que, numa aula de lógi-ca – Giannotti era professor de lógica –, Chasin teve a “ousadia”, digamos assim, de se contrapor a ele em sala de aula. Uma coisa que não era admissível à época! Cruz Costa, certa feita, chegou para Chasin e disse: “Você é muito inteligente, você é um rapaz de grande capacidade, mas aqui você não vai ter futuro em função de sua mi-litância política no movimento estudantil e de sua postura em sala de aula”. A partir desse momento – é bom lembrar que nós estávamos sob o regime de cátedra ainda –, a partir daquele momento, Chasin viu que, em função da sua postura teórica, sua postura crítica e de alguém vinculado ao movimento estudantil, as portas da aca-demia já estavam fechadas para ele. Isto fi cou claro nessa fala muito sincera, muito

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honesta de Cruz Costa, com quem ele tinha um ótimo relacionamento. Mas é bem verdade que, quando Chasin optou pelo curso de fi losofi a, ele não tinha grandes ambições de fazer carreira como professor universitário. Ele queria ser professor de fi losofi a de segundo grau, além de escritor. Era isso que ele queria naquela época, ao contrário do que a família pressionava, principalmente a mãe. A mãe judaica quer que o fi lho seja médico… Tenha status de médico... Mas, para horror de Dona Pepi, Chasin optou pela fi losofi a, ele queria ser professor e escritor. Infelizmente, como sabemos, o ensino de fi losofi a foi retirado do ensino médio, quando da reforma de 68. Assim, Chasin não tinha diante de si muitas alternativas. Mesmo porque o golpe de 64 foi devastador para ele também em termos pessoais.

Vânia: Antes de entrar no período da ditadura, só queria pontuar: Ester comentou certa vez que o primeiro contato que ela teve com Chasin foi justamente num grupo de estudos de Evolução Política do Brasil, de Caio Prado Jr. Chasin achava o livro muito importante, bem como diferen-ciava Caio Prado de todos os outros teóricos que tentavam compreender a realidade nacional. E A Revolução Brasileira foi um livro que marcou época e que menciona a pesquisa feita por Chasin, que resultou no “Contribuição para a Análise da Vanguarda Política no Campo”. Havia proxi-midade entre eles no diagnóstico da situação rural no Brasil?

Rago: Chasin partilhava da análise concreta da situação dos trabalhadores rurais em nossa formação social, que não identifi cava os nossos trabalhadores do campo com os camponeses de extração feudal. Nesse Congresso8, buscava-se compreen-der os interesses, as perspectivas dessa categoria social do campo brasileiro. Chasin sempre se pautou pela busca da compreensão racional do mundo, e também pela militância, pela intervenção prática. O que, como Ester colocou, “atrapalhou na academia”, mas atrapalhou também na esquerda. Porque, diante da luta interna do Partido Comunista, ele assume a luta anti-stalinista. E isto vai lhe custar a hostiliza-ção típica do stalinismo, tanto nos anos 60, por sua participação naquele Congresso, como no período da Escola de Sociologia e Política, a formação de intelectuais va-cinados contra o stalinismo e a vulgata marxista... Tanto que, num congresso para o qual ele foi convidado ele faz uma intervenção radical. No sentido de mostrar os crimes stalinistas, as ações oportunistas e um pouco além.

8. I Congresso Nacional de Lavradores e Trabalhadores Agrícolas, promovido pelo CPC de São Paulo em Belo Horizonte (MG) em novembro de 1962.

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Da esquerda para direita ??, Caio Prado Jr., Chasin, Rago.

Ester: E contra as teses da Terceira Internacional, contra o etapismo9 etc… E contra as diretrizes, vamos dizer, culturais do Partidão. Então, em relação a essa história do CPC, é preciso que se diga o seguinte: primeiro, é preciso fazer ainda a história do CPC, pois isso não foi feito. Aqueles que se voltaram para a análise da atuação do CPC fi zeram essa análise por um viés, viés esse que joga no lixo da história toda a movimentação do pré-64, e foi o que caracterizou a esquerda não marxista e toda a teoria produzida pelo marxismo adstringido no que diz respeito ao movimento sindical. Aí, nós pegamos, por exemplo, Weffort e José Álvaro Moisés… Em suma, toda a movimentação do pré-64 foi rejeitada, negada in totum, como se tivesse sido meramente, para usar a expressão utilizada por esses dois autores, correia de transmissão do Partido Comunista. Então, o CPC foi visto como uma espécie de braço do Partido Comunista no movimento estudantil – e mais, como uma espécie de instrumentalização política da arte, contra a qual Chasin logo se colocou. Mas é preciso lembrar que a história do CPC é muito mais complicada que isso, mais com-plexa que isto, porque nós precisamos lembrar que se trata de um período na história do Brasil em que havia uma intensa movimentação social e, evidentemente, os inte-

9. O Partido Comunista, seguindo as teses stalinistas, defendia a idéia de que as transformações históricas se realizavam pela sucessão de etapas invariáveis e predeterminadas e que todas as sociedades eram subordinadas a elas, isto é, que há estágios fi xos de desenvolvimento que todas as sociedades deveriam atingir – o sistema escravista, o feudal e o capitalista – e ultrapassar histo-ricamente até atingir o socialismo.

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lectuais e artistas, teatrólogos, enfi m… todos os que militavam nessa área queriam, parafraseando a música de Milton Nascimento, queriam estar onde o povo estava, de alguma forma, queriam contribuir… Então, é preciso analisar caso a caso os traba-lhos que surgiram nesse período e resgatar, se assim for possível… Guarnieri10, Juca de Oliveira11, Vianinha12, Paulo Pontes13… Quer dizer, as principais fi guras... Disso resultou o Teatro de Arena, Arena conta Zumbi. Não é possível uma pessoa, alguém minimamente razoável, pegar toda essa experiência e simplesmente negá-la, rejeitá-la in totum, como sendo uma experiência que signifi cou o braço do Partido Comu-nista no interior do campo artístico no Brasil, dentro do movimento estudantil, e rejeitar, por isso, toda a produção cultural que o CPC produziu. Igualmente, é um despropósito ver Chasin como alguém que levava as teses do Partido para o interior da UNE ou do CPC. Ao contrário… Foi aí que ele encontrou Lukács, foi aí que a questão sobre a obra de arte, sobre a função da obra de arte, se pôs, e desde aquele momento Chasin se manifestou contrário a qualquer tentativa de instrumentalização política da arte, o que lembra, inclusive, a polêmica de Lukács e Brecht. É interessan-te resgatar isso exatamente porque Lukács sempre foi contra isso. Como Chasin se interessa por Lukács? Como Chasin encontra Lukács? Evidentemente, poucas obras de Lukács eram conhecidas no Brasil, mas, se pegarmos a história do marxismo no século XX, vamos reconhecer que foram poucos os comunistas que se debruçaram sobre o campo da cultura ou sobre o campo da formação ideal, das ideologias, não no sentido pejorativo. Chasin estava interessado pela situação social brasileira – e a aproximação com Caio Prado se deu em função disso –, mas, ao mesmo tempo, interessado em analisar aquilo que se chama de pensamento conservador ou pensamento das classes dominantes ou a ideologia das classes dominantes no Brasil. Desde es-tudante ele se interessou por isso. Quando colocou essa questão a Giannotti, este o desaconselhou fortemente que ele se voltasse a isso, dizendo que era uma questão menor. Se lermos a apresentação de O Integralismo de Plínio Salgado14, nós veremos ali que, indiretamente, Chasin, em vários trechos, refere-se a essa questão – quer dizer, nem o Partido Comunista considerava esta uma questão de maior importância e nem

10. Gianfrancesco Guarnieri (1934-2006), ator, diretor, dramaturgo e poeta ítalo-brasileiro. Autor, entre outras, de Eles não Usam Black-Tie, de 1958.11. Juca de Oliveira (*1935) é ator e dramaturgo consagrado. Passou pelo Teatro Brasileiro de Comédia (TBC) e pelo revolucionário Teatro de Arena, além de ter sido militante da esquerda comunista. 12. Oduvaldo Viana Filho, o Vianinha (1936-1974) – um dos maiores nomes da dramaturgia bra-sileira e um dos fundadores dos CPCs.13. Paulo Pontes (1940-1976) atuou nos CPCs e nos teatros de resistência no período da ditadura .militar.14. CHASIN, J. O Integralismo de Plínio Salgado: forma de regressividade do capitalismo híper-tardio. 2. ed. Santo André, Estudos e Edições Ad Hominem, 2000.

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Giannotti, nem os acadêmicos a consideravam um objeto, um tema que deveria ser estudado. Então, ali Chasin foi contra a corrente duplamente, na academia e em relação ao Partido. Ele dizia: “nós precisamos entender, nós precisamos identifi car como pensa a burguesia, o arremedo de burguesia, o que é o pensamento conservador no Brasil, para poder entender a dinâmica das classes”. Algo que destoa completamente daquilo que, no período, era considerado prioritário. Onde ele foi buscar o apoio, o elemento teórico fundamental para isso? Em Lukács. Mannheim foi objeto da mo-nografi a de fi nal de curso de Chasin, de 1962, que foi publicada em dois números da Revista Brasiliense. Na época, Mannheim exercia uma infl uência muito grande na academia. Havia como que uma posição que endossava, que aceitava, que acatava a teoria, a posição de Mannheim. E, mais uma vez, Chasin teve a coragem de ir contra a corrente e fez uma monografi a de fi nal de curso amparando-se em Lukács, mas pegando o texto de Mannheim e mostrando as suas defi ciências por dentro. O que é algo muito difícil de fazer e ninguém faz isso até hoje, e ainda critica quando nós fazemos, dizendo que isso é mera paráfrase. Defi nitivamente, não é. Então, é preciso sinalizar também este momento. Quer dizer, enquanto outros autores são festejados por terem traduzido ou introduzido o pensamento de Lukács no Brasil, nós não po-demos esquecer que um estudante de fi losofi a fez sua monografi a de fi nal de curso contra Mannheim, que gozava de uma aceitação, de uma infl uência muito grande na época, inspirando-se em Lukács.

Rago: Eu acho importante, mais para registrar, que, num certo sentido, nós podemos até dizer que Mannheim predomina ainda na academia, no sentido de que o intelectual é pensado sem liames sociais, sem vínculos e determinações sociais. Como se isso fosse possível! Quer dizer, o intelectual fi car livre das conjunções, das lutas sociais, das classes etc. Então, eu acho importante isso, porque era uma característica da academia essa dimensão, e depois, obviamente, a direita também recuperava Mannheim no sentido da racionalidade do planejamento. Celso Furtado e outros se referem a essa dimensão. E a esquerda social-democrática ainda crê na racionalidade do Estado, agora, como interventor democrático ante a aceleração das forças produtivas materiais. Então, havia uma confl uência de um pensamento de esquerda da academia com outras intervenções políticas que, no fundo, se cruzavam. E Chasin dava esse corte. Uma coisa que acho que seria bom pontuar, é óbvio que está na cabeça de todos nós esse momento, é o signifi cado do golpe de Estado de 1964 na vida de Chasin. Eu acho que é óbvio que 64 é uma fenda, um corte. Chasin se valia de uma frase de Marx, que diz que, como no caso da Comuna de Paris e outros, uma derrota para o movimento operário poderia signifi car muito. No sen-tido de você compreender, de fato, as posições das classes, as estratégias, os seus

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limites, erros etc. e dar um salto. E eu acho que, a partir desse momento que eles procuram Prestes15, tanto Caio Prado Jr., Elias Chaves Neto16 e outros do núcleo da “Brasiliense”… Estou falando Brasiliense entre aspas, porque eles não confi guravam uma tendência, mas eram uma tendência de fato, no sentido da linha teórica. E esse momento é um divisor de águas, porque Chasin vai colocar que houve um fracasso, porque, quando foi procurado por esse grupo, Prestes achava que a esquerda estava quase no poder.

Ester: Aqui é preciso lembrar o comício do Partido Comunista em 1963, no Pacaembu, quando Prestes, no discurso, dizia: “Estamos no poder”.

Rago: Algo como: “Não somos o governo, mas estamos no poder, porque infl uímos mais do que Goulart”. Mesmo que Prestes, depois, tenha dito que nunca falou isso. Todavia, a consciência que o Partido disseminava era exatamente essa dimensão de que as rédeas do poder “estão nas nossas mãos”, “temos o sindicato, o PTB está com a gente, frações do exército estão com o partido”, e assim por diante. E quando isso é colocado, um golpe estava prestes a ocorrer, então, é muito impor-tante que isso seja grifado, que um grupo de intelectuais marxistas, entre os quais o jovem Chasin, já tinha uma visão de que algo desastroso estava para ocorrer e o Par-tido estava completamente desarmado. Então, só para pegar uma coisa disso tudo: desta derrota Chasin se propõe a produzir alguma coisa – o que viria a se constituir com o Movimento Ensaio –, imbuído da idéia de que “ter lucidez é um ato revo-lucionário”. O que implicava dedicar-se em tempo integral aos estudos e formação de pessoas. Levar às últimas conseqüências a consigna de que era condição sine qua non a superação da carência teórica da esquerda – veja que Caio Prado Jr. começa com essa questão seu livro sobre A Revolução Brasileira de 1966. Aí é que Chasin sai defi nitivamente do Partido, em 1963…

Ester: Quer dizer, ele, na verdade, nunca esteve no Partido. Ele se mirava muito no exemplo de Caio Prado, que tinha um pé fora e um pé dentro. É uma expressão que ele sempre utilizava e um posicionamento que ele sempre defendia e justifi ca-va.

Rago: Caio Prado falava também muito disso, da necessidade de, na militância, ter sempre os pés nas condições vividas, um pé dentro e outro fora. Eu acho que isso é visceral, porque o golpe de estado de 1964 vai se refl etir na vida de Chasin por uma quebra, uma ruptura violenta de um projeto. Além disso, no plano estrita-

15. Luís Carlos Prestes (1898-1990), conhecido como Cavaleiro da Esperança, liderou a famosa Coluna Prestes antes de ingressar no Partido Comunista, do qual foi dirigente.16. Elias Chaves Neto (1898-1981) estava à frente da Editora e da Revista Brasiliense junto com Caio Prado Jr., de quem era primo.

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mente profi ssional, ele tinha sido convidado por Maurício Tragtenberg para lecionar em uma faculdade que estava sendo estruturada em São José do Rio Preto e, com a intervenção ditatorial, houve o cerceamento da continuidade daquilo que seria uma carreira promissora, porque Chasin vai fi car afastado por um tempo, para só mais tarde retomar o magistério superior. Enfi m, gostaria de fazer mais alguns comentá-rios sobre esse período, porque é um momento em que o Brasil assiste a movimen-tações sociais ímpares, movimento sindical, movimento rural, Ligas Camponesas no Nordeste, mas também no Sudeste, movimento estudantil… Havia programas, projetos sociais, e não como hoje, em que a “esquerda” está totalmente desarmada. Veja a CUT ante o governo Lula e a crise mundial do capital.

Ester: Embora Chasin não tivesse sido preso ou torturado, por exemplo, em 1973, convidado pelo Ceupes – o Centro de Estudos e Pesquisas, que era o Centro Acadêmico do curso de ciências sociais da USP –, Chasin foi dar uma palestra sobre ideologia ou ciência, na USP. No dia seguinte, parou uma veraneio, em frente à casa dele, “convidando-o” para depor no Dops. Então, a cada momento que ele aparecia publicamente, ele era “convidado” a depor. Então, ele era acompanhado, pari passu, pelos órgãos da repressão, embora nunca tivesse sido preso nem torturado – mas temos de convir que há outras formas de tortura também... Não somente a física. Há formas de acabar com a vida de uma pessoa além da prisão... Isso deve fi car registrado.

Vânia: Eu queria incluir nessa discussão, voltando um pouquinho, também a revelação dos crimes stalinistas, como isso repercutiu no Brasil e como isso entrou nessa questão de que vocês estão falando, nessa movimentação toda de 64…

Ester: Na verdade, é o seguinte: Chasin teve sempre um pé atrás em relação a tudo o que dizia respeito à União Soviética e aos Partidos Comunistas. No entanto, é bom deixar claro, porque alguém pode perguntar: “Por que ele se vinculou?” Por-que era a única arena, o único espaço, único lugar no qual se podia atuar e discutir. Nunca passou pela cabeça dele, mesmo enquanto estudante, tomar uma posição de voyeur, como Marilena Chauí, que entrou na universidade depois dele e que con-fessa que apenas assistiu a tudo aquilo, como voyeuse. A partir do momento em que Chasin, pelas mãos de Hannah, entrou no Partido, tomou essa decisão, considerou necessária essa atuação para mudar as coisas, ele não tinha melindres, mas sempre foi crítico em relação a uma série de aspectos, seja em relação ao marxismo vulgar, seja à forma de organização política do PCB no Brasil, seja em relação às teses que o Partido disseminava à época – como a do capitalismo autônomo, da necessidade de uma revolução burguesa para depois chegar ao socialismo e outras. E por isso ele

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se aproximou de Caio Prado. Ele sempre teve uma postura crítica em relação a isso. Embora ele tenha sido visto por muitos como comunista stalinista, ele nunca o foi, em nenhum aspecto. Ele só atuou nesse organismo porque se tratava de um espaço que considerava o único por meio do qual se poderia efetivamente fazer alguma coisa, e eu creio que, passados todos esses anos, ele não se enganou e percebeu cla-ramente, como Rago frisou, os erros teóricos. A aproximação com Caio Prado e o grupo da Brasiliense se deu justamente em função da precariedade, da mediocridade teórica que caracterizava o Partido aqui no Brasil. Isso sempre foi um problema para Chasin. Naquela época, a esquerda tinha um programa, mas era um programa que foi construído em bases teóricas totalmente equivocadas. Era algo que estava claro na cabeça daquele estudante, ele sabia, ele constatava a mediocridade, a fraqueza e a debilidade teóricas; para ele isso sempre foi um problema, sempre foi algo que ele queria mudar. Queria, de alguma forma, contribuir para que a esquerda, no Brasil, produzisse teoricamente algo rigoroso, para que a esquerda pudesse ler a realidade de forma rigorosa e identifi car na realidade as possibilidades de transformação. En-tão, desde estudante, isso estava absolutamente claro. Em dezembro de 1963 ele di-zia que o golpe estava sendo articulado. Ele procurou diversas pessoas, foi até ridicu-larizado: “Como você, um jovem, vem dizer que vai acontecer isto ou aquilo? Você está delirando”. O primeiro fi lho dele já havia nascido, em outubro de 1962. Hannah havia abandonado a faculdade por causa do nascimento do primeiro fi lho… Eles moravam num prédio que ainda existe, na Martinho Prado, em frente à sinagoga. Existia embaixo um bar, chamado Ferro’s Bar, eu não sei se existe ainda. Chegado o golpe, há esse episódio na faculdade de São José do Rio Preto... eles tiveram de tirar rapidamente todos os documentos que haviam colocado na secretaria da faculdade, a partir dos quais eles iam ser contratados, para que não fossem presos, Maurício [Tragtenberg] e ele… Eles começaram a pegar tudo quanto é documento e jogar e queimar no vaso sanitário, até que o vaso sanitário explodiu! Logo em seguida, eles começaram a mudar – Chasin, a mulher, Hannah, e a criança pequena, Ibaney, mudando de casa para não serem localizados, para não serem pegos e aprisionados. Eles rodaram bastante. Chasin fi cou desempregado por um longo período, vivendo graças a contribuições da família. Foi um período difi cílimo. Ele não chegou a ser preso ou torturado, mas… o golpe de 64, para a geração dele, foi uma ruptura, foi um corte, foi o fi nal de um projeto. Em 64 nasce o segundo fi lho dele, prematuro, evidentemente por conta do sofrimento todo, de todos esses problemas que a mãe teve e, então, emocionalmente atingida, fi sicamente atingida, ele dá à luz um menino aos seis meses de gestação.

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Rago: Nesse quadro complicado, Chasin mantém a consigna de “manter a lu-cidez” como ato revolucionário. Dedica-se à tarefa de estudar e pesquisar como nunca. Mas, ao mesmo tempo, ele tinha que trabalhar em empresa para garantir uma situação fi nanceira para a família, pois, para ele, qualquer necessidade humana que afetasse um dos seus exigia sua dedicação exclusiva e integral. E esta dedicação o obrigou a atuar em um campo completamente hostil a tudo aquilo que ele gostaria de ter realizado. Assim também foi a história de Marx: Marx queria ser professor de fi losofi a, queria dar aulas, mas foi impedido pela vida. E Chasin também foi impedido pelo golpe de 1964, pois o convite de Maurício Tragtenberg não pôde ser cumprido e houve a intervenção dos conspiradores na Faculdade de Filosofi a, já no primeiro dia de abril de 1964. Em conseqüência disso ele foi buscar outros espaços para sobrevivência. Tem até uma história curiosa que Chasin me contou, que foi a inovação das embalagens dos remédios. Ele inovou a venda de compri-midos… Sabe o comprimido Cibalena, que você compra em conjunto de quatro? Foi Chasin que criou isso no Brasil. Criou a cartela de comprimidos. E isso lhe permitiu comprar seus livros. Enfi m, com esse ideal de manter a lucidez, de estudar sem trégua, acabou por criar uma grande biblioteca. Ele tinha a história completa da esquerda, história da América Latina, história européia, fi losofi a, história da arte, tudo o que você possa imaginar. E em várias edições. E não era uma pessoa que só lia na língua portuguesa, mas ele garimpava a todo instante, qualquer obra inédita, recém-lançada, falando de Marx, Lênin ou do próprio Lukács, ele ia atrás. E é des-se empenho que nasce a Senzala17. Porque a Senzala, para quem não sabe, é uma editora e Chasin em 1967 publica Marxismo ou Existencialismo, de Lukács, com tradu-ção de José Carlos Bruni. Ele fez o prefácio do livro e a Senzala publicou também Baby Jean sobre a China, o próprio Maurício Tragtenberg e o romancista Marcos Rey. Seria necessário, por isso, fazer uma rápida história da Editora Senzala. Quer dizer, as pessoas pouco falam disso, porque desconhecem. As que sabem ocultam...

17. Editora dirigida por José e Jacques Chasin, que publicou: As Grandes Divergências do Mundo Co-munista, em que Baby Jean discutia as divergências sino-soviéticas a partir de meados dos anos 50; Marxismo ou Existencialismo, de G. Lukács; Não Podemos Esperar, de Martin Luther King; Planifi cação: desafi o do século XX, de Maurício Tragtenberg; Hai-Kais, de Millôr Fernandes; Navalha na Carne, de Plínio Marcos; Psicanálise do Anti-Semitismo, de Rodolphe Loewenstein, além de livros sobre a questão negra, da mulher e outros.

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Capa do Livro Existêncialismo ou Marxismo de Georg Lukács com introdução e tradução de José Carlos Bruni.Publicado em 1867 pela editora Senzala.

Veja, Caio Navarro de Toledo fez uma resenha do livro organizado por Sérgio Lessa e Maria Orlanda Pinassi18 sobre aquelas entrevistas de Carlos Nelson Coutinho com Leandro Konder. E ele fala: “Que absurdo, vocês não citam a Revista Temas19, vocês não citam a Ensaio, não citam Chasin”. Vejam, Caio Navarro, uma pessoa distante de nós, mas com a coerência de apontar: “Vocês não deram o tratamento devido”. E ninguém fala disso. Assim como eles citam a autobiografi a de Lukács20, que foi preparada por Chasin, antes de vir a falecer, publicada pela Ad Hominem, editora pensada por ele para dar continuidade à Ensaio, com a Universidade Federal de Vi-çosa; eles não mencionam como surgiu, quem propôs, a importância da publicação do último trabalho de Lukács e como surgiu toda essa história. Então, Chasin fi ca nulo nesse processo atual. Porque o livro é de agora, desse século. Voltando, então, ao século passado, para ressaltar a importância daquele momento. Por que fazer a Senzala? Chasin dava prosseguimento à sua linha de “manter a lucidez”, dedicando-

18. Trata-se de Lukács e a Atualidade do Marxismo, publicado pela Boitempo Editorial em 2002, organizado por Maria Orlanda Pinassi e Sérgio Lessa. Entre outros textos, está ali coligida a cor-respondência de Lukács com Carlos Nelson Coutinho e Leandro Konder entre 1961 e 1970. A resenha de Caio Navarro de Toledo mencionada pelo entrevistado está disponível em: <http://www.unicamp.br/cemarx/criticamarxista/resenhatoledo.pdf>.19. Revista Temas de Ciências Humanas, publicada entre 1977 e 1981, primeiro pela Grijalbo, depois pela Livraria Editora de Ciências Humanas. Retoma-se o histórico da revista mais à frente.20. LUKÁCS, G. Conversando com Lukács. Autobiografi a em Diálogo. Santo André, Ad Hominem/Universidade Federal de Viçosa, 1999.

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se a publicações fundamentais para o debate da esquerda, já no período de con-solidação da dominação autocrático-burguesa em nosso país. Diante da carência teórica, é necessário que essa esquerda mude, na ditadura, e a Senzala foi um eforço considerável de Chasin nesse sentido. Ele não dormia à noite, para estudar, e depois descansava muito pouco. Então, Chasin foi criando um hábito de leituras sistemáti-cas sobre vários assuntos. Ele era muito focado nos seus temas, praticava a análise imanente às últimas conseqüências, e ele tratava desde uma questão brasileira, uma questão teórica, questões de várias ordens que faziam com que ele trabalhasse num sentido múltiplo de pesquisa...

Ester: Só para reforçar o argumento de Rago. Ele era alguém da área de fi loso-fi a, mas que destoava completamente de todo e qualquer professor de fi losofi a. Quer dizer, ele tinha uma formação fi losófi ca densa, mas, simultaneamente, um olhar vol-tado para a realidade brasileira. Então, ele era capaz de fazer ciência e fi losofi a ao mesmo tempo, o que é absolutamente original, inédito, porque normalmente nós temos uma coisa ou outra – ou nem uma coisa nem outra. O mais comum é nem uma coisa nem outra...

Rago: Então, nesse sentido, ele tem já em mira infl uir com edições de livros e revistas, suprir essa carência. Disso, mais adiante, resultará em seu projeto da Temas e da Ensaio. Isso longe de concordâncias plenas, mas para fomentar a polêmica. E aí tem também um traço em Chasin, e isso para mim fi cou muito evidente quando a gente criou a Ensaio, quando ele veio com a proposta da [revista] Ensaio e, particu-larmente, com a publicação de um texto de Lênin – “Carta a um Camarada”21. Com essa proposta, não apenas fi cava claro o conhecimento que ele tinha das obras de Lê-nin , mas também como ele assimilou um traço do pensamento leniniano: o papel de jornais e revistas como instrumento de luta e organização. Agora, vejam só, basta pe-gar o Partido dos Trabalhadores, que nunca teve um jornal que fosse orientador. Ele pode ter revistas, mas aí é um suplemento literário, não é um elemento de polêmica. E Chasin tinha como exemplo a Iskra quando foi criada a Revista Temas de Ciências Humanas em 1977. Chasin sabia da importância de uma revista, da importância de acolher a polêmica no seio de uma revista. Ele sempre procurou criar instrumentos para problematizar, e – não só isso – também mobilizar e organizar , ao contrário do que é muito difundido por seus detratores, isto é, que Chasin queria criar uma revista que seguise apenas uma linha: a dele. Foi justamente o contrário que aconteceu em todas as suas tentativas de criar um instrumento de debate e polêmica! Além disso, Chasin teve uma característica muito marcante na sua pessoalidade, que é essa dire-triz de pensar o mundo permanentemente. Ele não é o intelectual que pensava, por

21. LÊNIN. “Carta a um Camarada”. Revista Nova Escrita/Ensaio. São Paulo, Escrita, ano IV, n. 8, pp. pp. 111-33, 1981.

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exemplo, o marxismo voltado apenas para questões sociais, econômicas e políticas, mas também para a vida pessoal. Ou seja, ele não separava as duas facetas, vida pri-vada de um lado e vida pública, de outro. A construção do caráter se dá no processo da vida. Chasin diferenciava instrução de educação, porque a educação se põe no processo de vida, não se resume à apreensão de conhecimentos na universidade. É o espírito da educação humanista e radical. O autorevolucionamento permanente implicava uma luta cotidiana. Não é o fato de se apossar da teoria marxiana que livra o indivíduo das mazelas do mundo. Chasin brincava dizendo que ninguém es-capava das contradições da via colonial. Ou seja, ter consciência revolucionária não suspende a deteminação social dos indivíduos, de sua vida e seu pensamento. Essa dimensão, Chasin a põe como roteiro de vida. A Editora Senzala já era este embrião, de infl uir e de formar, mas só quando ele vai para a [Escola de] Sociologia e Política é que ele vai ter a possibilidade, aí sim, de disseminar aquilo que já era o resultado anterior.

Ester: Agora, lembrando que, no caso de Marx, um grande momento de atua-ção política dele – que a gente sabe que foram raros, que foram poucos, embora todo mundo tenha a visão de um Marx militante nas 24 horas do dia, o que é inverídico, completamente inverídico – foi a Nova Gazeta Renana, de 1848. Foi o modo pelo qual Marx pensou e interveio na Revolução de 48 na Alemanha – foi por intermédio de um jornal. Isso estava muito claro para Chasin, reforçando essa idéia que Rago colocou. Tomando como parâmetros o próprio Marx e Lênin, a existência de um órgão jornalístico... Não foi por acaso que a gente publicou “Carta ao Camarada” de Lênin, exatamente porque Lênin concebeu o Comitê Central (CC), de um lado, e o Órgão Central (OC), de outro, este último como órgão de divulgação, de elaboração teórica e como meio de intervir, mobilizar e conscientizar na luta, e era mais uma di-mensão que estava presente em Chasin. Isso na década de 60. Quem trabalhou com ele naquela pioneira editora: Hannah, a esposa, um sócio cujo nome eu não me lem-bro, que rapidamente saiu, e o irmão Jaques ajudando nessa editora que, por razões óbvias, não se sustentou, mas que foi um primeiro ensaio, um primeiro embrião, que ganhará novo corpo quando Chasin voltar de Moçambique.

Vânia: Ester, já que estamos falando em atuação política, eu gostaria que você recuperasse a questão da candidatura de Chasin nesse processo. Ele foi candidato a deputado, não é isso?

Ester: Sim. A candidatura em 1970 foi algo de que ele próprio se arrependeu profundamente. Em 1970, ele tinha 33 anos. Ele foi procurado, à época, por pessoas que haviam participado do PCB ou que tinham alguma ligação com o Partido: “Olha, a gente precisa de um candidato...”. E Chasin considerava: “Bom. Deputado estadu-

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al, eu não quero. Quer dizer, se é para se candidatar a alguma coisa, é para deputado federal, porque é ali que as questões decisivas passam.” Um segmento do Partido, na época, prometeu que o apoiaria, mas, no fi m, não apoiou; fi zeram com ele a mesma coisa que, mais tarde, fi zeram com Resk22. Resk acabou se elegendo, porque a gente o apoiou. Então, a mesma coisa, na hora H, não apoiaram Chasin... Goldmann foi eleito. E foi um momento em que os setores de esquerda propagavam o voto nulo E mesmo assim... Eu não me lembro exatamente, mas acho que Chasin teve 3 mil, 4 mil votos... E não foi uma coisa tão ruim. E a plataforma dele era pelo desenvolvimento do mercado interno; pela educação... Mas de imediato ele percebeu que tinham puxado o tapete dele. E ele se arrependeu, inclusive, de tentar ser candidato.

Rago: Eu queria ainda continuar os comentários sobre o livro Marxismo ou Exis-tencialismo, porque se trata de um momento em que Chasin escreve para Lukács, pois pretendia publicar História e Consciência de Classe23. Todavia, Lukács não autorizou, explicando que era um livro com o qual não mais se identifi cava. Lukács responde para Chasin comentando que queria que História e Consciência de Classe fosse publica-do com um prefácio em que faria alguns apontamentos corretivos. Chasin espera, então, Lukács escrever o prefácio. É bom esclarecer isso muito bem, porque circulou entre os lukacsianos no Brasil a notícia de que havia um oportunista que pretendia publicar o livro sem o prefácio, à revelia de Lukács. Não sei se falam de Chasin, mas, se assim for, isso é completamente falso, pois eu mesmo fi z a leitura da carta.

Ester: E a Senzala, que, infelizmente, vai à falência... Havia funcionado entre 1966, 1967, 1968... Publicou livros de Plínio Marcos – A Navalha na Carne –, de Mar-cos Rey, Hai-Kais de Millôr Fernandes, livro de Maurício Tragtenberg – publicou vá-rios títulos. Chasin também criou um jornal, chamado Jornal da Senzala, que traz, em seu único número – parece os Anais Franco-Alemães –, no seu único número, de janei-ro de 1968, uma entrevista, justamente, com Caio Prado. E um artigo que Florestan Fernandes havia escrito em 1965 para a Brasiliense, mas que havia fi cado inédito por causa da proibição da Revista, “O Problema da Universidade”, republicado como o primeiro capítulo do livro Universidade Brasileira: reforma ou revolução?, de 1975.

Vânia: Nesse período, ele se dedicou integralmente, profi ssionalmente à Senzala?

Ester: Houve um período em que ele abandonou tudo para se dedicar profi ssio-nalmente à Senzala, depois não deu certo e ele teve de voltar a trabalhar em indústria

22. Antonio Resk (1933-2005), jornalista e político, teve participação ativa nos movimentos sociais durante a ditadura militar. Foi membro do MDB e do PCB e vice-presidente do Instituto Astrojil-do Pereira, além de membro do Conselho Editorial da Revista Novos Rumos.23. Obra de Georg Lukács publicada originalmente em 1936, que teve enorme impacto e foi obje-to de grande polêmica, tendo em vista os apontamentos críticos feitos pelo próprio autor.

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farmacêutica. Ele entrou para a Ciba Geigy, na qual fi cou responsável pela área de publicidade; e como publicitário é meio esquisitão, ele usou cabelo comprido, camiseta, não tinha horário de trabalho certo e fez questão de aparecer como pubi-citario “doidão” para fazer seu próprio horário e conseguir tempo para estudar, sem precisar permanecer na empresa por oito horas. Durante o dia, ou parte do dia, ele trabalhava e criou peças publicitárias importantes. Ele tinha um gosto para isso, que acabou se revelando depois, na forma como a Ensaio trabalhava, essa coisa de usar papel pólen, meio amarelado, que depois outros editoras usaram, a mancha [a dis-tribuição do texto numa página], o cuidado com a diagramação interna, com a capa etc. Todo esse talento, esse know-how que ele desenvolveu na área de publicidade, acabou sendo aproveitado para o caso da Ensaio. Mas é importante, então, ressaltar que ele vai para a Ciba Geigy e trabalha nesta empresa por 15 anos. Não sei como ele agüentou, mas ele conseguiu isso, e, mais uma vez, quero ressaltar que todo o dinheiro que ele ganhou foi para comprar livros, foi para fi nanciar a pesquisa sobre Plínio Salgado e o integralismo...

Vânia: Eu só queria entender bem como foi esse período em que ele trabalhou na empresa.

Ester: Foi terrível, avassalador... Essa “vida dupla” – essa expressão é dele –, essa vida dupla que ele levava foi uma coisa, assim, terrível. Gerava um mal-estar, uma frustração terrível.

Vânia: Mas, ao mesmo tempo, ele era um profi ssional e seguia determinados padrões. Ou seja, ele se dispunha a ser um bom profi ssional naquilo que estava fazendo.

Ester: Pois é. Até que chegou a um ponto, e isso acontece em qualquer multi-nacional... Quando certo padrão de executivo chega a um determinado nível, ele é convidado a ir para a matriz, no caso era na Basiléia, na Suíça, para depois assumir a superintendência em outro país. Ele se negou... Ele não queria sair do Brasil. Por-que, dizia: “O meu lugar é aqui, é aqui que eu tenho de trabalhar, que eu tenho de estudar... Eu tenho de contribuir para a – digamos entre aspas –, para a ‘revolução brasileira’, eu tenho que contribuir para o entendimento teórico desse país, eu não quero sair”. Ele deu lá uma resposta dizendo que a sogra, ou mãe, que alguém estava doente, mas, evidentemente, não colou essa desculpa e fi cou claro que, afi nal de con-tas, Chasin não “vestia a camisa” da empresa. Foi bom porque ele pediu demissão, ele sentiu que realmente iam mandá-lo embora, mais cedo ou mais tarde, exatamente porque ele tinha se negado a ir para a Suíça, e durante um ano ele viveu com o Fundo de Garantia [do Tempo de Serviço], para terminar a tese de doutorado, que foi sobre Plínio Salgado. Isso porque um tema fundamental para Chasin, para a compreensão

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da dinâmica das classes no Brasil, era exatamente entender o que foi o pensamento conservador. Ele o fez fundamentado naquilo que Lukács, na Destruição da Razão, dizia que era o tripé metodológico: a análise imanente e da determinação social do pensamento pela análise da gênese e da função social. Ele procurou seguir esses três pontos na tese de doutorado, o que o fez fi car acordado durante as madrugadas ao longo de vários anos, porque ele escreveu ainda no regime antigo, ou seja, antes da criação do atual regime de pós-graduação, no qual o indivíduo faz uma seleção, tem de fazer créditos etc. Ele se inscreveu no Conselho Estadual de Educação para de-fender na Escola de Sociologia e Política. Era o modo como antigamente se defendia uma tese: você solicitava à congregação de uma faculdade para se matricular e para esta congregação compor uma banca e nomear o orientador, pois não havia cursos de pós-graduação como os de hoje. Ele se inscreveu no sistema antigo e, durante anos a fi o, à própria custa, como diz na apresentação do livro, ele coletou jornais, trabalhos escritos, ele pegou toda a obra escrita, todos os discursos de Plínio Salgado como deputado, todos os romances... E ele só pôde contemplar do tripé a análise imanente, e mesmo assim o trabalho se transformou em um volume imenso, porque ele tinha, a todo preço, a todo custo, de mostrar como o discurso integralista tinha características completamente diferentes do nazi-fascista. Ele tinha de demonstrar, tinha de provar que eram dois fenômenos ideológicos distintos, apesar das seme-lhanças no plano aparente. Isso não signifi ca, como ele mesmo fez questão de escla-recer nas primeiras páginas da tese, que o integralismo era mais positivo! Isso é uma grande besteira ventilada por certos leitores mal-intencionados. Ele provou que, em termos ideológicos, o integralismo era mais regressivo que o nazi-fascismo! Então, a tese ganhou um tamanho gigantesco, Cruz Costa até fez uma piada – Chasin fez questão de levar a tese pessoalmente, Cruz Costa já estava doente... Como sempre, este, mesmo doente, fazia piada: “Chasin me trouxe a tese, mas eu não posso fazer a leitura do volume deitado...”. De tão imensa que ela era. Na época, tinha de datilo-grafar, não tinha computador... Teve mil e não sei quantas páginas...

