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97 Tempo Social; Rev. Sociol. USP, S. Paulo, 11(2): 97-128, out. 1999 (editado em fev. 2000). Reforma agrária o impossível diálogo sobre a História possível JOSÉ DE SOUZA MARTINS O UNITERMOS: reforma agrária, questão agrária, movimentos sociais, governabilidade, Fernando Henrique Cardoso. RESUMO: Os desencontros entre o governo, de um lado, e o MST, a Igreja e as oposições, de outro, quanto à política de reforma agrária, só podem ser compre- endidos se tivermos em conta o que vem a ser a questão agrária no Brasil. Num país em que o grande capital se tornou proprietário de terras, a concepção clássi- ca da questão agrária, e das reformas que ela pede, fica substancialmente altera- da. São essas alterações que propõem as condições e os limites da reforma agrária no país. São elas, também que apontam o desenrolar possível da história brasileira a partir dessa referência estrutural. A reforma agrária se tornou uma reforma cíclica em virtude da, de certo modo, contínua entrada e reentrada em cena de clientes potenciais dessa medida. O fato de que o MST e os sem-terra tenham assumido a iniciativa das ocupações, atuando o governo como suplente para fazer a reforma, não indica a debilidade do Estado democrático para realizá- la. Apenas indica que a sociedade civil, através de organizações e movimentos populares, passou a ter um papel na nova estrutura do Estado brasileiro. A conjuntura histórica e o tempo da questão agrária tema da reforma agrária é, seguramente, um dos mais equivocados nos embates políticos e partidários deste momento no Brasil. Equivocado pelo modo como é comumente proposto em diferentes meios; equi- vocado pela enorme carga de subinformação que o acompanha, pelas descabidas paixões que desperta, pela real ignorância do tema que se manifesta em muitas das opiniões a respeito: todos parecem ter um palpite a dar DOSSIÊ FHC 1 o GOVERNO Professor do Departa- mento de Sociologia da FFLCH - USP

Reforma Agrária O Impossível Diálogo

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    MARTINS, Jos de Souza. Reforma agrria o impossvel dilogo sobre a Histria possvel. Tempo Social; Rev. Sociol. USP,S. Paulo, 11(2): 97-128, out. 1999 (editado em fev. 2000).Tempo Social; Rev. Sociol. USP, S. Paulo, 11(2): 97-128, out. 1999(editado em fev. 2000).

    Reforma agrriao impossvel dilogo sobre

    a Histria possvelJOS DE SOUZA MARTINS

    O

    UNITERMOS:reforma agrria,questo agrria,movimentos sociais,governabilidade,Fernando HenriqueCardoso.

    RESUMO: Os desencontros entre o governo, de um lado, e o MST, a Igreja e asoposies, de outro, quanto poltica de reforma agrria, s podem ser compre-endidos se tivermos em conta o que vem a ser a questo agrria no Brasil. Numpas em que o grande capital se tornou proprietrio de terras, a concepo clssi-ca da questo agrria, e das reformas que ela pede, fica substancialmente altera-da. So essas alteraes que propem as condies e os limites da reformaagrria no pas. So elas, tambm que apontam o desenrolar possvel da histriabrasileira a partir dessa referncia estrutural. A reforma agrria se tornou umareforma cclica em virtude da, de certo modo, contnua entrada e reentrada emcena de clientes potenciais dessa medida. O fato de que o MST e os sem-terratenham assumido a iniciativa das ocupaes, atuando o governo como suplentepara fazer a reforma, no indica a debilidade do Estado democrtico para realiz-la. Apenas indica que a sociedade civil, atravs de organizaes e movimentospopulares, passou a ter um papel na nova estrutura do Estado brasileiro.

    A conjuntura histrica e o tempo da questo agrria

    tema da reforma agrria , seguramente, um dos mais equivocados nosembates polticos e partidrios deste momento no Brasil. Equivocadopelo modo como comumente proposto em diferentes meios; equi-vocado pela enorme carga de subinformao que o acompanha, pelasdescabidas paixes que desperta, pela real ignorncia do tema que

    se manifesta em muitas das opinies a respeito: todos parecem ter um palpite a dar

    DOSSI FHC1o GOVERNO

    Professor do Departa-mento de Sociologiada FFLCH - USP

  • MARTINS, Jos de Souza. Reforma agrria o impossvel dilogo sobre a Histria possvel. Tempo Social; Rev. Sociol. USP,S. Paulo, 11(2): 97-128, out. 1999 (editado em fev. 2000).

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    sobre o assunto, da apresentadora de televiso ao dirigente estudantil, e acham quesua ocupao j os qualifica para opinar e opinar de maneira contundente e defini-tiva. Todos parecem ter respostas, o que inclui no poucos especialistas. So ra-ros, porm, os que tem o fundamental na produo do conhecimento e das propos-tas necessrias soluo dos problemas sociais: as perguntas, base da indagaosria e conseqente e ponto de partida da reflexo objetiva.

    Mesmo nos meios acadmicos, intrpretes tardios, desinformados eestranhos ao tema e rea, com a afoita sede de quem chegou fora de hora,lanam-se no que chamam de sociologia militante na esperana de participarde um confronto que poder fazer histria. Misturam cincia e ideologia,marxismo panfletrio, senso comum e descabidas raivas pessoais. Prestam umgrave desservio aos prprios trabalhadores rurais que, no raro arriscando avida, optam pelo enfrentamento e pelas ocupaes como ltima alternativa parasair da pobreza e viver com dignidade. Minha anlise, neste texto, vai deixar delado essas intervenes e interpretaes oportunistas e deformantes.

    Um balano do estado atual do problema esbarra desde o incio nessemuro pichado de intervenes gratuitas e passionais, derivadas de motivaesinteiramente estranhas ao problema em si e realidade de seus protagonistas maisautnticos. Em meio a um grande nmero de estudos qualificados, alguns de gran-de qualidade, baseados em pesquisas srias e objetivas, h uma maaroca de tex-tos panfletrios que nada acrescentam no conhecimento e na soluo do problema.

    Essa espcie de baderna interpretativa tem prejudicado seriamente aao dos protagonistas do drama agrrio no pas, tanto aqueles que, na socieda-de civil, com razo histrica pedem profunda e ampla interveno na questoagrria, quanto aqueles que, no governo, agem no sentido de concretizar talinterveno. O panfletarismo se junta ao clima de comcio que reduz o problemaa simplificaes que o desfiguram, que lhe retiram a complexidade e a gravida-de e que, portanto, vo progressivamente tornando-o um tema banal.

    Uma reflexo sociolgica sobre o estado atual do problema pedeinicialmente, portanto, uma demarcao do territrio da reflexo a ser feita. Otema proposto do artigo o da questo agrria, o modo como ela se prope naconjuntura atual, que seria a conjuntura do governo de Fernando HenriqueCardoso. Seria um erro bvio imaginar que a questo agrria se confunde comas supostamente diferentes propostas de reforma agrria que esto presentesno cenrio do embate partidrio atual e que tudo se resume a optar por umadelas. Como seria um erro imaginar que a questo agrria foi criada pelo atualpresidente da Repblica ou pelo atual ministro de Poltica Fundiria e que seresume ao discutvel da ao administrativa no mbito do problema fundirio.Como seria um erro, ainda, supor que a questo agrria no tem uma histria,gnese e desdobramentos histricos, sociais e polticos, que marcam e demar-cam seu lugar na histria do presente.

    O ponto essencial e problemtico raramente considerado, mesmo porquem srio e competente, o de que a questo agrria tem a sua prpriatemporalidade, que no o tempo de um governo. Ela no uma questomonoltica e invariante: em diferentes sociedades, e na nossa tambm, surge em

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    MARTINS, Jos de Souza. Reforma agrria o impossvel dilogo sobre a Histria possvel. Tempo Social; Rev. Sociol. USP,S. Paulo, 11(2): 97-128, out. 1999 (editado em fev. 2000).

    circunstncias histricas determinadas e passa a integrar o elenco de contradi-es, dilemas e tenses que mediatizam a dinmica social e, nela, a dinmicapoltica. por isso mesmo alcanada continuamente pelas condies cambian-tes do fazer histria. O prprio ato de intervir na questo, de um modo ou deoutro, numa perspectiva ideolgica ou noutra, j altera a questo agrria. Nos a atenua ou a agrava, como tambm muda-a qualitativamente, define as pos-sibilidades de nela se continuar intervindo, as condies em que tal intervenopode ser feita. A questo , portanto, essencialmente uma questo histrica.

    Embora ela possa se tornar uma questo partidria e poltica, h cir-cunstncias em que nem mesmo se expressa partidariamente, perdida nas miu-dezas de pequenos confrontos muito mediatizados por outras questes ou entono carter difuso que grandes confrontos histricos podem s vezes ter. No Bra-sil, no raro, durante quase um sculo, a questo agrria se expressou por meiode tenses religiosas, de confrontos sangrentos entre o catolicismo popular e ocatolicismo institucional ancorado no aparelho de estado, mesmo com a separa-o entre a Igreja e o Estado da era republicana. Portanto, uma questo agrriaque se torna questo religiosa, que se torna questo poltica, que se torna ques-to policial, que se torna questo militar, como aconteceu em Canudos, no Con-testado e em vrios outros episdios das lutas sociais no campo, incluindo epi-sdios relativamente recentes, do tempo da ditadura. Um balano apropriado doconflito fundirio nas ltimas dcadas nos revelaria que ele apenas um subtemade conflito maior e mal definido entre o Estado oficialmente laico e a Igreja.

    nessa perspectiva que o pesquisador deve preferencialmente traba-lhar, para ter a segurana de lidar com a dimenso apropriada de tempo dosprocessos sociais que examina. Por isso, o tempo de referncia destas conside-raes o tempo da conjuntura histrica, diferente da conjuntura poltica eeleitoral, na qual se movem os partidos e os chamados militantes, mesmo, mui-tas vezes, os militantes de causas humanitrias. Quando se diz, em relao a umtema como este, que um partido no tem proposta alternativa, o que se estdizendo, na verdade, que esse partido no consegue ter uma conscincia de suaao na perspectiva histrica, a perspectiva do tempo longo das grandes trans-formaes sociais e polticas. Ter proposta alternativa no o mesmo que terum propsito proclamado num panfleto ou num programa partidrio. O tempoda conjuntura histrica implica menos julgar aes e opinies de pessoas, e sercontrrio ao que so ou parecem ser e fazem. Implica, isso sim, considerar ascondies e conseqncias estruturais e histricas do que pensam e dizem, oalcance das decises que tomam, os limites dessas aes e as possibilidades deseu alcance definidas pela circunstncia histrica.

    esse o ponto de vista que me permite compreender que uma polticade reforma agrria depende de se conhecer a questo agrria para a qual ela uma resposta. A questo agrria , em termos clssicos, o bloqueio que a pro-priedade da terra representa ao desenvolvimento do capital, reproduo ampli-ada do capital. Esse bloqueio pode se manifestar de vrios modos. Ele pode semanifestar como reduo da taxa mdia de lucro, motivada pela importnciaquantitativa que a renda fundiria possa ter na distribuio da mais-valia e no

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    parasitismo de uma classe de rentistas. No manifestamente o caso brasileiro,ou no o especialmente, embora tambm o seja de um modo indireto.

