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Página 1 de 29 Proteção Jurídica do Software: uma análise crítica dos elementos protegidos pelo direito 1 Rodrigo Guimarães Colares Advogado. Presidente do Instituto Brasileiro de Direito da Informática (IBDI) e da Comissão de Tecnologia da Informação da OAB/PE (2007-2009). Mestre (LL.M.) em Direito de Tecnologia da Informação e Telecomunicações pela Universidade de Strathclyde (Reino Unido). Sócio do escritório da Fonte Advogados em Madrid (Espanha). Introdução; 1. Noções técnicas básicas de software; 2. Uma breve história da proteção jurídica do software no mundo; 3. O projeto brasileiro e as pressões externas; 4. Definição da proteção do programa de computador no Brasil; 5. Uma análise comparada: Brasil, Estados Unidos e União Europeia; 6. Elementos do programa de computador protegidos pelo direito; 6.1. Proteção jurídica sobre o código-fonte; 6.2. Proteção jurídica sobre o código-objeto (ou “código de máquina”); 6.3. Proteção jurídica sobre os elementos funcionais gráficos – o look and feel; 6.4. Proteção jurídica sobre figuras, músicas, vídeos, textos e outras obras autorais existentes em programas de computador; 6.5. Proteção jurídica sobre logotipos utilizados em um software; 6.6. Proteção jurídica sobre bancos de dados e outros elementos gerados por um software; 7. Proteção do software: a questão do registro; 8. Considerações finais: que rumo poderia seguir a tutela jurídica dos softwares? Até a década de 70, pouco era a utilidade de uma proteção específica para o programa de computador 2 . Constituindo-se a parte lógica dos computadores, os programas até aquela década estavam intrinsecamente vinculados às máquinas que compunham. Eles continham as instruções, sob a forma de código, para fazer com que as máquinas desempenhassem as funções para as quais elas haviam sido fabricadas. Assim como atualmente existem programas de computador específicos para fazer funcionar equipamentos determinados, tais como as partes computadorizadas de um carro, uma impressora, um avião ou um telefone móvel celular, os programas de computador, naquela época, eram os softwares desenvolvidos especialmente para as máquinas em que se encontravam e não para equipamentos similares em geral. Na prática, os computadores tinham um preço de aquisição inacessível à população em geral, existiam apenas nas grandes corporações e, via de conseqüência, tinham seu mercado consumidor severamente restrito. Sua proteção, assim, em um momento inicial, estava vinculada às máquinas para as quais haviam sido desenvolvidos. O direito da propriedade industrial, sob a forma da concessão de patentes, era a via ordinária para a proteção das invenções e 1 Estudo parcialmente desenvolvido e apresentado pelo autor para aprovação no módulo “Intellectual Property Law” no LL.M. in Information Technology and Telecommunications Law da University of Strathclyde (Glasgow, UK), em 2005. A presente versão trata-se de uma tradução, reorganização e ampliação do original. Projeto co-financiado mediante bolsa concedida pelo Programa AlBan da União Européia, 2005-2006. Última versão elaborada em Madrid, em novembro de 2009. 2 Consideramos sinônimas as expressões “programa de computador” (português) e “software” (inglês, bastante usada no Brasil).

Proteção Jurídica do Software · sistemática com tratados e acordos internacionais assinados pelo Brasil. Ao final, fazemos breves considerações sobre a importância do registro

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Proteção Jurídica do Software: uma análise crítica dos elementos protegidos pelo direito1

Rodrigo Guimarães Colares Advogado. Presidente do Instituto Brasileiro de Direito da Informática (IBDI) e da Comissão de Tecnologia da Informação da OAB/PE (2007-2009). Mestre (LL.M.) em Direito de Tecnologia da Informação e Telecomunicações pela Universidade de Strathclyde (Reino Unido). Sócio do escritório da Fonte Advogados em Madrid (Espanha).

Introdução; 1. Noções técnicas básicas de software; 2. Uma breve história da proteção jurídica do software no mundo; 3. O projeto brasileiro e as pressões externas; 4. Definição da proteção do programa de computador no Brasil; 5. Uma análise comparada: Brasil, Estados Unidos e União Europeia; 6. Elementos do programa de computador protegidos pelo direito; 6.1. Proteção jurídica sobre o código-fonte; 6.2. Proteção jurídica sobre o código-objeto (ou “código de máquina”); 6.3. Proteção jurídica sobre os elementos funcionais gráficos – o look and feel; 6.4. Proteção jurídica sobre figuras, músicas, vídeos, textos e outras obras autorais existentes em programas de computador; 6.5. Proteção jurídica sobre logotipos utilizados em um software; 6.6. Proteção jurídica sobre bancos de dados e outros elementos gerados por um software; 7. Proteção do software: a questão do registro; 8. Considerações finais: que rumo poderia seguir a tutela jurídica dos softwares?

Até a década de 70, pouco era a utilidade de uma proteção específica para o programa de computador2. Constituindo-se a parte lógica dos computadores, os programas até aquela década estavam intrinsecamente vinculados às máquinas que compunham. Eles continham as instruções, sob a forma de código, para fazer com que as máquinas desempenhassem as funções para as quais elas haviam sido fabricadas. Assim como atualmente existem programas de computador específicos para fazer funcionar equipamentos determinados, tais como as partes computadorizadas de um carro, uma impressora, um avião ou um telefone móvel celular, os programas de computador, naquela época, eram os softwares desenvolvidos especialmente para as máquinas em que se encontravam e não para equipamentos similares em geral. Na prática, os computadores tinham um preço de aquisição inacessível à população em geral, existiam apenas nas grandes corporações e, via de conseqüência, tinham seu mercado consumidor severamente restrito. Sua proteção, assim, em um momento inicial, estava vinculada às máquinas para as quais haviam sido desenvolvidos. O direito da propriedade industrial, sob a forma da concessão de patentes, era a via ordinária para a proteção das invenções e

1 Estudo parcialmente desenvolvido e apresentado pelo autor para aprovação no módulo “Intellectual Property Law” no LL.M. in Information Technology and Telecommunications Law da University of Strathclyde (Glasgow, UK), em 2005. A presente versão trata-se de uma tradução, reorganização e ampliação do original. Projeto co-financiado mediante bolsa concedida pelo Programa AlBan da União Européia, 2005-2006. Última versão elaborada em Madrid, em novembro de 2009. 2 Consideramos sinônimas as expressões “programa de computador” (português) e “software” (inglês, bastante usada no Brasil).

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melhoramentos da indústria. Por não representar um valor econômico relevante em si, não era preocupação dos países em geral que houvesse uma proteção específica para os programas per se, que estivesse dissociada à proteção dos equipamentos. Contudo, no final da década de 70, início da década de 80, duas grandes corporações da indústria de tecnologia, Apple e IBM, desenvolveram um computador com a finalidade de que fosse utilizado pelo público em geral, chamado de computador pessoal (PC, do inglês personal computer). Seu preço era bem mais acessível e, para que fosse possível sua utilização massificada, era importante que os programas desenvolvidos pudessem ser instalados e utilizados em qualquer PC. Aquele foi um momento de quebra de paradigmas, disruptivo para o direito da propriedade intelectual moderno. Diante do fenômeno dos computadores pessoais, um novo mercado consumidor havia sido criado: o de pessoas comuns, indivíduos e empresas de menor porte, que, para que seus computadores desempenhassem novas funcionalidades, como o processamento de textos e organização de dados em planilhas, precisariam obter novos programas. Novos vetores econômicos ocasionados pela então crescente demanda da sociedade urgiriam por uma mudança no panorama mundial de proteção a novos bens intangíveis, de utilização em computadores em geral, que representavam sua parte imaterial e lógica, os softwares. O presente estudo tem por objetivo analisar quais elementos constitutivos de um programa de computador são protegidos pelo direito. Para tanto, buscamos analisar a legislação brasileira atinente à matéria – a Lei do Software e a Lei de Direitos de Autor –, levando-as para uma discussão comparada com a legislação e a jurisprudência mais aprofundada de outros países, que possam ser utilizadas como referências de aplicação no Brasil, além de elevar os critérios estabelecidos na lei brasileira a uma interpretação sistemática com tratados e acordos internacionais assinados pelo Brasil. Ao final, fazemos breves considerações sobre a importância do registro de programas de computador no Brasil, apesar de sua não obrigatoriedade; trazemos algumas considerações finais sobre a falta de efetividade da tutela legal atualmente aplicável e sobre a necessidade de sua rediscussão, propondo critérios que nos parecem mais sensatos a uma normativa de proteção à propriedade intelectual dos programas de computador.

1. Noções técnicas básicas de software O programa de computador é desenvolvido por um profissional devidamente habilitado, chamado “programador”. O programador é o responsável por desenvolver o software por meio de códigos escritos dentro da respectiva linguagem de programação escolhida3. Esses códigos desenvolvidos pelo programador conterão as instruções que indicarão as funções que estarão disponíveis ao computador no qual ele funcionar. Para que esse código faça o computador desempenhar suas funções é preciso que ele seja traduzido. A depender da linguagem em que o software tiver sido desenvolvido,

3 Existem diversas linguagens de programação, tais como Delphi, C/C++, Pascal, Java, etc.

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esta tradução poderá ocorrer por meio de “interpretação” ou “compilação”. Por exemplo, as páginas web são desenvolvidas em linguagens como a JavaScript e, em certo ponto, podem ser consideradas como programas de computador, mas são “interpretadas” pelo navegador de internet do computador que a está acessando, no momento do acesso, de forma instantânea. Já programas aplicativos como o MS Word passam por um processo de “compilação”, é dizer, eles são desenvolvidos e, antes de serem passados aos usuários finais, são “compilados” por um programa específico (chamado “compilador”) e transformado em um arquivo final, fechado, cujo novo código, ininteligível para o homem por estar em linguagem de máquina, é chamado de “código objeto”. O processo de “compilação” pode ser comparado ao da elaboração de um bolo: o cozinheiro (programador) mistura os ingredientes necessários (códigos) e, para que esteja pronto (seja traduzido para o computador), é preciso que passe pelo forno (compilador). Ao final, o bolo (software) estará pronto para o consumo do comprador final (usuário do software). Uma vez compilado, não é possível alguém chegar ao código-fonte original, exceto por processos de “engenharia reversa”, cuja legalidade é extremamente questionável. Essas noções introdutórias são importantes para a discussão posterior de quais elementos devem ser considerados protegidos pelo direito.

