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687 Cad. Saúde Pública, Rio de Janeiro, 19(2):687-694, mar-abr, 2003 RESENHAS REVIEWS O QUE É BIOÉTICA? Debora Diniz & Dirce Gui- lhem. São Paulo, Editora Braziliense, 2002. 70 pp. ISBN: 85-11-00074-7 Bioética: um convite à tolerância O livro da antropóloga Débora Diniz e da enfermeira Dirce Guilhem pode ser considerado uma descrição sociológica da trajetória da bioética no mundo con- temporâneo. A obra é dividida em seis partes que abordam os seguintes assuntos: Introdução – breve análise sobre a produção disponível em Língua Por- tuguesa no campo da bioética e apresentação dos motivos que levaram a produção do livro; Capítulo I – gênese e desenvolvimento da bioética no mundo; Ca- pítulo II – a difusão da bioética nos Estados Unidos e sua importância para a consolidação da disciplina; Capítulo III – a teoria principialista e sua influência em bioéticas produzidas em países periféricos, como o Brasil; Capítulo IV – as contribuições teóricas de Tristam Engelhardt, Peter Singer e de autoras femi- nistas para o avanço da disciplina; Conclusão – o pa- pel e os desafios da bioética no mundo contemporâ- neo. Partindo das teorias centrais presentes no cam- po da bioética e as contribuições que representaram para o estabelecimento da disciplina, o leitor é leva- do a construir uma concepção sobre o significado e o papel desse novo campo do conhecimento científico na contemporaneidade. A década de 60 abrigou importantes avanços tec- nológicos e o surgimento de vários movimentos so- ciais, responsáveis pela promoção de direitos huma- nos ou mesmo a defesa da liberdade de expressão rei- vindicada por diferentes grupos étnicos, religiosos, políticos, culturais e ideológicos. Foi nesse cenário que as pesquisas no campo da medicina passaram a ser alvo de questionamentos morais. O livro apresen- ta episódios marcantes desse período e também de outras épocas, tais como os controversos experimen- tos científicos realizados durante a II Guerra Mun- dial, a publicação de artigos nos quais são apresenta- das as maneiras como os profissionais da medicina se arrogavam os procedimentos a serem adotados com relação aos pacientes, e a utilização de cobaias humanas para pesquisas. Esses são alguns dos fato- res apontados no texto como os desencadeadores do processo que conduziu “...a opinião pública a perce- ber que nem tudo estava moralmente correto no cam- po da ciência, da tecnologia e da medicina...” (p. 18). A autoridade da medicina passa a ser questionada em virtude dos conflitos morais suscitados, fez-se neces- sário estabelecer o diálogo entre as diferentes pers- pectivas envolvendo os vários aspectos relacionados às práticas de saúde, e sendo assim emerge a “...bioé- tica como uma instância mediadora e democrática para os conflitos morais” (p. 20). Merece destaque a maneira como os Estados Unidos são identificados no livro como pioneiro no processo de institucionali- zação da bioética, tal constatação é fundamental pa- ra compreender a influência americana nas bioéticas presentes em diferentes contextos mundiais. As autoras apontam o Relatório Belmont, docu- mento elaborado pelo Congresso dos Estados Unidos que tinha como meta estabelecer princípios éticos a serem contemplados nas pesquisas científicas com seres humanos, como um marco fundamental para ...a formalização definitiva da bioética como um no- vo campo disciplinar...” (p. 23). O Relatório Belmont ao eleger o “respeito pelas pessoas”, “beneficência” e “justiça”, como os princípios que deveriam pautar os procedimentos científicos, promoveu o surgimento de várias publicações na década de 70 que explora- ram sob diferentes aspectos os embates morais exis- tentes no campo da saúde, e culminaram no surgi- mento da teoria principialista que tem na obra inti- tulada Princípios da Ética Biomédica, sob autoria do filósofo Tom Beauchamp e do teólogo James Childress, publicada em 1979, um de seus expoentes. Apresen- tados e didaticamente exemplificados os pressupos- tos da teoria principialista, Diniz & Guilhem expõem as dúvidas que passaram a recair sobre a legitimida- de e adequabilidade dos princípios propostos. Se- riam os princípios aplicáveis às diversas sociedades presentes ao redor do mundo? Inicialmente, os de- fensores da teoria principialista acreditaram na su- posta universalidade dos princípios, mas, posterior- mente, foi possível constatar que “...as diferenças exis- tentes entre as inúmeras culturas e mesmo dentro dos arranjos sociais de cada cultura foram deliberada- mente ignoradas...” (p. 33). A bioética perdia assim o seu propósito original de “instância mediadora”, uma vez que determinava por meio de princípios, compar- tilhados apenas por algumas moralidades, procedi- mentos capazes de lidar com situações conflituosas. Como resultado das ambigüidades presentes na teoria principialista, surgiram perspectivas críticas que contribuíram para o amadurecimento da disci- plina e difusão desse novo campo da ciência no ce- nário mundial. Nesse sentido, as autoras adotam os conceitos de central e periférico para descrever e analisar as diferentes perspectivas bioéticas. São identificados como países centrais aqueles pioneiros na produção, consolidação e disseminação da bioéti- ca; e no grupo dos países periféricos se encontram aqueles que posteriormente ingressaram no campo de estudos da bioética e ainda são grandes importa- dores das teorias produzidas em países centrais. Nes- se sentido, o texto apresenta o Brasil como um país periférico onde se pode observar, por exemplo, forte influência da teoria principialista, por vezes, equivo- cadamente adotada em detrimento das especificida- des presentes no contexto brasileiro. Ao sugerir os conceitos de central e periférico as autoras destacam que se tratam de conceitos relacionais, ou seja, o Bra- sil embora periférico em relação aos Estados Unidos, pode ser considerado um país central no cenário da

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O QUE É BIOÉTICA? Debora Diniz & Dirce Gui-lhem. São Paulo, Editora Braziliense, 2002. 70 pp.ISBN: 85-11-00074-7

Bioética: um convite à tolerância

O livro da antropóloga Débora Diniz e da enfermeiraDirce Guilhem pode ser considerado uma descriçãosociológica da trajetória da bioética no mundo con-temporâneo. A obra é dividida em seis partes queabordam os seguintes assuntos: Introdução – breveanálise sobre a produção disponível em Língua Por-tuguesa no campo da bioética e apresentação dosmotivos que levaram a produção do livro; Capítulo I –gênese e desenvolvimento da bioética no mundo; Ca-pítulo II – a difusão da bioética nos Estados Unidos esua importância para a consolidação da disciplina;Capítulo III – a teoria principialista e sua influênciaem bioéticas produzidas em países periféricos, comoo Brasil; Capítulo IV – as contribuições teóricas deTristam Engelhardt, Peter Singer e de autoras femi-nistas para o avanço da disciplina; Conclusão – o pa-pel e os desafios da bioética no mundo contemporâ-neo. Partindo das teorias centrais presentes no cam-po da bioética e as contribuições que representarampara o estabelecimento da disciplina, o leitor é leva-do a construir uma concepção sobre o significado e opapel desse novo campo do conhecimento científicona contemporaneidade.

