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Revista DPE/10

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Já está disponível, no site da Instituição, a 10ª edição da Revista da Defensoria Pública do Estado do Rio Grande do Sul. O periódico, de edição quadrimestral, conta com artigos das mais diversas áreas do saber jurídico elaborado por Defensores Públicos, Advogados, Magistrados e demais operadores do direito. Esta edição conta com nove artigos distribuídos entre as áreas constitucional, cível, penal, fiscal, ambiental e tributária.

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    REVISTA DA DEFENSORIA PBLICA do Rio Grande do Sul

    Porto Alegre/RS 2014

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    ISSN 2177-8116

    Dados Internacionais de Catalogao na Publicao (CIP) Revista da Defensoria Pblica do Estado do Rio Grande do Sul [on line] /

    Defensoria Pblica do Estado do Rio Grande do Sul Ano 5, V.10 (setembro/dezembro.2014). Porto Alegre: DPE, 2014

    Quadrimestral. Modo de acesso:< http://www.defensoria.rs.gov.br/revista > Sistema requerido: Adobe Acrobat Reader.

    ISSN 2177 8116

    1. Direito - Peridico I. Rio Grande do Sul (estado). Defensoria Pblica.

    CDD 340.05

    CDU 34(05)

    Ficha Catalogrfica elaborada por Gilmara Gomes - CRB-10/1367

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    DEFENSOR PBLICO-GERAL DO ESTADO

    Nilton Leonel Arnecke Maria

    CORREGEDORA-GERAL DA DEFENSORIA PBLICA

    Yara Nasario

    COORDENADOR DA REVISTA DA DEFENSORIA PBLICA

    Felipe Kirchner

    CONSELHO EDITORIAL

    Alvaro Roberto Antanavicius Fernandes

    Gustavo Lindenmeyer Barbieri

    Vivian Rigo

    DEFENSORIA PBLICA DO ESTADO DO RIO GRANDE DO SUL

    Rua Sete de Setembro, 666 Centro Histrico

    CEP 90010-100 Porto Alegre/RS

    Tel. 51 3211-2233

    www.dpe.rs.gov.br/site/revista_eletronica.php

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    APRESENTAO

    Com imenso entusiasmo chegamos dcima edio da Revista da

    Defensoria Pblica do Estado do Rio Grande do Sul.

    O peridico, de edio quadrimestral, conta com artigos das mais

    diversas reas do saber jurdico elaborado por Defensores Pblicos,

    Advogados, Magistrados e demais operadores do direito.

    A faceta multidisciplinar se revela na vasta gama de artigos j

    publicados nas edies anteriores mas, para alm disso, reflete a alta

    complexidade das demandas que chegam s mos dos Defensores(as)

    Pblicos(as), verdadeiros de Direitos Humanos e da Cidadania.

    Assim, esta edio conta com nove artigos distribudos entre as reas

    do direito constitucional, cvel, penal, fiscal, ambiental e tributrio.

    Os artigos iniciais refletem a importncia do Direito Constitucional nas

    discusses atuais do sistema jurdico brasileiro. Como primeiro trabalho,

    apresenta-se o artigo sobre os critrios de atendimento da Defensoria

    Pblica, tema que merece especial ateno. Para tanto, os autores Marcelo

    Costa Fernandes de Negreiros e Rodolpho Penna Lima Rodrigues,

    Defensores Pblicos do Sergipe e Maranho respectivamente, abordam os

    critrios de atendimento das Defensorias Pblicas com uma reviso dos

    mais diversos aspectos da vulnerabilidade e hipossuficincia.

    Tambm na rea constitucional apresenta-se o artigo da bacharela

    em direito e servidora do estado, Mrcia Regina Zok da Silva, que analisa o

    Municpio Brasileiro e seus interesses intrnsecos e as diversas conotaes

    assumidas por este ente ao longo da Histria Constitucional de nosso Pas.

    Seguem-se dois artigos com interseces no direito constitucional,

    sanitrio e consumerista. O primeiro, de autoria de Cibele Mateus e Bruno

    Siborski, Advogada e Conciliador Criminal, analisa o panorama

    jurisprudencial sobre as cooperativas mdicas luz da legislao

    constitucional e infraconstitucional vigente, demonstrando que as relaes

    entre particulares tambm esto sujeitas aos efeitos irradiadores das

    normas de direitos fundamentais sociais. O artigo A Responsabilidade Civil

    das Operadoras de Sade Suplementar por Erro Mdico, de minha autoria,

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    objetiva o alcance da maximizao da pretenso do consumidor a partir dos

    pressupostos da teoria sistmica, alcanando a legitimidade passiva das

    operadoras.

    J a rea do direito penal e processual penal vem analisada pelos

    Defensores Pblicos lvaro Antanavicius Fernandes e Denis Sampaio,

    respectivamente. O primeiro trata dos tipos penais incriminadores, em

    especial aqueles que preveem elementos subjetivos especiais e discute a

    suficincia do dolo eventual como resposta. O segundo artigo, por sua vez,

    utiliza-se do direito comparado para analisar a investigao defensiva no

    sistema processual penal brasileiro, na busca de um processo que seja

    baseado no dilogo e no contraditrio.

    Importante artigo na rea ambiental apresentado pelo Defensor

    Pblico Claudio Luiz Covatti que discute a atuao da Defensoria nos litgios

    e questes ambientais como principal instituio de concretizao do direito

    ao meio ambiente equilibrado.

    Na relao entre direito fiscal, tributrio e empresarial, apresentam-se

    mais dois artigos, o primeiro do Advogado Mateus Mantovani Sorgatto que

    traz tona a questo da teoria da desconsiderao da personalidade

    jurdica na execuo trabalhista e fiscal. Outro importante ensaio sobre a

    matria da tambm Advogada Fabiane Simioni, que discute a imunidade

    tributria conferida constitucionalmente aos templos de qualquer culto com

    base nas teorias de Rawls e Habermas.

    Convidamos a todos para a ampla discusso trazida por este nmero

    da Revista da Defensoria Pblica do Estado do Rio Grande do Sul, fazendo

    votos de que tambm o leitor possa contribuir com a construo do saber

    jurdico enviando seus artigos para este peridico.

    Porto Alegre, dezembro de 2014.

    FELIPE KIRCHNER

    Defensor Pblico

    Coordenador da Revista da Defensoria

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    SUMRIO APRESENTAO .......................................................................................... 4

    A ASSISTNCIA JURDICA EXPANSIVA E AS FACETAS DA VULNERABILIDADE ..................................................................................... 9

    Marcelo Costa Fernandes de Negreiros e Rodolpho Penna Lima Rodrigues

    DO PECULIAR INTERESSE AO INTERESSE LOCAL: A CONTRIBUIO DO ART. 30, I, DA CRFB/88, NA MUNICIPALIDADE BRASILEIRA ................................................................................................ 33

    Mrcia Regina Zok da Silva

    AS COOPERATIVAS MDICAS E O ACESSO SADE: POR UMA VINCULAO DOS PARTICULARES AOS DIREITOS FUNDAMENTAIS SOCIAIS ....................................................................................................... 67

    Cibele Gralha Mateus e Bruno Prange Stiborski

    A RESPONSABILIDADE CIVIL DAS OPERADORAS DE SADE SUPLEMENTAR POR ERRO MDICO: IMPUTAO PELO PRISMA DA TEORIA SISTMICA .................................................................................... 82

    Felipe Kirchner

    TIPOS PENAIS INCRIMINADORES QUE PREVEM ELEMENTOS SUBJETIVOS ESPECIAIS: A (IN)SUFICINCIA DO DOLO EVENTUAL .................................................................................................................... 146

    lvaro Roberto Antanavicius Fernandes

    REFLEXES SOBRE A INVESTIGAO DEFENSIVA NO SISTEMA PROCESSUAL PENAL BRASILEIRO POSSVEL RENOVAO DA INFLUNCIA ITALIANA PS CDIGO ROCCO SOBRE A INDAGINE DIFENSIVE. ................................................................................................ 187

    Denis Sampaio

    A ATUAO DA DEFENSORIA PBLICA NO ESTADO DE DIREITO AMBIENTAL ............................................................................................... 215

    Claudio Luiz Covatti

    A TEORIA DA DESCONSIDERAO DA PERSONALIDADE JURDICA E SUA APLICAO NA EXECUO TRABALHISTA E FISCAL .............. 237

    Mateus Mantovani Sorgatto

    A IMUNIDADE TRIBUTRIA AOS CULTOS E LIBERDADE DE CRENA EM UM ESTADO LAICO ........................................................... 265

    Fabiane Simioni

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    A ASSISTNCIA JURDICA EXPANSIVA E AS FACETAS DA VULNERABILIDADE

    Marcelo Costa Fernandes de Negreiros1

    Rodolpho Penna Lima Rodrigues2

    RESUMO: O presente artigo tem por finalidade abordar a vulnerabilidade

    nos seus mais variados aspectos. Os resultados e as concluses do

    trabalho foram baseados em uma reviso de doutrina e casos concretos.

    Entrevistas com pessoas atendidas pela Defensoria Pblica nos estados do

    Acre, Maranho e Sergipe contriburam para esses resultados. Os critrios

    de acesso Defensoria Pblica passam, inevitavelmente, pela anlise da

    vulnerabilidade sob o enfoque da hipossuficincia econmica, jurdica e

    organizacional. Sucede que, nos tempos hodiernos, a vulnerabilidade se

    apresenta em outros campos, em especial na seara processual. Diante do

    vcuo doutrinrio e jurisprudencial sobre a temtica, discute-se o processo

    virtual e os dficits do sistema, defendendo-se a inadmissibilidade da

    evoluo da tcnica quando em detrimento do direito, em especial quando

    h violao s prerrogativas dos Defensores Pblicos. Alm disso, so

    retratados os aspectos formais da carta precatria, a fim de resguardar o

    devido processo legal e os consectrios do contraditrio e ampla defesa.

    Discute-se, por fim, a hipossuficincia geogrfico-temporal e a

    desertificao assistencial, envolvendo a temtica da (im)possibilidade de

    atuao do Defensor Pblico quando a sua atuao transcende os limites

    territoriais do estado. Defende-se a assistncia jurdica gratuita expansiva.

    1Defensor Pblico no Estado de Sergipe. Ex-Defensor Pblico do Estado do Acre. Especialista

    em Ministrio Pblico, Direito e Cidadania, pela Fundao Escola Superior do Ministrio Pblico do Rio Grande do Norte. 2Defensor Pblico de 1 Classe do Estado do Maranho. Especialista em Cincias Criminais.

    Membro da Comisso de Prerrogativas da Defensoria Pblica do Estado do Maranho. Membro da Comisso Acadmica da ADPEMA Associao dos Defensores Pblicos do Estado do Maranho. Ex-Conselheiro do PROVITA - Programa de Proteo a Vtimas e

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    Com a Emenda Constitucional n. 80/2014, a Defensoria Pblica ganha

    espao e fora para implementar, de vez por todas, a sua atuao. Assim,

    temas como estes ganham espao e merecem discusso para assegurar o

    direito constitucional assistncia jurdica, como ncleo irredutvel da

    dignidade da pessoa humana, pertencendo ao mnimo existencial.