Rago: A tese tem dois volumes, dois catataus que estão dispostos no Arquivo do Estado e na USP também. Eu queria comentar, e é uma coisa muito interessan-te, que, mesmo seguindo aquilo que Chasin chamava à época de ontometodologia da história (depois ele abandona esse termo, mas há pessoas que até hoje falam dessa construção que ele usava), o que eu acho importante é que nós somos formados por Chasin inteiramente, em história, fi losofi a, nas análises críticas de outros auto-res... Além disso, Chasin insistia na idéia de iniciar o processo da compreensão do pensamento conservador, mas indo até o limite da análise imanente, coisa que Lukács não teve como fazer no livro A Destruição da Razão. Chasin sempre pensou essa

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pesquisa como um processo coletivo. Seriam várias monografi as, que incluíam Gus-tavo Barroso, Miguel Reale, Olbiano de Melo, Severino Sombra, entre outros. Quer dizer, só se poderia multiplicar esse tratamento indo até à saturação, para daí, sim, efetuar a síntese do movimento e suas concepções, visões de mundo. Existiam inte-gralismos... Observem os novos livros sobre a AIB e o fenômeno do integralismo: eles continuam na ladainha da análise convencional, segundo a qual esse fenômeno é uma imitação, uma cópia, um recurso mimético: já que as condições históricas não permitiram fl uir o fascismo e nazismo como na Europa, os integralistas recorreram a empréstimos ideológicos, tendo como suposto a noção de “idéia fora de lugar”, então o fenômeno se deu no Brasil por via da mera imitação. E era precisamente o que Chasin contestava: “Ora, se isso é verdade, que mostrem pela imanência de sua entifi cação histórica.” Chasin, ao contrário, em sua pesquisa, pratica a análise imanente, coisa que, aliás, nós demoramos muito tempo para entender como fazer... Na ver-

Edição póstuma da tese de doutorado de J. Chasin.

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dade, é aquela idéia de Marx já explícita em 1843, que compreender signifi ca captar “a lógica específi ca do objeto específi co”24. Por isso é que Chasin nunca separou a análise imanente da determinação social e da função social do pensamento na aná-lise das ideologias. Tanto é que, no caso da pesquisa sobre o integralismo de Plínio Salgado, ele extrai a perpectiva social do pequeno proprietário rural que se volta para um mundo utópico. As dimensões de regressividade, de um anticapitalismo romântico, Chasin vai evidenciá-las por dentro da obra, e não como aplicação de um modelo, de uma teoria pré-fabricada. Ou seja, Chasin extrai essas características do discurso ideológico pliniano, da própria lógica concreta do objeto. Essa é uma dimensão da pesquisa que ele fez, passo a passo, com muito rigor, colado aos textos de Salgado. Posteriormente, Hélgio Trindade25 foi dizer que Chasin leu só alguns trechinhos para tirar uma idéia fora do lugar.

Ester: A reação negativa despropositada de Hélgio ocorreu também porque Chasin foi para o Rio Grande do Sul conversar com ele a respeito do integralismo, que Hélgio já havia pesquisado, e este deu acesso às fontes que tinha. E depois Hélgio fi cou muito irritado e levou a discordância teórica para o campo pessoal, de forma completamente descabida. Isso é um absurdo e eu acho que esta é uma opor-tunidade também para esclarecer.

Rago: De fato, Hélgio Trindade escreve que Chasin leu o Plínio [Salgado] pós-integralismo e, portanto, que teria feito uma leitura falsa, anacrônica. Isso é completa-mente falso, porque Chasin contemplou todo o discurso de Salgado, o conjunto de seus escritos, não uma pequena porção deles, e chegou a encontrar uma bibliografi a específi ca: o primeiro livro alemão, escrito da ótica nazista, criticando o integralis-mo! Trata-se de um livro no qual o nazismo reivindica do integralismo o elemento rácico, denuncia a ausência do racismo em Plínio Salgado! E, vejam, Chasin, na análise do texto, havia já identifi cado a ausência desse racismo e, a partir desta e de outras ca-racterísticas, mostrou as diferenças entre o discurso pliniano e o nazi-fascista. Chasin sempre ponderou... Não se pode usar uma teoria como passaporte universal. A con-cepção está em Marx: “Portanto, eventos de chocante analogia, mas se passando em millieu (meios) históricos diferentes, levaram a resultados bem diferentes.” Ou seja, não se pode usar uma teoria supra-histórica, como passaporte universal para se ex-plicar realidades distintas, sem mais, como modelo! Deve-se partir, obviamente, das

24. Trata-se de citação da Crítica da Filosofi a do Direito de Hegel, escrito por Marx em 1843, texto de transição para seu período propriamente marxiano.25. Hélgio Henrique Casses Trindade (*1939), cientista político, estudou o integralismo e foi reitor da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (1992-96). Foi também o primeiro presi-dente da Comissão Nacional de Avaliação da Educação Superior (Conaes), órgão do Ministério da Educação que desde 2003 tem a prerrogativa de supervisionar a avaliação do ensino superior. Atualmente, é membro do Conselho Nacional de Educação.

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realidades específi cas e concretas, e aí sim vale o momento comparativo. Comparar, diz Chasin, é próprio do conhecimento. Agora, Chasin praticava (e isso se torna muito claro na teoria das abstrações, que ele extrai de Marx) essa intensifi cação ontológica. Chasin levava em conta fundamentalmente a dimensão histórica e assim chegou às conclusões de sua pesquisa. Quer dizer, no integralismo não há o elemento rácico que há no nazismo e não há o expansionismo imperialista.

Ester: Imperialista mobilizador para a guerra...

Rago: Isso mesmo! Chasin dizia: “O nazismo é uma ideologia de mobilização para a guerra. É um imperialismo...”. Tem também um caráter nacionalista. Mas, cui-dadoso, acrescentava: “Existem muitas formas de ser nacionalista”. Nacionalismo não é um molde, um tipo ideal que se aplica de modo indiscriminado a realidades concretas diferentes, coisa que caracteriza o procedimento usual. Quando estudei [Gustavo] Barroso26, fi cou inteiramente provado que Chasin tinha toda razão, por-que há essa dimensão regressiva e não o elemento rácico mobilizador para anexações, para a busca do espaço vital. Por isso, acho que Chasin abre e faz uma revolução teórica nos estudos sobre ideologia.

Vânia: Nesse processo de tentar suprir as carências da esquerda é que se insere a Revista Temas de Ciências Humanas? Como se deu a criação dela?

Revista Temas de Ciências Humanas nº 7

26. Dissertação de Mestrado em História defendida na PUC-SP em 1989, intitulada A Crítica Ro-mântica à Miséria Brasileira: O Integralismo de Gustavo Barroso. Gustavo Barroso (1888-1959) foi um dos ideólogos do movimento integralista e redator do Jornal do Commércio.

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Rago: O primeiro número da Temas saiu em 1977. O grupo que coordenava a revista era composto por Chasin, Werneck Sodré, que estava no Rio, Marco Aurélio Nogueira e Gildo Marçal Brandão, que foram professores da Escola de Sociologia e Política. Mais tarde esses dois últimos demonstraram um comportamento altamente reprovável. Mas o que importa nesse momento é que, quando a Revista Temas é cria-da, Chasin se propõe a chamar para dentro dela os lukacsianos que estavam no exílio em vários países: Leandro Konder estava na Alemanha, Carlos Nelson Coutinho na Itália, e José Paulo Netto em Portugal. Chasin recebeu, já em Moçambique, uma carta de José Paulo Netto elogiando a sua obra sobre O Integralismo de Plínio Salgado, falando que aquela era a maior obra que ele tinha visto de análise marxista no Brasil sobre ideologia etc. Citei o caso da Revista Temas, em primeiro lugar, para indicar a ação agregadora que caracterizou sempre a atuação do Chasin, em qualquer nível em que ele tenha se dado, e em segundo para mostrar esses dois aspectos. Chasin vai à raiz, na análise imanente, e compreende que deve orientar outras pessoas a fazerem o mesmo. Isso quer dizer: ele não dava como completa a análise do integralismo e achava que outros pesquisadores deveriam levar adiante outras pesquisas para en-tender mais profundamente a ideologia burguesa no Brasil. Guardadas as devidas proporções, Chasin já propunha fazer com a ideologia nascida da miséria brasileira aquilo que Marx fez com a ideologia alemã. Aqui a referência também é Marx: a miséria alemã.

Lúcia: Quando Chasin começou a lecionar na Escola de Sociologia e Política?

Ester: Chasin começou a lecionar no início da década de 1970. A Escola de Sociologia e Política era um anexo à USP, era um casarão, na Rua General Jardim... E Chasin lecionava lá na segunda à noite e no sábado à tarde. Era para o primeiro e quarto anos... Por alguma razão que desconheço, a Escola de Sociologia e Política fi cou fora da atenção dos órgãos de repressão, durante certo período. Depois, como veremos, essa situação privilegiada se inverteu, pois a ESP acabou por se tornar um palco de disputas acirradas, em que a repressão intervém. Mas, de início, ali havia, além desse ponto para o qual Rago está chamando a atenção, um clima de discussão, um clima de liberdade que a USP não conhecia naqueles tempos sombrios... Eu fi z a graduação em Ciências Sociais na USP e os estudantes desconfi avam que até o pipoqueiro era agente do Dops!!! Na Escola de Sociologia e Política, ao contrário, havia festas onde rolava de tudo, havia debates em que podia falar o que se bem en-tendesse, porque até aquele momento a repressão não tinha percebido o que estava acontecendo ali...

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Vânia: Quem mais estava na ESP naquele momento?

Rago: Quando eu entrei na Sociologia e Política, já sabia da fama de seus in-telectuais. Porque lá estavam Chasin, Maurício Tragtenberg, Moniz Bandeira e uma série de outros professores que, de um modo ou de outro, defendiam claramente suas posições. Um era adorniano, defendia a Escola de Frankfurt até à raiz; o outro era gramsciano, o outro era trotskista e assim por diante... E Chasin, no primeiro ano – acreditem ou não – não iniciava o curso com o pensamento de Marx. Ele abria o curso com Sócrates, com A Apologia de Sócrates, para comentar o problema da liberdade do indivíduo e da condenação dessa mesma liberdade. As aulas de Chasin eram muito marcantes. Por exemplo: ele indicava um texto. Nós líamos e ele rodava a classe para saber de nossa leitura, comentava o texto e nossas interpretações, as nos-sas versões. E era muito engraçado, porque você falava tal coisa, o outro falava outra coisa e Chasin ia amarrando e falava: “Olha, a posição de fulano é mais próxima de Demócrito, porque ele acredita que o mecanismo...”. E a gente exclamava: “De onde ele tirou isso??”. “A posição de fulano é aristotélica, porque...” Então, era muito en-graçado, porque ele não era o professor comum, que dava a matéria e ia embora. Ele fazia a gente pensar. Então, uma característica de suas aulas era essa capacidade que ele possuía de fazer a gente pensar...

Vânia: Que disciplina ele ministrava?

Rago: No primeiro ano, metodologia e no quarto, fi losofi a social, disciplinas que introduziam a Ontologia do Ser Social de Lukács, as posições ontológicas de Marx. Geralmente, a sala dele era superlotada. Não só por nós, mas também por pessoas que eram convidadas, e mesmo pelos temas que ele desenvolvia...

Ester: Eu, por exemplo...

Vânia: Então, você não foi aluna regular de Chasin?

Ester: Não, eu estudava na USP. Fui convidada para ouvir as aulas de Chasin.

Rago: E Carlos Eduardo Berriel convidou Ricardo Antunes, que fazia FGV27. Havia também o pessoal do primeiro ano, mas que também freqüentava as aulas do quarto ano...

Ester: E a sala era pequena.

Rago: Era muito pequena, então, aquilo transbordava de gente... De pessoas que vinham de fora, porque já se colocava o alto nível de suas aulas, o domínio que

27. Fundação Getúlio Vargas.

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ele tinha em certas questões para as quais não encontrávamos respostas em outros intelectuais.

Ester: Eu tenho essas aulas preparadas dele, até hoje, em um pequeno fi chário.

Rago: Isso eu nem posso imaginar, mas só para ver se isso bate com o que você tem em mãos... Chasin, por exemplo, fazia crítica daquilo que estava em voga.

Ester: Exato.

Rago: Uma teoria que estava em voga naquele momento era a de Reich28. A Função do Orgasmo etc., pegava a garotada inteira. Tinha até um tratamento psicológi-co reichiano, em São Paulo. As pessoas colocavam uma máscara e um maiô elástico, e fi cavam se tocando... Como se isso liberasse a humanidade... E Chasin criticava duramente. Havia um setor reichiano na Escola de Sociologia e Política que fi cava visceralmente ofendido... Como alguém tem a coragem de falar de Reich nesses termos? Como alguém se atreve a denunciar os limites de Adorno? Então, era uma verdadeira guerra! Porque os outros professores também criticavam aquilo que Cha-sin falava. Desde essa época – eu entrei em 1973, após deixar a Faus, Faculdade de Arquitetura e Urbanismo de Santos –, ele já fazia a crítica do populismo. Então, foi por esse período a primeira vez que eu ouvi que o populismo era um modelo, de talhe weberiano, de extração liberal-democrática, um tipo ideal que nascera de necessidades na Europa e que os nossos sociólogos uspianos, incluindo Francisco Weffort, assi-milam de Gino Germani, Torcuato di Tella, na Flacso [Faculdade Latino Americana de Ciências Sociais], no Chile, e que se dissemina num Brasil muito empolgado com a sociologia da modernização, acabando por aplicar essa teoria aqui no Brasil. E Chasin já questionava o núcleo da sociologia da modernização de Gino Germani e Tor-cuato di Tella. Além disso, no período da ditadura militar, vão se tornando moeda corrente a teoria do populismo e a teoria da dependência de Fernando Henrique Cardoso e Enzo Faletto. Chasin, desde aquela época, situa a falsidade dessa analítica: a questão do “vácuo político”, das “atimanhas da burguesia”, dos conceitos de elite/massa substituindo as categorias ontológicas de classe e dominação de classe, e assim vai... A primeira crítica que Chasin fez a FHC, o “príncipe da sociologia”, como era ape-lidado, na sala de aula, os alunos e alunas se revoltaram, dizendo: “Esse cara é um marxista, professor, esse cara é um socialista”. Chasin respondeu: “tudo bem, mas vamos mostrar o ecletismo metodológico, o viés social-democrata, a tipologicização, que estão presentes nos textos de Cardoso”. Essa postura, esse rigor marcaram muito os alunos Na época, havia um grupo de alunos chamado Práxis. Eu nunca pertenci ao Práxis.. Mas o pessoal do Práxis me considerava próximo, porque eu criticava todo

28. Wilhelm Reich (1897-1957), psiquiatra e psicanalistra áustro-americano.

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professor que não fosse marxista ou que não estivesse próximo daquilo que Chasin ensinava. De minha parte, entretanto, nunca me atrevi a procurá-lo, a não ser mais para o fi nal do curso...

Vânia: Então, na época que era estudante você nunca teve nenhum contato pessoal com o Chasin e a família?

Rago: Sim, tive... Uma vez nos encontramos em um restaurante italiano no Bi-xiga que eu frequentava com minha família. Timidamente me dirigi à mesa em que ele estava sentado com a família e começamos a conversar. Foram vários os assuntos e acabei dizendo que era músico, que tocava violão. Ao saber disso, Chasin e Hanna me convidaram para dar aulas de violão para o fi lho mais velho, então adolescente, Ibaney. Vocês sabem que hoje Ibaney é um profundo conhecedor da música de Monteverdi, do Renascimento, do Iluminismo, além de regente, um formulador de estética musical. Assim, ao freqüentar sua casa tomei conhecimento de seus gostos musicais, por exemplo, Astor Piazzolla29. E, assim, percebi que tínhamos gostos em comum. Além disso, constatei que era alguém que dominava e gostava não só de boa música, mas de boa literatura também. Tudo isso fez com que eu viesse a admirar Chasin. Mas, fundamentalmente, após da morte de Herzog e, depois, no ano seguin-te, de Manuel Filho30, em 1976, já se colocava para nós a necessidade de militância, quando Chasin conversa com a gente, mostrando que a esquerda estava fragmentada e a gente teria que organizar alguma coisa... Chasin já criticava o politicismo das esquerdas, que separava a luta política da base material da vida. A esquerda não ques-tionava a plataforma econômica da ditadura militar. Nesse sentido, Chasin acreditava que, se levássemos a discussão de um programa econômico alternativo para o seio de movimento operário, da independência ideológica para a classe trabalhadora, se aproximássemos as esquerdas divididas – pensava, inclusive num fórum de esquer-das –, se nos atássemos aos movimentos sociais, poderíamos colocar uma cunha, ainda que pequena, na luta contra a ditadura militar e seu projeto de auto-reforma. A gente se empolgou em estar em contato com operários, em estar na militância. Com todos os riscos que a militância continha. Porque havia muitos infi ltrados nos movimentos de esquerda...

Ester: Era comum na época.

Rago: Era comum, dada a debilidade da própria esquerda. Tanto é que na So-

29. Astor Pantaleón Piazzolla (1921-1992), músico argentino, compositor de tango mais impor-tante da segunda metade do século XX, 30. Manuel Fiel Filho (1927-1976), metalúrgico morto por tortura pela ditadura militar, sob acu-sação de pertencer ao Partido Comunsita.Sua morte provocou o afastamento do general Ednardo D’Ávila Melo do comando do III Exército.

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ciologia e Política, por exemplo, você tinha na cúpula da diretoria Vicente Unzer de Almeida. Você tinha esse aluno, Luiz Brum, se não me falha a memória, e outras pessoas que também representaram um papel de direita, de extrema-direita. Veja o caso do Nelson Brissac, um intelectual que trabalha com o pensamento de Jean Bau-drillard, com essa questão do irracionalismo pós-moderno. Este jovem vai ter uma posição muito ruim na Ala Vermelha31. Em sua tese doutoral intitulada Ala Vermelha: revolução, autocrítica e repressão judicial no Estado de São Paulo, Tadeu Dix Silva denuncia o papel covarde a que se prestou esse jovem e o papel de seu pai na denúncia do grupo dirigente. Alípio Freire32 e outras pessoas que militaram com ele na Ala Vermelha são claros em dizer que ele não foi torturado, que ele fi cou do lado de fora, e vendo depois eles sendo torturados... Tanto é que um policial chama Alípio Freire de um codinome que poucos sabiam, e ele intui quem passou a informação. O aparelho é descoberto dessa maneira, com a Oban atuando, por conta dessas relações, e o pai negocia a ida do fi lho para o exterior. E esse menino retorna na Fundação Escola de Sociologia e Política, em São Paulo, e será um agente detonador no movimento es-tudantil de operações difamadoras contra Chasin. Havia outra colega minha, a gente estudava na casa dela. Eu ia estudar num grupo de estudos, para fazer as atividades de pesquisa, e o marido dela também era do Deops. A gente não sabia. Ele contro-lava essa menina por todos os lados. Eu não me lembro do nome dele, mas quando alguém foi preso e depois solto, nos disse: “Encontrei o fulano de tal dentro do De-ops e com visíveis intimidades...”. Então, esse marido de uma colega nossa também era infi ltrado. Os vários grupos que atuavam ali, dos stalinistas aos trotsquistas, mais essa penca de infi ltrados, se exasperam quando vêem a liderança de Chasin se impor e o curso se transformar de ponta a ponta numa escola de marxismo. Mas um tipo determinado de pesquisa marxista. O tormento se apresenta quando Chasin amarra o curso. E isso começa a mobilizar todos esses agentes...

Vânia: Amarra o curso?

Rago: Eu vou explicar. Do primeiro ao quarto ano, essa linha que Chasin cha-mava, à época, de “ontometodologia de história”, “centralidade do trabalho”, “crí-tica ontológica à analítica paulista”, já começa a se pôr. Marx se torna fi gura central. Gildo Marçal Brandão trabalhava a Fenomenologia do Espírito de Hegel e dissecava os Manuscritos Econômico-Filosófi cos de 1844, de Marx. Então, ali Chasin já começa a ler a

31. A Ala Vermelha foi uma das duas cisões surgidas do Partido Comunista do Brasil (PC do B) em 1966 – a outra foi o Partido Comunista Revolucionário, formada por membros das Ligas Camponesas e por integrantes do movimento estudantil. Esta organização se lançou na luta arma-da, inclusive compondo uma Frente Armada com a Aliança Nacional Libertadora (ALN), a Van-guarda Popular Revolucionária (VPR) e o Partido Comunista Brasileiro Revolucionário (PCBR).32. Poeta, militante e jornalista.

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Ontologia do Ser Social de Lukács. Começávamos a estudar em meados dos anos 70 os seus esboços da ontologia estatutária de Marx. Quer dizer, o tríptico lukácsiano de análise imanente, determinação social e função social já está amplamente desenvolvi-do no Integralismo defendido em 1977, na Sociologia e Política, mas Chasin fala disso bem antes da apresentação da tese doutoral. Então, começávamos aí a aprender essa questão do marxismo enquanto ontologia. Para mim, era uma coisa inteiramente nova e só foi fi car claro, se é que posso afi rmar isso, muito tempo depois... Bem, retomando, do primeiro ao quarto ano, os professores integravam uma linha e isso vai tornando algo orgânico. E o estopim é quando Chasin prepara a implementação de um curso de pós-graduação. As próprias esquerdas começam a denunciar essa organicidade, pois, afi rmavam, além de ter o curso da graduação uma hegemonia do “marxismo chasiniano”, você teria um pós-graduação como extensão da própria graduação, e Chasin já vislumbrava a feitura de vários trabalhos monográfi cos, sobre o pensamento conservador, movimentos sociais, industrialização híper-tardia etc. E, mais ainda: o movimento estudantil, na época, desenvolvia aquela questão do centro acadêmico versus diretório acadêmico. No fundo, esse projeto marxista estava pro-movendo uma verdadeira formação de quadros...

Ester: E este era justamente o objetivo de Chasin ao chegar à Escola de Socio-logia e Política. Quer dizer, naquela experiência que ele teve enquanto estudante, ele constatou logo de imediato a debilidade e mediocridade teóricas da esquerda tradi-cional... Quando ele passou a lecionar na Escola de Sociologia e Política, signifi cou um momento especial, no qual ele encontrou jovens como Rago, Berriel, interes-sados, preparados... Exatamente para compor um grupo de pesquisa com pessoas formadas teoricamente para esse grande projeto de entender o Brasil, de pensar o Brasil sob as mais diferentes formas, mas, num primeiro momento, do ponto de vista ideológico, exatamente para suprir essa carência secular de uma perspectiva teórica consistente para a esquerda. Foi isso que signifi cou a Escola de Sociologia e Política. E, rapidamente, os setores de direita e setores de esquerda perceberam, constataram o perigo que isso signifi cava...

Rago: Bom, o que eu queria retomar é que há uma confl uência de posições: quer dizer, a extrema-direita, a direita, a esquerda e a extrema-esquerda. Por incrível que pareça, o leque que vai de Unzer àqueles jovens Brum e Brissac...

Vânia: Unzer era da diretoria?

Ester: Vicente Unzer de Almeida era um alto executivo da Mercedes-Benz e professor da Escola de Sociologia e Política. Fazia o serviço de informações para a ditadura.

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Rago: Veja, em todas as universidades existia uma rede vinculada à Assessoria Especial de Segurança e Informações (Aesi), ligada ao MEC. Então, essa confl u-ência de esquerdas com a direita se põe contra uma dada hegemonia. De fato, o pensamento marxista era hegemônico no curso, e estava estruturado do primeiro ao quarto ano. O que Gramsci chamava de hegemonia, de formação de intelectuais or-gânicos nas lutas de classes. E isso ia redundando na nossa própria formação. Ainda que alguns não percebessem, vamos dizer assim, que estavam se formando... Tanto é que, nesse processo, enquanto eu era músico, totalmente fora de uma estrutura, eu agia como se fosse do Práxis e isso fazia com que certos setores estudantis também me condenassem, atacassem, assim por diante. E eu fui dando uma guinada pessoal. Então, desta confl uência, eles vão armar uma situação inverídica, falsa, de que Cha-sin intervinha diretamente no movimento estudantil. Inventam uma cena pitoresca, grotesca, inteiramente falsa! Eles falaram que Chasin subiu numa mesa, propondo a ocupação do prédio pelos estudantes do Práxis, sendo que – pequeno detalhe – nós vivíamos numa ditadura militar, nos anos 70, meados de 70, ainda sob a vigência do AI-533, ainda sob a vigência do Decreto-Lei 47734, que é um decreto que pune radi-calmente a interveniência do docente no movimento estudantil, entre outras coisas, como a própria militância política. Quer dizer, se um professor se imiscuísse nas atividades estudantis, ele era literalmente expulso da instituição. E a esquerda, então, monta com a direita esta acusação improcedente. Improcedente pelo próprio perfi l de Chasin. Veja, não estou dizendo que ele não formava quadros de talhe marxista, mas Chasin jamais subiria numa mesa! Ainda mais, para propor “Todo poder aos sovietes de estudantes!”. Esses setores da esquerda vêem como única saída a aber-tura de uma sindicância para forjar a expulsão de Chasin da [Escola de] Sociologia e Política. Nessa sindicância, eles procuram estudantes para depor que não fossem, obviamente, aqueles que eram supostamente implicados com ele ou coisa parecida. Aí, Chasin me pede para eu participar da sindicância. Outra depoente foi uma jovem chamada Anete. Quer dizer, fui um dos estudantes que depuseram e eu sofri muito com a pessoa que escrevia, porque eu falava uma coisa e ela escrevia outra. Eu fi quei

33. O Ato Institucional n. 5 (AI-5) foi baixado pelo presidente-ditador Artur da Costa e Silva em 13 de dezembro de 1968. Este instrumento inaugurou o período mais duro da ditadura militar, dando ao regime poderes absolutos. Dentre suas determinações estava o fechamento do Congres-so por tempo indeterminado, a cassação de mandatos de parlamentares, a intervenção nos estados e municípios, a possibilidade de decretação do Estado de sítio pelo presidente da República, a suspensão das reuniões políticas, a censura prévia, a suspensão do habeas corpus para os crimes políticos e outras. Foi suspenso dez anos depois.34. O Decreto-Lei 477, de 26 de fevereiro de 1969, discriminava infrações disciplinares praticadas por professores, alunos, funcionários ou empregados da educação. Entre outras medidas, proibia o estudante considerado subversivo de se matricular em qualquer escola por um período de três anos.

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profundamente irritado, tanto é que eu comecei a esbravejar, num certo sentido, com aquela senhora, porque quando eu ia ler o que ela havia anotado, o que dizia que eu tinha falado era dúbio, não era precisamente o que tinha falado. Mas eu repeti o que presenciei no dia do “Todo poder aos sovietes...”: Chasin não estava no momen-to, no exato momento em que os estudantes fi zeram a assembléia, não estava junto, e em nenhum momento nenhum professor se pronunciou. E muito menos Chasin subiu na mesa... Então, esse foi meu depoimento, com todas as manipulações dos inquisidores... Numa operação extraordinária, os estudantes “tomaram de assalto”, numa madrugada, a sala da diretoria da [Escola de] Sociologia e Política e encontra-ram uma documentação típica da pretensa Aesi. Descobriram nomes das pessoas tachadas como de esquerda, com a sigla de seu partido ou tendência, e outros que faziam o serviço de informantes, internamente, e também dos professores da direita que estavam ali. Veja que o quadro é complexo, porque na raiz dessa perseguição está também a proposta de Chasin para a criação, nesse ano de 1976, de um curso de pós-graduação.

Ester: É, esse que era um dos pontos delicados. Os professores se sentiram ameaçados.

Rago: Muito ameaçados.

Ester: Viram-se questionados e a ignorância e mediocridade se mostravam, as-sim, claramente.

Rago: Nesse processo de fi car debatendo, polemizando com os professores, eles fi cavam numa situação muito delicada. A gente não tinha mais Maurício Trag-tenberg, nem Moniz Bandeira e outros professores que deram a formação para nós. Mas esses professores [de direita], que eram iniciantes, também eram temerosos para dar aula, foram fi cando cada vez mais... numa situação muito ruim. Bom, esse processo culmina, então, na expulsão de Chasin... Chegamos a falar com alguns professores que desejavam a sua expulsão, para mostrar onde estavam se metendo: que a saída de Chasin implicaria a demissão deles próprios. Estavam dando armas para a direita inscrustada na direção da ESP e que mantinha ligações com a seita do reverendo Moon.

Ester: Não foi só Chasin, mas também Hannah, Augusto e Flávia Cacciabava, Gildo [Marçal Brandão]... Os outros professores, que pensavam em se assegurar, que não iriam sofrer com a demissão de Chasin, também sofreram com a lâmina dos cortes.... Aí, Chasin falou: “Eu vou primeiro, mas tenham certeza de que vocês vão também”. E foi o que aconteceu... O diretor, um liberal, fi cou em cima do muro,

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chamava-se De Lorenzo. Nós pensávamos que ele ia acabar apoiando, evitando o pior, mas ele não evitou, deixou a coisa andar...

Rago: No processo da sindicância, eu fui conversar com ele, em seu apartamen-to, na Avenida Angélica, e De Lorenzo foi claro dizendo que Chasin tinha razão e tal, mas no processo ele acabou atuando de forma diferente. Inclusive, porque, nesse momento, ocorreria a defesa da tese de doutorado de Chasin, e aproveitando a maré repressiva tentaram impedir a todo o custo essa defesa... Chasin só a defendeu em 1977 – nesse episódio, há que destacar a intervenção positiva de Maurício Tragten-berg, de Antonio Candido, de Carlos Guilherme Mota, Reynaldo Carneio Pessoa...

Ester: Era para ter defendido em 1976... Houve toda uma batalha jurídica por-que Vicente Unzer de Almeida, baseando-se em fatos que não existiram, alegou que Chasin não cumpriu o prazo estabelecido para entregar a tese. E, não tendo cum-prido o prazo estabelecido para entregar a tese, ele não poderia defendê-la. Então, Chasin teve de brigar por um ano para ter o direito de defender a tese. Quer dizer, Vicente Unzer de Almeida, que era de extrema-direita, aliado com a “esquerda”, cuja liderança era um policial, Luiz Brum... Anos mais tarde, inclusive, revistas, jornais mostraram que o pessoal do PC do B estava sendo liderado por um policial, por um infi ltrado... Além de hostilizar violentamente Chasin, eles fi zeram um enterro sim-bólico dele, com caixão e tudo mais.

Rago: Aí um fato pitoresco para a história... Everton Capri tem, naquele mo-mento, uma atitude maravilhosa... Porque os estudantes vêm com um caixão, pas-sando pelo corredor da [Escola de] Sociologia [e Política], que era pequenininho, e logo na porta de entrada, Everton, simplesmente, coloca os dois pés neles... E ele era alto... Ele dá um vôo rasante, assim, derruba todos e sai correndo... Nós atrás, mas nós éramos o mesmo que nada perto daquela massa, mas a massa sai correndo... Por isso foi pitoresco... E ele não era uma pessoa militante, mas fi cou tão indignado...

Vânia: Ele me disse que apoiava a chapa contrária à do grupo Práxis...

Rago: Exatamente... Everton fi cou tão indignado, porque sabia que Chasin era o melhor professor... Quer dizer, Chasin era uma potência dando aula, transborda-va erudição e conhecimento de Marx... Então, esse é o processo, que é muito mais complexo, mas para nós era muito claro o equívoco da confl uência de esquerda com direita... Então, aí desmorona o projeto da Sociologia e Política. É o ano de 1976.

Vânia: Só para pegar o fi o da meada, a defesa da tese ocorre...?

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Ester: No fi nal de 77, ele consegue, fi nalmente, depois de muitas idas e vindas, jurídicas e administrativas, ele consegue vencer e ter o direito de defender para uma banca composta por Antonio Candido, Reinaldo Carneiro Xavier, Carlos Guilherme Mota, Maurício Tragtenberg, que era o orientador, e Braz José de Araújo. O salão da Escola de Sociologia e Política estava lotado, tinha gente pendurada na janela, gente tentando entrar... Foi realmente uma vitória emocionante, porque ele volta para a Escola de Sociologia por cima, defendendo uma tese brilhante, com uma banca que reconheceu esse mérito – foi uma espécie de desforra. Nós até organizamos uma festa para comemorar, na casa dele. Foi uma surpresa... Ele ganhou até uma placa de prata, dos alunos da Escola de Sociologia e Política, uma volta triunfal dele para a Escola depois de ser demitido daquele jeito...

Rago: E tem um fato, Ester, muito importante: sai na Folha de S. Paulo uma página inteira mostrando a revolução teórica contida em sua tese doutoral sobre o integralismo...

Ester: É uma entrevista com Getúlio Bittencourt... Uma entrevista de página inteira com Chasin, sobre a tese, que sai na Folha de S. Paulo, em fi ns de 77...35 Foi cedida a Getúlio Bittencourt que, na época, era jornalista da Folha de S. Paulo.

Vânia: E nesse ano em que ele foi demitido, entre a demissão e a defesa, o que Chasin fez? Como ele sobrevivia?

Rago: Uma questão, sobre a qual até o grupo se dividiu, foi que Chasin come-çou a procurar emprego em outras universidades. Então, mais umas vez, surge a fi gura de Maurício Tragtenberg... Maurício foi genial... Vocês sabem que foi a pessoa que indicou Chasin, quando de sua volta de Moçambique, para João Pessoa. E ele indica Chasin, para a área de Educação, acho que lá da Unicamp.

Ester: Isso mesmo. Tragtenberg dava aula na Faculdade de Educação da Uni-camp.

Rago: O que vai acontecer... Esses jovens, como Nelson Brissac, e outros pro-fessores começam a se articular para envenenar qualquer espaço com o objetivo de evitar que o Chasin trabalhasse... Então, Chasin começa a ter os espaços bloqueados e controlados. Porque as pessoas começavam a falar e falar que onde ele entrava, ele organiza quadros, “desmonta tudo...”.

Ester: Chasin defendeu, por fi m, a tese, que para ele tinha vários signifi cados. Além desse signifi cado que a gente enfatizou, que é o de abrir uma linha de pesquisa

35. CHASIN, J. O integralismo não é um fascismo. Entrevista de J. Chasin a G. Bittencourt. Folha de S. Paulo, 25 dez. 1977.

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toda voltada ao entendimento do pensamento social brasileiro, do pensamento con-servador brasileiro, embora ele não considerasse essa expressão a mais adequada, tinha também outro lado. Era o passaporte para ele ingressar em uma universidade pública, para se dedicar apenas à docência e à pesquisa, para acabar com aquela vida dupla, que ele foi obrigado a ter durante vários anos. Ele não suportava sequer pensar na idéia de voltar a trabalhar numa empresa. Ele queria lecionar e – como Rago, inclusive escreveu no necrológio, publicado na revista Crítica Marxista36, logo depois a morte de Chasin –, ele se viu impedido de ingressar na Unicamp, não obstante todos os esforços de Maurício nesse sentido, e em outras universidades também... É preciso lembrar aqui que ele tentou, no início dos anos 70, ingressar na pós-graduação na USP. Ele foi impedido também. Por ex-colegas, como Weffort e companhia. A esposa tinha voltado a estudar, na época, no início dos anos 70. Foi quando eu a conheci. E ela achou que ele seria aceito na pós-graduação da USP. Ele foi até lá, conversou com várias pessoas, como Carlos Estevão Martins, o famoso Capitão Ipanema... Conversou também com Weffort e outros e simplesmente foi ne-gado a ele o ingresso na USP. Então, ele foi, durante todo esse período, boicotado... perseguido pela direita e boicotado pela soi disant esquerda. E essa coisa ocorre no-vamente depois da defesa de tese, que foi um sacrifício terrível, de vida, inclusive de família, se privar da companhia da mulher, dos fi lhos, dos amigos, para se dedicar à pesquisa do integralismo de Plínio Salgado... Em suma, tinha esse sentido, que aqui já foi ressaltado por Rago, e tinha um sentido também de a tese ser um passaporte, afi nal de contas, para se dedicar àquilo que era o talento dele, aquilo para que ele es-tava vocacionado, que era a atividade docente e de pesquisa. E ele se viu, novamente, impedido de realizar isso, sofreu vários boicotes, não obstante todos os esforços que Maurício Tragtenberg fez no sentido contrário.

Rago: Foi um período, só para vocês entenderem o que está ocorrendo, em que ele lança a Revista Temas. A Temas é de 77. O primeiro número sai, inclusive, com aquele material, a “Carta sobre o Stalinismo”, de Lukács. Sai o texto de Gramsci37 e assim por diante. E o que vai acontecer? Chasin começa a realizar, na casa dele, uma organização desse grupo, que vai ser o grupo do Movimento Ensaio; ele começa

36. “Em Memória de J. Chasin: Luta pela Autenticidade Humana”, publicado na Revista Crítica Marxista n. 8, de junho de 1999.37. Refere-se a “Alguns Temas da Questão Meridional”. No mesmo número ainda havia textos de Braz José de Araújo (“Caio Prado Júnior e a Questão Agrária no Brasil”), NelsonWerneck Sodré (“História do Iseb 1”), J. Chasin (“Sobre o Conceito de Totalitarismo”), Marco Aurélio Nogueira (“Max Weber: a Burocracia e as Armadilhas da Razão”) e Gildo Marçal Bezerra Brandão (“Totali-dade e Determinação Econômica”), além do “Manifesto da Associação Industrial”, de 1881, com apresentação de Reynaldo Carneiro Pessoa.

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a lecionar sobre a ontologia do ser social de Lukács, confrontando com as posições do próprio Marx...

Ester: Nós organizamos cursos livres, que foram, naquele momento, a única fonte de sobrevivência para ele e para a família.

Rago: A gente bancava em parte, mas fi cou uma questão para nós: ou a gente bancaria isso até ele conseguir alguma coisa ou ele teria de fazer outra atividade. E é esse processo que Ricardo Antunes, no livro sobre os sociólogos brasileiros38, não sei se vocês leram, da Editora 34, conta desse momento, em que ele aprendeu com Chasin lineamentos da ontologia marxiana e lukacsiana. É esse o momento da nossa entrada no Partido Comunista. Quero mostrar que, nesses anos, Chasin convida a mim e a Cida39, pessoalmente. E era um momento de muito risco, porque, por mais que a gente soubesse que tinha toda a crítica do mundo ao Partido Comunista, era um momento em que tinha ocorrido a morte de Herzog, havia a movimentação so-cial... Havia desde 74 o movimento político da oposição democrática, o MDB, a ação conjugada do movimento estudantil com outros movimentos populares e em 76 morre Manuel Filho. Então, duas pessoas, um intelectual e outro operário, do mesmo Par-tido Comunista. E você sabe que, mesmo que o Partido Comunista não fosse uma ameaça, ele começa a ser perseguido e destroçado.