    Aqui, o grande capital se tornou proprietrio de terra, especialmentecom os incentivos fiscais durante a ditadura militar. Antes disso, em muitasregies do Brasil, grandes proprietrios de terra haviam se tornado empresrioscapitalistas, tanto na regio canavieira do Nordeste quanto na regio cafeeira doSudeste. No se pode explicar a industrializao brasileira a partir do sculopassado se no se leva em conta essa competncia de grandes fazendeiros paraacompanhar as possibilidades histricas de seu tempo. Por outro lado, j naditadura militar, com a poltica de incentivos fiscais, o capital personificadopelo capitalista, por aquele que pode tomar conscincia das contradies queperturbam a reproduo ampliada do capital, foi compensado das irracionalidadesda propriedade da terra como titular de renda fundiria. Essas situaes, que soas do nosso pas, so aquelas em que o capital personificado no se libertou dapropriedade da terra, como aconteceu em outros, na extenso necessria a que acontradio entre capital e terra se manifestasse conscincia das diferentesclasses sociais como oposio de interesses e irracionalidade que bloqueia odesenvolvimento econmico e social (e poltico!).

    Um segundo modo, como o que ocorreu nos Estados Unidos e ou-tros pases, a necessidade de um mercado interno para o capital industrial.Esse mercado pode crescer com o crescimento da populao economicamenteativa, que receba salrios e possa comprar. Se as condies de vida dos traba-lhadores em geral e dos pequenos agricultores so ruins, necessrio que elasmelhorem para que eles ampliem sua entrada no mercado com seu trabalho ouseus produtos. Se eles entram no mercado de produtos ou no mercado de for-a-de-trabalho de modo restrito, reduzem as possibilidades da reproduoampliada do capital em seu conjunto. Por isso, em princpio, a modernizaodas relaes de trabalho e a melhora das condies de vida dos trabalhadoresinteressa, em primeiro lugar, ao prprio capitalista. Este um ponto que pedediscusso: estamos falando da pobreza como empecilho ao desenvolvimentodo capital e, por extenso, ao desenvolvimento da sociedade, ainda que noslimites do capitalismo. Podem ocorrer desvios significativos nessa possibili-dade histrica. Numa economia que est se tornando cada vez mais dependen-te de exportao, a reduo dos preos dos produtos agrcolas essencial naconcorrncia internacional. Na exportao de produtos industriais, o mesmoocorre, na reduo dos custos de reproduo da fora de trabalho representa-dos no s pela alimentao, que em grande parte vem da agricultura.

    Portanto, at mesmo a grave anomalia de uma massa de miserveisvivendo em condies sub-humanas no compromete o desenvolvimento capi-talista. A excluso se tornou parte integrante da reproduo do capital, mas setornou ao mesmo tempo uma anormalidade social (cf. Martins, 1998). Mesmoassim, sobretudo entre tcnicos, h quem fale numa espcie de auxlio estatal pobreza que dispensaria a reforma agrria, custosa, e asseguraria a sobrevivn-cia dos pobres em condies mnimas sem necessidade de pagar o custo degrandes transformaes econmicas e sociais, como a reforma agrria1.

    1 o que nos diz o in-fluente Francisco Gra-ziano, que foi presi-dente do INCRA Ins-tituto Nacional de Co-lonizao e ReformaAgrria: ... nada com-prova que dar um pe-dao de terra para es-sas famlias margina-lizadas seja a nica,nem a melhor soluo,do ponto de vista dointeresse pblico. Tal-vez um bom empregoseja prefervel ao as-sentamento. Ou ento,trat-las com mecanis-mos de poltica social,assistindo-as devida-mente, garantindo-lhesalimentao e sade(Graziano, 1996, p. 19;Graziano Neto, 1998,p. 168). Graziano seesquece, como co-mum entre os que sepreocupam com aquesto social do cam-po de um ponto de vis-ta meramente econ-mico, que a luta pelaterra, da qual deriva aluta pela reforma agr-ria, tambm uma lutapela incluso, pela in-sero social ativa, pro-dutiva, participante ecriativa, na sociedade, luta por dignidade erespeito e no por aqui-lo que na conscinciapopular tido comoesmola.

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    MARTINS, Jos de Souza. Reforma agrria o impossvel dilogo sobre a Histria possvel. Tempo Social; Rev. Sociol. USP,S. Paulo, 11(2): 97-128, out. 1999 (editado em fev. 2000).

    Nesse mbito mais amplo, os sujeitos das contendas relativas ques-to agrria no so, obviamente, pessoas determinadas com nome e endereo,mas sim personificaes dos dilemas e possibilidades de cada momento e dasituao social da pessoa. A conflitividade polarizada no tema da reformaagrria prope que se evite esse territrio gelatinoso do conflito de opinies edos antagonismos partidrios e, freqentemente, eleitorais, para considerar otema tendo como referncia no o governo e menos ainda o governante ou oministro, mas o Estado. A questo agrria est no centro do processoconstitutivo do Estado republicano e oligrquico no Brasil, assim como a ques-to da escravido estava nas prprias razes do Estado monrquico no Brasilimperial. Tanto que o trmino da escravido negra em grande parte decretou otrmino da monarquia. O tempo da questo agrria o tempo longo dos blo-queios, dificuldades e possibilidades a que o Estado faa uma reviso agrriade alcance histrico e estrutural, mais contida ou mais ousada.

    Convm no esquecer de que sendo a questo agrria mais do que aquesto dos antagonismos de classes sociais, tambm uma questo estrutu-ral maior do que a das questes econmicas, a questo da pobreza, a questodas injustias sociais. Uma reforma desse tipo interessa no apenas aos po-bres, como freqentemente se supe. A principal frente de luta e as principaislideranas da luta pela reforma agrria vm da classe mdia, ainda que de umaclasse mdia recente, e no raro de intelectuais que no tm nenhum vnculocom a terra ou a agricultura, razo, alis, das muitas distores que tem alcan-ado o debate poltico sobre o tema.

    Estamos em face de um processo histrico em que claramente inte-resses contraditrios se combinam e foras contrrias se empenham numa certamesma direo bsica. No s grupos populares esto querendo, mais do queuma reforma agrria. Querem uma reviso do direito de propriedade ao contes-tarem na prtica a sua legitimidade. Tambm o Estado, e mesmo setores daselites (como os intelectuais, a classe mdia, setores das foras armadas, as igre-jas) esto empenhados nessa reviso ainda que de diferentes modos, mesmo quese desentendam em relao quilo em que de fato pensam da mesma maneira. Aquesto agrria hoje um conjunto de pontas desatadas desse longo e inacabadoprocesso histrico. nessa perspectiva que pretendo situar a poltica de reformaagrria do governo atual, em funo justamente das mudanas acentuadas queatingem sua definio na quadra histrica presente. nessa perspectiva, tam-bm, que pretendo situar as posies e antagonismos dos contestadores da atualpoltica de reforma agrria. Num caso e noutro, o objetivo confrontar posi-es, orientaes, decises e aes com o que sociologicamente o conjunto depossibilidades histricas para concretizar uma reforma agrria no Brasil.

    No s esto ocorrendo substanciais e significativas mudanas na ori-entao do Estado brasileiro quanto a isso, como tambm a sociedade, e nela osgrupos mais ativamente interessados numa reforma agrria, est passando por umperodo muito rico e muito criativo no que se refere a inovaes sociais. O fato deque as inovaes estejam sendo praticadas por grupos e sujeitos que aparentemen-te se combatem, no exclui evidncias muito claras de encontro e cooperao cri-

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    ativa entre Estado e sociedade para realizar o que pode ser uma importante expe-rincia de reinveno social na histria contempornea do Brasil.

    As ciladas da Histria na fragilizao da questo agrria

    evidente que h no Brasil uma questo agrria. Mas, uma questoagrria que parece distanciada das condies histricas de sua soluo definitiva,porque esta sociedade perdeu as poucas oportunidades histricas que teve pararesolv-la. Temos uma questo agrria administrada, sob controle, em grande par-te porque, mesmo na mxima exacerbao da luta dos que reivindicam a reformaagrria, ela no se revela comprometedora para o funcionamento dos diferentesnveis do sistema econmico e do sistema poltico. Ela tende a aparecer residual-mente como um problema social no referido a uma questo estrutural.

    Para compreender a real natureza dos impasses atuais preciso re-montar gnese da luta pela reforma agrria e s peculiaridades de seus pro-tagonistas. Com a questo agrria ocorreu algo parecido ao que ocorrera como problema da escravido. O fim da legalidade da escravido no Brasil no foifundamentalmente resultado de uma luta dos escravos e sim de uma luta dasclasses dominantes, sobretudo dos chamados liberais exaltados, para que osgrandes proprietrios de terra fossem, eles sim, libertados do nus econmicoe das irracionalidades econmicas do cativeiro. Houve, sim, lutas pessoais egrupais de escravos pela prpria liberdade. Mas, essas lutas nunca conflurampara um projeto coletivo e nacional de libertao dos negros escravizados. significativo que a promulgao da Lei urea tenha ocorrido durante o gover-no de um gabinete Conservador, constitudo por bacharis e grandes proprie-trios de terra. O modo como se deu o fim da escravido foi, alis, o respons-vel pela institucionalizao de um direito fundirio que impossibilita desdeento uma reformulao radical da nossa estrutura agrria.

    A reivindicao da reforma agrria, do mesmo modo, nasceu nos anoscinqenta como reivindicao dos setores esclarecidos da classe mdia urbana,de setores catlicos conservadores e familistas, marcados por moderado e cau-teloso empenho, de alguns setores catlicos de esquerda e de uma frao dasesquerdas laicas. Portanto, mais por um impulso ideolgico e por motivaohumanitria voltada para a soluo das injustias sociais do que, propriamente,por ser expresso de uma inadivel necessidade de mudana. Geralmente, astransies sociais lentas, como as nossas, tendem a chegar fora de hora cons-cincia dos setores mdios desenraizados, que se sentem impelidos, no rarotardiamente, a radicalizar as mudanas para aceler-las. Em parte, a luta pelasreformas de base, entre as quais a agrria, teve essas caractersticas. Minha im-presso, alis, a de que dois grandes problemas nacionais, o da violncia con-tra os posseiros da Amaznia e o do trabalho escravo na mesma regio, cujomomento agudo ocorreu nos anos setenta e nos anos oitenta, s agora chegacom um mpeto defasado conscincia de alguns setores da classe mdia urba-na, que deles no tomaram ampla conscincia no devido tempo.