A década de 60 abrigou importantes avanços tec-nológicos e o surgimento de vários movimentos so-ciais, responsáveis pela promoção de direitos huma-nos ou mesmo a defesa da liberdade de expressão rei-vindicada por diferentes grupos étnicos, religiosos,políticos, culturais e ideológicos. Foi nesse cenárioque as pesquisas no campo da medicina passaram aser alvo de questionamentos morais. O livro apresen-ta episódios marcantes desse período e também deoutras épocas, tais como os controversos experimen-tos científicos realizados durante a II Guerra Mun-dial, a publicação de artigos nos quais são apresenta-das as maneiras como os profissionais da medicinase arrogavam os procedimentos a serem adotadoscom relação aos pacientes, e a utilização de cobaiashumanas para pesquisas. Esses são alguns dos fato-res apontados no texto como os desencadeadores doprocesso que conduziu “...a opinião pública a perce-ber que nem tudo estava moralmente correto no cam-po da ciência, da tecnologia e da medicina...” (p. 18).A autoridade da medicina passa a ser questionada emvirtude dos conflitos morais suscitados, fez-se neces-sário estabelecer o diálogo entre as diferentes pers-pectivas envolvendo os vários aspectos relacionadosàs práticas de saúde, e sendo assim emerge a “...bioé-tica como uma instância mediadora e democráticapara os conflitos morais” (p. 20). Merece destaque amaneira como os Estados Unidos são identificadosno livro como pioneiro no processo de institucionali-

zação da bioética, tal constatação é fundamental pa-ra compreender a influência americana nas bioéticaspresentes em diferentes contextos mundiais.

As autoras apontam o Relatório Belmont, docu-mento elaborado pelo Congresso dos Estados Unidosque tinha como meta estabelecer princípios éticos aserem contemplados nas pesquisas científicas comseres humanos, como um marco fundamental para“...a formalização definitiva da bioética como um no-vo campo disciplinar...” (p. 23). O Relatório Belmontao eleger o “respeito pelas pessoas”, “beneficência” e“justiça”, como os princípios que deveriam pautar osprocedimentos científicos, promoveu o surgimentode várias publicações na década de 70 que explora-ram sob diferentes aspectos os embates morais exis-tentes no campo da saúde, e culminaram no surgi-mento da teoria principialista que tem na obra inti-tulada Princípios da Ética Biomédica, sob autoria dofilósofo Tom Beauchamp e do teólogo James Childress,publicada em 1979, um de seus expoentes. Apresen-tados e didaticamente exemplificados os pressupos-tos da teoria principialista, Diniz & Guilhem expõemas dúvidas que passaram a recair sobre a legitimida-de e adequabilidade dos princípios propostos. Se-riam os princípios aplicáveis às diversas sociedadespresentes ao redor do mundo? Inicialmente, os de-fensores da teoria principialista acreditaram na su-posta universalidade dos princípios, mas, posterior-mente, foi possível constatar que “...as diferenças exis-tentes entre as inúmeras culturas e mesmo dentro dosarranjos sociais de cada cultura foram deliberada-mente ignoradas...” (p. 33). A bioética perdia assim oseu propósito original de “instância mediadora”, umavez que determinava por meio de princípios, compar-tilhados apenas por algumas moralidades, procedi-mentos capazes de lidar com situações conflituosas.

Como resultado das ambigüidades presentes nateoria principialista, surgiram perspectivas críticasque contribuíram para o amadurecimento da disci-plina e difusão desse novo campo da ciência no ce-nário mundial. Nesse sentido, as autoras adotam osconceitos de central e periférico para descrever eanalisar as diferentes perspectivas bioéticas. Sãoidentificados como países centrais aqueles pioneirosna produção, consolidação e disseminação da bioéti-ca; e no grupo dos países periféricos se encontramaqueles que posteriormente ingressaram no campode estudos da bioética e ainda são grandes importa-dores das teorias produzidas em países centrais. Nes-se sentido, o texto apresenta o Brasil como um paísperiférico onde se pode observar, por exemplo, forteinfluência da teoria principialista, por vezes, equivo-cadamente adotada em detrimento das especificida-des presentes no contexto brasileiro. Ao sugerir osconceitos de central e periférico as autoras destacamque se tratam de conceitos relacionais, ou seja, o Bra-sil embora periférico em relação aos Estados Unidos,pode ser considerado um país central no cenário da

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América Latina, em virtude do avanço das pesquisase disseminação dos conhecimentos.

O livro O Que é Bioética?, ao destacar a impossi-bilidade do estabelecimento de princípios universaislegítimos no sentido de comportar o pluralismo ca-racterístico entre as pessoas portadoras de moralida-des distintas, propõe o surgimento de diferentesbioéticas que almejam reconhecer as diferenças epromover a tolerância como requisito fundamental àmediação das situações conflituosas sobre as quais abioética tem se debruçado. Desse modo, é possívelobservar que o livro destaca as vantagens que o mé-todo etnográfico pode conceder aos pesquisadoresda bioética cônscios do papel a ser desempenhadopela disciplina. Explorando o conceito de “relativis-mo”, as autoras destacam a importante contribuiçãoque estratégias etnográficas de investigação podemoferecer no sentido de identificar os diferentes atoressociais em situação de conflito, e estabelecer mecanis-mos de mediação capazes de promover a tolerância.

Autores como Tristam Engelhardt e Peter Singer,são apresentados no livro como contribuintes de im-portância destacada no estabelecimento de pressu-postos bioéticos que reconhecem e analisam a ques-tão das diferenças morais em suas produções teóri-cas. As autoras apresentam e explicam conceitos co-mo os de “estranhos morais” e “amigos morais”, comocategorias chave que foram introduzidas por Enge-lhardt no campo da bioética. A teoria especista é tam-bém explorada no livro e possibilita que o leitor com-preenda questões polêmicas proposta por Singer, co-mo a sacralidade da vida humana tão aclamada emculturas ocidentais. As autoras apresentam tambéma gênese e o avanço das perspectivas feministas paraa bioética, que baseadas nas desigualdades entre gê-neros têm contribuído substancialmente para o ama-durecimento dos debates estabelecidos.