2. Uma breve história da proteção jurídica do software no mundo O Reino Unido (Inglaterra, País de Gales, Escócia e Irlanda do Norte) e os Estados Unidos, países cujas empresas despontaram à frente no desenvolvimento de programas de computador, na defesa dos interesses dessas corporações, clamaram que houvesse proteção legal dos softwares nos diversos países do mundo. Segundo David Bainbridge, o argumento levantado à época era o de que a inexistência de uma tutela jurídica para os programas de computador já representava perdas expressivas no faturamento das organizações empresariais em si, que, diante daquele cenário, vir-se-iam desestimuladas ao seu desenvolvimento e comercialização4. Melhor colocada a questão, a inexistência de um regime que pudesse proteger os programas em si, não associados às máquinas em que funcionavam, representaria a impossibilidade de se constranger terceiros que deles se utilizassem, copiassem e comercializassem, a que não o fizessem, o que, caso massificadas tais condutas, repercutiria na impossibilidade de aumento nos lucros decorrentes da comercialização pelas empresas que os desenvolveram. Em 1980, os Estados Unidos foram o primeiro país a modificar sua lei de direitos autorais para expressamente a contemplar a proteção ao programa de computador, pela então Lei de Copyright de Programas de Computador de 19805 (US Computer Software Copyright Act 1980). A proteção então conferida aos softwares estava sob o regime geral do copyright norte-americano, que se assemelha ao regime conhecido pelos países civilistas, de tradição jurídica romana, como “direito de autor”, já que ambos se

4 BAINBRIDGE, David. Software Copyright Law. Londres: Butterworths, 1999. 4ª ed. p. 43. 5 Computer Software Copyright Act of 1980, Pub. L. No. 96-517, 94 Stat. 3015 (1980).

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destinam à proteção de obras literárias, artísticas e científicas, tais como textos, figuras, obras de artes plásticas e produções científicas6. Antes disso, em 1978, uma lei modelo sugerida pela Organização Mundial da Propriedade Intelectual7 considerava que uma proteção sui generis - nem só de direitos de autor, nem só de patentes, nem de só de segredo industrial -, seria mais adequada do que uma proteção exclusivamente sob o regime de copyrights. Em 1983, o Ministério da Indústria e Comércio Internacional do Japão propôs8 um modelo parecido com os direitos de autor, mas com um tempo de proteção menor9, sem direitos morais10 e com diversas hipóteses para licenciamento compulsório. No mesmo ano, um estudo do Escritório de Patentes da França sugeriu um modelo11 que guardava características mais próximas do regime patenteário do que daquele que conhecemos por direitos de autor: o depósito do software perante o órgão competente seria constitutivo de direito, não declaratório como é no direito de autor; haveria requerimento de um certo grau de não-obviedade para a concessão da proteção; e, ao final do período de proteção, os elementos constitutivos do programa seriam levados ao conhecimento e utilização públicos, ato que, no direito patenteário, é atribuído como forma de se garantir a evolução da técnica existente.

3. O projeto brasileiro e as pressões externas Em 1984, o Brasil havia preparado um projeto de lei de proteção sui generis aos programas de computador12. Conforme relata Denis Borges Barbosa, no mesmo mês em que este projeto foi posto em discussão no congresso nacional, o então presidente norte-americano Ronald Reagan sancionou a Lei de Tarifas e Comércio, segundo a qual, dentre outras provisões, havia expressa menção de que todos os países deveriam adotar o sistema de copyrights para a proteção jurídica dos softwares, sob pena de sofrerem retaliações comerciais dos Estados Unidos13. Em setembro de 1985, o presidente Reagan anunciou que estaria determinando a abertura de um processo contra o Brasil14, a fim de verificar suas políticas relativas à indústria de informática, incluindo a inexistência de um arcabouço jurídico próprio a amparar a proteção legal dos programas de computador. Não estranha o fato de que, em

6 Em que pese as diferenças entre bases jusfilosóficas sobre as quais foram construídos e a repercussão nos critérios subjetivos de proteção. 7 WIPO’s Model Provisions on the Protection of Computer Software, 1978. 8 Information Industry Committee, Industrial Structure Council, Protecting Software. Interim Report, December 1983 (não publicado) apud BARBOSA, Denis Borges. Software and Copyright: a Marriage of Inconvenience. 1987. 9 O tempo mínimo de proteção de uma obra autoral sob a Convenção de Berna de 1886 é de 50 anos, a contar da morte do autor. 10 Pela Convenção de Berna de 1886, ao menos 2 direitos morais deveriam constar nas leis dos países ao redor do mundo: o direito à paternidade ou à “autoria”, consistente no direito do autor ver seu nome eternamente ligado à sua obra; e o direito à integridade, que é o direito do autor se opor a modificações que impliquem em prejuízo à sua honra ou à sua reputação. 11 Vers Une Protection des Logiciels Informatiques. 100 Revue de la Propriété Industrielle 380, Paris, 1984 apud BARBOSA, Denis Borges (1987). Op. cit. 12 Projeto de Lei do Senado nº 260/84. Diário do Congresso Nacional. 04 de dezembro de 1984, p. 4814. 13 BARBOSA, Denis Borges (1987). Op. cit. 14 Idem, ibidem.

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1983, apenas os Estados Unidos e as Filipinas contavam com essa proteção para os softwares, enquanto apenas um ano depois, após sancionada a Lei de Tarifas e Comércio norte-americana, mais de uma dúzia de países tinham leis próprias a tratar da matéria15. Foi então que, em 1987, o Brasil, que ainda se preparava para um regime democrático de direito, promulgou a sua primeira lei de proteção aos programas de computador16, a Lei nº 7.646 de 18 de dezembro de 1987. Em seu texto, havia forte ênfase ao tratamento da proteção e da comercialização dos programas de computador de propriedade de estrangeiros no Brasil, destacando-se o caráter de reciprocidade com que deveriam ser tratados. Por seus termos, os softwares passaram, desde 1987, a ter um regime de proteção de direito de autor no Brasil, com algumas modificações tratadas na própria lei, como a restrição a alguns direitos morais e um prazo de proteção inferior ao atribuído às obras literárias, artísticas e científicas em geral. Foi dessa maneira que alguns países do mundo, por pressões externas, adotaram os direitos de autor (quando de tradição civilista) ou os copyrights (quando de tradição de anglo-saxônica), sem que tivesse havido discussões conclusivas sobre as repercussões de tal proteção. Diante do panorama então instalado, a doutrina (nos países civilistas) e a jurisprudência (nos países de common law) passaram a ter papel preponderante na abertura das tortuosas estradas de se descobrir como os direito de autor ou os copyrights, destinados a criações do espírito nos domínios da literatura, da ciência e das artes, protegeriam uma obra de ordem eminentemente técnica e funcional como o software.

4. Definição da proteção do programa de computador no Brasil Em 19 de fevereiro de 1998, foi promulgada a atual lei brasileira do programa de computador, conhecida como a Lei do Software17, que substituiu a antiga Lei nº 7.646/87. Conforme prescrito em seu preâmbulo, a lei dispõe sobre a proteção da propriedade intelectual de programa de computador, sua comercialização no País, e dá outras providências. Definindo o âmbito de sua proteção, em seu art. 1º conceitua-se o programa de computador como “a expressão de um conjunto organizado de instruções em linguagem natural ou codificada, contida em suporte físico de qualquer natureza, de emprego necessário em máquinas automáticas de tratamento da informação, dispositivos, instrumentos ou equipamentos periféricos, baseados em técnica digital ou análoga, para fazê-los funcionar de modo e para fins determinados”. Dentro da concepção de proteção de obras literárias, artísticas e científicas sob o direito de autor, protege-se expressão de determinadas idéias, não a idéia em si. Este entendimento é replicado pela lei brasileira ao buscar deixar claro que as idéias subjacentes e existentes em um programa de computador não se encontram sob a

15 ASCENSÃO, José de Oliveira. Programa de computador e direito autoral. In GOMES, Orlando; WALD, Arnoldo; ASCENÇÃO, José de Oliveira; LOBO, C.A. da Silveira; ULMER, Eugen e KOLLE, Gert. A Proteção Jurídica do Software. Rio de Janeiro: Ed. Forense, 1985. p.63. 16 Lei nº 7.646/87, disponível em https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Leis/L7646.htm . 17 Lei 9.609/98.

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proteção dispensada pelo direito positivo, tais como a funcionalidade que ele exerce, os comandos que executa ou os métodos por ele utilizados em determinado ramo no qual seja aplicável18. Em obras literárias, tais como livros, a compreensão de que a lei protege a expressão das idéias, sob a forma escrita, nas palavras em que elas foram escritas e organizadas, é de certa forma mais fácil de se assimilar, apesar de, ainda assim, encontrar diversos problemas. Por exemplo, um livro cuja proposta seja o de oferecer aos seus leitores um manual sobre Direito de Empresa brasileiro provavelmente tratará de determinados tópicos comuns à matéria, poderá ter uma estrutura dos assuntos bastante similar ou mesmo idêntica a outros e, no fundo, traduzir as mesmas explicações relativas a este ramo do Direito, de forma que seu leitor poderá assimilar conhecimento semelhante em qualquer outro livro semelhante. Entretanto, é a forma como o livro é escrito, a ordenação singular das palavras escolhidas e escritas pelo autor que o fará único, posto que é impossível haver dois livros escritos exatamente da mesma forma, com as mesmas palavras, sem que tenha sido copiado um do outro. Sob o regime de direito de autor, até mesmo o estilo daquele que o escreve é preponderante para que seja conferida proteção à obra autoral, sob o requisito da originalidade, seja ela um livro, uma escultura ou um quadro. Sob este prisma, já se encontra a primeira dificuldade em definir o âmbito de proteção do programa de computador. Em uma linguagem simplista do texto legal, que aqui se utiliza apenas para melhor assimilar o entendimento àqueles que não estão familiarizados com o difícil jargão utilizado pela lei brasileira, pode-se dizer que está protegido sob a Lei do Software a expressão de um conjunto organizado de instruções para uso em computadores (máquinas automáticas de tratamento da informação), contidas em um suporte físico de qualquer natureza, e que os fará desempenhar determinadas funcionalidades. Em sentido similar ruma o direito do software dos Estados Unidos ao prescrever na Lei de Copyright de Programas de Computador de 1980 que a proteção seria conferida sobre “um conjunto de declarações ou instruções a ser utilizada direta ou indiretamente em um computador, de forma a produzirem um resultado determinado”19, não sobre uma idéia em si considerada. O mesmo entendimento foi firmado no Reino Unido, apesar da lei20 estabelecer que, para terem proteção, devem estar “gravados por escrito ou de outra forma”, similar ao requisito estabelecido na lei brasileira de estarem “contidos em um suporte físico de qualquer natureza”. Ora, ainda assim, o que seria protegido? O que é a expressão dessas instruções, desses códigos escritos pelos programadores que desenvolveram o software? Seria a forma como os técnicos desenvolvedores o escreveram, em seu código fonte, que os torna únicos? Não seria a expressão gráfica do programa e a forma como os usuários o

18 Lei 9.6010/98, art. 8º, de aplicação subsidiária à Lei do Software. 19 Section 117 do US Copyright Act 1975, tal como modificada pelo US Computer Software Copyright Act 1980. Tal entendimento foi confirmado pela jurisprudência no caso Apple Computer Inc v. Franklin Computer Corp 714 F 2d 1240 (3rd Cir 1983). 20 UK Copyright, Designs and Patents Act 1988.

