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1 QUEIJOS E BEIJUS TRADICIONAIS: DA NOSTALGIA A SEGURANÇA ALIMENTAR 1 Sônia de Souza Mendonça Menezes- Professor Adjunto DGE/NPGEO- UFS Resumo: A proposta do artigo consiste em construir uma reflexão a respeito da produção de comidas tradicionais elaboradas por agricultores, valorizados e consumidos nos territórios rurais e urbanos. Tomamos como recorte espacial o Estado de Sergipe a partir dos dados das pesquisas realizadas nos diferentes territórios. Temos como objetivo analisar a temática da produção das iguarias como os queijos artesanais e os derivados da mandioca como uma cultura enraizada transformada em uma territorialidade que alicerça na contemporaneidade a reprodução social e econômica de grupos familiares. Esses alimentos são demandados não só por consumidores que buscam a partir da nostalgia consumir e reforçar ou alimentar a sua identidade, como também por outros que procuram os citados produtos tradicionais sem uso de condimentos e aditivos comuns aos produtos industrializados. Estudar a permanência da produção dessas comidas tradicionais e a expansão da demanda significa descortinar o sentido do consumo para homens e mulheres e interpretar o valor cultural, social e econômico a eles agregados, assim como a importância da produção desses para a segurança alimentar dos grupos envolvidos. Com este artigo, pretendemos contribuir para a ampliação do conhecimento da produção e consumo dessas comidas tradicionais fundamentados nas categorias identidade cultural e redes sociais. Palavras-chave: Comidas tradicionais, identidade, segurança alimentar. Introdução A produção de comidas tradicionais elaboradas por agricultores expressa uma relação identitária dos consumidores nos territórios rurais e urbanos. Nesse artigo tomamos como recorte espacial o Estado de Sergipe a partir dos dados das pesquisas realizadas nos diferentes territórios, com o objetivo de analisar a temática da produção das iguarias como os queijos artesanais e os derivados da mandioca como uma cultura enraizada transformada em territorialidade que alicerça na contemporaneidade a reprodução social e econômica de grupos familiares. Nas pesquisas realizadas no Estado de Sergipe, mediante visitas a agricultores familiares nas regiões do Sertão, Agreste e Zona da Mata, identificamos a elaboração dos citados produtos e a capital do Estado constitui no principal mercado consumidor. Diante da expansão da produção e consumo dessas iguarias, surgem várias indagações. Em que medida o saber-fazer associado à elaboração e ao consumo dessas iguarias está imbricado na identidade cultural dos 1 Trabalho apresentado na 29ª Reunião Brasileira de Antropologia, realizada entre os dias 03 e 06 de agosto de 2014, Natal/RN.

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QUEIJOS E BEIJUS TRADICIONAIS: DA NOSTALGIA A SEGURANÇA

ALIMENTAR1

Sônia de Souza Mendonça Menezes- Professor Adjunto DGE/NPGEO- UFS

Resumo:

A proposta do artigo consiste em construir uma reflexão a respeito da produção de

comidas tradicionais elaboradas por agricultores, valorizados e consumidos nos

territórios rurais e urbanos. Tomamos como recorte espacial o Estado de Sergipe a partir

dos dados das pesquisas realizadas nos diferentes territórios. Temos como objetivo

analisar a temática da produção das iguarias como os queijos artesanais e os derivados

da mandioca como uma cultura enraizada transformada em uma territorialidade que

alicerça na contemporaneidade a reprodução social e econômica de grupos familiares.

Esses alimentos são demandados não só por consumidores que buscam a partir da

nostalgia consumir e reforçar ou alimentar a sua identidade, como também por outros

que procuram os citados produtos tradicionais sem uso de condimentos e aditivos

comuns aos produtos industrializados. Estudar a permanência da produção dessas

comidas tradicionais e a expansão da demanda significa descortinar o sentido do

consumo para homens e mulheres e interpretar o valor cultural, social e econômico a

eles agregados, assim como a importância da produção desses para a segurança

alimentar dos grupos envolvidos. Com este artigo, pretendemos contribuir para a

ampliação do conhecimento da produção e consumo dessas comidas tradicionais

fundamentados nas categorias identidade cultural e redes sociais. Palavras-chave:

Comidas tradicionais, identidade, segurança alimentar.