A obra apresenta a bioética como um mecanismoacadêmico que promove o exercício da tolerânciajunto a sociedades plurais. Como os demais exempla-res que compõem a Coleção Primeiros Passos da Edi-tora Braziliense, o livro O Que é Bioética? pode serconsiderado uma obra seminal, visto que não se res-tringe a expor a trajetória da bioética no mundo e seudesenvolvimento no Brasil, como também apresentaos principais desafios que se colocam para esse novocampo do conhecimento científico. Trata-se de umaleitura indispensável não somente a estudantes degraduação, público alvo desse tipo de publicação, masaos pesquisadores e profissionais envolvidos no seucotidiano com questões relacionadas à bioética, vistoque o livro é antes de tudo um convite à reflexão.

Cristiano GuedesANIS: Instituto de Bioética, Direitos Humanos e Gênero, Brasília, Brasil.

QUALIDADE DE VIDA: OBSERVATÓRIOS, EXPE-RIÊNCIAS E METODOLOGIAS. T. Keinert & A. P.Karruz. São Paulo, Annablume/Fundação de Am-paro à Pesquisa do Estado de São Paulo, 2002.208 pp.ISBN: 85-7419-283-X

Qualidade de Vida em Saúde (QVS) constitui, atual-mente, área do conhecimento e intervenção peculia-

rizada por ser epistemicamente ampla e socialmenterelevante, a desafiar estudos e gestões consistentes econfiáveis. Das várias abordagens que comportamsua polissemia, talvez a que concentra maior grau decomplexidade e maior número de armadilhas sejaaquela que busca entendê-la na dimensão dos indi-cadores macrossociais, envolta em questões comovalores culturais, desenvolvimento, sustentabilidade,organismos internacionais, controle social, avaliaçãode gestões locais, organizações populares, iniciativasinstitucionais, enfim, todo um conjunto de saberes efazeres referentes à participação dos diferentes gru-pos sociais nas decisões que lhes dizem respeito. Pro-duções elaboradas para tratar da matéria, portanto,resultam de processos executados por protagonistasorganizados e comprometidos, fato que, admitamos,não é dos mais encontradiços na cena universitáriabrasileira. Daí celebrar-se com o mais diferenciadointeresse e entusiasmo as iniciativas que emergemem nosso meio lidando com QVS nessa perspectiva.De fato, há aproximadamente três anos contou-secom obra paradigmática nesse sentido, capitaneadapelo respeitável grupo da Escola Nacional de SaúdePública e publicada em volume temático da Ciência& Saúde Coletiva. Desde então, o respectivo acúmulode informação foi clamando cada vez mais por umaatualização sucedânea. Ei-la que aparece neste livrosimultaneamente técnico e simpático!

Trata-se de coletânea de eventos nucleados pelainiciativa conjunta de três setores da realidade inte-lectual paulista: a municipalidade, a instituição depesquisa e o órgão de fomento. De fato, da articula-ção entre a Prefeitura Municipal de Santo André, oInstituto de Saúde e Fundação de Amparo à Pesquisado Estado de São Paulo surgiu a conjugação de esfor-ços acadêmicos, sociais e políticos, que desova esteprimeiro produto documental bibliográfico. Consisteda composição de dois principais componentes: noprimeiro, reúnem-se textos conceituais sobre aspec-tos contemporâneos das políticas públicas relaciona-das à QVS e recuperam-se experiências encetadas emnosso país a respeito, como a preparar melhor enten-dimento para o segundo, destinado a dizer mais dire-tamente do Observatório de Qualidade de Vida deSanto André, entendido este, como se verá mais àfrente, como “um sistema de informações”, uma “me-todologia de monitoramento” (p. 120). Assim se põe,portanto, o objetivo específico em tela: narrar funda-mentos e primeiras manifestações decorrentes da de-cisão política de transformar a qualidade de vida deuma cidade brasileira na atualidade, no caso SantoAndré, localizada como sabido, na região metropoli-tana de São Paulo.

Importa então, começar pela verticalização da re-lação entre planejamento urbano e QVS. A isto se lan-ça Claudete Silva Vitte, da Universidade Estadual deCampinas, logo no primeiro segmento. Partindo daassociação básica entre cidade e cidadania, demons-tra ela um esvaziamento político dessa discussão emnosso meio, no contexto da evolução trifásica do ur-banismo: em seus termos, no primeiro estágio, têm-se a face funcionalista, resultante de modelos erigi-dos por sanitaristas, sociólogos e outros profissio-nais, para estabelecer a ordem social, ameaçada porepidemias, rebeliões e delinqüências; o paradigmasubseqüente foi o ecologismo, ou ambientalismo, emque persiste a característica de crença no poder ra-

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cionalizador da ciência para dissipar a angústia dacatástrofe ecológica: em outros termos, ao planeja-mento esverdeado cabe minimizar a degradaçãoenergética e desacelerar a trajetória da irreversibili-dade. A terceira matriz discursiva da sustentabilidadeurbana vê a cidade como espaço da qualidade de vi-da: tal visão leva a um questionamento, a uma buscade diálogo e negociação, que compõem o processo deconstrução de direitos, como os relativos à existênciasaudável e à preservação dos patrimônios histórico enatural. O hipertexto de tal movimento é contempla-do a seguir.

Prosseguindo nesse quadro teórico-metodológi-co, o capítulo dois trata de operar essas abordagenspela agenda social de diferentes organismos interna-cionais, destacadamente a Organização Mundial daSaúde, o Banco Mundial, o Centro das Nações Unidaspara Assentamentos Humanos, conhecido como Ha-bitat. Isso implica o rever a inserção de correspon-dentes indicadores sociais nas políticas públicas, ouseja, exige explicitar tanto os elementos conceituaiscomo as propriedades dos mesmos e suas diferentesnaturezas setoriais, quanto fatos concretos relaciona-dos à disponibilidade de fontes para sua construção eà mitificação do Índice de Desenvolvimento Humano.

Outra pertinência diretamente envolvida na revi-são de indicadores de qualidade de vida numa cidadepaulista configura-se no procedido a seguir, isto é, oconhecimento do chamado Índice de Responsabili-dade Social. Iniciativa da Fundação Seade da Secreta-ria de Estado de Planejamento de São Paulo, por en-comenda da Assembléia Legislativa, alcançou classifi-car os 645 municípios paulistas em cinco padrões dequalidade de vida, a partir dos três parâmetros básicosde riqueza municipal, longevidade e escolaridade.