Vânia: Vladmir Herzog ainda era amigo de Chasin nesta época?

Ester: Eles não tinham mais contato. Acho importante ressaltar o seguinte: esse movimento de reconstrução do PCB aqui no Brasil foi encetado por um grupo de pessoas que sobreviveram às prisões, às mortes, enfi m... Pessoas que sobreviveram e que, em dado momento, resolveram isso. O Comitê Central estava fora. Então, foi um processo de reorganização do PCB que se fez meio que atabalhoadamente, a partir daqueles que restaram, literalmente. E, veja, há nesse período duas coisas: primeiro, o Partidão insistia em designar o regime militar brasileiro como fascista. Chasin era um violento crítico dessa designação, não por causa de algum purismo, algum fl orilégio intelectual, mas por um rigor cientifi co. Não era fascista. Tá certo você sair na rua e xingar os milicos de fascistas. É um xingamento ótimo para causar efeito, mas não era uma categoria cientifi ca. Então, tudo bem, nós entramos para ajudar na reconstrução, mas, espera um pouco... Tratava-se da mesma discussão que Marx e Engels tiveram em [18]48 com a Liga dos Comunistas. A gente vai entrar, mas espera um pouco: vamos sentar aqui para ver o diagnóstico da realidade para ver o

38. Trata-se de Conversas com Sociólogos Brasileiros, organizado por Elide Rugai Bastos, Fernando Abrucio, Maria Rita Loureiro e José Marcio Rego e publicado em 2006.39. Maria Aparecida de Paula Rago é professora da PUC-SP.

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que a sociedade capitalista... Enfi m... havia essa questão. Nós entramos, desde que... Então, tinha uma coisa muito complicada... Sim, entramos, mas havia um “desde que”... Chasin estabeleceu condições para isso. E as condições eram claramente o abandono, por parte do Partido, dessa tese falsa de que nós estávamos vivendo sob fascismo; segundo, a discussão do politicismo, ou seja, de que a luta pelas liberda-des democráticas, embora válida, não era a luta que deveria ser encetada a partir do ponto de vista do trabalho. Ou seja, a luta pelas liberdades democráticas, do ponto de vista do trabalho, implicava inserir um programa econômico, visava a estabelecer, identifi car as bases econômicas de sustentação da ditadura militar. A política econô-mica da ditadura militar estava sobre um tripé: o arrocho salarial, a entrada de capital estrangeiro e o investimento estatal nas indústrias de base, e era isso que deveria ser questionado. Não era sufi ciente apenas reivindicar a volta do estado de direito. Qual-quer mudança efetiva implicava a intervenção da perspectiva de um agente específi -co, que é o agente do trabalho. Eu me lembro das reuniões, pois eu também participei... O nosso contato não era um cara à altura, não tinha a menor dimensão intelectual, inclusive, para perceber o que estava em questão. Ele queria que nós ingressássemos porque para ele isso seria um trunfo, no interior da reorganização. Ele estava que-rendo ascender dentro da estrutura do poder. Bom, entrar gente como nós, especial-mente Chasin, professor renomado, intelectual etc., para ele seria um grande trunfo. Mas Chasin deixou claro nas discussões que havia certas condições que deveriam ser aceitas para que nós ingressássemos... Isso é preciso ressaltar também. E essas con-dições passavam por esse tipo de discussão, o questionamento da atuação do PCB, da linha de diagnóstico da realidade brasileira, do programa. Isso porque, à época, simplesmente, o Partidão estava indo a reboque, que era a expressão utilizada, a re-boque do Dr. Ulysses Guimarães40 etc., a reboque de um princípio liberal, deixando de lado a perspectiva do trabalho, a democracia social. Ou seja, o que estava em jogo naquele momento não apenas a democracia política.

Rago: Isso que Ester está falando é decisivo. Porque, mesmo assim, tem um pessoal que era próximo à Ensaio, que era da Ensaio e que sai dizendo por aí afo-ra que a gente era uma tendência que desejava deter as rédeas do Partido etc. Mas Chasin sempre levou à radicalidade aquilo que Ester colocou antes, a idéia de Caio Prado, de ter um pé dentro e outro fora. E conhecer essa realidade para saber o que fazer. Tanto é que aquela idéia que eu mencionei antes, de a gente buscar discutir

40. Ulysses Guimarães (1916-1922), político, presidente do Movimento Democrático Nacional (MDB) que, com o fi m do bipartidarismo, em 1979, se tornaria Partido do Movimento Democrático Nacional (PMDB). Participou das campanhas pelo retorno do estado de direito, inclusive da luta pela anistia ampla, geral e irrestrita e pelas eleições diretas.

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com outras parcelas da esquerda a construção de algo comum, uma espécie de fó-rum das esquerdas em que fi cariam preservadas as suas diferenças, publicações e or-ganizações... Eu lembro que houve um período em que a gente pensou isso... Chasin foi para Moçambique e, na volta, houve o encontro com Prestes. A idéia, então, era isso que Ester falou: ver as possibilidades; e não é à toa que Chasin publica então na Temas o artigo “Sobre o Conceito de Totalitarismo”, porque aí você primeiro faz uma crítica ao próprio Partido...

Ester: Crítica a Hannah Arendt e à teoria do autoritarismo também.

Rago: Exatamente. Então, aí vai aparecer com clareza esse tipo de explicação teórica e Chasin vai, vamos dizer... Se você pegar a número 3, em que sai o texto de Marx, sobre o livre câmbio41, você tem ali a dimensão de como o mercado dá as bases das liberdades formais. Quer dizer, você tem a idéia de Marx, Engels, Lênin... De Lênin, ele publica as atas do Iskra42. Quer dizer, qual a função de uma revista? A número 3 da Temas, ela é o Iskra. Isso é importantíssimo. Porque senão as pessoas pensam que nós estamos, assim, numa batalha meramente...

Ester: Teórica...

Rago: Tínhamos a consciência de que o PCB era reformista, politicista e obtuso teoricamente A direção estava no exterior e aqui vivíamos a sua reconstrução. Você sabe que eles voltam em 1979, com a anistia restrita. Organizamo-nos para receber os anistiados ainda sob ameaças de prisões... Nesse retorno do exílio já se explicitam as rupturas, os rachas e a ideologia reformista e politicista do eurocomunismo como a ideologia do grupo que alijara Prestes e seu bloco do Comitê Central. Nosso emba-te se dá contra essa visão que priorizava a luta pela democracia política desconectada da programática da perspectiva do trabalho...

Ester: Com o politicismo43, não é? Não é à toa que Chasin publica um artigo sobre os discursos do Saturnino Braga – “A Politização da Totalidade: Oposição e

41. “Troca, Liberdade, Igualdade”, publicada na Revista Temas n. 3.42. Refere-se a “Projeto de Declaração da Redação de Iskra e de Zariá”, publicado no número 5 da Temas. Iskra foi um periódico operário criado por Lênin, Mártov, Plekhânov, Vera Zassulich e outros. Foram publicados quatro números até agosto de 1902. O órgão desempenhou um impor-tante papel na criação do Partido Bolchevique.43. J. Chasin denomina de politicismo a subordinação analítica de todas as esferas da vida social, principalmente a econômica, à esfera política – como sendo preponderante sobre as outras. No artigo “A Politização da Totalidade: Oposição e Discurso Econômico” J. Chasin aponta os equí-vocos dessas análises, por impedirem a compreensão das relações sociais e da estrutura econômica instaurada. Com isso, enxerga-se apenas a esfera das questões políticas, reduzida às franquias democráticas, e por isso, ontologicamente parcializadora.

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Discurso Econômico” – em que ele fala que a única fi gura da oposição a trazer para o debate a questão econômica era o senador Satunino Braga.

Rago: E o lance era o seguinte: como chegar ao movimento operário?

Ester: Chasin publica na Temas um texto que tinha escrito para ser lido e deba-tido no interior do Partidão, cujo titulo é “Conquistar a Democracia pela Base”. Foi publicado na Temas, mas antes esse artigo circulou e foi discutido exatamente porque é um artigo em que sintetiza as suas formulações e críticas, e essa proposta deveria ser disseminada para ser tematizada junto às esquerdas, para que esta não fi casse simplesmente a reboque de uma plataforma, ou de uma palavra de ordem, simples-mente liberal, que era a das liberdades democráticas. Assim, inserir nessa plataforma a questão econômica do ponto de vista do trabalho.

Rago: Nós tentamos irradiar esse documento para muitos setores. Desde o ressurgimento das greves operárias no ABC paulista e sua irradiação no movimento sindical até a formação da Conclat44 e, mais adiante, dentro do PT. Então, nesse momento em que a gente está numa dada militância, qual que era o nosso intuito? Descobrir as fendas para o movimento operário, porque ele tinha uma fragilidade fantástica... Quando a gente se aproximou dos operários e operárias do Partido, quando fomos discutir com eles a teoria de Marx, Engels, Lênin, eles não sabiam nada. Eles não tinham lido sequer o Manifesto Comunista. Mas isso foi importante, porque nós começamos a ter uma militância nos movimentos dos professores, num dado momento, tornando-se referencial da categoria dos professores nessa luta con-tra a direção oportunista do sindicato. Fazíamos uma frente única de esquerdas e enfrentávamos resistência do próprio Partido. E tinha o Sr. Leopoldino, que era um pelego muito colado ao patronato...

Ester: De um lado era isso, e do outro era o pessoal que era do sindicato para-lelo.

Rago: Isso, havia os trotskistas, que defendiam o sindicato paralelo. Tanto é que, não sei se você está lembrada, quando ocorrem as greves do ABC, certa corren-te trotsquista tenta vender seu jornal estampado com a manchete “Lula traidor”. Isto porque Lula agia na estrutura sindical legal. E no maior momento em que a classe operária se põe, em seu ascenso, com a liderança de uma das principais greves do país contra a ditadura militar e que ia ao encontro dessa dimensão que Chasin inaugurava em seus escritos: a centralidade do trabalho. Então, é no bojo desse ressurgimento

44. Conferência Nacional das Classes Trabalhadoras. A I Conclat, realizada em 1981, reuniu 5.030 delegados, na primeira grande reunião intersindical realizada no Brasil desde 1964.

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das ações de massa que Chasin já começa a ver o desmoronamento do “milagre econômico brasileiro”, da plataforma econômica sustentada na superexploração da força de trabalho que já vinha... Desde fi ns de 1974, já começam as dissensões do capital, da base da própria autocracia burguesa bonapartista... Ele cita no texto dele, da Temas, em 1977, a Conclap45, o encontro dos empresários que começam a gritar por “abertura”, a fi m de não arcarem com o ônus da crise do “milagre”. Porque, nessa Conferência, no que tange à questão democrática, a burguesia punha barreiras à democracia. Chasin já sinalizava para os limites do ser social dos proprietários no Brasil. Então, o que ele analisava vai se comprovando e, a cada momento, Chasin concretiza as determinações essenciais, ontológicas, da via colonial. Obviamente, era algo já discutido na tese e que já estava em aulas, sobre a natureza autocrática do capital atrófi co. Para nós, fi cava claro o distanciamento do Partido ante a irrupção das greves operárias e seu signifi cado concreto. E é no bojo desta compreensão que atuamos no MDB...

Ester: No Departamento Trabalhista do MDB. Nós criamos um fundo de gre-ve no porão da Câmara Municipal de São Paulo.

Rago: Uma coisa que nunca alardeamos, mas conseguimos uma irradiação em toda a cidade. A população contribuiu de várias maneiras, conseguimos uma grande quantidade de caminhões com arroz, latas de óleo, sal... foi fantástico esse apoio. Ainda que nossa atuação se regesse pela análise chasiniana, segundo a qual a greve deveria ampliar suas bases sociais, com as diversas categorias que compõem a classe operária.

Lúcia: Vocês que fi zeram aquele cartão que tinha um cara desempregado e a gente vendia para contribuir com o Fundo?

Ester: Esse é o segundo Fundo de Greve, da Igreja de São Bernardo... Nós fi zemos o primeiro.

Rago: Há que lembrar, então, que, uma vez que nós não demos sustentação com aqueles cursos, que não davam o sufi ciente para manter sua família, avaliamos que a proposta de morar em Moçambique, num certo sentido, era positiva. E Chasin, já pensando alto, quer dizer, pensou na possibilidade de o grupo ir para lá, participar de uma revolução dita socialista, num país extremamente pobre e ver as possibilida-des revolucionárias...

Ester: É preciso chamar a atenção: ele fi ca dividido, completamente indeciso. Se

45. Refere-se à IV Conferência das Classes Produtoras do Brasil (Conclap), realizada em fi ns de 1977.

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tivesse surgido qualquer alternativa aqui, ele teria fi cado. Ele só partiu para Moçam-bique porque ele não teve alternativa. Foi, como ele dizia, um auto-exílio. Isso não signifi cou, no entanto, que de início ele não tenha fi cado entusiasmado com o que encontrou por lá logo que chegou a Maputo. Ao contrário...

Vânia: Essa proposta veio de quem?

Ester: O convite para ir para Moçambique partiu de um ex-aluno da Escola de Sociologia e Política e Chasin consultou o grupo sobre se era o caso de ir ou não ir. O casal Augusto e Flávia Cacciabava também foi convidado – eles viajaram primeiro e depois Chasin foi com a família... Bom, Chasin fi cou muito indeciso, muito des-confi ado... Afi nal, não havia muitas informações disponíveis. Viajar, ir com a família para um país desconhecido, um país que apenas três anos antes era uma colônia portuguesa, que havia enfrentado uma violenta guerra de libertação... E Chasin pon-derava: “Eu vou como, fazer o quê?” Como era bem típico dele, acabou por afi rmar “vamos tirar o melhor do pior. Eu não tenho alternativa a não sei ir para lá... Ir para Moçambique pode signifi car algo positivo para mim, para minha família, mas tam-bém algo positivo para todos, para o projeto.” Ou seja, Chasin acabou por chegar à conclusão de que a viagem para Moçambique poderia criar as condições para se de-senvolver aquilo que havia se tornado impossível no Brasil. Parecia ser, naquele mo-mento, uma experiência importante, mas ele realmente fi cou muito indeciso, muito, muito indeciso. Depois da decisão, todos os preparativos da viagem... Eu me lembro até hoje o que foi desmontar aquela biblioteca, porque ele levou parte da biblioteca para Moçambique, e a outra parte fi cou na casa de um amigo nosso, em São Paulo, José Luiz... Foi uma coisa muito triste para ele sair daqui do Brasil, deixar a casa, viajar com os fi lhos adolescentes, sem saber o que ia encontrar, de fato, pela frente... Ele sabia perfeitamente que corria um grande risco Num primeiro momento, ele, ao chegar lá, fi cou muito extasiado com tudo o que estava ocorrendo, com a disposição, com o papel que Eduardo Mondlane, que já havia morrido – a universidade levava o nome dele – tinha desempenhado. O que chamou muito a atenção, também, foi a atuação da Frelimo – Frente de Libertação de Moçambique – que, ao lado de uma guerrilha contra o colonialismo português, desenvolveu uma batalha diplomática extremamente bem pensada e efi ciente. Diga-se de passagem, pois poucos sabem, que talvez o colonialismo português tenha sido um dos mais devastadores. Foi abso-lutamente terrível. E é óbvio que a perda das colônias enfraqueceu a ditadura Salazar e, então, Chasin chamava a atenção para a atuação da Frelimo por esses dois tipos de atuação conjugada: a guerrilha, de um lado, e de outro uma atuação diplomática com intelectuais de peso. Outra característica da atuação da Frelimo para a qual ele

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chamava a atenção era a vontade, a disposição, o projeto da Frelimo de se tornar independente... Seja da União Soviética, seja da China... O projeto de fazer o próprio caminho, sem seguir nenhum modelo... É óbvio que depois as coisas degringolaram e ele tristemente constatou esse processo. Mas o fato é que havia também uma dimensão de certa ingenuidade que depois ele veio a reconhecer. Vejam, ele viajou para Moçambique desconhecendo completamente a situação. Chasin viajou sem sa-ber que embarcara com aval do Partido. Quando ele tomou conhecimento disso, foi terrível... porque ele não queria ter ido com o aval do Partido, como se ele fosse um militante do PCB. Ele não queria ter viajado nessas condições. Ao chegar lá, ele constatou isso. Mas aí não podia voltar mais, não podia. E naquela época tinha o maldito depósito compulsório. Quer dizer, a ditadura inventou uma forma de impe-dir a evasão de divisas: só saía do país quem depositasse um valor astronômico para a época, então, só a fatia mais privilegiada da população, que está no ápice da pirâmi-de, conseguia... Além disso, Chasin teve de cancelar CPF, tudo... desmontou tudo, a casa toda... tudo... Eu chorei quando vi a casa se desmontando. E, ao chegar lá, ele, primeiro, constatou que aquele casal que ele considerava amigo, que foi um casal no qual ele apostou, que foi um casal que passou a dar aula na Escola de Sociologia e Política pelas mãos dele... Ao chegar lá, em Moçambique, ele constatou que esse ca-sal tinha criado uma rede de intrigas... Tinham divulgado coisas do mais baixo nível que se possa imaginar contra ele, contra a família dele... E ele teve de chegar lá e des-fazer todo o lixo. Foi um susto de cara... O tempo que ele perdeu para desfazer tudo isso! Imaginem! E nós aqui, sem saber exatamente o que aconteceu... A correspon-dência era toda cifrada, porque havia violação de correspondência aqui no Brasil, era óbvio. Imagina se uma carta de Moçambique não seria violada. Então, Chasin teve uma boa impressão da experiência logo no primeiro momento de Moçambique, mas rapidamente ele viu, ele constatou a inviabilidade que é sair de uma sociedade tribal para o socialismo, constatou todas as desconfi anças, as restrições que ele tinha ao marxismo soviético, ao marxismo vulgar, ao marxismo de plantão etc., ali foi confi r-mado tudo... Então, a experiência em Moçambique foi a experiência de confi rmação de que da miséria não se vai ao socialismo de forma nenhuma. Foi a constatação de todas as desconfi anças, restrições que ele tinha em relação às transições intentadas, às transições que não resultaram efetivamente no socialismo. E ele resolve voltar, mas, antes de voltar, como ele tinha aval do Partido sem saber, ele participa das dis-cussões das organizações dos brasileiros lá em Moçambique... Do Partido Brasileiro fi liado ao Partido Comunista lá em Moçambique e ele sabe, então, do racha que está ocorrendo no Comitê Central, em que Prestes, no “undécimo gorjeio do labor”, como ele dizia... Bom, a gente fi cou um tempão para decifrar o que era o “undécimo

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Foto de José Chasin em Moçambique

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gorjeio do labor”... Era o décimo primeiro número do jornal Voz Operária... “Gorjeio do labor” é voz operária... Até a gente descobrir tudo aquilo! Era tudo cifrado... “Leiam o undécimo gorjeio do labor...”. Então, o que está lá é a fala de Prestes, a fala que vem ao encontro... Com todas as restrições a Prestes, mas era a único... Ele já havia sido expulso, ele estava neutralizado no PC. A maioria do Comitê Central já tinha abraçado o eurocomunismo... E Prestes é o único que fala: “Espera um pouco, não é assim...”. E que ele fala “preste atenção” etc... E nós, aqui, no Brasil... Cometemos um grande equívoco. A gente deveria ter “ingressado” no Partido como tendência, sem se deixar sufocar, contaminar pelo veneno que há numa organização partidária do tipo do Partidão aqui. E nós, infelizmente, não agimos desse modo no setor dos professores, no qual atuávamos. É verdade que nós brigamos, nós lutamos etc., mas passamos a agir... A coisa era tão violenta que nós passamos a agir sob a diretriz do Partidão!! Nós éramos militantes do Partidão. Como se isso fosse uma grande coisa, uma grande vitória... nós invertemos tudo. Nós cometemos erros colossais. Brigan-do dentro etc. etc., tentando levar as coisas. Havia uma grande ambigüidade de nossa parte. No caso da Temas, por exemplo, nós tentamos impedir o Sr. Raul e Marco Au-rélio Nogueira de italianizarem a Temas, ou seja, de abraçarem o eurocomunismo, im-pedir que a Temas se transformasse em uma espécie de moeda de troca de interesse pessoal... Chasin, eu tenho toda essa correspondência, enviou inúmeras cartas para Raul, para Gildo [Marçal Brandão], para Nelson Werneck Sodré... “Por favor, não deixem que a Temas vire moeda de troca para o italianismo...”. Porque, o pessoal que voltava voltava sob infl uência do eurocomunismo. Berriel até escreveu um artigo na Ensaio, “Gramsci e eles”46, contra o artigo “Gramsci e nós”47. Quer dizer, Berriel denunciava a leitura de Gramsci a partir de um viés liberal, ao resgatar os nódulos crocianos48 ali presentes. Criticamos, assim, a noção de democracia como valor universal. Foi uma briga muito violenta, mas, contraditoriamente, ironicamente, assumindo o Partido; quando nós devíamos ser uma tendência dentro do Partido, brigando contra o Partido, nós o assumimos, caímos no ardil do partido.

Rago: Então, eu queria só recuperar o momento que romperam as greves me-talúrgicas do ABC. Chasin está em Moçambique. Nesse período, a gente propõe uma revista no MDB. E Chasin faria o texto principal. Cida simplesmente reuniu e catalogou todos os documentos das greves, o dia-a-dia das greves e enviava para Maputo. Então, a gente comprava a Folha, o Jornal do Brasil, o Diário do Grande ABC,

46. Publicado na Nova Escrita Ensaio n. 9.47. In: COUTINHO, Carlos Nelson. A Democracia como Valor Universal. São Paulo, Ciências Hu-manas, 1980.48. Referência a Benedetto Croce (1866-1952), fi lósofo idealista italiano que exerceu grande infl u-ência nos estudos estéticos do início do século.

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coletava os boletins sindicais, tudo quanto era material... E Cida tinha esse papel de mandar caixas e caixas de jornais para Maputo. E Chasin escreve, de lá “As Máquinas Param, Germina a Democracia!”49...

Ester: ... com base nas informações que a gente manda daqui. Chasin tinha mais informações sobre o Brasil que a embaixada brasileira em Moçambique.

Rago: Nesse momento, já tínhamos produzido dois números sobre o movi-mento operário, a Escrita/Ensaio n.º6 sobre Movimento Operário: Novas e Velhas Lutas e a n.º 7, O Arrocho Treme nas Bases do ABC. Na verdade, era para ser um único número, mas o editor, Wladyr Nader, considerou melhor seu desdobramento. Quando Chasin volta de Moçambique pontua que a Escrita/Ensaio deveria se dife-renciar da linha anterior. Chasin propõe: “Vai ser a Nova Escrita Ensaio”. A Escrita/Ensaio, como pensada por Wladyr Nader, tratava de temas abrangentes e diferencia-dos. Sobre a mulher, ele dava para um setor de mulher... Sobre literatura, sobre un-derground... Ele dava para grupos especializados naqueles assuntos. A partir, portanto, dos números 6 e 7, direcionamos a revista para o movimento operário. Porque este é o momento da irrupção das greves operárias no ABC. O que eu queria colocar é que isso está ocorrendo simultaneamente. Num dado momento, a gente estava achando que ia para Moçambique e, portanto, ia ser outra a história das nossas vidas...

Ester: Nós mandamos o curriculum vitae...

Rago: E eu ia para a área de música, trabalhar com o maestro Martinho Lutero, que hoje, diga-se de passagem, é regente em Milão. Até que Chasin falou: “Olha, a situação aqui está difícil.” Mas o que eu queria colocar é que, nesse quadro... Chasin tinha nos ensinado que “sem teoria revolucionária não há praxis revolucionária”, que a teoria tinha de ir ao encontro das massas; de repente, imagina, a nossa geração vê aquilo na prática, um volume de massas impressionante, que a gente nem tinha dimensão... Chasin falava que uma greve na Europa não reunia o número de 60 mil pessoas, 70 mil numa praça – veja, aqui os metalúrgicos e matelúrgicas da região do ABC tomavam conta do gramado e das arquibancadas de um estádio de futebol. E era uma fração do movimento operário. Não era uma assembléia de classe, uma mobilização da classe operária. Enquanto isso, Chasin nos enviava cartas de Moçam-bique contando as barbaridades de nossos “camaradas”. Por exempo, aquela família de búlgaros que estava preocupada não com o desenlace do processo revolucionário, mas em fazer o enxoval da fi lha... E a gente fi cava escandalizado, porque, o “nosso camarada” búlgaro deveria estar preocupado com a revolução... E não se preocupar

49. CHASIN, J. “As Máquinas Páram: Germina a Democracia!”. Revista Escrita/Ensaio. São Paulo, Ed. Escrita, ano IV, n. 7, 1980.

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em ganhar dinheiro... E Chasin falava: “Vocês não vão acreditar... O pessoal está aqui para ganhar dinheiro e a corrupção começa a rolar na direção da Frelimo.” Nós achávamos que um cara que lutou pela libertação de Moçambique – a gente divulgou aqui em São Paulo um fi lme Essas São as Armas, um fi lme que acompanha Samora Machel nas zonas libertadas, mostrando a necessidade da luta armada, fl agra a barbárie, o genocídio do exército português, mostra cenas dos enfrentamentos dos moçambicanos, cenas do cotidiano do trabalho etc. –, imaginar, portanto, que um revolucionário seja corrupto... E Chasin falava: “Constataram vários processos internos de corrupção no Estado...”. Então, Chasin foi dando armas para a gente repensar o mundo dito socialista. E os próprios limites de Lukács... Chasin começa, como era do seu feitio, a procurar entender essa fi gura imprevista das formas sociais pós-revolucionárias, mas que não transitaram para uma formação autenticamente comunista...

Ester: Das inviabilidades...

Rago: Isso, inviabilidades... E o que acontece aqui com a Revista que ele criou: a Temas. Chasin perde a Temas a partir do número 8... A anistia é de 1979, tem a vin-da das pessoas para cá e nós já sabíamos, num certo sentido, que a coisa não estava tranqüila... Chasin falou para Prestes, pessoalmente, que ele não tinha base alguma em São Paulo, não tinha base no Brasil... Prestes respondeu: “Fique no seu lugar... Não se intrometa...”. Ele não quis ouvir... E quando a gente sabia que aqui vigorava essa linha democratista, a teoria da democracia como valor universal... Daí em diante, até sua falência, editando poucos números depois da saída de Chasin, a Temas envereda para o eurocomunismo...

Ester: Exato! E é preciso retomar aqui o que dissemos agora há pouco. Toda a concepção inicial da revista foi de responsabilidade de Chasin, ou seja, não apenas a concepção da capa da Temas , mudando de cor a cada número, mas a própria con-cepção inicial da revista, tanto em termos teóricos quanto ideológicos.

Rago: É, nesse período, então, que surge a possibilidade e o convite do Maurí-cio Tragtenberg.

Ester: É… Maurício Tragtenberg, num evento de que participou, conheceu o pró-reitor de pós-graduação da Universidade Federal da Paraíba e, conversa vai, conversa vem… novamente, Maurício, que era uma pessoa excepcional, uma fi gura humana excepcionalíssima… Eu tenho as cartas, inclusive, que Maurício mandou para Chasin, dizendo: “Olha, Zezinho, conheci fulano de tal, está interessado em te contratar… Vai lá para criar o curso de pós-graduação de fi losofi a da UFPb”.

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Enfi m, Chasin pensou em voltar, não por conta desse convite. Ele pensou em voltar porque era impossível continuar em Moçambique, em função dessas inviabilidades originárias que já referimos. Assim, ele voltou para o Brasil 22 meses depois de partir para Moçambique.

Vânia: Em 1980, já?

Ester: No início de 80.

Vânia: Só para entender… Nesse ínterim, então, quando ele estava fora, foi perdida a Te-mas e feita a Nova Escrita/Ensaio, muito próximo um evento do outro… E aí então, ele recebe esse convite…

Ester: É, mas ele não resolve voltar para o Brasil por causa do convite. Inde-pendentemente do convite, ele queria voltar para o Brasil. Exatamente por causa da experiência que ele vivenciou por lá. A volta ao Brasil era necessária sob todos os pontos de vista, e o velho dilema retornou com mais força agora. Onde Chasin ia trabalhar? Ele tentou inserção em São Paulo, não conseguiu e, assim, ele foi para a Paraíba, para João Pessoa, por conta desse contato que Maurício Tragtenberg havia feito e, depois, por correspondências, que eu tenho também, entre Chasin e o pesso-al da UFPb para criar lá a pós-graduação em fi losofi a na universidade, que havia sido criada… Era gigantesca… eram sete campi, coisa assim, imensa. Eu fi quei impres-sionada. A gente não sabia se a universidade estava dentro da cidade ou o contrário, dado o impacto que o primeiro câmpus, que fi cava em João Pessoa, tinha sobre a cidade. Mas eram sete campi, campi que se localizavam desde o litoral até o interior, quase limite com o Ceará, o último na cidade de Cajazeiras.

Vânia: E no retorno para o Brasil Chasin teve nenhum problema com a repressão, ou ele voltou tranqüilamente?

Ester: Voltou tranqüilamente. Lembre-se, eram os inícios dos anos 80. Nós or-ganizamos uma vinda, distribuímos convites etc. e ele, logo ao chegar ao aeroporto de Congonhas, ele se pronunciou sobre o Brasil. Nós conseguimos que ele fosse recebido na sala VIP do aeroporto de Congonhas, na época, e, ao chegar, ele fez um belo discurso... Não apenas porque se tratava de alguém que voltava e nunca deveria ter ido, mas porque voltava para lutar... E ali havia mais de 100 pessoas esperando por ele. Ele, imediatamente ao chegar, já faz um belo discurso.

Rago: Com o retorno de Chasin ele fez a crítica ao nosso comportamento, pois considerava absurdo que ainda estivéssemos com um pé dentro do partido. Era hora de romper com o Partidão. Então, com a volta de Chasin de Moçambique, o nosso

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contato com as lideranças do movimento operário, que víamos com olhos deslum-brados, foram questionados por Chasin. Eu digo, em tom pessoal, que acreditava ilusoriamente que, o simples fato de um indivíduo ser da classe operária, participar de ações de massa tão expressivas, o levaria à consciência revolucionária...

Ester: Eu também... aliás, todo mundo.

Rago: Eu dei o Manifesto Comunista para Lula. Eu lhe dei várias [Revistas] Ensaio... Depois nós fi zemos uma matéria com Lula na capa, foi a Ensaio número 9... A gente achava que poderia infl uir no movimento operário. E Chasin, então, distante dessa realidade, em terra moçambicana, fez uma análise crítica dos limites do movimen-to operário... Ao ler “As Máquinas Param, Germina a Democracia!”, Eder Sader afi rmou: “Como Chasin pode ousar escrever sobre uma realidade que ele não está vivenciando?”.

Ester: Seguindo esse raciocínio, Marx não poderia escrever sobre a Comuna de Paris50 vivendo na Inglaterra...

Rago: Exatamente. Nem Lênin poderia escrever nada sobre a Rússia, porque ele passou o século XX todo, até chegar abril de 1917, para entrar em solo russo, no exterior. Então, por esse critério... Mas, retomando, naquele momento, Chasin volta e quer conhecer esses operários. Nós falávamos muito sobre isso. A gente ia para Osasco, ia para lá e para cá. Nós tentamos depois realizar esse alargamento das bases sociais do movimento grevista. Tentando conectar lideranças de várias regiões, uma confl uência do movimento operário, quando Chasin vai mostrar as debilidades da direção sindical... Não sei se Ester está lembrada do evento em São José dos Cam-pos... Nós fi zemos um encontro com lideranças da classe operária... Com Lula, Zé Pedro, Arnaldo Gonçalves, entre outros. Chasin mostrava que o movimento operá-rio só teria força se ele se transformasse de ações de frações em ações de classe. Quer dizer, em movimento social, se alargassem as bases sociais de modo permanente, a começar pelos metalúrgicos. Se os metalúrgicos de São Paulo e do ABC paulista tinham os dissídios diferenciados, um era em março e o outro em outubro, ou a outra categoria em novembro, a idéia era fazer a confl uência. Que a classe operária fi zesse uma grande greve e não isolasse o ABC, como era o risco. E quando Chasin veio para São Paulo, e a gente o levou ao movimento grevista, às assembléias mul-titudinárias, ele pôde conversar com o pessoal da base, com o pessoal do comando de greve. Nós nos reunimos com Melão, hoje um grande amigo, Wagner Lino, Os-

50. Comuna de Paris de 1871, evento em que, pela primeira vez na história, a classe operária toma o poder, no qual permanece durante 72 dias.

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marzinho, Alemão, que depois adentrou no MR-8 e hoje coordena a central ligada à social-democracia...

Ester: Nós vimos, nós assistimos à ascensão do MR-8, nós vimos isso. Eu as-sisti a isso...

Rago: E está na [Revista Nova Escrita/Ensaio] número 8 o registro com o coman-do de greve. Então, nós acreditávamos que seria possível infl uir no movimento...

Ester: E Chasin faz uma crítica violenta à nossa atuação... E foi pesado...

Vânia: O texto ele escreveu ainda em Moçambique...

Rago: Sim, o texto crítico sobre nossa atuação ele escreveu em Moçambique. É bom lembrar que a número 8 inaugura a Nova Escrita/Ensaio, que contém o texto “Carta a um Camarada” de Lênin e a homenagem a Florestan Fernandes. A entre-vista com o nosso sociólogo foi um verdadeiro marco. Porque Florestan atravessava um momento difícil em sua vida e era escanteado pela própria esquerda. Nesse momento, Florestan morava na Rua Nebraska, no Brooklin. Chasin propôs que re-alizássemos um grande ato de homenagem a Florestan Fernandes, no Sindicato dos Jornalistas.

Ester: Antigos alunos dele, assistentes dele, também não lhe davam a mínima atenção...

Rago: Convidamos o jornalista Alípio Freire para nos ajudar, Carlos Guilherme Mota e outros companheiros. Chasin dizia: “Nós vamos trazer Florestan à tona”. E foi uma homenagem verdadeiramente linda!.

Lúcia: E foi aí que ele sai candidato?

Rago: Não, não. Estamos em 80... Florestan sai [candidato] em 1986. E nós fa-zemos, então, esse grande encontro no Sindicato dos Jornalistas... Nós convidamos para compor a mesa, além do homenageado, Alípio Freire, Almino Afonso, Ricardo Antunes e Chasin... Até tem uma foto em um livro de homenagem a Florestan Fer-nandes na qual aparece no lugar do nome de Chasin o de Chico de Oliveira. As pes-soas nem conhecem, nem sabem o que estão escrevendo... Então, quer dizer, neste momento, Chasin fala: “Vamos contatar os alunos, os amigos...”. Por exemplo, o his-toriador Carlos Guilherme Mota conseguiu uma carta de Julio Le Riverend, de Cuba.

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Da esquerda para direita: Florestan, Ricardo Antunes, Chasin, Almino Afonso e Alípio Freire

Corrreio da Paraiba, 14 de novembro 1982

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O historiador cubano prestou uma bela homenagem a Florestan. Chasin publicou essa carta na revista n.º 951. Fora isso, tem também a entrevista52... Essa entrevista com Florestan foi um marco, porque as pessoas desconheciam a vida, a sua origem, suas concepções etc. e acho que nesse período é que a gente se aproxima muito de Florestan Então, esse período dos anos 1980 é que vai, aí sim, matizar o nascimento da Ensaio. É no bojo disso que Chasin propõe publicar “Carta a um Camarada”, que tem dimensões muito importantes para o grupo. Porque Chasin vai mostrar que essa idéia de um partido não é universal, o partido não é modelo e que nós não seríamos um partido. O que seria uma tendência, um bloco, para exemplifi car, assim como há um bloco leniniano, trotsquista... Nós seríamos uma tendência. Mas com a compre-ensão de uma orgânica distribuída por funções, porque Chasin colocava exatamente as atribuições de cada qual, com responsabilidade. Quer dizer, então, cada pessoa ali teria sua função e responsabilidade. Produção teórica, reprodução e disseminação no corpo social eram atividades que qualquer grupo revolucionário deveria cumprir. No que concerne à produção teórica – prioritária, dadas as acaracterísticas da tendência Ensaio –, infelizmente, Chasin depois ponderou que imaginava que em poucos anos a gente cumpriria o processo de fazer muita produção. Ele não imaginava, da nossa parte, tanta debilidade, tantos tropeços, tantas frustrações, fracassos etc... Ele não imaginava...

Ester: ... que esse processo fosse tão demorado.

Rago: Porque, na cabeça dele, deveríamos pegar essa dimensão de Lênin, das funções, das atribuições, responsabilidades, e também estar colado ao movimento social, mas não enquanto partido. E, mais uma vez, a gente trocou os pés pelas mãos, ou melhor, o cérebro pelos pés... Eu vou só comentar isso, Ester, porque a gente começa a ter uma atividade prática exacerbada. A gente inverte, mais uma vez, as coisas. Veja, na Fundação Santo André, Chasin nunca concordou com o taticismo aplicado ao movimento estudantil e com as disputas de poder. A prática deveria ser direcionada para formar, para irradiar idéias. Por isso aquela questão de movimento de idéias e idéias em movimento.

Ester: Nós não tínhamos de elaborar proposta para o movimento sindical, pro-posta para tal sindicato, proposta para isso... para aquilo... Não éramos partido... Isso é muito difícil de entender. Foram anos e anos que as pessoas entendiam o Movi-mento Ensaio como um partido. Era uma loucura!

51. LE RIVEREND, Julio. “Florestan Fernandes: la história y la sociología como conciência”. Revista Nova Escrita/Ensaio. São Paulo, Escrita, ano IV, n. 9, pp. 161-3, 1982.52. Refere-se a “Florestan Fernandes: a Pessoa e o Político”, entrevista publicada na Revista Nova Escrita Ensaio n. 8.

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Rago: As pessoas agiam como se fôssemos um movimento prático.

Ester: E se comportavam como tal.