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percebem protegidos pela Lei do Software? Seriam ambas, a expressão gráfica e a expressão dos códigos escritos pelos programadores? Estaria incluída a documentação técnica dos programas, tais como manuais? Pouco tem sido discutido na doutrina brasileira sobre qual a real amplitude de proteção dos programas de computador e esta discussão, até o presente momento, não encontra respaldo na jurisprudência de nossos tribunais superiores.

5. Uma análise comparada: Brasil, Estados Unidos e União Europeia Não obstante as diferenças ainda existentes entre os regimes de copyright e de droit d’auteur – o primeiro, seguido em maior ou menor grau por outros países de common law21 como Estados Unidos e Reino Unido, e o segundo, consolidado pela Convenção de Berna de 1886, seguido por países civilistas como o Brasil –, diferenças estas que aos poucos vêm diminuindo22, o entendimento de países como Estados Unidos e Reino Unido sobre o que seria protegido sob a égide do “programa de computador” é de extrema importância, uma vez que possibilita fornecer os nortes para a delimitação da proteção e seus impactos na economia, no desenvolvimento e nas limitações a terceiros. Sem sombra de dúvidas, os Estados Unidos são o país atualmente mais avançado no que concerne à discussão e jurisprudência sobre proteção legal do software. Na esteira dessas considerações, o balanceamento entre, de um lado, a proteção para os criadores e, de outro lado, a possibilidade de terceiros utilizarem e desenvolverem o que foi criado, é um dos paradoxos da proteção à propriedade intelectual. Este aspecto – de que quanto maior a amplitude da proteção maior também serão as possibilidades de terceiros utilizá-los – é crucial a se firmar um entendimento equilibrado da amplitude dos direitos de propriedade intelectual sobre programas de computadores e deve ser sempre levado em consideração para uma análise finalística e pragmática de suas repercussões. Nos Estados Unidos, em diversos julgados prolatados23 logo após a promulgação da Lei de Copyright de Programas de Computador de 1980, entendeu-se que a proteção literal se estendia basicamente ao código-fonte e ao código-objeto (o código do programa depois de compilado) dos softwares de quaisquer gêneros, ou seja, aos códigos escritos pelos técnicos desenvolvedores a programas como sistemas operacionais, como o

21 PATTERSON, Lyman Ray. Copyright in Historical Perspective. Nashville: Vanderbilt University Press, 1968. 22 A exemplo das mudanças introduzidas pelo Reino Unido para harmonização de seu direto positivo interno com as Diretivas e os Regulamentos do Conselho da Europa e do Parlamento Europeu relativos à propriedade intelectual e tecnologias, além da adaptação à Convenção de Berna de 1886, em que se reconhecem direitos morais de paternidade e integridade, inexistente na acepção primária dos países que seguem o sistema de copyrights, não o de direitos de autor. Para fins deste estudo, não é interessante aprofundarmos neste assunto, de modo que “copyrights” e “direitos de autor” poderão ser utilizados indistintamente para se referir ao regime de proteção jurídica às obras literárias, artísticas e científicas, sendo importante, contudo, ter-se em mente que as distinções entre esses sistemas de common law e direito civil vêm aos poucos se desfazendo, à medida que os sistemas convergem entre si em face da relativa unificação promovida pelos tratados internacionais. 23 CMS Software Design Sys., Inc. v. Information Designs, Inc., 785 F.2d 1246 (5th Cir. 1986), Estados Unidos; – sobre código fonte; Apple Computer, Inc. v. Franklin Computer Corp., 714 F.2d 1240 (3d Cir. 1983), Estados Unidos; cert. dismissed, 464 U.S. 1033 (1984) Estados Unidos; – sobre os códigos fonte e objeto de um sistema operacional; Williams Electronics, Inc. v. Artic Int'l, Inc., 685 F.2d 870 (3d Cir. 1982), Estados Unidos; – sobre código de um jogo de video-game.

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Windows e o Linux, a jogos eletrônicos e a programas existentes em equipamentos específicos, bem como ao código existente no programa depois de compilado, mas não à experiência gráfica que eles produziam. Entrementes, na década de 1990, em muitos casos relativos à infração de direitos de propriedade intelectual de softwares24 se buscou ampliar a proteção legal a elementos não literais, ao “look and feel”, que representa as funcionalidades do programa de computador exteriorizadas pelas diversas expressões geradas quando executados pelos usuários, tais como os elementos gráficos - a tela, o layout, a interface gráfica –, e a dinâmica gráfica geral utilizada para a sua estrutura, tal como percebida pelos usuários. Enquanto as decisões tendiam a restringir a proteção dos elementos gráficos, no sentido de que eles não estariam sob o véu legal da proteção ao software, ao mesmo tempo imprimiam o alargamento dessa proteção a elementos não visuais, mas ainda assim não literais, tais como técnicas utilizadas e funcionalidades, ainda que os comandos em si não o fossem25. Não havia, dessa forma, um entendimento explícito e seguro de quais elementos dos softwares estariam protegidos pelo copyright norte-americano.

6. Elementos do programa de computador protegidos pelo direito Na quase totalidade dos países do mundo, os direitos de autor protegem basicamente obras de duas naturezas distintas: literárias e artísticas. No Brasil, para gozar de proteção, tais obras podem estar expressas por qualquer meio ou fixadas em qualquer suporte, tangível ou intangível, conhecido ou que se invente no futuro, de acordo com a Lei de Direitos de Autor brasileira. Idéias em si não são protegidas26. O software, por sua vez, precisa estar gravado em um suporte físico de qualquer natureza27, que é uma formalidade originária do direito britânico28, repetida no direito positivo dos Estados Unidos29 e do Brasil30. O art. 2º da Lei do Software brasileira aduz que o regime de proteção à propriedade intelectual de programa de computador é o conferido às obras literárias pela legislação de direitos autorais e conexos vigentes no País, observado o disposto nesta Lei.

24 LLOYD, Ian. Information Technology Law. London: Oxford University Press, 2004, p. 25 HAYES, David L. A Comprehensive Current Analysis of Software “Look and Feel” Protection. The Computer Law and Security Report; Part I, 1995. 26 Nos Estados Unidos, critérios sofisticados foram estabelecidos pela jurisprudência para distinguir-se a “expressão de uma idéia”, que é protegida pelo direito de autor, da “idéia em si”, que não recebe proteção autoral. Vide Baker v. Selder (1880) 101 US 99 (Supreme Court) e Whelan Associates v Jaslow Dental Laboratory Inc. [1987] FSR 1. Alguns desses critérios aplicados aos softwares serão discutidos neste estudo. 27 Lei 9.609/98, art. 1º 28 Originário da primeira lei de direitos de autor de que se tem notícias, o United Kingdom Statute of Anne 1710, no qual constava que “(…) the Author of any Book or Books already Printed, who hath not Transferred to any other the Copy or Copies of such Book or Books, Share or Shares thereof (…)”. A mesma formalidade continua atualmente em vigor no Reino Unido, pelo United Kingdom Copyright, Designs and Patent Acts 1988, Section 3 (2), segundo o qual “Copyright does not subsist in a literary, dramatic or musical work unless and until it is recorded, in writing or otherwise; and references in this Part to the time at which such a work is made are to the time at which it is so recorded.” 29 “Copyright protection subsists, in accordance with this title, in original works of authorship fixed in any tangible medium of expression, now known or later developed, from which they can be perceived, reproduced, or otherwise communicated, either directly or with the aid of a machine or device.” § 102(a), US Copyright Act 1976, Title 17 U.S.C. texto consolidado. 30 Lei 9.609/98, art.1º.

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Primeiro, aplica-se a Lei do Software e, subsidiariamente, aplica-se a Lei de Direitos de Autor. A tutela legal da proteção ao programa de computador, dentro da categoria de direitos de autor (subcategoria da propriedade intelectual), pode ser entendida como um regime sui generis do clássico direito das coisas, em que se encontram os direitos de exploração econômica (patrimoniais), ademais dos direitos morais31, que não se encontram no regime geral da propriedade. Conforme preleciona Washington de Barros Monteiro32, os elementos (ou direitos) que constituem a propriedade são o jus utendi (direito de uso), o jus fruendi (direito de fuir) e o jus disponendi (direito de dispor da propriedade), cuja junção sob a titularidade de uma pessoa forma a plena in potestas, a propriedade plena sobre um bem. O mesmo se aplica aos bens albergados sob o direito de autor, como o programa de computador, por expressa disposição da Lei de Direitos de Autor33. O exercício pleno dos direitos de propriedade, inclusive sobre bens de propriedade intelectual como o software, pressupõe o direito de exercitar todos os direitos de uso, fruição e disposição sobre o bem34, em ato ou negócio jurídico de qualquer natureza. Pela Lei do Software35, é protegida a expressão de um conjunto organizado de instruções em linguagem natural ou codificada, contida em suporte físico de qualquer natureza, de emprego necessário em máquinas automáticas de tratamento da informação, dispositivos, instrumentos ou equipamentos periféricos, baseados em técnica digital ou análoga, para fazê-los funcionar de modo e para fins determinados. Ocorre que tal comando normativo é extremamente vago, uma vez que a expressão de um programa de computador apresenta uma série de elementos distintos entre si. Os elementos mais importantes são o código-fonte, que é o código tal como foi desenvolvido pelo programador, sem qualquer processo de compilação; o código-objeto, consistente no código de máquina unicamente inteligível pelo computador e que é o resultado da compilação do código-fonte original; há a interface gráfica, consistente no conjunto gráfico geral que o programa apresenta ao seu usuário; podem existir figuras, músicas, vídeos e textos, de diferentes naturezas, de acordo com a finalidade do software, sobre os quais se discute a proteção sobre tais elementos individualmente considerados; pode existir um logotipo utilizado para distinguir o programa de computador dos demais concorrentes; e, por fim, existem os bancos de dados e outros arquivos gerados pelos programas de computador, sobre os quais cabe fazer algumas considerações.

