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UNESP UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA JLIO DE MESQUITA FILHO
FACULDADE DE CINCIAS E LETRAS DE ARARAQUARA
PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM LINGSTICA E LNGUA PORTUGUESA
CARLOS PIOVEZANI
VERBO, CORPO E VOZ:
REFLEXES SOBRE O DISCURSO POLTICO BRASILEIRO
CONTEMPORNEO
2007
UNESP UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA JLIO DE MESQUITA FILHO
FACULDADE DE CINCIAS E LETRAS DE ARARAQUARA
PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM LINGSTICA E LNGUA PORTUGUESA
CARLOS PIOVEZANI
VERBO, CORPO E VOZ: REFLEXES SOBRE O DISCURSO POLTICO BRASILEIRO CONTEMPORNEO
Tese apresentada ao Programa de Ps-Graduao em
Lingstica e Lngua Portuguesa da Universidade Estadual
Paulista Jlio de Mesquita Filho, como requisito para a
obteno do ttulo de Doutor em Lingstica e Lngua
Portuguesa.
Orientadora: Profa. Dra. Maria do Rosrio Valencise
Gregolin
ARARAQUARA
2007
1
BANCA EXAMINADORA
Orientadora: Profa. Dra. Maria do Rosrio Valencise Gregolin
Prof. Dr. Jos Luiz Fiorin
Profa. Dra. Maria Jos Faria Rodrigues Coracini
Profa. Dra. Renata Coelho Marchezan
Profa. Dra. Vanice Maria Oliveira Sargentini
MEMBROS SUPLENTES
Prof. Dr. Cleudemar Alves Fernandes
Prof. Dr. Pedro Navarro Barbosa
Profa. Dra. Eva Ucy Soto
2
CARLOS PIOVEZANI
VERBO, CORPO E VOZ: REFLEXES SOBRE O DISCURSO POLTICO BRASILEIRO CONTEMPORNEO
Tese apresentada ao Programa de Ps-Graduao em
Lingstica e Lngua Portuguesa da Universidade Estadual
Paulista Jlio de Mesquita Filho, como requisito para a
obteno do ttulo de Doutor em Lingstica e Lngua
Portuguesa.
Orientadora: Profa. Dra. Maria do Rosrio Valencise
Gregolin
Data de Aprovao
________/_______________________/__________.
Orientadora: Profa. Dra. Maria do Rosrio Valencise Gregolin
Prof. Dr. Jos Luiz Fiorin
Profa. Dra. Maria Jos Faria Rodrigues Coracini
Profa. Dra. Renata Coelho Marchezan
Profa. Dra. Vanice Maria Oliveira Sargentini
3
DEDICATRIA
Aos meus Pais,
Meus Primeiros Mestres da Linguagem,
com quem aprendi, por atos e palavras, a conjugar os verbos dever e poder.
Por terem me ensinado, com rigor e doura, alguns dos limites do mundo
e as tantas possibilidades da vida.
4
AGRADECIMENTOS
minha Orientadora, Professora Maria do Rosrio Valencise Gregolin, que, como poucos,
conjuga leveza e profundidade, por me guiar segura e docemente neste percurso, por me
oferecer delicada e cuidadosamente tantas oportunidades. Por ter sugerido rumos, sem nunca
impor uma nica direo, por estar sempre aberta ao dilogo, sem jamais tolher minhas
intuies. Enfim, por nunca ter cedido ao dogmatismo.
Ao meu Co-orientador estrangeiro, Prof. Jean-Jacques Courtine, pela imensa generosidade e
honestidade intelectual, pela constante interlocuo e pela amizade sincera. Por nunca
pretender que eu fosse um seu discpulo e por me instigar na busca pela criatividade do
pensamento. Em sua voz, no raras vezes, ouvi recitaes de seu saudoso amigo, Michel de
Certeau: Penser, cest passer, Carlos.
s Professoras Maria das Dores C. Vigrio Marchi, minha orientadora na Iniciao
Cientfica, no ento CEUD/UFMS e na atual UFGD, e Renata F. Coelho Marchezan,
minha orientadora no Mestrado, na UNESP/Araraquara, pela confiana e pelo incentivo,
quando dos meus primeiros passos na pesquisa lingstica. Pelas primeiras e inesquecveis
orientaes.
Aos Professores do Programa de Ps-Graduao em Lingstica e Lngua Portuguesa da
FCL/UNESP-Araraquara, sobretudo queles com quem tive a grata satisfao de conviver
mais proximamente e com quem tanto aprendi dentro e fora das salas de aula: ao Professor
Arnaldo Cortina, Professora Letcia Marcondes Rezende, ao Professor Luiz Carlos
Cagliari, Professora Marymarcia Guedes, Professora Rosane Berlinck e Professora
Slvia Dinucci Fernandes.
Aos Professores que contriburam decisiva e intensamente no apenas para a escrita desta
tese, mas, principalmente, para a minha formao como professor e pesquisador, durante meu
5
estgio de Doutorado no exterior: aos Professores Catherine Kerbrat-Orecchioni, Christian
Delporte, Christian Puech, Claude Hagge, Dominique Maingueneau, Francine Mazire,
Jacques Guilhaumou, Jean Hebrard, Marie-Anne Paveau, Smir Badir, Sonia Branca
Rosoff, Sophie Moirand e Sylvain Auroux.
Aos Professores Jos Luiz Fiorin, Maria Jos Coracini, Renata Marchezan, Srio Possenti e
Vanice Sargentini, pelo generoso incentivo, pelos preciosos comentrios e pelas valiosas
crticas e sugestes feitas no Exame de qualificao e na Defesa da Tese.
Aos funcionrios da FCL/UNESP-Araraquara, particularmente aos da Seo de Ps-
Graduao e da Biblioteca, pela prontido de socorros indispensveis das mais diversas
ordens.
Aos companheiros de quatro geraes do GEADA, especialmente ao Adrian, Amanda,
Bruna, Cludia, Claudiana, ao Diogo, ao Euclsio, ao Fbio, Ftima, Flvia,
Ismara, ao Israel, ao Joo, Ktia, Lurdinha, Marisa, Mara, ao Marcos Lcio,
Mnica, Ndea, Nilde, ao Nilton, ao Paulinho, ao Paulo Barbosa, ao Pedro, Regina
Baracuhy, Regina Momesso, ao Renan, ao Roberto, Roselene, Socorro e Ucy, pelas
vicissitudes, que s foram superadas, e pelas conquistas, que s foram obtidas, por estarmos
sempre juntos.
Ao Henrique, Maysa e Bete, por fazerem de cada encontro um descanso na loucura.
Pela amizade sincera, pela cumplicidade constante e pelo apoio permanente que tanto
extrapolam os limites da tese e que tocam as coisas do corao. Por me contarem os encantos
do mundo, da floresta e de Rio Branco, que ainda hei de conhecer na mais perfeita
companhia.
Cida, Leandra, Mara Rbia, Marlene, ao Micael, Rita, Sirlene e Tasa, por
trazerem sorrisos e tranqilidade a cada visita e por provarem que afeto e carinho nada
devem cronologia.
6
Ao Cleudemar e ao Tony, pelas calorosas acolhidas em Uberlndia, pelos queijos e doces
mineiros. Pelas discusses tericas e pelas tantas sugestes bibliogrficas.
famlia Sargentini, ao Csar, Vanice, ao Henrique e ao Andr, pela alegria e leveza
contagiantes e pelo apoio nas questes fundamentais.
Ao Pedro Navarro, ao Carlos Rubens de Souza Costa, ao Marcio Alexandre Cruz e
Luzmara Curcino, pela leitura atenta e rigorosa das primeiras verses deste trabalho.
Ao Jean Stringheta, pelas primeiras dicas sobre os elementos fsicos da voz.
CAPES, pela concesso das Bolsas no Brasil e na Frana.
s minhas irms, Marlene e Janaina, por sempre me trazerem to facilmente o sorriso na
presena ou na lembrana.
E, especialmente, Luzmara, pela beleza e poesia de uma vida a dois.
7
RESUMO
Com vistas a refletir sobre o discurso poltico-eleitoral brasileiro contemporneo,
fundamentamo-nos nos postulados da Anlise do discurso, derivada dos trabalhos do Grupo
em torno de Michel Pcheux e de contribuies da obra de Michel Foucault, e concebemos os
seguintes pressupostos que subsidiaro as consideraes a serem aqui desenvolvidas: a)
embora o atual discurso poltico eleitoral televisivo no seja manifesto somente por meio de
pronunciamentos do candidato, trata-se de um tipo de fala pblica; b) falar em pblico uma
prtica histrica e, por essa razo, apresenta algumas continuidades relativas e diversas
metamorfoses, ao longo da histria; c) o discurso poltico possui certas propriedades que o
distinguem de outros discursos e que o caracterizam; d) a emergncia e a utilizao de
tecnologias da linguagem, neste caso, a televiso, em conjunto com transformaes histricas,
sociais e culturais, promoveram vrias mudanas no discurso poltico; e) esse discurso
apresenta novas formas semiolgicas, formula-se em uma ampla gama de gneros discursivos
e explora as possibilidades abertas por sua circulao em um medium audiovisual; e f) uma
abordagem discursiva que se detenha estritamente na linguagem verbal no ser suficiente
para interpretar a complexidade do discurso poltico contemporneo. A concepo desses
pressupostos conduziu-nos a avanar a hiptese de que muitos trabalhos em AD sobre o atual
discurso poltico ainda no consideraram suficientemente suas novas formas, quando de sua
transmisso pela televiso, nem tampouco exploraram satisfatoriamente sua dimenso
histrica. Por essa razo, tentamos avaliar o alcance das anlises j realizadas em AD sobre o
discurso poltico e sugerir algumas possibilidades tericas e analticas para o desenvolvimento
da capacidade heurstica da Anlise do discurso, em face das novas configuraes do discurso
poltico-eleitoral brasileiro. Para tanto, seguindo a proposta de uma Semiologia histrica,
concebida por Jean-Jacques Courtine, empreendemos a conjuno entre a perspectiva
discursiva e alguns aportes da Histria cultural, da Antropologia histrica e da Semiologia.
Abordamos o discurso poltico televisivo contemporneo, portanto, sob a gide da AD e
inspirados pela Semiologia histrica e pelas disciplinas com as quais ela dialoga. Mediante
uma rpida anlise, que focaliza a produo de efeitos de verdade no Horrio Gratuito de
Propaganda Eleitoral do pleito de 2002 Presidncia da Repblica, procuramos averiguar a
viabilidade e avaliar a produtividade desse enfoque.
PALAVRAS-CHAVE: Discurso poltico; Anlise do discurso; Fala pblica; Semiologia histrica; Corpo; Voz; Tecnologias de linguagem.