Assim referenciada, a equipe local, coordenadapela Profa. Tânia Kainert, inicia o relato da aventuraandreense. O desafio 1 identifica-se pelo que pontuade definição dos conceitos, reducionismos e priori-zações. Ao recuperar numerosas concepções de QVS,rememora a questão do viver mais e melhor, ondedestaca o chamado “paradoxo francês”, ou seja, a es-perança de vida na França é maior que a dos EstadosUnidos, não obstante a renda média ser maior nesteúltimo e a população francesa ser mais freqüente-mente tabagista e mais consumidora de álcool, emmédia. Em outros termos, vale dizer que QVS não é asoma aritmética de frações de risco ou de fatores deproteção, mas algo que, vivo, deflui de situações cul-turais e interpessoais.

Outras experiências de sistemas locais de infor-mação para gestão pública da QVS são apreciadas naseqüência com objetivos pedagógicos, como a do Es-tado do Paraná, a do Programa de Aprimoramentodas Informações sobre Mortalidade da Cidade de SãoPaulo, a do Índice de Qualidade de Vida Urbana deBelo Horizonte e a do Observatório da Cidadania, emBelém do Pará. Uma riqueza de acumulações vai sen-do aportada sucessivamente, cabendo citar enfáticae conclusivamente a denúncia de Maria Célia NunesCoelho, da Universidade Federal do Rio de Janeiro, aolembrar a existência de “um certo voluntarismo nasanálises convencionais de impactos ambientais que astornam pobres e superficiais”: “há um senso comummesmo dentro das academias sobre o que seja impactoambiental e Qualidade de Vida – tais conceitos, comraras exceções, são tidos como já dados e raramente

são problematizados”. Daí a necessidade imperiosade mudança a respeito e a singular contribuição des-ta obra no processo.

Aguinaldo GonçalvesFaculdade de Educação Física, Universidade de Campinas, Campinas, Brasil.

BIOÉTICA E BIORRISCO. ABORDAGEM TRANS-DISCIPLINAR. Silvio Valle & José Luiz Telles. Riode Janeiro, Editora Interciência, 2003. 417 pp.ISBN: 85-7193-075-9

Este é um livro impressionante sobre a fronteira daciência e tecnologia e que focaliza a engenharia ge-nética, em diferentes níveis, como na sua relação como mercado, riscos, segurança, sociedade, ética e mí-dia, colocando brilhantemente juntos, assuntos dediferentes especialidades sobre o bem-estar e a so-brevida da espécie humana. Composto de vinte arti-gos, desenvolvidos por vinte e oito destacados e so-fisticados profissionais, não poderia ter sido escritopor pessoas que não tivessem a prudência, a sensibi-lidade, a sabedoria e a percepção necessárias paraolhar o futuro possível e sumariar o excitante pro-gresso da ciência e tecnologia nessa área, bem comosuas conseqüências para o planeta. A previsão é di-fícil, principalmente quando é sobre o futuro, masatual. Urgente e escrupulosamente escrito, o livro te-rá grande impacto no debate sobre bioética, biorris-cos e biossegurança nos próximos anos. É indispen-sável que se compreenda as vantagens, potenciaisriscos, desafios e impactos desta área sobre o bem-estar e a sobrevida da espécie humana.

Eloi S. GarciaAcademia Brasileira de Ciências, Rio de Janeiro, Brasil.

CONFLITOS MORAIS E BIOÉTICA. Debora Diniz.Coleção Bioética. Brasília, Letras Livres, 2001.212 pp.ISBN: 85-901938-2-9

Bioética: caminho para a tolerância nos conflitosmorais freqüentes no campo da saúde

O papel da bioética não é ser tão-somente uma ferra-menta de intermediação de confrontos morais sobrequestões envolvendo seres humanos e animais não-humanos: a bioética surgiu da necessidade de culti-var o espírito da tolerância como ingrediente de pre-servação do dissenso ético e da pluralidade moralque permeiam a vida humana em coletividade. Va-lendo-se desta idéia, a antropóloga Debora Diniz de-cidiu subverter o estilo tradicional de apresentaçãodo tema bioético no Brasil. Ao contrário do que se po-deria esperar, não se discute teoria bioética propria-mente dita neste livro. Como diz o filósofo Sérgio Pau-lo Rouanet no prefácio do livro, Debora Diniz é ousa-da: apresenta uma nova fenomenologia das atitudesmorais, mostrando sua convicção de que os seres hu-manos são resultado do processo de moralização so-cial a que são submetidos ao longo da vida, e de queé importante duvidar das marcas morais que eles re-cebem durante esse processo. A autora acredita que a

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dúvida sobre a própria moralidade é um caminhopossível para o reconhecimento dos estranhos mo-rais e da variedade das metáforas e fantasias huma-nas: é o estágio preliminar para aprender a exercitar atolerância.

Em geral, os pesquisadores da bioética são inicia-dos no tema do conflito moral por um encontro es-treito com a alteridade, em que estudos de caso sobre“..africanas mutiladas, chinesas que matam suas fi-lhas bebês, indianos que vendem órgãos, holandesesque matam seus velhos, russas que ignoram humani-dade no feto...” (p. 31), entre outros, permeiam as ati-vidades de reflexão no campo. A antropóloga propõeum caminho para sublimar este casuísmo: para lidarcom o imperialismo ético que caracteriza as discus-sões sobre os conflitos morais na bioética, a autorafaz uma tipologia das atitudes morais. Para isso, elaelegeu três personagens alegóricos para ilustrar suanarrativa: Abraão, Antígona e Zaratustra.

Um aspecto curioso de sua abordagem está no fa-to de que, apesar de haver buscado nos personagensdo filósofo dinamarquês Soren Aabye Kierkegaard edo filósofo americano Richard Rorty o referencial pa-ra construir sua leitura sobre a fenomenologia damoral, Diniz não os replicou da maneira como foramconcebidos originalmente por seus criadores. A auto-ra buscou uma inspiração livre para apresentar osmesmos personagens sob diferentes ângulos: paraela, o cavaleiro da fé de Kierkegaard, interpretado porAbraão, passa a ser o cavaleiro do absurdo, em nomeda insanidade de sua individualidade. A ironista, umapersonagem criada por Rorty, por sua vez inspiradaem Zaratustra (de Friederich Nietzsche), teve suasqualidades nietzscheanas de desprezo e sarcasmo re-forçadas pela autora.