    PALAVRAS CHAVE: Vulnerabilidade. Hipossuficincia. Assistncia Jurdica

    Gratuita.

    SUMRIO: 1. Introduo. 2. Critrios de acesso Defensoria Pblica. A

    trade da vulnerabilidade (a hipossuficincia econmica, jurdica e

    organizacional). 2.1. A Hipossuficincia Geogrfico-Temporal. Da

    problemtica acerca da atuao da Defensoria Pblica em casos de cartas

    precatrias interestaduais e peticionamentos extraterritoriais. 2.2. Aspectos

    Formais da Carta Precatria Criminal. 2.3. Da ineficincia da Resposta

    Acusao no Processo Penal: a absoluta ausncia de contato com o ru.

    2.4. Processo virtual e os dficits do sistema: da inadmissibilidade da

    evoluo da tcnica quando em detrimento do direito. 2.5. Do dficit na

    quantidade de Defensores Pblicos e os consequentes reflexos processuais

    e extraprocessuais. 3. Concluso. 4. Referncias.

    1 INTRODUO

    No existe esperana sem luta. Para que exista luta, deve haver ao. E com ao, existem resultados. Ento, nada em vo.

    No poderia ser outro o logradouro a ser seguido e perseguido. A

    Defensoria Pblica transps inmeros obstculos nos ltimos anos, obtendo

    conquistas aptas a culminar no seu real valor. Em especial, aps

    incessantes lutas, com a recente promulgao da Emenda Constitucional

    n. 80/20143 que nasce o alicerce indispensvel para que a Instituio

    Testemunhas do Estado do Maranho. 3 Art. 134. A Defensoria Pblica instituio permanente, essencial funo jurisdicional do

    Estado, incumbindo-lhe, como expresso e instrumento do regime democrtico,

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    possa, de vez por todas, atingir o grau mximo de universalizao de

    acesso aos necessitados. Reverencia-se, em sede constitucional, a

    expanso e a exclusividade da assistncia jurdica gratuita. Deveras, a

    promoo dos direitos humanos, notadamente no combate s injustias,

    pobreza, enfim, aos riscos sociais espalhados nos quadrantes deste Brasil

    ser realizada com mais eficcia, uma vez que a alterao potencializa a

    Defensoria Pblica e traz a reboque o arsenal de armas para que os seus

    objetivos institucionais sejam alcanados.

    J dizia o Ministro Celso de Mello, em lapidar voto4, que

    interpretaes de normas programticas no podem transform-las em

    promessas constitucionais inconsequentes. Aps vinte e seis anos, enfim,

    uma dvida histrico-constitucional quitada. A consequncia disso tudo

    que, ao conferir iniciativa de lei Defensoria Pblica, a sua estrutura

    funcional ser robustecida nos mais variados aspectos. Com tais mudanas,

    o acesso justia ser ampliado e a vulnerabilidade combatida com mais

    afinco.

    Nada seria alcanado sem que houvesse o denoto e a humanidade

    de muitos Defensores Pblicos, cnscios do dever de transmudar em aes

    as demandas de um nmero cada vez maior de hipossuficientes, ainda

    quando o estorvo estrutural e a ausncia de um corpo de funcionrios

    capacitado aparentavam inviabilizar a atuao defensorial.

    Por evidente que muito caminho ainda falta ser percorrido e que

    abundantes so as dificuldades ainda existentes como, por exemplo, a

    fundamentalmente, a orientao jurdica, a promoo dos direitos humanos e a defesa, em todos os graus, judicial e extrajudicial, dos direitos individuais e coletivos, de forma integral e gratuita, aos necessitados, na forma do inciso LXXIV do art. 5 desta Constituio Federal. (Redao dada pela Emenda Constitucional n 80, de 2014)[...] 4 So princpios institucionais da Defensoria Pblica a unidade, a indivisibilidade e a independncia funcional, aplicando-se tambm, no que couber, o disposto no art. 93 e no inciso II do art. 96 desta Constituio Federal. (Includo pela Emenda Constitucional n 80, de 2014) 4 Recurso Extraordinrio n. 271286 AgR, Relator(a): Min. CELSO DE MELLO, Segunda

    Turma, julgado em 12/09/2000, ACRDO ELETRNICO DJ 24-11-2000 PP-00101 EMENTA VOL-02013-07 PP-01409)

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    ausncia de estrutura fsica adequada, a carncia de funcionrios e de

    Defensores Pblicos, a diferena oramentria entre as Instituies que

    compem o Sistema de Justia, dentre outras que se manifestam em maior

    ou em menor escala, muitas delas dificultando o acesso Defensoria

    Pblica e no resolvendo ou agravando a situao dos hipossuficientes.

    A luta no para.

    2 CRITRIOS DE ACESSO DEFENSORIA PBLICA. A TRADE DA

    VULNERABILIDADE (A HIPOSSUFICINCIA ECONMICA, JURDICA E

    ORGANIZACIONAL)

    Los pobres normalmente son los ms vulnerables en una sociedad, ya que estn ms expuestos al conjunto de riesgos y al mismo tiempo tienen menos acceso a instrumentos adecuados para enfrentar dichos riesgos.

    5

    Os critrios de acesso Defensoria Pblica passam, inevitavelmente,

    pela anlise da vulnerabilidade, que se desdobra na anlise da

    hipossuficincia econmica, jurdica e organizacional.

    Vaticina o novel artigo 134 da Constituio Federal que a Defensoria

    Pblica instituio permanente, essencial funo jurisdicional do Estado,

    incumbindo-lhe, como expresso e instrumento do regime democrtico,

    fundamentalmente, a orientao jurdica, a promoo dos direitos humanos

    e a defesa, em todos os graus, judicial e extrajudicial, dos direitos

    individuais e coletivos, de forma integral e gratuita, aos necessitados, na

    forma do inciso LXXIV do art. 5 desta Constituio Federal.

    Como se v, a prestao da assistncia jurdica est adstrita

    clusula geral necessitados, o que torna imperativa a definio de

    contornos jurdicos ao termo. Neste particular, leciona JUDITH MARTINS-

    COSTA que considerada do ponto de vista da tcnica legislativa, a clusula

    5 Serie de Documentos de Discusin sobre la Proteccin Social. Manejo Social del Riesgo: Un

    nuevo marco conceptual para la Proteccin Social y ms all. Robert Holzmann. Steen Jrgensen. Febrero del 2000. Documento de trabajo No. 0006 sobre proteccin social. Unidad de la Proteccin Social. Red de Desarrollo Humano. El Banco Mundial.

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    geral constitui, portanto, uma disposio normativa que utiliza, no seu

    enunciado, uma linguagem de tessitura intencionalmente aberta, fluida ou

    vaga, caracterizando-se pela ampla extenso do seu campo semntico6.

    Portanto, no af de delimitar a extenso do campo semntico, de rigor

    a anlise da vulnerabilidade e da hipossuficincia. Com efeito, a primeira

    evidencia uma frmula geral, ao passo que a segunda traduz a frmula

    especfica de vulnerabilidade no caso concreto. Explique-se.

    A anlise da vulnerabilidade conditio sine qua non para deflagrar a

    atuao institucional da Defensoria Pblica. Trata-se de uma situao de

    fato, em carter provisrio ou permanente, que condiciona a pessoa a uma

    situao de carncia.

    Numa primeira anlise, a fim de dar concretude s normas gerais

    estatudas na Constituio Federal e na Lei Complementar Orgnica n.

    80/1994, as Leis Estaduais preveem os critrios de acesso Defensoria

    Pblica. guisa de exemplo do critrio de hipossuficincia econmica, a

    Lei Complementar do estado do Maranho n. 19 de 1994, em seu art. 1,

    1, aduz que se considera necessitado o brasileiro ou estrangeiro,

    residente ou em trnsito, no estado, cuja ineficincia de recursos,

    comprovadamente, no lhe permita pagar as custas processuais e os

    honorrios advocatcios sem prejuzo do sustento pessoal e de sua famlia.

    Vale como comprovao, para os efeitos do referido artigo, a prova

    de uma das seguintes condies: ter renda pessoal inferior a trs salrios

    mnimos mensais, ou pertencer entidade familiar, cuja mdia da renda per

    capita, mensal, no ultrapasse a metade do valor acima referido.

    Conquanto vrias legislaes estaduais optem por fixar um

    determinado valor, a verdade que qualquer indexador abstrato que

    propenda decidir quem necessitado ou quem deve ser atendido pela

    6 MARTINS-COSTA, Judith. A boa f no direito privado: sistema e tpica no processo

    obrigacional, cit., p. 303.

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    Defensoria Pblica arbitrrio, sendo incapaz de antever e abarcar os

    inmeros casos que abrolham nas mos dos Defensores Pblicos. Qualquer

    critrio matemtico falha pela generalidade. No se quer, contudo, refut-

    los in totum, por despiciendos. No se discorda acerca da possibilidade da

    utilizao dos valores fixados como um norte, mas de maneira alguma se

    admite que esses parmetros obstem o atendimento de pessoas

    necessitadas, porquanto muitas vezes os parmetros legais evidenciam-se

    desconexos com a realidade ftica, casos em que devero ser

    desconsiderados. Devem funcionar, portanto, como um piso, em que sero

    necessitados todos que se encontrarem abaixo do valor fixado. Jamais

    como teto, pois nesses casos imperiosa uma anlise casustica, no

    obstante motivada.

    Nesse diapaso, FREDIE DIDIER JNIOR obtempera que o Direito

    passa a ser construdo a posteriori, em uma mescla de induo e deduo,

    atento complexidade da vida, que no pode ser totalmente regulada pelos

    esquemas lgicos reduzidos de um legislador que pensa abstrata e

    aprioristicamente7.

    Assim, cabe ao Defensor Pblico, a despeito da omisso legislativa

    ou da inadequao dos parmetros abstratamente fixados, aferir a

    necessidade econmica no caso concreto, por meio de deciso

    devidamente motivada.

    Alm da anlise do perfil socioeconmico, mister registrar que a

    hipossuficincia no se resume to somente a esse aspecto. H

    determinados casos em que a hipossuficincia deriva diante de uma relao

    jurdica. Cite-se, a ttulo ilustrativo, o exemplo da defesa em processo penal,

    em que o acusado est em posio de vulnerabilidade frente acusao.

    Emerge, assim, a denominada a vulnerabilidade sob o enfoque da

    hipossuficincia jurdica.

    7 http://www.frediedidier.com.br/pdf/clausulas-gerais-processuais.pdf

  • 15

    ADA PELLEGRINI GRINOVER, a esse respeito, j advertia que no

    cabe ao Estado indagar se h ricos ou pobres, porque o que existe so

    acusados que, no dispondo de advogados, ainda que ricos sejam, no

    podero ser condenados sem uma defesa efetiva. Surge, assim, mais uma

    faceta da assistncia judiciria, assistncia aos necessitados, no no

    sentido econmico, mas no sentido de que o Estado lhes deve assegurar as

    garantias do contraditrio e da ampla defesa8.