8
ABSTRACT
Based on the Discourse Analysis (AD) propositions, more closely on the works of Michel
Pcheuxs group and the instruments of Michel Foucaults thoughts, this research attempts to
reflect about the contemporary Brazilian voting political discourse. The assumptions that will
support our considerations are the following: a) the current TV voting political discourse is
not expressed only by the candidate speech, but it also can be considered one kind of public
speech itself; b) making a speech is a historical perform, and therefore, in the course of
history it presents relating continuities and several metamorphoses; c) the political discourse
presents some attributes that make it different from other discourses and distinguish it from
them; d) the urgency and the use of some language tools, in this case, the television,
altogether with the cultural, social, political and historical transformations brought a number
of changes to the contemporary political discourse; e) the present-day political discourse that
shows new semiological forms states itself in an large variety of discursive genres, and it
explores ostensible possibilities because of its circulation in the audiovisual media, as the
television itself; f) a discursive approach that stands still rigorously upon the verbal language
would not be enough to account for the complexity of the contemporary political discourse.
All these assumptions lead us to raise the hypothesis that most studies on Discourse Analysis
about the contemporary political discourse have not considered these new forms, not only the
television broadcasting, and they have not explored its historical dimension either. For this
reason, and considering the new patterns of Brazilian voting political discourse, we try to
evaluate some analyses already done in this field and to suggest some analytical and
theoretical possibilities to the development of the AD heuristic competence. In order to do so,
we adopt Jean-Jacques Courtines proposal concerning the Historical Semiology in an attempt
to conjoin the discursive perspective and some Cultural History, Historical Anthropology, and
Semiology notions. As a result, we approach the contemporary political discourse on
television under the account of the AD inspired not only by the Historical Semiology, but also
by the subjects that extend ideas among them. Through a brief analytical study we try to
validate our research focusing on the 2002 broadcasting publicity for presidential campaign
effects of truth. We also aim to validate its viability and evaluate the efficiency of this
perspective.
KEY WORDS: Political discourse; Discourse Analysis; Public speech; Historical Semiology; Body; Voice; Language tools.
9
SUMRIO INTRODUO......................................................................................................... 11
CAPTULO I FRAGMENTOS PARA UMA GENEALOGIA DA FALA PBLICA
1.1 Antes do comeo, algumas precises................................................................ 21
1.2 Transformaes da fala pblica na Histria
1.2.1 Falar em pblico na Antigidade...................................................................... 24
1.2.2 Falar em pblico na Idade Mdia...................................................................... 33
1.2.3 Falar em pblico na Idade Moderna.................................................................. 44
1.3 Gneses da fala pblica no Brasil
1.3.1 Falar em pblico nos primeiros tempos............................................................ 56
1.3.2 Falar em pblico no final do sculo XIX.......................................................... 70
CAPTULO II
SUMRIA CARACTERIZAO DO DISCURSO POLTICO
2.1 Especulaes sobre o "discurso poltico": entre o nome e o mito................. 96
2.1.1 Os quatro elementos: mitologia da legitimidade.............................................. 97
2.1.2 Do ser pelo nome: extratos de uma pequena ontologia.................................... 104
CAPTULO III
NOVAS FORMAS DO DISCURSO POLTICO:
METAMORFOSES DISCURSIVAS E ATUALIZAES DISCIPLINARES
3.1 Alguns descompassos entre a vida e a cincia.......................................... 119
3.2 Contribuies transdisciplinares Anlise do Discurso:
Por uma semiologia histrica do discurso poltico contemporneo?.................... 133
CAPTULO IV
DA ESCUTA E DO OLHAR. A ESPETACULARIZAO DA POLTICA:
SONS E IMAGENS NO DISCURSO POLTICO CONTEMPORNEO
4.1 Dispositivos de fala pblica: o palanque, o rdio e a tv.................................. 168
4.2 Verbo, corpo e voz na televiso:
Efeitos de verdade nas novas do discurso poltico................................................. 208
CONSIDERAES FINAIS...................................................................................... 260
REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS........................................................................ 270
10
INTRODUO
No pode haver ausncia de boca nas palavras. Manoel de Barros
Comecemos pela aluso a uma histria banal e a um episdio excntrico e quase
hertico.
Depois de ter sido abandonada e trocada por outra, uma mulher sozinha, na baguna de
uma vida, representada pela desordem do seu quarto, fala com seu j ex-amante, mas ainda
amado: Antes, a gente se via. A gente podia perder a cabea, esquecer as promessas, arriscar
o impossvel, convencer quem a gente adora, se abraando, se agarrando. Um olhar podia
mudar tudo. Mas, com este aparelho, o que acabou, acabou... Estamos, pois, diante da
angstia de uma perda e de uma falta. Mas h ainda um "fio" de esperana: no rompimento, em
face da ausncia do corpo, existe a presena da voz. No aparelho, o gro da voz1 um sopro
de vida e uma ameaa de morte, um pouco de carne e um resto de corpo: Agora, eu tenho ar
porque voc est falando comigo. [...] Eu estou com o fio em volta do meu pescoo. Eu estou
com a sua voz em volta do meu pescoo. Esta histria acaba com a trgica conjuno entre a
cesso da voz, o limite do amor e a chegada do fim. Antes de falar com ele, ela j tinha tentado
o suicdio. E na iminncia do fechamento das cortinas, um outro e ltimo detalhe cenogrfico:
O receptor cai no cho...
No final dos anos 20, uma suposta experincia vivida por Jean Cocteau foi
suficientemente forte para que ele nela se inspirasse e, a partir dela, escrevesse a pea La voix
humaine. Essa experincia teria sido uma conversa ao telefone2. Uma vez mais na Histria,
tratava-se de uma histria que nos faz vislumbrar o complexo encontro entre prticas,
representaes e tecnologias.
Nove sculos antes desse encontro, um horrvel escndalo pasmaria os nobres de
Veneza: s refeies, uma princesa grega, vinda do Imprio Bizantino e tornada dogaresa por
haver esposado um fidalgo genovs, levava os alimentos boca, valendo-se de um excntrico
instrumento que ela trouxera consigo: um pequeno garfo de ouro com dois dentes3. O espanto
da nobreza veneziana, de ento, e o estranhamento contemporneo no se equivalem na
intensidade, nem compartilham dos motivos. Talvez, cause-nos uma relativa surpresa o
1 Cf. Barthes ([1972] 1984). 2 Cf. Cocteau ([1930] 2002). 3 Cabans, A. Moeurs intimes du temps pass. (1910); citado por Norbert Elias ([1939] 1994, p. 81-82).
11
material (de ouro) e o aspecto do utenslio (dois dentes); j os venezianos, do sculo XI, visto
que o ouro era-lhes comum nos objetos da corte, espantaram-se sobremaneira no com o metal
precioso, mas com a prpria existncia do instrumento. Manifestao de um excesso de
refinamento, a novidade, sob a forma de talher e de seu manuseio extravagante, foi alvo de
severas repreenses eclesisticas, que invocavam a ira divina: So Boaventura no titubeou em
aviltar a dogaresa, quando ela foi acometida de uma grave doena que provocaria sua morte,
afirmando se tratar de um castigo que Deus lhe infligira. Somente depois de transcorridos cinco
sculos, que os hbitos, as idias e as crenas se transformariam o bastante para que o
emprego do garfo fosse algo difundido entre a aristocracia: no sculo XVI, pelo menos a
metade da comida caa antes de chegar boca; e, no XVII, o garfo era ainda artigo de luxo,
comumente feito de prata ou ouro, embora j houvesse algumas manifestaes de desagrado,
diante do uso das mos nas refeies.
Da emergncia de um talher ao desenvolvimento de ondas sonoras eltricas, do bom
uso de instrumentos e maneiras da etiqueta no Antigo Regime reproduo e transmisso da
voz humana distncia, no final do sculo XIX, muitas mudanas aconteceram e, depois delas,
tantas outras ainda estariam por vir. Os desenvolvimentos de tecnologias materiais, no interior
de um determinado funcionamento das instituies sociais e histricas4, apontam para a
possibilidade, para o processo e para o produto de um longo percurso de recrudescimento da
civilit e da individualizao. Quanto difuso do garfo, cujo corolrio o paulatino
estabelecimento da utilizao do prato individual, cabe afirmar que o lento processo de
elaborao e de adoo de novos padres de comportamento e de novas sensibilidades no
consistia, conforme se poderia crer com base em nosso imaginrio contemporneo, em
medidas higinicas e salutares; antes, tratava-se da instaurao de procedimentos que visavam
a privar o olhar sensvel dos espetculos desagradveis, oriundos da rusticidade dos hbitos, e
que tencionavam construir uma parede invisvel em torno dos indivduos5. No que respeita ao
4 Conforme salienta Deleuze, ao comentar o estatuto das mquinas referidas por Foucault em Vigiar e punir: Em suma, h uma tecnologia humana antes que haja uma tecnolgia material. A tecnologia , portanto, social antes de ser tcnica. (1986, p. 47). 5 Nos termos de Norbert Elias: As pessoas que comiam juntas na maneira costumeira na Idade Mdia, pegando a carne com os dedos na mesma travessa, bebendo vinho no mesmo clice, tomando a sopa na mesma sopeira ou prato fundo [...], essas pessoas tinham entre si relaes diferentes das que hoje vivemos. E isto envolve no s o nvel da conscincia, clara, racional, pois sua vida emocional revestia-se tambm de uma diferente estrutura e carter. Suas emoes eram condicionadas a formas de relaes e conduta que, em comparao com os atuais padres de condicionamento, parecem-nos embaraosas ou pelo menos sem atrativos. O que falta nesse mundo courtois, ou no mnimo no havia sido desenvolvido no mesmo grau, era a parede invisvel de emoes que parece hoje se erguer entre um corpo humano e outro, repelindo e separando, a parede que freqentemente perceptvel mera aproximao de alguma coisa que esteve em contato com a boca ou as mos de outra pessoa, e que se manifesta como embarao mera vista de muitas funes corporais de outrem, e no raro sua mera
12
telefone, provvel que ele tenha contribudo para alterar aes e pensamentos. Se, em
princpio, ele fora considerado um meio privilegiado de interao social, uma vez que seu uso
possibilitava a comunho do nunc, ele era tambm o promotor de um encontro sem contato,
visto que elidia o hic. De certo modo, o telefone parece ter representado uma promessa no
cumprida ou uma consumao pela metade, diante da expectativa e desejo da presena.