A partir da narrativa de Kierkegaard, Diniz recon-ta a trajetória bíblica de Abraão, que, guiado pelo seupacto de fé com Deus, aceita como possível assassi-nar o próprio filho, e mostra que a prerrogativa de lo-calizar-se na tragédia, isto é, de estar imune aos refe-renciais morais existentes, é exclusiva deste persona-gem. Na trama das moralidades, Abraão é o únicopersonagem capaz de viver a tolerância sem ser ani-quilado pela diferença moral. Para representar o es-pírito antitrágico e intolerante, que defende inflexi-velmente suas convicções morais, Diniz recorreu àpeça de Sófocles, encontrando em Antígona a figuraexemplar e que, segundo Rouanet, esta seria a perso-nagem mais original de seu livro: o herói antitrágico,ícone da submissão humana às ilusões morais.

Para compreender a narrativa, no entanto, é pre-ciso estar atento ao fato de que o trágico, no campodas moralidades, não significa o inesperado, a catás-trofe ou a dor, nem associa-se a uma ação própria pa-ra suscitar o par terror/piedade que culmina em umacontecimento funesto de uma peça teatral. O trági-co é a ausência de natureza nas crenças morais. Trá-gico e antitrágico são formas de expressão da cruel-dade e da ilusão, segundo o filósofo Clement Rosset,uma fonte de inspiração constante em Conflitos Mo-rais e Bioética. O pensamento trágico caracteriza-sepela ética do acolhimento: não exclui quaisquer cren-ças morais possíveis, pois não defende nenhumacrença, o que o torna completamente tolerante. Porisso, Abraão, símbolo da tragédia, não sofre a dor darealidade com o assassinato de seu filho, porque na-da, “...por mais grotesco que soe à moralidade...” (p.

123), consegue atingi-lo: para ele, nada é real. O espí-rito antitrágico, por sua vez, no extremo oposto, reve-la a ética da exclusividade, em nome da qual ele bus-ca difundir pela palavra suas verdades morais, comomissionários que catequizam. Intolerante por natu-reza, o espírito antitrágico vive sob o manto das cren-ças morais.

Mas o personagem que provoca o maior fascíniono decorrer de sua narrativa é certamente a ironista:“...o que caracteriza a ironista, afora sua semelhançacom os outros personagens antitrágicos, é o exercíciopermanente da curiosidade. Pela curiosidade, a iro-nista acredita poder aperfeiçoar sua sensibilidadepara a mudança moral...” (p. 141). Esta semelhançacom os personagens antitrágicos existe porque a iro-nista, surpreendentemente, também serve a valoresmorais. Assim, embora busque inspiração no cavalei-ro do absurdo para ampliar seu olhar moral, a ironis-ta vive sob as amarras das ilusões morais, mas não namesma medida do herói antitrágico, o que marca suadiferença em relação a ele. A ironista é fascinante exa-tamente porque traz em si a vontade de auto-supera-ção para abandonar suas crenças morais: ela cultiva acapacidade de realizar, com freqüência, um movi-mento de autocrítica contra seus próprios pressupos-tos morais, perfazendo, dessa forma, um ciclo inter-minável de morte/renascimento moral, como sugeriaNietzsche. A ironista simboliza a dúvida; o reconhe-cimento da falibilidade de suas escolhas morais.

É estimulante perceber que, em sua narrativa, di-vidida em três capítulos para cada alegoria, a autoranão abandona o(a) leitor(a) à tentação de comparar econfrontar as atitudes morais dos personagens entresi: ciente da possibilidade de confusão entre algunscomportamentos morais dos personagens ilustradosem suas sagas, ela identifica com precisão o exatoponto de suas diferenças e as sutilezas que marcamas características de cada um. Uma passagem inte-ressante e fundamental para compreender melhora figura do cavaleiro do absurdo, está presente, porexemplo, quando a autora, valendo-se de uma figurade retórica, explica que o cavaleiro do absurdo posi-ciona-se além dos limites do real – livre das pressõesaniquilantes das moralidades –, mas não por pura in-consciência ignorante. O cavaleiro do absurdo “...sa-be sem sofrer...”, ou seja, ele tem consciência do pior,apenas não sofre por ele, localizando-se acima dele(p. 85). Nesse sentido, o cavaleiro do absurdo é a úni-ca possibilidade de execução de um projeto trágicopara a humanidade, mas, ao mesmo tempo, suas fa-culdades estão fora do alcance das faculdades dos se-res humanos, pois o homem suporta mal a crueldadeda realidade, tese defendida pelo intérprete do pen-samento trágico, Rosset, em seu livro O Princípio daCrueldade (p. 85).

Assim, a história de cada um destes personagensserve de pano de fundo para a reflexão sobre as trêsformas de atitude moral que a autora acredita pode-rem resumir a expressão humana: a loucura, a certezae a dúvida. Essas três atitudes morais, condensadasna figura de outra personagem ficcional, Tashi, são oponto de partida escolhido pela autora para anteci-par as idéias do livro. Valendo-se de Tashi, do roman-ce Possuindo o Segredo da Alegria, da feminista negraAlice Walker, Diniz aborda uma questão clássica dabioética: o choque de valores culturais a respeito daprática da circuncisão genital feminina. A história re-

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vela uma mulher pertencente a uma sociedade ima-ginária da África de colonização francesa, a etniaOlinka, que não se submete à mutilação genital. Maistarde, no entanto, movida pelo sentimento de exclu-são do grupo, de perda da identidade de mulher Olin-ka e de sua feminilidade, Tashi decide mutilar-se jáadulta. Mas, após casar-se com um afro-americano,mudar-se para os Estados Unidos e engravidar, Tashié objeto de reprovação moral durante o parto, em ummundo onde sua cicatriz é apenas o símbolo rude deum ritual cruel de opressão feminina. Sentindo-sehumilhada, ela reage pela loucura: retorna à África emata a mulher que lhe castrou.

A autora reconta essa trajetória antitrágica/trági-ca, exatamente porque a personagem “...é uma alego-ria de todos os personagens reais que cotidianamenteexperimentam a dor da desilusão moral nos conflitosbioéticos...” (p. 30). Com isso, a autora mostra a plau-sibilidade do princípio da flexibilidade moral, isto é,da viabilidade das metamorfoses morais diante dedesilusões. Tashi, entretanto, é apenas o impulso emdireção à cruzada das atitudes morais: ela é o fio dameada que resume os três personagens do livro:Abraão, Antígona e Zaratustra. E, neste exato ponto, épossível encontrar uma afinidade de idéias com opensamento rortyano quanto ao princípio da solida-riedade humana, segundo o qual é preciso ver os es-tranhos morais como companheiros de sofrimento,na esperança de aumentar a sensibilidade e tornarmais difícil marginalizar pessoas com percepções evalores morais distintos dos hegemônicos. Nessestermos, a idéia é colocar à prova o vocabulário moralfinal disponível na busca pela constante reconstru-ção individual. Para a autora, a dúvida serve aos pro-pósitos deste processo.