6.1. Proteção jurídica sobre o código-fonte

31 Lei 9.609/98, art.2º, parágrafo 1º. 32 MONTEIRO, Washington de Barros. Curso de Direito Civil: direito das coisas. Vol. 3. 27ª ed. São Paulo: Saraiva, 1989, p 87. 33 Lei 9.610/98, art. 28. 34 PEREIRA. Caio Mário da Silva. Instituições de Direito Civil. Vol. 4. Rio de Janeiro: Forense, 1978, p. 90-91. 35 Lei 9.609/98, art. 1º.

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Ao explicitar que o regime de proteção à propriedade intelectual de programa de computador é o conferido às obras literárias36, a lei brasileira não deixa dúvidas à proteção do código-fonte dos softwares. Isso porque as obras literárias são escritos, contos, novelas, etc, que basicamente são formadas pela disposição única de palavras empregadas pelo autor dentro da língua em que o escreveu. O mesmo que se aplica às obras literárias em geral se aplica ao código-fonte: são escritos pelos programadores. Assim como ocorre nos livros, por mais que dois programadores distintos pretendam implementar a mesma funcionalidade em um software, é praticamente impossível que escrevam os códigos-fontes de maneira exatamente igual sem que um tenha tido acesso ao código do outro, de maneira que o resultado final leva o toque personalíssimo de cada um de seus respectivos autores. Ocorre que, já há algum tempo, o desenvolvimento de programas segue determinados comandos pré-moldados, de forma que seus programadores não precisam escrever exatamente todos os códigos, como acontecia antigamente nas chamadas linguagens de baixo nível (porque se aproximavam mais ao nível das linguagens de máquina). Por exemplo, se um programador quiser implementar um formulário com opções de múltipla escolha, nos dias de hoje não é necessário escrever todos os seus códigos, basta “clickar” no botão correspondente, existente no programa próprio para desenvolvimento de outros softwares37, e automaticamente esses códigos serão escritos. Para que uma obra autoral, como o programa de computador, tenha proteção jurídica, é necessário que obedeça ao requisito da originalidade. Evidentemente os códigos que são padrões, pois gerados automaticamente a partir de um “click” no programa que permite seu desenvolvimento, não atendem ao requisito da originalidade. Contudo, é importante advertir que isso constitui apenas partes isoladas do código-fonte, de forma que este pode ser considerado sob dois aspectos: o código-fonte considerado em sua totalidade, que, via de regra, recebe proteção jurídica, por tratar-se de obra original; e partes do código-fonte consideradas estratégicas e diferenciadoras dos demais programas de funcionalidade similar, que o tornam único e original, as quais também podem receber proteção. O fato de uma ou algumas partes do código-fonte de um software ser padrão (ou “standard”, como é mais usado na linguagem de tecnologia) não afeta em nada a originalidade do código como um todo, cuja organização e desenvolvimento dos demais elementos se dê de forma individualizada e, portanto, original. Desta maneira, está claro que o código-fonte, que é escrito por um ou mais programadores, está protegido pela lei brasileira, desde que atenda ao requisito da originalidade, típico das obras protegidas pelo direito de autor. Sua cópia ou utilização, por qualquer terceiro, total ou parcial, sem autorização do titular dos direitos patrimoniais, constitui infração aos direitos de propriedade intelectual do proprietário, tanto no âmbito civil, que ensejaria indenizações por danos patrimoniais sofridos, bem como no âmbito criminal, nos termos do art. 12 da Lei do Software. Não ocorrerá infração quando

36 Lei 9.609/98, art. 2º. 37 Como o CodeGear Delphi, que substituiu o Borland Delphi Developer.

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Caso curioso de trata dos softwares livres. Esses são programas de computador que foram desenvolvidos por uma ou mais pessoas, inclusive dentro de empresas, em que o titular dos seus direitos patrimoniais resolveu “abrir seu código” ao público em geral. Isso quer dizer que o proprietário do software, no uso dos seus direitos patrimoniais sobre sua obra, resolveu disponibilizar o código-fonte do seu programa de computador para a sociedade em geral, o que normalmente é feito sob os termos de uma licença pública geral por ele determinada38. Ao fazer isso, o titular, conforme o texto da licença por ele escolhida, permite o livre acesso do público ao código do seu programa, para que possam alterá-lo e, muitas vezes, utilizá-lo como melhor entender. O escopo subjacente dessa abertura seria possibilitar que a “comunidade de programadores” mundial possa produzir melhoramentos e posteriormente compartilhá-los com os demais, que seriam impossíveis caso estivessem fechados a uma equipe específica. Em alguns casos, trata-se da estratégica corporativa de muitas empresas, que, ao invés de venderem licenças de software, comercializam os serviços de adaptação para clientes específicos, o que é um modelo de negócios bastante legítimo. O fato é que muitas das licenças públicas gerais escolhidas pelos titulares dos softwares livres permitem a alteração e inclusive a utilização comercial de tais programas por terceiros, mas obrigam que, ao serem comercializados, deve ser entregue também ao cliente final o código-fonte atualizado, com as novas modificações procedidas. Tais alterações no código-fonte não são de propriedade daquele que as empreendeu, mas incorporam-se ao código original e passam a ser do seu primeiro titular, o mesmo que resolveu “abrir” o programa, ainda que possam vir a ser novamente utilizadas e alteradas por outros terceiros. Por isso, não há que se confundir software livre com software sem titularidade. Os direitos de exploração econômica sobre o software normalmente continuam com o primeiro titular, que o tornou “livre”, a diferença básica é que o código está aberto, o que possibilidade a modificação por qualquer um, e que, em alguns casos, permite-se que terceiros comercializem tal software, sem nenhum benefício econômico direto aos seus titulares. Uma prática bastante comum na indústria desenvolvedora de programas de computador é o “reuso” de software, que se constitui basicamente no reaproveitamento de componentes (códigos) já utilizados em outros programas anteriores e que pode gerar diversos transtornos sob o aspecto jurídico, uma vez que há um grande potencial da utilização e sobreposição de códigos que são de propriedade de terceiros, o que é considerada uma infração penal39.

38 Existem diversos tipos de licenças públicas gerais (ou GPL, do inglês General Public License) diferentes, com versões também diferentes entre si, que foram desenvolvidas para finalidades distintas, cada uma com um texto padrão, que é escolhida pelo proprietário do software no momento em que resolve “abri-lo” à sociedade. 39 Pela lei brasileira, o desenvolvimento de software contratado por terceiros enseja a titularidade todos os direitos de exploração econômica sobre o software para o contratante, incluindo os direitos de qualquer uso, fruição econômica e transferência de direitos, de modo que o desenvolvedor não pode utilizá-los, de qualquer forma, no futuro desenvolvimento para terceiros, salvo se houver estipulação contratual expressamente em contrário. Lei nº 9.609/98 (Lei do Software), art. 4º.

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Muitas empresas no Brasil, desconhecedoras destas regras, vêm desenvolvendo produtos baseados em programas livres, ou com componentes sobre os quais não detêm direitos, e comercializando-os a terceiros, inclusive para órgãos da administração pública direta e indireta, sem ter atenção a esses princípios, o que pode vir a gerar grandes prejuízos a essas empresas no futuro. Por outro lado, caso distinto ocorre quando um terceiro, com o fim de comercializar uma “solução completa”, modifica o código de um programa de computador livre para adaptá-lo a uma realidade comercial específica e, junto a ele, integra outros programas de computador ou, como normalmente chamam na indústria da tecnologia da informação, “módulos”, que por sua vez são individualizáveis, possuem código-fonte separado e foram desenvolvidos pelo terceiro sem a utilização direta de qualquer parte do código do programa com o qual está sendo integrado. Neste caso, o software livre que sofreu modificações seguirá as regras acima esposadas, mas os demais programas ou módulos, não. Ou seja, os novos programas ou módulos que se integram ao software original, ainda que sua utilização se dê necessariamente em conjunto, são obras autorais distintas, cuja titularidade é daquele que os criou, não do proprietário do programa original, o qual não detém quaisquer direitos sobre eles. Evidentemente a opinião jurídica a um caso concreto dependerá da análise de cada licença pública geral aplicável, mas a maioria das licenças públicas gerais até o momento existentes reflete os princípios explicados acima.

6.2. Proteção jurídica sobre o código-objeto (ou “código de máquina”) O código-objeto, como explicamos no início deste estudo, trata-se do software cujo código-fonte foi compilado, pronto para utilização no computador sem que haja necessidade de interpretação por outro programa. É mais vulgarmente conhecido como “código de máquina”, porque é representado por caracteres ininteligíveis ao homem, mas que são entendidos e processados pelo computador para execução do software. Nem sempre a proteção sobre ele foi clara. Nos Estados Unidos, em 1979, no caso Data Cash Systems Inc v. J S & A Group40, decidiu-se que um software que já viria gravado na memória interna de um computador “não seria protegido porque não estaria em uma forma em que pudesse ser lido ou visto a olho nu”, como diferentemente ocorreria com um código-fonte. Tal concepção pode ser atribuída ao fato de que, sob o ponto de vista jurídico, entende-se o programa de computador como uma obra literária, como um livro de romance, e este pode ser visto pelo olho humano e entendido em seu estado natural, o que não ocorre com o código-objeto. Em 1980, a Lei de Copyright de 1976 dos Estados Unidos foi alterada pela Lei de Copyright de Programas de Computador de 1980, que incluiu os softwares e suas expressões em quaisquer meios sob a proteção do direito de autor (copyright), o que implicitamente incluía aqueles que estivessem gravados em memórias internas e facilitou a evolução no direito do software nos Estados Unidos.