    A doutrina de vanguarda, alm disso, enuncia a existncia da

    hipossuficincia organizacional para albergar todos aqueles que so

    socialmente vulnerveis: os consumidores, os usurios de servios pblicos,

    os usurios de planos de sade, os que queiram implementar ou contestar

    polticas pblicas, como as atinentes sade, moradia, ao saneamento

    bsico, ao meio ambiente etc. no campo da hipossuficincia

    organizacional que a Defensoria Pblica deflagra as aes coletivas.

    A par de tais consideraes, os critrios de acesso Defensoria

    Pblica passam necessariamente pela anlise detida da frmula geral

    vulnerabilidade, que se desdobra na anlise especfica da trade da

    hipossuficincia econmica, jurdica e organizacional.

    2.1 A HIPOSSUFICINCIA GEOGRFICO-TEMPORAL. DA

    PROBLEMTICA ACERCA DA ATUAO DA DEFENSORIA PBLICA

    EM CASOS DE CARTAS PRECATRIAS INTERESTADUAIS E

    PETICIONAMENTOS EXTRATERRITORIAIS

    A vulnerabilidade no s se resume na anlise da hipossuficincia

    econmica, jurdica e organizacional. Na prestao da assistncia jurdica

    gratuita surgem diversas indagaes de ordem de direito material e

    processual, alm dos limites das atribuies dos Defensores Pblicos.

    Dentre elas, exsurge a celeuma no que toca prestao de assistncia

    8 GRINOVER, Ada Pellegrini, Assistncia Judiciria e Acesso Justia, in Novas Tendncias

    do Direito Processual, Rio de Janeiro, Forense Universitria, 2 ed., 1990, p. 246.

  • 16

    jurdica quando a atuao defensorial transcende os limites do estado.

    Certo que a falta de atuao da Defensoria Pblica de determinado

    estado em unidade jurisdicional situada em outro estado da federao pode

    provocar repercusso de gravidade irreparvel, principalmente em relao

    ao assistido intimado ou citado por meio de carta precatria.

    Com efeito, a apresentao da pea processual cabvel no juzo

    deprecante, pode ser analisada sob, no mnimo, dois aspectos, abaixo

    referidos.

    O primeiro deles concerne hipossuficincia do assistido que buscou

    a Defensoria Pblica aps sua intimao por carta precatria. Em sendo

    hipossuficiente, tem o direito de ser assistido pela Instituio. Exatamente

    por esse motivo, a regra que no possua condies de se deslocar at o

    local de onde partiu a carta precatria. Por conseguinte, o Defensor Pblico

    elabora a pea processual e a encaminha ao juzo deprecante, a fim de

    garantir o direito constitucional assistncia jurdica (qualificada).

    O segundo aspecto, contudo, choca-se com o acima mencionado.

    Refere-se existncia ou ausncia de atribuio do Defensor Pblico de

    um determinado estado para atuar em outro, ainda que de forma

    espordica. acerca desse assunto que reside um grande vcuo

    doutrinrio e jurisprudencial.

    nessa vereda que se descortinam algumas questes nevrlgicas,

    mormente diante da desrtica produo literria acerca do assunto: qual a

    legitimidade de um Defensor Pblico de um dado estado interpor uma pea

    processual em outro estado da federao? O princpio da Unidade que rege

    a Defensoria Pblica abrangeria tal prerrogativa ou apenas nessa hiptese

    haveria uma exceo justificada pela necessidade do assistido? E se o

    magistrado do estado de onde partiu a precatria adotar uma postura

    legalista-restritiva, no ser maior o prejuzo para o assistido, por ter perdido

    um prazo processual ao se entender que o Defensor Pblico no poderia ter

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    apresentado aquela pea naquela Comarca? Seria uma soluo a

    ratificao da pea pela Defensoria Pblica do estado de onde partiu a

    precatria? Se o prazo j escoou, como efetivar essa ratificao?

    Como consabido, o Defensor Pblico, rgo de execuo da

    Defensoria, presta assistncia jurdica integral e gratuita aos

    hipossuficientes que residem na Comarca em que exerce suas atribuies.

    Eis o algoritmo: em regra, o cidado muncipe comparece Defensoria

    Pblica e, enquadrando-se no perfil socioeconmico (na acepo literal do

    termo: hipossuficiente), ser assistido pela Instituio.

    Parece ser simples, mas no o .

    A ttulo de ilustrativo, transmudando as indagaes abstratas acima

    mencionadas em questes concretas, abrolham as seguintes

    indagaes: (1) Seria possvel ao Defensor Pblico do estado do Maranho

    elaborar a petio inicial e protocolizar no estado de Sergipe? (2)

    Como solucionar o caso de assistido que, residente no municpio de So

    Lus/MA, local onde h a prestao de assistncia jurdica gratuita pela

    Defensoria Pblica Estadual, citado por meio de carta precatria expedida

    de processo originrio da Comarca de Lagarto/SE, onde tambm h

    atuao da Defensoria Pblica Estadual, para que apresente a pea

    processual adequada? O Defensor Pblico pode demandar diretamente no

    juzo deprecante?

    Para responder a tais questionamentos, preciso enfrentar os limites

    conceituais do que vem a ser a assistncia jurdica gratuita.

    A assistncia jurdica integral e gratuita prevista na Carta

    Constitucional, no art. 5, LXXIV, como dever do Estado aos que

    comprovarem insuficincia de recursos. Com efeito, trata-se de direito

    pblico subjetivo que tutela aquele que comprovar que a sua situao

    econmica no lhe permite pagar honorrios advocatcios e despesas

    processuais, sem prejuzo de seu prprio sustento e o de sua famlia,

  • 18

    situado no mnimo existencial9 como ncleo irredutvel da dignidade da

    pessoa humana.

    Deveras, como direito subjetivo que , o Defensor Pblico Estadual,

    no cumprimento de sua atividade-fim, deve prestar a assistncia jurdica

    integral queles que se enquadram como hipossuficientes, mesmo que a

    eventual demanda tenha de ser protocolizada em Comarca situada em outro

    estado da federao, sob pena de assim no o fazendo, violar o

    reconhecimento constitucional de uma metagarantia, riscando o direito

    fundamental assistncia jurdica integral e gratuita.

    A pretexto das atribuies estarem limitadas a uma determinada

    Comarca, o direito vindicado pelo assistido jamais poder ser obstado se a

    propositura da demanda recair em outra Comarca situada em diferente

    estado da federao. Isso porque no se aplicam aos Defensores Pblicos

    os regramentos atinentes Magistratura, no que toca aos limites da

    competncia, e ao Ministrio Pblico, em relao s atribuies limitadas a

    uma Comarca.

    Neste aspecto, sobreleva destacar que a capacidade postulatria ex

    constitucionis nsita prestao de assistncia jurdica do Defensor

    Pblico, diferente das demais carreiras jurdicas. dizer, a pretenso do

    assistido, respaldada na anlise jurdica do Defensor, com base na

    independncia funcional, deflagra e propulsiona a atuao da Instituio em

    qualquer unidade jurisdicional, a fim de dar concretude ao direito

    fundamental assistncia jurdica.

    Comboiando por esse crrego, insta aludir que a Carta Altior, ao

    prever a integralidade da assistncia jurdica gratuita aos hipossuficientes,

    no infligiu limites para a execuo da devida prestao assistencial, tanto

    9 Para ANA PAULA DE BARCELLOS, o mnimo existencial composto de quatro elementos,

    trs materiais e um instrumental, a saber: a educao fundamental, a sade bsica, a assistncia aos desamparados e o acesso Justia (BARCELLOS, Ana Paula. A eficcia jurdica dos princpios constitucionais: o princpio da dignidade da pessoa humana. Rio de Janeiro: Renovar, 2002. p. 258.)

  • 19

    que entalhou no Pergaminho Constitucional, alm da gratuidade, a

    integralidade da assistncia. Nessa senda, pertinente referir que s haver

    a to aclamada integralidade, se inexistirem obstculos aptos a burlar a

    efetivao dos direitos das pessoas hipossuficientes, sejam esses estorvos

    de qualquer ordem, inclusive territorial. Em escrita solar: demarcaes

    geogrficas no podem impedir a atuao do Defensor Pblico que, por sua

    natureza, postulador por essncia.

    Ainda nessa linha de raciocnio, convm rememorar a Teoria dos

    Poderes Implcitos, que teve seu nascedouro na Suprema Corte Norte-

    Americana, especificamente no caso McCulloCh vs. Maryland, h quase

    dois sculos, tempo insuficiente para desatualizar seus dogmas,

    permanecendo coeva no ordenamento vigente. Em concisa definio, a

    Teoria estabelece que ao ser concedida, pela Constituio, uma funo

    para certo rgo ou Instituio, tambm esto implicitamente outorgados os

    meios para a implementao dessa funo. Amoldando a Teoria ao caso

    em estudo, percebe-se que para a prestao da assistncia jurdica integral

    e gratuita - o que realizado pela Defensoria Pblica -, no possvel

    fixao de limites territoriais para a Defensoria, por dois motivos: o assistido

    no possui condies financeiras de buscar a Defensoria Pblica de estado

    diverso do seu (estado de onde partiu a carta precatria), alm de tal

    exigncia potencializar, de forma inadmissvel, o risco de decurso do prazo

    processual para manifestao, caracterizando aqui o que denominamos de

    vulnerabilidade geogrfico-temporal, capaz de inviabilizar a assistncia

    jurdica integral e gratuita por parte da Defensoria Pblica.

    Na mesma quadra, oportuno mencionar que Constituio Federal, ao

    mencionar a integralidade da assistncia jurdica gratuita, no faz ressalvas,

    nem permite que sejam impostas limitaes ao texto Constitucional. Em

    assim sendo, como efetivamente o , qualquer limitao de ordem

    infraconstitucional afronta diretamente o texto maior. Nesse diapaso, a

  • 20

    norma Constitucional goza de plena eficcia, configurando limitao

    indevida, por violao a integralidade da prestao assistencial, qualquer

    entendimento que restrinja a atuao da Defensoria Pblica em Comarcas

    de outros estados, sempre que houver o interesse de pessoas

    hipossuficientes.

    Noutra linha de raciocnio, pertinente esclarecer que a limitao

    quantitativa de peas previstas no Estatuto da OAB no se aplica

    Defensoria Pblica, por ter regramento prprio. A norma do Estatuto apenas

    refora a ausncia de limitao territorial para a atuao da Defensoria

    Pblica, pois se permitido ao advogado atuar em determinado nmero de

    processos fora da localidade em que possui sua inscrio junto OAB, com

    maior razo pode atuar o Defensor Pblico, pois opera em defesa de

    pessoas hipossuficientes, devendo ser a prestao gratuita e integral, nos

    termos da Carta Cidad, tornando-se impossvel pensar em integralidade

    quando impostas barreiras territoriais, conforme j sobredito.

    preciso ir alm. A variada gama de relaes jurdicas que travada

    no Estado contemporneo faz com que, naturalmente, surjam conflitos.

    mais do que comum o cidado ser demandado em um Estado por onde

    jamais passou. E, quando procura a Defensoria Pblica verdadeira gide

    protetora de seus direitos , no pode receber a resposta de que no

    possvel a referida atuao, porque o processo tramita em Comarca na qual

    o Defensor no exerce suas atribuies.