A opção pela ficção em detrimento dos persona-gens reais foi o mecanismo eleito pela autora para,em primeiro plano, atender às qualidades estéticassugeridas por Rorty, e ainda, para alcançar um dis-tanciamento cínico – porém, saudável – da infelicida-de que assombra os conflitos morais. Essa forma deenfrentar a crueldade do real foi, sem dúvida, uma al-ternativa confortável para viabilizar uma maior flexi-bilidade no trato da dor e do sofrimento inerentes aosconflitos morais. Essa ausência proposital de referên-cias a casos bioéticos tal como tradicionalmente sepõe a bioética é uma característica interessante desua abordagem, que permite ao(à) leitor(a) valer-seda imaginação e repertório de discórdias morais coti-dianas para compreender a proposição teórica sobrea tragicidade que Diniz apresenta no livro. Exatamen-te por isso, embora existam raríssimas referências àbioética no decorrer do livro, o título escolhido ajus-ta-se com precisão ao objetivo de seu texto. Para Sér-gio Paulo Rouanet, que prefaciou o livro, o título curtoconseguiu aguçar a curiosidade do(a) leitor(a) e con-vidá-lo(a) para uma reflexão filosófica sobre a mora-lidade feita com “...estupenda originalidade...” (p. 9).

Neste exato ponto, a antropóloga esclarece que abioética deve voltar seus esforços argumentativos pa-ra o espírito antitrágico, o espírito da intolerância porexcelência, revelando uma das principais conclusõesde seu livro: “...os pesquisadores da bioética são, antesde tudo, missionários da dúvida...” (p. 68). Mas, aindaassim, a bioética é essencialmente antitrágica: “...nãohá como mediar ou mesmo solucionar conflitos mo-rais senão pelo recurso a certas ilusões...” (p. 68). Isso

significa que seria impossível criar um tribunal defi-nitivo e universalmente válido além das moralidades,voltado a decidir sobre as diferenças morais. Definiti-vamente, a bioética não é um projeto moral que searroga a missão de resolver conflitos – o que é dife-rente de dizer que possa intermediá-los. É possíveldizer que a bioética tem o papel de assimilar o hori-zonte moral no campo dos conflitos morais em saú-de, assumindo um papel educativo de sensibilizaçãomoral. Com o reconhecimento da pluralidade moralde humanidade, Diniz acredita que a tolerância é aprimeira virtude fundamental na moralidade do res-peito mútuo, e que talvez a melhor solução seja en-contrar mecanismos para garantir uma coexistênciapacífica entre os estranhos morais diante de suas di-ferenças. A convivência com personagens tão inten-sos quanto Zaratustra ou Antígona, embora seja umaexperiência de sofrimento, é uma janela para que osseres humanos reconheçam a contingência de todasas crenças. E, exatamente por isso, o livro de Diniztem importância no cotidiano pragmático dos pes-quisadores do campo da bioética e usuários e profis-sionais do campo da saúde, onde as diferenças mo-rais são tão freqüentes e o exercício da tolerância éalgo doloroso.

Arryanne QueirozANIS: Instituto de Bioética, Direitos Humanos e Gênero, Brasília, Brasil.

EVALUACION Y MEJORA DEL DESEMPEÑO DELOS SISTEMAS DE SALUD EN LA REGION DELAS AMERICAS. Organización Panamericana dela Salud. Washington, DC, Organización Paname-ricana de la Salud, 2001. 71 pp.ISBN: 92-75-07387-2

Diversos organismos nacionales e internacionaleshan enfatizado durante décadas la necesidad de avan-zar en el planeamiento, organización e implementa-ción de los servicios de salud. Y no es sino hasta fe-chas recientes que se alzan múltiples voces destacan-do la ausencia de evaluaciones sistemáticas y perma-nentes de los sistemas y prácticas de atención médi-ca. Este interés, según ciertos estudiosos, deriva de laimposición de los organismos financieros, más quede las necesidades y propuestas de la población, losusuarios o los directivos del mismo sector.

La obra objeto de esta reseña Evaluación y Mejo-ra del Desempeño de los Sistemas de Salud en la Re-gión de las Américas cubre esta laguna. Se trata delproducto más reciente de las iniciativas llevadas a ca-bo por la Organización Panamericana de la Salud(OPS) en torno a la evaluación de los sistemas de sa-lud. La misma es el resultado de varias reuniones rea-lizadas en la región de las Américas durante el año2001 en respuesta al trabajo El Informe sobre la Saluden el Mundo 2000. Mejorar el Desempeño de los Siste-mas de Salud el cual fue publicado por la Secretaríade la Organización Mundial de la Salud (OMS)a finesdel año 2000. Tal informe ofrece un examen crítico delos atributos de los sistemas de salud que a juicio desus autores deben ser evaluados y mejorados paraobtener mejores resultados en salud.

El libro presenta, tanto en español como en in-glés, cuatro documentos íntimamente relacionados:

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la Consulta regional sobre la evaluación del desem-peño de los sistemas de salud, el Grupo de trabajo dela región de las Américas sobre la evaluación del de-sempeño de los sistemas de salud y, la Discusión so-bre la evaluación del desempeño de los sistemas desalud en el 43o Consejo Directivo del Comité Regio-nal de la OPS/OMS, así como anexos con dos resolu-ciones relativas al tema.

El lector interesado en el tema encontrará en es-tos documentos una serie de propuestas en torno atópicos centrales de la misma evaluación desde laperspectiva de la máxima instancia regional en mate-ria de salud. Entre otros, destacan señalamientos so-bre el interés de estos organismos en la adopción deenfoques normatizados para evaluar los servicios desalud. Pero también hallará un conjunto de propues-tas sujetas al debate sobre los indicadores, los méto-dos y los datos utilizados para llevar a cabo la evalua-ción de dicho desempeño. Aquí sobresale la reco-mendación de ambos organismos para desarrollaruna metodología con el fin de evaluar en forma com-parativa el desempeño de los sistemas de salud a ni-vel internacional por lo cual es apremiante desarrol-lar indicadores en esa dirección.

A una de las propuestas más desarrolladas por losparticipantes de estas reuniones convocadas por laOPS se le denomina el enfoque “tablero de mandos”(traducción del inglés del término dashboard ap-proach). Tal enfoque incluye cinco grandes camposde acción que se considera están involucrados y porlo cual habrán de ser objeto de evaluación: la situa-ción de salud (condiciones de salud, capacidad paravalerse, bienestar y muerte), determinantes no médi-cos de la salud (comportamientos saludables, condi-ciones de vida y trabajo, recursos personales, factoresambientales), los sistemas de salud (rectoría, finan-ciamiento y aseguramiento), prestaciones de servi-cios de salud (cuidado clínico, cuidado preventivo ycuidado a largo plazo) y las características del siste-ma de salud y de la comunidad (características de-mográficas, humanas, financieras y recursos mate-riales; resultados del sistema de prestación de servi-cios de salud).