40 Data Cash Systems Inc v. J S & A Group 480 F Supp 1063 (ND III 1979).

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Felizmente, o anterior entendimento, duramente criticado, foi posteriormente revertido por outras decisões. Em de 1983, a Corte de Apelações da 3ª Região dos Estados Unidos, no caso Apple Computer Inc v. Franklin Computer Corp.41, entendeu que a proteção legal ao software se estendia a qualquer forma de expressão, em qualquer meio, incluindo quando se encontrasse sob a forma de código-objeto gravado em uma memória que não permita sua alteração (ROM - Read Only Memory, em português “Memória Apenas de Leitura”). Como ressalta Andrew Beckerman-Rodau42, decisões como a do caso Data Cash Systems Inc v. J S & A Group tinham criado uma distinção artificialmente imposta entre tipos de softwares e suas formas de expressão, que não guardava amparo na lei norte-americana, mas que foi criada pelas Cortes de Justiça daquele país. No Brasil, não há motivos para não se conferir proteção jurídica sobre os códigos-objeto dos programas de computador. Esta proteção deriva do fato da lei brasileira expressamente estabelecer que é protegida a expressão de um conjunto organizado de instruções, em linguagem natural (que entendemos como “código-fonte”) ou codificada (que entendemos como “código-objeto”), que pode estar expresso em suporte físico de qualquer natureza, e que funcione em máquinas automáticas de tratamento da informação e dispositivos eletrônicos análogos. Este foi o intuito da atual Lei do Software, que substiuiu a anterior, e assim é como se deve entender o seu art. 1º, que não deixa dúvidas43. Desta forma, encontra-se protegido pela Lei n. 9.609/98 o código-objeto dos programas de computador, incluindo daqueles que estejam gravados em dispositivos específicos com memórias que não permitem sua alteração e são exclusivamente de leitura. Assim se encontram os softwares presentes nos chips internos de quaisquer dispositivos eletrônicos, como monitores, placas-mãe de computadores, impressoras, mouses, scanners, relógios digitais, computadores de bordo de automóveis, satélites e qualquer outro aparato que contenha um código computacional. Ainda que os equipamentos per se, nos quais estes softwares estejam gravados, sejam protegidos por outras categorias específicas de tutela jurídica, tais como patentes de modelo de utilidade ou invenção, ou ainda como semicondutores, os programas de computadores neles contidos gozarão de proteção própria pela Lei do Software, desde que atendam ao requisito da originalidade requerido pela lei. Como se vê, a aplicabilidade dessa proteção é imensa e atende a diferentes interesses e indústrias, o que felizmente é conferido pelo direito brasileiro.

6.3. Proteção jurídica sobre os elementos funcionais gráficos – o look and feel

A interface gráfica ou o layout de um software corresponde ao aspecto visual gerado quando um programa é executado e que é visto pelo usuário na tela do seu computador.

41 Apple Computer Inc. v. Franklin Computer Corp. 714 F 2d 1240 (3rd Cir 1983). 42 BECKERMAN-RODAU, Andrew. Protecting Computer Software: After Apple Computer, Inc v. Franklin Computers Corp., 714 F 2d 1240 (3rd Cir 1983), Does Copyright Provide the Best Protection? Temple Law Quarterly 527. Estados Unidos: 1984. 43 BARBOSA, Denis Borges. A Proteção do Software. 2002. p. 17.

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A distribuição única de janelas, botões, menus, palavras, etc, de todos os elementos visuais que dão a um programa sua aparência gráfica e como ela é percebida pelos usuários. Esta imagem geral, no todo considerada, é o que denominados interface gráfica. É o que, nos Estados Unidos, chama-se de “look and feel” de um software, que formam seus elementos não-literais. Conforme explica Mark A. Lemley, a dificuldade deriva principalmente de dois motivos: enquanto o direito autoral está destinado a proteger obras literárias, artísticas e científicas, os programas de computador são escritos para uma finalidade utilitária; e a forma de expressão contida no código-fonte ou na estrutura e organização de um software é puramente instrumental ao seu propósito utilitário, não contendo um valor em si44. A questão da proteção jurídica sobre a interface gráfica e seus elementos constitutivos é extremamente complexa e, por isso mesmo, controvertida45. Segundo enfatiza Denis Borges Barbosa46:

“A par da estrutura interna de um programa, subsiste a questão da aparência e da funcionalidade deste em relação com o usuário - como este sente o programa que atua em sua máquina. É o tema da extensa discussão jurisprudencial relativa ao look and feel - o ‘jeitão’ - dos softwares. O fato de dois softwares terem, em confronto, o mesmo ‘jeitão’ é extremamente importante para o novo concorrente que entra no mercado, porque o usuário não sente maiores dificuldades de aprendizado decente de cada um deles, pela coincidência de telas, pela seqüência de comandos ou pelo tipo da resposta”.

Em 1990, a Corte Distrital de Massachusetts, nos Estados Unidos, proferiu uma importante decisão no caso Lotus Development Corp v. Paperback Software International47, em que se questionava sobre a eventual existência de proteção legal sobre os elementos gráficos de um programa de computador. Com efeito, neste caso, a empresa de tecnologia Lotus Development Corp. alegou que sua concorrente, a Paperback Software International, havia copiado a estrutura geral de organização do seu programa Lotus 1-2-3, o conteúdo e a estrutura do menu de comandos, o layout gráfico das telas e, especialmente, a interface. Deve-se ter em mente que, no Lotus 1-2-3, a parte gráfica se restringia basicamente à organização de menus, que no caso se dava com palavras distribuídas em duas linhas, sendo que cada palavras abria um novo sub-menu. Por ter se tornado extremamente famoso e líder em seu mercado, a distribuição desse menu tinha um alto valor comercial em si, já que os usuários estavam acostumados com ela.

44 LEMLEY, Mark A. Convergence in the Law of Software Copyright? Berkeley Technology Law Journal. Estados Unidos, 2005. 45 MAGNAN, Richard A. Software User Interface Compatibility and Copyright after Lotus Development Corp. vs. Paperback Software International. Program of Information Resources Policy. Center for Information Policy Research, Harvard University. Cambridge: 1993. Disponível em: http://pirp.harvard.edu/pubs_pdf/magnan/magnan-p93-4.pdf 46 BARBOSA, Denis Borges. Op. Cit.,, p. 14 e 15. 47 Lotus Development Corp. v. Paperback Software International 740 F Supp 37 (D Mass 1990). Disponível em http://digital-law-online.info/cases/15PQ2D1577.htm

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Para melhor entendimento deste caso, é importante que se visualize como era o layout gráfico do software Lotus 1-2-3, baseado no antigo sistema operacional DOS:

Fonte: Wikipedia. Além disso, era possível salvar atalhos para esses comandos, que eram armazenados em arquivos separados, denominados macros. Esses macros eram extremamente importantes para economizar tempo na execução das tarefas pelos usuários. Contudo, para tornar seu programa compatível com as macros do Lotus 1-2-3, a Paperback copiou todas as estruturas de menu e sub-menu existentes no programa de seu concorrente. No todo, o programa continha 469 comandos dispostos em 50 menus e sub-menus, que poderiam ser ativados mais facilmente pelos macros, que eram micro-programas de interoperabilidade e representavam em si uma outra vantagem competitiva no 1-2-3. A Lotus alegava que todos esses elementos eram formas de expressão do seu software e que, uma vez copiados de forma idêntica pela Paperback no programa desenvolvido e comercializado por esta, estaria havendo uma infração aos seus direitos de propriedade intelectual. Em nenhum momento houve alegação de que os códigos-fontes tivessem sidos copiados, fossem similares ou idênticos, mas sim o efeito gráfico que eles produziam, o que, sob o ponto de vista daquele que utiliza qualquer dos softwares, os faziam ser iguais, independentemente dos códigos serem diferentes. Apesar dos códigos desenvolvidos pelos programadores de cada uma das empresas serem totalmente distintos, na prática a percepção pelo usuário final das funcionalidades e utilização dos programas de cada uma delas era praticamente a mesma. Essa

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similitude ocasionou sério risco para que a Lotus perdesse fatia do mercado em que até então era dominante. Por sua vez, a Paperback defendeu-se alegando, em resumo, que os elementos gráficos copiados não estariam protegidos, sob os argumentos de que a interface gráfica e a estrutura de menus por ela utilizadas seriam obrigatórias em face das funções desempenhadas, e que essas estruturas seriam meras funcionalidades, uma idéia, algo abstrato e que não seria protegido pelo direito autoral. Para resolver esta complicada questão, em sua decisão, o juiz Keeton48 defendeu que quatro questões deveriam ser analisadas para estabelecer se um elemento49 do software seria considerado uma forma original de expressão de uma idéia, protegido pelo copyright:

(i) Originalidade: o elemento deve ser original, ou seja, desenvolvido originalmente pelo autor50; (ii) Funcionalidade: se o elemento não faz nada mais do que incorporar elementos de uma idéia que são funcionais, no sentido de sua utilidade, sua expressão não é protegida pelo direito autoral51; (iii) Obviedade: quando um elemento não ultrapassa os limites do óbvio para sua função, ele é indissociável da idéia em si, o que desautoriza a proteção pelo direito de autor52; (iv) Fusão entre idéia e sua expressão: se o elemento é expresso de uma determinada maneira em face de suas formas de expressão serem extremamente limitadas, então haverá uma confusão entre a expressão e a idéia, de forma que o elemento em jogo não deve ser protegido pelos direitos de autor53.

Para David Bainbridge54, o teste dos quatro elementos utilizados continuavam a ser extremamente vagos e subjetivos, de modo que pouca contribuição trariam para a elucidação de quais elementos não-literais seriam protegidos pelo direito autoral e em que situações gozariam desta tutela jurídica. De fato, há certa subjetividade nos quatro critérios descritos pelo juiz Keeton no caso da Lotus contra a Paperback, mas entendemos que possa servir de um bom norte na análise de casos concretos, já que fogem da vaga idéia de que “o direito autoral protege 48 Lotus Development Corp. v. Paperback Software International 740 F Supp 37 (D Mass 1990). The Idea-Expression Riddle: Four Additional Concepts. Disponível em http://digital-law-online.info/cases/15PQ2D1577.htm 49 O que aqui denominamos “elemento”, o juiz Keenton chama de “expressão”, do inglês “expression”. 50 § 102(a), US Copyright Act 1976, Title 17 U.S.C. Nos Estados Unidos, o elemento de originalidade é menos rigoroso do que em países civilistas, como o Brasil, em que, no mais das vezes, para uma obra autoral ser original, não basta que tenha sido expressa pela primeira vez pelo autor, mas sim que carregue consigo alguns traços do conhecimento e estilo do seu criador. 51 § 102(b), US Copyright Act 1976, Title 17 U.S.C. 52 E.H. Tate Co. v. Jiffy Enterprises, Inc., 16 F.R.D. 571, 573 [103 USPQ 178] (E.D. Pa. 1954). 53 “When there is essentially only one way to express an idea, the idea and its expression are inseparable and copyright is no bar to copying that expression.” Concrete Machinery Co. v. Classic Lawn Ornaments, Inc., 843 F.2d 600, 606 [6 USPQ2d 1357] (1st Cir. 1988). 54 BAINBRIDGE, David. Op. Cit. p. 104.