Quando se trata de conceber as relaes entre prticas, representaes e tecnologias,
bem como os efeitos que delas decorrem, pensamos que a atitude mais plausvel consista em
problematizar as equaes, to difundidas quanto falaciosas, segundo as quais o surgimento de
um novo instrumento tcnico importante acarreta necessria e imediatamente a emergncia de
novos modos de pensar e de agir na sociedade. A Histria cultural ensina-nos, por exemplo,
que o aparecimento da prensa e dos tipos mveis, na Europa do sculo XV, em conjuno com
a supervalorizao da escrita, nos sculos XVI e XVII, no implicou a extino e nem mesmo
provocou uma drstica mitigao das prticas sociais fundamentadas na tradio oral. De modo
anlogo ao que ocorre com o uso da internet, o telefone paradoxalmente inviabiliza, sem
dvida, mas tambm promove o contato pessoal. No se trata, aqui, nem da alterao imediata
e radical de uma prtica, nem de sua imutabilidade absoluta. Uma vez que a complexidade da
histria no deve ser reduzida a simplificaes grosseiras como o "absolutamente indito" ou o
"totalmente idntico", torna-se necessrio relativizar as origens e desconfiar das gneses e
questionar as permanncias e criticar as imobilidades. Sabemos que antes do garfo, havia a
faca, e, antes dela, a mo. Sabemos ainda que antes do telefone, havia a carta, e, antes dela, o
tambor. Porm, os pensamentos e aes dos homens transformam-se consideravelmente,
medida que se relacionam com esses objetos.
A referncia histria banal e ao episdio quase excntrico fora, pois, uma espcie de
pretexto para que pudssemos ilustrar tanto o modo como consideramos as relaes entre
prticas, representaes e instrumentos tcnicos, quanto a maneira como concebemos a
histria. sob essa perspectiva que pretendemos abordar o discurso poltico brasileiro
contemporneo, mais precisamente, aquele produzido em contexto eleitoral e transmitido pela
televiso. E tendo em vista que nosso trabalho apresenta um escopo mais especulativo do que
descritivo, o corpus que constituimos desempenhar, antes, a funo de elucidar as reflexes a
serem erigidas que a de servir de objeto a ser submetido a uma anlise rigorosa e detalhada.
Constituem o referido corpus os programas da ltima semana do segundo turno do Horrio
meno, ou como um sentimento de vergonha quando nossas prprias funes so expostas vista de outros, e em absoluto apenas nessas ocasies. (ELIAS, [1939] 1994, p. 82).
13
Gratuito de Propaganda Eleitoral (HGPE) televisivo, referente campanha presidencial de
2002, quando os candidatos eram Lus Incio Lula da Silva e Jos Serra.
Tentando afastar as iluses do nunca visto e do sempre assim6, abordaremos o discurso
poltico-eleitoral televisivo contemporneo, a partir dos postulados da Anlise do discurso,
derivada dos trabalhos do grupo em torno de Michel Pcheux e de contribuies provenientes
da obra de Michel Foucault. Com vistas a refletir sobre esse discurso poltico de nossos dias,
concebemos os seguintes pressupostos que subsidiaro as consideraes a serem aqui
desenvolvidas: a) embora o atual discurso poltico televisivo no seja manifesto somente por
meio de pronunciamentos do candidato, trata-se de um tipo de fala pblica; b) falar em pblico
uma prtica histrica e, por essa razo, apresenta algumas continuidades relativas e diversas
metamorfoses, ao longo da histria; c) o discurso poltico possui certas propriedades que o
distinguem de outros discursos e que o caracterizam; d) a emergncia e a utilizao de um
instrumento tcnico, neste caso, a televiso, em conjunto com transformaes histricas,
polticas, sociais e culturais, promoveram vrias mudanas no discurso poltico; e) o discurso
poltico eleitoral televisivo apresenta novas formas semiolgicas, formula-se em uma ampla
gama de gneros discursivos e explora as possibilidades abertas por sua circulao em um
medium audiovisual; e f) uma abordagem discursiva que se detenha estritamente na linguagem
verbal no ser suficiente para interpretar a complexidade do discurso poltico contemporneo.
A concepo desses pressupostos conduziu-nos a avanar a hiptese de que muitos trabalhos
em AD sobre o atual discurso poltico ainda no consideraram suficientemente suas novas
formas, quando de sua transmisso pela televiso, nem tampouco exploraram satisfatoriamente
sua dimenso histrica.
A partir do estabelecimento desses pressupostos e dessa hiptese, instituimos
basicamente dois objetivos para o nosso trabalho. O primeiro consiste em refletir sobre o
discurso poltico-eleitoral televisivo contemporneo, buscando sublinhar algumas das
transformaes histricas da fala pblica, que direta ou indiretamente incidiram sobre esse
discurso poltico; visando a apreender algumas de suas propriedades, a fim de caracteriz-lo
provisoriamente; e procurando ressaltar alguns aspectos de seus novos modos de formulao
semitica e de circulao histrica e social. J o segundo, mais especfico, resume-se a tentar
avaliar o alcance das anlises j realizadas sobre o discurso poltico, a partir do enfoque da
Anlise do discurso, e sugerir, mediante nossas prprias reflexes, algumas possibilidades
tericas e analticas para o desenvolvimento de trabalhos ulteriores sobre o discurso poltico
6 Cf. Bourdieu ([1996] 1997).
14
contemporneo. Para tanto, empreenderemos uma reflexo epistemolgica sobre a Anlise do
discurso, no interior da qual faremos um breve receseamento de trabalhos em AD que trataram
do discurso poltico e ao longo da qual apontaremos algumas contribuies advindas da
Histria cultural, da Antropologia histrica e da Semiologia, para que a AD talvez possa
potencializar sua capacidade heurstica, em face das novas configuraes do atual discurso
poltico-eleitoral brasileiro. A essa conjuno entre uma perspectiva discursiva e alguns aportes
provenientes da Histria cultural, da Antropologia histrica e da Semiologia, Jean-Jacques
Courtine denominou Semiologia histrica7. Abordamos o discurso poltico televisivo
contemporneo, portanto, sob a gide da AD e inspirados pela Semiologia histrica e pelas
disciplinas com as quais ela dialoga. Mediante uma rpida anlise, que focaliza a produo de
efeitos de verdade nos ltimos programas do HGPE das eleies Presidncia da Repblica,
no ano de 2002, procuramos averiguar a viabilidade e avaliar a produtividade desse enfoque.
Considerando o ltimo de nossos pressupostos, conforme o qual h um certo
descompasso entre as transformaes do objeto e o alcance interpretativo da teoria e do mtodo
que tentam compreend-lo, vislumbramos a possibilidade de tentar diminuir essa distncia, por
intermdio das contribuies que a Semiologia histrica pode oferecer Anlise do discurso.
Acerca desse descompasso, Courtine afirma, por exemplo, a existncia de um formidable
dcalage entre os postulados althusserianos da anlise de classes, que sustentavam a AD, e a
efervescncia poltica, social e cultural francesa, na dcada de 1960:
No exato momento em que Althusser escrevia, a classe operria qual ele fazia referncia j no existia mais. As reconfiguraes econmicas, a transformao dos comportamentos polticos, a mudana da identidade operria que estavam ento em gesto j tinham, sem que se o soubesse ou sem que se o quisesse ver, tornado a anlise caduca. Do mesmo modo operava-se a maturao de novas formas de comunicao poltica que destituam pouco a pouco o afrontamento verbal, o choque frontal dos aparelhos, a surdez monolgica como sendo as nicas prticas legtimas da luta poltica. [...] E aqui, novamente, uma cegueira considervel: em pleno desenvolvimento do aparelho audiovisual de informao, s vsperas do reino das imagens, escola e s suas prticas de leitura que Althusser d o papel de aparelho ideolgico dominante. (COURTINE, 1989, p. 24-25)
7 A expresso cujo advento data de 1985, ano da escrita dos dois artigos em que ela se manifesta inicialmente, Language, Political Discourse and Ideology ([1987] 2006a) e Lhomme dvisag (Smiologie et Anthropologie historique de la physionomie et de lexpression du XVIIme au XIXme sicle (1986; escrito com Claudine Haroche) foi cunhada por Jean-Jacques Courtine e refere-se perspectiva adotada em sua prpria obra, desde a segunda metade da dcada de 1980, quando seus trabalhos sobre a genealogia e a epistemologia da AD e sobre o discurso poltico contemporneo conduziram-no a uma certa inflexo de enfoque e de procedimentos em direo s perspectivas histricas e antropolgicas, em princpio, em torno das prticas e representaes do rosto, e, mais recentemente, dos modos de "pensar", "sentir" e "fazer" do corpo. No item 3.2 do Captulo III, trataremos de modo mais detalhado da Semiologia histrica.
15
Assim, quando Althusser afirmava ser a escola o aparelho ideolgico do Estado que
assumiu a posio de dominante nas formaes capitalistas maduras (ALTHUSSER, [1970]
1985, p. 77), parecia desconsiderar, em alguma medida, a passagem da sociedade disciplinar
para a contempornea sociedade de controle8 que j o envolvia. No que tange particularmente
ao discurso poltico, essa passagem no corresponde a um abandono absoluto de antigas
prticas e representaes, em favor da instaurao exclusiva das novidades incondicionais, mas
se trata inegavelmente do estabelecimento de uma relativa predominncia de novas
modalidades de ao e pensamento. Nesse caso, a transio de um tipo predominante de
relaes sociais para um outro: a) assinala, aps a derrocada dos regimes autoritrios e desde o
recente crescimento do individualismo, o advento de uma conjuntura histrica mais
democrtica e dotada de novas sensibilidades, na qual se privilegiam certos comportamentos
expressivos e certas estratgias argumentativas, que transformam o prprio estatuto dos
interlocutores; e b) implica a emergncia e a consolidao de novos media, que, por seu turno,
permitem a constituio de textos em novas formulaes semiticas, alterando
consideravelmente a produo e a recepo discursivas. Observamos, ento, um conjunto de
reconfiguraes histricas intrnsecas ou oblquas de um dos objetos privilegiados da Anlise
do discurso que, praticamente, nasceu analisando-o e que, no entanto, parece nem sempre ter
considerado, suficientemente e sem algum atraso, suas metamorfoses capitais9.
A reflexo sobre o discurso poltico contemporneo, inspirada pela Semiologia
histrica, impeliu-nos a considerar invarincias e transformaes da fala pblica. No que
respeita s continuidades, cremos que haja uma permanente utilizao de recursos corporais,
tcnicos e semiolgicos que, conjugados com a linguagem verbal, sempre foram mobilizados
nas ocasies de fala pblica. Tambm acreditamos no ter havido grandes alteraes quanto
separao entre fala pblica e fala privada, considerando que a primeira caracteriza-se pela
presena de um nico e determinado falante que se dirige a um conjunto de ouvintes, em um
contexto marcado por alguns protocolos e rituais de fala, e que a segunda consiste em uma
8 Para detalhes sobre a distino apontada por Michel Foucault entre as sociedades de soberania, disciplinar e de controle, alm dos textos do prprio autor, tal como Foucault ([1975] 1987), ver tambm Deleuze (1986) e Gregolin (2004). Voltaremos a considerar essa distino em vrias passagens de nosso trabalho. 9 Somente a partir da dcada de 1980 que Michel Pcheux comea a considerar as mudanas do discurso poltico contemporneo, sugerindo que as atuais discursividades polticas estavam j, naquele perodo, definitivamente relacionadas com as mdias. A lngua de madeira havia se transformado em lngua de vento e as eleies assemelhavam-se cada vez mais a manifestaes esportivas miditicas. Pcheux alude ainda ao acontecimento televisual e questo da relao entre a imagem e o texto. Apontamentos e aluses importantes e fecundos, que, todavia, por sua prpria natureza, no tm o alcance de ponderaes aprofundadas e exaustivas. (Cf., por exemplo: Gadet & Pcheux (1981); Pcheux ([1983] 1997a); e Pcheux ([1983] 1997c). Pretendemos observar, por meio de um conciso recenseamento bibliogrfico, quando, como e em que medida essas indicaes de Pcheux ressoaram e influenciaram os trabalhos ulteriores em AD sobre o discurso poltico.