Introdução

A produção de comidas tradicionais elaboradas por agricultores expressa uma relação

identitária dos consumidores nos territórios rurais e urbanos. Nesse artigo tomamos

como recorte espacial o Estado de Sergipe a partir dos dados das pesquisas realizadas

nos diferentes territórios, com o objetivo de analisar a temática da produção das iguarias

como os queijos artesanais e os derivados da mandioca como uma cultura enraizada

transformada em territorialidade que alicerça na contemporaneidade a reprodução social

e econômica de grupos familiares. Nas pesquisas realizadas no Estado de Sergipe,

mediante visitas a agricultores familiares nas regiões do Sertão, Agreste e Zona da

Mata, identificamos a elaboração dos citados produtos e a capital do Estado constitui no

principal mercado consumidor. Diante da expansão da produção e consumo dessas

iguarias, surgem várias indagações. Em que medida o saber-fazer associado à

elaboração e ao consumo dessas iguarias está imbricado na identidade cultural dos

1 Trabalho apresentado na 29ª Reunião Brasileira de Antropologia, realizada entre os dias 03 e 06 de

agosto de 2014, Natal/RN.

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consumidores? Qual a importância social, cultural e econômica da manutenção da

produção e consumo dessas iguarias para a segurança alimentar dos grupos familiares

produtores? Tais proposições conduzem ao fato de que esses alimentos estão

fundamentados em uma lógica díspar da produção convencional, industrial, em grande

escala. Com este artigo, pretendemos contribuir para a ampliação do conhecimento da

produção e consumo dessas comidas tradicionais fundamentados nas categorias

território, identidade cultural e apoio das redes sociais. Ainda buscamos proporcionar

um cabedal de informações que versam sobre as distintas dimensões, diante da inserção

de paradigmas externos que erodem a cultura do lugar fomentado pelo capital por meio

da introdução de novos alimentos e modo de fazer, sustentado pelo meio técnico

científico informacional e pela mídia. Espera-se, por fim, ampliar o conhecimento

dessas representações culturais e alternativas de trabalho e suscitar novas pesquisas

sobre a temática em foco.

A nostalgia impulsiona a produção dos derivados do leite e da mandioca

Os alimentos tradicionais elaborados artesanalmente configuram como uma

territorialidade nos territórios do Sertão, Agreste e na Grande Aracaju na

contemporaneidade. Mas a elaboração desses produtos apresentava as mesmas

características e formas na atualidade? Quais foram as transformações ocorridas no

sistema de produção desses derivados?

A terra dos camponeses sertanejos até a década de 1970 estava ocupada prioritariamente

com os cultivos de milho, feijão, mandioca e algodão. O milho e o feijão eram

cultivados e guardados em vasos para serem consumidos durante o ano vindouro pela

família, esses alimentos e as comidas derivadas não podiam faltar no cardápio diário. A

mandioca constituía a matéria-prima para a produção da farinha - alimento essencial nas

refeições. A “farinhada” atividade com objetivo de beneficiar a mandioca para a

produção de farinha foi ressaltada Rocha e Santos(2014) como um evento repleto de

significado...e os papéis são devidamente identificados e divididos, as tarefas são

minimamente separadas e transcorre permeada pela alegria e muita conversa. Esse dia,

geralmente revestia-se de trabalho e por relações de proximidade e sociabilidade, no

qual eram produzidos para além da farinha os derivados da mandioca como as iguarias

ou beijus tradicionais.

Diferentemente da farinha, as iguarias apresentavam exclusivamente valor de uso,

consideradas como um subproduto não eram elaboradas com vistas ao mercado, em

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decorrência da reduzida ou inexistente demanda. A produção geralmente ocorria nos

meses de outubro e novembro período da colheita da mandioca. As mulheres

apropriadas do saber fazer transmitido por gerações participavam das farinhadas durante

a semana e recebiam como dádiva os produtos partilhados entre o grupo.

O período das farinhadas significava momentos especiais aguardados durante todo o

ano, tempo de encontro de famílias, dos amigos e compadrio regados pela alegria e

partilha. Geralmente quando iniciavam essas atividades ocorriam mutirões nos

povoados e localidades no meio rural e grupos familiares revezavam na ajuda mútua.

Além disso, esse alimento consistia em presente ou lembrança valorizada para aqueles

que não podiam participar da farinhada.