    A prestao da assistncia jurdica gratuita expansiva. O Defensor

    Pblico no s pode, como deve, nos limites e possibilidades estruturais,

    elaborar a pea processual adequada, remeter ao Juzo competente,

    suscitar a incompetncia do juzo, requerer a oitiva do assistido na Comarca

    em que domiciliado, entrar em contato com o Defensor Pblico titular

    local, se houver Defensoria Pblica naquela localidade, enfim, adotar as

    medidas judiciais pertinentes para assegurar o direito fundamental

  • 21

    assistncia jurdica gratuita e integral.

    Eventuais atos processuais e audincias podem ser acompanhados

    pelo Defensor Pblico titular local. Note-se e anote-se que, conquanto

    repreensiva, a persistente omisso estatal na implementao estrutural da

    Defensoria Pblica, desde 1988, no justifica a supresso da prestao da

    assistncia jurdica integral e gratuita, a quem dela necessitar.

    luz de tais premissas, necessrio ponderar que essa assistncia

    jurdica gratuita expansiva ou ampliada, retratada aqui na possibilidade de

    atuao do Defensor Pblico de um estado em outro estado da federao,

    alm de resguardar os direitos do assistido, objetiva lhe assegurar a Justia,

    sem delongas capazes de prejudicar seu direito, pois Justia atrasada no

    justia, seno injustia qualificada e manifesta10

    , na erudita frase cunhada

    por RUI BARBOSA.

    Nesse sentido, exsurge a necessidade de serem firmados Convnios

    de Cooperao de Assistncia Jurdica Interestaduais entre as respectivas

    Defensorias Pblicas para regulamentar situaes deste quilate. Um Cdigo

    de Normas a ser elaborado pelas Defensorias Estaduais, padronizando a

    forma de atuao do Defensor Pblico nos casos mencionados, uma das

    solues viveis, evitando possveis conflitos e entendimentos divergentes,

    descambando em irreparveis prejuzos para os hipossuficientes.

    Magistrados devem ser sensveis a essa situao, sem obstar o

    direito dos assistidos aplicando entendimento interpretativo restritivo. De

    lege ferenda, contudo, o ideal a normatizao legal do assunto, atribuindo,

    de forma clara e literal, poderes ao Defensor Pblico para atuar nas

    situaes acima especificadas, uniformizando a temtica, evitando assim a

    sujeio da Defensoria Pblica e, consequentemente, do assistido, s

    interpretaes antagnicas dos rgos do Poder Judicirio.

    10

    In:

  • 22

    2.2 ASPECTOS FORMAIS DA CARTA PRECATRIA CRIMINAL

    A vulnerabilidade processual se manifesta com nfase nos processos

    atinentes s cartas precatrias criminais que, com frequncia, so instrudos

    de forma insuficiente.

    A ttulo ilustrativo, imagine-se a carta precatria para oitiva de

    testemunha/acusado que contm to somente a denncia. Como o

    Defensor Pblico ir formular as perguntas sem possuir prvio

    conhecimento de eventuais depoimentos prestados no processo originrio e

    at mesmo a linha defensiva traada na resposta acusao? De qual

    forma possvel o respeito aos princpios do contraditrio e da ampla

    defesa no Processo Penal, quando o juzo deprecante deixa, verbi gratia, de

    enviar cpia da prpria denncia para o juzo deprecado?

    Evidente que o processo padece de nulidade, eis que h violao a

    direito fundamental bsico ao contraditrio e ampla defesa. A esse

    respeito, note-se que o artigo 354 do vetusto Cdigo de Processo Penal

    omisso em relao aos documentos essenciais que devem compor a

    precatria. Malgrado a lacuna legislativa no referido Cdigo, de todo

    possvel aplicar por analogia o art. 202, 1, do Cdigo de Processo Civil,

    sempre requerendo as peas imprescindveis para o exerccio da defesa,

    sejam elas quais forem.

    Nesse diapaso, AURY LOPES JNIOR leciona que a comunicao

    dos atos processuais so todos instrumentos a servio da eficcia dos

    direitos fundamentais do contraditrio e da ampla defesa. No se pode mais

    pensar a comunicao dos atos processuais de forma desconectadas do

    contraditrio, na medida em que, como explicamos anteriormente, ele o

    direito de ser informado de todos os atos desenvolvidos no iter

    procedimental 11

    .

    11

    LOPES JR., Aury. Direito Processual Penal. 9 Edio. So Paulo: Saraiva, 2012. p. 737

  • 23

    Cumpre observar que em determinados estados12

    , a fim de contornar

    a lacuna legislativa processual, o Poder Judicirio regulamenta os aspectos

    formais das cartas precatrias criminais, o que digno de elogios. Neste

    particular, evidente que o ato normativo jamais poder restringir as peas

    de forma a vulnerar a ampla defesa e, por conseguinte, o direito dos

    hipossuficientes.

    De qualquer sorte, a anlise acerca da vulnerao dos diretos do

    assistido, em uma primeira oportunidade, cabe Defensoria Pblica e no

    ao Poder Judicirio, porquanto aquela a Instituio que exerce a defesa

    tcnica constitucional do assistido, o que demonstra ser a mais apta para

    equacionar o que e o que no imprescindvel para o exerccio da ampla

    defesa.

    Assim, dvidas no h de que cabe ao Defensor Pblico suscitar

    questo de ordem no af de requerer a suspenso do ato processual para

    que os autos sejam devidamente instrudos em tempo hbil, reverenciando,

    dessa forma, o devido processo legal e os consectrios do contraditrio e

    ampla defesa.

    2.3 DA INEFICINCIA DA RESPOSTA ACUSAO NO PROCESSO

    PENAL: A ABSOLUTA AUSNCIA DE CONTATO COM O RU

    Demonstrao ecoante da dificuldade de acesso Defensoria Pblica

    est evidenciada, de forma incontestvel, na maioria dos casos em que a

    Defensoria Pblica intimada para apresentar resposta acusao no

    Processo Penal, mormente nas inmeras hipteses em que o ru est

    preso.

    nessa pea processual, de evidente importncia, que o acusado

    pode suscitar preliminares, bem como alegar qualquer matria que possa

    interessar sua defesa, alm de ser o momento processual adequado para

    12

    A esse respeito, ver o art. 293 do Cdigo de Normas da Corregedoria do Tribunal de Justia do Estado do Maranho.

  • 24

    arrolar testemunhas. De to essencial, o legislador tornou a resposta

    acusao pea obrigatria, prevendo que em caso de inrcia do acusado,

    deve a Defensoria Pblica ser intimada para apresent-la.

    Ocorre que, intimada a Defensoria Pblica, normalmente o contato

    com o acusado resta inviabilizado, seja diante da ausncia de estrutura,

    seja em decorrncia da agigantada demanda.

    Na prtica, a resposta acusao uma das mais importantes peas

    processuais em prol da defesa , transmuda-se em mera formalidade,

    funcionando como singela pea de indicao de testemunhas, quando

    muito.

    Algumas prticas cotidianas tentam contornar a problemtica, mas

    ainda se mostram por demais incipientes. Um exemplo constar do

    mandado de intimao do acusado a determinao para que o oficial de

    justia indague ao ru se possui testemunhas, bem como qual o seu

    telefone (quando no estiver preso). Outro exemplo a relativizao do

    momento processual para indicao de testemunhas, com a aceitao da

    oitiva de testemunhas em banca, ainda quando no arroladas no momento

    legalmente previsto, o que inmeras vezes no admitido pelo rgo

    julgador, mormente quando h manifestao contrria do Ministrio Pblico,

    o que se verifica com indesejvel frequncia, vergastando a ampla defesa.

    As tcnicas, portanto, so paliativas auto-ilusrias. Deveras, o acusado

    continua sem ter o devido acesso Defensoria Pblica, restando vulnerado,

    como dito, seu direito ampla defesa.

    Inovaes so de rigor. A implantao da audincia de custdia 13

    j prevista na Conveno Americana de Direitos Humanos , atenuaria, sem

    sombra de dvidas, a problemtica, porque haveria o contato pessoal ab

    13

    Consiste, basicamente, no direito de (todo) cidado preso ser conduzido, sem demora, presena de um juiz para que, nesta ocasio, (i) se faa cessar eventuais atos de maus tratos ou de tortura e, tambm, (ii) para que se promova um espao democrtico de discusso acerca da legalidade e da necessidade da priso. In.:

  • 25

    ovo entre o Defensor Pblico e o assistido. No mesmo sentido, os pedidos

    de requisio de presos para apresentao na Defensoria Pblica devem

    ser atendidos pelas autoridades do Sistema Penitencirio e, bem assim,

    quando necessrio, deferidos pelo Poder Judicirio, que deve ser sensvel

    situao de vulnerabilidade processual. De igual importncia, por fim, a

    certificao nos mandados de intimao para constar o endereo e telefone

    da Defensoria Pblica Estadual, com a advertncia de comparecimento.

    2.4 PROCESSO VIRTUAL E OS DFICITS DO SISTEMA: DA

    INADMISSIBILIDADE DA EVOLUO DA TCNICA QUANDO EM

    DETRIMENTO DO DIREITO

    So notrios a evoluo e os constantes avanos na rea

    tecnolgica, o que se evidencia em vertiginosa velocidade, impossibilitando

    o adequado acompanhamento pela sociedade.

    Tambm sabido e ressabido que para que o Sistema Jurdico

    Nacional funcione de forma satisfatria o que se objetiva, conquanto o

    ideal esteja em dimenso diversa e longnqua da nossa , torna-se

    necessrio o acompanhamento da tecnologia, sob pena de inviabilizar as

    demandas existentes, porquanto sempre crescentes e a cada momento

    mais complexas.

    Malgrado a evoluo configurar o nico logradouro a ser percorrido,

    imperioso que o progresso da tecnologia no restrinja ou suprima a

    evoluo no campo do direito.

    Depreende-se, ento, que no possvel violao a regras e

    princpios bsicos em nome da evoluo.

    Ocorre que, conquanto lugar-comum a constatao

    supramencionada, a prtica vem revelando inmeras burlas s normas

    vigentes, verificando-se que, em situaes peculiares, a evoluo da

    tecnologia atrelou-se indevidamente ao retrocesso do direito.

    o que vem ocorrendo, em alguns estados, com a intimao do

  • 26

    Defensor Pblico. Alguns entes federativos procederam a chamada

    virtualizao dos processos, consistindo na eliminao dos autos fsicos,

    passando a documentao processual a constar apenas do sistema virtual.

    Sucede que em alguns locais, como acontece, exempli gratia, no estado do

    Acre, o Defensor Pblico intimado e com a numerao do processo pode

    acessar o sistema virtual, para se manifestar nos autos processuais. No

    entanto, apesar de poder consultar o processo, visualizando os documentos

    que o integram, no tem o Defensor Pblico acesso aos udios e vdeos

    porventura constantes do sistema.

    Noutros termos, o sistema possibilita a visualizao processual, mas

    apenas de forma parcial, impossibilitando o Defensor Pblico de ouvir os

    udios ou de visualizar os vdeos que deveriam estar disponveis no

    sistema.