16
situao aparentemente mais informal, em que a comunicao coloquial tende a se apresentar
menos tensa e mais descontrada, tendo em vista que o direito fala est, em princpio,
repartido entre todos os sujeitos que participam dessa ocasio. J no que concerne s
descontinuidades das prticas de falar em pblico, pressupomos que tenham ocorrido diversas
metamorfoses no uso dos elementos lingsticos, dos gestos, da voz e de diferentes intrumentos
tcnicos, na medida em que eles foram inseridos em diferentes quadros culturais ou em
distintas pocas da histria. Detendo-nos sobre certas especificidades contemporneas desse
tipo de fala pblica que o discurso poltico eleitoral televisivo, pensamos poder condens-las
no fenmeno da espetacularizao da poltica, no interior do qual se inscrevem o suposto
fim das ideologias e comeo da despolitizao, a dissoluo das massas e o
recrudescimento recente dos individualismos, a ampliao da esfera privada e a diminuio da
pblica, o surgimento e a consolidao das novas mdias, a acelerao dos ritmos e a reduo
dos espaos da vida, a incorporao de estratgias publicitrias pela fala poltica, as mudanas
retricas e as novas configuraes semiolgicas do discurso poltico-televisivo.
Essas transformaes tornam-se ainda mais visveis nas ocasies em que a produo e a
recepo da fala pblica foram submetidas simultaneamente s metamorfoses histricas e s
modificaes tcnicas. No discurso poltico-eleitoral televisivo articulam-se novos valores e
sensibilidades, novos meios materiais de transmisso, novas cenas enunciativas, novas
discursividades e tticas retricas, novas dinmicas e formulaes semiticas. Sem perder de
vista as modificaes e especificidades dessa fala pblica de nossos tempos, examinaremos
nosso corpus, conforme dissemos, focalizando as estratgias nele utilizadas para a produo de
efeitos de verdade. O discurso poltico apresenta um trao que lhe parece ser constitutivo, a
saber, a ambivalncia entre a confiana, que o legitima, e o descrdito, que o torna vtima de
muitas suspeitas. nessa ambivalncia que o campo poltico adquire sua legitimidade
constantemente questionada (BOURDIEU, [1989] 2001), da qual deriva o estigma de
mentiroso que o persegue freqentemente. A despeito de se tratar ou no de uma propriedade
estrutural, a desconfiana que ronda o discurso poltico recebe novos contornos da
espetacularizao da poltica. Caberia-nos, portanto, perguntar: o que h de novo na
velha pecha de mentiroso amide impingida ao discurso poltico? Em que medida algumas
das representaes acerca da televiso, de seus recursos tcnicos e de suas imagens corroboram
a indiferena, o descrdito e a suspeita sofridos pelo discurso poltico?10
10 Nossa preocupao no incide sobre a essncia da verdade e da mentira no discurso poltico, nem sobre o direito (ou sobre sua interdio) reservado classe poltica de mentir para a sociedade, quando se tratam de mentiras que lhe seriam salutares. Grandes e ilustres pensadores ocidentais, tais como Plato, Maquiavel e Kant,
17
Considerando a especificidade de nosso objeto, de nossa fundamentao terica e de
nossos pressupostos, hiptese e objetivos, dividimos nosso trabalho em quatro captulos. No
Captulo I, esboaremos algumas linhas gerais do que poderamos chamar de uma genealogia
da fala pblica, a partir da qual pretendemos apresentar certas invariantes e algumas
transformaes no exerccio de falar em pblico, ao longo da histria. Para tanto, produziremos
alguns instantneos de momentos muito precisos, mas, segundo nossa interpretao, bastante
significativos das prticas de fala pblica, mediante um rpido sobrevo por diferentes fases da
histria ocidental: em princpio, na Europa, indo da Antigidade, passando pela Idade Mdia e
chegando at a Idade Moderna; e, em seguida, no Brasil, partindo das primeiras pregaes dos
missionrios europeus, no sculo XVI, at os pronunciamentos de Antnio Conselheiro e de
Rui Barbosa, dois clebres, e distintos entre si, oradores de nosso sculo XIX.
Uma vez encerradas nossas observaes sobre determinadas continuidades e
descontinuidades da fala pblica, passaremos, ento, no Captulo II, a tentar apreender
algumas caractersticas do discurso poltico. As aluses a esse discurso pululam entre leigos e
especialistas, mas, em boa parte dos casos, sem que haja grande interesse ou preocupao em
tentar circunscrever o objeto do qual se fala. Na Anlise do discurso, em particular, vimos
serem repetidas, de modo freqente e quase indistinto, referncias ao sintagma o poltico
para designar uma ampla gama de produes discursivas. Muitas vezes, tudo se passa como se
todo e qualquer discurso fosse igualmente poltico, como se no houvesse diferentes modos e
intensidades de controle do dizer, distintas formas de enunciao e de legitimao institucional
e diversos investimentos de poder que atravessam os discursos que se produzem no campo
poltico em relao a outros produzidos alhures. Evidentemente, isso no significa, contudo,
que pressupomos a exclusividade das caractersticas s quais faremos referncia. Somente uma
lgica torta ou um pensamento voluntariamente tendencioso de um conhecedor dos princpios
da AD faria corresponder alegao das especificidades do discurso poltico uma ausncia de
procedimentos de controle, de legitimao e de poder presentes, de fato e a seu modo, em todos
os outros domnios discursivos, at mesmo, nos mais cotidianos e descontrados. Por essas
razes e para tentar melhor compreender nosso prprio objeto de reflexo, empreenderemos
uma sumria caracterizao do discurso poltico.
J no Captulo III, realizaremos um breve recenseamento bibliogrfico, no qual sero
includos tanto trabalhos clssicos quanto estudos mais recentes que tenham se debruado
por exemplo, j refletiram acerca dessas questes, que fogem de nossa alada. Consideramos somente um aspecto de sua dimenso discursiva, ou seja, a constncia de uma representao sobre o discurso poltico, de uma memria freqentemente atualizada no cotidiano e insistentemente refutada por esse mesmo discurso.
18
sobre o discurso poltico e que tenham sido levados a cabo por autores franceses e brasileiros,
fundamentados nos preceitos da Anlise do discurso, desde os anos 1980 at nossos dias. Por
meio desse recenseamento bibliogrfico, buscaremos sustentar a idia de que h um certo
descompasso entre os ritmos da vida e da cincia, que representam metafrica e
respectivamente as transformaes sofridas pelo discurso poltico e muitos estudos
desenvolvidos sobre ele, no interior da AD. Em seguida, tentaremos articular algumas
contribuies da Histria cultural, da Semiologia e da Antropologia histrica aos postulados e
procedimentos da Anlsie do discurso, e refletir sobre a pertinncia do enfoque que congrega
esses campos de saber ao qual, conforme afirmamos, Courtine designou como Semiologia
histrica , quando se trata de interpretar as novas formas do discurso poltico contemporneo.
As relaes histricas entre prticas, representaes e tecnologias de linguagem, que
atravessam praticamente toda a tese, retornam de modo explcito na primeira parte do Captulo
IV. Nela, pretendemos traar uma distino entre dois dispositivos, o disciplinar e o de
controle, e entre suas diferentes formas de atualizao da fala pblica no palanque, no rdio e
na tev. Sublinhando as diferenas existentes entre essas formas de se falar em pblico, nosso
propsito consiste em mostrar comparativamente algumas caractersticas do discurso poltico
transmitido pela televiso. Considerando as novas formas do discurso poltico contemporneo,
tais como suas formulaes semiolgicas sincrticas, a diversidade de gneros discursivos em
que ele se manifesta e a explorao da dimenso audiovisual da tev, cremos que o prprio
objeto indica-nos um modo possvel e vivel de se abord-lo, de modo que no negligenciemos
as outras linguagens que concorrem com a lngua e produzem textos sincrticos, nem
desconsideremos o emprego estratgico de gneros discursivos, tais como reportagens,
entrevistas, debates, documentrios, videoclipes, etc., to distintos dos clssicos
pronunciamentos monolgicos dos polticos de outrora. Alm disso, a tev um medium11 que
toca o olhar e a escuta, fato que contribui para a produo de efeitos de verdade, ainda que
paire sobre as produes televisivas uma boa dose de desconfiana. J na segunda parte do
ltimo captulo, empreenderemos uma rpida anlise dos HGPE televisivos das eleies
presidenciais de 2002, justamente tentando apreender algumas estratgias do atual discurso
poltico eleitoral, por meio das quais se tenta produzir certos efeitos de verdade de seu dizer e
do que neles se diz.
Depois do anncio de nosso objeto, de nossos pressupostos e de nossos objetivos, na
iminncia de encerrarmos nossa Introduo, somos acossados, ao mesmo tempo, pela vontade
11 Utilizamos a noo de medium, conforme a conceituao de suporte, na obra de Roger Chartier ([1982-1986] 1990).
19
de efetivamente comear e por uma certa hesitao a faz-lo. Foucault ([1970] 2000a) j nos
ensinou sobre os perigos que rondam os comeos... Se, como homens, somos impelidos a falar,
tambm somos constrangidos a controlar nosso dizer. O sentimento que ora nos freqenta no
, portanto, nossa exclusividade: antes do tempo, ainda no mito, onde quase tudo comea e
termina, Prometeu j se afligia diante dessa dupla injuno.
20
CAPTULO I
FRAGMENTOS PARA UMA GENEALOGIA DA FALA PBLICA
A retrica essencialmente republicana. Nietzsche
Falar mete-me medo porque, nunca dizendo o suficiente sempre digo tambm demasiado.
Derrida
1.1. Antes do comeo, algumas precises
Se no posso romper o silncio sobre o que me afeta, tampouco posso guardar o
silncio! , certamente, doloroso, para mim, tomar a palavra, mas tambm doloroso calar-
me: de todos os lados, aflio!12 Depois da angstia de um longo silncio, a injuno, no
menos incmoda, ao dizer. No mito, um dizer contundente seguido, uma vez mais, de um
longo e novo silncio... Prometeu ouve Oceano, escuta o coro e silencia. E se o seu silncio
longo, no , entretanto, infindo. preciso ainda e novamente rescindir o silncio, retomar a
palavra e defender-se, altivamente, dizendo dos benefcios feitos humanidade (Cf.