De modo semelhante às discussões abordadas por Velthem (2007) sobre a produção de

farinha em Cruzeiro do Sul no Acre, o processo de elaboração das iguarias inicia com a

colheita da mandioca, e, em seguida, realizam o pubamento que consiste em deixar a

mandioca fermentar em um recipiente antes nas gamelas feitas de madeira e nas

bombonas plásticas adquiridas no mercado. Esse processo faz-se necessário para

facilitar o descascamento, a retirada da manipueira liquido tóxico e o beneficiamento do

produto com o objetivo de obter a tapioca (matéria-prima para a produção dos beijus).

Constatamos que na elaboração dos derivados predominava e ainda predomina a mão de

obra familiar, porém, percebemos que as funções são divididas de acordo com o sexo e

faixa etária. O sexo masculino é responsável pelas atividades que reque maior força

como a lida com o forno, a moagem das raízes da mandioca e a prensagem da massa. As

mulheres são responsáveis pelo trabalho de raspagem dos bulbos enquanto isso, os

jovens auxiliam seus pais na comercialização dos produtos.

No preparo das iguarias derivadas da mandioca observamos às contribuições dos grupos

formadores do povo brasileiro, a influência indígena no beneficiamento da mandioca a

influência portuguesa com a utilização das especiarias como o cravo e canela, e a

africana, no emprego do coco seco. Para envolver alguns desses produtos como o pé de

moleque, o beiju molhado utiliza-se a palha da bananeira e a palha da folha do coqueiro

é utilizada como fôrma no momento de assar o saroio uma tradição conservada na

atualidade. As mulheres ainda produziam os bolos conhecidos localmente como

manauês utilizando a massa puba e a macaxeira (Figuras 01, 02,03 e 04)

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Figura 01: Pé de moleque no forno a lenha. Figura 02: Cesto com Beiju molhado.

Aquidabá, 2013. Aracaju. 2013.

Figura 03: Saroio e a fôrma elaborada Figura 04: Manauê elaborado com massa

com a palha do coqueiro. São Cristóvão. Puba e com macaxeira. Itabaiana, 2014.

Com as secas frequentes e o avanço das pastagens o cultivo da mandioca a partir da

década de 1990, foi erradicado do Sertão sergipano, restrito a pequenos espaços no

entorno das residências e as farinhadas definham como acontecimento ou encontro

aguardado nos povoados e pequenas cidades sertanejas. Na atualidade esse evento está

guardado na memória de adultos e idosos sertanejos, como momentos especiais

distantes e que não retornará motivada pelas alterações existentes no espaço. As casas

de farinha estão fechadas, sem uso, por falta da matéria-prima em decorrência da

erradicação desse cultivo.

Mas, esse fato também ocorre no Agreste e Zona da Mata Sergipana? Os derivados da

mandioca continuam a ser produzidos nessas regiões? Diferentemente do Sertão

expande a produção de mandioca em alguns municípios agrestinos como São

Domingos, Lagarto e Campo do Brito. Enquanto isso, Aquidabã e Itabaiana apresentam

uma redução na área semeada com esse cultivo em decorrência do avanço do

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abacaxicultura e da olericultura respectivamente. Entretanto, constatamos que a despeito

da redução da área plantada a produção das iguarias derivadas da mandioca expande.

De forma distinta, essas iguarias passam a constituir uma alternativa de trabalho e renda

para grupos familiares que residem nos espaços rural e urbano dos citados municípios.

Logo, a produção antes sazonal passa a partir da década de 1990 a ter um caráter regular

ofertada semanalmente e até diariamente. As denominadas farinhadas desaparecem e

em determinados espaços no interior das residências são construídos fornos para a

produção desses quitutes alicerçados pela demanda de um mercado consumidor, local e

regional.

E a mandioca? Os camponeses costumam plantar? Quando eles não produzem, passam

a adquirir a matéria-prima em outras localidades como foi ressaltado por Rezende e

Menezes(2013). Eles conformam parcerias entre os pares permeadas pelas relações de

proximidade e solidariedade com o objetivo de manter a qualidade e assiduidade da

produção.

Quanto ao destino da produção dos derivados no agreste o objetivo principal é a

comercialização nas feiras semanais dos municípios, reflexo da acentuada demanda dos

consumidores com o fim das farinhadas. Leite e Menezes(2012) ressaltaram a

importância da produção desses derivados para os grupos familiares no município de

Aquidabã, assim como os fluxos dos produtos nos municípios sertanejos nos quais os

consumidores ressaltavam:

Antes fazíamos beijus e malcasadas, além do pé de moleque porque

nós plantava a mandioca e fazia esses produtos uma vez por ano nas

farinhadas junto com a farinha. Agora como não plantamos mais

mandioca, compro toda semana na feira essas iguarias e consumo o pé

de moleque durante a semana. (J.C. S. Monte Alegre de Sergipe,

2013)

Os beijus e pé de moleque são feitos por agricultores de Aquidabã,

porque aqui no sertão não tem mais mandioca, mas, não consigo

deixar de comprar e ao comer lembro das farinhadas, que tempo bom!