    Justamente essa origem fora de lugar, na classe mdia, revestiu a

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    MARTINS, Jos de Souza. Reforma agrria o impossvel dilogo sobre a Histria possvel. Tempo Social; Rev. Sociol. USP,S. Paulo, 11(2): 97-128, out. 1999 (editado em fev. 2000).

    luta pela reforma agrria entre ns de uma intensa ambigidade, da qual nose libertou at hoje. Basta ter em conta que sob o mesmo rtulo de reformaagrria havia desencontrados projetos de interveno no direito de proprieda-de, sempre em nome de terceiros, os trabalhadores rurais. Grupos mais do queantagnicos, inimigos, preconizavam a reforma agrria. Uns em nome doconservadorismo. Outros em nome da revoluo. Sem contar que as esquer-das estavam, a respeito, radicalmente divididas. De um lado, havia uma pro-posta de reforma agrria claramente conservadora, sobretudo a mal definidareforma catlica. De outro, havia uma proposta de reforma agrria radical, adas Ligas Camponesas, tambm ela no muito clara.

    A Igreja estava preocupada com a questo social do campo, mais doque com a questo agrria, em posio oposta do Partido Comunista e poroposio a ele. Na linha do conhecido documento pioneiro de Dom Inocncio,bispo de Campanha (MG), de 1950, a Igreja reconhecia o risco poltico dasmigraes, do xodo rural e do desenraizamento, que supostamente lanariamos pobres do campo nos braos dos comunistas nas cidades de destino, comoRio e So Paulo. A Igreja passava a pensar alternativas no sentido da preserva-o da unidade familiar de produo, do trabalho familiar e da famlia, trabalhofamiliar que inclua o trabalho no autnomo dos colonos das fazendas de cafno Sudeste e dos moradores das fazendas de cana de acar no Nordeste, cujacontinuidade era comprometida pelas migraes para o meio urbano.

    A reforma agrria, ainda sem qualquer definio, passava a ser umobjetivo para ela, porm contido e limitado pelo temor de questionar o direito depropriedade e os direitos da classe de proprietrios de terra. Era uma motivaoconservadora e de direita, menos construda em cima de uma prxis social, queainda no tinha lugar, uma espcie de antecipao preventiva, e muito mais deri-vada de um claro antagonismo ideolgico em relao s esquerdas. Justamentepor isso, Dom Inocncio reuniu fazendeiros para produzir sua carta pastoral afavor de uma reforma agrria, com base numa posio claramente anticomunista.

    Uma exceo anmala nas esquerdas, que poderia ter representadoa alternativa de esquerda para a questo fundiria, foi a postura das LigasCamponesas. O socialista Francisco Julio, tambm em oposio ao PartidoComunista e por ele hostilizado, mas igualmente hostilizado pelos catlicos,procurado pelos trabalhadores de um engenho, props que o problema se re-solvesse pela Lei do Inquilinato, que j existia, na qual se enquadravam osdireitos de parceiros, arrendatrios e moradores. Era apenas o prembulo dareforma agrria radical por ele preconizada. Mesmo assim, um radicalismoaqum do que entendiam alguns ser o necessrio. Do que decorreu o extremis-mo de Clodomir Moraes e seu grupo, seu afastamento das Ligas, e a fracassa-da tentativa da guerrilha em Dianpolis (GO). Na base, portanto, uma pro-posta conservadora, campesinista, e a inquietao camponesa como base deum radicalismo poltico na superestrutura. Algo muito parecido com o queocorre atualmente. E na mesma linha, mais adiante, a ao do Partido Comu-nista do Brasil, secesso filochinesa do Partido Comunista Brasileiro, quepreconizava uma via camponesa para o socialismo.

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    Em geral, os autores de hoje se esquecem de que, antes do golpe, osque se inquietavam com os problemas do campo no estavam articulados poruma interpretao unnime de causas e por unnime proposio de projetossociais. Os que se identificavam com as idias do Partido Comunista Brasilei-ro entendiam que tinha precedncia em relao reforma agrria e a ela sesobrepunha a regulamentao das relaes de trabalho no campo. A reformapoderia fortalecer um campesinato cuja condio de classe o levaria para po-sies conservadoras e de direita. Para esse grupo, estvamos no limiar deuma etapa de desenvolvimento capitalista que pedia modernizao das rela-es de produo, viabilizao do trabalho assalariado e transformao dostrabalhadores rurais numa classe operria do campo. Essas concepes per-duraram fortemente entre militantes e intelectuais de esquerda, e ainda perdu-ram, e foi um dos fatores da contestao surda, mais tarde, do trabalho daPastoral da Terra e, at mesmo, um dos fatores do aparelhismo que o atingiu.Hoje estamos em face de uma espcie de esquizofrenia poltica derivada deuma prtica apoiada na realidade do trabalho familiar e de uma ideologia refe-rida a uma classe operria terica, que raramente se confirma na realidade.

    Dessa viso do problema rural resultou, antes do golpe de 1964,uma aliana parlamentar entre a esquerda, os trabalhistas e o que se poderiadefinir como liberais e nacionalistas para viabilizar a lei de regulamentaodas relaes de trabalho. Que se consumou com o que na prtica foi a exten-so das leis trabalhistas aos trabalhadores rurais, supondo-se que isso trans-formaria as atrasadas relaes do colonato no caf, da moradia na cana-de-acar, do arrendamento em espcie e em trabalho e da parceria em relaescontratuais e assalariadas. Era a reivindicao das esquerdas, que raciocina-vam a partir de uma concepo de histria por etapas. A se proclamava asuposta superioridade histrica do trabalho assalariado sobre o trabalho cam-pons e familiar. Foi, assim, aprovado o Estatuto do Trabalhador Rural, em1962, durante o governo de Joo Goulart, que viabilizava a interpretao le-gal dos conflitos no como conflitos fundirios, embora muitas vezes o fos-sem, mas como conflitos trabalhistas, embora nem sempre o fossem.

    Essa vitria das esquerdas cindiu a luta no campo, esvaziando sig-nificativamente o empenho dos que lutavam pela terra ou cuja luta tinha maissentido como luta pela reforma agrria do que por direitos trabalhistas (cf.Gnaccarini, 1980, p. 177; Furtado, 1964, p. 150-151). De certo modo, am-plos setores da esquerda institucional esvaziaram ou ao menos enfraqueceramdefinitivamente a luta pela reforma agrria. Quando, nos anos recentes, emface das bvias evidncias de radicalismo agrrio, esses grupos todos, comvariados graus de relutncia e incerteza, aceitaram finalmente a evidncia dafora poltica do trabalho familiar nas singularidades prprias da sociedadebrasileira, acabaram se defrontando com um impasse criado por eles prprios.A ao das esquerdas, j antes do golpe de 1964, dividiu e enfraqueceu amassa dos trabalhadores rurais, segmentando-a em dois grupos com interes-ses desencontrados: os que lutam pelo salrio e pelos direitos trabalhistas, deum lado, e os que lutam pela terra, de outro. Mesmo aglutinados numa nica

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    MARTINS, Jos de Souza. Reforma agrria o impossvel dilogo sobre a Histria possvel. Tempo Social; Rev. Sociol. USP,S. Paulo, 11(2): 97-128, out. 1999 (editado em fev. 2000).

    corporao sindical, a Contag Confederao Nacional dos Trabalhadores naAgricultura foram raros os momentos de coincidncia de propsitos e detticas dos dois grupos. Com freqncia, alis, tem se falado na conveninciade separar os dois grupos em organizaes distintas.

    Ficava, pois, em grande parte invivel o projeto, muito pouco ela-borado alis, de uma reforma agrria que transformasse as relaes atrasadasdo campo em autonomia camponesa e numa economia familiar moderna. AIgreja cometeu srios erros e relutou comprometedoramente em assumir emtempo a reforma agrria como meio apropriado de poltica social que assegu-rasse s suas bases camponesas o direito sobre a terra, pois essa reforma acolocaria numa relao conflitiva com os grandes proprietrios de terra, dosquais era uma aliada histrica.

    Antes que a Igreja firmasse um ponto de vista oficial e uma posiodoutrinria a favor da reforma agrria, o que s se daria em 1980, com odocumento Igreja e Problemas da Terra, depois de um lento amadurecimentode sua experincia de pastoral da terra, a ditadura teve dezesseis anos paradesmantelar os quadros das esquerdas que atuavam no campo. E sobretudopara concretizar a prpria interveno do Estado no sentido de promover ealicerar uma aliana entre terra e capital que reduzia o alcance de qualquerreforma agrria porque retirava do capital a necessidade de incluir em seuspropsitos polticos o interesse por ela. Aliana cimentada, tambm, no planopoltico mediante a represso policial e militar que promoveria uma limitadareforma agrria dentro da ordem instituda pela ditadura. Aliana garantidapela poltica de incentivos fiscais e de subsdios para a converso das empre-sas urbanas (indstrias, bancos, empresas comerciais) em proprietrias de terra.Essencialmente, o golpe de Estado assegurara que a propriedade da terra, isto, a renda fundiria, continuaria sendo um dos fundamentos da acumulao edo modelo capitalista de desenvolvimento no Brasil. Portanto, um capitalis-mo discrepante em relao ao modelo dominante nos pases hegemnicos.

    Desde 1964, justamente em face dos impasses polticos resultantesda questo agrria, que levaram ao golpe, o Estado brasileiro criou um apara-to institucional para administrar a questo fundiria, de modo a que ela nocomprometesse e no comprometa os planos nacionais de desenvolvimentoque a tm como um dado secundrio.

    No houve reforma agrria em lugar algum em que ela no se apre-sentasse no centro dos impasses histricos. E estar no centro dos impasseshistricos depende da prpria histria e das contradies sociais e no dovoluntarismo poltico de grupos, partidos ou pessoas. Mesmo em 1964, oproblema fundirio no respondia sozinho nem principalmente pela crise po-ltica. No Brasil de hoje, a questo agrria , certamente, uma das fontesmediatas dos problemas sociais, mas no a fonte imediata. Este no tem semostrado como o momento histrico de uma reforma agrria que ponha radi-calmente em questo as origens das nossas injustias sociais e que propicieuma reviso radical dos nossos rumos histricos. As circunstncias histricase as composies polticas, mesmo e sobretudo das oposies, no apontam

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    nessa direo. No o justamente porque os protagonistas de uma eventualreviso de curso histrico se dividiram num passado no muito distante, comomencionei. As faces atualmente em contenda ideolgica e partidria no sederam conta disso e continuam atuando, especialmente as oposies, como sel atrs, os termos da emergncia poltica da questo agrria no tivessemsido definidos, demarcando assim o seu lugar histrico limitado nos temposque se seguiram e em nossos dias.

    A inquietao no campo produziu, portanto, em mbitos antagnicos,j a partir dos anos cinqenta e incio dos anos sessenta, essas duas intervenesno processo poltico que redefiniram profundamente os rumos histricos da socie-dade brasileira e a possibilidade de mudanas a partir do campo e da questoagrria: o enquadramento legal diferenado da questo da terra e da questo dotrabalho (que, de fato, desde a Lei de Terras, eram uma nica e inseparvel ques-to), por iniciativa das esquerdas; e a converso macia do grande capital emproprietrio de terra, por iniciativa da direita. Essas duas grandes transformaeshistricas das ltimas dcadas bloquearam, talvez para sempre, a possibilidade deuma reforma agrria referida dimenso clssica da questo agrria, a do impassehistrico que inviabiliza o desenvolvimento do capitalismo.