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expressões originais de uma idéia”, à qual estamos acostumados a trabalhar em países de direito civil, fornecendo elementos mais palpáveis a uma apreciação pontual. Considerando tais requisitos, o juízo da Corte Distrital de Massachusetts decidiu que a interface gráfica do Lotus 1-2-3 seria protegida pelo direito de autor, em particular o menu de comandos formado por palavras em duas linhas, que remetiam as outros sub-menus, pois teriam sido originalmente desenvolvidos pela Lotus, tendo, portanto, a Paperback infringindo os direitos de propriedade intelectual daquela. Contudo, a Corte ressalvou que alguns dos elementos não gozariam de tutela jurídica autoral, como seria o caso da utilização de determinadas teclas para executarem funções, a exemplo de “-”, “+” e “*”, que eram utilizadas por diversos outros programas de planilhas de texto, ainda que não fossem essenciais. Esta decisão foi severamente criticada por diversos juristas e cientistas da computação, pelos potenciais efeitos nefastos que poderia vir a causar, já que nos Estados Unidos uma decisão como esta, confirmada pela Suprema Corte, vincularia todas as posteriores a respeito de matéria similar, que deveriam seguir no mesmo sentido55. O principal motivo alegado pelos críticos56 seria o de que, caso se conferisse proteção sobre os elementos gráficos e a interface de um programa de computador, isto poderia causar o impedimento de qualquer programa similar, pelo longo prazo de duração dos copyrights, o que poderia garantir exclusividade e monopólios indesejados por todo este tempo, diminuindo a competição e aniquilando o mercado e as opções de programas de computador de uma mesma finalidade. Além disso, conforme ressalta Ana Maria Carneiro e outros autores57, a padronização de partes dos softwares é uma trajetória “natural” de qualquer indústria, de maneira que não poderia ocorrer de forma distinta com as empresas dedicadas desenvolvimento de programas de computador. De fato, a bem da melhor e mais fácil utilização pelos usuários de software, nota-se que há uma grande semelhança entre programas com finalidades semelhantes, a exemplo do que ocorreu com os sistemas operacionais, que nem sempre foram baseados em janelas, como atualmente ocorre com o Microsoft Windows, o MacOS e quase todas as versões correntes de Linux. Devido a certa padronização, um usuário médio pode facilmente migrar de um programa ao outro, sem sentir grandes dificuldades. Em 1995, a Corte de Apelações da 1ª Região dos Estados58 decidiu um novo caso com base na alegação de uma nova infração dos direitos autorais sobre o Lotus 1-2-3, no

55 SAMUELSON, Pamela; DAVIS, Randall, KAPOR, Mitchell D.; e REICHMAN, J.H. A Manifesto Concerning the Legal Protection of Computer Programs. Columbia Law Review. Estados Unidos: 1994. P. 2308-2431. 56 SAMUELSON, Pamela; DAVIS, Randall, KAPOR, Mitchell D.; e REICHMAN, J.H. Op. cit. P. 2308-2431. 57 CARNEIRO, A. M.; ALVES, A.; STEFANUTO, G.; VEIGA, B., SALLES-FILHO, S. L. M.; DE LUCCA, J. E.. Propriedade Intelectual na produção de software: um componente importante na equação de reuso. XII Seminário Latino-Iberoamericano de Gestion Tecnológica – ALTEC, 2007. Disponível em http://www.ige.unicamp.br/geopi/documentos/41439.pdf . 58 A United State Court of Appeals for the 1st Circuit (Corte de Apelações da 1ª Região dos Estados Unidos) é um tribunal judicial federal dos Estados Unidos, com competência recursal sobre as decisões

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caso Lotus Development Corp. v. Borland International Inc.59. A situação era bastante similar, a Borland havia desenvolvido um novo programa, sem copiar qualquer parte do código-fonte do seu concorrente, mas cuja interface visual era extremamente similar à do Lotus 1-2-3, repetindo seus comandos e estrutura de menu. Neste caso, a Borland desenvolveu e lançou um programa de computador, chamado “Borland Quattro”. Este programa, cujo nome sugeria uma evolução do programa “Lotus 1-2-3”, incorporava as funções existentes em seu concorrente e adicionava outras novas. Apesar de ter uma apresentação gráfica inicialmente diferente, continha um comando em que o usuário poderia optar por um layout extremamente similar ao do Lotus 1-2-3, com menus e comandos idênticos. A esta função a Borland batizou de “Lotus Emulation Interface” (Interface de Emulação do Lotus). Uma vez ativado o modo de exibição Lotus Emulation Interface no Borland Quattro, além das interfaces, comandos e estruturas de menus entre os programas passarem a ser iguais, os macros desenvolvidos e utilizados pelos usuários no Lotus 1-2-3 poderiam ser também utilizados no primeiro. A Lotus processou a Borland em 02 de julho de 1990, perante a Corte Distrital de Massachusetts, sob a alegação de que o ambiente do Borland Quattro, que simulava os menus, comandos e exibição gráfica do Lotus 1-2-3, violava seus direitos autorais (copyrights). Durante o processo judicial, a Borland foi obrigada a não utilizar o menu originalmente existente no programa da Lotus. Na prática, fora a perda do menu, isso também implicaria na impossibilidade dos macros desenvolvidos para o Lotus 1-2-3 serem utilizados no Borland Quattro. Em face disso, a Borland alterou os nomes dispostos nos menus do seu programa, mas continuou utilizando a primeira letra de cada palavra dos menus do programa da Lotus. A explicação disso é que, replicando essas letras, seus usuários poderiam utilizar no Quattro os macros que desenvolveram para o 1-2-3. Para possibilitar esse aproveitamento, a Borland desenvolveu uma ferramenta chamada de “Key Reader” (leitor de comandos). Assim, os usuários do Quattro não perceberiam qualquer perda nas funcionalidades dadas pelas macros desenvolvidas para o 1-2-3. Em janeiro de 1993, utilizando-se de um expediente típico do sistema processual norte-americano, a Lotus entrou com uma reclamação complementar à ação judicial originária, segundo a qual alegava que o Key Reader, dispositivo que permitia a utilização das macros criadas para o Lotus 1-2-3 no Borland Quattro, também violaria seus copyrights. À medida que o Key Reader possibilitava a operação de macros por dois programas distintos, emergia também uma questão de interoperabilidade a ser analisada pelas

prolatadas pelas Cortes Distritais do território norte-americano de Porto Rico e dos estados norte-americanos de Maine, Massachusetts, New Hampshire e Rhode Island, sediado na cidade de Boston, estado de Massachusetts, Estados Unidos. Todos estes estados e o território de Porto Rico compõem a 1ª Região (1st Circuit). Disponível em <http://www.fjc.gov/history/home.nsf/usca_01_frm?OpenFrameSet>. 59 Lotus Development Corp. v. Borland International Inc., 49 F.3d 807 (1st Cir. 1995).

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cortes norte-americanas60, uma vez que sua função era a de fazer determinados elementos lógicos (macros) operassem tanto em um sistema como em outro. Sob o direito norte-americano, normalmente dois pontos deveriam ser considerados para verificar se, em um caso concreto, há infração aos copyrights, conforme o entendimento firmado no caso Feist Publications, Inc. v. Rural Tel., Serv. Co: (1) primeiro, se o demandante tem a titularidade sobre uma obra protegia sob o copyright; (2) segundo, se houve cópia de elementos constitutivos da obra que sejam originais61. Contudo, a Corte de Apelações da 1ª Região dos Estados entendeu que não se tratava de analisar esses dois elementos, estabelecidos na common law estadunidense, uma vez que a Borland reconhecia que a Lotus tinha os direitos autorais sobre o seu programa Lotus 1-2-3 e que, também, teria feito cópia da hierarquia de comandos do menu do programa da Lotus, os quais incontroversamente teriam sido originalmente desenvolvidos, organizados e distribuídos pela Lotus. A questão central a ser decidida era se a estrutura do menu em si, que possibilitava a interoperação de macros em dois programas, seria protegida. Em decisão final, a Corte de Apelações entendeu que a estrutura do menu de comandos per se era simplesmente um método de operação, o qual estaria expressamente excluído da tutela jurídica dos direitos autorais, nos termos da Seção 120(b) da Lei de Copyright dos Estados Unidos. Dessa forma, decidiu que a Borland não infringiu os direitos autorais da Lotus. É importante ressalvar, contudo, que os casos até então decididos nos Estados Unidos versavam sobre interfaces gráficas extremamente simplórias se compararmos com os avançados recursos gráficos existentes na atualidade, nos quais há uma mescla considerável de vários elementos visuais sofisticados, bastante diferentes das estruturas gráficas essencialmente baseadas em menus, palavras e comandos textuais de outrora. No Brasil, não temos antecedentes jurisprudenciais que nos permitam adotar um norte crítico, mas é possível realizar uma interpretação sistemática da legislação que rege a matéria e tomar alguns ensinamentos da doutrina e jurisprudência estrangeira, já que os princípios concernentes à matéria são extremamente similares. De acordo com o art. 1º da Lei 9.609/98 brasileira, “programa de computador” é a expressão de um conjunto organizado de instruções em linguagem natural ou codificada, contida em suporte físico de qualquer natureza, de emprego necessário em máquinas automáticas de tratamento da informação, dispositivos, instrumentos ou equipamentos periféricos, baseados em técnica digital ou análoga, para fazê-los funcionar de modo e para fins determinados. O art. 2º da mesma lei do software estabelece que o regime de proteção à propriedade intelectual de programa de computador é o conferido às obras literárias pela legislação de direitos autorais e conexos vigentes no País, observado o disposto nesta lei.