(N. D. S, Gararu, 2013)

Observamos a nostalgia dos consumidores ao recordar a farinhada e o enraizamento do

consumo desses produtos na identidade dos sertanejos.

Nos municípios agrestinos como Campo do Brito, São Domingos e Lagarto

constatamos que a produção de iguarias tem como objetivo o abastecimento local,

porém, como reflexo da expressiva demanda dos comerciantes das tapiocas

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reinventadas ou recheadas em Aracaju, os camponeses elaboram a goma e a

comercializa com esses vendedores de tapiocas (Figura 05).

Enquanto isso, os produtores do município de Itabaiana abastecem o mercado local,

comercializam nos municípios baianos de Coronel João Sá e Pedro Alexandre, nas

feiras semanais, e abastecem pequenos supermercados e mercearias da cidade de

Aracaju e circunvizinhos.

Nos municípios que conformam a Grande Aracaju o cultivo de mandioca praticamente

foi erradicado reflexo da expressiva urbanização que impulsiona a ocupação do solo e a

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especulação imobiliária. Ao fazermos uma análise espacial, poderíamos imaginar que

esse cultivo extirpado implicaria no fim da produção dos derivados da mandioca. De

forma antagônica a elaboração das iguarias expande nesse território tendo em vista a

demanda do mercado consumidor que cresce proporcionalmente ao crescimento da

cidade de Aracaju. Para equacionar a problemática da escassez de matéria-prima os

grupos familiares adquirem o produto in natura ou processados sob a forma de polvilho,

goma e a massa puba junto aos camponeses dos municípios agrestinos como Lagarto e

São Domingos.

Nos espaços urbanos os produtores enfrentam algumas dificuldades como a inserção de

fornos em razão da área restrita do seu hábitat e a aquisição de lenha para aquecê-los.

Para resolver essas problemáticas elas fazem adaptações com chapas de aço movidas a

gás de cozinha ou GLP.

Figura 05: Forno a gás de cozinha. São Cristóvão, 2013.

As etapas de elaboração das iguarias por produtores que residem na zona urbana

diferem das seguidas por aqueles que residem na zona rural por que eles não realizam

todo processo, uma vez que adquire a matéria-prima (a tapioca e/ou massa puba) no

ponto de preparo dos derivados da mandioca. Nas demais etapas o modo de preparo é

semelhante.

Quanto a comercialização em Aracaju os beijus tradicionais são comercializados nas

feiras dos bairros, no mercado municipal, nas mercearias, pequenos supermercados.

Ainda identificamos com intensidade vendedores ambulantes nos logradouros públicos

comercializando de igual modo àquele retratado por Gilberto Freire (1968) sobre a

venda de iguarias em Recife em meados do século passado. Homens e Mulheres com os

cestos repletos de iguarias passam pelas ruas cantando ou gritando: “Olha o saroio, o

beiju molhado, o pé de moleque e o malcasado! ou Saroio, malcasado, pé de moleque e

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malcasado!”; esses brados nas tardes aracajuanas são comuns nos bairros de todas as

classes sociais. E, como no passado, as crianças, jovens, adolescentes, adultos e idosos

correm as portas para adquirir as iguarias.

No período matutino os vendedores oriundos do município de São Cristóvão

frequentam instituições públicas, casas comerciais nas quais existem uma freguesia

ávida por esses produtos degustando como lanche no intervalo do trabalho.

O consumo dessas iguarias passa a ser demandada a partir da década de 1980, um

reflexo da expressiva migração, sobretudo, direcionada a capital e aquelas localizadas

no seu entorno. Muitos grupos familiares migrantes por não alcançar a inserção no

mercado formal, resgatam o saber-fazer e passam a elaborar os derivados da mandioca

como uma estratégia para gerar renda.