Rago: De outra parte, há também a incompreensão dos críticos do Movimento Ensaio. Para elas, o que vem a ser um movimento de idéias e idéias em movimento? Que nós éramos hegelianos!!! Ou, então, algumas pessoas entendem assim: “ah, vo-cês eram uma tendência para quebrar os partidos”. E, nesse processo, Chasin tenta mostrar: “nós temos de edifi car um movimento. Esse movimento tem na fi losofi a de Marx a sua centralidade...”. Então, aí fi ca muito evidente para nós que teríamos de estudar, voltar-nos para o exame da realidade nacional e mundial, fazer uma produ-ção teórica – e Chasin, de certo modo, fez uma programação dessa produção. Então, havia uma programação do que cada qual iria pesquisar. Pense em nossa Ideologia Brasileira, parodiando A Ideologia Alemã de Marx e Engels... Desse projeto saíram várias pesquisas sobre o pensamento social brasileiro, entre elas, Oliveira Vianna, Francisco Campos, Gustavo Barroso, Azevedo Amaral, Roberto Simonsen, Hélio Jaguaribe, Guerreiro Ramos, Golbery do Couto e Silva e tantos outros pensadores. Chasin projetava, com essa produção sobre o pensamento brasileiro – somada à das classes sociais, do movimento sindical, da esquerda, dos discursos presidenciais dos generais da ditadura militar etc. – que: “Talvez daqui a alguns anos, dois, três anos, nós teremos vários trabalhos, livros...”. Essa imagem que ele tinha, com a produção teórica, a resposta à carência teórica do marxismo brasileiro... As pessoas passariam a nos confrontar com posições no plano teórico, não mais no plano do boca a boca ou coisa parecida.

Ester: Ele pensava que, com a evolução, com o desenvolvimento da editora, daí saísse um instituto de pesquisa.

Rago: Chasin pensava num instituto que permitisse o fl uir dessa produção teó-rica. Então, quando surge o Movimento Ensaio, desde a origem, Chasin tem muita clareza de um trabalho nucleado em Marx, mas que compreenda aquilo que Lukács falava, do renascimento do marxismo. Há que fazer um novo O Capital. Há que entender a realidade brasileira, a formação histórica brasileira, a mundialização do capital. E há que recordar que Chasin incluía também estudos sobre arte, estética, história social da arte. E o nosso papel seria o da produção teórica, sua reprodução e disseminação, apoiando os movimentos sociais. Mas não como partido. No fundo, a gente pensava com cabeça de partido. E Chasin, quando volta de Moçambique, fi ca estarrecido, literalmente estarrecido com as nossas debilidades, com as nossas cren-ças: “Poxa, mas tudo aquilo que eu falei vocês jogaram no buraco?” Nós manifesta-

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mos várias debilidades que vão se revelar de modo até ostensivo, uma debilidade de caráter... Perdidos, muitas vezes, ora em taticismos, ora em oportunismos...

Ester: Também uma debilidade teórica, uma debilidade de compreensão, uma imaturidade conjugada com ingenuidade etc. etc... Outra coisa completamente dife-rente é uma debilidade de caráter que já tinha se manifestado naquele casal que foi para Moçambique antes de Chasin e família e depois também veio a se manifestar em outras pessoas nos momentos de difi culdade da Ensaio.

Lúcia: Eu só queria retomar, bem rapidamente, quando Ester fala que nós não tínhamos clareza ou achávamos que era momento de revolução, tamanha a efervescência do movimento: nós temos de lembrar que realmente existia na América Latina algo acontecendo. Revolução da Nica-rágua, depois o movimento Sendero Luminoso... E no Brasil, antes da formação do PT, havia, sim, movimentos no campo, muitos assassinatos, sem falar em todo aquele apoio de vocês ao movimento operário e dos muitos núcleos que existiam. Até 84 foi a Conclat, antes da formação da CUT53. Então, eram muito intensos os movimentos sociais. E qual era o lema? “CUT pela base.” Era tudo organização pela base. No momento em que surge o PT, quando o PT de fato vai se fortalecen-do, isso tudo vai sendo minguado, mas, naquele momento, não era equivocado, não era ilusório...

Rago: Sim, mas o que nós estávamos falando era da nossa ilusão de que o ope-rário, por ser operário, tinha uma estrutura diferenciada. E Chasin, sempre, num cer-to sentido, estava um passo à frente da realidade. Ele antecipava o que poderia acon-tecer. Quer dizer, quando você ainda estava tentando entender uma dada análise de realidade, ele já apresentava outros desdobramentos, porque ele pesquisava perma-nentemente. E, como a realidade é processual, Chasin ia adicionando, concretando sua análise da via colonial, com a intensifi cação ontológica. Ele ia se aproximando da concretude a cada determinação especifi cada. Chasin começava a mostrar traços da estrutura ontológica da personalidade operária. Analisava traços de debilidade dessas lideranças. Porque, tradicionalmente, a esquerda não trabalha com essa questão. A esquerda trabalha com a idéia de que a classe operária é uma massa que, movida por seus interesses econômicos, tendo uma direção, uma vanguarda consciente, segue a estratégia revolucionária. E Chasin mostrava que, para além da disseminação da consciência revolucionária, havia uma estrutura ontológica do caráter desses operá-rios que fazia expandir seu arrivismo. Quando Chasin, no Editorial da Ensaio n.º 9, examina o perfi l de Lula,54 apontan para a grande liderança sindical que ele era, mas, quando escreveu que Lula não poderia ser um grande estadista, muitos de nós nos

53. Central Única dos Trabalhadores, criada no I Congresso Nacional das Classes Trabalhadoras, em 1983. 54. CHASIN, J. “Nota da Coordenação”. Revista Nova Escrita/Ensaio. São Paulo, Escrita, ano IV, n. 9, pp. 5-11, 1981.

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assustamos. “Mas, Chasin, como é que vou defender isso? Como nós vamos difundir o que você está falando?”. E Chasin diferenciava “Lula” de “Luiz Inácio da Silva”.

Ester: Ele nunca incluiu o “Lula” dentro do nome de Luiz Inácio. Ele diferen-ciava o dirigente sindical daquele que havia sido eleito deputado federal e que teve uma atuação pífi a...

Capas da Revista “Nova Escrita Ensaio” nº 8, 9 e – já como “Ensaio” – o número duplo 17/18.

Lúcia: Acho também que era uma sedução pelo mundo burguês... Não conseguem fazer a crítica, porque o mundo burguês seduz de tal forma que as pessoas querem fazer parte...

Rago: Mas eu acho que é mais do que isso que Chasin está falando. Ele está falando de uma determinação ontológica do ser social. Quer dizer, é uma determi-nação específi ca de um tipo social de classe operária...

Ester: É o fenômeno da alienação traduzido para uma situação mais específi ca. Se é um traço do caráter, ele não é inato. Faz parte da condição de ser daquele indi-víduo em determinadas condições sociais, específi cas. Em termos gerais, é alienação, mas alienação em um país retardatário.

Rago: Há que grifar também a infl uência da Igreja. Acredito que a maioria dos dirigentes metalúrgicos do ABC estava afi nada com a doutrina anticomunista disseminada pela Igreja. Daí o combate permanente ao marxismo no interior do PT por parte desses setores religiosos e da “nova esquerda” não-marxista. Então, havia, de um lado, o marxismo vulgar, pois na gênese do PT, tanto o PCB como o PC do

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B foram contrários ao nascimento de um partido da classe operária. Então, quando Chasin começa a bater permanentemente nisso – nas ilusões dessa “nova esquerda” destituída de teoria revolucionária, que não repensou as experiências fracassadas do movimento operário, que fazia a apologia do “novo sindicalismo”, apagando as lutas passadas identifi cadas como “populismo”, sem possuir projeto social que articulasse a classe operária da cidade e do campo, não só no plano nacional –, vai se tornando cada vez mais clara na cabeça dele, mais uma vez, a necessidade da compreensão dos lineamentos ontológicos de Marx. Haveria que mergulhar nos escritos de Marx. Pensar os esforços de Lukács em sua monumental Ontologia do Ser Social. A necessi-dade de um novo O Capital para o século XX. Nesse seu embate, a crítica ao Leste Europeu vai se expandindo... E quando tem a homenagem a Marx e sai aquele livro especial55, e ele publica “Marx – Da Razão do Mundo ao Mundo sem Razão”, ali já começam a fi car claros, para nós, os complexos categoriais que expõem e há uma confl uência com Mészáros muito importante sobre o estatuto ontológico do capital. Desde seu retorno de Moçambique ao Brasil, Chasin debruçou-se sobre a organiza-ção de um evento marcante no Brasil, que foi o centenário do falecimento de Marx, em 1983. Já instalado em João Pessoa, Chasin torna públicas suas refl exões sobre o signifi cado essencial das determinações concretas do “socialismo num só país”. É obvio que o arrimo teórico se encontra em Marx. Chasin desenvolve um termo para designar a transição impossível. Trata-se, tematizava, de um capital coletivo/não-social. Forma imprevista de sociabilidade que não teria condições objetivas de superar o metabolismo social do capital em sua forma universalizada. Da mesma forma que Mészáros, para Chasin há que distinguir capital de capitalismo. Desse modo, não é gra-tuito que a primeira vinda de Mészáros ao Brasil seja pelas mãos de Chasin, que fez o possível para divulgar os resultados teóricos da obra Para Além do Capital em nosso país. A revolução política nascida de uma mobilização efetiva da classe trabalhadora, em virtude da ausência dos pressupostos práticos que Marx havia explicitado em sua obra com Engels, A Ideologia Alemã, impossibilitava o trânsito para a revolução social. Chasin sempre acentuou o télos da emancipação humana, da revolução do trabalho que abriria a possibilidade de um novo metabolismo social onde o processo de individuação social estaria aberto sem as barragens do trabalho alienado e estra-nhado. Daí o seu empenho em decifrar a imanência histórica dessa tragédia humano-societária, uma “transição que se autoperpetua”, como ele escrevia. De posse de uma ontologia estatuária extraída da produção fi losófi ca de Marx, uma ontologia sempre de natureza histórica, Chasin passa a desenvolver a determinação ontonegativa da

55. Marx Hoje, edição especial da Revista Escrita/Ensaio (nº 11/12), de 1983. A republicação ocor-reu em forma de livro: CHASIN, J. (Org.). Marx Hoje. São Paulo, Ensaio, 1988. “Da Razão do Mundo ao Mundo sem Razão”, de Chasin, consta de ambas as edições.

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politicidade. Cabem à revolução política as tarefas negativas, destrutivas, a tarefa de pôr abaixo os pilares; à revolução social, os passos da construção sem barragens do trabalho alienado. A esquerda confundiu e me parece ainda confundir estatismo com socialismo. Veja, a “transição que se autoperpetua” engendrou uma nova bar-bárie social, uma vez que não ultrapassou o próprio capital, e a esquerda deposita sua fé ou na ausência da democracia (daí o paradoxo do “socialismo democrático” que preserva o mercado, as classes sociais, o próprio estado) ou pensa em se valer das experiências passadas sem a autocrítica devida. A grande questão, como Chasin repetia, era a de pensar a passagem de uma sociabilidade assentada no estatuto or-ganizador do trabalho sob a lógica de uma metapolítica. Como seria possível o tra-balho vivo passar à condição de regente do trabalho morto? Então, esse momento é muito importante, porque, ao mesmo tempo em que desenvolve a crítica ao pseudo-socialismo, são os anos em que Chasin vai cada vez mais compreendendo a lógica concreta da particularidade brasileira. O que vai acontecer com antevisão do processo de auto-reforma da autocracia e ele mostra aquela realidade pendular, entre a autocracia burguesa bonapartista e as suas formas de institucionalização, que era aquilo a que a ditadura militar estava induzindo a oposição democrática. O politicismo, como ardil, é próprio do ser da burguesia. Isso vai fi cando cada vez mais claro e nos momentos concretos. Se você examinar os editoriais que escreve durante a década de 1980, são análises coladas à realidade nacional e à realidade mundial. Essa era a importância e signifi cado do lema “movimento de idéias/idéias em movimento”. Era necessário fecundar a refl exão nacional...

Lúcia: Não confundir com o que vão dizer, que acusam Chasin de ser hegeliano: “Olha o que ele defende, a razão, a racionalidade”. Não é a racionalidade transcendente de Hegel.

Rago: Obviamente, é uma racionalidade a partir do reconhecimento do prima-do do ser, da crítica ontológica do mundo. Então, Chasin vai deixando muito claro para nós que tínhamos de captar essa racionalidade extraída do mundo, e, inclusive, compreender a hierarquia dos valores humanos. Isso que eu acho que se perdeu, porque hoje, como dizia o velho Lukács, “tudo vale!”. Tudo se equivale, e a medio-cridade, aliada à desumanização, rege o irracionalismo contemporâneo e dá forma ao reino do capital. Quer dizer, a gente tinha de ter o rigor teórico de conhecer o mundo pela imanência histórica. Há os que dizem que nós temos a perspectiva de um humanismo abstrato. Estamos presos ao jovem Marx... É bom repetir que não é uma razão em geral, mas é uma consciência concreta da lógica onímoda do trabalho, que se posiciona com relação à emancipação humana. “Sem teoria revolucionária, não há práxis revolucionária”. Da compreensão do mundo, mas da posição da emancipação, da liberdade. Aí está a diferença específi ca...

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Ester: Aquilo que Chasin fala no texto inacabado “Rota e Prospectiva”56: sem essa visão da revolução social, como norte, como orientação, você se perde... Esse é o ponto que dá a direção, esse é o norte: a revolução social, a emancipação humana. Se não tiver esse norte a orientar todos os seus momentos – seja nas relações humanas, seja o momento cognitivo, seja o momento da prática, o momento da atuação etc. – você se perde. Quer dizer, nós vivemos um momento que... Veja, no “Rota e Prospecti-va”, que é o texto inacabado que foi publicado nos quatro tomos da Ad Hominem, que tem uma parte inicial, na qual ele fala da analítica paulista, quer dizer, no momen-to inicial do texto, que ele não acabou, ele morreu antes de terminar, ele tentava compreender e expor as razões do fracasso do projeto Ensaio. São duas ordens de motivações: uma é de ordem interna – nós fracassamos diante do projeto –, e outra de ordem externa, é um marxismo vulgar e a analítica paulista, de ordem externa. Ou seja, o projeto Ensaio fracassou por suas próprias debilidades internas, mas, sobre-tudo, pelo fato de ter suas propostas violentamente criticadas pelo marxismo vulgar no Brasil e não ter sido compreendido e aceito pelos representantes da “analítica paulista”. Rago está se referindo exatamente à questão de ordem interna, que diz respeito à inconsistência do ponto de vista humano, essa falta de caráter, ou falta de um suporte efetivamente humano para um projeto. Quer dizer, o projeto era muito mais pesado, muito mais importante do que as pessoas que estavam ali eram capazes de suportar. Não somente porque eram débeis teoricamente, ou porque não estuda-vam ou porque não se dedicavam à venda dos livros... Porque a questão se mostrou uma questão essencialmente humana. Uma coisa que Chasin sempre dizia em todas as intervenções, e que era muito cara a ele, era o problema da autoconstrução individu-al. Em que medida, a cada momento, eu estou me revolucionando, eu estou me in-dagando, eu estou me tornando melhor no esterco das contradições, para usar uma ex-pressão de Marx e, depois, de Lukács? Em que medida, em meio ao esterco das contradições, eu estou, apesar disso, não obstante isso, e por isso, me tornando me-lhor? Quer dizer, esse fracasso de ordem interna diz respeito a um processo de apodrecimento, de velhacaria pessoal que chegou a um ponto que eu nunca imaginei que fosse testemunhar uma coisa dessa natureza. E, efetivamente, isso, para Chasin, foi algo muito violento, mais do que a falência da Ensaio. Porque, logo na imediati-cidade da falência da Ensaio, ele falou: “Faliu? Vamos partir para outra, a Ad Homi-nem”. O problema não está em a editora falir, a gente pode constituir outra. O problema foi o apodrecimento das pessoas, a que ponto a velhacaria, o mau-caratis-mo chegou. Foi baixo, foi o fundo do poço, e foi isso que eu pessoalmente testemu-

56. CHASIN, J. “Rota e Prospectiva de um Projeto Marxista”. Revista Ensaios Ad Hominem. Santo André, Ad Hominem, tomo 1, n. 1, 1999. Reproduzido nos tomos II, III e IV da mesma Revis-ta.

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nhei, e que derrubou Chasin. O que derrubou Chasin não foi a falência da editora... Porque uma característica fundamental dele – e isso ninguém compreende, porque eu não conheço outra pessoa que tivesse essas características – é o rigor. Mesmo porque Lukács, nos Prolegômenos57, que eu trabalhei muito, que descobri... Foi um texto que Chasin não leu, porque os textos que ele lia, ele deixava rastros, anota-ções... Os Prolegômenos à Ontologia do Ser Social ele não leu. Estava lá na estante, mas ele não leu. Quando eu comecei a fazer a revisão técnica da tradução58 – que, na verda-de, foi outra tradução – eu encontrei outro Lukács, um Lukács um pouco diferente do da Ontologia. E eu encontrei lá em Lukács coisas que Chasin dizia antes de morrer e que ele não tinha lido em Lukács. Não é à toa que justamente nos Prolegômenos a questão que eu acho mais importante, que eu considero mais importante é a relação indivíduo e gênero... Indivíduo e sociabilidade. Então, essa preocupação com a indi-vidualidade era permanente. Tanto no sentido teórico quanto no interior das rela-ções humanas que ele estabelecia... A individualidade dele mesmo, e a individualida-de das pessoas que o cercavam, que trabalhavam com ele. Por isso é possível entender porque ele sempre apostava no outro... Porque há muitos que dizem: “Bom, Chasin se dedicou tanto, se esfacelou...”. Morreu, afi nal de contas, por conta daquilo que ele fez. Do sangue que ele deu, do trabalho, das horas, da preocupação que o consumi-ram... Ele podia muito bem ter fi cado em casa sozinho e escrito uma dezena de li-vros. Aí, eu pergunto: “Para quê? Para a ‘crítica roedora dos ratos’?” Que editora ia editar alguma coisa de Chasin? Para três ou quatro lerem os seus textos? Não era isso que ele queria. E eu acho que ele estava certo. Ele só pensava na possibilidade de um trabalho coletivo, com os outros, pelos outros, e era um trabalho coletivo em que até, como diz Rago, até o indivíduo levantar o punhal, ele continuava apostando. Ele não se equivocou com as pessoas, ele sabia muito bem quem eram. Dos lados débeis, das qualidades, defeitos. Mas ele sempre falava: “Eu me auto-intitulo otimista pondera-do”. Ele sempre apostava na dimensão positiva das individualidades. Ele apostava que essa dimensão positiva viesse a prevalecer sobre as dimensões negativas que todos nós temos, ele inclusive. Por mais brilhante que ele tenha sido em todos os aspectos, ele não era onisciente e nem perfeito. Ele tinha as contradições individuais e pessoais dele também... Então, primeiro, ele não foi ingênuo, não se equivocou. Na verdade, ele não tinha a noção concreta do ponto a que as coisas tinham chegado [na direção da Editora Ensaio] aqui em São Paulo. Tinha exata noção do que acontecia com as pessoas que eram responsáveis pela Editora e pelo movimento Ensaio. Ago-

57. LUKÁCS, G. Prolegômenos à Ontologia do Ser Social, texto inédito no Brasil, deixado incompleto por Lukács, que faleceu em 1971.58. A Profa. Ester Vaisman realizou a revisão técnica do texto de Lukács, cuja edição está sendo preparada pela Boitempo Editorial.

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ra, é verdade que vários encaminhamentos, decisões, atitudes e comportmentos lhe foram propositalmente omitidos. Aqui em São Paulo valia o argumento de autorida-de; aqui valia instrumentalizar o outro para que o interesse pessoal de alguns preva-lecesse. Instrumentalizar a editora; instrumentalizar a secretária da editora; instru-mentalizar a sede da editora; fazer com que a editora fosse trampolim para a satisfação, propensão de fi ns puramente egoístas, pequenos, medíocres. É óbvio que ele não tinha percebido que a coisa chegou tão fundo, tão baixo. Mas ele não se equivocou, ele sabia perfeitamente com quem ele estava lidando. Mas sabia, também, que corria um risco. Ele não via, não concebia um projeto teórico a não ser por meio de um grupo, a não ser por uma forma coletiva de trabalho. Que isso, em nossos tempos, seja impossível, isso não é culpa de Chasin, não é responsabilidade dele, mas é por conta mesmo dos tempos que nós estamos vivendo, que produz as individua-lidades às vezes as mais pútridas possíveis. Não foi ele que criou essas individuali-dades, mas foram os nossos tempos. O projeto dele está inacabado. Nenhum de nós soube, nesses dez anos, dar o devido prosseguimento para aquilo que ele iniciou e desenvolveu do ponto de vista teórico... Nenhum de nós deu prosseguimento àquilo que ele fazia em termos de análise de realidade, embora existam por aí pessoas que se autodenominem os verdadeiros herdeiros de Chasin, não é? Quer dizer, todo o tipo de bizarrice ou de bisonhice é possível nos dias de hoje. Nada mais me espanta. É comum se afi rmar que ninguém é insubstituível. Eu acho que, no caso de Chasin, ninguém pode substituí-lo. Não fomos capazes de dar prosseguimento ao seu traba-lho de pesquisa de modo conseqüente. De todo modo, todos nós, dentro das nossas possibilidades, procuramos levar à frente orientações, artigos, teses. E o mais impor-tante: levar uma vida minimamente digna, contudo, poderíamos ter feito muito mais – e não fi zemos. No que diz respeito ao projeto Ensaio, é preciso levar em conta que várias vezes ele teve que lembrar as pessoas da necessidade da venda de mão em mão, e que agora outras editoras estão seguindo a mesma direção. Caso contrário, certas publicações não sobrevivem... Ele teve de vencer muitas resistências à base da argu-mentação, à base da prova, à base da demonstração. Até que chegou o momento em que não era mais possível continuar daquela forma e ele teve de denunciar publica-mente aquela pessoa que visivelmente... visivelmente... havia muito tempo, vinha solapando todo o projeto de uma maneira absolutamente evidente e sórdida. Então, vamos lá! Chasin era um ingênuo? Era um utopista? Era um bobo? Chasin podia ter qualquer defeito, mas ele não era utopista, não era ingênuo, não era bobo, ele sabia exatamente com quem ele estava lidando, volto a repetir. Mas a gente lida e trabalha com as pessoas possíveis. Agora, que no fi nal das contas todo o projeto tenha fra-cassado, e que isso tenha, infelizmente, coincidido com a morte dele, é uma coinci-

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dência infeliz, mas uma coincidência. Isso não estava “escrito nas estrelas”. E eu considero essa entrevista um momento não só de esclarecer determinadas mistifi ca-ções e calúnias que se montaram em torno da fi gura dele, mas também de mostrar que não é ingenuidade, não é utopismo... Se orientar, ter como norte, ter como ob-jetivo e ter como ponto de orientação a emancipação humana, porque, do contrário, é a total capitulação, é a total submersão naquilo que o mundo do capital produziu de pior.

Vânia: E é interessante como Chasin combatia teórica e praticamente, na sua vida pessoal, lutando contra essa fragmentação, contra esse egoísmo...

Ester: Essa manipulação, essa instrumentalização do outro, que é o que passou a ocorrer [no grupo Ensaio] aqui em São Paulo. Uma instrumentalização atroz do outro. A ponto de se calar o outro, a ponto de se aterrorizar o outro. A ponto de se manipular os sentimentos mais autênticos do outro.

Lúcia: Tudo isso afastou muita gente que estava envolvida naquele trabalho

Rago: A regência em nosso trabalho se punha no interior de uma hierarquia de valores. Quer dizer, havia regramento no sentido da autoconstrução, a crítica pro-funda não era no sentido destrutivo, mas de elevação humana. Chasin sempre dava a postura exemplar, também aqui regia o princípio segundo o qual “o indivíduo é o que faz e como faz”. Basta pensar que poderia ter se dedicado a uma “carreira-solo”, talvez ganhasse muito com isso, mas sempre tentava mostrar que era no trabalho conjunto, um potencializando o outro, que as individualidades poderiam se expandir humanamente, os indivíduos poderiam se potencializar mutuamente, sem aqueles indivíduos dissimulados, cínicos, sem relações...

Ester: Sem relações hipócritas...

Rago: Exato. Chasin dizia que as contradições também nos pegavam. Isto pode provocar risos... mas é que algumas pessoas começaram a pensar que estavam imu-nes, dada a sua consciência revolucionária, dotadas de “ontologia”, resguardadas, porque detinham a “sabedoria”... As pessoas pensavam que elas tinham a verdade e o mundo não as respeitava. E Chasin falava: “Ao contrário, as contradições sociais estão em nós”...

Lúcia: Seria interessante retomarmos as refl exões chasinianas acerca do Leste Europeu, porque, me parece, Chasin vai se diferenciando inteiramente das análises de Lukács...

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Ester: Chasin, entre outras coisas, procurou mostrar o Leste Europeu como forma ainda de manutenção do capital, mas uma forma de capital coletivo/não-social, no qual não se tem a apropriação social do mundo produzido pelo trabalho. E nesta relação de continuidade... Ainda que a forma do Leste Europeu tenha sido imprevista historicamente, quer dizer, nem Marx, nem o próprio Lênin, nem Trotsky puderam imaginar que aquilo daria esse monstro, inclusive no seu gigantismo. Quer pense o que foi o terrorismo de estado nesse período, de massacre de milhões e milhões de vidas... E Chasin falava da iliberdade do trabalho. Isso é uma coisa muito importante, porque em tudo o que você faz na vida, se você não tiver a responsabili-zação e... fazendo aquilo para a sua autoconstrução, aquilo não lhe diz respeito.

Rago: Chasin começa a capturar as determinações ontológicas do processo do Leste Europeu e daí essa necessidade visceral da compreensão de Marx. Quer dizer, há um ritmo muito mais acentuado da compreensão das passagens de Marx, este projeto da “redescoberta do pensamento de Marx”, destrinchando as três críticas ontológicas: crítica ao pensamento especulativo, à politicidade e às formas materiais e ideais do capital. Porém, isto não signifi ca um mero estudo dos lineamentos on-tológicos inscritos na obra de Marx, mas também compreender as novas determi-nações dos mundos do capital. E, desse modo, compreender ontologicamente essa forma social imprevista, quer dizer, Marx especifi cou a impossibilidade de transição sem os pressupostos práticos para a consumação da revolução social e colocou nas páginas de A Ideologia Alemã que, se a revolução comunista ocorresse num país sem esses pressupostos práticos, o comunismo local, mantendo relações com países com forças produtivas mais desenvolvidas, seria inevitavelmente esmagado. Quer dizer, qualquer país ou conjunto de países com a estrutura produtiva mais desenvolvida, a formação mais desenvolvida captura a de menor desenvolvimento das forças pro-dutivas, que é da lógica histórica que Marx detectou no século XIX, e a história e o fi m do Leste Europeu comprovaram isso. Então, quando Chasin desenvolve essa categoria do capital coletivo/não-social... quer dizer, não era uma forma de socialismo. O socialismo de acumulação... Era uma impropriedade o uso do termo.

Vânia: Ou capitalismo de estado...

Ester: Ou socialismo realmente existente...

Rago: Então, isso faz com que haja um desenvolvimento da nossa compreen-são e Chasin anuncia a derrocada do Leste... Eu nunca me esqueço quando o Leste desaba, no ano de 1989 para 1990, e Chasin afi rmava: “nações que não existem mais; classes se foram, partidos se foram e pessoas se foram!”. Quer dizer, a quebra das

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possibilidades históricas, no fundo, atingia a nós próprios. E Chasin aventa o nos-so fi m. Lembre-se da celeuma do tópico sobre a “morte da esquerda”. Para mim, 1989 é um divisor também. Porque 1989 é um mundo que Chasin antecipa naquela nossa reunião de meados do ano de 1989 – eu não me lembro se é maio –, quando ele fala que Collor iria vencer [as eleições presidenciais]. Quer dizer, se dariam em novembro, e Chasin falava: “Se não houver uma confl uência eleitoral Brizola/Lula, tirem o cavalinho da chuva. A direita volta ao poder depois de a última eleição ter ocorrido nos anos 1960 e no início de 1961, termos como vitorioso Jânio [Quadros] e desde lá não houve eleições democráticas. Essas eleições ocorrendo, vão dar a vitória para a direita”. Brizola e Lula não mudariam o país, mas poderiam revolver a lógica produtiva assentada na superexploração da força de trabalho, uma transição conectada com México e Argentina. É claro, se houvesse disposição e estruturas da esquerda para pensar uma transição. Então, nesse momento em que Chasin expõe que nações se modifi cam, outras acabaram, classes se acabaram e indivíduos se aca-baram, é que ele coloca a nossa própria situação, pois deveríamos nos modifi car para sobreviver. Não é à toa, então, que essa parte da “morte da esquerda” aparece num texto belíssimo de Chasin, “A Sucessão na Crise e a Crise na Esquerda”59, quando ele demonstra ali radicalmente o fi m de possibilidades, que a esquerda precisaria repensar inteiramente as derrotas sucessivas do movimento operário, as transições impossíveis e a velocidade das mutações intrínsecas à mundialização do capital. E Chasin colocava também que muitos de nós poderiam dar um passo atrás, sabendo que nossos esforços seriam redobrados. E no “Rota e Prospectiva...” ele fala muito claramente desses intelectuais que, na universidade, continuam a falar do proleta-riado, mas agora na condição de mercador do proletariado. Então, é a desfi guração do intelectual... Chasin faz uma análise ali do que é um intelectual, é uma coisa que ele sempre colocava para nós. Chasin decifrava o perfi l do intelectual que não tinha a mesma responsabilidade, a mesma disciplina do operário, não tinha essa dimensão prática, de gerar um produto concreto, controlado pelo capitalista ou seus gesto-res. Daí, na universidade, o intelectual fi car surrupiando o pensamento marxista enquanto mercador na universidade. Então, Chasin colocava que a pesquisa é sem fi m; a possibilidade da realização do conhecimento é um processo humano revolucionário. Daí, novamente, a importância dada por ele a essa urgência histórica e à necessidade premente da produção teórica. O que é a razão revolucionária? O que Gramsci quer dizer com a expressão “a verdade é concreta”? Por que as pessoas não falam que Gramsci é hegeliano? Por que as pessoas não falam que Lênin é hegeliano quando ele sintetiza a máxima marxiana: “Sem teoria revolucionária não há prática revolucioná-

59. Publicado na Revista Ensaio 18/19, de 1989.

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ria”? Certamente, não é a “identidade da identidade e da não-identidade” de Hegel, não se trata, nos lineamentos ontológicos do pensamento marxiano, de uma razão que sobrevoa a história num processo histórico para examinar os seus feitos. Chasin está falando de um télos da emancipação humana, não num confronto especulativo, mas nas contradições do mundo societário, onde viscejam possibilidades históricas para as respostas dos indivíduos socialmente determinados. Portanto, trata-se de possibilidades genéricas que o indivíduo tem de se autoconstruir, naquilo que Ester falou: no auto-revolucionamento permanente, ainda que sob o capital. Uma conduta éti-ca. Quer dizer, se a ética não é possível enquanto possibilidade humano-societária de indivíduos se realizarem plenamente sob o metabolismo social do capital, uma pseudo-revolução é o que a esquerda pensa: a ética na política...

Ester: A revolução como apelo ético...

Lúcia: Voltando às possibilidades do quadro brasileiro, como fi ca a questão da teoria chasi-niana da via colonial de objetivação do capital?

Rago: Chasin já alertava para o uso indevido que as pessoas estavam fazendo da teoria da via colonial. O capital industrial já estava materializado. O capital chegou a essa forma monopólica de capital incompleto – e, por favor, com desenvolvimento das forças produtivas materiais. Não era mais sustentável uma teoria do subdesenvolvimento, sobre a qual a esquerda se debruçava... Torna-se inadequado para os tempos atuais o uso da categoria de capitalismo híper-tardio...

Ester: Exatamente, porque a via colonial chegou à sua fi nalização. No meu modo de pensar, insistir na análise da situação brasileira atual a partir da categoria da via colonial é um erro. Um saudosismo teórico, na ausência de um novo feixe cate-gorial para entender o que se passa nesse exato momento. O próprio Chasin, antes de morrer, se pronunciou sobre isso, inclusive por escrito.

Rago: Acabou nessa confi guração, na confi guração da modernização excludente e com alto desenvolvimento das forças produtivas, com um mercado interno amplia-do e diversifi cado. E era sobre isso que a gente tinha de se debruçar, porque as forças produtivas são expressão do trabalho humano...

Ester: São capacitação humana...

Rago: Sim, capacitação humana. E Chasin deixa isso claro nas refl exões do “Rota e Prospectiva...”, segundo as quais o homem vem se tornando demiurgo da natureza, falta ser demiurgo de si mesmo... resolver a saída da pré-história humana de que Marx falava e norte do humanismo radical, a capacidade de produção de

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uma vida humana, livre e plena, ainda que no sentido histórico do termo. Implica o quê? Que, para nós, é cada vez mais claro que a história em Marx é aberta, é autocons-tituição social da própria individualidade – caso contrário, temos a “impotência”, o “apodrecimento sob a própria pele”. Então, nós temos de repensar o que está acarretando o fenômeno de desenvolvimento universal das forças produtivas. Porque hoje o capital se depara com uma crise sem precedentes. E é notável que se fala todo dia na crise e nos aportes fi nanceiros para o sistema fi car de pé e pouco se diz acerca das demissões volumosas que já põem o navio à deriva, e tendencialmente tendem a crescer... Chasin se valia dessa imagem, o capital como um navio à deriva. Porém, há que ressaltar que a universalização do capital é também universalização das forças do trabalho. Os críticos de Marx acentuam que sua teoria faliu quando o ser social da classe trabalhadora se fragmentou. Com isso, torna-se impossível uma consciência revolucionária da totalidade social. Esta teoria reformista se esquece de dizer que a universalização das forças produtivas materiais não faz desaparecer como um passe de mágica a lógica onímoda do trabalho. Se você pensar que o trabalho se universalizou, que a cooperação social do trabalho se potencializa graças a sua universalização, signifi ca que não é só o capital que está universalizado, enquanto mercado globalizado, mas signifi ca que a classe trabalhadora que se confi gura nessa nova quadra é também uma nova classe operária. Marx, naquela famosa “Carta a Annenkov”, diz o seguinte: “O que é história? O que dá continuidade ao processo histórico? O desenvolvimento das forças produtivas materiais. E o que é o desenvolvimento dessas forças produtivas materiais? O desenvolvimento do indivíduo. O que é a história senão a produção dos próprios indivíduos na história?” E nós chegamos a um momento em que se dá aquilo que Marx havia colocado como tendência do capital, se não houvesse ne-nhuma barreira, a sua mundialização. A mundialização nada mais é do que o domínio planetário do capital sobre o trabalho. Mas é também, de modo contraditório, a universalização do trabalho...

Ester: E do indivíduo social também...

Rago: E do indivíduo social, que é a chave para Chasin. É estranho como parte da esquerda começa a negar o desenvolvimento das forças produtivas, que é capacidade ilimitada de produção material, e, portanto, de nós próprios, sopesando formas de organização social que têm como base a pequena produção rual, a economia solidá-ria, a economia ecológica etc. E o legado politicista da analítica paulista continua a dar o tom. Chasin escreveu que a Ensaio foi espremida por dois pólos: o pólo que ele chama de nobre60 e o pólo do baixo clero. Esse pólo nobre simplesmente foi arrogante.

60. J. Chasin se referia aos intelectuais do PSDB como “nobres”, e aos do PT como “baixo clero”, porque a extração dos intelectuais dos partidos era a mesma: conviviam e produziam suas teorias

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Desconsiderou as questões que Chasin abria para o debate. Mas não tinha outro jeito, porque a crítica de Chasin é visceral.

Ester: Agora, um aspecto que deve ser lembrado é o seguinte: ainda... Eu acho que é preciso fazer algumas referências ao texto de 1989. Não só por conta das elei-ções, não só por conta de que em 1989 ocorre a implosão do Leste Europeu, mas porque 89 signifi cou para o Brasil e para a América Latina em geral a última chance de um revolucionamento, de uma mudança. Foi o último momento, a última chance histórica para uma mudança. Mas que tipo de mudança? Naquele momento, Chasin propunha uma mudança na estrutura da produção, sem revolucionar ainda o próprio modo de produção. Tal mudança implicava a alteração completa do relacionamento com o capital estrangeiro, uma redefi nição cabal da relação com o capital fi nanceiro etc. Agora, há alguns ex-alunos de Chasin lá de Belo Horizonte que afi rmam pe-remptoriamente que ele errou. Bom, post festum eu posso dizer uma série de coisas... Eu posso até dizer que Marx errou, post festum! Agora, naquelas condições, naquele momento, realmente era a última possibilidade. Não deu, como Rago falou, Brizola/Lula, Collor venceu, acabou! Quer dizer, encerrou, terminou... A oportunidade his-tórica foi perdida. Não foi Chasin que errou. A história entrou por um caminho que afastou qualquer possibilidade de transformação efetiva no sentido de uma democracia social, de uma república social no Brasil e, por conseqüência, na América Latina.

Vânia: Para retomar o fi o da meada: estávamos com Chasin em João Pessoa, por ocasião da celebração do centenário de Marx. Que atividades Chasin desenvolveu por lá?

Ester: No Nordeste em geral, as atividades foram muito promissoras. Num primeiro momento a carência era, ao mesmo tempo, a força. Assim, ele desenvolveu um trabalho incansável; ele viajava, orientava, dava palestras, dava cursos – a ponto de Giannotti ironicamente referir-se a ele como o “vice-rei do Nordeste”. Pouco tempo depois, o que veio a acontecer na universidade? Ao mesmo tempo em que se abriu o processo de democratização, eleições para todos os tipos de cargo: para chefe de departamento, coordenador de colegiado de curso, para diretor de centro, reitor etc. etc., a “Paraíba profunda”, que é como nós denominávamos as velhas oligarquias – que, até aquele momento, não tinham o controle da universidade, e por isso várias vezes dirigiam ataques violentos à universidade, porque grande parte dos professores era de fora, eram professores estrangeiros ou da região Centro-Sul e

na USP e no Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (Cebrap): José Arthur Giannotti, Fer-nando Henrique Cardoso, Ruth Cardoso e outros, fi liados ao PSDB; Marilena Chauí, Francisco de Oliveira, Francisco Weffort e outros, fi liados ao PT. Enfi m, os dois partidos, embora diver-gentes no campo eleitoral, comungavam as mesmas idéias, realizavam as mesmas análises sobre a realidade brasileira, ancoradas nas teorias da dependência, do autoritarismo, do populismo e da marginalidade.