    Semelhante deficincia faz com que o Defensor Pblico, para ter

    efetiva carga dos autos, tenha que buscar o cartrio judicial para obter os

    udios e vdeos, o que indubitavelmente viola a norma que prev a

    intimao pessoal com carga dos autos ao Defensor Pblico, alm de

    dificultar o contraditrio e a ampla defesa. Exsurge mais uma face da

    vulnerabilidade processual.

    A situao se agrava em algumas comarcas interioranas, como

    ocorre em Cruzeiro do Sul/AC, em que parte dos juzes entende que o

    Defensor Pblico quem deve levar o CD ou pen-drive para gravar os udios

    e vdeos, deixando de fornec-los, o que desvirtua todo o sistema vigente.

    Ou seja, alm de no estarem disponveis no sistema virtual os udios e

    vdeos, ainda se tenta fragilizar a Defensoria Pblica obrigando a Instituio

    a fornecer material fsico, suprindo obrigao que deve ser do Poder

    Judicirio.

    Essa falha possui reflexos de significativa monta na seara processual,

    pois a depender do entendimento, pode ocasionar modificaes expressivas

  • 27

    na contagem do prazo processual, o que de grande relevo para a

    Defensoria Pblica, diante da desmedida demanda processual e do

    infindvel contingente de hipossuficientes que carece do devido

    atendimento pela Defensoria Pblica.

    Nessa tessitura, entendemos que, enquanto no houver a intimao

    com a devida carga dos autos para o Defensor Pblico e aqui foroso

    apreender que a carga dos autos deve ser completa e no parcial,

    abrangendo udios e vdeos , no ter incio a contagem do prazo

    processual, pois, apesar da intimao, inexistiu a devida carga.

    E no se queira argumentar que a carga parcial suficiente para

    fazer decorrer o incio do prazo processual, pois o devido processo legal

    no permite semelhante interpretao, alm do que esse entendimento

    terminaria por vulnerar, ainda mais, os direitos das pessoas

    hipossuficientes.

    Repise-se exausto: o incio do prazo processual para o Defensor

    Pblico s se verifica quando devidamente intimado, com carga dos autos, o

    que abrange tanto udios quanto vdeos.

    Ad argumentandum tantum, cabe realizar a ilustrativa indagao:

    possvel considerar o Defensor Pblico intimado para apresentar Alegaes

    Finais ou algum recurso iniciando-se o decurso do prazo processual ,

    ainda que lhe seja dado acesso, de forma virtual, apenas a parte do

    processo, sem que constem os vdeos das audincias realizadas? Retumba

    ecoante a rplica: por ululante que no, sob pena de solar violao ao

    devido processo legal, fragilizando a defesa e prejudicando, em primeira e

    ltima anlise, os hipossuficientes.

    De outro bordo, h inmeras outras violaes com a virtualizao

    processual, algumas de maior repercusso, outras de menor gravidade,

    mas todas hbeis a dificultar o acesso dos hipossuficientes aos rgos do

    Judicirio, agravando a vulnerabilidade.

  • 28

    Com o processo virtual, muitos Tribunais passaram a admitir o envio

    de peties apenas pelo meio virtual, o que para muitos evidencia notria

    vexata quaestio, por impossibilitar o peticionamento fsico. No entanto, no

    essa a crtica que se faz no momento, mas sim a forma de preenchimento

    para o envio de peties. O sistema virtual exige para o envio de peties

    iniciais o preenchimento de diversos dados da parte requerente, alm do

    seu nome, como data de nascimento, CPF, endereo, CEP, dentre outros,

    atravancando o peticionamento, sobrecarregando a Defensoria Pblica e

    transformando a assistncia ao hipossuficiente em uma prestao mais

    deficitria, pois o Defensor Pblico ao invs de realizar atendimentos e

    elaborar peties, coagido a consumir parte do j escasso tempo

    preenchendo dados cartorrios para o envio de petio.

    Cuida-se, em verdade, de indevida e abusiva transferncia de

    servios do Poder Judicirio para a Defensoria Pblica, uma vez que o

    preenchimento dos dados no sistema virtual funo do Judicirio e no de

    Defensoria Pblica, j que a legislao vigente exige a observncia pelo

    peticionante dos requisitos da petio inicial, o que j consta da pea

    enviada e no o preenchimento de dados no sistema de peticionamento.

    Em anlise superficial e incipiente, os argumentos alinhavados podem

    aparentar de andina tessitura axiolgica; nada obstante, um maior exame

    faz concluir o inegvel: o Defensor Pblico envia, semanalmente, dezenas

    de peties iniciais, e quando obrigado a preencher dados do sistema de

    peticionamento para poder enviar a petio (formalmente perfeita), consome

    significativa parte do tempo que teria para fazer atendimentos e elaborar as

    respectivas peas processuais, sendo obrigado a restringir a assistncia

    prestada aos hipossuficientes, vulnerando assim o acesso dos

    hipossuficientes Defensoria Pblica. Tamanho prejuzo, como alhures

    mencionado, decorre da indevida e arbitrria transferncia de obrigaes do

    Poder Judicirio para a Defensoria Pblica, o que no h como perdurar.

  • 29

    Agravando a situao, percebe-se com indesejada frequncia que em

    incontveis ocasies o sistema virtual, deficitrio, impossibilita o

    peticionamento, exigindo, por exemplo, a colocao do CPF do requerente,

    em casos de ao de registro tardio de nascimento, ou do CEP, mesmo

    quando em local incerto a pessoa. Tais problemticas, em decorrncia da

    indevida inverso j sobejamente mencionada, recaem sob a Defensoria

    Pblica e, por conseguinte, sob o hipossuficiente.

    Robustea-se o que j afianado, a evoluo tecnolgica uma

    passagem sem volta, porm necessria, mas no se deve admitir que em

    nome da evoluo da tcnica, seja o direito e as normas vigentes relegadas

    ao segundo plano. Isso sim, inadmissvel.

    2.5 DO DFICIT NA QUANTIDADE DE DEFENSORES PBLICOS E OS

    CONSEQUENTES REFLEXOS PROCESSUAIS E EXTRAPROCESSUAIS

    Empreende-se, nesse tpico, imperativa abordagem acerca da

    insuficincia do nmero de Defensores Pblicos nos estados da federao,

    bem como de funcionrios de apoio, o que reflete nos hipossuficientes de

    forma direta e indireta.

    Primeiramente, a escassa quantidade de Defensores Pblicos

    Estaduais provoca, em vrios municpios, o que denominamos de

    desertificao assistencial, em que milhares de pessoas necessitadas

    deixam receber o devido atendimento e, indefesas, se submetem a

    arbitrariedades ou sucumbem diante da cotidiana burla aos seus mais

    basais direitos.

    Noutros municpios, efetivamente h um Defensor Pblico, mas sua

    atuao delimitada pela ausncia de estrutura fsica ou pela carncia de

    um corpo de funcionrios capacitado. Nesses casos, no h a desertificao

    assistencial, pois existe um Defensor na localidade; no entanto, o dficit em

    sua atuao inegvel, pois a agigantada demanda, associada mngua

    de funcionrios e deficincia de estrutura, sobrecarrega o Defensor

  • 30

    Pblico, reduzindo a qualidade do trabalho produzido, alm de impossibilitar

    o atendimento acertado de todos os hipossuficientes que dele necessitam.

    Verifica-se, portanto, duas conjunturas: na primeira, no h Defensor

    Pblico na localidade; na segunda, h Defensor Pblico, mas sua atuao

    faticamente cingida diante dos inmeros entraves existentes. Em uma ou

    em outra situao, a interseco a mesma: o hipossuficiente v-se

    prejudicado, com poucas possibilidades de solucionar seus problemas, o

    que aumenta sua vulnerabilidade, desestruturando, em ltima anlise, a

    sociedade.

    Urge assentar que com a reforma da Carta Maior, a tendncia que

    os interiores sejam preenchidos por Defensores Pblicos, mas essa

    perspectiva deveras, determinao Constitucional! , s ser possvel com

    a criao de mais cargos, pois o nmero insuficiente de Defensores

    Pblicos uma realidade em quase todos os estados14

    do pas.

    Enquanto o comando Constitucional no se concretiza, dezenas de

    milhares de pessoas so lesadas diariamente; algumas tm a liberdade

    tolhida e, sem a possibilidade de buscar amparo na Defensoria Pblica,

    permanecem encarceradas de forma indevida, por mais tempo que o

    devido; outras, enfermas, so submetidas s omisses abusivas do Poder

    Pblico e, sem o auxlio da Defensoria Pblica, fenecem diante do descaso

    retumbante e nocivo. Em maior ou menor grau, todos sofrem.

    luz dos argumentos apontados, ecoa solar a urgncia no

    aparelhamento da Defensoria Pblica, criando-se uma estrutura fsica

    consentnea com as necessidades da Instituio, ampliando-se o nmero

    de Defensores Pblicos e expandindo-se a quantidade de funcionrios,

    14

    Em Sergipe, por exemplo, a Comisso dos Aprovados no Concurso para o cargo de Defensor Pblico Substituto do Estado de Sergipe do ano de 2012, elaborou um Mapa da Defensoria Pblica, em que se constata que em Sergipe a Defensoria Pblica est presente em apenas 21,6% das Comarcas, sendo tambm possvel se extrair a necessidade da criao de 79 novos cargos de Defensor Pblico, objetivando adequado atendimento aos hipossuficientes (Disponvel em . 26/08/2014)

  • 31

    objetivando com isso cumprir o disposto na Carta Altior, assegurando e

    respeitando os direitos dos hipossuficientes.

    3 CONCLUSO

    A Defensoria Pblica objetiva assistir pessoas necessitadas que,

    apesar de privadas de seus mais basais direitos, persistem nos trilhos da

    esperana, arrogando Instituio fidcia na resoluo de seus problemas.

    Outorgam Defensoria Pblica o destino de suas vidas, visualizando-a

    como o ltimo instrumento capaz de por fim s suas aflies, sejam sociais

    ou econmicas.

    Conquanto as expectativas dos hipossuficientes suplantem quaisquer

    barreiras, a verdade que no universo ftico a esperana e a realidade

    ainda habitam dimenses distintas e longnquas.

    No se descura que a ltima dcada foi prspera para a Defensoria

    Pblica, no aspecto da efetiva aproximao da Instituio adequada

    dignitatis que lhe Constitucionalmente reconhecida e assegurada. No

    entanto, assim como as expectativas dos hipossuficientes e a realidade

    ftica esto em confins diversos, a distncia entre o atual e o ideal acerca

    da Defensoria Pblica troveja ainda abissal.

    luz de tais constataes, a consequncia a burla constante de

    direitos dos hipossuficientes, muitos dos quais sequer chegam ao

    conhecimento do Defensor Pblico, seja diante da ausncia de Defensor na

    localidade, seja em decorrncia da excessiva demanda, associada

    contumaz e danosa limitao de recursos e de estrutura, representando

    verdadeira cifra negra de hipossuficientes com direitos vulnerados e sem o

    devido atendimento.