Constatamos algumas alterações na produção a exemplo das mudanças relacionada a

inserção de homens tendo em vista o aumento do volume produzido com vistas ao

abastecimento do mercado informal. Anteriormente as iguarias eram elaboradas

exclusivamente pelas mulheres nas farinhadas enquanto os homens processavam a

farinha. Na atualidade verificamos em vários estabelecimentos rurais e nos espaços

urbanos as mulheres como coadjuvantes de igual modo ao queijo artesanal, ou seja,

quando esses alimentos passam a ter valor de troca elas perdem o seu posto na

hierarquia da produção (Menezes, 2009). Tal fato também foi retratado por Woortmann

e Woortmann (1997) no estudo realizado em Sergipe, nos quais evidenciou os espaços

do homem e da mulher, o homem sendo o responsável pela produção direcionada ao

externo, enquanto isso, a mulher comanda as atividades internas no estabelecimento

rural. Ainda sobre a divisão de trabalho no âmbito do estabelecimento rural Machado e

Menasche (2013) apresentam a leitura da divisão do lote em um assentamento no rio

Grande do Sul, no qual as crianças representam por meio de desenhos a divisão das

tarefas e o domínio do espaço de acordo com o gênero, semelhante a divisão

evidenciada na produção dos derivados de leite e mandioca na atualidade.

Os homens comandam a produção em vários estabelecimentos e, nos três dias que

antecedem as feiras semanais eles com o apoio das mulheres produzem esses derivados

de forma artesanal com poucas ressignificações no modo de fazer, nos utensílios e

condimentos utilizados. De acordo com esses produtores, os instrumentos utilizados na

casa de farinha são valorizados não pela estética das formas, mas pela capacidade de

executarem complexas funções de transformação do produto (Rezende et al, 2013;

Velthem,2007). Diferentemente da farinha de mandioca que consegue sua inserção no

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mercado formal as iguarias derivadas da mandioca não atinge a formalização, no

entanto, expande a demanda desses produtos alicerçados pela nostalgia, pelo desejo de

continuar a consumir alimentos identitarios artesanais enraizados no modo de vida das

comunidades rurais e urbanas sertanejas.

E os queijos artesanais? Sua demanda expressa essa relação com a identidade sergipana

e sertaneja?

Observamos nas nossas pesquisas que diferentemente dos beijus tradicionais os queijos

artesanais com as mudanças no uso da terra e a ação das políticas públicas expande a

produção de leite e consequentemente de queijos no Sertão Sergipano. Todavia em

decorrência da redução da oferta de trabalho a migração é intensa nessa região e, os

camponeses que continuam na sua terra passam a aproveitar o leite para a elaboração do

queijo tendo em vista a demanda expressiva do mercado consumidor urbano, sobretudo

na capital do Estado como foi retratado por Menezes (2009, 2013a, 2013 b).

As mulheres produtoras do queijo de coalho caseiro resistem e persistem com a

atividade artesanal a despeito do avanço do setor industrial das ofertas e assédio dos

proprietários do setor formal para que seja comercializado o leite. Por que continuar a

produzir o queijo caseiro? Como ressaltaram as produtoras nas suas entrevistas e

retratadas no filme As Guardiãs do queijo de coalho no Sertão:

“o queijo é minha vida, sem ele não sei como nós vivíamos aqui no

Sertão. Por aqui a vida aqui é dura, é difícil! Criei meus filhos com a

venda do queijo! (C. S., Monte Alegre, 2013)

“Não quero pensar em parar de fazer queijo, mas, quando isso

acontecer sei que meus filhos continuarão, pois minhas filhas já fazem

também o queijo” (M. I, Monte Alegre de Sergipe, 2013).

“Nós vamos para a feira com os queijos, lá vendemos e com o

dinheiro fazemos a feira” (M. I, Monte Alegre de Sergipe, 2013).

Essas mulheres evidenciam ainda a produção de queijo como uma atividade autônoma,

produzir o queijo significa continuar na terra, com os seus. Assim pronunciou uma

produtora “Esse é o nosso ramo, é o nosso ofício, não temos outro trabalho, aprendi a

fazer queijo com minha mãe, minha avó todas faziam queijo, a renda era para a família

e o suíno da mulher com ele tínhamos o dinheiro para a compra de roupa, remédio e

tudo o mais” (L. S., Porto da Folha,2013).

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Igualmente a essas produtoras que tem na produção de queijo uma atividade enraizada

no seu modo de vida, os consumidores principalmente aqueles que participaram da

produção dos derivados quando distantes buscam esse alimento para alimentar o corpo e

alma. A nostalgia a lembrança dos momentos vivenciados no território de origem, das

festividades, dos encontros familiares, das festas impulsiona esses migrantes a buscar no

consumo desses alimentos uma aproximação com o seu lugar.