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que, por isso... Havia uma coluna no jornal chamada Linha Direta em que diariamen-te o colunista atacava, fazia uma campanha xenófoba... Rubens Pinto Lyra, que era professor, num dos números da Nova Escrita/Ensaio, publicou um artigo sobre essa questão61... Enfi m, a Paraíba profunda fi nalmente conseguiu se apoderar da universi-dade à base do velho clientelismo, que ela é sábia em utilizar, e tornou a nossa situação insuportável. A gota d’água disso foi uma defesa de dissertação do chamado Frei Marcelino, que havia participado, segundo ele próprio, de um movimento camponês em Catolé do Rocha. Queria aplicar Foucault na análise daquele movimento. E um dos professores que iam participar da banca – não havia naquele momento exame de qualifi cação – disse: “Isso não tem condições de ir para defesa”. Chasin era, então, o coordenador do Colegiado e tentou tentou pedir para o orientador, que era Jean Robert Weisshaupt, convencer Frei Marcelino de não ir à defesa, porque ele seria, muito provavelmente, reprovado. Apesar de todos os esforços para convencê-lo, Frei Marcelino insistiu e disse: “Quero ir à defesa”. Agora, imaginem fazer uma dissertação sobre si mesmo com base nas categorias da Microfísica do Poder, tendo em vista analisar o movimento camponês de Catolé do Rocha!!! Sabendo que havia, en-tre os membros da banca, professores que tinham levantado restrições ao seu traba-lho, ele resolveu levar um grupo de camponeses para o auditório. Iniciada a argüição, os camponeses batiam o pé no chão e não deixavam os argüidores se pronunciarem, principalmente, a professora Tereza Calvet, que tinha levantado a impossibilidade de aprovar a dissertação. A dissertação foi reprovada. Inconformado com a decisão, ele resolveu, em seu programa de rádio, “denunciar” o ocorrido. No entanto, toda a carga do tal Frei Marcelino foi dirigida contra Chasin, porque Chasin era comunista. Frei Marcelino se valeu de todos os recursos possíveis e imagináveis. Foi até o Con-selho Universitário, mas, no fi nal, ele perdeu...

Vânia: Chasin estava na banca?

Ester: Não. Ele era coordenador do Colegiado. Apenas isso. Mas, aí, o que aconteceu? De repente, aquilo que Chasin chamou de “os muitos marcelinos” que havia em João Pessoa resolveram se “vingar” e aparece em público, publicado em um jornal, a notícia de que Chasin não era doutor! Veja... Nós falamos há pouco que Vicente Unzer de Almeida tentou impedir a defesa da tese de Chasin. Mesmo assim, depois de muita batalha jurídica, Chasin defendeu. Inconformado, Vicente Unzer de Almeida tentou anular a defesa, entrando com um recurso no Conselho Federal de Educação. Nós não sabíamos disso! Então, alguém... algum “Marcelino” foi procurar algo que pudesse prejudicar Chasin e localizou o tal processo. Como eu disse, Chasin não tinha conhecimento disso! Mas, em seguida, procuramos verifi car

61. LYRA, Rubens Pinto. “Reacionarismo e Xenofobia na Paraíba: o caso da UFBp”. Revista Nova Escrita/Ensaio. São Paulo, Escrita, ano IV, n. 8, pp. 51-68, 1981.

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o que realmente havia acontecido com ajuda de um advogado. Constatamos que, mais uma vez, Unzer havia perdido. De fato, ele havia interposto um recurso, mas, mais uma vez, ele perdeu.

Rago: Mas como isso apareceu em João Pessoa?

Ester: Não conseguimos saber, mas o fato que eu quero aqui ressaltar é que isso foi aos jornais, com uma manchete intitulada: “Chasin Doutor?”. Mas Chasin não esmoreceu! Pesquisou o que realmente havia ocorrido e sentiu-se obrigado a vir a público divulgar todo o processo, acrescentando a informação mais importante, que havia sido – propositalmente, é óbvio – sonegada. Ou seja, que existiu o recurso, mas que o parecer do CFE foi contrário, o CFE não acatou o recurso de Unzer, que àquela altura já tinha morrido. Essa tentativa de desmoralizar Chasin publicamente havia mostrado o seguinte: nossa situação na UFPb havia se tornado insuportável. Aí surgiu o convite de nos transferirmos para a UFMG e, naquele momento, acha-mos que era a melhor coisa a fazer, porque a Paraíba profunda já tinha, com seus ten-táculos, asfi xiado a vida universitária, pelo menos para nós! Já tinha tomado conta da universidade, impedindo qualquer trabalho mais conseqüente. Agora, em 1980, Chasin desenvolveu uma participação importante na universidade, esteve presente em vários debates e encaminhou soluções para problemas muito graves que tinham surgido, por exemplo, perseguição de professores. E, dada a visibilidade que ele adquiriu, a forma, a facilidade com que ele se expressava em público, o seu carisma, a argumentação que ele desenvolvia... Ele foi logo proposto para ser candidato da Associação Docente. Ele veio a ser presidente da Associação Docente em 1980 e liderou a memorável greve de 80, que foi a primeira grande greve das Ifes, das Insti-tuições Federais de Ensino Superior. O resultado dessa greve foi muito importante, pois não apenas criou a carreira de professor, que depois foi reformulada etc... Mas o fato é que não existia carreira, a maioria dos professores era contratada como professor visitante, como era o caso dele, ou como professor colaborador. Foi uma greve que, então, não apenas gerou a carreira, mas foi uma greve que acompanhou toda a movimentação social grevista, agora no campo dos professores do ensino fe-deral superior. Então, ele lidera essa movimentação. O comando de greve se instala, primeiramente, em Goiânia. E disso depois é criado o Andes62 e o próprio movi-mento docente, enquanto tal, do ensino superior. Pouca gente sabe dessa hisória, por isso é importante registrar. Mas logo surgiram problemas, porque existiam lá em João Pessoa as vestais, não é? Aquelas pessoas que não assumiam... não tinham essa condição de aparecer em público, de falar em público, de liderar assembléia, mas que fazem esse trabalho por trás; que são consultadas. E os petismos, vamos dizer,

62. Sindicato Nacional dos Docentes das Instituições de Ensino Superior.

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nascentes... já ali presentes, o que tornou, também, os anos de direção dele na Asso-ciação Docente bastante complicados. Mas, por outro lado, havia também o intenso trabalho lá a Escrita/Ensaio, por exemplo, a entrevista com D. Zumbi, ex-D. Pelé, a entrevista com Adam Schaff e assim por diante63... Nós trouxemos Mészáros para o evento de 1983, o seminário sobre Marx, fi zemos a entrevista... Bom, o seminário foi algo inesquecível. Primeiro, é preciso lembrar que, bem ou mal, nós ainda estávamos com Figueiredo64 no poder. No entanto, Chasin conseguiu o envolvimento de várias entidades de fomento à pesquisa: do CNPq, da Capes, da própria UFPb, de forma que foi levantado um fi nanciamento para um evento de caráter internacional, porque veio Mészáros participar. Participaram também Michel Debrun, Gerd Bornheim e muitos outros... E disso resultou aquele número especial que já mencionamos65. Pa-dre Vaz, embora não tenha ido, colaborou com o caderno sobre Marx66 e assim por diante. E todas as atividades se realizaram num local construído pelo governador da época, Tarcísio Burity67, no Bairro dos Estados, lá em João Pessoa, o Espaço Cultu-ral. Lá havia dois anfi teatros divididos por uma espécie de tapume... Na abertura do evento, essa grande divisória do palco foi suspensa e a Orquestra Sinfônica da Paraí-ba, que na época era uma das principais orquestras do país, abriu o evento. Então, os dois anfi teatros, e a orquestra no centro, com uma abertura dos trabalhos; toda uma secretaria montada. As coisas funcionaram perfeitamente bem, com comunicações, mesas redondas, palestras etc. Evidentemente que o convidado principal foi Mészá-ros, mas havia intelectuais de peso, não necessariamente marxistas, mas estudiosos de Marx, ou que tinham alguma relação com ele.

63. “De D. Pelé a D. Zumbi: a prática política da fé”, entrevista com D. José Maria Pires, e “Contra o Stalinismo e a Alienação”, entrevista com Adam Schaff. Revista Nova Escrita Ensaio. São Paulo, Escrita, n. 10, 1982. Mencionem-se, também, as entrevistas com Mészáros (Revista Ensaio n. 13) e Paulo Freire (n. 14).64. João Batista de Oliveira Figueiredo assumiu o governo federal em 1979 e saiu em 1985, quan-do foi substituído por José Sarney.65. Revista Nova Escrita Ensaio n. 10/11, Edição Especial – Marx Hoje, republicada posteriormente em formato de livro.66. VAZ, Henrique Lima. “Sobre as Fontes Filosófi cas do Pensamento de Karl Marx”. Revista Nova Escrita/Ensaio. São Paulo, Escrita, ano V, n. 10/11, pp. 247-160, 1983.67. Tarcísio de Miranda Burity (1938-2003), político, escritor e professor.

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Da esquerda para direita: Debrun, Chasin, Mészáros e ??. Durante o I Congresso de Filosofi a do Nordeste promovi-do pelo SEAF--ordeste em outubro de 1983.

Rago: E a Orquestra toca Antonín Dvorák, a Sinfonia do Novo Mundo68...

Ester: Exato! Eu me lembro do jeito de Gerd Bornheim, ele estava ao lado, em uma das frisas, olhando para aquilo sem acreditar que uma coisa daquela enver-gadura pudesse acontecer em João Pessoa, na Paraíba. E aconteceu. Inacreditável, mas aconteceu. E foi um acontecimento memorável. E isso tudo incomodou. Inco-modou a oligarquia, a Paraíba profunda. De forma que, de 1980, quando Chasin foi para lá, até o início de 1986, ele teve uma atividade intensa em Maceió, em Natal, em Fortaleza, ele não parava de viajar. E, ao mesmo tempo, orientava a linha editorial da Ensaio, sempre preocupado, produzindo material, escrevendo... incentivando outros a escreverem; conseguindo textos para publicação; idéias novas etc. Então, foram anos de atividade muito intensa e febril lá em João Pessoa.

Rago: A Anpof69 é desse período?

Ester: A Anpof foi criada em 1983, em Diamantina, e Chasin foi um de seus fundadores. Foi membro da diretoria por duas vezes.

Vânia: Vocês foram convidados por quem para irem para Belo Horizonte?

Ester: Por José de Anchieta Correia, que era o coordenador da pós-graduação.

68. Antonín Dvorák (1841-1904), compositor tcheco, escreveu a Sinfonia do Novo Mundo em 1893.69. Associação Nacional de Pós-Graduação em Filosofi a.

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Rago: É nesse momento que é formado o Grupo de Pesquisa em Marxolo-gia70?

Ester: Isso foi por iniciativa dele, criar esse grupo de caráter multidisciplinar; daí o titulo: Marxologia, Filosofi a e Estudos Confl uentes. Chasin queria que professores, pesquisadores de outras áreas participassem do grupo. Trata-se da velha caracerística dele, ele nunca se viu trabalhando no isolamento. Nunca se viu nessa condição. A Seaf – a Sociedade de Estudos e Atividades Filosófi cas – também foi um momento importante, que precedeu a criação da Anpof, ainda durante a ditadura, que ele tam-bém participou, ajudou a desenvolver as atividades. Ela foi muito atuante em Belo Horizonte também.. Enfi m, eu tentei levar lá, sozinha, essa atividade, mas é pratica-mente impossível. Quando Chasin morreu a Ad Hominem não existia ainda. Estava tudo projetado e , quando me vi naquela situação, pensei nesses termos: “Bom. Em homenagem à memória dele, o mínimo que eu posso fazer... O mínimo que a gente pode fazer é publicar esses quatro tomos...”. Publicamos o Pensamento Vivido, publi-camos A Miséria71 e o Integralismo de novo. De fato, antes de morrer Chasin estava pensando em publicar novamente o Integralismo, mas numa versão mais sintética. Um pouco antes de falecer, Chasin elaborou um grande projeto de pesquisa que visava a resgatar, a partir da história da fi losofi a, todas as tentativas, todas as propostas de constituição de uma ontologia etc. Mas, novamente, não se tratava de um projeto que ele pensava levar a cabo de modo individual, não se tratava, volto a insistir, de uma pesquisa pessoal, porque individualmente era inexeqüível. Ele tinha em mente também fazer os devidos ajustes de contas com Lukács. É pena ele não tenha chega-do a ler os Prolegômenos, pois eu acho que ali há algumas coisas muito preciosas, como ele deixou escrito no “Rota e Prospectiva”, ou, como eu por diversas vezes reiterei em sala de aula, Lukács atinou para isso no fi nal da vida, quando tudo já estava des-moronando… embora Lukács tenha sido enfático ao afi rmar que o retorno às coisas mesmas só poderia se dar a partir do Marx, por meio do pensamento de Marx.

Lúcia: Já que falamos em Lukács, por que não está correto dizer ontologia do traba-lho?

Ester: Ontologia só pode ser referente a uma entifi cação ou a um ser. Ou seja,

70. Grupo de Pesquisa: Marxologia, Filosofi a e Estudos Confl uentes da UFMG, acessível pelo site: < http://plsql1.cnpq.br/dwdiretorio/pr_detalhe_bt_grupos?strPNroIdGrupo=0333701CJFCKHN&strPQuery=&strPConector=ALL>. Parte signifi cativa da produção do Grupo está disponível na página da Verinotio, no setor de Publicações (teses e dissertações). 71. A Miséria Brasileira, lançado em 2000, reuniu todos os artigos desenvolvidos por Chasin sobre a realidade braisleira.

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para deixar claro o que interessou a Marx... Sobre o que Marx se debruçou foi uma forma de ser específi ca, que é a sociabilidade.

Vânia: Chasin denunciava com muita veemência o modismo de usar o termo “ontologia”, bem como o uso disseminado e banal de práxis, de ideologia, difundidas de maneira vulgarizada, como argumento de autoridade, como pretexto para não estudar e explicar correntamente a realidade. Para escapar de um problema, você simplesmente tacha de ideologia, diz que é ontológico, que é dialético etc., cola o rótulo e deixa de explicar...

Ester: Exato. Esse é o problema que o preocupava muito. Passa-se a utilizar, a se expressar, a veicular essa categoria, sem ter a mínima noção do quão é espinhosa e essa questão no interior da fi losofi a.

Vânia: Que autores atuais Chasin respeitava?

Ester: Olha, eu não me lembro de nenhum, sinceramente. Nem nas anota-ções dele... Ele tinha reservas... Ele começou a desenvolver reservas com relação a Mészáros etc. Então... eu não me lembro... Não. A coisa era estudar Marx... Ele tem algumas anotações. No “Rota e Prospectiva”, ele estava lendo o Ressentimento da Dialética de Paulo Arantes... Determinadas colocações que Paulo Arantes fazia e que ele pegou como ponto de referência, como pretexto para desenvolvimento. Ele estava lendo, quando morreu, o Ressentimento da Dialética de Paulo Arantes, parecia que aquele livro estava fazendo ele pensar algumas coisas.

Vânia: Caminhando para o fi m dessa entrevista, poderíamos falar algumas palavras fi nais. Eu queria ressaltar a importância de uma personagem como Chasin no mundo de hoje. Diante da vulgaridade teórica, do hedonismo que justifi ca as mais profundas degenerações, do pleito irraciona-lista pela incoerência – Chasin, sem dúvida, destoa. Eu pouco convivi com ele, mas ainda assim ele me impressionou profundamente, e não apenas em termos teóricos, é preciso registrar. É da fi gura humana que se trata aqui. E duas frases dele me são muito caras: aquela já citada por Rago, que diz que manter a lucidez é o ato mais revolucionário possível hoje – de um poder de síntese e de um acerto fenomenais nessa usina do falso que é o mundo contemporâneo. E a outra é: quando há urgência social, não se pode ter pressa. Por isso, apesar de tudo, eu acho que é possível recuperar a importância dele. Eu acho que, mesmo com a “guerra do silêncio” que ele sofreu... Marx falava da mesma questão em relação a O Capital, da guerra do silêncio que ele enfrentou. E Marx, parece que ele tende a retomar, volta e meia... sem querer... Com todos os problemas das “interpretações” e reducionismos, ele acaba se fazendo presente. Até pelos ataques que sofre: ninguém chuta cachorro morto...

Lúcia: Eu acho que sim... Eu tenho certeza...

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Ester: Eu não sei... Eu sou mais pessimista...

Rago: Eu também. Veja as ruínas do mundo universitário, da probidade do in-telectual. Veja a tendência irracionalista que ganha hegemonia e se distancia cada vez mais do humanismo radical, que põe de modo mais agudo a depleção da consciência e as lutas insanas na academia... Chasin criticava a usina do falso que a contempora-neidade se meteu...

Ester: Uma mediocrização... Na verdade, quanto mais se afastava a possibilidade de transformação social, mais Chasin é afastado, mais ele é esquecido. São coisas que estão correlacionadas.

Vânia: De todo modo, acho que a herança que ele deixou é grandiosa. Veja, vocês fi zeram uma análise, uma autocrítica, que eu acho corretíssima, claro. As individualidades que conviveram conosco no período da Ensaio demonstraram uma podridão que eu não era capaz de imaginar. Basta olhar os acontecimentos dos últimos anos da Fundação Santo André, com toda a bandalheira que ocorreu lá. Crimes, inclusive, no sentido jurídico mesmo, e um rebaixamento extraordinário no sentido humano. E nós, que não chegamos a tal nível, também demonstramos fraquezas mil em momentos fundamentais, no sentido pessoal e grupal. Chasin fazia questão de mostrar como isso estava relacionado ao próprio contexto histórico, ou seja, ele não via a questão pelo aspecto moral, mas a remetia à própria objetividade e às suas determinações. O já mencionado esterco das contra-dições que é o real, que nos determina positiva e negativamente, sem que, com isso, evidentemente, estejamos desculpados por nossos erros e fraquezas. Entretanto, acho que houve também momentos extremamente positivos. Em termos de atuação prática, vocês mencionaram a intervenção durante as greves do ABC, a celebração dos cem anos de Marx... Em relação à Ensaio, que é do que mais posso falar: quando eu vou a uma biblioteca, a um sebo, e eu vejo alguns daqueles títulos que publi-camos... História do Estruturalismo, O Modernismo Reacionário, História da Comuna de 1871, Por que não Somos Nietzschianos e tantos outros que, à parte o sucesso comercial (que quase nunca veio!), são marcantes nas respectivas áreas e se tornaram de leitura obrigatória. O mesmo eu acho que se aplica à produção acadêmica: as teses e dissertações produzidas sob orientação direta de Cha-sin ou sob sua infl uência, como as que foram feitas pelo pessoal do Grupo de Marxologia, têm uma importância muito grande. São de uma excepcional qualidade! Enfi m, quero apenas salientar esse aspecto também, para que não pareça que a experiência Ensaio (como a Senzala, a Temas, a Ad Hominem) se resumiu a uma sucessão de equívocos e fracassos. Esses também houve, em número maior do que gostaríamos, mas os acertos e sucessos também estão presentes e não poderiam deixar de ser mencionados, mesmo recheados de autocríticas, em nome da verdade histórica. E é claro que Chasin foi determinante para que eles ocorressem.

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Ester: Antes de fi nalizar essa entrevista, seria interessante aviar um balanço rápido da herança que Chasin nos legou. Em primeiro, lugar, na minha opinião, emerge a sua fi gura humana. É óbvio que não se trata aqui de mitifi car pessoas ou coisa do tipo, mesmo porque já fomos acusados de cultuar a fi gura dele, mesmo em vida! Grupo Chasin para cá, grupo Chasin para lá e assim por diante... Quem teve a rara oportunidade de conviver como ele de perto, como é meu caso, durante 25 anos aproximadamente, primeiro como aluna, amiga, admiradora e depois como mulher e interlocutora, tem condições de formular um testemunho concreto acerca de sua fi gura, de seu modo de viver, de sua maneira de se relacionar com as pessoas e lidar com as difi culdades. De fato, não conheço ninguém que tenha apresentado as mesmas características, tanto pessoais quanto intelectuais. Morreu cedo, é verdade, lamentavelmente... mas teve uma vida com sentido. Quem de nós pode em sã cons-ciência afi rmar que teve condições de nortear sua vida segundo um projeto, ao qual se dedicou integralmente e sem desânimo? Digam, quem? Isso não signifi ca, é óbvio, que ele não enfrentou, do ponto de vista íntimo, altos e baixos, como qualquer um de nós, isso não signifi ca que, diante de difi culdades que pareciam insuperáveis, ele não tenha reagido negativamente sob o ímpeto do desespero...

Não! Mas o que o diferencia é que, apesar desses momentos de extremo desâni-mo e até desespero, como disse, ele possuía uma força, uma convicção, um desejo de viver e lutar que acabava por vencer esses momentos negativos que foram muito fre-qüentes em sua vida, em todos os níveis, desde o familiar até o acadêmico, passando pelo político e ideológico. Foi um homem íntegro, coerente, mas, ao mesmo tempo, carinhoso e capaz de nutrir sentimentos monumentais como marido, pai e amigo! Ele era tido como demasiadamente sério, racional e até arrogante. Tinha que sê-lo,

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como poderia ser diferente diante das lutas que abraçou? Mas, no convívio familiar e com os amigos próximos, tinha um senso de humor inigualável, preocupava-se com os fi lhos de maneira cotidiana e me amou como ninguém é capaz de amar! Tudo nele era grandioso, intenso, coerente, essencialmente humano, como humano po-demos ser ao limite máximo de nossas possibilidades. Do ponto de vista intelectual deixou-nos uma série de contribuições fundamentais, seja no plano da fi losofi a, seja no plano da análise da realidade contemporânea, principalmente, a brasileira. Deixou também em seus arquivos um ambicioso projeto de pesquisa que tem como objetivo fundamental resgatar a questão ontológica ao longo da história da fi losofi a, com o objetivo de chegar à resolução marxiana de questão tão vital. Que o reconhecimen-to de tal contribuição não tenha se dado é puro sinal dos tempos. E aqui vai uma confi ssão: tenho a sensação de que o mundo havia se tornado insuportável para um homem como Chasin. Isso era visível em seus comentários e avaliações de todo o tipo: desde aqueles que o traíram até as pessoas mais próximas; chegou mesmo a de-nominar um réveillon que passamos em São Paulo, logo depois da quebra da Ensaio, como a festa dos derrotados! Nada e ninguém escapavam de sua perspicácia, de seu olhar arguto, nada e ninguém chegaram a iludi-lo, enganá-lo. Nada que era humano lhe era estranho!

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educação e ciências humanasEspaço de interlocução em ciências humanas

Ano V, novembro de 2008 – Publicação semestral – ISSN 1981-061X

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Spiegel: entrevista ao fi lósofo LukácsIntrodução e Tradução de Rainer Patriota1

1. Rainer Câmara Patriota é bacharel em música e mestre em fi losofi a pela UFPB. Atualmente, sob orientação da Profª.Drª. Ester Vaisman, elabora uma tese de doutorado sobre a estética tardia de Georg Lukács pelo departamento de fi losofi a da UFMG. E-mail: [email protected]

INTRODUÇÃOO futuro é possível: o testemunho fi nal de Georg Lukács

Em carta de 16 de fevereiro de 1962, Frank Benseler – o futuro editor das Obras completas de Lukács – informava ao fi lósofo húngaro que o Der Spiegel pretendia dedicar-lhe um “longo artigo”. No comunicado, Benseler também expressava seu juízo sobre a revista:

Essa revista “Der Spiegel” aparece numa tiragem de praticamente um milhão de exemplares e seu signifi cado é igual ao da “Life” na América. As notícias são de um tipo moderno e um tanto distorcido; o estilo é esnobe. Tudo é colocado de um modo mais ou menos às claras. Seu efeito é condizente com isso. Em Bonn circula a pilhéria de que os ministérios temem Adenauer, o Spiegel e praticamente nada mais nesse mundo. O público leitor é intelectual e seu efeito tem larga pro-pagação. Apesar de todos os traços negativos que essa revista de notícias possa ter, é preciso dizer a seu favor que, para a Alemanha ocidental, onde muita coisa não pode mais ser dita ou escrita, o Spiegel desempenha uma importante função. Sua luta contra Strauss, contra a corrupção geral, contra a perseguição aos comu-nistas, contra o neofascismo, só foi possível dessa forma e, apesar de tudo, tem surtido efeitos (DANNEMANN; JUNG, 1995: 92).

Não temos notícia se a matéria, de fato, veio a ser publicada. Em todo caso, oito anos depois, a redação do Spiegel irá até Budapeste para entrevistar o fi lósofo de 85 anos e imenso vigor intelectual. A entrevista, direcionada para temas políticos, resulta num diálogo fl uente e pontuado por provocações de ambas as partes, con-fi rmando o que Benseler anos atrás havia destacado como o traço mais positivo do semanário: uma certa liberdade de opinião em face do status quo.

TRADUÇÃO

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Franco e irônico, mas sem perder a diplomacia, Lukács tenta colocar algumas questões de princípio, ao mesmo tempo em que traça uma visão panorâmica – ou antes, um diagnóstico – da situação mundial do período em seus dois subsistemas.

A crise insuperável do capitalismo

A crítica de Lukács ao capitalismo jamais conheceu nenhum tipo de concessão ou abrandamento. Nessa conversa com os jornalistas do Spiegel, vemos o fi lósofo húngaro voltar a desmistifi car as instituições da democracia burguesa, como o parla-mento, a política partidária e o jornalismo supostamente independente. Como falar de eleições livres se apenas partidos com elevado fi nanciamento podem efetivamen-te eleger seus quadros? E qual parlamento pode se declarar imune ao fi siologismo e às pressões externas exercidas pelos grandes conglomerados econômicos da socie-dade civil? É lícito considerar os grandes jornais burgueses tão mais autônomos do que o Pravda, se também eles agem a serviço de interesses ideológicos? Para Lukács, é inevitável que no capitalismo a igualdade de direitos e os direitos da liberdade es-barrem no poder da economia de marcado, encontrando aí um limite insuperável. A sociedade mercantil divida em classes não pode gerar e promover instituições verdadeiramente democráticas, da mesma forma que o bourgeois – na sanha de seus interesses privados – não é capaz de se reconhecer nos sonhos cívicos do citoyen.

Indagado sobre as agitações políticas e pretensões revolucionárias do movimen-to estudantil, Lukács chama a atenção para o grande problema dos jovens rebeldes: sua inconsistência teórica e prática. O veredicto vem de um homem que, na juven-tude, viveu e protagonizou tempos verdadeiramente revolucionários, de quem se doou à causa como um dos dirigentes do PC húngaro, assumindo cargos políticos, expondo-se ao trabalho clandestino, tornando-se alvo de intrigas e perseguições e, last but not least, desenvolvendo uma larga refl exão sobre os acontecimentos da hora e suas tendências de fundo. Gestos escandalosos, “happening” e palavras de ordem não mudam realidade alguma. Os estudantes, antes de sair às ruas protestando deve-riam fazer a lição de casa: estudar atentamente a história e a realidade presente.

Esta crítica ao movimento estudantil prolonga-se, aqui, numa dura reprovação aos teóricos de Frankfurt, nomeadamente, Adorno e Horkenheimer. Na opinião de Lukács, é cômodo não se comprometer com a brutalidade dos fatos e condenar a priori toda e qualquer ação concreta. O gesto é típico de certa tradição intelectual alemã, inaugurada em grande estilo por Schopenhauer. Para os fi lósofos reunidos no Grande Hotel Abismo, a crítica é apenas um tempero para apimentar o banquete do pensamento especulativo.

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Contra as visões mistifi cadas de Adorno e Horkenheimer, Lukács expõe seu ponto de vista acerca do progresso. A história obedece a movimentos causais que se autonomizam frente a seus agentes conscientemente motivados. As contradições surgem a partir do conjunto das relações sociais. Assim, erra também Bukharin ao tentar fundamentar o desenvolvimento histórico com base no princípio abstrato da técnica. Por outro lado, não se pode perder de vista as grandes linhas do progresso: o desenvolvimento das forças produtivas, a humanização do homem pelo “recuo das barreiras naturais” e a integração material da humanidade. A humanização do homem é um fato inequívoco, não obstante todas as suas implicações históricas profundamente negativas e destrutivas, para cuja superação só o autêntico socialis-mo pode ter uma resposta concreta: a implantação de um sistema de conselhos que entregue aos trabalhadores os meios reais de decisão e gestão.

O impasse do socialismo stalinista e o resgate do sistema de conselhos

A discussão sobre os conselhos dos trabalhadores, que dá início à entrevista, merece aqui um destaque. Ela remete imediatamente a um texto escrito por Lukács em 68, intitulado Demokratisierung Heute und Morgen (Democratização hoje e ama-nhã). Trata-se de seu último e maior acerto de contas com o sistema repressor e burocrático da era stalinista e pós-stalinista. Lukács acabava de reingressar no PC húngaro, do qual fora afastado em virtude de sua participação no levante popular de 56 na Hungria, quando é novamente surpreendido pela truculência do poder sovié-tico, desta vez, na capital da Tchecoslováquia. A intervenção das tropas do Pacto de Varsóvia em Praga para dissipar as aspirações democráticas dos rebeldes despertou em Lukács uma profunda aversão, transubstanciada e objetivada nas páginas de De-mokratisierung Heute und Morgen.

Sob a divisa da democratização da vida cotidiana, Lukács conclamava todo o bloco socialista a operar modifi cações radicais no sistema, a seu ver, já petrifi cado e desmoralizado. Retomar este caminho signifi cava ir ao encontro do sistema de conselhos. Ao contrário do que diz István Mészáros em Para alem do capital, o último Lukács jamais considerou os Conselhos como uma experiência “sem relevância para o presente”, isto é, como “pertencente à história passada” (MÉSZÁROS, 2002: 383), mas nele viu um modelo insuperável de autogestão e, mais que isso, a etapa fi nal do amplo movimento de reformas que defendeu em seus últimos anos. Acontece que motivado por um profundo senso de realidade, Lukács julgava impossível sua im-plantação imediata. “Faltam todas as condições objetivas e subjetivas para que isso ocorra”, diz o fi lósofo, acrescentando:

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Quem – subjetivamente entusiasmado, profundamente convicto – sonha com um movimento de Conselhos que entre imediatamente em ação e que seja análogo por suas dimensões e intensidade àquele de 1871 ou àquele de 1905, está apenas sonhando (Ib.: 151-2).

Lukács era ciente de que, naquele momento, um movimento de massas estava fora de cogitação, dada a herança stalinista de torpor e medo que se abatera sobre a sociedade e a mente dos trabalhadores. Quando Stalin sepultou de vez o já mori-bundo sistema de conselhos, subsumindo os sindicatos às injunções do partido, ele bloqueou “em termos práticos toda a estrada que podia conduzir o desenvolvimento do socialismo na direção do ‘reino da liberdade’” (Ib.: 142). A democratização socia-lista devia, pois, começar por modifi cações econômicas que, tornando as condições de trabalho mais produtivas, dignas e adequadas aos trabalhadores, operasse modifi -cações também no plano da subjetividade:

À primeira vista [a reestruturação da economia] se apresenta simplesmente como uma reforma econômica destinada a ampliar quantitativamente e a melhorar qua-litativamente o aparato produtivo e distributivo (Ib.: 177).

No entanto, mudanças materiais de conjunto necessariamente afetam o plano subjetivo, criando um campo de novos problemas e alternativas para os homens. Com a reforma econômica, diz Lukács, os indivíduos seriam colocados diante de demandas subjetivas compatíveis com o projeto de reconstrução do socialismo:

A cada degrau desta obra de reforma econômica, certamente longa, emergem, sob formas econômicas, à medida que a economia for se reorganizando, os novos problemas que já acenamos acerca do caminho a abrir rumo ao despertar e ao desenvolvimento do fator subjetivo da formação social socialista (Ib.: 177).

Em Demokratisierung Heute und Morgen, Lukács expõe, sem romancear, as debili-dades congênitas do “socialismo num só país”, de sua gênese atípica (não-clássica) e de seu desenvolvimento truncado e sob permanente ameaça de ruína, mas aposta – e por que não o faria? - suas últimas fi chas numa reforma que, com o tempo, venha a culminar na autogestão dos trabalhadores, isto é, no sistema de conselhos, renascido sob formas novas (Ib.: 178), onde a auto-atividade das massas pudesse, enfi m, regu-lar todas as esferas da vida e descortinar os horizontes “do reino da liberdade”.

Na entrevista ao Spiegel, Lukács, como que burlando a censura imposta ao seu livro, torna a falar sobre a importância dos Conselhos, mostrando-se de um tal modo enfático que chega a arriscar projeções excessivamente otimistas. Se no escrito de 68, as mudanças que possibilitariam o renascimento do sistema de conselhos são perspectivadas no longo prazo, aqui, diante dos jornalistas ocidentais, Lukács, num primeiro momento, estima um período de 10 anos para a sua consecução, cujo “úni-co” pressuposto, porém, é que as massas se movam, isto é, reivindiquem...

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Não há como saber o que exatamente se passava no foro íntimo de Lukács em seus últimos anos de vida em relação às perspectivas da União Soviética, pois, nesse aspecto, suas declarações, privadas e públicas, parecem um tanto desencontradas. O fi lósofo não queria abrir mão de um ideal pelo qual lutara a vida inteira, mas também era sufi cientemente lúcido para perceber que a revolução havia se extraviado drasti-camente. Uma coisa, porém, é absolutamente indiscutível: por mais que insistisse na superioridade do socialismo soviético sobre o capitalismo (pois aquele, a despeito de todos os seus problemas, nascera de um projeto de emancipação), Lukács nunca se deixou iludir pelo mito nefasto do “novo homem”. Por isso, não é de se espantar que sua obra só tenha podido extrair alguns poucos exemplos relevantes da vida no Leste, mas sem jamais poder se irmanar às causas ofi ciais do Partido.

Longe do poder, Lukács trabalhou tenazmente no campo da idéias, sustentando que, juntamente com o resgate da tradição dos conselhos, devia-se também redesco-brir a obra de Marx, soterrada por décadas de vulgarização e hipocrisia intelectuais. Sua Estética e sua Ontologia do ser social, neste sentido, revelam o esforço titânico de um pensador empenhado na remoção de escombros ideológicos. Cético em relação ao presente, Lukács sabe que a história é um campo aberto de possibilidades e que a iniciativa individual não pode ser desprezada. Os tempos eram desfavoráveis, mais havia razões para lutar em nome do futuro do marxismo e do socialismo. Na Ontolo-gia, dirá com seu característico bom-senso: “Se, onde e como este renascimento do marxismo terá lugar, é algo sobre o qual obviamente nada podemos dizer. Mas as nossas considerações devem concluir pela demonstração ontológica de sua possibi-lidade” (LUKÁCS, 1981: 555).

ENTREVISTA

Spiegel: Professor Lukács, certa vez o senhor afi rmou que o parlamentarismo havia “envelhe-cido em termos histórico-mundiais”. Mais tarde, Lênin corrigiu sua afi rmação, argumentando que essa questão não era de natureza ideológica, mas sim tática. Como o senhor avalia o parlamenta-rismo hoje, especialmente em relação aos paises socialistas?

Lukács: Ela possui um aspecto extraordinariamente andrógino, que tem início com a transformação empreendida por Stalin dos restos já bastante corrompidos dos conselhos centrais dos trabalhadores (sovietes) num parlamento. Na minha opi-nião, isso representou um passo atrás, pois o parlamentarismo é um sistema de ma-nipulação a partir de cima.

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Speigel: Porque, então, segundo a constituição, todos podem fundar um partido e disputar eleições?

Lukács: De facto, nas eleições americanas há uma efetiva disputa, mas para isso é necessário uma soma tão grande de dinheiro que os partidos de bases populares acabam sendo totalmente excluídos.

Já a essência do sistema de conselhos, pelo contrário, consiste em que sua cons-trução vem de baixo. Em 1917, qualquer trabalhador inteligente podia dentro da sua empresa fundar um grupo e através desse grupo conseguir levar para o conselho dos trabalhadores representantes da fábrica. Daí ele ia avançando passo a passo. Na minha opinião, esse é que é, do ponto de vista democrático, o sistema mais progres-sista, o autêntico socialismo. Ao abandoná-lo – no interesse de uma administração e de uma capacidade de ação perfeitamente uniformes – nós demos um passo atrás.

Spiegel: O senhor acha que esse desenvolvimento stalinista pode ser modifi cado mediante refor-mas, pode ser cancelado, ou há que haver uma segunda Revolução de Outubro para restabelecer o sistema de conselhos?

Lukács: Em primeiro lugar considero impossível resolver uma questão dessa magnitude por vias administrativas. Se fundássemos um conselho de trabalhadores mediante decreto, este conselho seria eleito da mesma forma burocrática das elei-ções atuais para deputados. É preciso, no curso de uma reforma econômica que já se tornou necessária, introduzir uma democracia de base (von unten), isto é, começar com o direito e também o poder de intromissão nas questões de interesse geral, e a partir dessas experiências avançar gradativamente.

Spiegel: Qual foi a falha do conselho na Rússia?Lukács: Em 1921, na União soviética, houve uma grande discussão sobre os

sindicatos. Trotski adotou o ponto de vista segundo o qual os sindicatos deveriam ser estatizados, de modo que pudessem servir de apoio à produção. Lênin se pôs contra e sustentou que os sindicatos tinham por tarefa defender os interesses dos trabalhadores em face do estado burocratizado. Hoje, ninguém dúvida que Stalin acabou pondo em prática a idéia de Trotski, tanto aqui quanto a propósito de várias outras questões. Para não ir além do exemplo dos sindicatos, deve-se dizer que nos-sa tarefa agora é fazer oposição a isso, para assim retornar à concepção de Lênin. Decerto, não podemos criar nenhuma situação revolucionária, mas podemos reco-nhecer o que foi importante em termos histórico-mundiais, isto é, que a democracia não precisa necessariamente dividir os homens em bourgeois e citoyen, como ocorreu na Revolução francesa e nas que vieram depois, todas elas condenadas a terminar por estabelecer o domínio do bourgeois sobre o citoyen.

Spiegel: O citoyen, o burguês revolucionário, anda sumido em nossos dias?

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Lukács: Apenas a sociedade socialista deixou para trás objetiva e economicamen-te o dualismo do bourgeois e do citoyen, na medida em que dissolveu o medo capitalista de que o movimento do citoyen pudesse deter ou perturbar o processo de produção. Precisamos enxergar melhor do que temos feito até agora que, para a consecução das tão necessárias reformas econômicas no estado socialista, uma tal suporte demo-crático é imprescindível e insubstituível. Para isso, não vejo necessidade de nenhuma revolução. É algo que pode ocorrer, provavelmente, no curso de uma década, desde que haja um movimento de reivindicações - mas preciso dizer que, com tal perspec-tiva de uma década, estou sendo bem otimista.

Spiegel: Entretanto esse desenvolvimento pressupõe muita coisa. Hoje, as massas burocratica-mente governadas não possuem absolutamente nenhuma necessidade visível de praticar formas de auto-gestão.