La obra aquí comentada no ofrece una visión ho-mogénea sobre la evaluación de los sistemas de sa-lud. Varios puntos de tensión aparecen a lo largo dela misma. Frente a las propuestas unívocas de la Se-cretaría de la OMS destacan críticas de ciertos paísesy académicos sobre lo inadecuado de algunos de losindicadores empleados para dar cuenta de las reali-dades nacionales. También se enfatiza que una pro-puesta de esta naturaleza contraviene los acuerdosestablecidos previamente entre los representantes dela sanidad de los países y la misma OMS.

La evaluación de los servicios de salud constituyeuna de las acciones prioritarias de los servicios médi-cos a nivel mundial, regional, estatal y municipal enel futuro próximo. Sea por convencimiento personal,como una lucha para impulsar el cambio social o porla imposición de los organismos financieros interna-cionales, atrás habrán de quedar aquellas modalida-des de evaluación de los servicios de atención a la sa-lud en donde criterios personales o políticos eran losdeterminantes del diagnóstico final de los servicios.El creciente recorte de los recursos financieros, para-dójicamente, habrá de influir en una mayor inversiónen materia de evaluación.

Esta obra ofrece un panorama de la perspectivaadoptada por la OPS en relación al tema. No se tratani de la única ni la mejor. De hecho, la obra ofreceuna perspectiva de corte utilitarista cuyo objetivocentral es impulsar modelos de atención a la saludmás eficientes. La propuesta de trabajo parece incor-porar elementos novedosos al campo de la salud; sinembargo, persisten múltiples supuestos y elementosde modelos considerados del pasado. Entre otros, seaspira a encontrar indicadores objetivos, mensura-bles y aplicables a diversos sistemas y contextos. Den-tro de esta propuesta no caben criterios subjetivos oacordes a las condiciones sociales y culturales de lapoblación a que se hace referencia. Grupos de exper-tos determinan el marco, los fines y los criterios a em-plear; en consecuencia la población termina siendoobjeto de dicha evaluación. A pesar del reconoci-miento del papel de la población como actor centralde los sistemas de salud. Tampoco se encuentran ves-tigios de los modelos de evaluación crítica, transfor-madora o interpretativa. Para el caso Latino America-no tales consideraciones han sido de peso en la dis-cusión sanitaria en las últimas décadas.

Lo anterior no obsta para revisar esta obra condetenimiento. Sin duda, habrá de ser un documentode referencia de un modelo que parece habrá de de-sarrollarse ampliamente en la región en el futuro.Ojalá su lectura sirva para ampliar el debate y llevaral plano de lo público preguntas como ¿quién debeevaluar las políticas y programas socio-sanitarios?,¿se debe aspirar a encontrar indicadores únicos y uni-versales en torno a la evaluación?, ¿qué papel juega lapoblación en la evaluación de los programas y servi-cios?, ¿habrá de ser diferente la evaluación impulsadapor los partidos y gobierno de izquierda respecto alos de derecha?, ¿habrá de impulsar el movimientomédico social propuestas específicas de evaluaciónen contraposición a aquellas impulsadas por estosorganismos?. Estas y otras preguntas determinarán ladiscusión en un futuro no muy lejano tanto en las re-vistas académicas como en los foros de discusión delas políticas públicas.

Francisco J. Mercado-MartínezCoordinador Programa Investigación Cualitativa en Salud-México, Guadalajara, Mé[email protected]

THE XAVÁNTE IN TRANSITION: HEALTH, ECOL-OGY AND BIOANTHROPOLOGY IN CENTRALBRAZIL. Carlos E. A. Coimbra Jr., Nancy M. Flow-ers, Francisco M. Salzano & Ricardo V. Santos.Ann Arbor: University of Michigan Press, 2002.344 pp.ISBN: 0-472-11252-X

A primeira imagem na exposição Da Antropofagia aBrasília, montada pelo Museu de Arte Brasileira daFundação Armando Álvares Penteado (FAAP), em co-memoração à Semana de 1922 é a fotografia de umíndio do Brasil Central “empurrando” um avião da ex-pedição nacional à Serra do Roncador, em 1943. Estaimagem simboliza, à perfeição, uma das questõescentrais do livro The Xavánte in Transition: Health,Ecology and Bioanthropology in Central Brazil. Atransição mencionada no título remete não somente

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à transição epidemiológica experimentada por essegrupo étnico, mas, principalmente, à transição entrea cultura tradicional desse povo antes do contato eintegração na sociedade nacional, e seu modo de vi-da atual, no qual parte das tradições culturais estãopreservadas porém trazendo as marcas indeléveisdos contatos com o modo de vida dos outros habitan-tes do Brasil Central.

The Xavánte in Transition: Health, Ecology andBioanthropology in Central Brazil representa o resul-tado da cooperação entre autores com diferentes ba-gagens científicas, interessados em compreender deque maneira as relações entre comunidades locais(aldeias) e a sociedade nacional podem moldar os di-ferentes modos de vida repercutindo na saúde daspopulações.

A introdução é dedicada a apresentar os autores,suas experiências bem como estudos anteriores a res-peito desse grupo de indígenas brasileiros. Delineiam-se aí as intenções dos autores em tratar da maneiramais integrada os diferentes enfoques utilizados noestudo dos Xavánte: o biológico, o epidemiológico, oecológico e o antropológico. Assim, este livro interes-sa, não apenas aos autores dedicados ao estudo dosproblemas étnicos mas também a todos aqueles quetrabalham com objetos complexos de investigação,buscando articular nesse trabalho a contribuição dediferentes disciplinas científicas, métodos e técnicasde análise.

O segundo capítulo apresenta o cenário geográfi-co no qual os Xavánte se inserem. Trata-se de umaabordagem geopolítica situando os Xavánte em rela-ção a outros grupos indígenas da região, abordandoas características principais de sua organização so-cial e descrevendo as peculiaridades do cerrado co-mo suporte geográfico para essas etnias. Os proces-sos interativos entre comunidade e espaço físico e astransformações decorrentes dessa interação consti-tuem o cerne desse capítulo.