    Noutro diapaso, percebe-se o empenho grandioso da maioria dos

    Defensores Pblicos, o que diuturnamente contribui para o fortalecimento da

    Defensoria Pblica e, como corolrio lgico iniludvel, diminui a detestvel

    cifra negra acima mencionada, proporcionando aos hipossuficientes a

  • 32

    amortizao de suas vulnerabilidades, quando no as extirpando por

    completo.

    Por tudo que foi exposto, objetiva-se que a descrena da populao

    na justia e o sentimento de que ela funciona apenas para os ricos, ou

    antes, de que ela no funciona, pois os ricos no so punidos e os pobres

    no so protegidos15

    , diminua em apressada marcha, por intermdio da

    atuao constante dos Defensores Pblicos no deslinde dos problemas

    cotidianos que tanto atormentam os necessitados.

    4 REFERNCIAS

    BARCELLOS, Ana Paula. A eficcia jurdica dos princpios

    constitucionais: o princpio da dignidade da pessoa humana. Rio de

    Janeiro: Renovar, 2002. p. 258.

    CARVALHO, Jos Murilo de. Cidadania no Brasil. O longo Caminho. 3

    ed. Rio de Janeiro: Civilizao Brasileira, 2002. p. 215.

    DIDIER, Fredie. Clusulas Gerais Processuais. Disponvel em

    http://www.frediedidier.com.br/pdf/clausulas-gerais-processuais.pdf. Acesso

    em 26 de junho de 2014.

    GRINOVER, Ada Pellegrini, Assistncia Judiciria e Acesso Justia, in

    Novas Tendncias do Direito Processual, Rio de Janeiro, Forense

    Universitria, 2 ed., 1990, p. 246.

    LOPES JR., Aury. Direito Processual Penal. 9 Edio. So Paulo:

    Saraiva, 2012. p. 737

    LOPES JR. Aury. Audincia de Custdia. Disponvel em

    http://www.conjur.com.br/2014-ago-21/aury-lopes-jr-caio-paiva-evolucao

    processo-penal. Acesso em 21 de agosto de 2014.

    MARTINS-COSTA, Judith. A boa f no direito privado: sistema e tpica

    no processo obrigacional, cit., p. 303.

    15

    CARVALHO, Jos Murilo de. Cidadania no Brasil. O longo Caminho. 3 ed. Rio de Janeiro: Civilizao Brasileira, 2002. p. 215.

  • 33

    DO PECULIAR INTERESSE AO INTERESSE LOCAL: A CONTRIBUIO DO ART. 30, I, DA CRFB/88, NA MUNICIPALIDADE

    BRASILEIRA

    Mrcia Regina Zok da Silva1

    RESUMO: O Municpio Brasileiro e seus interesses intrnsecos o tema

    cerne do presente Trabalho, cujo plano de fundo est nas diversas

    conotaes assumidas por tal instituto ao longo da Histria Constitucional

    de nosso Pas, as quais se encontram combinadas com o modelo de

    federalismo ora adotado. O ponto de partida de tal desenvolvimento reside

    nas municipalidades no Brasil Colnia e se estender at os dias atuais,

    contexto no qual o Municpio brasileiro, ento parte da Estrutura Federalista,

    encontra-se vinculado a princpios como a Subsidiariedade. A partir desse

    ponto, observa-se a mudana de paradigma existente, ao constatar-se que

    o termo peculiar interesse, at ento presente ao longo das Constituies

    anteriores, na condio de sinnimo de assuntos peculiares, passa a

    receber uma carga semntica diversa da at ento tida, atravs do termo

    incorporado redao do art. 30, I, da CRFB/88, o interesse local.

    PALAVRAS-CHAVE: Municpio. Subsidiariedade. Competncia Comum.

    Interesse Local. Dignidade da Pessoa Humana.

    SUMRIO: 1. Introduo. 2. O Brasil Colnia Introduo histrica do

    surgimento do municpio. 3. O municpio na vigncia da constituio de

    1824. 4. O peculiar interesse municipal na primeira repblica: A

    constituio de 1891. 5. A constituio de 1834 e a adaptao do modelo de

    federalismo: Influncia na municipalidade. 6. A constituio de 1937 e o

    municpio. 7. A teoria municipalista na constituio de 1946. 8. A supresso

    dos interesses do municpio na constituio de 1967, incluindo a EC 01/69.

    1 Mrcia Regina Zok da Silva bacharela em Direito pela Faculdade de Direito da Universidade

    Federal do Rio Grande do Sul.

  • 34

    9. A mudana de paradigma das municipalidades na constituio cidad: de

    peculiar interesse para interesse local. 10. Concluso. 11. Referncias.

    1 INTRODUO

    Este trabalho possui por escopo a apresentao de um panorama

    geral (sem intenes de esgotar o assunto proposto) acerca de um instituto

    ao qual, embora existente desde o perodo colonial de nossa Histria, ainda

    no lhe dado o devido valor: est-se falando da autonomia local,

    representada, ora pelo termo peculiar interesse, quando de sua origem,

    ora pelo termo interesse local, aps a promulgao da Constituio da

    Repblica Federativa do Brasil de 1988, doravante CRFB/88. A exposio

    das nuances da Forma de Estado Federal, assumidas por nosso Pas por

    ocasio de cada uma das oito Constituies federalismo pendular - ser

    de vital importncia para um completo entendimento da proposta deste

    trabalho, visto que alternam perodos de abertura e fechamento os quais

    tiveram influncia direta na autonomia do ente local. Para fins de ilustrao,

    ser feita a anlise de um Agravo de Instrumento envolvendo a ACEL

    (Associao Nacional das Operadoras Celulares) e o Municpio de Porto

    Alegre, cujo objeto consistia em um suposto conflito da Lei Municipal N

    8896/02, com a Lei Geral de Telecomunicaes Lei Federal N 9.472/97,

    e outros diplomas legais; tal Agravo no restou exitoso, pois, dentre os seus

    fundamentos, esto a Subsidiariedade e o Interesse Local, os quais,

    mediante argumentao jurdica, justificaram porque o interesse local

    deveria ser a premissa maior neste caso concreto, afastando a regra da Lei

    Geral de Telecomunicaes. Ao final da exposio, de forma a trazer a

    compreenso do porqu da mudana de paradigma nas municipalidades,

    nas quais o chamado peculiar interesse termo constante at a Carta

    Magna de 1967/1969, na condio de sinnimo de assuntos intrnsecos ao

    ente local passa a figurar na Constituio atual como interesse local,

    tentar-se- definir se este conceito mais amplo, mais restrito ou se

  • 35

    equivalente quele.

    2 O BRASIL COLNIA INTRODUO HISTRICA DO SURGIMENTO

    DO MUNICPIO

    O ponto de partida das municipalidades est no perodo colonial de

    nossa Histria, o que se deu cerca de 30 anos aps o Descobrimento.

    Contudo, tal estrutura poltico-administrativa consistia em uma espcie de

    transplante das instituies de Portugal. A sistematizao da supracitada

    estrutura, conforme assinala Cezar Saldanha2, foi instituda por meio do

    Regimento de 1548 e era constituda por trs nveis de poder: o central,

    soberano, centralizado nos moldes do Estado Nacional Moderno; o regional,

    constitudo pela diviso em Capitanias, sistema pouco efetivo por razes

    as quais sero adiante expostas; e o local, representado pelos Municpios

    (Cidades e Vilas), organizao transladada do modelo de Portugal e aqui

    implantada pelas Ordenaes portuguesas.

    Dessa forma, possvel vislumbrar que Metrpole portuguesa no

    interessava as aspiraes dos povoados locais das terras sul-americanas,

    comunidades as quais apesar da relativa autonomia experimentada em

    algumas franquias restaram, na maior parte do perodo, paralisadas diante

    do centralismo das Capitanias Hereditrias e dos Juzes de Fora, sendo que

    esses ltimos se constituam em uma espcie de mandatrios dos

    interesses da Coroa Portuguesa. Dessa maneira, apesar de existir um

    relativo grau de autonomia, no havia peculiar interesse ou interesse

    local, da forma como hoje conhecemos, em relao aos vilarejos e cidades

    ento existentes, visto que era Portugal quem decidia quais competncias

    cabiam ao Municpio.

    A presena desses magistrados na poltica local segundo Francisco

    Ribeiro da Silva - constituiu-se em uma tentativa, por parte da Corte

    Portuguesa, de sufocar as liberdades municipais, providncia a qual restou -

  • 36

    em parte - bem sucedida, na medida em que, para o Juiz de Fora, nada do

    que interessasse gesto municipal lhe era estranho. Sendo um magistrado

    de carreira, empenhava-se, logicamente, mais em defender os interesses e

    objectivos do Poder central do que em preservar as liberdades municipais.3

    Esses magistrados, aqui representados pela percepo de um de seus

    representantes, se viam perante a municipalidade colonial como uma

    espcie de mandatrios da Coroa Portuguesa. Esse entender sintetizado

    na fala de Jorge da Silva Mascarenhas, um desses magistrados: menistro

    de sua magestade e asy sogeito as suas ordens e mandados para os

    executar e fazer executar.4

    Apesar do controle que a Metrpole exercia sobre o Municpio, devido

    necessidade, esse ente acabou por superar o centralismo das Capitanias,

    ao se auto-incumbir de um rol de atribuies - por meio das Posturas e das

    Franquias - as quais se referiam a todo tipo de assunto: desde a fixao de

    impostos at a destituio de Governadores Gerais de suas funes,

    situaes as quais, muitas vezes, chegaram a serem discutidas em juntas,

    ou seja, em Assembleias nas quais contava com a participao popular

    quando das deliberaes.5 Contudo, o advento da Lei Regulamentar de

    01/10/1828, j no Brasil Imprio, suprimiu a autonomia das Cmaras,

    conferindo-lhes carter meramente administrativo.6

    3 O MUNICPIO NA VIGNCIA DA CONSTITUIO DE 1824

    Com a Constituio Imperial, em 1824, de incio a estrutura poltica

    em nada se alterou, visto que a Carta assegurava s Cmaras Municipais a

    administrao local, conforme dispe o texto do art. 167.7 No entanto, em

    2 SOUZA JNIOR, Constituies ..., p. 16-17.

    3 SILVA, Francisco Ribeiro da. Autonomia municipal e centralizao do poder durante a Unio

    Ibrica: o exemplo do Porto. Revista da Faculdade de Letras. Histria, Porto, v. 4, 1987. p. 139. 4 AHMP. Cofre. L. 5. fls nn (Assento de 02/03/1621). (Ibid. p. 139).

    5 MEIRELLES, Direito municipal... p.34-35.

    6 MEIRELLES, op. cit., p. 35.

    7 Art. 167. Em todas as Cidades, e Villas ora existentes, e nas mais, que para o futuro se

  • 37

    1828, uma Lei Regulamentar, a chamada Lei das Cmaras, cassou a pouca

    autonomia local de at ento, de maneira a transformar as Municipalidades

    em simples diviso territorial8. Durante o Perodo Regencial, na tentativa de

    contornar a crise poltica existente e conceder maior autonomia aos

    Municpios, foi promulgado o Ato Adicional, Lei N 16, de 12 de agosto de

    1834, providncia a qual, no entanto, restou inexitosa, diante da

    subordinao direta dos Municpios s Assembleias Provinciais, fato o qual

    acabou por limitar o tratamento dispensado s questes locais (franquias).