Lukács: Talvez aqui eu esteja sendo demasiado otimista. As pessoas sempre fa-lam que falta um Kader, mas o que a minha longa experiência me diz é que o desenvolvimento social produz gente sufi ciente para novos recrutamentos e gente que se dispõe a isso com prazer. Quando em 1919 fui enviado ao front para ser comissário temporário de uma divisão, eu precisei, de início, encon-trar por toda parte - nas pequenas unidades e nos batalhões - comissários pre-parados. Em três dias o problema havia sido resolvido. A esses comissários de guerra cabia, antes de mais nada, ver se os soldados eram alimentados de forma adequada e se recebiam sua correspondência regularmente; se faziam isso com sucesso, obtinham a confi ança das pessoas também em outras ques-tões.

Estou convencido de que hoje em dia, não há entre nós uma única fábrica onde cinco ou seis engenheiros não sejam a favor da reforma; mas enquanto predominar uma atmosfera igual a do período stalinista, eles não arriscarão sua existência. Ape-nas se eliminarmos os riscos, teremos gente em massa para a reforma.

Spiegel: Portanto, isso quer dizer que a Reforma-Kader está aí; basta não criar difi culdades para ela. Você não está vendo a coisa de modo muito otimista, dada a burocracia vigente?

Lukács: Eu diria que é impossível surgir amanhã um sistema de conselho plana-mente efi ciente na Hungria. Mas em 10, 20 ou 30 anos uma mudança assim poderá ocorrer. Porque não? Em princípio, trata-se apenas de conquistar uma massa cres-cente de pessoas para as reformas econômicas necessárias.

Em 1919, tivemos no campo da cultura um êxito muito maior do que a maioria dos outros comissariados populares. Adotamos uma linha totalmente democrática, onde os poucos comunistas a favor de uma reforma cultural se uniram com alguns

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movimentos culturais burgueses já existentes. No topo de cada organização cultural foram colocados, a partir dos próprios interessados, o que chamávamos de diretó-rios. O diretório musical, por exemplo, surgiu com Bartók, Kodáli e Dohnanyi, não havia um único comunista estava entre eles. E, no entanto, Bartók reformou a vida musical húngara como nenhum de nossos comunistas teria conseguido fazer. Bartók viu com clareza que uma transformação do ensino da música, da ópera etc. seria mais fácil de fazer conosco do que com a burguesia.

Spiegel: Quem não está contra nós, está por nós, disse Kádár, o Primeiro-secretário do parti-do.

Lukács: Preciso confessar que tenho uma boa opinião sobre Kadar. A meu ver, Kadar não é um Burocrata. Um homem como ele, que nunca esqueceu que já foi um operário, tem sempre sensibilidade para perceber o que está se passando nas esferas de baixo. E Kadar disse que hoje quase todas as pessoas que não cuidam de seus interesses de um modo puramente egoísta, mas sim por meio de alguma mediação social, instintivamente são nossos aliados.

Spiegel: Vários partidos comunistas de países do Ocidente advogam hoje por uma ampla união com simpatizantes e consideram a via parlamentarista não apenas como necessária, mas até mesmo como a única promissora.

Lukács: Lênin propôs que fi zéssemos uma diferença entre as instituições supe-radas em termos histórico-mundiais e as superadas apenas de forma relativa. Ele está coberto de razão quando afi rma que num país como a Alemanha o poder do parlamento precisa se opor à burocracia, uma vez que o parlamento não é sufi cien-temente independente. Muita coisa, como uma legislação de emergência pública, nunca teria sido feita por um parlamento, ainda que eleito com efetiva independência e funcionando com efetiva independência. Portanto, para não rejeitar a democracia burguesa é preciso fazer uma reforma no parlamentarismo.

Spiegel: Não obstante, há pouco o senhor defi niu o parlamento como um instrumento de ma-nipulação do sistema capitalista.

Lukács: No capitalismo é sempre assim, ao menos em parte. É da essência do capitalismo que os grandes trustes exerçam uma poderosa infl uência sobre a opinião pública. E quando alguém quer me apresentar o New York Times ou o Frankfurter All-gemeine Zeitung como o modelo da liberdade de expressão em comparação ao Pravda, aí, como velho jornalista e escritor, eu sou obrigado a dizer que tenho cá minhas dúvidas sobre a liberdade de expressão do Frankfurter Allgemeine Zeitung.

Naturalmente, as pessoas do Frankfurter não podem prender ninguém, porém, recorrendo a outros meio tão efi cazes quanto os utilizados pelo órgão stalinista, elas podem impedir que uma determinada perspectiva ou opinião editorial chegue até a

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opinião pública. O que na Alemanha ocidental se denomina de liberdade de expres-são é tão-somente a rotina do escritor que sabe exatamente em qual jornal e com qual entonação ele pode escrever. E o senhor há de me perdoar se não abro exceção para o Der Spiegel.

Spiegel: O senhor quer defender a regulamentação dos escritores soviéticos como Soljenitsin apenas porque eles são úteis ao partido?

Lukács: Há muitas sutilezas envolvidas nessa questão. Até onde vai meu co-nhecimento histórico, nunca houve de nenhuma sociedade dividida em classes ou interesses opostos que gozasse de uma plena liberdade de expressão. Apenas num sistema de conselhos, através de uma auto-regulação democrática, pode-se abolir a manipulação em todas as suas formas. Que a Revolução de 1917 foi um impulso nessa direção é fato que hoje não se discute. Depois, devido a determinadas razões econômicas e políticas, sofremos, um retrocesso em certa medida inevitável.

Portanto, há razões históricas para essa estagnação, para esse bloqueio. Bloqueio que já se vai por algumas décadas. Mas não se esqueça que 50 anos não é tanta coisa assim quando o assunto é abandonar uma formação social e começar outra. Da escravidão até a consolidação do feudalismo foi necessário uma transição de oito-centos a mil anos.

Spiegel: Os descuidos também existem. Durante um bom tempo, os teóricos marxistas não ofe-receram nenhuma análise econômica sufi ciente do capitalismo existente e por isso fi caram inseguros diante das possibilidades de desenvolvimento e das formas de manipulação do capitalismo tardio.

Lukács: Concordo com o senhor que nós não acompanhamos de forma sufi -ciente as grandes modifi cações estruturais do capitalismo. Antes de Marx havia ape-nas o capitalismo da chamada indústria pesada e a produção de consumo fi cava em grande medida nas mãos dos artesãos. As necessidades de consumo dos trabalhado-res, por isso, eram indiferentes aos empreendedores. Mas depois que o capitalismo se apropriou também da indústria de consumo e do setor de serviços, os artesãos, por um lado, foram desaparecendo cada vez mais e, com eles, o reservatório para aquisição de novos trabalhadores. Por outro lado, o trabalhador começou a se tornar interessante para o capitalismo como consumidor, seguindo-se um aumento do sa-lário e uma redução do tempo de trabalho – isso no intuito de torná-lo um melhor consumidor. Estas são questões que não existiam para Marx. Por isso precisamos submeter todos os critérios utilizados por Marx para o capitalismo do século XIX a uma nova investigação econômica. Isso não aconteceu. Por essa razão, nós, comu-nistas, fi camos como que paralisados diante do novo capitalismo e a todo momento atribuímos a ele categorias envelhecidas que não podem esclarecer mais nada.

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Spiegel: Atualmente, no Ocidente, tem havido tentativas de analisar justamente essas novas formas de manifestação do capitalismo de consumo e de serviços. Tentativas que são empreendidas principalmente por aqueles estudantes que hoje se auto-intitulam de nova vanguarda revolucioná-ria.

Lukács: Sem dúvida, o movimento estudantil é uma coisa, em princípio, saudá-vel. Se eu fosse criticar o movimento estudantil, eu o faria apenas em relação ao seu caráter de happening, isto é, à ilusão de que, por meio de uma greve ou de alguns atos escandalosos, pode-se modifi car uma linha [histórica] de desenvolvimento, quando esta, na verdade, antes de ser submetida a qualquer intervenção prática, precisa ser compreendida.

O problema fundamental é que, objetivamente, a ciência tem passado por um ininterrupto processo de integração, ao passo que, na contramão dessa tendência, a pratica da ciência enfrenta uma extrema divisão do trabalho e uma extrema de-sintegração - o modelo do teamwork americano. Se você perguntar hoje em dia, se determinado problema é físico ou químico, nem Heisenberg nem qualquer outro poderá lhe responder, pois a física e a química estão mais integradas do que nunca. Ou então pense nas ciências sociais: você pode me dizer onde termina a economia e começa a sociologia? O freudiano mexicano Erich Fromm, recentemente, disse que para entender realmente o freudismo é necessário uma análise das condições sociais sob as quais surgiram os sintomas investigados por Freud, indicando, portanto, que também entre a psicanálise e a sociologia as fronteiras desapareceram.

A divisão capitalista do trabalho e a manipulação capitalista não seguem mais juntas a favor da ciência como ocorria há cem anos, mas sim em contraposição ao desenvolvimento real da ciência. Evito propositalmente tocar em questões atuais, porém, sou da opinião que esse tipo de constatação ideológica não é uma coisa des-provida de sentido e que aqui nós precisamos nos opor à palavra de ordem da moda, ou seja, a desideologização, para que possamos compreender corretamente o papel da ideologia no desenvolvimento social.

Spiegel: O que você entende aqui por ideologia?Lukács: Hoje virou hábito entender a ideologia como falsa consciência em con-

traste com a consciência correta do neo-positivismo, visto como uma ciência obje-tiva. E presume-se então que ela foi desideologizada. Agora, na Introdução à Crítica da economia política, Marx forneceu uma descrição exata da ideologia. Ele disse que o desenvolvimento econômico, sobretudo a contradição entre as forças produtivas e as relações de produção, a todo momento nos colocam problemas. O meio pelo qual estes problemas se tornam conscientes e são enfrentados é a ideologia.

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Veja o senhor o século XVIII. Sem dúvida existe na ideologia de Rousseau mui-ta coisa de questionável em termos científi cos. Mas é igualmente indiscutível que, se por acaso, a Revolução Francesa fosse liderada pelos materialistas girondinos, bons na sua maioria, aquela revolução agrária conduzida por Robespierre e Saint-Juste pelas vias ideológicas falsas do roussseauismo nunca teria ocorrido.

Speigel: A libertação dos camponeses foi de fato apenas uma questão de ideologia jacobina?Lukács: É óbvio que não. Objetivamente o feudalismo havia se tornado insus-

tentável e isso é um fato econômico. O pensamento humano corresponde sempre a algum tipo de necessidade econômica que fi ca pairando no ar. E a tarefa da consci-ência humana é justamente, a partir daí, formular uma questão. Mas, mesmo se, em última instância, a práxis humana depende imediatamente das respostas dadas a estas questões, disso não se segue que as questões e respostas antropológicas sejam o fator primário, pois primário é sim o processo de reprodução dos homens, os quais, desde que surgiu o trabalho, se adaptam ativamente ao meio que o cerca.

Spiegel: Entretanto, houve um desenvolvimento voraz e contínuo da técnica, que por sua vez produziu uma cadeia de novos carecimentos. Será que os teóricos marxistas, em geral, não exa-minaram o fenômeno da técnica de forma muito acrítica e predominantemente sob o enfoque da progressiva libertação do reino da necessidade?

Lukács: Bukharin defendeu a teoria de que o não-desenvolvimento do modo de produção antigo seria a causa da escravidão e que, portanto, a técnica é a verdadeira força produtiva. Eu me posicionei contra e disse que a escravidão era a causa do modo de produção não-desenvolvido.

Hoje, no capitalismo, o trabalhador é ao mesmo tempo o consumidor, e nunca houve período algum da humanidade com aparelhos de barbear e minissaias tão per-feitas. Mas se eu for medir o progresso dos últimos 50 anos pelo setor de habitação e pela problemática das favelas, vou ter de constatar que esse progresso foi muito menor do que no caso dos aparelhos de barbear.

Spiegel: Possivelmente, houve até um recuo. Lukács: Possivelmente, sim. Em todo caso, recuso-me a julgar o desenvolvi-

mento das forças produtivas simplesmente a partir dos aparelhos de barbear. En-contramos a contradição não apenas no setor de habitação, mas também no tráfego de automóveis, na poluição do ar e das águas, e isso a ponto das grandes cidades já estarem se tornando imprestáveis. A problemática do capitalismo moderno é o que emerge ao primeiro plano.

Por outro lado, é preciso ver que dos começos do átomo até a economia ame-ricana atual, o mundo viveu um processo irreversível. O jovem Marx tinha toda razão em ver a história como a ciência fundamental. O que está, de fato, na base da

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história? A história é a interpretação e a compreensão de processos irreversíveis. Se a história retornasse sempre a um ponto de partida, então não seria história.

Os processos irreversíveis da natureza orgânica, por um feliz acaso, produziram a vida orgânica na terra. E hoje sabemos, com base em Darwin e seus antecessores, que dos primeiros vestígios de vida na terra até o orangotango e o mamute, um pro-cesso irreversível foi consumado. E neste processo irreversível surgiu, por fi m, o ho-mem e a sociedade, de modo que podemos constatar completamente a observação do jovem Marx, segundo a qual o desenvolvimento do mundo deve ser apreendido como um processo homogêneo, mas como um grande processo irreversível.

Spiegel: Daí pode-se inferir que o desenvolvimento é sempre e necessariamente um avanço e que não há lugar para retrocessos?

Lukács: Evolução e retrocesso existem apenas sob um determinado ponto de vista. Se uma espécie de vida pode ou não vingar por meio de uma adaptação bioló-gica, isso confi gura ou não um progresso apenas sob o ponto de vista dessa espécie. Mas penso que o desenvolvimento global não tem nada a ver com isso: ele segue irreversivelmente, em última instância de forma causal. Voltando ao homem: a adap-tação biológica, que é uma adaptação passiva ao meio ambiente, é suplantada, com o trabalho humano, por uma adaptação ativa, que muda o meio ambiente. Há três momentos, descobertos pelo marxismo, que nos autorizam a falar de uma evolução sem nenhuma conotação ideológica. Primeiro: o dispêndio de trabalho físico para a reprodução do homem decresce; hoje um trabalhador produz 50 ou 100 vezes mais daquilo que seria necessário para a reprodução de sua vida física.

Spiegel: E com esforço cada vez menor. Lukács: O segundo ponto é o que Marx chamou de recuo das barreiras naturais.

Isso quer dizer que, por meio do trabalho, um ser originariamente biológico se con-verte em um ser humano; com isso, o fator biológico não desaparece, mas é trans-formado. Hoje, as pessoas podem assumir comportamentos tão selvagens quanto possível, mas nenhum dos estudantes rebeldes regredirá às formas de alimentação e sexualidade dos tempos primordiais. Quem preconiza uma sexualidade pura, preco-niza a sexualidade pura de 1970 e não a de qualquer era remota. Em outros termos, esse recuo das barreiras naturais que conhecemos é um tipo de progresso, um pro-cesso irreversível.

Speigel: Na opinião do senhor, o que Engels chamou de amor sexual entre os indivíduos e que viu como grande conquista civilizatória, não sofrerá mais nenhum recuo?

Lukács: Sim. O terceiro momento, fi nalmente, é o grande processo de integra-ção. A humanidade existia originariamente em pequenas unidades, e a uma distância de 50 ou 100 quilômetros, uma unidade não sabia nada da outra. Apenas o capitalis-

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mo, com o mercado mundial, criou a base daquilo que hoje podemos denominar de humanidade. Hoje ela aparece de uma maneira puramente negativa.

Spiegel: Mas também existe uma cultura mundialLukács: Não pretendo me contrapor a isso. Em todo caso, não há dúvida de que

se trata, objetivamente, de um processo de integração. Se eu tomo em consideração apenas estes três momentos destacados por Marx, já se pode ver que o processo civi-lizatório é um processo irreversível e que, neste quadro, mostra grandes progressos. Não devemos conceber o progresso num sentido vulgar, pois assim a bomba atômi-ca também seria um progresso em relação aos canhões e estes, por sua vez, seriam progressos em relação ao arco e fl echa, não obstante o fato da bomba atômica ser em si mesma assustadoramente perigosa.

Spiegel: Entretanto, são desenvolvimentos sociais que visivelmente podem aniquilar este pro-gresso objetivo.

Lukács: Com certeza. Veja, agora vou chamar a atenção para uma oposição que as pessoas nem sempre querem compreender: a oposição entre o modo de conside-ração causal e o teleológico. Afi rmo com o marxismo que uma teleologia – portanto uma determinação que parte sobretudo de uma fi nalidade – não existe nem na natu-reza inorgânica nem na orgânica, que teleologia – como Marx mostra com exatidão em O capital – surge apenas com o trabalho, porque o plano daquilo que tem de ser feito antecede a realização. Um leão destroça um antílope hoje como o fazia há dez mil anos. Mas um ferreiro, há tempos, não trabalha mais de forma tão imperfeita como nos primórdios.

Spiegel: No caso do artesão o senhor ainda pode falar assim. Mas o trabalhador comum, em geral, não conhece o produto fi nal de sua atividade. Pode-se falar de um aprimoramento do processo de trabalho? Esse trabalhador é praticamente um instrumento sem consciência.

Lukács: Estou me referindo ao processo de trabalho e não ao trabalhador. O processo de trabalho surge no momento em que o diretor da fábrica elabora o plano para uma máquina: um ato teleológico. Certamente, os homens – como disse Marx – fazem a história, mas não sob circunstâncias por eles escolhidas. Estas circunstân-cias não-escolhidas são em parte o produto de seu próprio trabalho. Veja o senhor, quando os americanos descobriram a bomba atômica, estavam convictos de poder assegurar uma superioridade militar duradoura para a América. Que daí surgisse o pacto atômico certamente era algo que não estava contido em seu ato teleológico.

Quero deixar claro esse duplo sentido do desenvolvimento social; por um lado, tudo depende de atos teleológicos. Por outro lado, o processo irreversível do de-senvolvimento global forma o contexto desses atos. Quem não percebe esse duplo sentido do desenvolvimento humano, só pode estabelecer uma relação entre neces-

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sidade e liberdade na velha forma falsa e totalmente abstrata. Dito de uma forma um tanto banal: para falar comigo, o senhor precisou vir até o meu escritório aqui em Budapeste; a essa necessidade concreta correspondeu a sua liberdade, inclusive a liberdade do senhor não falar comigo.

Spiegel: Na Dialética do esclarecimento, Adorno e Horkheimer mostraram como um determinado uso da razão, meramente positivista, poderia impelir os homens a criar situações que posteriormente se tornariam objetivamente insuportáveis.

Lukács: Não nego isso. Meu ceticismo em relação a Adorno e Horkheimer surge de um caso paralelo na fi losofi a alemã. De forma muito arguta, muito espirituosa, Shopenhauer reuniu tudo o que há de negativo na existência e a partir disso negou a história como história [efetiva]. Há situações, como o período anterior e posterior a 1848 na Alemanha, em que é impossível dizer aos intelectuais que se está vivendo uma situação ideal e que por isso é um dever afi rmá-la. Mas pode-se explicar – e Schopenhauer equacionou essa questão de forma brilhante – que o mundo, de uma forma geral, é ruim e que não haveria nenhum sentido em transformá-lo. É assim que as pessoas, com base numa crítica que lança um desprezo mordaz contra o sis-tema, tornam-se, eles mesmos, partidários do sistema.

Speigel: Mas aí é preciso defender Horheheimer e Adorno...Lukács: Claro, veja bem, não pretendo comparar em termos fi losófi cos Horkehei-

mer e Adorno com Schopenahuer. Digo apenas que existe aqui uma analogia geral, a saber: satisfazer as necessidades intelectuais da intelligentzia em relação à crítica das atuais condições sociais e ao mesmo tempo demonstrar que não há nenhuma saída desse processo de desenvolvimento.No meu livro “A destruição da razão”, falei do “grande hotel abismo”: mora-se num hotel sofi sticado e o fato de haver um abismo em volta nada mais é que um picante ingrediente para ser acrescentado à comida e à dança.

Agora, não estou dizendo que Adorno queria isso. O problema é que muitos estudantes de hoje tomaram conhecimento sobre as vilanias da sociedade atual atra-vés de suas lições e escritos, só que, depois, quando eles saíram às ruas, Adorno encolheu os ombros e disse que o Marquês de Sade é a conseqüência necessária da Revolução Francesa.

Spiegel: Por outro lado, porém, ele teve o mérito de encorajar, desse modo, a crítica das relações existentes...

Lukács: Concordo. Speigel: ...ao invés de cair na ilusão de que se vivia, então, uma situação revolucionária, como

muitos estudantes fi zeram. Lukács: O senhor falou certo: “muitos estudantes”. O marxismo nunca disse

que naquele momento era possível fazer uma revolução.

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Spiegel: Na sua opinião, quando o Ocidente conheceu, objetivamente, uma situação revolucio-nária?

Lukács: Confesso que não saberia responder a essa questão. Sem dúvida, são visíveis os sintomas de que o sistema começa a entrar em crise; mas por enquanto estamos apenas no começo de um abalo revolucionário. O senhor sabe que para Lênin o fator subjetivo nunca pairou no vazio, mas ao contrário: quando as classes dominantes não podem mais governar como antes e as classes oprimidas não que-rem mais viver como antes, surge uma situação revolucionária.

Spiegel: No caso do movimento dos estudantes, pode-se falar destas duas condições e termos muito limitados. Mas não seria justo dizer que é um erro querer simplesmente passar por cima da democracia e das relações capitalistas?

Lukács: Sim. Engels, num escrito genial, Crítica ao Programa de Erfurt, exortou o partido social-democrata a acabar com os restos da velha Alemanha. Ele denominou de ilusão acreditar que toda aquela porcaria pudesse ser removida do socialismo pura, piedosa, alegre e livremente, porquanto a Alemanha nunca tivesse passado por uma democracia burguesa. Penso que isso deve ser enunciado de forma aberta e brutal. Na França, houve o julgamento do capitão do estado-maior judeu Dreyfus. E do julgamento injusto irrompeu uma crise do Estado, que por anos convulsionou todo o país e pôs fi m a toda uma época.

Em Berlin, ao contrário - no meio de uma revolução – Liebknecht e (Rosa) Luxemburgo foram assassinados. No entanto, não se mostrou a menor vontade de sequer saber quem eram os assasinos; quiseram que eles assegurarassem sua posição conceituada junto à opinião pública. Tem-se aí uma grande diferença no desenvol-vimento da democracia burguesa que precisa ser reparada.

Spiegel: O senhor diria que os estudantes se enganam quando, na atual República alemã, ad-vogam por uma revolução social ou pelo socialismo? O senhor estaria sugerindo que eles, em primeiro lugar, se voltassem para uma democracia burguesa?

Lukács: Lênin sempre afi rmou que não existe nenhuma muralha chinesa entre revolução burguesa e revolução operária. Também não é por acaso que em 1917, a partir de reivindicações burguesas revolucionárias não-satisfeitas – a paz e a divisão de terras para os camponeses – tenha surgido uma revolução socialista. Posso dizer com Engels que sem uma solução para essa questão não pode haver nenhuma liber-tação do povo alemão. Se o movimento dos estudantes fi cará confi nado à moldura da sociedade burguesa ou se haverá de rompê-la em maior ou menor medida – é óbvio que não compete a um cidadão como eu, residindo em Budapeste e acom-panhando o desenvolvimento da Alemanha apenas pelos jornais, dar uma resposta

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a essa questão. Penso apenas que eles partem de um ponto de vista quimérico, que consiste em querer empreender o socialismo na Alemanha sem destruir essa tradição do desenvolvimento alemão.

Spiegel: Então o senhor considera que a etapa atual da democracia burguesa na República alemã é um elemento progressista, um pressuposto necessário para um desenvolvimento futuro do socialismo...

Lukács: ...se ela fosse uma etapa efetivamente democrática. Sem dúvida, se eu tivesse de escolher entre um Josef Strauss e um Willy Brandt, obviamente que eu fi caria com Brandt. No entanto, pelo menos desde que a social-democracia votou pela lei de emergência, passei a desconfi ar de sua competência para implementar na Alemanha burguesa uma democracia conseqüente.

E mesmo o SPIEGEL, por quem tenho uma certa simpatia, não vai tão longe quanto foram Jaurès, Zola ou Anatole France no caso-Dreyfus – mas eu não posso, do meu gabinete de trabalho em Budapeste, dar nenhum conselho aos políticos alemães.

Spiegel: Senhor Lukács, como o senhor avalia seu papel pessoal em meio à crise que assola os campos socialista e capitalista?

Lukács: Vejo de forma positiva que hoje tanto a solução stalinista quanto o Ame-rican way of life estejam objetivamente em crise. Em 1945, opinava-se no Ocidente que o marxismo, como ideologia do século XIX, havia ruído e se transformado num mero documento histórico. E nos países socialistas, acreditava-se que, com a refor-ma stalinista, havia-se encontrado a forma defi nitiva do marxismo. Hoje sabemos que os fatos refutaram a ambos.

Eu mesmo, desde 1930, não sou mais um ativista político e tento agora como ideólogo trazer à tona aquilo que constitui o essencial no marxismo. Com isso, quero contribuir para o conhecimento de como efetuar, em campos diversos e sob formas diversas, uma transformação política real.

Spiegel: O senhor está trabalhando em algum livro novo?Lukács: Escrevo uma Ontologia do ser social – a primeira desde Marx. Um traba-

lho assim, por sua limitação, parece estar em contradição com o desenvolvimento do movimento dos trabalhadores. Pois este se tornou infl uente com pessoas como Marx, que foi ao mesmo tempo um grande ideólogo e um grande político. A ele seguiu-se Engels e Lênin, que também reuniram as duas coisas.

Mas isso não é uma lei histórica necessária. Stalin, por exemplo, que foi um bom organizador e um e um tático habilidoso, nunca entendeu nada de ideologia e foi por isso apenas um administrador. E dizer que os vários primeiros-secretários que aqui tiveram lugar, - Rákosi na Hungria, por exemplo – tinham alguma competência para

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questões ideológicas, é simplesmente risível. Spiegel: Sem dúvida, a guerra contra Hitler exigia um talento muito mais tático que ideoló-

gico. Lukács: Os dois grandes movimentos de infl exão de nosso período – se Hitler

ou o American way of life seria o senhor do mundo – foram interditados pelo socialis-mo tel quel, pelo socialismo de cunho stalinista.

Através do pacto de Molotov, Hitler tornou possível a Guerra Mundial – e com isso as forças do Ocidente se viram pressionadas a se voltar contra ele. Sem o acordo da bomba atômica, os Estados Unidos nunca teriam permitido que a União Soviéti-ca fi zessem o transporte de armas para o norte do Vietnã – e sem esse transporte de armas os vietcongs teriam sido maltratados por muito tempo.

Apesar disso, do ponto de vista ideológico, hoje estamos todos de certa forma vis-à-vis de rien. Por isso, o renascimento do marxismo deve fornecer uma base ideoló-gica para os políticos, pois, tão-pouco quanto o próprio Marx, considero ser sempre o acaso que decide quem num determinado momento subirá ao topo do movimento dos trabalhadores.

Spiegel: Senhor Lukács, agradecemos por esta conversa.

Referências Bibliográfi cas:

DANNEMANN, R; JUNG, W (Hrsg.). Objektive Möglichleit: Beiträge zu Georg Lukács’ “Zur On-tologie des gesselschaftlichen Seins”. Opladen: Westdeutsche Verlag, 1995.

LUKÁCS, G. Demokratisierung heute und morgen. Budapeste: Akadémiai Kiadó, 1985.

_______. Ontologia dell’essere sociale – volume II. Roma: Riuniti, 1976.

MÉSZÁROS, I. Para além do capital. São Paulo: Boitempo editorial, 2002

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educação e ciências humanasEspaço de interlocução em ciências humanas

Ano V, novembro de 2008 – Publicação semestral – ISSN 1981-061X

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Organizados por Mônica Hallak*1

* Socióloga, mestre em Filosofi a pela PUC-SP, doutoranda em Educação pela UFSCar.

Depoentes:

Ana Selva Albinati Ângelo LeiteAntônio Lopes AlvesCarlos Magno MachadoCelso EidtFrederico Almeida RochaJosé Divino Lopes FilhoJuracy AmaralLeonardo Gomes de DeusLeônidas Dias de FariaLúcia VasconcelosMaria Cláudia Almeida MagnaniMônica Hallak Martins da CostaRodrigo AlckminRonaldo VielmiSabina Maura SilvaSilvia Pereira Barbosa Vinícius Lima

DEPOIMENTOS

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Introdução

O leitor encontrará nos relatos reproduzidos a seguir o testemunho de dife-rentes gerações que mantiveram contato e sofreram infl uência do professor José Chasin a partir de 1986, quando ele chegou a Belo Horizonte. Os textos foram escritos, em sua maioria, por pessoas que foram seus alunos no curso de Filosofi a da UFMG.

Todos os depoimentos tratam brevemente do contato de cada um com Chasin e o impacto dessa convivência em suas vidas nos aspectos pessoal, profi ssional, acadêmico e na militância política (quando esse é o caso), seguindo os indicativos de um roteiro previamente distribuído por meio eletrônico. Não houve nenhuma espécie de seleção na publicação dos relatos. Todos os depoimentos enviados foram publicados.

O roteiro foi enviado para tantas pessoas quantas foi possível contatar e não houve obrigatoriedade nenhuma de ser seguido na íntegra, mas oferecia ao ex-aluno uma orientação na abordagem. Algumas pessoas se entusiasmaram excessivamente no relato e tiveram seus textos reduzidos para esta edição, a fi m de manter certa har-monia no conjunto, mas não houve nenhuma alteração no conteúdo apresentado.

Os pontos sugeridos no roteiro contemplavam aspectos objetivos da convivência com o Prof. Chasin que pudessem oferecer ao leitor que o conheceu a lembrança de seu caráter fi rme, do seu bom humor, da sua capacidade de envolver o público em suas refl e-xões. Para o leitor que não o conheceu buscou expor um perfi l, o mais fi el possível, de seu estilo único.

As pessoas que se manifestaram acerca do encontro com Chasin mantiveram com ele níveis distintos de aproximação. Alguns foram seus alunos por muitos anos e também ingressaram no Movimento Ensaio, outros freqüentaram suas aulas por um período curto e outros, ainda, não chegaram a conhecê-lo em sala de aula.

Além da diferença nos níveis de contato, são também muito distintas as carac-terísticas de cada autor dos relatos. Chasin foi professor de alunos da graduação, ingressantes no curso de Filosofi a aos 18 anos de idade (como é o caso de Antônio Alves), de estudantes da pós-graduação (tanto do mestrado quanto do doutorado) em Filosofi a e em outros cursos (Ciências Sociais, Comunicação, Direito, Engenha-ria, História, Medicina, Pedagogia, Psicologia, Serviço Social etc.) que chegaram ao Departamento de Filosofi a atraídos por referências diversas acerca de um estudioso de Marx e Lukács com uma abordagem distinta daquela usualmente divulgada na academia. Havia também professores (da UFMG, de outras escolas públicas e pri-vadas de Belo Horizonte, do interior e mesmo de outros Estados) e militantes de esquerda que viam na análise empreendida por Chasin a oportunidade de refl etir os

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descaminhos na luta política revolucionária. Portanto, a diversidade do “público” que acompanhava as aulas e o trabalho do Prof. Chasin encontrará aqui apenas uma pe-quena, mas signifi cativa, amostra.

Será fácil observar que alguns comentários acerca da personalidade e estilo do Prof. Chasin aparecem em vários depoimentos, outros são apresentados em um nú-mero menor de testemunhos. Mas também não será difícil constatar que nenhuma dessas pessoas passou incólume pelo contato com o fi lósofo marxista, o que, segun-do diversos depoimentos, era algo impossível.

Todas as pessoas que falaram do convívio com Chasin buscaram, claro, home-nagear aquele que foi, para alguns, um grande mestre, para outros, a referência mais signifi cativa de suas vidas. A homenagem, no entanto, não se perdeu em mitifi ca-ções ou culto à personalidade (como comenta Cláudia Magnani em seu texto), mas se atêm aos aspectos da convivência com o Prof. Chasin que cada um considerou oportuno relembrar. Mas há uma direção clara no testemunho de todos: como bons alunos, aprenderam com seu mestre a olhar para o futuro e, por isso, enfatizam na lembrança dos momentos que vivenciaram com ele não a saudade que paralisa, mas a que impulsiona a continuar sua luta e seu trabalho.

Os depoimentos estão dispostos iniciando pelos ex-alunos que primeiro tiveram contato com o Prof. Chasin, de modo que os textos iniciais são dos alunos mais antigos e os últimos daqueles que tiveram contato com ele mais recentemente. O último depoimento resgata trechos do curso ministrado por Chasin no ano de sua morte (1998) e termina com uma dessas passagens, transcritas muito fi elmente pelo autor (Frederico Rocha), que optou por manter o caráter incompleto de seu relato, e assim ele será apresentado. O registro de Rocha tem também o mérito de descrever o ambiente intelectual encontrado pelo estudante que ingressa no curso de Filosofi a (talvez possamos ampliar para todos os cursos da área de Ciências Humanas) atual-mente. Mesmo em se tratando, no seu caso, de uma universidade específi ca, o qua-dro delineado por ele reproduz certamente o estilo difundido nos meios acadêmicos em todo o mundo. Como o seu depoimento foi construído pelo contraste entre esse cenário e o impacto causado pelo contato com Chasin, ele foi o único mantido na sua integralidade, apesar de ultrapassar o limite previsto para os textos.

Seguem, sem mais delongas, os depoimentos dos ex-alunos.

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SABINA MAURA SILVA

“Em 1984 conclui minha licenciatura em História e em 1985 iniciei o curso de graduação em Filosofi a na UFMG. Conheci Chasin no ano de 1986, quando fui sua aluna no curso de Filosofi a. Fui cursar a disciplina oferecida por ele porque se tratava de Marx e, a partir daí, nunca deixei de freqüentar seus cursos.

“No curso de História, as posições dos professores acerca de Marx, da URSS, das ditaduras latino-americanas e, em particular a brasileira, eram controversas. Ain-da estávamos sob o militarismo, sob sua resistência agônica feroz. Mas, apesar de sabermos que corríamos riscos, fazia parte de um grupo de alunos entusiastas das idéias do Partido dos Trabalhadores. Embora nunca tenha me fi liado ao Partido, tampouco tenha sido uma militante, nutria simpatias pelo PT. Considerava-o um partido revolucionário. Quanta ilusão!

“Ao concluir o curso de História, tinha uma questão a ser resolvida e sabia que só a Filosofi a poderia respondê-la: qual a razão dos fatos? Qual o porquê da história? Entre os vários professores que tive, aquele que indicou as respostas foi Chasin.

“Considero impossível alguém não sair impactado de um encontro com Chasin, seja de forma negativa ou positiva. Muitos o julgavam arrogante e tantos outros, como eu, éramos atraídos por sua capacidade de nos fazer pensar sobre nossas con-vicções e refl etir sobre suas correções ou equívocos.

“Chasin conseguia, com exemplos aparentemente prosaicos, fazer com que as questões fi losófi cas descessem do céu das abstrações para se tornarem concreta-mente compreensíveis. Estudioso rigoroso, não se comportava com um detentor da verdade, mas como alguém que, dialogando com as questões surgidas ao longo das discussões em aula, era capaz de aproveitá-las como novas fontes de refl exão.

“Com Chasin, aprendi a compreender a realidade. Aprendi como entender as vicissitudes da formação social brasileira, a não nutrir falsas esperanças na ação polí-tica e nos partidos políticos, a distinguir o verdadeiro escopo revolucionário propug-nado na obra de Marx. Com ele, aprendi como elaborar com rigor – e, sobretudo, com honestidade intelectual – um trabalho acadêmico.

“Em 1991 me liguei ao Projeto Ensaio – movimento de idéias, idéias em movimento. Já era consumidora ávida das publicações e, abraçando a proposta, contribuí muito modestamente com o esforço enorme liderado por Chasin de mobilizar no cenário brasileiro um ambiente de debates sobre questões candentes acerca da realidade nacional e mundial, sobre o domínio do irracionalismo e sobre o abandono da pers-pectiva revolucionária da emancipação humana.

“Em 1994, ingressei no mestrado sob sua orientação. Convencida por suas com-provações documentais da necessidade de redescobrir o pensamento de Marx, falsi-

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fi cado pelas conveniências do chamado socialismo real, adulterado pela incompreensão dos intérpretes, vilipendiado pela desonestidade dos arautos do capital. Infelizmente, Chasin não pôde ver o resultado deste trabalho que tanto auxiliou, como o de muitos outros que com certeza gostaria, levado que foi pelo que defi nia como a dimensão não-humana da vida humana.

“Após dez anos de sua morte, Chasin continua sendo uma referência constante em minha vida, tanto intelectual quanto pessoal. Mais que meu professor e orien-tador, tornou-se o meu maior amigo. Alguém com quem sempre pude contar nos momentos difíceis. Alguém que, detentor de imensa generosidade, sempre esteve disponível para um conselho e uma palavra acalentadora, sem deixar de apontar os erros ou equívocos.

“Sinto imensa saudade daquele que me ajudou a ser melhor do que eu era. Sinto imensa falta daquele que nunca desistiu do futuro, que nunca desistiu das pessoas, mesmo tendo sido por muitas traído. Sinto imensa falta daquele cujo caráter é cada vez mais raro nos dias de hoje.”

MÔNICA HALLAK MARTINS DA COSTA

“Em 1986, quando cheguei ao 8º andar do prédio da Fafi ch da rua Carangola, fi z matrícula em duas disciplinas que alguns amigos haviam indicado por causa de uma professora que fazia muito sucesso na época: Cultura e Filosofi a Gregas. Além delas, ingressei também em uma terceira, que escolhi a partir da leitura da ementa. Não tinha nenhuma outra referência. Era um curso sobre os estudos de economia desde a Grécia antiga até a crítica da economia política no século XIX. O professor havia chegado da Paraíba com sua esposa – a Profa. Ester Vaisman –, que era também professora do departamento. Só vim a conhecê-la no semestre seguinte.

“Fiquei completamente fascinada desde a primeira aula. Apesar dos conheci-mentos e de todas as referências da outra professora que ministrava a disciplina de Cultura Grega, as aulas do Prof. Chasin eram muito mais ricas de conteúdo acerca do cotidiano na Grécia antiga, pois, ao apresentar o texto de Xenofonte (Econômico) ele tratava da reprodução da vida material, dos costumes, enfi m, da cultura. Não che-gamos a terminar a parte relativa a Aristóteles (veja bem: a proposta da ementa era chegar ao século XIX), mas não importava. Àquela altura, interessava-me continuar a acompanhar as aulas de Chasin fosse qual fosse a disciplina que ele ministrasse.