    O impasse histrico, a contradio entre terra e capital, que susten-tava a luta remanescente pela reforma agrria, se resolveria pelo caminho ines-perado e pelo antimodelo de um capitalismo rentista. Para administrar e con-trolar os problemas sociais e polticos que pudessem advir dessa opo, oregime militar editou o Estatuto da Terra e promoveu a reforma constitucionalque tornaria aquela reforma agrria possvel. O prprio golpe de Estado sela-ra de vez no s a modalidade de reforma agrria politicamente tolervel, mastambm seu lugar limitado nas transformaes histricas futuras, o que aConstituio de 1988, editada com livre e clara participao das esquerdas, econtra sua vontade, limitou mais ainda2.

    No , portanto, por acaso que o confronto atual entre as oposiese o governo esteja profundamente marcado por questes inessenciais. Umadelas o empenho do MST, da CPT e de vrios intelectuais de esquerda nareinveno da reforma agrria. Uma boa parte do discurso dessas agncias demediao hoje dedicada ao conceito de reforma agrria e praticamente nada dedicado questo agrria, embora muito se fale na reforma agrria, pro-priamente dita3. O que a questo agrria no Brasil de hoje, afinal de contas,que justificaria a necessidade de uma reforma agrria e qual reforma agrria?O empenho muito mais acentuado na resposta a um problema que se supedefinido do que na pergunta que poderia definir o problema a ser resolvido.

    Qualquer ato do governo em relao reforma agrria questionadoem nome do fato de que no se trata de reforma agrria. Autores e militantesdizem com freqncia que a regularizao fundiria da situao dos posseirosna extensa e complicada regio amaznica e no centro-oeste no reforma agr-ria e no deveria entrar nas estatsticas oficiais da reforma. Estranhssima inter-pretao. Todo o atual aparato institucional das oposies para lutar pela refor-ma agrria nasceu, floresceu e se consolidou com as sangrentas lutas dos possei-

    2 Praticamente a nica

    derrota social que ocor-reu na Constituinte foina questo agrria, poisem todos os outrositens houve avanos(Stedile & Fernandes,1999, p. 67).

    3 A necessidade de, ao

    falar de reforma agr-ria, ter que conceitu-la ao mesmo tempo,como ocorre com mi-litantes e especialistas,j em si mesma umaindicao do terrenoimpreciso em que me-dram antagonismos econtestaes que nose fundam na prpriaquesto agrria e quese deslocam para oterreno mais comple-xo do questionamentode legitimidades (cf.Stedile & Fernandes,1999, p. 157 e ss.;Fernandes, 1998, p. 2;Abelm & Hbette,1998, p. 246; Carnei-ro et alii, 1998, p.267). Convm ter emconta que, para ques-tionar legitimidades eafirmar a prpria su-posta legitimidade, necessrio ganhar elei-es majoritariamentee com margem sufici-ente para propor alte-raes radicais na or-dem legal e poltica.

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    ros, sobretudo da Amaznia Legal, para terem seu direito terra de trabalhoreconhecido e legalizado. As grandes lutas pela terra nos anos sessenta e setentae ainda nos anos seguintes foram fundamentalmente lutas pela regularizaofundiria. Ento, as oposies ditadura, a Igreja (e no s a CPT) e a Contagdefiniam essas regularizaes como reforma agrria e clamavam por ela combase no Estatuto da Terra outorgado pela ditadura militar.

    De fato, a regularizao fundiria no Brasil , na maioria dos casos,legtimo ato de reforma agrria. Apenas quem no conhece a realidade socialdo campo pode supor que a regularizao mero ato administrativo sem mai-or alcance. A sofrida e sangrenta resistncia dos posseiros sua expulsoviolenta da terra para beneficiar grileiros e latifundirios e viabilizar a polticade consolidao da aliana da terra com o capital, fator de esvaziamento dareforma, imps ao Estado brasileiro nos anos mais difceis e repressivos daditadura a necessidade de atenuar e redefinir parcialmente o seu projetofundirio. Foi o que salvou o pas de se transformar num territrio de enclavesdo poder absoluto do capital latifundista. Esquecer disso ou no saber disso,desqualifica qualquer anlise pretensamente crtica da reforma agrria emandamento. A regularizao da situao fundiria dos posseiros de extensasregies do pas foi e um legtimo ato de reforma agrria porque impe limi-tes ao processo expropriatrio que daria ao pas uma estrutura fundiria mui-to mais concentrada e latifundista do que a atual. Chamo a ateno para aproliferao de municpios e cidades onde essa resistncia ocorreu, conse-qncia de aes que impuseram limites ao enclavismo do latifndio.

    Um segundo questionamento da ao governamental o daimpugnao da poltica de assentamentos sob o pretexto de que assentamentono reforma agrria. Ora, assentamento a forma da redistribuio da terra,que em que consiste, no essencial, qualquer reforma agrria. Reforma agr-ria todo ato tendente a desconcentrar a propriedade da terra quando estarepresenta ou cria um impasse histrico ao desenvolvimento social baseadonos interesses pactados da sociedade. Pacto que s se torna eficaz atravs damediao dos partidos polticos e no mbito do possvel. Isto , no mbito dasconcesses que as foras em confronto possam fazer para viabilizar uma trans-formao institucional e social necessria e inadivel em favor do bem co-mum. E no em favor dos interesses particularistas de uma classe, ou fraode classe, ainda que beneficiando-a de algum modo, seja ela de pobres ou dericos. Quando os partidos no conseguem chegar a um acordo em nome dasociedade para viabilizar uma reforma desse alcance, abre-se o caminho paraa revoluo. Mas, a revoluo no depende de irritaes pessoais. Tambmela depende de um consenso bsico a respeito do que necessrio, mas setornou invivel pela via da negociao. Quem se recusa negociao desde oincio da proposio de um problema poltico, no s no viabiliza seu proje-to por caminhos institucionais como no o viabiliza por caminhos revolucio-nrios. o que se chama de voluntarismo.

    Um terceiro questionamento da ao do governo diz respeito aosnmeros da reforma agrria. O bate-boca em torno desse tema uma clara

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    expresso do desenraziamento do tema da reforma agrria. Considerar assen-tamentos todos os casos em que a famlia se credenciou para receber um ttulode propriedade de terra inflaciona os nmeros do xito governamental semevidenciar, como necessrio, a diversidade de situaes problemticas quepedem ao governo uma ao de poltica fundiria. A explicitao dessa diver-sidade, alis, j obrigaria o MST e a Igreja a melhorarem os seus nmeros erevelaria mbitos de atuao diversificada das agncias de mediao em que aqualidade da sua ao claramente desigual e at insatisfatria.

    Os nmeros de outras agncias de mediao tambm tm fragilida-des que em nada ajudam na luta em favor dos injustiados do campo. Utili-zam um modo de calcular a clientela potencial da reforma agrria que repeteos erros de procedimento similar adotado pela Contag durante toda a ditadu-ra. O modo como a Contag utilizava os dados do censo introduzia um visbvio no nmero de vtimas do regime fundirio: somava o nmero de assala-riados, ao de posseiros, arrendatrios e parceiros e ao de proprietriosminifundistas. No clculo dos assalariados usava os dados do censoagropecurio, sem levar em conta a rotatividade da mo-de-obra agrcola e ofato de que cada trabalhador , provavelmente, nesse censo, contado vriasvezes. Chegava a um nmero fantstico de mais de uma dezena de milhes depessoas que supostamente precisavam e pediam uma reforma agrria.

    O fato de que os nmeros de assentamentos e regularizaes nogoverno de Fernando Henrique Cardoso ultrapassem os trezentos mil no medesatisfatoriamente a demanda de terra por parte do agricultor familiar, pois onmero de sem-terra nas ocupaes no diminui. De qualquer modo, h umnico nmero realista, que o do prprio MST, muito aqum desses nmerostodos. Em termos reais, a efetiva demanda por reforma agrria constitudapelos sessenta mil sem-terra acampados nas ocupaes. evidente que issono quer dizer que o problema social da terra se limite a eles. Mas, so elesque expressam acima de qualquer dvida uma demanda por reforma agrriaurgente. intil dizer que h 4,5 milhes de famlias sem-terra em todo oBrasil, se apenas cerca de sessenta mil assumem essa identidade. Isso o queconta politicamente. No mnimo estamos diante de uma demanda diversificadade reforma agrria, que reflete as diversidades regionais do pas, o que podeexplicar a tambm diversificao das agncias de mediao e o aparecimentode vrias delas que preferem encaminhar suas reivindicaes por dentro daspossibilidades institucionais.

    Apesar dos assentamentos e regularizaes crescentemente reali-zados, h tambm uma renovao cclica crescente da clientela de reformaagrria. Portanto, essa clientela no procede exclusivamente daquilo que podeser indicado por estatsticas que se referem, excetuadas a dos assentamentosrecentes e a dos acampados, a um passado em que esse problema cambianteera diverso do que atualmente. Raramente, os dados estatsticos de refern-cia para consideraes sobre o presente tem menos de dez anos, quando ascoisas eram bem diversas do que so hoje e quando a ao do Estado era bemmodesta em comparao com a atual.

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    A reforma agrria um tema poltico que se prope em termosqualitativos e no em termos quantitativos. No o nmero de desapropria-es ou o nmero de assentamentos em terras desapropriadas ou compradasque definem o perfil da reforma agrria brasileira, sua justeza ou no. O es-sencial que haja um setor pondervel da sociedade reivindicando a amplia-o do lugar da agricultura familiar no sistema econmico e que em parte essaagricultura familiar esteja nas mos de pessoas que se ressocializaram na lutapela reforma agrria e nela se politizaram. o que assegura no campo e nointerior a diversificao das oportunidades de trabalho e a modernizao nos econmica, como tambm das mentalidades e das relaes sociais. Mesmoque a referncia ideolgica seja equivocada e insubsistente, posta alm darealidade histrica de quem luta pela reforma ou por ela alcanado. umadescabida perda de tempo essa querela sobre nmeros que, tanto num ladocomo no outro, representam algo diverso do que est sendo discutido.

    evidente que o MST, com apoio da Igreja, tem uma proposta dereforma agrria em que a sua forma difere profundamente da forma que lhe do Estado brasileiro desde o Estatuto da Terra e, pode-se dizer, desde a Lei deTerras de 1850. A reforma preconizada pelo Estado esteve longamentesubjugada, e no s agora, pelo princpio jurdico de que a propriedade daterra neste pas propriedade individual ou de uma associao de indivduos.Passa, portanto, por um direito individual e no por direitos coletivos ou co-munitrios, que so os que do sentido s propostas do MST e da Igreja, maisnaquele do que nesta. Foi somente em 1980, que a CNBB em seu documentoIgreja e Problemas da Terra reconheceu e pediu o reconhecimento de umdireito costumeiro muito presente entre os pobres de amplas regies brasilei-ras, que conflitava com o direito dominante e os desfavorecia nos confrontoscom a justia oficial. A Constituio de 1988, de algum modo incorporou essereconhecimento. Abriu caminho para um reparo parcial, embora tardio, dasinjustias fundirias que decorreram do direito absoluto de propriedade im-plantado pela Lei de Terras. Esse direito anulara o direito costumeiro fundadono anterior regime de sesmarias, um direito baseado na justa concepo deque o trabalho e a obra do trabalho tm precedncia moral em relao aosprivilgios de um direito de propriedade fundado no poder ou na compra e navenda. Ao menos, abriu um leque de alternativas para uso social do solo.