Em Sergipe o grande mercado consumidor desses derivados da mandioca e do leite são

os municípios que conformam a grande Aracaju – São Cristóvão, Barra dos Coqueiros e

Nossa Senhora do Socorro, considerados como “dormitórios” visto que, a população

está ocupada nas atividades econômicas prioritariamente localizadas na capital. Essa

população demanda os alimentos enraizados consumindo-os diariamente, semanalmente

de acordo com o poder aquisitivo e a oferta do produto. Desse modo, observamos que

no mundo globalizado, fundamentado no avanço do meio técnico - científico-

informacional (Santos, 2008), apregoado pelos defensores da modernidade que teria

como característica o domínio e a uniformidade do consumo de mercadorias

massificadas, contraditoriamente o consumo dos alimentos tradicionais resiste,

permanece.

Apesar das transformações na alimentação dos consumidores na contemporaneidade,

influenciadas pela expansão da oferta de produtos e alicerçadas pela publicidade,

paradoxalmente verificamos a articulação de movimentos contrários, que buscam a

continuidade da ingestão dos produtos tradicionais. Ao discutir a permanência da

produção e consumo de alimentos tradicionais, Montanari (2008, p.149), ressalta que

“uma complexa geografia de hábitos alimentares persiste no interior da Europa, no uso

da cerveja e do vinho, continuam a ter uma forte identidade para as pessoas do Centro-

norte”. De igual modo aos Países Centrais, no Brasil, embora seja constatado o avanço

do setor industrial, em Sergipe persiste o consumo desses produtos que estão enraizadas

na identidade, denotando que as especificidades locais permanecem arraigadas nos

hábitos de grupos sociais. Hernandez (2005), ao discutir a artificialidade na elaboração

de alimentos no setor secundário, assevera que muitos consumidores buscam “um

produto conhecido e com identidade”, uma vez que conhecem os processos que foram

elaborados e as matérias-primas utilizadas, fatores que contribuem para a continuidade

da demanda dos alimentos tradicionais.

Nesse contexto, os migrantes, para fortalecer a referida identidade, procuram tais

produtos como um símbolo que os caracteriza e contribui para a manutenção dos

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costumes e hábitos vivenciados no seu território (MENEZES, 2009, Rezende e

Menezes, 2012, Menezes, 2013d). Nos deslocamentos, independentemente da distância,

as populações carregam os seus hábitos e tradições alimentares. Como ressaltou Maciel

(2005, p. 51) com os movimentos migratórios, as populações ao se deslocarem

“levavam com elas seus hábitos, costumes e necessidades alimentares, enfim, todo um

conjunto de práticas culturais alimentares”. Alguns conseguem continuar a produzir;

outros buscam adquirir de terceiros, alimentando o seu corpo e a sua identidade cultural

e territorial. Como ressaltaram Canesqui e Garcia (2005), não comemos apenas

nutrientes que contribuem para mantermos vivos, pois o ato de alimentar-se está

integrado aos rituais e seleções que contribuem na socialização dos indivíduos.

Constatamos que o saber-fazer associado a elaboração desses derivados, assim como o

consumo desses derivados está imbricado na identidade dos consumidores que

impulsionam a produção informal desses produtos.

Essa evocação do passado tem a capacidade de reter e guardar o que passou, salvando-o do

esquecimento. Woortmann (2000, p. 213) ressalta: “a memória é sempre seletiva; ela não dá

presença a um passado genérico, mas a determinados eventos, localizados em determinados

lugares no espaço e no tempo, dotados de significado em contextos específicos”. Logo, as

lembranças dos derivados da mandioca e do leite elaborados e consumidos junto com os

familiares no espaço rural. Ainda percebemos que o consumo desses alimentos vem

sendo repassadas as novas gerações que igualmente aos seus pais, avós e demais

parentes consomem os derivados fato esse que prenuncia como a consolidação do

mercado desses produtos artesanais. Mas qual é a importância social, cultural e

econômica da manutenção da produção e consumo dessas iguarias para a segurança

alimentar dos grupos familiares produtores?

Produção dos derivados de leite e da mandioca: importância cultural, econômica e

a relação com a segurança alimentar dos grupos familiares.