SQUILO, [525-456 a. C.] 1999, p. 337).
Mas, Prometeu um mito. Ele e est em um tempo antes do tempo e em um espao
fora de lugar. Teseu, por sua vez, ainda que no universo trgico, est no tempo histrico e no
espao poltico. O silncio e a fala do rei de Atenas so produzidos em um intrincado jogo de
relaes de fora na histria e produzem efeitos sobre essas relaes. Pela voz de Teseu,
instaura-se uma apologia fala ilustre e cidad, que se contrape omisso annima, sob a
forma de um silncio: No chegamos a lugar nenhum, se mantivermos a boca fechada.13
12 squilo ([525-456 a. C.] 1999, p. 328 e 331). 13 Eurpedes ([480-406 a. C.], 1999, p. 1066). Ao longo de As suplicantes, observamos ainda outras passagens em que Eurpedes, pela voz de Teseu, discorre sobre a importncia da fala pblica na democracia, destacando, inclusive, a frmula pela qual o arauto da polis abre a assemblia, em que participam e podem intervir todos os
21
Relacionados a essa defesa da alocuo civil, no seio de uma representao idealizada da
democracia, encontramos um recorrente motivo argumentativo e a correlata imagem que o
orador constri de si e de sua prpria fala: somente uma imperiosa necessidade de servir ao
bem comum o arranca do silncio.Uma imposio tica e poltica obriga-o a falar. Ele no o
faz por mero prazer. Tambm em Lsias, observamos a atualizao desse motivo: Quisera eu
que um outro falasse em meu lugar...14
O orador diz ou sugere que fala to-somente em nome e pelo bem da coletividade, pela
importncia de sua opinio, pela impossibilidade de que outro o substitua... Em face da
suspeita de que os interesses de quem fala possam ser apenas individuais e no pblicos, torna-
se necessrio que o orador aja como se lamentasse a situao de fala. Por outro lado, seu
silncio quase impossvel ou, ao menos, bastante significativo. Enquanto para Teseu, embora
ele incite a fala, calar-se na assemblia parece tratar-se simplesmente de uma atitude neutra do
homem annimo, para muitos oradores gregos, o silncio deveria ser justificado e no
interpretado como mera e inocente deciso de nada dizer, por no ter o que dizer. incipiente
distino de Teseu, de acordo com a qual no h seno uma nica espcie de fala (a til e
clebre) e um nico tipo de silncio (o annimo e discreto), ope-se e impe-se uma ampla
gama de matizes significativos no falar e no calar-se, cujo limite um silncio que fala e uma
fala que silencia. Assim, diante do elogio fala til, prefervel ao silncio pernicioso, haveria
um silncio salutar, prefervel a uma fala qualquer e, talvez, at lesiva.
Desenvolvendo esse princpio do silncio edificante, squines, compelido a tornar
plausveis suas ausncias nas assemblias, contrape-se a Demstenes, fazendo uma clebre
defesa da intermitncia de suas alocues15:
Nas oligarquias, aquele que fala ao povo no quem quer faz-lo, mas aquele que tem o poder para faz-lo; nas democracias, ao contrrio, fala quem quer e quando lhe parece por bem. Falar de vez em quando significa fazer poltica, em funo das circunstncias e da utilidade dessa sua fala, enquanto no deixar passar um nico dia sem falar denuncia um homem que o faz por profisso e somente para receber um salrio. (SQUINES, [389 a.C.-314 a.C.] apud MONTIGLIO, 1994, p. 25).
Demstenes, por seu turno, reivindica o primado da fala, recusando ao homem poltico a
liberdade de guardar seu silncio: o imperativo de falar pelo bem comum deve sobrepor-se ao
cidados gregos: Aquele que quiser tomar a palavra para expor seu ponto de vista, pelo bem do Estado, comunidade, pode faz-lo agora. 14. Nessa e vrias outras passagens de seus discursos, Lsias vale-se dessa estratgia retrica. (Cf LYSIAS, [440 a.C.-360 a.C] 1967, p. 111 e 160). 15 Esta contraposio entre squines e Demstenes devida ao texto de Montiglio (1994, p. 23-41).
22
direito de calar-se, seja por omisso seja por interesse inescrupuloso. Eia, tomai e lede este
meu decreto, sobre o qual squines, muito de indstria, silenciou. e adiante Isto fiz eu,
squines, depois que o pregoeiro interrogou: 'quem quer falar?' [...] A esse tempo, estavas
mudo na assemblia; eu me apresentava e falava. (DEMSTENES, [384 a.C.-322 a.C.] 1965,
p. 99). provvel que sempre haja a suspeita de indiferena, de passividade excessiva ou at
mesmo de desonestidade sobre aquele que se cala e se omite. Nos sculos V e IV a. C., no
espao pblico grego, e mais particularmente em Atenas, a eqidade do direito fala
concedido a cada cidado (isegora) e o exerccio efetivo desse direito (parrhesa), em toda a
sua extenso na assemblia, so condies necessrias para realizao do projeto de uma
democracia direta: diante da eventual inexistncia da isegora e/ou da impossibilidade de seu
corolrio, a parrhesa, tratar-se-ia do aniquilamento da condio de base desse projeto
democrtico e, por extenso, da atividade que o concretiza16. As posies de squines e de
Demstenes sobre o comportamento nas assemblias representam, respectivamente, um direito
ao silncio e um dever de fala.
Mas as aflies, poderes e perigos do dizer e do calar no esto reservados aos tits, aos
reis e aos inesquecveis oradores. Tambm ns, humanos e mortais, usufrumos esse bem e
padecemos desse mal. Por isso, depois de um longo silncio, durante o qual se pressupe que
tenhamos realizado leituras e escutas produtivas, supostamente adquirimos um saber,
conquistamos um direito de fala e somos impelidos por um dever-dizer. Conforme j
anunciamos, comearemos por discorrer acerca da fala pblica, para que possamos tratar mais
adequadamente de algumas complexidades do discurso poltico contemporneo. Tentaremos
delinear alguns dos traos mais marcantes das prticas de fala pblica, em diferentes perodos
da histria, focalizando as metamorfoses e as invarincias das relaes entre o orador, sua fala
e seu pblico. Conforme j adiantamos, passaremos ligeiramente pela Antigidade (Perodos
Homrico, Clssico e Helenstico), pelo final da Idade Mdia europia e pelo incio da Era
Moderna ocidental17. Ao finalizarmos esse trajeto, lanaremos algumas notas do que
16 O direito fala pblica no se confunde, entretanto, com a ausncia de controle sobre o dizer. Na gora, eram numerosas as restries consuetudinrias cujo objetivo era o de conter os excessos e perigos da liberdade de fala. Esses controles sobre a elocuo pblica eram, inclusive, explorados por alguns oradores e figuravam sob a forma de efeitos de silncio em torno dos auto-elogios ou dos insultos: oradores que sugerem o indizvel e que fazem das hesitaes e dos silncios um dizer eloqentssimo. Simulando calar-se sobre o que poderia ainda ser dito, ampliavam consideravelmente a potncia do seu dizer. 17 Seguindo uma certa conveno historiogrfica j consolidada (ainda que reconhecidamente problemtica...), conservamos aqui, em funo de sua comodidade e didatismo, a diviso da Histria em Antigidade, Idade Mdia, Idade Moderna, Contemporaneidade. Nesse sentido, sublinhamos que os marcos cronolgicos e suas denominaes devem ser concebidos to somente como pontos de referncia, visto que no se pode atribuir aos processos histricos comeo, meio e fim precisos e definitivos: cada momento da Histria tem seus antecedentes e seus desenvolvimentos ulteriores.
23
poderamos chamar de uma breve genealogia da fala pblica no Brasil, comparando dois
perodos de nossa histria: o Colonial e a Primeira Repblica. Interromperemos
provisoriamente esse percurso e o retomaremos, de certo modo, no Captulo IV, quando
voltaremos a nos ocupar das diferenas entre as prticas de falar em pblico no palanque, no
rdio e na televiso, durante o sculo XX. Nosso propsito ser, ento, o de tentar distinguir o
tempo da integrao poltica das massas e o perodo de sua disperso, fomentada pela
emergncia e consolidao das novas tecnologias de linguagem que possibilitaram a
transmisso da fala poltica distncia.
Tendo em vista esse nosso objetivo, compilamos fontes primrias e secundrias, de
naturezas diversas: desde a Ilada e a Odissia, da Histria da guerra do Peloponeso e de
discursos de oradores gregos, passando pelas interpretaes de especialistas que se debruaram
sobre as Idades Mdia e Moderna, at relatos de missionrios e de viajantes do sculo XVI, Os
sertes, de Euclydes da Cunha, manuscritos de Antnio Conselheiro e um pronunciamento de
Rui Barbosa. Cremos, no entanto, que a heterogeneidade das fontes e sua natureza, por vezes,
problemtica (como as literrias, por exemplo), no inviabilizaro, nem mesmo prejudicaro
substancialmente, a possibilidade de sugerir algumas das caractersticas mais emblemticas da
fala pblica desses diferentes perodos considerados. Alm disso, no que concerne ao final do
sculo XIX a poca das massas, na qual tentaremos apreender alguns ndices das relaes
entre o orador poltico e seu pblico, para que possamos, em seguida, contrast-los com
aqueles que caracterizam as falas pblicas da segunda metade do sculo XX , acreditamos
dispor de fontes e de comentrios especializados suficientes para o nosso fim.