    A eficcia das intervenes do MST, e sua extraordinria prtica dereinveno social nos assentamentos em que est presente, tem se beneficiadoamplamente dessa conquista, embora seus dirigentes e seus militantes no osaibam. A que se junta a abertura de canais de cooperao do Estado, que areforam ainda mais nesta conjuntura histrica de fortalecimento da socieda-de civil e seu protagonismo. Alm do extenso nmero de assentamentos eregularizaes, a cooperao tcnica e creditcia, mesmo que na oscilante eat insuficiente disponibilidade de crditos. O que ao mesmo tempo mostraque essas alternativas so inteis se a reforma agrria ficar exclusivamentenas mos de tcnicos e burocratas pblicos, pois so alternativas que depen-dem de uma ao direta da sociedade e de uma mstica de inovao que o

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    empregado do Estado raramente tem. Nos assentamentos, o trabalhador fami-liar movido por essa mstica pode ousar alm do imaginvel pelo racionalismoformal e burocrtico de tcnicos e funcionrios governamentais.

    Portanto, qualquer que seja o nmero de famlias assentadas oucuja posse de terra foi regularizada, que ultrapasse o nmero dos acampados,representa um ganho histrico na luta pela reforma agrria, pois representaincluso de pessoas no mbito do direito e do contrato social, incluso deexcludos. Representa, tambm, incluso na alternativa da agricultura famili-ar com apoio institucional do Estado e a criao de uma situao social quetorna amplamente viveis as inovaes sociais propostas pelos beneficiriosem nome da mstica acima referida e com base no protagonismo histrico daprpria sociedade civil. Nesse plano, o governo se situa adiante da reivindica-o popular ativa. Ao mesmo tempo, a estabilidade do nmero de acampadosque reivindicam assentamento denuncia insuficincias da poltica fundiria,pois nos fala de uma contnua recriao de uma forma perversa de pobreza,que a excluso e a privao da insero ativa nas possibilidades sociais eeconmicas das novas tendncias histricas.

    J o desencontro de opinies quanto ao que deva e como deva ser areforma agrria, sobretudo entre os insatisfeitos com a reforma, nos pe diantede uma pobreza de conscincia histrica que decorre da desinteligncia entre aprtica e a teoria dessa prtica. Este ltimo , sem dvida, o mais grave dosproblemas, pois, em nome das paixes e dos interesses partidrios e eleitoraisde uma classe mdia profundamente dividida e amplamente desprovida de cons-cincia histrica, dificulta, restringe ou mesmo inviabiliza um servio aos po-bres num momento dramtico da economia mundial. Uma classe mdia cujoantagonismo intransigente em relao ao que vem sendo feito no mbito dopossvel , na histria de nosso pas, muito mais expresso de uma postura jantiga de tutela iluminista dos pobres e desvalidos, muito mais resqucio de umacultura de tutela gestada na casa-grande, muito mais expresso de uma mentali-dade de culpa, pena e caridade do que de uma mentalidade revolucionria.

    A fabricao da Histria na disputa de legitimidades

    O desencontro de interpretaes sobre os nmeros da reforma agr-ria, entre o entendimento que deles tm o MST, a Igreja e o PT, de um lado, eo entendimento que deles tem o governo, de outro, revela um territrio defico de grande importncia sociolgica e poltica para a compreenso dosconfrontos atuais em relao ao tema. Essa uma fico reveladora do que ,no conjunto, o embate entre um lado e outro. A compreenso desse conjunto fundamental para situar e definir o estado da questo agrria e da reformaagrria possvel nesta conjuntura histrica. Como mostrei antes, os nmerosutilizados no nos indicam a natureza e o tamanho do problema. Sobretudo,no nos indicam quem so os verdadeiros sujeitos da luta pela reforma agr-ria. Essa parece ser a grande dificuldade do MST e da Contag, e dos que osapiam, e , ao mesmo tempo, a grande dificuldade do governo. Temo que a

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    resida um fator de afastamento potencial entre essas agncias de mediao daluta pela terra e os reais protagonistas dessa luta.

    Uma outra expresso do carter ficcional dos nmeros a fico daHistria fabricada, em que agncias ou grupos de mediao da luta dos traba-lhadores rurais buscam legitimidade para sua justa interveno na converso daluta pela terra em luta pela reforma agrria. Essas agncias tm uma concepodifusa do processo histrico sobre o qual incide a sua prtica. No uma con-cepo fundada diretamente em sua rica experincia nem concepo fundadaem boa teoria. Antes, concepo que resulta de mediaes ideolgicas utiliza-das como suporte de uma interveno em que o protagonista real no tem condi-es histricas de se interpretar diretamente. Esse sempre um complicado temana histria das lutas camponesas. Est relacionado com o fato de que as media-es interpretativas da luta pela terra so realizadas por agentes de classe mdiae a ao se apia numa viso do processo histrico que prpria dos setoresmilitantes e radicais dessa classe e no do campesinato4.

    No meu modo de ver, os intelectuais orgnicos diretamente envol-vidos na luta pela reforma agrria no s, no geral, partidarizaram sua visodo problema, a partir de sua prpria insero de classe, o que j umcomplicador do entendimento dos confrontos atuais. Mas, tambm, estoempenhados em criar um senso comum que promove radical reviso da hist-ria da sociedade brasileira com o objetivo de legitimar a luta poltica de queparticipam. Esperam com isso legitimar historicamente o pleito da reformaagrria e o resultado acaba sendo exatamente o oposto. fcil identificar emseu discurso categorias referidas necessidade de uma reviso histrica queatribua aos pobres um lugar central na histria social do pas, mesmo que custa de distores bvias. Esse revisionismo populista no se limita aos tra-balhadores rurais. Por conta das mesmas mediaes de classe mdia, ele seestende aos grupos tnicos e raciais, como os ndios e os negros e se estende aoutras classes sociais, como a classe operria. Estou inteiramente de acordocom a necessidade epistemolgica de uma reviso do que se sabe sobre olugar social das diferentes categorias sociais no processo histrico. Mas, es-tou inteiramente em desacordo com a ideologizao dessa reviso, que deveser feita com critrios cientficos rigorosos.

    Os resultados da reviso ideolgica so melanclicos. Os militan-tes negros fetichizam a histria de Palmares e omitem informaes importan-tes para que se compreenda porque de fato as populaes escravas neste pasnunca conseguiram realizar uma insurgncia que as tornasse ativas protago-nistas de transformaes sociais que as beneficiassem. Omitem os conflitosentre etnias negras, omitem as enormes diferenas culturais entre essas etnias,omitem o envolvimento de etnias inimigas na captura, escravizao e vendade negros de outras etnias aos traficantes brancos, omitem que em Palmarestambm havia escravido e que, por isso, a longa luta ali desenvolvida nadatinha a ver com os princpios da cidadania proclamados mais de um sculodepois pela Revoluo Francesa. A concepo de liberdade que os palmarinosconheciam e praticavam no era muito diferente da relativa liberdade das con-

    4 Estou utilizando a pa-

    lavra campesinatoporque designaoincorporada, pela viapoltica, ainda queindevidamente, aovocabulrio correnteno trato da questoagrria.

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    cepes dos senhores de escravos, uma liberdade circunscrita aos limites deum estamento, apoiada, portanto, em desigualdades sociais profundas.

    O mesmo se pode dizer de Canudos. J ouvi um professor univer-sitrio afirmando num documentrio que a luta de Canudos era uma lutasocialista e igualitria, pela socializao da propriedade da terra. E ouvi,tambm, o professor Jos Calasans, competente especialista na histria deCanudos, contrapondo-se a essa esdrxula interpretao com ceticismo, ci-tando nominalmente moradores e participantes da guerra que eram comerci-antes e proprietrios. Sem contar que a luta de Canudos foi em grande parteuma luta camponesa, mas no foi diretamente uma luta pela terra, que l notinha o menor sentido. Canudos foi uma guerra religiosa, em que os mora-dores tiveram como inimigos e algozes o Estado e a Igreja. Tanto um quantooutra, de diferentes modos, se envolveram no desencadeamento da guerraporque estavam divididos por suas prprias crises: o Estado e seurepublicanismo de cpula, recente e incerto; a Igreja e os problemas inter-nos derivados da romanizao. Sobretudo, por um e por outra Canudos eraconsiderado um perigo poltico e um perigo religioso. Sem contar que ossertanejos de Canudos no declararam guerra a ningum: foram atacados,como tem acontecido em todas as lutas camponesas deste pas, lutas passi-vas e defensivas. Canudos foi resultado do grande desencontro que separa,ainda hoje, neste pas, as elites do povo, desencontro que aparecefreqentemente entre mentores e povo nas lutas recentes pela terra. As eli-tes polticas e sua massa, a classe mdia, no tm a menor compreenso doscdigos que explicam o mundo e regem a vida dos pobres no Brasil. Indciodo ainda forte carter estamental de nossas classes sociais. Isso vale tantopara os setores da elite que esto nos movimentos sociais quanto para ossetores da elite que esto no outro lado, no Estado5.

    Um dos resultados desse desencontro tem sido o da extemporneatomada de conscincia de que a histria do pas uma histria de injustiassociais acumuladas, de violncias reais e simblicas incorporadas na rotinade vida dos trabalhadores do campo e da cidade. E outro resultado a cons-cincia maniquesta desse processo, particularmente clara nos confrontosrelativos questo agrria.

    No meu modo de ver, por essas razes, os grupos de mediaoconcebem a questo agrria, tardiamente, como se ainda fosse predominan-temente uma questo estrutural e histrica. Essa concepo se baseia emvrios deslocamentos, que tm a ver com o mtodo de leitura da realidade.Usam um mtodo que acumula, que soma, informaes histricas. medi-da em que mais informaes so colhidas sobre a histria dos pobres comose elas se agregassem para constituir um tipo humano, um pobre sempreigual e sempre o mesmo ao longo da histria, o que uma abstrao. Essepobre no existe, no real nem tem personalidade poltica. Desse modo, ahistria aparece como uma soma; no como um movimento de tenses edesencontros, um contraditrio processo, uma sucesso de momentos, emque a bondade e a maldade (se que se pode falar assim)

    5 Marcelo Sampaio Car-

    neiro et alii, em seuestudo sobre a reformaagrria no Maranho,insistentemente cha-mam a ateno para ogrande desencontrocultural que h entretcnicos do governo eassentados, sublinhan-do que os tcnicos socompletamente igno-rantes acerca do clcu-lo campons no quetoca produo paraautoconsumo e paracomercializao (Car-neiro et alii, 1998, p.275). Convm ter emconta o risco de igno-rncia semelhante dooutro lado, o dos inte-lectuais que apoiam aluta pela terra e se em-penham na causa daemancipao dos po-bres da terra. O proble-ma mais comum o doresgate etnogrfico decategorias do pensa-mento popular sem ocorrespondente resgateda lgica camponesamediadora das possibi-lidades do processohistrico, o possvelprprio da dialtica,sem o que camos numreducionismo que com-promete seriamente ospropsitos do apoio eda identificao.