60 BAND, Johnathan. Lotus v. Borland viewed through the lens of interoperability. Computer Law and Practice, n. 135, 1995. 61 “(1) ownership of a valid copyright, and (2) copying of constituent elements of the work that are original.” Feist Publications, Inc. v. Rural Tel., Serv. Co., 499 U.S. 340, 361, 111 S.Ct. 1282, 1296, 113 L.Ed.2d 358 (1991). Estados Unidos.

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A referência a que os programas de computador serão tratados como obras literárias para fins de proteção jurídica encontra-se também disposto no GATTS/Acordo TRIPS62, que trata dos aspectos dos direitos de propriedade intelectual relacionados ao comércio, do qual o Brasil é signatário. O art. 10(1) do Acordo TRIPS prescreve que os programas de computador, em código fonte ou objeto, serão protegidos como obras literárias pela Convenção de Berna. Esta, por sua vez, menciona que serão protegidas pelo direito de autor as obras “literárias e artísticas”. Ao fazermos uma análise dos textos integrais das normas acima referidas, verificamos que, sob o direito de autor, existem basicamente duas classes de obras: as literárias , que são aquelas escritas sob a forma de textos, de qualquer natureza; e as artísticas, que têm diversas formas de manifestação nos diferentes domínios da tarde, como esculturas, pinturas, músicas, desenhos, etc, mas cuja finalidade precípua é proteger a expressão original de uma “obra de arte” contra a reprodução indevida por terceiros. Está bastante claro que, tanto no Acordo TRIPS, quanto na Lei do Software brasileira, foi feita especial menção a que os programas de computador desfrutarão de proteção análoga à conferida às obras literárias, que são, por definição, obras escritas. Ainda que em algum momento estejam simplesmente verbalizadas, como em um sarau - e desde este momento a lei brasileira já lhes alberga proteção -, elas o são feitas por meio de palavras, cuja expressão original do autor de maneira ordenada as transforma em únicas. Não se estabeleceu que os programas de computador seriam simplesmente protegidos pela tutela do direito de autor; ao contrário, buscou-se especificar a forma de proteção e como ela deveria ser interpretada: da mesma maneira que se trata a tutela das obras literárias, ou seja, pela ordenação única de palavras. Esta ordenação única de palavras, ao serem traduzidas para os programas de computador, trata-se do o “conjunto organizado de instruções em linguagem natural ou codificada” a que se refere o art. 1º da Lei do Software. Adicionalmente, salientamos que o TRIPS faz expressa referência a que os programas de computador serão protegidos “em código fonte ou objeto”, mais uma vez buscando conexões textuais para adaptar a proteção autoral aos programas de computador, sem que fosse feita qualquer referência a formas de expressão decorrentes da sua execução em ambiente computacional. Todos esses elementos normativos reconhecidos pelo direito positivo brasileiro levam à conclusão de que elementos não literais, distintos dos códigos-fonte e códigos de máquina (código-objeto), não estão protegidos pelo direito brasileiro. Outro ponto relevante é o de que a lei brasileira63 expressamente estabelece que não constitui ofensa aos direitos do titular de programa de computador, dentre outras hipóteses, a ocorrência de semelhança de um programa a outro, preexistente, quando se der por força das características funcionais de sua aplicação.

62 TRIPS - Acordo Sobre Aspectos dos Direitos de Propriedade Intelectual Relacionados ao Comércio. Disponível em http://www.inpi.gov.br/menu-esquerdo/indicacao/pasta_acordos/TRIPS.doc . 63 Lei 9.609/98, art. 6º.

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Além disso, a Lei de Direitos de Autor brasileira, aplicável subsidiariamente aos programas de computador, prescreve que não poderão ser protegidos pelos direitos autorais as idéias, procedimentos normativos, sistemas, métodos, projetos ou conceitos matemáticos como tais; os esquemas, planos ou regras para realizar atos mentais, jogos ou negócios; e o aproveitamento industrial ou comercial das idéias contidas nas obras64. A interface gráfica em um programa de computador tem por objetivo executar uma idéia funcional, no sentido de implementar sua utilidade, ainda que de forma melhorada em relação a outros programas, de modo que, adotando-se o critério da “funcionalidade” estabelecido no caso Lotus Development Corp. vs. Paperback Software International65, tal expressão não poderia ser protegida pelo direito autoral. Tomando emprestados ainda os ensinamentos na decisão final do caso Lotus Development Corp. v. Borland International Inc.66 e transpondo-os à realidade legal brasileira, consideramos que os elementos de look-and-feel e interface gráfica dos programas de computador, que consistem na forma como os usuários o percebem e executam suas funções, confundem-se com métodos de operação do programa de computador que têm por objetivo implementar características funcionais de sua aplicação, o que expressamente excluiria esses elementos da proteção autoral, nos termos do art. 6º da Lei do Software e do art. 8º, inc. I e II da Lei de Direitos de Autor acima comentados. Diante de todo o exposto, consideramos que, no atual estágio da legislação brasileira, que confere tutela específica aos software na Lei 9.609/98, não há margem para conferirmos proteção jurídica contra a reprodução por terceiros aos elementos gráficos, interface e layout de um programa de computador. Isso porque os elementos diretamente desenvolvidos pelo autor, código fonte e código objeto, foram os únicos expressamente contemplados pela lei do software vigente, em proposital detrimento aos demais elementos não literais, com exclusão dos elementos funcionais, ainda que graficamente expressos. Esta atualmente nos parecer ser a única posição que condiz com a proteção autoral conferida pela lei brasileira e pela ordem jurídica internacional, que é replicada em diferentes graus e distintos contextos nos demais países do mundo, mas que segue sempre uma sistemática extremamente similar. Entender de forma contrária, conferindo proteção jurídica à manifestação gráfica geral produzida pelo programa quando executado, além de ser um forçoso exercício de hermenêutica sobre o texto da lei existente, é também uma posição arriscada sob o ponto de vista do livre desenvolvimento de novos programas de computador e do desenvolvimento deste setor da economia. Isso porque, ao se entender pela proteção do aspecto visual gerado por um programa de computador – seu layout, por exemplo –, conferir-se-ia proteção durante o prazo de 50 (cinquenta anos), a contar de 1º de janeiro do ano seguinte ao da sua criação ou divulgação, conforme prescrito no parágrafo segundo do art. 2º da Lei 9.609/98. Isso

64 Lei 9.610/98, art. 8º, inc. I e II. 65 Lotus Development Corp. v. Paperback Software International 740 F Supp 37 (D Mass 1990). 66 Lotus Development Corp. v. Borland International Inc., 49 F.3d 807 (1st Cir. 1995).

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poderia garantir ao seu titular o direito de impedir que terceiros desenvolvam qualquer programa de computador que gere uma expressão gráfica similar, ou, pior, que seja considerada um melhoramento da primeira versão protegida. Uma proteção assim não atenderia aos interesses dos usuários em geral, não atenderia aos interesses econômicos da indústria do software e, sob o ponto de vista estritamente jurídico, atentaria às normas de garantia da livre concorrência previstas na Constituição Federal, posto que seria capaz de condicionar todo um mercado extremamente dinâmico como o da tecnologia da informação durante um período de mais de 50 anos, que é estabelecido para a proteção dos programas do computador na Lei 9.609/98. Uma tutela assim seria uma “desproteção”, parafraseando os ensinamentos do professor Goffredo Teles Jr.67, pois seria uma proteção que não queremos.

6.4. Proteção jurídica sobre figuras, músicas, vídeos, textos e outras obras autorais existentes em programas de computador

Os programas de computador podem ser desenvolvidos com a finalidade precípua de implementar outras obras autorais. Isso pode ocorrer, por exemplo, com livros eletrônicos (e-books), estejam em formato puramente textual, apenas de áudio ou ainda áudio-visual. Nesses casos, entendemos que podem existir duas tutelas legais distintas, cada uma aplicável a uma parte do software. Àqueles elementos que tenham sido implementados pelo software e nele estão contidos, mas que, na verdade, constituem-se em obras autônomas, como os textos de um livro, as cenas de um filme, as imagens digitalizadas de um quadro, serão protegidos pela tutela geral dos direitos de autor, conferida pela Lei 9.610/98 (Lei Direitos de Autor). Ainda que, sob o formato digital, tenham seus respectivos códigos de máquina mesclados com os do programas de computador, sua natureza não é modificada. Estas obras não são um programa de computador, apenas estão implementadas por um, para que seja possível sua execução em ambiente computadorizado. O software é, nesses casos, um acessório à obra, que é o principal. Na realidade, no mais das vezes, estão em arquivos autônomos, distintos dos respectivos programas que as fazem serem executadas em computador, caso em que não há dúvida entre a separação de tutela a cada elemento, mas é perfeitamente possível que haja também a implementação de uma obra de natureza puramente autoral por um programa de computador especificamente desenvolvido para ela. Já os programas de computador que lhe dão suporte eletrônico podem receber também proteção jurídica, pela Lei 9.609/98, desde que atendam ao requisito de originalidade. Em muitos casos, não há elementos originais suficientes que lhes concedam tal status legis, mas esta posição deve ser vista com extrema cautela e em uma base ad hoc, evitando a generalização de que softwares que servem precipuamente à implementação de outras obras autorais não estariam pro. Além dessas situações, em que claramente se percebe que a base de programação serve de mero suporte, acessório ao principal, às obras protegidas puramente pela Lei dos

67 TELLES JUNIOR. Goffredo. Carta aos Brasileiros. Aula-discurso proferida na Faculdade de Direito do Largo de São Francisco. 1977.

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Direitos de Autor, há também os casos em que imagens e áudios formam parte do programa de computador sem que possam ser considerados como elementos autônomos. Quando não há independência do elemento em relação ao programa de computador em que se encontra contido, não será conferido a ele tutela jurídica sob a Lei do Software ou sob o amparo da Lei dos Direitos de Autor. Isso porque, uma vez não sendo possível a identificação de autonomia e o requisito de originalidade, não poderá ser protegido como uma obra autoral pura. Como os elementos não-literais dos programas não estão protegidos pela Lei do Software, conforme análise realizada no capítulo imediatamente anterior deste estudo, e tampouco encontram-se abarcados pelo direito de autor geral, não gozam da proteção jurídica própria dos códigos do software. Solução similar encontramos aos sites de internet, conforme aponta Felipe Costa Fontes68, que são verdadeiros programas, desenvolvidos em linguagem de programação própria para ambiente web, mas que normalmente não estão compilados, mas sim interpretados pelo navegador de internet (browser) utilizado pelo usuário para acessar suas respectivas páginas. Sendo original, seu código goza de proteção jurídica ao amparo da Lei do Software, sendo que elementos textuais, imagens, fotografias e outras obras independentes, ainda que utilizadas em websites, estão submetidas à tutela geral dos direitos de autor, conferida pela Lei de Direitos de Autor.