Para esses grupos familiares produtores de alimentos tradicionais essa estratégia

constitui uma alternativa geradora de renda por meio do trabalho informal, uma

territorialidade fundamentada no saber-fazer transmitido por gerações e na apropriação

dos recursos territoriais. De acordo com esses grupos essa atividade constitui a principal

renda familiar, substancial para a continuidade nos territórios rurais diante da escassez

de postos de trabalho.

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Nos espaços urbanos os grupos familiares ocupados com tais atividades buscam com o

resgate do saber-fazer uma alternativa de renda tendo em vista as dificuldades na

inserção no mercado de trabalho formal. Percebemos a relação desses alimentos com a

segurança alimentar dessas famílias tendo em vista que a renda adquirida é essencial

para a aquisição dos demais alimentos consumidos no âmbito familiar. È visível o

aumento do consumo de produtos industrializados ricos em calorias e pobres em

nutrientes, além de carboidratos simples e açúcares refinados em excesso, sobretudo

com o avanço do programa Luz no campo e a intensidade do uso dos meios de

comunicação de massa que influenciam diretamente a dieta das famílias.

Ressaltamos ainda que a temática da Segurança Alimentar envolve além de

instrumentos e medidas criadas para garantir a saúde, vida e bem estar humano, não

obstante também a preservação ambiental. Nesse sentido, é importante destacar que os

produtores de queijo ou de derivados da mandioca ao apropriar-se dos recursos

disponíveis no território ou adquiridos aproveita-os de forma intensa. Cotidianamente os

resíduos da produção dos derivados são utilizados para a alimentação dos animais não

ocorrendo problemáticas ambientais, tendo em vista que são aproveitados todos os

recursos existentes. Além disso, em determinados períodos permeados pela

reciprocidade eles doam parte do soro ou o restolho da mandioca e a casca aos amigos e

vizinhos para alimentar animais principalmente no período das secas. Embora não

conheçam na integra as normativas relacionadas a preservação ambiental na elaboração

desses alimentos os agricultores prezam pela preservação do meio ambiente, pela

diversidade de atividades na busca da sustentabilidade.

Observamos ainda que a Lei n. 11.346 de 15 de setembro de 2006 que instituiu o

Sistema Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (Sisan) assegura o respeito a

diversidade de culturas e de hábitos dos povos, nações e coletividades regionais. É

importante ressaltar a importância de Programas como o PNAE- Programa Nacional de

Alimentação Escolar a medida que busca articular o planejamento nutricional, a

promoção de hábitos saudáveis associada ao apoio a segmentos de agricultores e a

valorização de modos de produção de alimentos específicos. Todavia, surge uma

questão: esses derivados são valorizados, reconhecidos pelos programas e políticas

locais? Em Sergipe esses produtos não são demandados e consumidos nesse programa

embora estejam enraizados na identidade da população. Constatamos o domínio dos

alimentos industrializados não oriundos dos estabelecimentos camponeses, sem

nenhuma vinculação com a cultura local. Ainda percebemos que os conselhos não

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funcionam a contento ou melhor, não fazem um acompanhamento e fiscalização da

execução do programa, fato esse que indica a não existência de um empoderamento pela

população, importante para redirecionar os rumos do programa e efetivamente buscar a

inserção desses produtos na alimentação escolar.

Considerações finais

Esses grupos familiares inseridos no mercado formal, invisíveis, são protagonistas das

alternativas de trabalho e renda obtida com a produção dos alimentos artesanais

tradicionais. Diante das dificuldades enfrentadas para a sobrevivência tais grupos

familiares buscam com essa territorialiadade ao resgatar o saber-fazer transmitido por

gerações continuar nos seus territórios lugar de vida e de trabalho quer sejam nos

espaços rurais ou urbanos. Essas alternativas de trabalho embora não sejam

reconhecidas pelas instituições públicas estão enraizadas alicerçadas pela demanda do

mercado consumidor que procura esses produtos tradicionais enraizados na sua história

de vida. Ao degustá-los recorda com nostalgia momentos vivenciado em diferentes

temporalidades. Embora esses alimentos estejam enraizados no modo de vida da

população local, observamos a desvalorização no sentido da não inserção dos mesmos

nos Programas institucionais como o PNAE. É visível na alimentação escolar o domínio

dos sucos industrializados, dos biscoitos, de alimentos não vinculados a cultura local,

fato esse desconexo as politicas de descentralização e valorização dos alimentos.

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