1.2. Transformaes da fala pblica na Histria
1.2.1. Falar em pblico na Antigidade
Entre os Perodos Homrico, Clssico e Helenstico, alm das relativas continuidades
de tcnicas, prticas e representaes histricas, existe uma tnue, mas bastante significativa
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diferena no que se refere fala pblica18. Em se tratando da preocupao do orador em fazer
silenciar o pblico ouvinte para que ele pudesse usufruir sua ateno e sua possvel adeso, a
mudana reside no modo como a fala do tribuno interrompida pelas intervenes,
comentrios, glosas, elucidaes ou discordncias dos ouvintes. Tornava-se necessrio, diante
dos tumultos, alaridos e agitaes iniciais ou constantes, impor ou, ao menos, solicitar o
silncio aos participantes das assemblias. Em certos casos, era preciso interromper antes que
se fosse interrompido. Tratava-se de uma situao ideal concebida para uma eloqncia
perfeita. J na Ilada, deparamo-nos com a representao de um orador que toma precaues
contra as dificuldades de seu fazer persuasivo, pressupondo a indiferena ou, at mesmo, a
hostilidade de seu pblico. Tomemos, por exemplo, a reao exultante dos gregos que
compunham a assemblia sugerida por Ttis e convocada por Aquiles para que esse ltimo
anunciasse tanto sua reconciliao com Agamenon quanto sua deciso de voltar guerra ,
provocada pela fala de Aquiles, impe a Agamenon, que quem tomar a palavra em seguida,
cuidados e cautelas para que ele consiga falar e ser ouvido:
Logo que todos os homens da Acaia reunidos se acharam, Ala-se Aquiles de rpidos ps e lhes diz o seguinte: 'Esta reconciliao, Agammnone, fora mais til para ns dois, se levada a bom termo no dia em que fomos pela Discrdia vencidos, por causa, to-s, de uma escrava. [...] Mas passado passado. O dever me concita, nessa hora, ainda que muito irritado, a refrear o rancor do imo peito. Da ira desisto; no me orna, em verdade, mostrar-me implacvel por muito tempo. Mas vamos! agora incitar te compete para o combate os Aquivos de soltos cabelos nos ombros. Quero encontrar, novamente, os Troianos e ver se ainda insistem em pernoitar junto aos nossos navios; mas penso que muitos ho de, aliviados, os joelhos dobrar, quando escapos se virem da fria insana da guerra e de nossa hasta longa e invencvel'. Isso disse ele; os Acaios de grevas bem feitas exultam por ver o grande Pelida acalmado o rancor, finalmente. Disse aos Aquivos, ento, Agammnone, rei poderoso, sem avanar para o meio, do prprio lugar onde estava: 'Meus valorosos Aquivos, alunos do deus Ares forte, decoroso em silncio escutardes-me agora; at mesmo os oradores mais hbeis aparte importuno os perturba. Como possvel que em meio ao barulho falar algum possa, ou ser ouvido, ainda mesmo dotado de voz retumbante? Vou dirigir-me ao Pelida; mas quero que todos os homens de Argos me escutem e, atentos, reflitam nas minhas palavras.
18 As interpretaes que fizemos de algumas das caractersticas das falas pblicas na Antigidade inspiraram-se nos trabalhos de Nietzsche ([1896] 1999); Vernant (1962); Detienne (1981); Montiglio (1994); Chau (2002). Foi tambm com base nas referncias contidas nesses trabalhos que coligimos algumas fontes primrias fundamentais para o estabelecimento das nossas breves consideraes acerca da fala pblica na Antigidade.
25
(ILADA, XIX, v. 54-84, grifos nossos)
A manifestao do silncio e da passividade dos participantes nos espetculos artsticos,
reunies ou assemblias , relativamente, freqente na Ilada, mas tambm o na Odissia.
Vejamos algumas passagens que atestam a bem comportada recepo dos ouvintes homricos:
a) quando Agamenon encerra sua proposta de abandonar a guerra: 'Ora faamos conforme o
aconselho; obedeam-me todos:/ para o torro de nascena fujamos nas cleres naves,/ pois
impossvel tomar a cidade espaosa dos Teucros.'/ Isso disse ele; calados e quedos os outros
ficaram./ Por muito tempo em silncio mantm-se os turvados Aquivos (ILADA, IX, v. 26-
30);
b) na reunio dos pretendentes de Penlope, na casa de Ulisses: Todos, em volta, escutavam
silentes o aedo famoso,/ que lhes cantava o retrno funesto [...]. (ODISSIA, I, v. 325-326);
c) na descrio da reao fala de Telmaco: Isso disse le, indignado; e, rompendo num
pranto copioso,/ o cetro atira no cho. Todo o povo de dor tomado./ Quedos mantm-se os
presentes; ningum a objetar se atrevia/ s expresses de Telmaco, prenhes de acerbo
sentido. (ODISSIA, II, v. 80-83);
d) na interveno de Mentor, intercedendo em favor do filho de Ulisses e contra os
pretendentes na assemblia convocada por Telmaco: Os pretendentes soberbos, no vou
censurar, certamente,/ pelas violncias que fazem, produto de instintos malvados,/ que les as
prprias cabeas arriscam pilhando a fazenda/ do valoroso Odisseu, na iluso de que a casa
no volta./ Mas contra o resto do povo no posso deixar de indignar-me./ Com serdes muitos,
ficais em silncio, sentados, sem verdes/ que aos pretendentes, por poucos, podeis impor
vosso freio. (ODISSIA, II, v. 235-241);
e) quando o narrador assinala tanto a reao dos faces quanto seu comportamento durante a
exposio de Ulisses, no momento em que esse ltimo finalizara o longo relato de suas
proezas, desde sua partida de Tria at sua chegada s terras de Calipso, que se estende do
Canto IX ao Canto XII: Isso disse le; os presentes calados e quedos ficaram,/ como que
presos por mgico influxo na sala sombria. (ODISSIA, XIII, v.1-2).
Poder-se-ia, entretanto, interpretar esses silncios e omisses como decorrentes do
carter excepcional das situaes em que eles se manifestam e no como caracterstica
propriamente dita da expresso em pblico. Contudo, seguindo o levantamento que fizemos
nas duas grandes epopias de Homero, constatamos que todas as referncias a
pronunciamentos, ainda que eles sejam de diversas ordens e de diferentes tipos, atestam no
somente a alterao regulada dos turnos de fala, mas tambm o bom comportamento dos
26
ouvintes homricos; to-logo uma fala envolvida pelo ritual de tomada de palavra iniciada, o
pblico se mantm em absoluto silncio. A participao ativa daqueles que ouvem se d
antes e depois, mas nunca durante um pronunciamento.
De modo anlogo, mas no idntico, os oradores da poca clssica protegem-se contra
os perigos da audincia. Nesse caso, trata-se de reiterados assaltos dos ouvintes e das
constantes celeumas que consistem em uma real ameaa, diferentemente da pacata escuta
qual se dirigiam os oradores de Homero. Enquanto na Ilada e na Odissia, de acordo com
nosso inventrio, os tumultos limitam-se fase inicial da assemblia, antes do comeo da
interveno do orador ou, ao seu final, e se apresentam sob a forma de reaes favorveis ou
contrrias, de modo que basta ao tribuno adotar algumas prvias medidas retricas19 para ser
ouvido, no auditrio de uma assemblia na qual fala Pricles, no Perodo Clssico, ou
Demstenes, no Helenstico, por exemplo, parece haver um barulho constante e cada um dos
ouvintes pode interromp-los a qualquer momento. Tendo sido iniciado o turno de fala de um
orador, no Perodo Homrico, no h mais o risco de que ele seja interrompido por um outro,
que lhe tomaria a fala: nas epopias de Homero, as seqncias sem interrupo so
freqentemente binrias, tornando improvvel o advento de intervenes polifnicas ou de
rudos democrticos. De certo modo, o povo homrico est alijado das deliberaes, visto
que assiste, sem interromper, a uma alternncia de seqncias (proferidas por divindades e
semi-divindades) sistemtica e regulada20.
J em uma poca em que a doxa superava a altheia tempo em que, pouco a pouco,
em detrimento de um verbo inspirado, no qual a verdade presentificava-se como recitao,
19 Alm da linguagem verbal, sob a forma de um pedido de silncio feito pelo prprio orador ou da interveno dos arautos, constam outros recursos retricos. A tomada da palavra na Ilada e na Odissia normalmente precedida e/ou acompanhada da seguinte seqncia: o orador eleva-se de sua cadeira, pondo-se de p, caminha at o centro da assemblia, toma e porta o cetro e eleva sua voz. Procedimentos para ser visto e ouvido que ratificavam a j extraordinria figura do tribuno. Entre as vrias passagens em que observamos o uso desses procedimentos, podemos mencionar aquela em que Odisseu, antes de retomar a palavra, cala-se, aps ter repreendido Tersites, e suscitado na multido uma grande reao favorvel: A chusma assim se expressava. Odisseu, eversor de cidades,/ o cetro empunha, de p. Sob a forma do arauto, ao seu lado,/ a de olhos glaucos, Atena, ordenava silncio s fileiras,/ para que todos os homens Acaios, de perto e de longe, suas palavras ouvissem e, aps, orientar-se soubessem./Cheio de bons pensamentos lhe diz, arengando, o seguinte: Filho de Atreu, soberano, os guerreiros Aquivos desejam/ que ante o universo os homens mortais infamado tu fiques. (ILADA, II, v. 278-285, grifo nosso). 20 Ver, por exemplo, algumas das passagens da Ilada e da Odissia, nas quais se pode observar essa caracterstica nas representaes homricas das relaes entre o orador e seu auditrio: Ilada (Cantos: I, II, VII, IX, XIX e XX) e Odissia (Cantos: I, II, V, VIII e XXIV). Entretanto, ainda que haja um certo alijamento do povo, nas imagens da assemblia do perodo homrico e preciso que no nos esqueamos da grande excluso que permanecer mesmo nos tempos clssicos da democracia de Pricles, na qual apenas uma parcela bastante limitada da populao, de fato, participava da vida poltica da cidade (cf. SENNETT, [1994] 2003, p. 47-48) , j existe uma intensa valorizao da assemblia, como condio de "civilidade" e "cidadania", conforme, por exemplo, a passagem em que Ulisses fala aos Faces sobre a ausncia de assemblias entre os Ciclopes (ODISSIA, IX, v. 105-108; 112-115).
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como no-esquecimento daquilo que j havia sido vislumbrado em um inteligvel
transcendente, estabelece-se a sobreposio de um verbo leigo e humano, por meio do qual a
verdade instaura-se sob a forma de decises oriundas das discusses pblicas , comeam a ser
abertas as condies de possibilidade para o advento da filosofia e da poltica, mas tambm
para o da sofstica e da retrica. Noutros termos, trata-se da decadncia da fala-eficaz,
proferida por aquele que fazia porque falava de (e encarnava) um invisvel sagrado, e da
ascenso da fala-dilogo, pronunciada por aquele que faz porque fala de um visvel
poltico21. Segundo uma certa tradio da histria da filosofia, esta ltima teria se separado da
religio entre os sculos VII e VI a.C. At esse perodo, entretanto, preservava-se a crena de
que a eloqncia era um dom divino-natural. Somente por volta do sculo V, surgiram os
primeiros manuais de retrica, cuja emergncia sugere o fato de que, a partir de ento, tornou-
se possvel ensinar e aprender a arte da oratria. Do final do Perodo Homrico at o apogeu do
Perodo Clssico, no interior do qual Pricles, entre os anos de 460 a.C. e 429 a.C., depois das
reformas de Clstenes, consolidou e aperfeioou a democracia ateniense, passaram-se
aproximadamente quatro sculos de histria e ocorreram muitas transformaes polticas,
sociais, culturais e urbanas22.
Assim, a partir do auge da democracia grega, nos sculos V e IV a.C., as relaes entre
o orador e o pblico que participava das assemblias tornaram-se bastante interativas.