“Em 1990, ingressei no mestrado e a linha de pesquisa coordenada pelo Prof. Chasin se voltava, na época, aos textos de Marx no início do período propriamente marxiano, ou seja, após a ruptura com Hegel, em 1843. Foi um grande privilégio

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ter os Manuscritos de 1844 como objeto de pesquisa, pois era meu interesse analisar a categoria da alienação e era parte do projeto do grupo a dedicação a este que foi o primeiro trabalho de Marx sobre economia política. Os alunos que ingressaram no programa no mesmo período assumiram outros temas relacionados aos textos de Marx de 1843 a 1847. Tratava-se, portanto, de um trabalho coletivo sob a orientação e coordenação do Prof. Chasin, claro, mas delegando a cada um de nós a responsa-bilidade de manter o rigor na sua pesquisa individual e o compromisso de trocar e difundir nossos resultados.

“Ao mesmo tempo em que seguíamos com nossas pesquisas e o estudo de Marx (e, em menor medida, também da obra tardia de Lukács), mantínhamos o debate acerca da questão nacional. Desde o primeiro ano em que conheci Chasin, ou seja, 1986, numa mistura de curiosidade e resistência, eu tentava entender uma posição política que era pautada no estudo da especifi cidade do capitalismo brasileiro – a via colonial – e que se propunha a assumir propostas diversas – não necessariamente defendendo este ou aquele partido – que estivessem em consonância com o de-senvolvimento nacional. Imediatamente me identifi quei com a crítica em relação à postura de alguns partidos políticos de não votar em Tancredo Neves em 1985. Foi um alívio conhecer dois marxistas que consideravam importante assumir o apoio possível para aquele momento.

“A curiosidade e o interesse aumentavam na medida em que as propostas políti-cas estavam coerentemente articuladas com a discussão teórica acerca da ontonegati-vidade da política em Marx – sem dúvida, uma das maiores conquistas das pesquisas de Chasin, que supera, inclusive, o legado lukasciano – e com a compreensão dos problemas nacionais.

“Em sala de aula, o Prof. Chasin era, antes de tudo, um provocador. Buscava sempre estimular o debate e fazia longas digressões que, no entanto, sempre eram muito pertinentes e nos ajudavam a entender a multiplicidade de implicações das questões em pauta. O estilo provocador de Chasin, associado à difi culdade dos alu-nos com o ineditismo de sua abordagem, muitas vezes resultava em confl itos em sala de aula. Da perspectiva do presente, posso avaliar como eram situações distintas daquelas usualmente ocorridas na academia. Pois, ao contrário de se curvar diante da difi culdade dos alunos (que, com freqüência, manifestavam-se com certa arrogân-cia), o Prof. Chasin mantinha seus argumentos e continuava a colocar questões que desarmavam os argumentos do interlocutor. Como se pode imaginar, eram situações tensas e que lhe renderam a fama de autoritário e intransigente. Ele, de fato, não to-lerava o acobertamento das difi culdades e as facilitações estimuladas, de certa forma, na vida acadêmica. Quanto a isso, temos seu testemunho, ainda que incompleto, no

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texto publicado nos quatro tomos da revista Ensaios Ad Hominem 1: Rota e prospectiva de um projeto marxista.

“O meu contato mais sistemático com o Prof. Chasin, no entanto, foi no Mo-vimento Ensaio. Reuníamo-nos quinzenalmente na casa de um dos participantes e uma vez no mês – ou talvez uma vez a cada dois meses (não me lembro bem) – na casa dos professores Chasin e Ester. Era sempre um momento muito precioso, pois, além de rever a organização de nosso trabalho, tínhamos a oportunidade de conver-sar sobre a escolha e o conteúdo das publicações, as questões em pauta nos cenários nacional e internacional e, claro, as idéias de Marx e Lukács. Inicialmente, o que achei mais curioso (porque era muito diferente das minhas outras experiências de participação política) era a centralidade do trabalho. Havia, ao mesmo tempo, certo estímulo à ajuda mútua, mas sem expor as difi culdades das pessoas. Nunca havia participado de um ambiente tão respeitoso, sem ser distante ou indiferente. Mas, muito além de minhas impressões pessoais, chamava a atenção o envolvimento de Chasin em todo o processo de construção do trabalho: desde a escolha das publi-cações até a sugestão de pontos de venda e difusão, passando pela diagramação dos livros, contatos com os autores – enfi m ele estava atento a cada detalhe.

“Um grande estímulo para o Prof. Chasin, no último ano de sua vida, foi a liga-ção de alguns jovens estudantes de Filosofi a com o seu trabalho. Mas, pouco depois da seleção em que alguns desses novos alunos ingressaram no mestrado, Chasin veio a falecer, sem chegar a orientá-los.

“Dez anos depois, não consigo ainda dimensionar o que signifi cou essa perda. Continuar o trabalho do Prof. Chasin era, e continua sendo, impossível. Tentamos levar adiante nossas pesquisas e manter a divulgação de suas idéias, mas em um âm-bito infi nitamente mais restrito. De todo modo, o pouco que conseguimos manter é a prova mais concreta do legado deixado por ele: a confi ança no trabalho conjunto, que lhe custou o investimento sistemático e prioritário na formação das pessoas e não só diretamente na produção teórica.”

ANTÔNIO LOPES ALVES:

“Eu tive a felicidade de conhecer Chasin logo no início de meu curso de gra-duação em Filosofi a, no ano de 1986. Por coincidência, fui aluno dele numa das primeiras turmas para as quais lecionou na Fafi ch, ainda no bairro Santo Antônio, quando veio da UFPb para a UFMG. A disciplina não era diretamente do curso, mas pertencia ao antigo Ciclo Básico de Ciências Sociais. Foi uma experiência fascinante,

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em todos os aspectos e acepções do termo. Tinha acabado de concluir o ensino mé-dio, quando vim a ‘cair’ na Fafi ch, sentindo um misto de curiosidade, excitação pela nova fase de minha vida e também bastante receio de não ter as qualidades requeri-das para enfrentar esse desafi o, que era a academia. Quando me deparei com Chasin, esse conjunto confl ituoso só fez crescer, pois, em função de minha pouca idade e experiência de via, era ainda bastante imaturo. No entanto, a percepção, ainda que confusa, da propriedade das suas colocações colaborou para que as difi culdades iniciais fossem superadas, não sem muito esforço e lágrimas, na direção de uma cres-cente simpatia pessoal e afi nidade para com as idéias trazidas pelo professor.

“Já desde o primeiro encontro, chamou-me a atenção a sua fi rmeza na posição das teses e problemas, a sua postura ao mesmo tempo magistral, de quem domina muito bem seu ofício e tem algo de relevante a dizer, e extremamente disponível para as dúvidas e inquietações da turma. Chasin sempre primou pela extrema res-ponsabilidade intelectual e didática, buscando simultaneamente indicar referenciais e transtornar completamente as seguranças tão caras e dogmáticas do senso comum burguês. As aulas eram momentos gratifi cantes, apesar de difíceis, ainda mais para um neófi to imaturo como eu, pois as questões levantadas e as discussões levadas a efeito tinham sempre o télos de nos obrigar a pensar e abandonar a cômoda preguiça intelectual.

“O mais importante entre elementos da personalidade de Chasin que o distin-guiam dos demais professores, além dos acima mencionados, era a sua capacidade de, ao mesmo tempo, ser extremamente rigoroso e atencioso para com as perguntas e intervenções dos alunos. Ele não incorria na prática deletéria – hoje mais corrente que há 20 anos – de aceitar todos os argumentos como válidos, como ’contribuições para o debate’. Mas, num mesmo movimento, tentava integrar as inquietações teó-ricas e axiológicas dos estudantes ao objeto-texto da aula. As coisas sempre fi cavam muito claras para os alunos. Tanto os pontos de contato quanto os de divergência, mas com um traço de respeito, que naquele tempo já era bastante invulgar. Ele exigia o máximo esforço e trabalho dedicado no entendimento dos textos, tencionando sempre tornar os sentidos e os temas o mais claro possível, sem perder de vista a exigência de correção acadêmica e de honestidade intelectual.

“Chasin sempre se portou como um mestre, Magister, no sentido mais verdadeiro do termo. Alguém que se empenhava continuamente em conduzir o processo com autoridade – a autoridade do conhecimento – e suavidade exigidas na relação com o aprendiz. Fora da sala de aula, instância a que vim a ter acesso quando me tornei um dos seus orientandos, envidava esforços sempre no sentido de tornar as relações as mais francas e abertas . Era um exemplo que transcendia, apesar de englobar, a di-

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mensão teórica, de honestidade e de retidão para com valores e posições. Ao mesmo tempo, possuía uma disposição incomum para o diálogo e o auxílio, transformando o convívio em exercício de terna e sincera camaradagem.

“O contato com Chasin com certeza me impactou em vários momentos e em diferentes sentidos, tanto no que se refere ao aspecto acadêmico e profi ssional, quanto ao pessoal e moral. Ele acabou por tornar-se um sólido referencial para mim. Firmeza de propósitos e valores, disponibilidade para com as pessoas e uma capacidade ímpar de ‘apostar’ no outro, são, para mim, as qualidades mais marcantes da personalidade de Chasin.

“Li diversos textos de Chasin, como aluno, depois como orientando, e hoje como alguém que tenta, dentro de meus limites, desenvolver as elaborações impres-sionantes e de grande alcance legadas por seu trabalho. Destaco, em especial, dois: Da razão do mundo ao mundo sem razão e Marx: estatuto ontológico e resolução metodológica. O primeiro me marcou profundamente pelo fato de ter encontrado nele a primeira aproximação explicativa coerente e rigorosa do leste europeu, exemplar histórico-social que, por motivos familiares e de índole, sempre me incomodou no que tange à correta compreensão e classifi cação. Meu pai foi um acólito do marxismo, mas nas versões dominantes que identifi cavam sem mais a revolução ao processo soviético e o que dele surgiu ao comunismo. Isto sempre me incomodou... O segundo, não apenas pela sua importância na crítica dos desvarios e perversões teóricos e práti-cos do marxismo, mas também pela força imagética que anima e emana de várias passagens, onde se dá o encontro feliz entre o poder de expressão e a verdade do expressado, como na parte referente ao fato de que método é caminho sempre parti-cular de objetos particulares em especial na página 516 ss da edição de Pensando com Marx (Ensaio, 1995).

“Tive conhecimento e participei das atividades de difusão de obras e idéias pu-blicadas e discutidas pelo Movimento Ensaio. Foi uma iniciativa sem paralelo, para a época. Empreendimento que, por sua envergadura e grau demandado de com-prometimento, pareceu estar bem à frente das possibilidades subjetivas do tempo em que foi proposto e organizado. Hoje, algumas correntes copiam, de maneira canhestra e enviesada, determinados elementos parcialmente percebidos no projeto Ensaio.

“As análises chasinianas primaram sempre pela coerência teórica, pela solidez argumentativa e pelo arrimo textual, documental e factual rigoroso. Mas, acima de tudo, por um respeito incondicional à ordem objetiva dos desenvolvimentos históri-cos efetivos. Nunca incorrendo no difundido hábito de ‘torcer um pouco’ os fatos e processos para que eles caibam nos argumentos e conclusões.

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“A vivência que tive com Chasin exerceu enorme mudança em meu modo de ser e pensar, especialmente no sentido de valorizar o que de melhor, de horizonte de possibilidades, as pessoas, as situações e problemas podem apresentar. Assim como da imperiosa necessidade de manter-se lúcido e decente, e da urgência de pensar os destinos humanos, sem a mesquinharia e limitação das formas prosaicas de encarar a existência.”

VINICIUS LIMA:

“Conheci Chasin em 1986, quando tive notícias de que ele dava aulas sobre Marx e Lukács na Fafi ch. Tinha um amigo, Élcio Marques, que falou dele para mim e nós procuramos nos aproximar do intelectual, mas jamais fomos alunos dele. A referência que tínhamos dele era teórica e de amigos da Faculdade de Direito da UFMG.

“A diferença principal entre Chasin e os outros professores era a de que ele fazia a ponte entre a Filosofi a e a prática material, incluída a política, que ele criticava do ponto de vista marxiano; sempre dizia que a Filosofi a era eminentemente prática (nada a ver com o pragmatismo...).

“Chasin era muito acessível e sempre nos chamava (eu e Élcio) para assistirmos às aulas, mas nunca entramos. Um episódio interessante foi quando Élcio descobriu a obra de Lukács – El asalto a la razón - na Faculdade de Ciências Econômicas da UFMG (Face) (em 1987), relegada “à crítica roedora dos ratos”. Achamos um ab-surdo, pois não havia nenhum exemplar na Fafi ch naquela época. Pedimos então à bibliotecária da Face para enviar o livro para a Filosofi a, pois lá havia um professor que era discípulo do autor e a obra lhe seria muito útil. Quando o livro chegou à Fa-fi ch mostramos a Chasin e ele fi cou muito contente. Depois, foi difícil retirar o livro da Biblioteca, pois ele só vivia emprestado. São coisas que ninguém sabe, mas eu fui o responsável pela idéia do envio do livro para a Fafi ch, com o apoio do Élcio.

“O impacto muito positivo de Chasin veio por meio da Editora Ensaio. Acom-panhei todo o ‘movimento de idéias’ e comprei quase todos os livros publicados nos anos 80 e 90. Li o livro que detona Plínio Salgado; o livro é muito bom e cobriu uma lacuna na crítica ao integralismo; li muitas coisa que ele publicou

“Quanto à redescoberta de Marx, sua tarefa foi importante porque cavou uma trincheira marxista na Fafi ch, jamais capitulou diante da fi losofi a reacionária e incen-tivou as novas gerações a ler o Barbudo e a desmistifi car a idéia de que Marx não era ‘fi lósofo’, mas ‘economista’ e outras idiotices acadêmicas...

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“Chasin trouxe a problemática da emancipação humana para a ordem do dia, algo que estava no jovem Marx; fez a crítica materialista da política, em seu sentido negativo e antipositivista.

“O Chasin era um sujeito que sabia que a militância ignara não servia às causas da revolução social; ria dos oportunistas de plantão e era severo crítico de Lula e da tal ‘esquerda’; lembro-me bem de uma crítica que ele fez de um trabalhador do canavial paulista que foi cooptado por Maluf...

“Em vista de tantas adversidades reacionárias, Chasin deixa saudades, porque estamos divididos e desarticulados e isto não é bom para nós, que gostamos das idéias do Barbudo...”

JOSÉ DIVINO LOPES FILHO:

“Conheci o Prof. J. Chasin como seu aluno na disciplina ‘Introdução à ontologia de Marx’, do curso de Filosofi a da UFMG. A disciplina foi ministrada no segundo semestre de 1987. Não tinha nenhuma referência sobre ele, ainda que após sua che-gada à UFMG houvesse comentários sobre sua trajetória e o seu trabalho.

“Pessoalmente, eu o considerava uma pessoa ‘curiosamente’ vaidosa. Quero di-zer, a sua lucidez intelectual acerca da realidade, dos homens, parecia dar a ele uma convicção existencial que ele sabia muito bem usar na sala de aula. Neste cenário, sua forma elegante de se vestir para as aulas, e mesmo de fumar, contribuíram para compor a imagem que me fi cou do Prof. J. Chasin.

“No período em que fui estudante de Filosofi a na UFMG, alguns professores se diferenciaram muito uns dos outros, felizmente. O Prof. J. Chasin se caracte-rizou por sua contundência nos posicionamentos que assumia, tomando partido nas questões, particularmente políticas, que se colocavam no contexto nacional e internacional. Para nós, estudantes, esta atitude foi encorajadora e profícua, porque, ao assumir suas posições, ela as fazia com convicção e densidade teóricas. Nas duas oportunidades em que fui seu aluno, por dois semestres, eu nunca o vi, a propósito de estarmos em Minas Gerais, ‘em cima do muro’.

“Sua postura dentro e fora de sala de aula era de coerência entre seus pressupos-tos teóricos e a sua forma de pensar o mundo. Naqueles anos, 1987-1988, um grupo de estudantes da Fafi ch, do qual fi z parte, e amigos militantes desejosos de aprofun-dar a refl exão sobre a sociedade e a política brasileiras da época, num movimento fora da universidade, criaram um centro de estudos para realizar palestras, cursos, chegando até a disponibilizar uma pequena livraria para os sócios e freqüentadores. O Prof. Chasin, sabendo desta iniciativa dos estudantes, dispôs-se a colaborar, ofe-

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recendo sua participação para palestras e aulas. Parece-me ter sido o único professor da universidade a incentivar pessoalmente esta iniciativa. O Centro foi extinto, mas vários daqueles que se vincularam a ele continuam contribuindo para uma refl exão crítica da realidade. E penso que a atitude do Prof. J. Chasin fi cou como um incenti-vo a todos sobre ‘o pensar e o participar’.

“Especialmente na condição de aluno, creio ser impossível ter convivido com o Prof. J. Chasin sem que se tenha recebido algum impacto. Penso que seu impacto fundamental diz respeito ao método: contundência e consistência. Porque se seus ensinamentos de estética e ontologia em Marx, como todo aprendizado na Filosofi a, são obra da disciplina intelectual, a capacidade de sustentar conceitos e princípios enquanto fundamento de refl exão ontológica da realidade exige metodologia que sustente o discurso. E hoje refl ito que esta foi, para mim, a maior virtude do Prof. J. Chasin.

“Chasin, enquanto fui seu aluno, sempre me pareceu muito criterioso no que se refere aos objetivos das disciplinas que ministrava. Metódico, colocava em prática aquilo que enunciava: ‘antes de interpretar e criticar, é incontornavelmente neces-sário compreender e fazer prova de ter compreedido’. Demandava, assim, leitura exegética dos textos adotados (Marx, Lukács...), protelando leitura de seus próprios textos. Através da Ensaio é que passei a ter contato com os textos do Prof. J. Chasin. O último que li, e também aquele com que mais tenho afi nidade (pelo menos até o presente momento) porque abarca fundamentos de categorias centrais no pensa-mento do fi lósofo J. Chasin foi ‘Marx – estatuto ontológico e resolução metodológi-ca’, posfácio de Pensando com Marx: Uma leitura Crítico-comentada de O Capital’, de Francisco J. S. Teixeira, publicado pela Ensaio em 1995.

“Quando conheci o projeto o considerei arrojado, especialmente porque a pro-posta editorial requereria um esforço material signifi cativo dos editores para lhe dar regularidade. Recordo-me que mais de uma vez ouvi o professor J. Chasin comentar o valor deste esforço, reiterando que ao rigor e profundidade do conteúdo deve estar colado um projeto editorial de qualidade. Não acompanhei a evolução do projeto e as circunstâncias que a defi niram, mas, independentemente disto, a sua contribuição ao entendimento da Filosofi a marxiana é defi nitiva.

“Não me sinto muito à vontade para opinar sobre o impacto global das análises do Prof. Chasin acerca do contexto brasileiro em geral, visto que não acompanhei esta evolução. Contudo, pelo alcance da percepção que me foi possível até o mo-mento, considero capital sua teoria e metodologia de análise e compreensão das ciências sociais, por meio da perspectiva ontológica. Traduz numa forma de siste-matização da realidade social, que acredito muito proveitosa, para que profi ssionais

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possam trabalhar e oferecer alternativas mais de acordo com a objetividade social. Por exemplo, penso que a forma como os assistentes sociais se apropriaram desta perspectiva qualifi cou bastante suas elaborações.

“Nos dois semestres em que fui seu aluno, lembro-me do professor J. Chasin insistindo na necessidade da releitura de textos marxianos, em função de uma certa apropriação indevida de termos como ‘dialética’, ‘ontologia’. Uma boa síntese do que ele queria nos ensinar, é o que gostava de repetir, referindo-se aos Manuscritos de 44: ‘todo ser é objetivo’. Era impressionante a derivação que ele construía a partir da exegese desta sentença, mostrando-nos que o homem é um ser que só o é porque age. Ao propor, trabalhar e construir o contexto para redescobrir Marx, J. Chasin não apenas chamou a atenção para o necessário debruçamento sobre os escritos marxianos, como fez repercutir esta leitura na prática das ciências sociais, conforme afi rmei anteriormente.

“Por considerar o homem um ser ativo, volitivo, pensante, proponente de ide-ologias etc. evidentemente ele estava visceralmente comprometido com a questão da emancipação das potencialidades humanas. E o mais interessante de seus argu-mentos: esta emancipação deve ser produto da ação humana em seu cotidiano, sem expurgar dele as manifestações superiores do espírito. Ou seja, a cotidianidade e as formas superiores jamais rompem seus liames.

“Exatamente porque percebo o valor do que assisti e aprendi nas aulas do Prof. J. Chasin e nas leituras de sua bibliografi a e naquela recomendada por ele, demons-trar os efeitos disso numa vida é tarefa árdua. Mas vou sintetizar esta importância no meu cotidiano, reproduzindo a famosa frase de Marx, com a qual Lukács abre o volume 1 da sua Estética, e que o professor J. Chasin não cansava de repetir e nos explicar: ‘No lo saben, pero lo hacen’.

“Gostaria muito de apreciar, no volume que está sendo preparado, textos que ressaltem a contribuição particular do professor J. Chasin para leitura, análise e in-terpretação da estética marxiana a partir da volumosa e pouco conhecida Estética de G. Lukács.”

MARIA CLÁUDIA ALMEIDA MAGNANI:

“Conheci o prof. Chasin no curso de Filosofi a na Fafi ch/UFMG, acredito que em 1988. Não tinha referências, a não ser informações de colegas de curso que desaconselhavam a matrícula nas disciplinas ministradas por ele, em função de um suposto excesso de rigor. Chasin foi uma das pessoas mais humanas que conhe-

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ci tanto no que se refere à sua atividade como profi ssional quanto como pessoa. Chamava a atenção a sua coerência, franqueza, honestidade pessoal, dedicação ao trabalho e, desnecessário dizer, sua competência.

“De uma maneira geral, são raros os professores que produzem tanto, tão de-dicados e verdadeiros em seu trabalho, em sua produção intelectual e que têm uma ação que extrapole ensino, pesquisa e extensão dentro da universidade.

“Não era possível ser indiferente ao contato com o prof. Chasin. No meu caso pessoal o impacto foi positivo. Aconteceu em um momento em que eu questionava a escolha do curso que fi zera e o contato com Chasin e Ester deu-me a certeza de uma boa escolha.

“Participei do projeto Ensaio e, depois de tantos anos, avalio-o como um movi-mento efetivamente necessário, muitas vezes mal compreendido, nadando contra a corrente dos modismos inconseqüentes da Filosofi a.

“A vivência com os professores Chasin e Ester foi ao encontro de um modo de ser e de pensar que já me era próprio e um tanto sem referência e solitário naquele momento. Consolidou posturas profi ssionais e pessoais.

“Acrescento que vejo de maneira positiva esta homenagem, não como uma mi-tifi cação ou um culto à personalidade, mas como uma necessidade, no sentido de chamar a atenção para a importância do seu trabalho, que, em uma metáfora que o próprio Chasin usava, pretendia jogar algumas pedras sobre a lama, para que gera-ções futuras pudessem pisar. De todo o tempo em que tive o privilégio de conviver com Chasin, uma afi rmação sua nunca me saiu da mente: ele dizia que se havia uma vaidade que ele possuía era a de não compactuar com este mundo, a ordem societária regida pelo capital. Lamento profundamente a sua morte, até hoje.”

CELSO EIDT:

“Ao ‘spiritus rector’ Prof. Dr. José Chasin“Foi no ano de 1988 que conheci o Prof. Dr. José Chasin, no curso de mestrado

em Filosofi a na Fafi ch da UFMG. Ele foi um dos intelectuais que mais marcaram meu percurso formativo, seja por seu trabalho fi losófi co, seja por sua generosidade humana, digno de um autêntico ser genérico.

“Chasin desenvolveu um estilo fi losófi co característico, com fundamentos cla-ros e objetivos, em que a exposição dos núcleos conceituais mais complexos se fazia acompanhar de análises contextuais, em que as elaborações próprias davam vazão aos elementos metafóricos, às ironias sutis e às críticas radicais, levando os princípios

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teóricos às últimas conseqüências. Nesta tarefa, publicamente explicitada, o cená-rio político brasileiro, então entusiasmado pelos ares da democracia e da cidadania, torna-se objeto por excelência, temática de crítica profunda e impiedosa, dolorida para quem militava nos partidos de esquerda, mas que propugnava as exigências dos ideais universais da emancipação humana. Em meio ao entusiasmo geral pelos ideais da liberdade política, Chasin fazia a diferença, indicando a fragilidade do cami-nho que a ’pseudo-esquerda’ optara seguir. Aqui a obra e os princípios da Filosofi a marxiana saltavam ao primeiro plano. O retorno aos textos de Marx, a investigação direta dos princípios e fundamentos de sua Filosofi a, constituíam tarefa primeira para aportar recursos e fazer frente aos desdobramentos da esquerda no Brasil e em nível planetário.

“Numa perspectiva teórica clara, comprometida com a obra de Marx, Chasin não poupava esforços para difundir o projeto de pesquisa em marxologia, bem como as conquistas teóricas dele resultante. Assim ocorreu na Unijuí (Universidade Regio-nal do Noroeste do Estado do Rio Grande do Sul), onde, juntamente com a Profa. Ester Vaisman, as conferências sobre o pensamento político e ético em Karl Marx tiveram grande receptividade e causaram profundo interesse.

“Para minha experiência intelectual, Chasin representa um marco insuperável na leitura e compreensão tanto da obra de Karl Marx quanto do exame da moderna re-lação entre a esfera econômico-social e a política. Fui orientando de Chasin e guardo do seu trabalho o mais profundo carinho; hoje, cada vez mais percebo a dimensão dos ideais teóricos e sociais aos quais Chasin se dedicava; suas obras fazem uma grande diferença no campo do marxismo.”

LÚCIA VALADARES:

“Eu conheci J. Chasin num curso de Filosofi a que ele veio dar em São Paulo, em março de 1988, na Associação dos Sociólogos do Estado : foram quatro encontros nos quais ele desenvolveu refl exões em torno da ontologia, bem como da história da Fi-losofi a e as questões político-econômicas mais polêmicas presentes naquele momen-to. Nos anos subseqüentes, acompanhei o modo como ele realizou outros encontros para expor seus estudos sobre o pensamento de Marx e sobre a história da Filosofi a, ou para expor suas refl exões sobre a realidade brasileira.

“Em todos esses momentos, sua postura sempre foi a mesma: em qualquer lugar em que estivesse ele alterava a disposição das mesas para formar um círculo e abria os encontros convidando todas as pessoas presentes a falarem, a exporem suas idéias. Sem o controle do tempo das falas, as pessoas expunham as suas idéias e suas

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análises, se desejassem – a maioria das pessoas se manifestava – e no fi nal J. Chasin comentava e expunha as suas refl exões, sempre ricas e anunciantes de uma compre-ensão ímpar sobre os acontecimentos que estariam por vir, sinalizava possibilidades que poderiam ser efetivadas nos rumos políticos do nosso país.

“J. Chasin foi um homem profundamente ligado ao seu tempo e suas idéias foram produzidas no intercâmbio com os acontecimentos, embates teóricos, na luta cotidiana pela vida, contra todas as formas de estranhamentos, de subjugação do ser humano. Ancorado ao princípio marxiano – do auto-revolucionamento permanente, da compreensão da sociedade como comunidade humanamente social – levou às últimas conseqüências a sua dedicação ao resgate do pensamento de Marx, à cons-trução de um projeto marxista.

“No decorrer da sua vida J. Chasin realizou um amplo debate de idéias, reme-tendo-se às questões centrais do nosso tempo desde os embates fi losófi cos até as questões de ordem econômica e política, arte e literatura, enfi m, trazia para o debate os problemas centrais da humanidade. Sua Filosofi a foi extremamente importante, justamente pelas propostas que ele apresentava e o signifi cado que ela representava para a humanidade: o canto do galo gaulês que anuncia o novo dia, para J. Chasin, sim-bolizava os ideais que retiram poesia do futuro, que anunciam o limiar de um novo dia e identifi cam alternativas de superação da realidade.

“A sua dedicação à retomada do pensamento de Marx, ao acompanhamento do itinerário do seu pensamento foi uma tarefa imprescindível, pois, dentre os diversos marxistas atuantes no século XX, em grande medida prevaleceu a análise parcial das obras marxianas, e muitas vezes um revisionismo que fragmentou e destituiu o pensamento de Marx. O resultado da investida revisionista levou muitas pessoas que se colocavam no campo da esquerda a aderirem à sociedade de mercado e não mais enxergarem as possibilidades de mudança desta sociedade.

“Por isso, o trabalho desenvolvido por J. Chasin foi fundamental para reconsti-tuir a produção teórica deixada por Marx, por ela ser uma referência imprescindível para a compreensão da sociedade capitalista, bem como da gênese da constituição da humanidade e do processo de desenvolvimento e transformação da história. No caso específi co do capitalismo, pelo seu próprio movimento extremamente dinâ-mico de constituir e dissolver, desenvolver e destituir, ele segue o seu curso em constante transformação e desenvolvimento, produzindo riqueza e miséria simultaneamente.

“Em sua ampla pesquisa acerca do ideário de Plínio Salgado, J. Chasin trouxe à baila diversas questões pertinentes ao processo de constituição da história do nosso país e seu grau de inserção no capitalismo mundial. J. Chasin pensou o mundo e o Brasil, recusou análises subordinadas à imediaticidade e, num esforço fenomenal,

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conseguiu acompanhar os diversos acontecimentos – por meio da análise da realida-de singular e concreta, buscava identifi car as mediações com a totalidade.

“Não se pensa a atualidade sem compreender o passado, sem analisar o que pen-sam e o que fazem os vários extratos sociais, que idéias têm sido produzidas pelos vários expoentes da sociedade, e em que direção caminham seus pensamentos.

“J. Chasin foi um homem inteiramente despojado de interesses pessoais, e com-pletamente envolvido e comprometido com os problemas humanos. Sua pessoa faz muita falta entre nós, pois não perdemos apenas um intelectual, perdemos um ho-mem profundamente humano e amigo. Os seus ensinamentos e exemplo de vida, a sua produção teórica tão profunda e indicativa de futuro precisam ser estudadas e retomadas, se pretendemos lançar para o futuro as sementes de um mundo novo.”

RONALDO VIELMI:

“Vim a conhecer o Prof. Chasin logo após ter me formado no curso de gradua-ção em Psicologia. A convite um colega de turma – Fernando – assisti como ouvinte às aulas do professor na graduação. As primeiras referências que tive de Chasin foram também a partir deste colega, que fez na faculdade Fumec a divulgação da famosa Ensaio 18, com o texto sobre as eleições diretas de 1989.

“Preliminarmente, meu interesse era o estudo de Marx, dadas minhas vincula-ções sindicais. Obviamente, ao assistir às suas aulas, as expectativas iniciais foram todas ‘destruídas’, no sentido positivo. A crítica e a perspectiva abertas durante as au-las que tive com Chasin foram essenciais para mudar minhas crenças e projetos que tinha em torno da luta sindical. Particularmente, a radical contestação da propositura Petista, que na época almejava a presidência da República. A identifi cação da crítica de Chasin com uma série de desleixos e ‘estranhezas’ que via na prática partidária e sindical foi imediata.

“Porém, não foi apenas este aspecto que me atraiu. O fascínio maior veio da percepção de que o pensamento de Marx não se reduzia à velha cantilena da luta de classes, do compromisso com a revolução, mas, ao tomar conhecimento, por meio de suas aulas, da perspectiva humanista presente na obra marxiana. O, para mim, inusitado preceito de que a revolução tem o papel precípuo da emancipação das individualidades.

“No plano da minha formação intelectual, minhas dívidas são bem maiores. Não apenas fui acolhido e muito auxiliado nos passos iniciais, mas o modo, o rigor, as exigências defendidas por Chasin no âmbito do trabalho intelectual me marcaram profundamente - juntamente com a profa. Ester Vaisman. A relevância de Marx para

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a prospectiva humana, assim como a importância da obra lukacsiana na redescoberta da autenticidade do pensamento do fi lósofo alemão, é uma herança que carrego e que carregarei ao longo de meus estudos.

“Por fi m, um lamento revoltado, lembrando Engels na morte de Marx: anos para se construir uma cabeça como esta, para que em apenas alguns segundos... A ‘biologia’ interrompe toda uma potencialidade de anos de estudos importantíssimos, que somente uma cabeça como aquela teria efetivamente condições de pôr em cur-so.”

ANA SELVA ALBINATI:

“Conheci o Prof. Chasin no fi nal dos anos 1980, pouco antes da mudança da Fafi ch da rua Carangola para o câmpus da Pampulha, quando eu fazia a graduação em Filosofi a. Não me lembro exatamente o ano, mas me lembro que a vinda dele para o Departamento de Filosofi a foi cercada de muita expectativa, pois se tratava de um intelectual com reconhecimento nacional no campo do marxismo. Eu me lem-bro particularmente de um debate ainda no prédio da Carangola, no qual se discutia a leitura lukacsiana e a leitura althusseriana de Marx, e havia, além dos estudantes da faculdade, militantes de partidos políticos e estudantes ligados ao movimento estu-dantil que ansiavam pela fala de um conhecedor de Lukács.

“Foi a primeira vez que o ouvi falar. Eu não conhecia nada de Lukács e não tinha ainda me defi nido por nenhum autor como objeto de estudo para uma pós-gradua-ção, mas desde já a seriedade de sua postura no debate me impressionou bastante.

“Demorei alguns semestres a cursar uma disciplina ministrada por ele, por duas razões: a primeira é que eu cursava apenas a metade das disciplinas de cada perío-do a cada semestre, por falta de tempo, e a segunda, bastante ridícula, é que corria uma fama do Chasin pelos corredores, como sendo alguém muito exigente, que intimidava os alunos com a sua intransigência. Então, eu via aquele homem barbudo pelos corredores e achava sempre melhor adiar a minha matrícula para o próximo semestre. Quando vim a cursar a primeira disciplina com ele, ainda na graduação, já estávamos no câmpus da Pampulha. Era engraçado porque o horário da disciplina era de 14:00 às 18:00 horas, e os alunos chegavam por volta das 14:00 horas, e iam fi cando, conversando, e aí dava 15:00 horas, 15:30, e o professor não chegava. Mas o mais curioso é que poucos alunos se incomodavam com aquilo, a maioria era for-mada de alunos que já o conheciam e que, portanto, já conheciam o fato de que o horário para ele era apenas uma referência. Ele chegava sempre mais tarde, por volta das 15:30, e iniciava a sua aula com tranqüilidade, entre uma baforada de cigarro e

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outra, sempre a partir de alguma coisa que estava acontecendo no país. Da mesma forma que não havia hora para começar, não havia hora para terminar, as aulas iam até às 20:00, 21:00, às vezes até às 22:00 horas.

“Eu comecei a gostar daquele jeito irreverente que ele tinha, de se importar ape-nas com o que era importante de fato, o conteúdo, a discussão, enquanto o resto, as formalidades, os horários, tudo isso não tinha a menor importância.

“A sala de aula tinha outra característica também que me agradava muito: era como uma reunião num outro espaço, que não o acadêmico, em que as pessoas o escutavam com muita atenção, discutiam, tomavam café e fumavam sem parar. Em-bora eu não fosse uma fumante, aquilo não me incomodava, ao contrário, encantava-me sempre a irreverência que ele cultivava pelo local, pelas normas e pela ‘qualidade de vida’.

De fato, o que falavam dele nos corredores era em parte verdade: Chasin me intimidava um pouco, mas logo eu percebi que era uma intimidação proposital, pro-vocadora. A exigência de rigor, de fundamentação, de contextualização, era um exer-cício difícil a que ele nos expunha o tempo todo.

Havia um aspecto do seu comportamento com relação aos alunos que eu apre-ciava especialmente: ele os levava a sério. Ele considerava nossas perguntas, desen-volvia a partir delas a sua refl exão e retornava a elas com um material mais vasto de pesquisa, incitando-nos a acompanhá-lo naquela trajetória. Na verdade, essa era a ‘braveza’ de Chasin, a sua intransigência. O que eu pensava ser uma intimidação se revelou como um profundo interesse e consideração pelos alunos. Ele queria nos tornar aptos a uma conversação fi losófi ca. O que não era fácil, devido à sua erudição e à sua capacidade de articular as questões e realizar uma refl exão original, interes-sante, instigante e, no mais das vezes, ao avesso das considerações tradicionais.

“Ele me impressionava muito por sua segurança na exposição das questões, por sua franqueza e por um certo humor, uma espirituosidade muito peculiar que ele apresentava (às vezes, quase cruel, diga-se de passagem).

“Quando eu comecei a freqüentar alguns de seus cursos (e também alguns de Ester), dei-me conta que havia um grupo coordenado por eles, empenhado em de-terminados aspectos da obra de Marx, e tomei também conhecimento da Editora Ensaio.

“Acho muito signifi cativo o fato de que um grupo se empenhe em um determi-nado objeto de estudo e trabalhe junto, o que é ainda mais interessante, se pensar-mos o individualismo e a vaidade reinantes nos meios acadêmicos. Esse grupo tinha no Prof. Chasin a orientação segura, a defi nição dos pontos a serem pesquisados em torno de um objetivo maior, que era trazer à tona o texto do próprio Marx. Esta

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programação me pareceu bastante interessante e a ela me integrei quando do meu mestrado.

“Da mesma forma, o esforço nas publicações das edições da Ensaio é outro ponto alto a destacar na trajetória do Prof. Chasin, pois signifi cou perseguir um pro-jeto de autonomia intelectual, fora dos modismos e na contramão das expectativas da Filosofi a contemporânea.

“Mas a pretensão de Chasin era ainda maior. Recuperar o pensamento de Marx na atualidade signifi cava uma contraposição às parcas expectativas da contempora-neidade, tanto no campo teórico como no da prática social e política. O seu hori-zonte era o da possibilidade de recuperação da perspectiva da emancipação huma-na, questão à qual dedicou os seus melhores esforços, identifi cando na Filosofi a de Marx o lume desse caminho. Interessava para ele, sobretudo, o resgate de Marx no sentido de esclarecer as opções e práticas políticas e os caminhos e descaminhos dos movimentos sociais na atualidade.

“Essa pretensão de articular teoria e prática, de conciliar uma análise macro com as questões empíricas da cotidianidade, ou ainda de questionar a prática a partir da teoria, se é, por um lado, não só legítima, mas uma tarefa à qual a Filosofi a não pode se furtar, não é tarefa simples. Nós pudemos acompanhar em parte o seu esforço nesse sentido, que se traduziu em análises da conjuntura social em diversos mo-mentos no Brasil, muitas das quais se mostraram bastante elucidativas da realidade nacional.