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    intercambiam-se entre categorias sociais, conforme a circunstncia. Issonos impede de ver que no processo reprodutivo de uma sociedade profunda-mente marcada por injustias, a reproduo s possvel com algum graude conivncia da vtima cooptada pelas circunstncias e pelas prprias ur-gncias da vida. A Histria no apenas um contnuo processo de rupturas., tambm, um processo de contnuas recriaes e reiteraes.

    No campons de hoje j no subsiste o campons do passado, senocomo um conjunto de superaes. Quando se fala em 500 anos de injustia,cria-se um slogan vazio baseado nessa epistemologia da acumulao, portanto,baseado numa concepo esttica da histria. Esttica e quantitativa, em que asquantidades so interpretadas ao contrrio do que so, o que prprio do racio-cnio conservador. No h a uma histria da prxis, mas uma anti-histria,uma histria que tem apenas vtimas e no agentes ativos da transformaosocial. Mesmo silenciado e mesmo por vias indiretas o homem comum tem sidoum protagonista da Histria. Sem essa compreenso, a luta poltica em nomedos pobres do campo se torna um equvoco e at um engodo.

    Nesses grupos de mediao, nota-se uma tentativa de transformarnum corpo ideolgico coerente o que um conjunto de resduos de conscin-cia e de possibilidades prprios de diferentes momentos histricos em quetais possibilidades no se consumaram. Uma petrificao ideolgica que pre-cisa ser explicada e superada, se queremos de fato nos comprometer com odestino dos pobres. A substancializao dessas sobrevivncias s podem serexplicadas pela desconexo entre prtica e teoria. Elas se corporificam numextenso antagonismo maniquesta, o que talvez explique sua persistncia sema necessidade da verificao na prxis. Estando postas em termos muito ge-rais, elas se confirmam tanto quando as reivindicaes so atendidas quantoquando no o so, na medida em que se propem em termos de uma espciede luta entre o bem e o mal. Esse maniquesmo cultural bem caractersticodo nosso senso comum e de nossa cultura popular, uma cultura de excludnciaque, ao mesmo tempo, gera o conformismo maniquesta e simplificador, quejustifica tanto os ganhos quanto as perdas.

    A durabilidade em geral curta dos movimentos sociais e, entre ns,sua mais ou menos rpida converso em organizaes, talvez se explique poressa dinmica redutiva, que no cobra da ideologia a necessidade de sua verifi-cao contnua na prxis. Portanto, um discurso ideolgico que, a despeito deseu radicalismo, se conforma com uma prxis aqum das metas ideolgicas e,portanto, se dilui na dimenso propriamente reprodutiva (e conformista) dosprocessos sociais. Trata-se de um falso radicalismo. Por isso, comporta a congriesurrealista de orientaes tericas discrepantes, antagnicas e desencontradas:do personalismo catlico de Mounier pseudo dialtica do estruturalismo tomistade Althusser, um estruturalismo mecanicista e antidialtico que busca coernci-as formais entre estrutura e superestrutura e no a incoerncia revolucionriados descompassos histricos que fecundam a prxis e a teoria.

    Os que lutam pelos trabalhadores rurais querem uma reforma agr-ria confiscatria e punitiva para o latifndio. Esse certamente o ponto que

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    de modo mais claro revela uma certa anulao da concepo de histria. Nosentido de que os dbitos do passado devem ser pagos agora. O latifndio dopassado, porm, era outra coisa. Como mostrou Caio Prado Jr., a fazenda eraum mundo, uma comunidade de relaes entre estamentos e entre etnias, umaforma peculiar de auto-suficincia, de explorao e desigualdade, permeadapor uma violncia singular. Hoje o latifndio renda fundiria, fonte de umtributo social ao proprietrio privado de terra, reserva de valor, instrumentode interveno especulativa na economia. o presente que justifica a reformaagrria e no o passado. Li recentemente, no ttulo de um livro sobre o tema, aexpresso revanche camponesa. Portanto, uma certa idia negativa de vin-gana, uma negao passiva e imobilista, mas no a negao da negao pr-pria da dialtica das superaes e da revoluo. Esse o complicado dbitoterico que informa o confronto entre MST e Estado, um dbito que no afir-ma a positividade da sociedade contra o Estado, mas apenas a particularidadede um grupo social circunscrito.

    Isso aparece, tambm, na idia de 500 anos de resistncia, em modanestes dias, como se no houvesse nenhuma diferena entre os momentos his-tricos, como se os camponeses de hoje estivessem h quinhentos anos espe-rando por justia. E os ndios tambm. Os injustiados morreram e seus des-cendentes j no tm condies nem de perdoar nem de receber a justa com-pensao moral e material pelas injustias sofridas, das quais resulta a situa-o em que se encontram. Mudou, tambm, a prpria concepo de justia,sem contar que era outra a idia que eles prprios tinham dela. Em nenhummomento se leva em conta que os camponeses que hoje majoritariamente lide-ram o MST so originrios do Sul, descendentes de imigrantes, no raro nopassado envolvidos no massacre das populaes indgenas na disputa pelaterra, como aconteceu em Santa Catarina nas lutas de colonos contra osXokleng6. As histrias recentes de Rondnia (do confronto com os Suru e osUru-eu-wau-wau) so histrias de conflitos entre colonos descendentes deimigrantes do sul e do sudeste e populaes indgenas frgeis e desampara-das. E o prprio MST tem sua raiz imediata na expulso dos colonos de as-cendncia europia pelos ndios Kaingang de Nonoai, cujas terras arrenda-vam da Funai mediante pagamentos nfimos que no redundavam no bemestar dos ndios, impedindo que os prprios ndios as cultivassem.

    , portanto, necessrio compreender a Histria como ela , comoprocesso contraditrio em que o negativo e o positivo se opem, se alternam,se combinam e se superam na produo do novo: novo momento, nova situa-o, novas possibilidades. O campesinato do sul tanto produziu o colono quemassacrou ou explorou ndios at recentemente, quanto, no perodo relativa-mente recente, produziu os agentes da luta pela terra e pela reforma agrria,quanto produziu ainda a intelectualidade orgnica em que se constituem oscleros brasileiros, majoritariamente originrios do sul e de famlias campone-sas, responsveis pela admirvel linha de pastoral social de catlicos e luteranos.Desconhecer essas contradies no ajuda nem um pouco a firmar uma legti-ma bandeira de reivindicao social. Essas contradies so justamente

    6 Joo Pedro Stedile,em seu depoimento aBernardo MananoFernandes sobre oMST, relembra a im-portncia da expulsode 1.200 famlias dearrendatrios brancosda reserva de Nonoai,pelos ndios Kaingang,nos episdios precurso-res do surgimento daorganizao. E subli-nha que os expulsospunham a culpa de suasituao nos ndios (cf.Stedile & Fernandes,1999, p. 25-26). Elesocupavam as terras dosndios, que viviam namisria, pagando Funai um nfimo arren-damento.

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    MARTINS, Jos de Souza. Reforma agrria o impossvel dilogo sobre a Histria possvel. Tempo Social; Rev. Sociol. USP,S. Paulo, 11(2): 97-128, out. 1999 (editado em fev. 2000).

    indicativas de como as pessoas e os grupos sociais, ao longo das geraes,podem se transformar profundamente em direo a um ser humanocrescentemente humanizado, emancipado e dotado de grande senso de justia.

    No ambiente que d sentido atuao da CPT e do MST e ao seuoposicionismo, tem havido uma busca de compensao para essas omisses noschamados pedidos de perdo. Como o da CNBB, recentemente, que pediu per-do pela complacncia e conivncia da Igreja com a escravizao de ndios enegros, pedido que se materializar em cerimnias e rituais previstos para o ano2000, o ano do Jubileu. Pode-se compreender a importncia do gesto simblico.Mas, justamente um gesto que anula o sentido da histria, que atribui aosprotagonistas do passado o pecado do massacre e da escravizao. Mas, algumpoderia dizer que a Igreja continua fazendo trabalho missionrio entre os ndiose que a anulao cultural do outro continua em muitos de seus setores. Emborase deva reconhecer que, com a Igreja ou sem a Igreja, setores laicos da sociedadee do Estado tambm realizam seu trabalho missionrio junto s populaesindgenas e pobres. Um trabalho que as violenta culturalmente, sendo justo enecessrio um missionarismo de contestao orientado pelo propsito da eman-cipao do outro das injustias que o degradam e da violncia cultural que oaniquila, como de certo modo fizeram os jesutas no Territrio das Misses.

    O pedido de perdo generoso e do ponto de vista tico pedaggicoe educativo. Mas, anula o sentido da histria porque apaga, desse modo, asformas concretas de inovao e de conscincia na circunstncia de cada poca.Na histria da Igreja houve aes orientadas no sentido da emancipao dasvtimas do cativeiro, como houve deliberadas aes no sentido de desconhecer ahumanidade dos cativos. No pedido de perdo h a suposio historicamenteequivocada de que tanto as pessoas como os grupos institucionais so culpadospor no terem pensado adiante de sua poca. Convm lembrar, que quem pensa-va adiante de sua poca, nesses tempos recuados, ia para a forca ou era queima-do vivo. O pedido de perdo, se no for devidamente situado pelo magistriopastoral, instrumentaliza a histria contra a prpria Histria para legitimar ejustificar sem mediaes os conflitos do presente. Uma nulificao da histriaque anula a historicidade do presente e que justifica o confronto ideologicamen-te maniquesta entre MST, CPT e Igreja, de um lado, e Estado do outro. O qued luta pela reforma agrria caractersticas de uma guerra santa que, comotoda guerra santa, uma guerra sem alternativas e sem sadas polticas.

    Essa tendncia, no meu modo de ver, comeou a tomar conta daao dos agentes de pastoral a partir do final da ditadura, momento em que osbispos se afastaram do que chamavam de pastoral de suplncia. Desse mododevolviam aos leigos a direo das grandes e significativas propostas da Pas-toral da Terra e das outras pastorais sociais. Esse afastamento aproximada-mente coincidiu com a deciso de alguns agentes de pastoral de laicizarem aluta pela terra atravs da fundao do MST, uma deciso apropriada nummomento em que se lutava pela expanso das liberdades civis.