Conforme havamos dito, os tribunos gregos dessa poca, mesmo com toda a potncia oratria
de um Pricles, tinham de tomar muitas precaues para evitar uma ateno demasiadamente
difusa e para assegurar que seu turno de fala se mantivesse relativamente a salvo das
constantes tentativas de interrupo. preciso ainda que no se perca de vista o fato de que,
no sculo V a.C., Atenas dispunha de dois tipos absolutamente diferentes de espao de fala, a
saber, a gora e o teatro, onde, respectiva e preponderantemente, habitavam o logos e o
pathos. Esses dois ambientes proporcionavam duas experincias distintas das prticas de fala
pblica:
Na gora, mltiplas atividades transcorriam simultaneamente, enquanto as pessoas se movimentavam, conversando em pequenos grupos sobre
21 Marilena Chau sublinha a relao entre as mudanas ocorridas e o nascimento da filosofia: A filosofia nasce, portanto, no contexto da plis e da existncia de um discurso (logos) pblico, dialogal, compartilhado, decisional, feito na troca de opinies e na capacidade para encontrar e desenvolver argumentos que persuadam os outros e os faam aceitar como vlida e correta a opinio emitida, ou rejeit-la se houver fraqueza dos argumentos. (CHAU, 2002, p. 44). Para mais detalhes sobre o deslocamento de um logos mgico-sagrado para um logos poltico, conferir Vernant (1962, p. 41) e Detienne (1981, p. 102). 22 H entre essas duas pocas o chamado Perodo Arcaico, que se estende do final do sculo VIII a.C. ao incio do sculo V a.C. Sobre esse perodo da Antigidade grega, ver, Chau (2002, p. 16).
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diferentes assuntos ao mesmo tempo. No havia nenhuma voz dominante. Nos teatros da velha cidade, as pessoas ainda ocupavam seus lugares para ouvir uma nica e clara voz. Os stios urbanos mais amplos apresentavam perigo para a linguagem, pois neles, em meio s atividades concomitantes e ininterruptas, as palavras se dispersavam entre murmrios das vozes; a massa dos corpos em movimento nada percebia alm de fragmentos do sentido que elas expressavam. No teatro, a voz singular assumia forma artstica, atravs das tcnicas de retrica. Os locais reservados aos espectadores eram to organizados que amide a eloqncia os vitimava, paralisando-os e humilhando-os com seu fluxo. (SENNETT, [1994] 2003, p. 47).
Em razo de nosso objeto de reflexo, interessamo-nos antes pelos tumultos da gora
(lugar privilegiado dos encontros, debates e assemblias pblicas) do que por uma certa
ordem apassivadora dos teatros; embora, eventualmente, esses recintos tenham sido
utilizados para reunies polticas, e ainda tenham sido tomados como modelos para a
concepo e uso de stios polticos como a Casa do Conselho, Bouleuterion, ou a colina de
Pnice (cf. SENNETT, [1994] 2003). Nossa predileo, contudo, no implica a
desconsiderao da dimenso poltica das prticas culturais dessa poca, como, por exemplo,
a relevncia das tragdias tanto pela temtica de algumas delas quanto pela sua prpria forma
de apresentao. Face isegora e parrhesa, diferentemente, portanto, das assemblias
homricas, as quais se caracterizavam pelo clima pacato e tranqilo, o orador clssico
vislumbrava os riscos de freqentes rudos, comentrios e tumultos e pedia solicitamente a
ateno e o silncio de seu auditrio para se fazer ouvir. Por vezes, era preciso que o tribuno
interrompesse seu discurso, fizesse uma digresso ftica, para que ele no fosse,
seguidamente, interrompido. Na Histria da Guerra do Peloponeso, por exemplo, Tucdides,
aludindo j na sua poca aos rigores historiogrficos e revelando como se deu a reproduo
dos discursos que constam em sua obra, apresenta uma srie de elogios oratria, uma
verdadeira apologia palavra23. As referncias s assemblias, as reprodues dos discursos
e os enaltecimentos eloqncia, sobretudo, a de Pricles e de Antifon, pululam na Histria,
de Tucdides.
A fala pblica e os valores democrticos a ela intrinsecamente relacionados esto
presentes em quase toda extenso da Histria da Guerra do Peloponeso, mas so
particularmente marcantes na cerimnia de enterramento dos atenienses mortos ao fim do
primeiro ano da Guerra. Trata-se de uma das mais clebres passagens da Histria, na qual,
no sem razo, Pricles foi o escolhido para encerrar o ritual fnebre com um discurso, 23 Sobre o mtodo historiogrfico de Tucdides, o modo como foram registrados os discursos que constam em sua Histria e a valorizao da fala pblica, ver Tucdides ([411 a.C.] 1986, respectivamente s pginas 27-28, 28 e 77-81).
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conforme era o costume dos antepassados. Ao finalizar a descrio do rito, Tucdides
acrescenta: Aps o enterro dos restos mortais, um cidado escolhido pela cidade,
considerado o mais qualificado em termos de inteligncia e tido na mais alta estima pblica,
pronuncia um elogio adequado em honra dos defuntos. (TUCDIDES, [411 a.C.] 1986, p. 96-
97). E antes de dar voz ao prprio Pricles, Tucdides, tendo afirmado que havia sido ele,
Pricles, o indicado, relata o modo como o mais renomado dos comandantes militares gregos
tomou a palavra: No caso presente das primeiras vtimas de guerra, Pricles filho de Xntipos
foi escolhido para falar. No momento oportuno ele avanou para o mausolu, subiu
plataforma, bastante alta para que sua voz fosse ouvida to longe quanto possvel pela
multido [...] (TUCDIDES, [411 a.C.] 1986, p. 97, grifo nosso). De acordo com o relato de
Tucdides, podemos observar que, embora se tratasse de uma ocasio em que no haveria
debate de opinies, de uma situao na qual o silncio ouvinte se estabeleceria facilmente,
dado o carter solene-fnebre das circunstncias, h uma ntida preocupao em envolver o
episdio pelo aparato ritualstico e de fazer com que o orador fosse visto e ouvido pelo
auditrio.
O respeito s circunstncias funreas e o silncio dos mortos na Guerra no
correspondem ao ambiente dinmico das assemblias representadas em tantas passagens da
Histria da Guerra do Peloponeso. Tomemos, por exemplo, duas das mais animadas dessas
reunies, a saber: a) a assemblia na qual os gregos de Samos, convencidos de que a aliana
com o rei Darios seria a nica soluo a ser adotada para vencer os habitantes do Peloponeso,
propem o retorno de Alcibades para que, por meio dele, essa aliana fosse estabelecida:
Ao mesmo tempo os emissrios mandados de Samos com Psandros chegaram a Atenas e falaram diante do povo resumindo inmeros argumentos, insistindo particularmente em que, se chamassem Alcibades de volta e no mantivessem a mesma forma de democracia, poderiam ter o Rei como aliado e vencer os peloponsios. Quanto democracia, muitos falaram contra a proposta, e os inimigos de Alcibades aproveitaram a oportunidade para protestar em altos brados, dizendo que seria intolervel receb-lo de volta aps a violao pelo mesmo das leis da cidade. (TUCDIDES, [411 a.C.] 1986, p. 408, grifo nosso)
e b) o confronto verbal entre os enviados dos Quatrocentos e os soldados democratas que
ficaram em Samos, em uma assemblia em que somente com muito custo Alcibades
conseguiu acalmar os soldados, fazendo-os desistir do atacar seus prprios conterrneos na
Inia, onde seriam dominados pelos peloponsios:
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Os emissrios dos Quatrocentos, mandados na poca mencionada anteriormente para apaziguar os soldados em Samos e dar-lhes explicaes, chegaram finalmente de Delos quando Alcibades j estava em Samos, e tentaram falar durante uma reunio da assemblia. Os soldados a princpio no quiseram ouvi-los, e ameaaram de morte, aos gritos, os destruidores da democracia; a muito custo se acalmaram, afinal, e os ouviram. Os emissrios declararam que a revoluo havia sido feita no para arruinar a cidade, mas para salv-la, e nunca para que Atenas fosse entregue ao inimigo [...] Embora tenham dito tudo isto e ainda mais, no conseguiram persuadir os soldados, que continuavam irados e apresentavam seguidamente vrias sugestes, particularmente a de embarcarem prontamente para atacar o Pireu. (TUCDIDES, [411 a.C.] 1986, p. 422-423, grifos nossos).
No que respeita ao Perodo Helenstico, as assemblias parecem ter se tornado ainda
mais intensas e ativas, de modo que, conforme podemos observar em alguns excertos de
discursos de Demstenes, tornava-se necessrio suspender a fala para solicitar ao auditrio
que no se dispersasse, que no interrompesse o orador e que no o apressasse:
Avant de vous prononcer, veuillez m'couter jusqu'au bout; attendez pour prendre parti; et si les mesures que je propose vous semblent nouvelles, n'allez pas m'accuser de crer ainsi des retards. Il ne sert rien d'avoir toujours la bouche ces mots: "Vite", "Ds aujourd'hui". (DEMSTENES, [384 a.C.-322 a.C.] 1968, p. 40, grifo nosso)
Certes la dlibration, par elle-mme, est toujours ardue et difficile; mais vous, Athniens, vous l'avez rendue bien plus difficile encore. Partout ailleurs, en effet, on a l'habitude de dlibrer avant l'vnement; vous, c'est aprs l'vnement que vous dlibrez. La consquence, je l'ai toujours constat, c'est que l'orateur qui critique les erreurs commises se fait un succs; on admire comme il parle bien; mais le parti prendre, ce qui tait proprement l'objet de votre dlibration, vous chappe. N'importe: je pense et c'est dans cette conviction que je prends la parole que si vous voulez bien faire trve aux cris et aux disputes pour m'couter, comme il convient quand la rpublique, quand nos plus graves intrts sont en jeu, j'aurai vous proposer un avis qui pourra amliorer nos affaires et mme sauver ce qui a t abandonn. (DEMSTENES, [384 a.C.-322 a.C.] 1946, p. 9-10, grifo nosso)
Essas assemblias so tumultuadas e efervescentes porque o silncio e a passividade
so concebidos pejorativamente. Por outro lado, se nos fiarmos em um dado pouco
representativo visto que se trata do nico que conhecemos que sugere uma maior
afinidade dos romanos com os oradores homricos do que com os gregos que lhes eram
contemporneos, talvez pudssemos encontrar alguns indcios de que alguns latinos
valorizavam euforicamente a mudez de um auditrio atento. No Dilogo dos Oradores [81
d.C.], de Tcito, Aper, antecipando-se a Maternus que defender os mritos da poesia,
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endossar a tese segundo a qual, em detrimento dessa ltima, a eloqncia a atividade da
linguagem que tem maior valor e por meio da qual se obtm prazer com o silncio dos
ouvintes:
Je passe aux jouissances que procure l'loquence digne d'un orateur accompli; l'agrment n'en est pas d'un instant fugitif, mais presque de tous les jours et presque toutes les heures. [...] Ce n'est pas tout. Quel cortge de citoyens en toge quand tu sors! Quel spectacle imposant dans la rue! Quel respect au tribunal! Quel joie de se lever pour parler ou pour assister un ami au milieu d'un auditoire silencieux, o tous les visages sont tourns vers toi! (TCITO, [81 d.C.] 2003, p. 28-29, grifo nosso)
Ao invs de uma disciplina que instauraria uma pretensa escuta inteligente e fecunda,
impe-se a desordem ativa de uma assemblia constituda de iguais, na qual cada um daqueles
que dela participam instado a intervir efetivamente, dizendo aquilo que acredita ser til
cidade. Mas, para tanto, era preciso um certo domnio de recursos da lngua, do corpo e da
voz, sob a pena de ser facilmente interrompido ou de no conseguir quase nada dizer. No por
acaso a Retrica24, de Aristteles, apresenta preocupaes no seu Livro III em torno daquilo
que os latinos (principalmente, Ccero e Quintiliano) chamaro de actio, ou seja, todo
investimento retrico da mise en scne gestual, mmica e vocal do orador, quando de suas
alocues em pblico. Nesse sentido, so bastante conhecidas as lendas relacionadas
preparao e aos ensaios de Demstenes antes de seus discursos nas assemblias25. Tendo em
vista que a relao entre o orador e seu auditrio poderia ser imaginada como uma luta entre
duas emisses sonoras, buscando pari passu a audincia e a ateno, uma contra a outra,
absolutamente importante que o tribuno tenha, alm do emprego dos expedientes retricos,
que datam j do Perodo Homrico, uma bela e potente voz. Ou, conforme afirma Montiglio:
En effet, nous savons qu'une voix faible et dfectueuse empchait srieusement l'orateur de
faire son entre dans la vie politique. (1994, p. 37).