    Tavares Bastos, de orientao federalista, entende que a supresso

    da referida autonomia municipal no teve como causa nica o Ato Adicional

    - diploma o qual atrelou os assuntos locais ao mbito de atuao das

    competncias geral e provincial - mas tambm a influncia do que ele

    chama de vcio da uniformidade,9 advinda por meio da Lei das Cmaras.

    Com a Lei de 1 de outubro de 1828, Tavares Bastos sustenta que houve

    uma espcie de engessamento do modelo de Municpio, o qual passou

    ento a compreender um s tipo para todas as circunscries locais do

    Pas, de maneira a desprezar suas diversidades: eram as chamadas leis

    regimentais10

    .

    A Lei de Interpretao do Ato Adicional Lei 105, do ano de 1840 -

    tentou corrigir estas restries, concedendo para no dizer restituindo

    algumas dessas franquias antes suprimidas pela Lei das Cmaras, ao

    Municpio. Porm, no houve xito, visto que as circunscries locais de

    ento eram ainda desprovidas de Poder Executivo Prprio, alm de

    continuarem na condio de assunto interno das Provncias s quais

    crearem haver Camaras, s quaes compete o Governo economico, e municipal das mesmas Cidades, e Villas. 8 MEIRELLES, Hely Lopes. Direito municipal brasileiro. 9. ed. So Paulo: Malheiros, 1997. p.

    33-34. 9 BASTOS, Aureliano Cndido Tavares. A provncia: estudo sobre a descentralisao no

    Brazil. Rio de Janeiro: B. L. Garnier, 1870. p. 143. 10

    Ibid., p. 150.

  • 38

    pertenciam, conforme texto do art. 10 do citado diploma legal, 4 ao 7,11

    situao a qual perdurou durante o restante do segundo Imprio brasileiro.

    4 O PECULIAR INTERESSE MUNICIPAL NA PRIMEIRA REPBLICA:

    A CONSTITUIO DE 1891

    A Proclamao da Repblica, promovida no ano de 1889, e

    consequente promulgao da Constituio, ocorrida em 1891, consistem no

    prximo ponto da evoluo histrica do instituto central do presente

    trabalho. Com a Repblica, houve a adoo do chamado Federalismo de

    Competio - modelo tipicamente norte-americano Forma de Estado a

    qual influenciou negativamente a municipalidade brasileira, visto que foi uma

    estrutura imposta de cima para baixo, pois foi por uma deciso poltica e

    no fruto da necessidade12

    , visto no surgir via deliberao comum. Apesar

    da expressa previso do art. 6813

    , da Constituio de 1891, cujo texto

    concedia aos Municpios, autonomia para cuidar de assuntos de seu

    peculiar interesse, no houve uma descentralizao propriamente dita, em

    virtude de dois fatores: a continuidade das velhas estruturas polticas e o

    11

    Art. 10: Compete s mesmas Assemblas legislar: 4 Sobre a polcia e economia municipal, precedendo proposta das Cmaras. 5 Sobre a fixao das despezas municipaes e provinciaes, e os impostos sobre ellas necessrios, com tanto que estes no prejudiquem s imposies geraes do Estado. As Cmaras podero propor os meios de occorrer s despezas dos seus municpios. 6 Sobre repartio da contribuio directa, pelos municpios da Provncia, e sobre a fiscalisao do emprego das rendas pblicas provinciaes e municipaes, e das contas da sua receita e despeza. As despezas provinciaes sero fixadas sobre oramento do presidente da provincia, e as municipaes sobre oramento das respectivas cmaras. 7 Sobre a creao, suppresso e nomeao para os empregos municipaes e provinciaes, e estabelecimento dos seus ordenados. So empregos municipaes e provinciaes todos os que existirem nos municipios e provincias, excepo dos que dizem respeito arrecadao e dispendio das rendas geraes, administrao da guerra e marinha, e dos correios geraes ; dos cargos de presidente de provincia, bispo, commandante superior da guarda nacional, membro das relaes e tribunaes superiores, e empregados das faculdades de medicina, cursos juridicos e academias, em conformidade da doutrina do 2 deste artigo. 12

    VILA, Marta Marques. O municpio frente ao federalismo na Argentina e no Brasil. Dissertao (Mestrado em Direito) Faculdade de Direito, Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Porto Alegre, 2005. p. 56. 13

    Art 68 - Os Estados organizar-se-o de forma que fique assegurada a autonomia dos Municpios em tudo quanto respeite ao seu peculiar interesse.

  • 39

    forte coronelismo existente.

    Esse modelo de Forma de Estado ento transladado possua uma

    peculiaridade, a qual viria a repercutir na doutrina constitucional desse

    perodo, a saber, a referncia expressa, no texto, autonomia municipal14

    ,

    premissa cristalizada no texto do art. 68 da Carta de 1891. O supracitado

    dispositivo veio a concretizar a revogao da Lei das Cmaras, de maneira

    a conceder s ex-Provncias15

    a competncia para que essas pudessem

    estabelecer parmetros gerais acerca da configurao estrutural dos

    Municpios segundo os cnones do tipo de Federalismo ora adotado de

    maneira que as municipalidades pudessem tratar de seus assuntos

    conforme o seu peculiar interesse. Verifica-se que, na origem, a inteno do

    Constituinte de 1891 foi a de retirar da competncia do ente regional a

    deliberao no tocante aos assuntos locais das circunscries, limitando

    esses mesmos Estados-membros a estabelecer apenas os parmetros

    gerais de organizao. Na prtica, porm, tal procedimento restou mal

    sucedido, a ponto de Joo Camilo de Oliveira Torres expressar o

    entendimento de que a Carta de 1891 no entrou em vigor. 16

    Nesse contexto, a competncia municipal era delegada pelos

    Estados-membros s municipalidades de maneira implcita17

    por meio de

    estatuto bsico ou lei ordinria, de forma que possvel entender que as

    franquias eram concedidas s circunscries locais de maneira assimtrica,

    ou seja, de acordo com o interesse do Estado-membro, em virtude da

    prerrogativa concedida pela Constituio, no sentido de criar, suprimir,

    14

    SOUZA JNIOR, Constituies ..., p. 40. 15

    Nesse sentido se encontra o art. 2 da Constituio da Repblica dos Estados Unidos do Brasil, promulgada em 24 de Fevereiro de 1891: Art 2 - Cada uma das antigas Provncias formar um Estado e o antigo Municpio Neutro constituir o Distrito Federal, continuando a ser a Capital da Unio, enquanto no se der execuo ao disposto no artigo seguinte. 16

    TORRES, Joo Camilo de Oliveira. Interpretao da realidade brasileira: introduo histria das idias polticas no Brasil. Rio de Janeiro: J. Olympio, 1969. p. 249. 17

    COOLEY, Thomas. A treature on the constitucional limitations. apud MAXIMILIANO, Carlos. Comentrios Constituio Brasileira de 1891. Braslia: Senado Federal, 2005. p. 663-664.

  • 40

    estabelecer e alterar limites ou at mesmo, anexar Municpios. 18

    Assim, o

    Estado brasileiro - at ento Unitrio19

    - com a Repblica passou a ser

    Federal, e o modelo ora transplantado o Norte-Americano foi implantado

    por deciso poltica20

    , desconsiderando a realidade das instituies de

    nosso Pas, visto que a Unio concedeu competncias desacompanhadas

    da respectiva ajuda financeira para o trato adequado e eficiente de tais

    funes.

    Destarte, restou s municipalidades adaptarem-se por conta prpria a

    fim de que pudessem tratar de seus assuntos conforme seu peculiar

    interesse. A referida adaptao, a saber, o coronelismo, atenta a alguns

    elementos e, predominantemente, ao sistema de voto vigente at ento, os

    quais, conforme expe Victor Nunes Leal21

    , j se faziam presentes em

    nossa estrutura desde o Brasil Colnia e Imprio, sendo que esses citados

    elementos eram definidos como o conjunto de convenes, praxes,

    convenes e expedientes costumeiros. 22

    Desses, a doutrina concede

    especial ateno ao voto, porquanto no existia ainda a Justia Eleitoral;

    assim, era possvel a manipulao do processo de eleio, nos trs planos

    (local, regional e nacional), de maneira a garantir um resultado no plano

    local - o qual estivesse em conformidade com os interesses daquele

    Municpio. Destarte, apesar do sufrgio universal masculino, introduzido

    com a Lei Saraiva em 1889,23

    a poltica coronelista exercia influncia de

    forma a conduzir o resultado das eleies.

    O surgimento do coronelismo foi resultado da diversidade de

    18

    Ibid., p. 665. 19

    A doutrina tambm chama de Estado Unitrio Descentralizado. (FERREIRA FILHO, Manuel Gonalves. Curso de direito constitucional. 29. ed. So Paulo: Saraiva, 2002. p. 53). 20

    FERREIRA, Aloysio Nunes. Desafios atuais do federalismo no Brasil. In: HOFMEISTER, Wilhelm; CARNEIRO, Jos Mrio Brasiliense. Federalismo na Alemanha e no Brasil. So Paulo: Fundao Konrad Adenauer, 2001. p. 51. 21

    LEAL, Victor Nunes. Coronelismo, enxada e voto: o municipio e o regime representativo no Brasil. 2. ed. So Paulo: Alfa-Omega, 1975. p. 254. 22

    SOUZA JNIOR, Cezar Saldanha. Consenso e constitucionalismo no Brasil. Porto Alegre: Sagra Luzzatto, 2002. p. 79. 23

    BONAVIDES, A constituio..., p. 363.

  • 41

    interesses peculiares que caracterizavam os Municpios, circunscries as

    quais eram historicamente imbudas de forte tradio autonomista24

    , fato o

    qual, no entender de Bonavides, constitua-se em um forte hbito, seno

    uma realidade.25

    5 A CONSTITUIO DE 1934 E A ADAPTAO DO MODELO DE

    FEDERALISMO: INFLUNCIA NA MUNICIPALIDADE

    A Constituio de 1934 destacou-se por adaptar o modelo de

    Federalismo realidade brasileira, por meio da adio de pressupostos de

    cooperao, os quais ainda estavam sob contornos de carter autoritrio.

    Tal ajuste influiu decisivamente no que tange aos interesses do Municpio,

    passando este a experimentar uma autonomia que at ento no tivera. A

    contribuio da Carta de 1934 reside principalmente na concesso, ao

    mbito local, da prerrogativa de gerncia de suas finanas, na forma do art.

    13, II.26

    Assim, o peculiar interesse da municipalidade desse perodo passou

    a estar atrelado autonomia tributria ( 2, incisos I a V, art. 13)27

    e

    eletividade do Chefe do Poder Executivo local ( 1, mesmo artigo)28

    .