    Mas, os leigos, por fora das caractersticas da prtica desses gruposde mediao, radicalizaram suas concepes e sua atuao a partir de orienta-

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    es ideolgicas que acentuavam o confronto e a polarizao. Deixaram emsegundo plano o sistema de concepes referidos idia de pessoa dopersonalismo de Mounier e da doutrina social catlica7, que at ento fora abase da interveno dos bispos na defesa das comunidades alcanadas pelosconflitos fundirios. Em grande parte, o recurso ao que pode ser chamado demarxismo vulgar, substancialmente diverso do marxismo clssico8, foi uma ten-tativa de encontrar uma definio concreta, uma cara, para os protagonistas dosconflitos que pareciam propor a emergncia de um novo sujeito histrico. Novono por sua novidade. Mas, novo por sua conscincia e sua luta: enfim os traba-lhadores da terra decidiam emergir das sombras e da passividade e reivindicar.Obviamente, na luta pela terra no havia a polarizao ideolgica que tenderia aaparecer na sua mediao pastoral, sobretudo mais tarde. A radicalidade cam-ponesa menos dicotmica, mais rica e culturalmente muito complexa. A medi-ao pastoral laicizada tende a simplificar os contedos dessa luta, uma luta queno se resume luta pela terra, como alis indica a experincia do MST nosassentamentos, mas que se estende revitalizao da famlia e seu mundo.

    evidente que se posseiros resistiam ou se queixavam, estavamexpressando um antagonismo objetivo com quem os expropriava e com quemos explorava. Na conjuntura histrica da ditadura militar, isso significava con-fronto no s com os grandes proprietrios de terra e grileiros, mas confronto,tambm, com o Estado que a estes estimulava, subsidiava e protegia com seumodelo militar de ocupao da Amaznia. Para uma igreja missionria, comoa Igreja na Amaznia, no havia qualquer outra alternativa. Aceitar o progra-ma oficial e suas conseqncias era o mesmo que renunciar ao trabalho missi-onrio. bvio que houve muitas descobertas e muitos encontros nessa ad-versidade. Sobretudo, a notvel insurgncia moral e religiosa de bispos, pa-dres, freiras e leigos contra brutalidades e injustias.

    O confinamento das igrejas em relao alternativa escolhida peloEstado criou a circunstncia prpria para que valores fundamentais do catoli-cismo e do cristianismo fossem revigorados e para que um certo humanismode fundo religioso reafirmasse as opes evanglicas de bispos e agentes depastoral. Mas, numa situao altamente politizada pelo Estado, e repressiva,as alternativas antagnicas que se abriam pediam a politizao da viso demundo catlica, sobretudo a necessidade de definir e compreender as catego-rias sociais dos que eram vtimas da injustia e pediam misericrdia.

    A aproximao dos catlicos de esquerda, educados na tradio daAo Catlica, com os grupos organizados de esquerda, apoiados em corposdoutrinrios fechados, durante a ditadura militar, permitiu que os catlicos seapropriassem dessas doutrinas para alargar sua compreenso da realidade so-cial com a qual lidavam. A pobreza metodolgica desse marxismo simplificadono lhes permitiu, porm, que se dessem conta do grande desencontro que haviaentre a pobreza da teoria e a riqueza da prtica no trabalho pastoral que se abriuinicialmente na regio amaznica e depois no Brasil inteiro. Esse certamente omais grave impasse do momento na atuao da CPT e claramente na atuao doMST. Boa parte de seu projeto supostamente alternativo se perde no redutivismo

    7 Esta frase de JooPedro Stedile indicaos efeitos dessa inver-so de referncias: Onico debate que con-seguimos, nessa po-ca, era pelo vis idea-lista, cristo (Stedile& Fernandes, 1999,p. 96) (grifo meu).

    8 Discordo de ZanderNavarro quando elefala em atoleiro con-ceitual do marxismoclssico para referir-se ao marxismo queinforma a ao doMST. No h nada depropriamente clssi-co nesse marxismoreducionista que che-ga at aos agentes demediao da luta pelareforma agrria pormeio de textos e deuma sofrvel pedago-gia de vulgarizaode origem ou de ins-pirao althusseriana(cf. Navarro, 1996, p.20 (nota)).

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    MARTINS, Jos de Souza. Reforma agrria o impossvel dilogo sobre a Histria possvel. Tempo Social; Rev. Sociol. USP,S. Paulo, 11(2): 97-128, out. 1999 (editado em fev. 2000).

    ideolgico que anula justamente o que de fato riqueza de possibilidades epossibilidade do alternativo em sua experincia de base. Esse simplismo temsido agravado por intelectuais comprometidos com partidos polticos identifica-dos com uma tradio terico-ideolgica laica e iluminista, de razes burguesas,incapaz de lidar com as utopias, com o simblico e com as crenas. Um materi-alismo mambembe que se prope a si mesmo como um substituto das religiese retira da prxis dos trabalhadores rurais e dos militantes a mstica que a animae que a faz poderoso meio de inovao social.

    O carter cclico da questo agrria e o historicamente possvel

    A ditadura foi, possivelmente, o ltimo episdio do movimentopendular que, no regime republicano, deu vazo s necessidades polticascentralizadoras do Estado nacional, alternando-as com a fora do poder local,regional e oligrquico (cf. Leal, 1975). Esse movimento pendular se manifes-tou na alternncia de ditadura e democracia ao longo deste pouco mais desculo da Repblica e expressa o momento inconcilivel das contradiespolticas presentes na constituio do Estado nacional. Foi tambm o movi-mento que condenou a democracia em nosso pas e as aes cidads da socie-dade civil a um confinamento restritivo no interior de uma estrutura polticaclientelista e oligrquica. Sempre que aqui se lutou por um regime democrti-co, essa luta carregou consigo, como aliado inevitvel, os partidos que repre-sentam o poder pessoal e o oligarquismo. Porque, convm lembrar, essa temsido, contraditoriamente, a base do nosso federalismo e do nosso liberalismo(cf. Leal, 1975; Martins, 1994). So muitas as indicaes de que esse casulode conteno pode estar sendo rompido, de modo a viabilizar a liberdade demanifestao da sociedade civil. J com base no direito diferena e no combase em uniformidades totalitrias, a partir de referncias ideolgicas outrasque no as decorrentes das formas tradicionais de dominao. verdade queestamos, tambm, presos a um novo enredamento de conteno do ritmo dastransformaes sociais: as alianas cruzadas.

    H no pas partidos antioligrquicos eleitoralmente representativoso suficiente para constituir uma frente poltica que precipite o Brasil namodernidade poltica. Mas, que no se aliam entre si. Antes, so marcadospor um confronto intolerante que torna essa via impossvel. Parece no restaroutra alternativa seno a do que estou chamando de alianas cruzadas: cadapartido progressista se alia com a oligarquia que pode. Assim como o PSDBse aliou ao PFL e a outros partidos que compem o pacto de sustentao dogoverno atual, o PT, por sua vez, neste mesmo ano de 1999, vem fazendoalianas tticas mais complicadas ainda, de que destaco a aliana com o ex-presidente Itamar Franco e, sobretudo, a aliana com a UDR, na Comisso deAgricultura, na votao da questo das dvidas dos produtores rurais. Portan-to, o pacto que viabiliza o governo e o regime atinge a todos, mesmo aquelesque se imaginam fora dele. verdade que na falta das alianas cruzadas osremanescentes do oligarquismo, do populismo de direita e da prpria ditadura

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    teriam condies de se juntar numa poderosa frente poltica capaz de pr emrisco o regime atual. Mas, tambm eles esto divididos.

    De fato, a Constituio de 1988 (e a legislao decorrente) e o pactopoltico que nela se confirmou apontam nos seguintes sentidos: a) modernizaoe empresarializao das oligarquias, que ocorreu sobretudo durante a ditadura,atravs da aliana entre o capital e a propriedade da terra; b) descentralizaopoltica, com maiores destinaes de recursos pblicos aos estados e municpios(o que em outras pocas significou o fortalecimento das oligarquias e a descentra-lizao do poder nacional); c) fortalecimento poltico do governo central, commaiores poderes na definio das diretrizes no uso dos recursos pblicos, comformas e propores de gastos definidos previamente pela Constituio federal ouem leis federais; d) possibilidade de atribuio de deveres federais aos governoslocais, como o caso da reforma agrria, da sade e da educao pblica.

    Portanto, no geral, uma conciliao delicada entre poder local e podernacional, com atribuio de responsabilidades federais aos estados e munic-pios e, por extenso, s comunidades locais. O risco de repetir-se oreavivamento do clientelismo poltico municipal e regional parece atenuadopela tutela das grandes diretrizes de poltica social, econmica e educacionalpor parte do governo federal. Atenuado, mas no suprimido.

    possvel, pois, que a transio e a Constituio de 1988 tenhaminaugurado um longo perodo de estabilidade poltica, na medida em que evitamque o federalismo e o localismo inviabilizem a nao. Estamos em face de umpacto em que os conflitos sociais e polticos rotineiros numa democracia, qual-quer que seja ela, j no podem alimentar essas polarizaes estruturais e bsi-cas do nosso sistema poltico e levar ingovernabilidade do pas. Uma sadaconciliadora que evita os inconvenientes do presidencialismo, atravs de umpresidencialismo informalmente parlamentarista, se que se pode defini-lo as-sim. A presidncia j no pode ser exercida como variante do poder pessoal,com caractersticas monrquicas, como est na expectativa popular e nos pres-supostos do radicalismo pequeno-burgus de vrios grupos de esquerda envol-vidos na luta pela reforma agrria. A governao, no novo ordenamento polti-co, pede a corresponsabilidade de todos os setores sociais e polticos do pas,sem que isso afete a liberdade de conscincia e de filiao partidria. Os muni-cpios e os estados que se tornam o territrio do alternativo, cabendo Uniopropor e gestir as causas e processos supralocais, supra-regionais e at mesmosuprapartidrios, como concretamente o caso da reforma agrria. Estamos,provavelmente, em face de uma redefinio prtica das funes da presidnciada Repblica, em face de sua especializao, e de uma redefinio histrica dasfunes da Unio. Esse o ponto de compreenso mais difcil.

    Em outras palavras, o novo ordenamento prope o fortalecimentoda sociedade e dos movimentos sociais que se manifestam por ela em face doEstado e o recolhimento do Estado nacional a funes reduzidas e ordenadoras.Em grande parte, portanto, o chamado estado mnimo tem entre ns as fun-es de desoligarquizar paulatinamente o Estado e de atribuir sociedadecivil aes e iniciativas que lhe deveriam ser prprias e que foram viabilizadas,

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    embora monopolizadas, pelo Estado desde, pelo menos, a Revoluo de 1930.Essa atribuio, porm, implica num novo pacto entre o Estado e a sociedade,o pacto da ordem e da lei e nele o pacto da atualizao e modernizao da lei,at mesmo por iniciativa popular. A sociedade, portanto, passou a ter at mes-mo funes legislativas diretas no caso em que a delegao de vontades, atra-vs do voto, no d conta de todas as demandas sociais.

    No meu modo de ver, as complicadas transformaes que esto ocor-rendo no pas se explicam nesse quadro de referncia e por meio dele queestou procurando compreender os desencontros entre o MST e as oposies,de um lado, e o governo, de outro. Para, no final, procurar entender que rumosesto de fato abertos ou se abrindo como caminhos possveis para aes epropostas de resoluo dos problemas sociais, dentre eles o problema da po-breza no campo. Trata-se de saber qual o possvel que se abre diante de nse em que medida as posies e aes do governo, de um lado, e dos que a elese opem, de outro, sobretudo no que se refere reforma agrria, correspondema esse possvel ou se colocam aqum ou adiante dele. Trata-se de uma refle-xo sobre as mediaes e as condies objetivas da prxis dos poderes, gru-pos, classes e movimentos sociais que se crem atuando em funo das possi-bilidades objetivas do momento histrico. Tudo sugere que mesmo os gruposque se consideram dotados do mandato da Histria e at do mandato divinoesto muito aqum dessas possibilidades.