A seguir os autores apresentam um histórico dopovo Xavánte desde o início da colonização até os diasatuais. Este capítulo, além de ser de leitura extrema-mente agradável, dá as chaves para a reconstrução dahistória de povos que não dominam a escrita. Assim,para além das informações preciosas sobre as rela-ções entre os habitantes originais da terra e os euro-peus recém chegados, e os desdobramentos dessa re-lação até hoje, este capítulo tem ainda importânciametodológica para aqueles interessados em empreen-der a recuperação histórica em situações semelhantes.

O quarto capítulo trata da modificações genéti-cas ocorridas entre os Xavánte, utilizando na análisedados empíricos obtidos em diferentes ocasiões ana-lisando diferentes marcadores. A intenção principaldos autores é verificar até que ponto as transforma-ções socioculturais e a interação com o ambiente seencontram impressas no patrimônio genético dessegrupo étnico. Embora o período de observação sejarelativamente curto, a comparação com estudos fei-tos entre outras etnias latino-americanas permiteanálises interessantes para a compreensão dos pro-cessos de saúde-doença.

O quinto capítulo trata da dinâmica demográficados Xavánte. Novamente, trata-se de um exercíciometodológico valioso na recuperação de informaçõespara as quais os registros habituais não fornecem da-dos suficientes. Os aspectos demográficos permitem

identificar claramente os impactos das diferentes fa-ses da história das relações entre a sociedade local e asociedade nacional. Os autos e baixos dessa aproxi-mação se tornam visíveis nas taxas de natalidade emortalidade desse grupo. Pode-se afirmar que a di-nâmica populacional apresenta as cicatrizes desse re-lacionamento.

O capítulo seis é dedicado ao modo de vida dosXavánte, suas atividades produtivas, sua subsistêncianos diferentes períodos da história e algumas tentati-vas desastradas de interferência da sociedade nacio-nal sobre a local. Ainda que se conceda o benefício dadúvida sobre as intenções dos governos nacionais aotentarem modificar os modos de vida dos indígenas,a quantidade e o acúmulo de erros e equívocos cha-ma a atenção. A forma isenta com que os autores tra-tam essas questões permitem aos leitores tirar suaspróprias conclusões, sem interferência de posiçõesmilitantes.

Os três capítulos seguintes dedicam-se mais es-pecificamente aos aspectos de saúde e doença. O ca-pítulo sete apresenta um breve relato das diferentesorganizações dedicadas a fornecer serviços de saúdeaos indígenas desde meados do século XX. Estas in-formações são especialmente úteis no momento emque, mais uma vez, o governo federal parece estarempenhado em modificar as regras do jogo. Nos últi-mos dois anos, vem sendo feito um esforço conside-rável por parte da Fundação Nacional de Saúde (FU-NASA) e dos governos estaduais no sentido de im-plantar os distritos sanitários indígenas que, aparen-temente, são uma forma mais apropriada do que asanteriores para o enfrentamento dos problemas deassistência médico-sanitária aos indígenas. Entretan-to, fala-se na desativação da FUNASA com a devolu-ção da responsabilidade pela saúde indígena à Fun-dação Nacional do Índio (FUNAI), representando as-sim, claro retrocesso não somente na organização daassistência mas também nas tentativas de inclusãodessas etnias na sociedade nacional, respeitadas assuas particularidades.

O oitavo capítulo trata do perfil epidemiológicoentre os Xavánte da aldeia Etéñitépa. Sempre, basea-dos em dados empíricos, os autores traçam o perfildos principais problemas de saúde relacionados coma nutrição e as doenças infecciosas, caracterizando operfil epidemiológico tradicional para populaçõespobres e relativamente excluídas.

No capítulo nove os autores apresentam as pecu-liaridades dos processos de transição epidemiológi-ca, com a sobreposição de novos problemas de saú-de, destacadamente, os processos crônicos metabóli-cos como a obesidade, o diabetes e as alterações nosníveis pressóricos. Os autores apresentam sua críticaao modelo linear da transição epidemiológica, de-monstrando com base em dados empíricos, sua ina-dequação pelo menos à compreensão do processosaúde-doença de grupos étnicos específicos. A com-plexidade resultante das alterações historicamenteproduzidas nas formas de contato entre o local e onacional, mais uma vez se traduz em perfis epide-miológicos de semblantes pouco nítidos, isto é, emfiguras nas quais permanecem antigos problemas ese agregam novos, conferindo dinâmica própria e pe-culiar a cada grupo em particular.

O último capítulo é dedicado a pontuar as princi-pais conclusões dos autores, reforçando aqueles as-

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pectos que melhor permitem evidenciar as relaçõeslocal-nacional, ou seja, a trama que se constrói coti-dianamente entre as peculiaridades e particularida-des de um grupo de indivíduos na construção de suavia material e simbólica, e a sociedade nacional naqual estão inseridos, esta também com as particula-ridades que toda formação social apresenta.

Há inúmeras razões para se ler The Xavánte inTransition: Health, Ecology and Bioanthropology inCentral Brazil dentre as quais gostaria de destacar al-gumas. A primeira razão é a própria construção dotexto, em linguagem clara, correta e agradável. A lei-tura é um prazer tanto pelo estilo quanto pelas infor-mações que o texto traz. A segunda tem a ver com oconjunto de informações, baseadas em estudos em-píricos desenvolvidos ao longo de mais ou menos 50anos, que permitem aos leitores excelente aproxima-ção relativa ao cotidiano desses indivíduos. A terceirarazão é de ordem metodológica.

O texto em questão constitui excelente exemplode abordagem interdisciplinar na qual não se perce-bem justaposições ou simples encadeamentos entrediferentes enfoques. Os autores lograram construirsua abordagem de maneira integrada, harmonizandoos distintos aspectos tornando o texto acessível e in-formativo. Para todos aqueles que procuram, no cam-po da saúde, dar conta da complexidade de seu obje-to de investigação, The Xavánte in Transition: Health,Ecology and Bioanthropology in Central Brazil consti-tui-se em leitura obrigatória.

Finalmente, os pesquisadores cujo interesse in-vestigativo está centrado na compreensão das ques-tões étnicas ou nas desigualdades sociais em saúde,encontrarão nesse texto inspiração e sugestões meto-dológicas imprescindíveis.

A mensagem ética desse texto, assim como a be-leza e a contradição contidas na fotografia da expedi-ção Roncador-Xingu, apontam para a necessidade dese refletir sobre os erros e acertos nessa história daconvivência entre os indígenas e a sociedade nacio-nal no Brasil. Que ambas possam servir de inspiraçãoe alerta para todos aqueles que pretendem com suaciência e tecnologia promover a inclusão das diferen-tes etnias.

Rita Barradas BarataDepartamento de Medicina Social, Faculdade de Ciências Médicas, Santa Casa de São Paulo, São Paulo, Brasil.