“Eu posso dizer que a oportunidade que tive de conviver um pouco com o Prof. Chasin marcou, sem dúvida, a minha formação, a começar pela própria compreen-são do que seja Filosofi a e do para quê ela se destina. Eu me lembro perfeitamente quando ele dizia que a tarefa da Filosofi a é criar lucidez. Essa frase, aparentemente simples, carrega uma carga de esforço intelectual, de não submissão aos padrões e aos modismos e, mais que tudo, de entendimento da Filosofi a não como um jogo de paralelismos do pensar, mas como tarefa séria de responder aos impasses cruciais da realidade, a partir da apreensão do cerne da questão. Ela repõe a radicalidade do projeto marxiano de não se deixar enredar por aspectos secundários na análise das questões que tocam o problema da existência humano-social, no interior de uma inabalável confi ança na restituição do projeto de emancipação humana, que sempre foi o seu horizonte maior.“

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RODRIGO ALCKMIN:

“O meu primeiro contato com o Prof. Chasin aconteceu no curso de graduação em Filosofi a pela UFMG, no início da década de 1990, quando a Fafi ch ainda fun-cionava no antigo prédio da Rua Carangola. Apesar de não ter nenhuma referência sobre ele, desde o princípio, era notório o seu bom humor, acompanhado de uma fi na ironia, conjunção que também fi cava visível em suas inúmeras participações em seminários ou congressos.

“Dotado de uma personalidade carismática, além de uma sólida formação te-órica, impressionava a maneira como era articulada a história da Filosofi a com as questões mais imediatas presentes no cenário mundial. A argúcia das suas análises e o poder de síntese na exposição das idéias ultrapassavam o mero conhecimento acadêmico. Naturalmente, isso provocava um impacto em seus ouvintes; não era mais possível estudar Filosofi a alardeando toda aquela problemática levantada nas suas aulas e, ainda, não examinar com mais atenção os apontamentos para as suas supostas soluções.

“Longe de um simples ‘carreirismo’, a qualidade do trabalho desenvolvido pelo Prof. Chasin encontrava consistência na elevação, ao primeiro plano, da emancipa-ção humana. A seriedade empreendida nessa tarefa – seja como autor ou orientador – resultava em pesquisas marcadas, antes de tudo, pela exigência de um alto padrão de rigor. Nesse sentido, o projeto Ensaio revelou a lucidez das suas leituras sobre a miséria brasileira, assim como o esforço editorial na tentativa de mobilizar um maior número de pessoas, apesar dos obstáculos que num intento dessa monta se inscrevem.

“A proposta de redescoberta de Marx é de suma importância para uma avaliação das contribuições deixadas pela sua obra. Penso que a ontologia marxiana forneceu o indispensável norteamento para toda sua atividade intelectual. Evidentemente, esse embasamento teórico, aliado à presença exercida pela sua fi gura, infl uenciava decisivamente o modo de ser e pensar dos seus alunos. A vivência com o Prof. Cha-sin, de certa forma, desnudava aquilo que Marx havia anotado em sua segunda tese ad Feuerbach, isto é, de que a questão sobre a realidade efetiva do pensamento não poderia estar isolada da prática.”

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ÂNGELO LEITE:

“Cruz Costa, antigo catedrático de Filosofi a da USP, quando perguntado, res-pondia que não era fi lósofo e sim um fi losofante, além de ensinar que se devia fazer Filosofi a no Brasil com a cabeça nessas terras. Pensar em alguém como fi losofante, então, não é nenhum demérito, e sim ver um pensamento lastreado numa dada rea-lidade. É como penso sobre a fi gura do Prof. José Chasin.

“Penso que a relação com o Prof. José Chasin teve alguma repercussão na minha prática profi ssional, particularmente naquela parte em que, ainda hoje, seja possível fazer algo de positivo no exercício da docência de ensino superior, mesmo que, cada vez mais, de forma mais rara.

“Conheci pessoalmente o professor no início dos anos 1990, embora ouvisse falar dele (às vezes bem, às vezes mal) desde o fi nal dos anos 1980, quando ingressei no curso de Filosofi a da Fafi ch/UFMG, como seu aluno da disciplina de Filosofi a no Brasil.

“O que me chamou a atenção de início na pessoa do professor foi sua arte de falar em sala de aula, de um brilho incomum e muito próprio, o que já o distinguia dos demais, mesmo dos mais brilhantes na arte em questão.

“Bastaria essa qualidade para tê-lo na conta de um mestre paradigmático, mas houve um dado a mais que repercutiu na minha formação, que foi a idéia de renova-ção da ontologia que, até então, pensava como um defunto pertencente ao cemitério da metafísica, tudo em razão do predomínio de questões de ordem gnosiológica e epistemológica até aquele momento do curso, que considero de encruzilhada e de queda no real.

Passei, então, como disse, não só a freqüentar os cursos ofertados, como a ler sobre o assunto, aliás, li todos os lançamentos da Editora Ensaio, projeto que tinha como fi gura central o Prof. José Chasin e mesmo o sucessor desse projeto – os En-saios Ad Hominem, inaugurado um pouco antes de sua morte.

“Em seu último escrito, que fi cou inconcluso (é bom que se diga!), “Ad Ho-minem – Rota e Prospectiva de um Projeto Marxista”, ao analisar a composição acadêmica da época (consoante à política de então), marcada naquele momento por dois tipos predominantes: o alto e o baixo clero, Chasin destaca criticamente tanto as virtudes quanto os limites do primeiro, para em seguida tecer uma crítica impiedosa ao segundo.

“Retornar ao fi losofante em questão, que espero não ter deformado em dema-sia, possibilita pensar, mais que se lembrar de sua morte apenas, não só as caracte-rísticas que tomou a expansão do ensino superior no Brasil de agora, bem como do rumo tomado pelo país na senda que o leva a integração da nova ordem.”

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CARLOS MAGNO MACHADO:

“Em 1991, o movimento social passava por um momento de muitas difi cul-dades. A desagregação completa do leste europeu caiu por sobre nossas cabeças, pois, ainda que pudéssemos ter algumas desconfi anças quanto ao que lá ocorria, não conseguíamos ter uma análise que se fundasse nas reais concepções de Marx. A esquerda se orientava pelos manuais soviéticos, chineses ou albaneses de qualidade mais que sofrível. Aquela afi rmações de nossos dirigentes políticos do ‘grande ba-luarte do marxismo-leninismo’ e outras quimeras ruiu sem muito barulho, tal era o grau de desagregação interna daqueles países.

“No bojo desse processo, ainda militando no PC do B, eu e mais um compa-nheiro convidamos o Prof. Chasin para expor o tema ‘Causas e Conseqüências da Estagnação do Marxismo’, dentro do Seminário organizado pelo Partido, intitulado ‘Socialismo em Debate’. Já tínhamos, naquele momento, um contato com o Prof. Chasin, que, mesmo reclamando do tempo disponível, prontifi cou-se a expor o tema proposto. O debate ocorreu no Centro Cultural da UFMG, no dia 7 de agosto de 1991. Daí, foi um passo para me aproximar ainda mais do Prof. Chasin. Apesar de, em certos momentos, ser muito cortante, sob a forma de certa rispidez, respeita-va-o pelo conteúdo das idéias que expunha com tanta clareza e disposição para alte-rar as nossas concepções. Dizia ele, em certos momentos, creio que parafraseando Marx, que ‘o velho parasitava o novo’. Considerava ser uma verdade, mas o mais difícil não era admitir isso, o difícil mesmo era proceder à nossa autotransformação. Chasin afi rmava que, para compreender Marx, era necessário realizar uma revolução pessoal.

“Outro momento importante da atividade fora dos muros da universidade foi quando da realização do Encontro da Revista Ensaio, nos dias 20 e 21 de fevereiro de 1993, em São Paulo, eu, já como participante do Grupo Ensaio, o Prof. Chasin fez um exposição sobre o momento internacional que vivíamos e tomamos um po-sicionamento sobre a questão nacional mais polêmica naquele ano: a discussão sobre os sistemas de governo (parlamentarismo x presidencialismo). Tomamos a decisão pelo último. A discussão foi muito rica de ensinamentos.

“Antes do primeiro contato com o Prof. Chasin, tinha uma leve referência de que existia na Fafi ch um professor muito polêmico, que se dizia marxista e que tinha vindo lá dos lados da Paraíba. Daí, a curiosidade, e no clima de queda do muro a aproximação necessária foi. Pois, como ideologicamente o quadro daquele momento impactava minha ação e percepção do mundo, o encontro com Chasin alimentou a busca de novo caminho, nas trilhas das formulações de Marx. Em 1992, já freqüen-tando suas aulas, chamava-me a atenção o andamento da aula. Cada aula era como

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se Chasin estivesse escrevendo um texto. Tinha um roteiro, e mesmo com vários volteios não perdia o rumo. Lembro-me de uma frase que me impactou e criou novo ânimo, era uma frase curta mas de grande valia para mim naquele momento. Exata-mente ele dizia que ‘viver é resolver problemas’. Não sei explicar o porquê, mas o fato é que essa frase fi cou gravada. Muitas vezes eram afi rmações simples, mas com alta pertinência para a condução da vida cotidiana.

“Tive professores muito competentes e dedicados, tanto no nivelamento1 quan-to nas disciplinas do mestrado. Eram professores cultos, mais ao estilo de certa ilustração. Por certo, essa postura agradava aos alunos, pois contribuía, de alguma forma. No meu caso, pelo fato de me encontrar dentro do ‘campo’ do marxismo, e Chasin se ancorar nessa propositura, o meu interesse era evidente. Suas palavras não eram vazias. Estavam carregadas de convicção. Com ele não tinha essa de intervalo para ir à cantina ou ao banheiro. Tocava o barco. No período em que o Prof. Chasin estava elaborando o texto que posteriormente se intitulou ‘Futuro Ausente’ (não tenho muito certeza se era esse, mas creio que sim), ele tinha o texto como referên-cia, passava a idéia para mim de que ele sabia cada detalhe do texto. Com a caneta a postos, em determinado momento ele dava uma parada, olhava para a janela e es-crevia na margem do texto alguma observação. Isso apontava para o fato de que, ao falar, estava refl etindo. Parecia que, súbito, emergia uma idéia e, tão rápido quanto as palavras, a anotava na margem do texto por ele em elaboração.

“Chasin era um professor que não suscitava o meio-termo. Era oito ou 80. Sua franqueza, muitas vezes até a franqueza rude, era o seu diapasão de vida. Nada de conciliação! A busca da verdade era sua senda de vida. Ninguém é perfeito. Temos as nossas intolerâncias e outras agruras. Sempre raciocinei sobre as atitudes do Prof. Chasin do seguinte modo: pouco me importavam os seus defeitos ou forma de falar sem muito polimento; importavam sim, e muito, o seu profundo conhecimento, um manancial inesgotável em relacionar particularidade e universalidade. Suas aulas, para mim, eram lições de vida, no sentido mais profundo: do de onde ao para onde.”

JURACY AMARAL:

“Conheci o Prof. Chasin no início dos anos 1990, através de Carlos Magno, um de seus alunos no mestrado em Filosofi a. Antes, por volta de 1989, fui aluno da professora Ester, no curso de Filosofi a, quando a faculdade funcionava no prédio da rua Carangola, Santo Antônio, mas não sabia nada sobre o Prof. Chasin.

“Nas minhas conversas com Carlos Magno, fi quei sabendo que a aula do Prof. 1. Curso de disciplinas obrigatórias para quem não é graduado em Filosofi a.

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Chasin era sobre a obra de Marx, logo me matriculei como aluno irregular do mes-trado em Filosofi a. Foram quatro semestres freqüentando suas aulas, normalmente, às quartas-feiras de 16 horas às 19 horas.

“Lembro-me da presença altiva do Prof. Chasin. Chegava, sempre com sua pas-ta marrom e muito ofegante, assentava-se, abria a pasta, pegava um maço de cigar-ros, um isqueiro ZIP, acendia um cigarro e começava a falar sobre o tema da aula. O que me chamava a atenção era o seu estilo de fumar, elegante, estilo aristocrático, que buscava a cada tragada um intenso prazer no hábito tabagista. Jamais me esquecerei do seu jeito inimitável de fumar. Durante a sua aula, que durava aproximadamente três horas, eu contava 28 ou 29 cigarros que ele fumava até o fi m. Algumas vezes ele comentava que, devido à intoxicação tabagista, estava evitando o cigarro comum, mas nesses dias ele fumava charuto ou cigarrilhas em menor quantidade.

“Nas avaliações orais ele me pedia para abordar um tema da teoria de Marx, elogiava quando eu conseguia me aprofundar no tema e responder de acordo a pro-posição, às vezes ele me corrigia, mas suas intervenções me pareciam outra aula, uma nova abordagem para trazer à luz o que foi compreendido do pensamento de Marx. E, todas as vezes que eu entrava na sala, para fazer a prova oral, ele me falava assim: ‘você é um rapaz sorridente e está de bem com o mundo, não perca esse modo sim-pático e vamos para a questão’!

“O Prof. Chasin me ensinou muito, não somente sobre Marx, mas, principal-mente, como pensar a Filosofi a de forma crítica e dinâmica. Quando ele abordava a questão social brasileira, ele gostava de se referir ao grupo que estudou Marx nos anos 60 (Francisco Weffort, Fernando Henrique, Ruth Cardoso e outros), com uma pitada de crítica, ele analisava o cenário político da esquerda brasileira, falava sobre Brizola e prognosticava sobre o futuro do Partido dos Trabalhadores. Através de suas análises não me surpreendi com o esquema de poder montado pelo PT que culminou com o caso do ‘mensalão’. Não me lembro muito bem do texto, mas penso que seja um com o nome ‘A Sucessão na Crise e a Crise na Esquerda’ em que Chasin evidencia certeiramente o desenrolar do processo político protagonizado pela esquerda brasileira.

“O Prof. Chasin, para mim, foi o mestre da lição, ele se posicionava como um professor altivo, de saber trabalhado e refi nado, detalhava para instigar o aluno a pensar e elaborar a partir das suas assertivas, muito raro nos tempos atuais. Depois de muito tempo, tive a felicidade de ter outro professor com estilo semelhante ao do Prof. Chasin, foi na UnB, um professor com estilo de professor – ‘um mestre da lição como Chasin’.

“Ainda leio a obra de Chasin, principalmente quando preciso me referir a Marx.”

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SÍLVIA PEREIRA BARBOSA E LEÔNIDAS DIAS DE FARIA:

“Quanto aos aspectos positivos da personalidade do Prof. Chasin, restringimo-nos àqueles que para nós foram os mais importantes: a coragem e o compromisso irrestrito de assumir explicitamente uma posição fi losófi ca, com seus desdobramen-tos práticos mais profundos, sem meias-palavras e, sempre, com a disposição para a discussão verdadeira – que se distingue em absoluto da mera ‘troca de idéias’ típica da academia, que, sob o disfarce de busca conjunta de soluções para as questões, processa-se como instrumento de auto-afi rmação e, em alguns casos, auto-ilusão acompanhada de ilusão de outros.

“Para fi carmos apenas no nível da menção, sem ir para seus desdobramentos, indicamos como méritos teóricos do Prof. Chasin a explicitação precisa feita por ele de alguns pontos extremamente importantes da obra de Marx: o estatuto ontológico do discurso marxiano; a detecção da atividade sensível e autoprodutora do ser social como instância a partir da qual o conhecimento, para este autor, não só se mostra possível como também se apresenta como indispensável; a determinação sociohistó-rica do ato de pensar e dos produtos deste mesmo ato, com a explicitação do caráter prático, efetivo, deste mesmo ato e destes mesmos produtos, que não se reduzem a refl exos da infra-estrutura; a sustentação do caráter secundário da questão metodo-lógica para Marx (jogando por terra o cartesianismo dos pretensos seguidores deste autor, os idólatras do método dialético materialista etc.), bem como a sustentação de que, em qualquer autor, as questões epistemológica metodológica sempre têm como ‘chão’ uma concepção de caráter ontológico, explícita ou implicitamente.

“Além disso, devemos a Chasin a compreensão da Filosofi a como análise da realidade, como um discurso que não é autônomo, mas integra-se (ou deve integrar-se) como um elemento em um discurso mais amplo (em que se articulam também saberes científi cos, técnicos e mesmo de senso comum – isto é, pré-teoréticos, mas legítimos), discurso dotado de níveis diversos de abstração e de vários recortes da realidade, que tem a totalidade do ser (‘o complexo de complexos’, expressão que traz saudades!) como seu objeto – não só admitindo, mas impondo o reconheci-mento das várias formas de ser que em seu bojo se articulam e interagem de modos diversos, determinando-se mutuamente e determinando a realidade como um todo. Discurso coerente que, no entanto, não tem como objetivo a coerência, mas a re-produção mais fi el possível da realidade, tendo como propósito fi nal, no entanto, a produção de vida humana! É o aspecto proponente da teoria! O objeto da Filosofi a, e isso nós aprendemos com Chasin, não é a Filosofi a, mas o mundo! E seu fi m úl-timo é a lida consciente, responsável... livre com este mundo, o que inclui a lida de cada um de nós consigo mesmo e com os outros!

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“Pode-se dizer que tudo isso se deva a Marx, prioritariamente. Não sabemos se é o caso com relação a todos os pontos aludidos. Mas, mesmo se for, foi Chasin quem nos fez perceber isso tudo. E à preservação e divulgação da memória de tão grandioso e exemplar homem, pensador e mestre, dedicamos boa parte de nossos modestos esforços cotidianos.”

LEONARDO GOMES DE DEUS:

“Conheci o Prof. Chasin no curso de Filosofi a, que eu freqüentava como ou-vinte ou aluno de disciplinas eletivas. Por um motivo prosaico, matriculei-me em sua disciplina sobre política: era o único curso da Filosofi a ministrado à noite, às vezes tarde da noite, entrando na madrugada. Diante de meu hegelianismo empedernido e antiesquerdismo (leia-se, petismo) contumaz, não tinha muito interesse, mas Chasin, de quem nunca ouvira falar, foi-me recomendado por colegas como alguém que pensava a obra marxiana como original e contraposta à obra hegeliana, como parte da Filosofi a, mas ao mesmo tempo dotada de nítida e original contribuição à refl e-xão fi losófi ca. No fi nal, a curiosidade e a peculiaridade do horário venceram.

“Para um aluno de graduação apegado a provas, prazos, horários, anotações em aulas, à rotina acadêmica pedestre, em suma, o curso teve um impacto já em sua forma: não havia aulas no sentido tradicional, mas discussões exaustivas sobre os textos e sobre os temas em questão, no caso, a questão política. Em meu caderno dessa disciplina, só consegui anotar, nas primeiras aulas, a ementa, singela e despre-tensiosa, explicada ao longo da primeira aula. Todas as aulas eram, pode-se dizer, provocações, era impossível sair indiferente, eram ‘provocações honestas’, expres-são de Chasin; repentinamente os alunos eram convidados a pensar sob um prisma completamente diferente, em verdade, eram convidados a pensar. O momento mais dramático do curso era a prova oral, que acabava por ser um diálogo, uma discussão: Chasin avaliava simplesmente a capacidade de pensar, tarefa esquecida nos cursos de Filosofi a. No caso da política, a pensar o seu enraizamento social e seu caráter incompleto – tratava-se de ser verdadeiramente radical. Além disso, várias aulas eram profundamente vinculadas a acontecimentos do momento, seja na ciência, seja na política do momento, algo estranho ao curso de Filosofi a e, até mesmo, à maior parte dos cursos de Humanas. Finalmente, quando conheci Chasin, Marx já vivia o descrédito completo que sofre até hoje e a proposta de uma leitura de seus textos livre de uma série de preconceitos (tanto de seus detratores quanto de seus defenso-res) abria perspectivas profundas. Com isso, colocavam-se duas questões fundamen-tais, a da emancipação humana e, num nível teórico e prático, a retomada de Marx. Ao contrário da esquerda dos anos 1990, Chasin atacava as propostas de reforma e

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melhorias no sistema capitalista. Com isso, impunha-se exatamente a retomada da obra marxiana. Por isso, sua postura política imediata causava tanta polêmica entre os alunos, como o escândalo de votar em FHC.

“Durante o curso tive a oportunidade de ler trechos do ‘Estatuto Ontológico’ e o texto, em suas duas primeiras seções, teve o efeito de convidar a uma nova leitura da obra de Marx, uma volta a seu texto original. Para alguém com interesse na polí-tica e no direito, os textos de juventude, recuperados e repostos em sua consistência própria, representaram também uma virada pessoal: da vida espiritual das leis [Leo-nardo de Deus graduou-se em direito antes de ingressar no curso de Fisolofi a], para as leis da vida terrena dos homens, questões postas em 1843 por Marx e discutidas por Chasin em seus cursos de política.

“A partir desse curso, levei muito tempo metabolizando todas as idéias con-tidas ali, até me decidir a estudar mais seriamente as questões propostas, período em que ainda não conhecia a trajetória de Chasin e muitos de seus textos. Ainda fi z uma parte de seu curso de ontologia, embora a segunda descoberta de sua refl exão, infelizmente, só tenha se dado depois de sua morte. A partir daí, do ponto de vista intelectual, duas coisas me chamam mais a atenção: a reposição de Marx no curso da tradição fi losófi ca, com continuidades e, sobretudo, com uma nítida ruptura, de caráter ontológico, algo que torna esses cursos de ontologia um contraponto autên-tico a toda a refl exão sobre a história da Filosofi a. Em segundo lugar, e é o que até hoje me acompanha com maior detalhe, a necessidade urgente de pensar o Brasil e, também, aqueles que pensaram o Brasil. Descobrir os textos que Chasin produziu sobre a “miséria brasileira”, em seus múltiplos aspectos, sempre com uma perspec-tiva fi losófi ca de fundo, é uma retomada de uma longa tradição brasileira e, no caso da perspectiva de esquerda, única nos últimos 30 anos.

“Do ponto de vista pessoal, acho que o encontro com Chasin, sua luta e sua obra, foi profundamente transformador. Para dizer o mínimo, Chasin convidou seus alunos e leitores a estudar Marx, autor mais completo do ponto de vista da posição de crítica e superação do capitalismo, e isso transformou minha visão fi losófi ca. Essa análise, também, não se fazia apenas num nível teórico e abstrato, mas Chasin sempre remeteu sua visão à quotidianidade, propôs um modo de ver a vida de forma profunda, quase uma fi losofi a de vida. Lembro-me de suas últimas palavras em sala de aula, naquela conversinha de fi m de ano, antes do recesso. Perguntado se a nova editora [Estudos e Edições Ad Hominem] iria sair mesmo, disse, meio irônico, que a editora, na verdade, já existia; com os olhos sorridentes, cigarro na boca, ergueu os braços e disse enfático: ‘Produção!’ – nada mais marxiano. A teoria marxiana aplicada na vida quotidiana, produzir sejam quais forem as condições, mantendo o

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‘otimismo ponderado’, mesmo diante do futuro ausente.”

FREDERICO ALMEIDA ROCHA:

“Monsieur, le créateur, à vous permis; cha-cun est le maître dans son monde; mais vous

ne me ferez jamais croire que celui où nous sommes soit de verre (...)”.

Voltaire

“Durante o curso de graduação na Faculdade de Filosofi a e Ciências Humanas da UFMG, de 1995 a 1998, o que sempre me pareceu mais incompreensível e ab-surdo nas preleções de Filosofi a era assistir à montagem de discursos que, embora muito bem elaborados e sofi sticados, nenhuma pretensão ou preocupação ontológi-ca genuína possuíam.

“Naturalmente, ao mencionar o caráter ontológico dos discursos, indo ao ponto central, nem sequer se leva em consideração o âmbito das pseudo-produções e das atuações pseudo-intelectuais.

“A forma e o conteúdo predominantes nas aulas, em sua maioria esmagadora, fi cavam muito aquém do que se espera naturalmente da Filosofi a: apreensão do real, tal como ele efetivamente é, e sua elaboração cognitiva. Crítica efetiva do real e do ideal. Todo discurso, ainda que não tenha a pretensão, está carregado de concepções e categorias concernentes ao meio efetivo de onde brotam (não de forma mecânica, é claro). Portanto, o mais jocoso era atentar-se às entrelinhas dos discursos, isto é, aos seus pressupostos, compromissos e conseqüências ontológicos. Aí é que deveria estar o substancial. E é aí, inegavelmente, que o alarido fi losófi co se revelava gene-ricamente assombroso e atordoador, pois o que era para vir em primeiro plano, ao fi car subentendido (era casual?), tornava as excentricidades ainda mais grotescas. Certas postulações ontológicas chegavam a um tal nível de irracionalidade que em nada rebaixariam quem já nos quis fazer ‘acreditar que este [mundo] em que estamos [é] de vidro2’.

“Durante toda a graduação, prevaleceu o discurso especulativo, quando não abertamente relativista e diletante – era de tal forma o tom predominante nos deba-tes formais e informais, nos corredores e salas de aula, que por vezes se dava a im-pressão de que realmente não havia outro modo de se colocar a questão da fi nalidade e natureza da Filosofi a, senão pelas vias do diletantismo e do discurso falsifi cador. O que acabava contribuindo ainda mais para a visão adversária às luzes fi losófi cas, pois, a cada debate diletante, a cada colocação especulativa, a cada repelão do senso

2. Voltaire. O Homem dos Quarenta Escudos (1768). Capítulo VI.

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comum, a cada postulação do pluralismo irresponsável, a Filosofi a confi rmava sua inutilidade histórica, capaz de abrigar todo tipo de espírito aventureiro e imaturo, incompetente e desavergonhado e incapaz de enxergar o óbvio. As exceções, e havia algumas, não chegavam a romper o caudal dessa romaria de pós-modernos aprego-adores de disparates, pois sua predominância no meio e sua proliferação são mais o efeito das estruturas de certa quadra histórica, que criam sua demanda, do que pro-priamente o resultado de debilidades estritamente individuais, já que inclusive estas são o produto perfeitamente concebível de certas quadras históricas tão adversas quanto a nossa. Como a pândega acadêmica em alguns casos era lavada a sério pelos que a praticavam, e outras vezes era realizada por pura leviandade ou superfi cialida-de, era comum a manifestação de discursos bem intencionados e sofi sticados nos primeiros, adornados de admiráveis argumentações, mas inócuos e maçantes. No segundo caso, a miséria espiritual já possuía contornos trágico-cômicos.

“Numa esfera à parte, deve-se ressaltar que alguns professores, competentes e sérios, de irrepreensível erudição, seguiam ministrando seus cursos (importantes, sim) no formato tradicional de leitura imanente dos textos, com extremo rigor e profundidade, mas sem se atinar às dimensões extra-acadêmicas do exercício fi lo-sófi co. Excelentes profi ssionais da Filosofi a, mas sem qualquer pretensão de que os estudos fi losófi cos transcendessem o âmbito da pura história das idéias. A história do pensamento fi losófi co é necessária e grandiosa, mas como fi m em si mesma perde o seu sentido.

“Como até o sétimo período da graduação o discurso era invariavelmente o mesmo, dentro ou fora de sala de aula, isso criava certa atmosfera de déjà-vu. Já se sabia como eram manipuladas as categorias, quais truques lógicos ou retóricos usar para obter o efeito pretendido, sempre em função do próprio exercício argumenta-tivo como fi m em si mesmo, para exclusivo gozo dos próprios expositores e ouvin-tes, ainda que gerando incalculáveis deformidades ontológicas. As querelas sobre os fundamentos destes discursos, mesmo quando postas sob a insígnia ontológica, continuavam pairando nas incertezas de plataformas puramente teoréticas, pois era discurso pretendendo validar discurso. Teoria fundamentando teoria. Como é evi-dente a arbitrariedade na escolha de qual seria a idéia fundante, a sensação de que qualquer discurso tinha validez era inevitável. E assim o era. O importante é quem conseguia gritar mais alto.

“As conseqüências são por si mesmas evidentes: pluralismo diletante, ecletismo, baixo nível teórico, vontades caprichosas por conta do casualismo teórico das fun-damentações, incapacidade crítica, despautérios ontológicos etc.

“Ao assistir pela primeira vez às aulas de Chasin na disciplina Filosofi a no Brasil,

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sétimo período, sem ter ouvido qualquer comentário anterior a seu respeito, duas coisas me surpreenderam imediatamente. Duas qualidades de caráter, na verdade, foram as mais imediatas: o caráter enérgico e resoluto da argumentação, bem como a paixão crítica e/ou crítica apaixonada nos temas explanados, pois eles brotavam diretamente da vida real, vivida, para a exposição oral e retornavam para os confl itos da vida real, procurando suas origens, fundamentos, resoluções, de forma universal, clara, lúcida, radical, profunda. Isso ao mesmo tempo feito com séria e respeitosa desmontagem crítica dos discursos descompromissados com a urgente questão do fundamento objetivo das idéias.

“Mas, evidentemente, tais qualidades morais, embora tivessem, no caso do pro-fessor, relação explícita e direta com seu caráter, suas idéias e seus projetos, é algo que por si só não fariam dele o grande mestre que foi. Ele trazia uma novidade an-siosamente aguardada por todos que estavam desejosos de ver o coreto da ‘querela dos fundamentos’ abalado, no bom sentido.

“Ao apresentar, na introdução da disciplina Filosofi a no Brasil, as conquistas fi losófi cas da equação ‘pré-teorética’ para o problema das fundamentações, assimi-lada e amadurecida mediante as leituras da obra de Marx, recoloca corajosamente em discussão algo que estava fora de moda no gosto fi losófi co atual: a necessidade de um fundamento irremovível, não arbitrário, para a Filosofi a e demais produções humanas. E isso, dizia ele, encontramos no próprio Marx. Os textos realmente não o negam. O que gerava espanto e desconfi ança. A própria razão, lúcida, não pode negar tal fundamento, a menos que pague ônus da prova, afi rmava Chasin, que nada mais é que seu próprio esvaziamento ontológico, ou seja, sua própria extinção (para não falar em sua gênese, o que já descartaria o próprio surgimento da querela espe-culativa, seu ponto de partida).

“Além de a questão parecer totalmente ‘fora de moda’, arrancando, em sala de aula, risos nervosos entre os pragmatistas, kantianos, hermeneutas etc., reações in-fl amadas de todos os lados, havia também o enfrentamento com as outras Filosofi as que colocam um fundamento teorético. Neste caso, reações vinham dos defensores da metafísica, do empirismo, do racionalismo, do hegelianismo etc.

“Nas fi losofi as para as quais o fundamento é uma questão da velha metafísica, já morta desde Kant, a questão é mostrar, depois de Kant (sobretudo no século XX), que já não é necessário nem possível levantar qualquer fundamento. Portanto, elas descartam a própria questão do fundamento como algo relevante e realizável. Essas fi losofi as, no fundo, acabam por colocar tudo e nada como fundamento, embora não o confessem de forma alguma. Nas outras, os fundamentos são postulações teóricas de natureza epistêmica ou ontológica, mas ambas elaboradas na forma de uma teoria arrimando a teoria.

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“Quanto às epistêmicas, é por demais evidente sua inteira incapacidade para so-lucionar a querela, dizia Chasin. Pois seu ponto de partida é a subjetividade, a lógica do sujeito, antes mesmo de apreender a lógica do objeto. No caso das fundamenta-ções ontológicas, aparece também a questão do pré-teorético, sobretudo nas tentati-vas de Heidegger e Ricoeur, que Chasin menciona e critica no curso de Filosofi a no Brasil, pois ambos trazem uma concepção abstrata do pré-teorético.

Sobre um pouco da crítica direcionada, de forma sucinta e didática em sala de aula, a Heidegger, afi rma Chasin:

Ontologia Fenomenológica de Heidegger. Ponto de partida: A vida vivida ou pré-teorético. Experiência vivida: Experiência existencial. Essa experiência parece ser um universal sem maiores problemas. Noção de experiência que engloba as ex-periências. Um pensar sobre si mesmo no mundo. Aleatoriedade: Qualquer coisa cabe nisso. É uma experiência do indivíduo isolado que experimenta o mundo.

Derrelição: É o indivíduo isolado que experimenta o mundo (abstrai-se da socia-bilidade). Existencialismo: Indivíduo jogado no mundo, condenado à liberdade. O homem jogado no mundo e que tem que viver: Condição humana. Uma vez posto no mundo, o homem está condenado a ser livre.

É uma concepção da vida vivida, como ela transcorre, não é uma analítica do cotidiano. É uma esfera, uma concepção abstrata do pré-teorético. Há um reconhe-cimento de uma cotidianidade fundante e o existencialismo aniquila isso. O homem é um nada, é um vazio na sua liberdade. O existencialismo não é uma analítica da cotidianidade. Campo puramente abstrato. Fundamento da teoria existencialista: O indivíduo isolado, sua condição é a do homem sofrendo a liberdade.

Chasin: A experiência compreende muito mais que a subjetividade (essa subjetivi-dade impactada). Experiência subentende ‘lugar’, os ‘outros’, as ações praticadas etc.

Aquele pré-teorético abstrato já envolve uma concepção teórica: a noção de in-divíduo fechado em si e jogado no mundo é pressuposto do existencialismo. O existencialismo é uma tentativa ontológica reducionista: todos os entes são entes de uma individualidade só: O homem. É uma aparência de remetimento à universa-lidade das coisas. É uma dissolução da ontologia, e não sua afi rmação. Heidegger se situa no plano do sentido do ser. Sartre também é uma ausência de objetividade ontológica. O homem como ser do qual tudo o mais depende é uma negação radical de toda a ontologia. (Anotações de aula, 27 de março de 1998)

“Claro que, para além do esquematismo e informalidade das anotações de aula acima, que não reproduz a riqueza do discurso falado, é incisiva e direta a crítica. O fundamento pré-teorético de que fala Chasin, que na verdade retira-o de Marx, é também chamado por ele de fundamento onto-prático. O fundamento de natureza teórica revela sua relatividade, ou seja, é uma dada forma de conceber o caminho do saber (não as determinações do ser) nas várias formas particulares de empreendê-

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lo. Escolher entre um e outro fundamento é arbitrário. Todo fundamento teórico é questionável: é nada mais que uma escolha entre várias. Ele é uma contingência teórica. Não há nenhum fundamento teórico inquestionável. E, no entanto, era isso que ele pretendia ser. Se absolutizarmos o caminho trilhado, chegamos à supressão de todo ponto de orientação. Essa absolutização leva à negação do conhecimento. O caminho é romper com o fundamento teórico como fundamento válido e colocar outro no lugar. O fundamento não está na teoria, mas na prática: fundamento onto-prático. Ele parte da experiência real, de um todo vivido, do que é necessariamente vivido. Analítica da vida cotidiana, analítica da cotidianidade. Vale a pena mencionar toda a passagem de anotação de sala de aula em que Chasin apresenta argumentação para caracterizar o onto-prático e como este fundamento da Filosofi a marxiana é inquestionável e original na história da Filosofi a:

Antes de qualquer refl exo interior, eu já vivo em contato com as coisas no mundo: isso é um reconhecimento, uma constatação.

Eu constato na imediaticidade do meu viver que ele é uma infi nitude de relações, de contatos (isso é irrecusável por qualquer tipo de teoria, porque eu não estou explicando essas relações, eu estou constatando que elas estão aí). Eu não preciso de uma teoria para dizer isso: eu faço isso no dia a dia, na imediaticidade direta. Ao sair de um prédio, eu escolho a porta e não a janela. Eu estou reconhecendo formas de existência objetivas.

Quando eu tomo um objeto, eu reconheço que ele é uma coisa externa a mim e que eu uso para meu benefício. Acertar ou errar — distanciamento adequado dos objetos — não é o que orienta a prática, de imediato. O ato prático se dá antes do critério de verdadeiro ou falso, a aproximação vivida com a coisa é anterior. A prática se põe não a partir de um fundamento pautado na verdade. Essa noção é dos gregos, da Filosofi a grega. A prática se põe como atendimento a algo que é mais vital que a verdade e ela se dá sempre, mesmo quando não se tem certeza da veracidade ou não do evento em questão. Falsidade e veracidade não impedem a prática, ela é indiferente a elas. Há algo que eu tenho que fazer se não eu não subsisto, se eu não fi zer eu pereço: a prática é guiada pela necessidade: seu critério é a necessidade, não o verdadeiro ou o falso. A ação humana se dirige a fi ns. Di-mensão fundante da ação humana. A ação visa a atender as carências objetuais do ser humano. Universo da vida vivida, da vida real: a vida cotidiana em que todos nós vivemos: artistas ou não, fi lósofos ou não, cientistas ou não. Não saímos dela nunca. É um engodo pensar o contrário, eu me fechar na minha vida individual, no meu recolhimento subjetivo.

Subjetividade não é ser, é predicado de um ser objetivo e que para viver tem de atender a exigências objetivas. A subjetividade não é substância, nesse sentido ela não é objetiva, ou melhor, não como as coisas sensíveis o são. A consciência é consciência de um ser objetivo: essa é sua condição de possibilidade. Ela não é uma coisa em si e por si, consciência é consciência da objetividade. Na imediatici-dade do cotidiano, a subjetividade conscientiza que eu tenho fome e meu objetivo

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é buscar alimento. A prática é um complexo de ações sensíveis cujo momento fundamental é o atendimento de carências. Como ser objetivo, o homem tem carências. Essa é a vida efetiva, inescapável que se repete todas as horas do dia. Tudo o mais na vida deriva desse complexo da realidade da vida cotidiana, tudo se desdobra acima dele. A vida fundante para tudo é a vida cotidiana. O onto-prático é a constatação das experiências fundamentais. Há algo que liga todos os homens: para poder estar em condições de negar ou afi rmar é preciso antes de tudo de ‘estar vivo’. Há uma condição objetiva, objetos fora de mim, independentes.

Os objetos de que eu preciso não existem na natureza, não estão dados na nature-za, eu tenho de produzi-los, de modo que a produção é o meio de subsistência hu-mano. Isso é irremovível, inquestionável. Sem isso todo o resto se torna impossí-vel. Eu não posso abstrair dos meios, eles são um pressuposto objetivo. Isso tudo é o resultado de uma simples análise do cotidiano. Não há nenhuma teoria nisso, eu simplesmente li no mundo. A fi losofi a dos últimos 50 anos tem sido uma corrupção da Filosofi a. Aquele resultado da analítica da cotidianidade é uma abstração razoável: é aquele tipo de abstração mantenedora da efetividade, é o reconhecer do nervo fundamental sem o qual todo o resto é impossível. Essa constatação envolve uma operação mental (abstração razoável). Levou-se cerca de 2.500 anos, desde o nas-cimento da Filosofi a, para ser descoberta e, ao mesmo tempo, é tão simples. Só com Marx isso se efetivou. Se os meios de subsistência são irremovíveis, eu posso extrair dessa colocação que se o homem produz seus meios de subsistência, ele produz a si mesmo, não como a metafísica faz, que parte de uma certeza abstrata. Nossa certeza é sensível. (Anotações de aula, 27 de março de 1998).’”