24 Aristteles ([384 a.C.-322 a.C] s.d). 25 Segundo a tradio o grande orador ateniense custou muito a alcanar a perfeio refletida na Orao da Coroa lanou mo, para chegar a esse estagio final, dos recursos mais desencontrados. Ter-se-ia recolhido a uma caverna, com metade dos cabelos raspados para melhor resistir tentao de deixar seu isolamento, e l teria copiado oito vezes a Histria da Guerra do Peloponeso, vigorosa obra de Tucdides, historiador grego da gerao anterior e seu modelo. Para corrigir os defeitos de articulao de certos sons punha pequenas pedras sobre a lngua. Falava a princpio diante do espelho para aprimorar a gesticulao. Falava beira-mar para conseguir tornar a voz mais forte que o rudo das ondas e capaz de sobrepujar o murmrio do povo nas assemblias. Fez-se discpulo de um dos maiores atores da poca (Neoptlemo), ao qual pagou uma fortuna a fim de dar voz a empostao perfeita. (KURY, 1965, p. 8; Introduo. In:DEMSTENES [384-322 a. C.] 1965)
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1.2.2. Falar em pblico na Idade Mdia
Aps essas nossas breves consideraes sobre alguns dos diferentes tipos de relaes
que se estabelecem, por meio da fala pblica, entre o tribuno e seu auditrio nos Perodos
Homrico, Clssico e Helenstico, passaremos, em seguida, a um ligeiro levantamento de
algumas das caractersticas das prticas de fala pblica na Idade Mdia26. Em face desse longo
perodo (que se estende do sculo V at o final do sculo XV e comeo do sculo XVI),
optamos por discorrer, rapidamente, sobre alguns dos traos mais marcantes da fala pblica
eclesistica da Baixa Idade Mdia.
A linguagem era absolutamente importante no convvio nas cortes da Baixa Idade
Mdia. Seu domnio valia a condio de seu usurio e, por essa razo, estar na corte era j, de
algum modo, falar em pblico, empregando os recursos do verbo, do corpo e da voz. Porm, a
fala pblica por excelncia do perodo medieval foi, sem dvida, a pregao eclesistica. No
que se refere s relaes entre o orador, o pronunciamento e o pblico na fala pblica
religiosa medieval, que buscava, em princpio, mas no exclusivamente, a converso e a
salvao, preciso no perder de vista que ela se caracterizava pela intensificao de um
paradoxo presente em quase toda ocasio de fala pblica: ela estabelecia uma rgida diviso
entre locutores e ouvintes, quando reunia os paroquianos e, ao mesmo tempo, instaurava, no
prprio interior dessa reunio, uma estvel diviso entre clrigos e leigos. Mas a enunciao
da palavra sagrada tinha ainda outras peculiaridades: adaptando-se aos seus diferentes
auditrios, os pregadores distinguiam, em suma e diferentemente no curso da histria
medieval, os sermes ad cleros e os sermes ad populum. Com base nessa distino, Marie-
Anne de Beaulieu prope a instituio de uma cronologia dos desenvolvimentos de vrios
tipos de predicao que se desenrolaram ao longo da Idade Mdia. Assim, a autora discerne
esquematicamente trs perodos:
26 Conforme se pode observar, diferentemente do exerccio que fizemos para caracterizar grosso modo um aspecto da fala pblica na Antigidade, recorrendo a fontes primrias (a Ilada e a Odissia, a Histria da Guerra do Peloponeso e alguns discursos de oradores gregos) e a interpretaes que delas foram feitas, aqui, dadas as dificuldades de acesso s fontes, valer-nos-emos to-somente de alguns consagrados comentrios e de algumas recentes referncias acerca da Idade Mdia. Cremos, porm, que a ausncia de fontes primrias no inviabilizar o escopo de nosso trabalho em torno da poca medieval, uma vez que pretendemos somente, como dito, ressaltar algumas das propriedades mais evidentes da fala pblica desse perodo.
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uma Alta Idade Mdia marcada por uma pregao mais voltada para os clrigos (sculos V-X); uma Idade Mdia Central (sculos XI-XII) no decurso da qual a pregao se diversifica; e uma Baixa Idade Mdia (sculos XIII-XV) que v a emergncia de uma verdadeira pregao popular, quer dizer, destinada ao povo, paralelamente ao aprofundamento da pregao aos clrigos. (BEAULIEU, 2002, p. 367)
Se na Antiguidade tardia a pregao desempenhava a funo de preparar para a
converso, sendo que as prdicas eram um monoplio episcopal exercido no quadro do
catecumenato e da missa, na Alta Idade Mdia, o batismo, conferido s crianas logo aps o
nascimento, e as atribuies polticas e administrativas do episcopado reconfiguraram os
objetivos da pregao e seu prprio desempenho. Nesse perodo, dois indcios poderiam
apontar para uma suposta popularizao dos sermes, a saber, a proliferao dos homilirios,
entre os sculos VI e IX, e a apario do plpito, no sculo IX. No entanto, o plpito era
apenas encontrado em algumas poucas e privilegiadas igrejas episcopais e monsticas, e as
pregaes efetivamente ad populum, realizadas pelo baixo clero, eram bastante limitadas tanto
no que se referia sua regularidade quanto no que dizia respeito ao seu domnio doutrinal,
restringindo os sermes a comentrios e conselhos morais. Assim, a conjuno dos esforos,
com vistas a democratizar as alocues religiosas durante a Alta Idade Mdia, no gozou de
bons resultados, visto que a pregao continuou a ser geralmente erudita, endereada em
latim aos clrigos. No curso deste perodo muito tumultuado, o povo permaneceu afastado da
palavra sagrada (BEAULIEU, 2002, p. 369).
Embora a pregao aos clrigos tenha se tornado cada vez mais erudita e a produo
dos homilirios tenha sido consideravelmente reduzida, uma relativa inflexo na pregao, no
perodo que Beaulieu denomina Idade Mdia Central, pode ser vislumbrada, por exemplo, nas
prdicas da figura monstica mais eminente dessa poca: So Bernardo, que concebia e
pronunciava seus sermes em latim, para os clrigos, e em lngua vulgar, para o povo.
Ultrapassando o quadro monstico, a pregao estendeu-se s escolas e s igrejas paroquiais:
fiis urbanos e rurais ouviam pregadores itinerantes, que, uma vez entregues vida apostlica,
haviam recebido autorizao da Igreja para pregar. Entretanto, desde o fim do sculo XII,
proliferaram os pregadores leigos que exerciam a funo sagrado-profana de difundir a
palavra de Deus sem o consentimento eclesistico e, por vezes, mesmo revelia da Igreja ou
contra ela. Face ausncia de controle e ao conseqente crescimento dos movimentos
heterodoxos, o alto clero tornou a conteno da predicao leiga, popular e para o povo uma
de suas fundamentais prioridades.
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Somente entre os sculos XIII e XV, que se pode falar de uma efetiva emergncia da
pregao popular. Na mais alta hierarquia eclesistica, os papas regulamentavam e
estimulavam as prdicas, delegando aos bispos a funo de verificar a competncia, o valor
moral e a ortodoxia dos pregadores. Esses, por seu turno, deviam expor artigos de f e
combater heresias nas preces e nos sermes de domingo e dias de festa. justamente nessas
circunstncias que surgem as Ordens Mendicantes e Dominicana que se tornaram rapidamente
responsveis pela promoo da pregao popular. Depois de ter sido autorizado pelo Papa
Inocncio III a pregar a penitncia em todos os lugares, So Francisco de Assis ampliou essa
autorizao a outros clrigos, mas tambm a leigos. A extenso aos leigos do direito de pregar
reintroduziu o problema da autoridade para difundir a palavra sagrada, fazendo com que,
posteriormente, Gregrio IX proibisse a pregao pblica laica. Desde ento, franciscanos e
dominicanos apenas podiam pregar em igrejas ou praas pblicas com a devida permisso do
proco e em horrios pr-determinados, de modo que no houvesse concomitncia entre as
pregaes do itinerante e do eclesistico local.
Tendo se tornado uma questo cada vez mais especializada, exigindo uma longa
formao e uma iniciao aos segredos do ofcio, a pregao tambm passou a impor uma
vida quase sempre itinerante ao orador. Essa exigncia advinha do fato de que o pregador
ideal deveria estar apto a pregar nas mais diversas circunstncias, nos mais distintos lugares e
para os mais variados pblicos: desde cortes principescas, passando pelas universidades,
conclios e colgios, at as mais simples parquias. Nessas ocasies, conforme sublinha
Beaulieu, os pregadores atraam multides considerveis, transformando praas pblicas e
monumentos profanos em locais de pregao (2002, p. 373). J por volta do sculo XIII,
houve uma verdadeira fragmentao e democratizao dos pblicos: os clrigos
compuseram diferentes tipos de sermes que eram destinados aos prncipes, nobres,
mercadores, burgueses, estudantes, camponeses, marinheiros, ou, ainda, aos casados, s
mulheres e s crianas. A popularizao dos sermes desenvolveu-se de tal modo, que
A pregao podia ser animad