    A referida tcnica de ajuste, denominada competncia prioritria,

    tambm conhecida como competncia privativa, ou ainda, concorrente,29

    primava pela diviso da matria em nveis de gerncia, de maneira a

    preservar sempre o Reich (a Unio) na condio de ente superior perante

    24

    Ibid., p. 363. 25

    Ibid., p. 363. 26

    Art 13 - Os Municpios sero organizados de forma que lhes fique assegurada a autonomia em tudo quanto respeite ao seu peculiar interesse; e especialmente: II - a decretao dos seus impostos e taxas, a arrecadao e aplicao das suas rendas; 27

    2 - Alm daqueles de que participam, ex vi dos arts. 8, 2, e 10, pargrafo nico, e dos que lhes forem transferidos pelo Estado, pertencem aos Municpios: I - o imposto de licenas; II - os impostos predial e territorial urbanos, cobrado o primeiro sob a forma de dcima ou de cdula de renda; III - o imposto sobre diverses pblicas; IV - o imposto cedular sobre a renda de imveis rurais; V - as taxas sobre servios municipais. 28

    1 - O Prefeito poder ser de nomeao do Governo do Estado no Municpio da Capital e nas estncias hidrominerais.

  • 42

    os Lnder (os Estados-membros), sendo que a estes entes cabia legislar

    to somente na hiptese de o ente nacional no exercer essa prerrogativa.

    Consequentemente, firma-se o entendimento de que essa tcnica restringiu

    o poder dos entes regionais em prol da esfera nacional.30

    Aplicado no

    federalismo brasileiro, o referido procedimento adquiriu contornos

    extremamente autoritrios31

    , dada a centralizao promovida pela Unio, a

    qual ocorrera custa da compresso das autonomias dos Estados-

    membros, como uma tentativa de evitar os problemas ocorridos em 1891.

    Como consequncia imediata, as Assembleias Legislativas Estaduais

    foram ignoradas na sua condio de instituies.32

    Ainda assim, verifica-se

    que com a promulgao da nova Carta, iniciou-se a paridade entre

    normativismo e realidade, expostos no perodo anterior, de maneira a tornar

    a Constituio Jurdica e a Constituio Real uma s Carta.

    Tal mudana de paradigma, segundo Slvia Faber Torres, ocorreu por

    meio da adio da ideia de cooperao33

    aos clssicos princpios

    federativos de autonomia e de participao. O Federalismo de 1934

    assentava-se no surgimento das competncias concorrentes,

    consubstanciada em uma tcnica vertical de repartio, de maneira que ao

    Municpio foi possvel a Unio delegar o trato de assuntos de seu peculiar

    interesse, desde que condicionada observncia de normas gerais editadas

    pelo ente federal.34

    Dessa forma, depreende-se que no houve substituio

    propriamente dita de tcnicas, mas sim a adoo de mais de um tipo de

    29

    ALMEIDA, Competncias ..., p. 49. 30

    Ibid., p. 50. 31

    Nesse sentido, afirma Paulo Bonavides: [...] de ndole centralizadora e compressiva das autonomias estaduais, vulnera o princpio democrtico e ignora as casas do Congresso e as Assemblias dos Estados-Membros como instituies do poder, com as quais o cidado mais de perto se sente identificado e sobre as quais deposita a mais alta parcela de confiana. (BONAVIDES, Paulo. A constituio aberta: temas polticos e constitucionais da atualidade com nfase no federalismo das regies. 2. ed. So Paulo: Malheiros, 1996. p. 434. 32

    BONAVIDES, A constituio aberta..., p. 434. 33

    TORRES, Slvia Faber. O princpio da subsidiariedade no direito pblico contemporneo. Rio de Janeiro: Renovar, 2001. p. 219-220. 34

    ALMEIDA, Competncias..., p. 55-56.

  • 43

    procedimento ao j existente, de maneira a no suprimir as competncias

    enumeradas e remanescentes, mas apenas acrescentar-lhes a competncia

    concorrente - mescla de tcnicas a qual se faz presente at hoje com isso

    abrindo espao para aes conjuntas entre Unio, Estados e Municpios.35

    Assim, a ideia de Cooperao pretendida pelo Constituinte de 1934 de

    conotao diversa da ideia dos moldes atuais, em virtude da no figurao

    do Municpio na estrutura federalista e da concomitante necessidade de

    observncia por parte dele aos parmetros redigidos pelas esferas federal

    (no nacional, como se explicar oportunamente) e estadual.

    Contudo, apesar do reconhecimento constitucional de um campo de

    autonomia prpria aos Municpios36

    , essas circunscries permaneceram na

    condio de instituio interna dos Estados-membros.

    6 A CONSTITUIO DE 1937 E O MUNICPIO

    A concentrao de poderes nas mos do Executivo e a consequente

    cassao da autonomia municipal consistiram nas principais caractersticas

    da Carta Magna de 1937, cuja redao sofrera profunda influncia da Carta

    Constitucional da Polnia de 1933. Tal retrocesso, segundo a opinio da

    doutrina dominante, aqui representada por Hely Lopes Meirelles, ocorreu

    custa da colocao de interventores nos Estados, cujo interesse suprimia

    toda e qualquer soberania municipal, visto que eram esses interventores

    quem nomeavam o Prefeito, conforme o art. 2737

    , apesar da manuteno do

    texto do art. 2638

    , dispositivo o qual assegurava autonomia local quanto aos

    assuntos de peculiar interesse.

    O contexto de tal perodo determinou que o Estado brasileiro, embora

    teoricamente federado, na prtica fosse Unitrio. No tocante ao Municpio, o

    35

    SOUZA JNIOR, Constituies..., p. 47. 36

    ALMEIDA, Competncias ..., p. 42. 37

    Art 27 - O Prefeito ser de livre nomeao do Governador do Estado. 38

    Art 26 - Os Municpios sero organizados de forma a ser-lhes assegurada autonomia em tudo quanto respeite ao seu peculiar interesse, e, especialmente:

  • 44

    referido autor entende que no regime de 1937, as municipalidades foram

    menos autnomas se comparadas s do centrismo imperial, porque, na

    Monarquia, os interesses locais eram debatidos [...].39

    Dessa forma, resta

    claro o entendimento de que houve cassao da autonomia das

    municipalidades, percepo ainda corroborada pelo Decreto-Lei Federal

    1202 de 08/04/1939, instrumento normativo o qual substituiu a Lei Orgnica

    dos Municpios, dada a elevao do Interventor condio de rgo da

    Administrao do Estado40

    , fato o qual terminou por cassar a pouca

    autonomia municipal existente at ento.

    Assim, depreende-se que a forma federativa foi apenas nominal, a

    qual foi posteriormente abolida pelo Decreto Lei n 1202, de 8 de abril de

    1939. Tal dispositivo legalizou a forma de Estado Centralizada (ou Unitria),

    fato o qual, na prtica, j vinha ocorrendo, apesar da previso do art. 3. 41

    Machado Pauprio42

    considera que a Constituio de 1937 no teve

    vigncia nos Estados-membros e Municpios, pois essas esferas no foram

    por ela contempladas. Tal decreto era uma espcie de Lei Orgnica

    Unificada, dada a uniformidade imposta no concernente auto-organizao

    dos mbitos regional e local. A fiscalizao centrou-se na Unio, sendo

    exercida pelo Interventor em nvel regional e pelos Conselhos de

    Administrao, s municipalidades.

    7 A TEORIA MUNICIPALISTA NA CONSTITUIO DE 1946

    O Municpio voltou a adquirir independncia no trato das matrias de

    39

    MEIRELLES, Direito municipal..., p. 33-34. 40

    LOUREIRO, Jos Sanso. O impeachment dos executivos nomeados no direito constitucional brasileiro. Artigo Disponvel em: http://64.233.169.104/search?q=cache:_tfVujbXvCkJ:calvados.c3sl.ufpr.br/ojs2/index.php/direito/article/viewFile/8772/6088+decreto+lei+1202+de+1939+leis+org%C3%A2nicas+municipios&hl=pt-BR&ct=clnk&cd=9&gl=br > Acesso em: 10 jan 2008. 41

    Art 3 - O Brasil um Estado federal, constitudo pela unio indissolvel dos Estados, do Distrito Federal e dos Territrios. mantida a sua atual diviso poltica e territorial. 42

    PAUPRIO, Arthur Machado. O municpio e seu regime jurdico no Brasil. 2. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1973. p. 66.

  • 45

    finanas e de eletividade, com o advento do art. 28, inciso II, alnea a43

    , e

    inciso I, 44

    salvo situao prevista no 245

    - respectivamente, da CF de

    1946. Com a entrada de um Federalismo de Cooperao (Democrtico) de

    contornos diversos do modelo at ento experimentado no qual o

    autoritarismo era a pedra de toque, o Municpio passou a ser prestigiado

    como nenhuma Constituio at ento o fizera. 46

    Esse prestgio ocorreu

    custa da concesso ao Municpio de autonomias poltica, administrativa e

    financeira, cumuladas com mudanas significativas no tocante ao instituto

    da Interveno Federal, previsto no art. 7, VII, alnea e, da Constituio

    de 1946,47

    de modo a viabilizar o surgimento da Teoria do Estado

    Municipalista. 48

    O modelo de repartio de competncias49

    , implantado em 1934 foi o

    que deu sustentabilidade restaurao do Federalismo. Seguiu-se a tcnica

    mesclada de outrora, mediante a (re) implantao de competncias

    enumeradas Unio, de remanescentes aos Estados-membros, e da

    concorrente preenchendo de maneira supletiva e complementar o trato de

    determinadas matrias, estas ltimas mediante Lei Complementar -

    autorizada pela Unio. Vide que as competncias concorrentes no

    legislativas ainda no haviam sido introduzidas nesse perodo.

    Em nvel local, a autonomia (re) estabelecida atravs do texto do

    43

    Art 28 - A autonomia dos Municpios ser assegurada: II - pela administrao prpria, no que concerne ao seu peculiar interesse e, especialmente, a) decretao e arrecadao dos tributos de sua competncia e aplicao das suas rendas; 44

    Art 28 - A autonomia dos Municpios ser assegurada: I - pela eleio do Prefeito e dos Vereadores; 45

    2 - Sero nomeados pelos Governadores dos Estados ou dos Territrios os Prefeitos dos Municpios que a lei federal, mediante parecer do Conselho de Segurana Nacional, declarar bases ou portos militares de excepcional importncia para a defesa externa do Pas. 46

    SOUZA JNIOR, Cezar Saldanha. Constituies do Brasil. Porto Alegre: Sagra Luzzatto, 2002. p. 59. 47

    Art 7 - O Governo federal no intervir nos Estados salvo para: VII - assegurar a observncia dos seguintes princpios: e) autonomia municipal; 48

    OLIVEIRA, Yves de. Curso de direito municipal. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 1958. p. 69.

  • 46

    art. 28:

    Art 28 - A autonomia dos Municpios ser assegurada: I - pela eleio do Prefeito e dos Vereadores; II - pela administrao prpria, no que concerne ao seu peculiar interesse e, especialmente, a) decretao e arrecadao dos tributos de sua competncia e aplicao das suas rendas; b) organizao dos servios pblicos locais. 1 - Podero ser nomeados pelos Governadores dos Estados ou dos Territrios os Prefeitos das Capitais, bem como os dos Municpios onde houver estncias hidrominerais naturais, quando beneficiadas pelo Estado ou pela Unio. 2 - Sero nomeados pelos Governadores dos Estados ou dos Territrios os Prefeitos dos Municpios que a lei federal, mediante parecer do Conselho de