    A tortuosa via de demonizar o governante, percorrida atualmentepelos que querem aes de governo diversas das atuais, dentre eles os quelutam por uma supostamente outra reforma agrria, vitimar mais adiante osatuais opositores. Nesse quadro de referncia, como acontece num regime par-lamentar, o presidente personifica as contradies do Estado e do pacto que osustenta. Atua, portanto, nos limites de sua funo pblica e no na amplitudede sua vontade pessoal. E nesse caso fica mais claro que o Estado no apresidncia da Repblica e sim uma multiplicidade de funes em trs pode-res independentes entre si numa repblica federativa.

    Essas mudanas afetam decisivamente a questo agrria e a polti-ca fundiria do Estado brasileiro. A propriedade da terra, j na ditadura mili-tar, como mostrei antes, associada ao capital e claramente submetida lgicada reproduo capitalista ampliada, se institucionaliza politicamente, atravsdo pacto, como fundamento do nosso capitalismo rentista. Porm, o objetivodo governo e do partido nele hegemnico parece ser o de modernizar e desen-volver, conciliando. Nesse sentido, o rentismo apoiado na relevncia da pro-priedade da terra est em conflito com os propsitos governamentais e, aomesmo tempo, est domesticado pela aliana poltica em que o governo sebaseia. A questo agrria est passando a ser, provavelmente, uma questosocial e historicamente cclica e deixando de ser uma questo que aparea emprimeiro plano no processo poltico como questo estrutural. Algumas dasaes mais significativas do atual governo, no mbito da questo agrria, temsido justamente as de confinar o rentismo nos limites de uma legalidade es-treita, agindo dentro da lei e no contra ela. Neste final de 1999, quando estou

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    escrevendo este artigo, o ministro de Poltica Fundiria determinou a anula-o de todos os ttulos de terra irregulares, cancelando os respectivos regis-tros. Trata-se de uma verdadeira desconstruo do regime fundirio que tevesua origem na Lei de Terras, de 1850, e seu cume na ditadura militar, na com-placncia para com formas irregulares de apossamento de terras por parte degrileiros e especuladores. Uma atuao direta sobre os elementos propria-mente histricos de nossa questo agrria.

    Se assim for, a poltica fundiria tem por objetivo reconhecer ainstitucionalidade do problema como problema social e o ministro tem a a funode gestor de uma conflitividade administrvel, como de certo modo j se propunhano regime anterior. Com a diferena de que agora devem prevalecer os mecanis-mos da negociao, e portanto os da lei, e no os da represso. A poltica fundiriatem por objetivo atenuar e circunscrever o rentismo, atenuado, portanto, pela pr-pria reforma agrria, gostem dela ou no os opositores do governo. Quando se dizque a reforma agrria entrou na agenda poltica do Estado, ainda que de modolimitado, no apenas, e talvez nem fundamentalmente, em conseqncia da aodo MST e das oposies ao governo. Pois em termos de conflitividade ela j esta-va proposta no regime militar. No meu modo de ver, entrou na agenda do Estadocomo recurso institucional para atenuar os efeitos politicamente conservadores dapropriedade da terra, que se manifestam nos problemas sociais, e para acelerar amodernizao da elite fundiria e das oligarquias.

    Nesse sentido, a ao modernizadora do governo, por essa via, temum aliado fundamental no oposicionismo do MST, da Igreja e do PT quanto reforma agrria. O pacto seria provavelmente invivel sem essa oposio. oque torna extremamente difcil para essas agncias de mediao da luta pelaterra sair da armadilha histrica em que aparentemente caram em conseqnciados conflitos e contradies entre as faces polticas anteriores ditadura,que fragmentaram a questo agrria e lhe retiraram fora e prioridade histri-cas. Esse parece ser um dos efeitos da prtica poltica baseada na concepoda histria por etapas, difundida entre ns como doutrina por alguns gruposde esquerda. Com isso, a amplitude da interveno na questo agrria hojedominada por necessidades sociais e polticas que no so apenas as necessi-dades dos trabalhadores rurais sem terra.

    Essa frente de ao sobre o latifndio e o clientelismo oligrquicofoi aberta pelo Estado ps-ditatorial como forma de interveno indireta nosestados e sobretudo nos municpios quanto ao uso dos recursos pblicos, quantoao cumprimento local de obrigaes constitucionais da Unio e quanto trans-ferncia a grupos comunitrios locais e aos municpios de funes pblicassob controle federal. Como mencionei, o caso da reforma agrria e da gestodas condies de desenvolvimento e consolidao da agricultura familiar. Amunicipalizao das polticas relativas a temas sociais abre um amplo terrenode participao da sociedade civil por delegao do Estado9. A sociedade pode,assim, atravs de grupos comunitrios e das administraes locais, se tornarguardi e gestora direta das questes relativas ao chamado bem comum. Emboa parte, funes que as cmaras municipais tiveram no perodo colonial,

    9 Zander Navarro, numaperspectiva completa-mente diferente da queadoto neste texto, cha-ma a ateno para odesinteresse do MSTpor essas novas possi-bilidades de atuaodecorrentes da des-centralizao polticado pas (cf. Navarro,1996, p. 15 e 44).

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    agora, porm, muito ampliadas. Trata-se, portanto, de um revigoramento dosvalores mais positivos do nosso municipalismo.

    Ora, esse tem sido o territrio do poder oligrquico, em ltima ins-tncia beneficirio do capitalismo rentista e das formas de dominao propicia-das pelo latifndio. Tais mudanas criam o aparato institucional que coloca olatifndio e seu poder poltico em face dos clamores e dos direitos do povo, dasociedade, dos movimentos sociais e dos grupos comunitrios. Portanto, estamosem face de uma transferncia de poder que, ao mesmo tempo em que assegura afuncionalidade do pacto poltico atual, pode incorporar os descontentes e politi-camente excludos na co-responsabilidade da gesto da coisa pblica. Eu nosubestimaria a enorme brecha participao popular que se abre com essasmudanas. Mas, no subestimaria, tambm, a competncia dos grupos polticosde tradio oligrquica para se aproveitarem dessas possibilidades, mesmo ten-do que disput-las com os grupos emergentes da sociedade ps-ditatorial.

    Alis, em muitos lugares, o MST tem se aproveitado larga e inteli-gentemente dessas possibilidades e o mesmo se pode dizer de vrios setores dasigrejas. Essas mudanas comearam por iniciativa popular, durante a ditadura,nos vrios lugares da Amaznia em que as lutas populares, em particular a lutapela terra, deram lugar luta pela criao dos novos municpios e formaodos governos locais num espao de participao aberto claramente pelo traba-lho pastoral. Processos similares tm acontecido em outros lugares do pas apso fim da ditadura. Quase que se pode dizer que na histria do Brasil so essasiniciativas novas que invertem o processo caracterstico que aqui fez do Estadoo criador da sociedade civil10. Nesses casos, a sociedade civil que toma a inici-ativa de estender a rede das instituies do Estado. Trata-se de uma inverso derumos de importncia fundamental no desenvolvimento social, no combate aooligarquismo e ao poder pessoal e na consolidao da democracia.

    Essas mudanas abrem tais possibilidades de interveno histricanos rumos sociais e polticos do pas por parte da sociedade e dos que so con-siderados excludos que seria um erro subestim-las. Muitas aes do MST e desetores da Igreja, em diferentes pontos do pas, indicam um apropriado aprovei-tamento dessas possibilidades, mesmo que o MST combata explicitamente oque entende ser as segundas intenes de mudanas que, na verdade, so an-teriores ao atual governo, quando no havia nem mesmo primeiras intenes11.Elas tm sido alargadas pela ao desses grupos e propiciado uma atividadecriadora que pode ser definida como reinveno social, que o verdadeiro sen-tido da prxis. Algo inimaginvel pelas esquerdas tradicionais antes e depois dogolpe e inimaginvel pelos governos e tcnicos governamentais tem decorridodessas possibilidades: a modernizao criativa da agricultura familiar, sobretu-do em reas de reforma agrria, a partir da mstica da tradio, da famlia e doslaos comunitrios reavivados e modernizados na experincia ressocializadorados acampamentos e da luta pela terra. Mesmo que nesse processo possa ocor-rer a anomalia de manifestaes de mandonismo dos prprios militantes, tam-bm eles, no raro, ainda influenciados por uma cultura do poder pessoal.

    Convm levar em conta, ainda, um conjunto de alteraes no direi-

    10 Foi Fernando HenriqueCardoso quem chamoua ateno para a pecu-liaridade do caso bra-sileiro, em que ao in-vs da sociedade civilcriar o Estado, o Esta-do uma herana dametrpole e tem sidodele a iniciativa decriar a sociedade civil(cf. Cardoso, 1977,p. 81-84).

    11 Em relao suposiosobre as intenesocultas do governo, cf.Stedile & Fernandes(1999, p. 49-155).

  • MARTINS, Jos de Souza. Reforma agrria o impossvel dilogo sobre a Histria possvel. Tempo Social; Rev. Sociol. USP,S. Paulo, 11(2): 97-128, out. 1999 (editado em fev. 2000).

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    to de propriedade, restries redutivas, que no tm sido notadas pelos que sepreocupam com a reforma agrria, mas que em geral no as vinculam ques-to agrria e questo do territrio. Refiro-me lenta retomada do senhorio,do domnio, do territrio por parte do Estado e ao fato de que essa retomadapraticamente nada tem a ver com as lutas sociais no campo nem com as lutasindgenas, sobretudo no perodo da ditadura. A Lei de Terras, de 1850, frapromulgada por um Parlamento constitudo de grandes fazendeiros e senho-res de escravos. No havia nenhum grupo popular reivindicando um regimefundirio diferente do aprovado em substituio ao regime de sesmarias quecessara nas vsperas da Independncia. Por essa Lei, dois distintos institutosforam unificados num s: o domnio, que pertencia ao Estado, e a posse til,que era do particular. Por ter o domnio da terra, o senhorio, o Estado preser-vava o direito de arrecadar as terras s quais o particular no desse utilidade,no tornasse produtivas. At o sculo XVIII, a Coroa com freqncia recorreua essa prerrogativa para redistribuir terras que no fossem devidamente utili-zadas. A Lei de Terras, porm, transferiu ao particular domnio e posse, crian-do uma espcie de direito absoluto que a principal causa do latifundismobrasileiro e das dificuldades para dar terra, plenamente, uma funo social.

    Sobretudo a partir da Revoluo de 1930, o Estado brasileiro co-meou uma lenta retomada do seu domnio sobre o territrio por meio demedidas restritivas ao direito de propriedade. A primeira foi o Cdigo de guas,que restringiu o direito de propriedade ao solo e dele excluiu o subsolo. Ou-tras medidas na mesma linha: o senhorio da Unio sobre terras de marinha.Mais tarde, o decreto de tombamento de bens histricos, que introduziu