6.5. Proteção jurídica sobre logotipos utilizados em um software Sobre a proteção de logotipos emerge questões bastante interessantes. Ao falarmos em logotipo, referimo-nos a pequenos sinais gráficos utilizados em um programa de computador, compreendendo, então, os ícones utilizados para distinguir um programa de computador dos demais, bem como as pequenas figuras utilizadas em botões existentes no software. Essas imagens não recebem tutela da Lei do Software, uma vez que são elementos não-literais. Restaria então para eles a análise de eventual proteção sob o regime geral dos direitos autorais, dentro da classe de obras artísticas. Verificamos que, na maioria dos casos, não se encontra uma apreciação de ordem artística nos logotipos utilizados em programas de computador. Ainda que apresentem uma imagem agradável, para imaginar se a um logotipo presente em programa de computador – seja seu identificador, seja utilizado em botões internos do software – é preciso abstrair à qualidade de obra artística e imaginar se contém qualidades necessárias a lhe atribuir a condição de “uma obra de arte”. É um exame extremamente subjetivo, feito caso-a-caso, mas que leva consigo um pouco de senso comum e que pode chegar à conclusão pela proteção sob a Lei de Direitos de Autor. Ora, mas ainda que não se trate de uma obra de arte no sentido estrito das artes humanas, seria absurdo não conferir proteção jurídica a um ícone que distingue um 68 FONTES, Felipe Costa. Natureza e proteção jurídica do website à luz do direito brasileiro. Recife: IBDI, 2003. Disponível em http://www.ibdi.org.br/site/artigos.php?id=127

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programa de computador dos demais, como o do Microsoft Windows e até o pingüim do Linux. Como o escopo subjacente é a distinção de um software dos demais, por meio de um elemento gráfico, estamos falando da proteção própria conferida pelo direito marcário. Para que um logotipo utilizado para diferenciar um programa dos demais seja protegido como marca, nos termos da Lei de Propriedade Industrial (Lei 9.279/96), é necessário que seja requerido seu registro perante o Instituto Nacional da Propriedade Industrial (INPI). Esta proteção restringe-se ao território brasileiro, sendo certo que, para fazer valer em outros países, será necessário requerer seu registro perante o respectivo órgão responsável pelo registro de marcas do país em que se pretende ter proteção marcária. Além da tutela legal do direito de marcas, a proibição de uma empresa utilizar o logotipo utilizado por um concorrente seu em um software, que tem o escopo de diferenciá-lo dos demais, encontra amparo nas normas de repressão à concorrência desleal, estabelecidas no art. 195 da Lei de Propriedade Industrial brasileira e na Convenção da União de Paris, da qual o Brasil é signatário. Desta forma, ainda que não esteja registrado como marca, uma empresa dedicada à comercialização de softwares está proibida de utilizar em um programa de computador seu o logotipo que seu concorrente utiliza em seu software, que tem a finalidade de lhe distinguir dos demais, sob pena de estar incorrendo na prática criminosa de concorrência desleal. Tais tutelas – do direito marcário e da repressão à concorrência desleal – não se aplicam a logotipos normalmente utilizados em botões presentes dentro de um programa de computador, pois estes não são utilizados como um sinal original com o objetivo de distinguir o software dos demais, mas sim para executar funções específicas. Este é o exemplo dos botões utilizados para salvar um arquivo, representado em diversos programas de computador diferentes por um disquete, ainda quando, na atualidade, o uso de disquetes em computadores tenha caído em desuso.

6.6. Proteção jurídica sobre bancos de dados e outros elementos gerados por um software

A utilização de programas de computador pode gerar novos dados que, organizados de acordo com um critério que os façam ser interpretados pelos respectivos softwares, transformam-se em uma obra autônoma, denominada banco de dados ou base de dados (do inglês database). Considera-se como “bancos de dados” a qualquer coleção de obras individuais, dados ou outros materiais organizados de forma sistemática ou metodológica, de maneira que possam ser acessados de maneira individualizada, por meios eletrônicos ou não69. Assim como ocorreu com os programas de computador, muito se discutiu sobre que regime jurídico melhor se aplicaria à proteção dessas obras. Como sabemos, os direitos de autor são divididos em direitos morais, de ordem personalíssima e vinculados à pessoa física do autor, como é o caso do direito de autoria (ou à paternidade), 69 COLSTON, Catherine; MIDDLETON, Kirsty. Modern Intellectual Property Law. London: Cavendish, 2005. p. 267.

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consistente no direito que todo autor tem de ver atribuída sua obra ao seu nome, os quais são inalienáveis e não estão sujeitos a ser objeto de negócio jurídico; e os direitos patrimoniais, consistentes nos direitos de exploração econômica de uma obra. Muito se argumentou que o direito de autor não deveria tutelar a proteção dos bancos de dados porque os direitos morais não seriam conciliáveis com sua utilização, pois que interesse teria alguém de ter direitos sobre uma compilação de dados que não fossem de ordem eminentemente econômica. Direitos morais como os direitos de integridade e de paternidade não pareceriam ser conciliáveis à função social que têm os bancos de dados. Além disso, o prazo de proteção das obras autorais seria demasiado extenso, o qual, nos termos da Convenção de Berna de 1886, corresponderia ao mínimo de 50 (cinquenta anos), a contar do 1º de janeiro imediatamente posterior ao do falecimento do autor. No Brasil, este prazo é ainda superior, de 70 (setenta) anos. Na União Europeia, a Diretiva 96/9/CE do Parlamento Europeu e do Conselho (Diretiva da Proteção a Base de Dados) harmonizou entre os países-membros a tutela a bancos de dados, conferindo-lhe uma dupla forma de proteção: sob os direitos de autor, sempre que se puder constatar o elemento de originalidade obrigatório à proteção autoral, e uma proteção sui generis, quando não for possível verificar-se originalidade na organização empregada ao banco de dados, cuja valoração da indenização em caso de violação legal corresponde aos gastos incorridos pelo seu titular para a sua produção70. No Brasil, atualmente os bancos de dados são considerados obras literárias para efeitos de tutela jurídica e, assim, submetidos ao regime autoral da Lei 9.609/98. Esse parâmetro geral encontra-se replicado no art. 10 (2) do Acordo TRIPS, segundo o qual as compilações de dados ou de outro material, legíveis por máquina ou em outra forma, que em função da seleção ou da disposição de seu conteúdo constituam criações intelectuais, deverão ser protegidas como tal. Essa proteção, que não se estenderá aos dados ou ao material em si, se dará sem prejuízo de qualquer direito autoral subsistente nos dados ou material que a compõe. Sua titularidade pertence à pessoa que, utilizando-se do programa de computador, compilou os dados sob determinada organização, de forma original. Os direitos recaem não sobre os dados em si, que podem ter as mais diversas naturezas e não terem um valor em si próprios, se individualmente considerados, mas sim sobre a organização única que lhes é aplicada, ainda que proveniente da utilização de um programa de computador. Em um caso fictício em que uma empresa tenha organizado, por meio de um programa de computador ou não, determinadas informações ou dados, de forma que esta organização passou a ter um valor economicamente apreciável em si, não há razão para não ser conferida proteção legal. Em nosso entendimento, “originalidade” para os bancos de dados quer dizer a inexistência anterior da respectiva organização de dados ou informações.

70 COLSTON, Catherine; MIDDLETON, Kirsty. Op. Cit. p. 267. Veja também a Directive 96/9/EC of the European Parliament and of the Council of 11 March 1996 on the legal protection of databases. Official Journal L 077 , 27/03/1996 P. 0020 – 0028. Disponível em: http://eur-lex.europa.eu/LexUriServ/LexUriServ.do?uri=CELEX:31996L0009:EN:HTML

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Ainda que um banco de dados não atenda a alguma eventual rigorosa análise subjetiva e pontual do elemento da originalidade, que é próprio do direito autoral, é possível buscar proteção legal em face do princípio geral da responsabilidade civil, segundo o qual todo aquele que causar dano a outrem tem a obrigação de indenizá-lo. É evidente que a utilização não autorizada de um banco de dados por terceiro, notadamente por meios que atentem à boa concorrência71, causa um prejuízo patrimonial ao seu titular, seja à medida que a empresa deixou de auferir lucro pela utilização indevida, seja porque a mera utilização não autorizada por terceiro diminui o valor estratégico da respectiva base de dados. A avaliação do dano patrimonial, nesses casos, deve levar em consideração a atividade desenvolvida pelo titular, do utilizador não autorizado, os fins para os quais a base foi desenvolvida e os fins para os quais ela foi utilizada. Além dos bancos de dados, os programas podem gerar outras obras autorais. Um exemplo simples são arquivos de textos gerados mediante a utilização de um software editor de textos. Neste caso, como no dos bancos de dados, a titularidade das obras geradas mediante a utilização do programa é daquele que a desenvolveu, não do proprietário do software.

7. Proteção do software: a questão do registro No Brasil, não há formalidades para que haja proteção sobre um programa de computador, de maneira que a obra é protegida pelo período correspondente 50 anos, contados a partir do 1º de janeiro subseqüente ao da sua criação ou divulgação. O registro do programa perante o Instituto Nacional da Propriedade Industrial (INPI), órgão competente no território nacional, é facultativo e não constitui direito de autor sobre a obra, mas é uma prova juris tantum de autoria, ou melhor, é declaratório de que, desde a data do pedido de registro perante o Instituto, a pessoa física ou jurídica que requereu seu registro possuía os elementos que levou a registro, o que presume sua titularidade. Na prática, o efeito do registro perante o INPI inverte o ônus da prova, de maneira que, se alguém, munido de um registro do seu respectivo programa de computador perante o INPI, intentar uma ação de infração a direitos autorais sobre programa de computado contra um terceiro, e a demandada alegar autoria da obra em detrimento da demandante, a demandada terá a obrigação de produzir elementos probatórios que levem o juiz a se convencer de que, antes do registro do programa de computador pela demandante perante o INPI, a demandada já possuía os elementos levados a registro e que ela, de fato, possui os direitos sobre a obra. Por isso, o registro perante o INPI, apesar de não ser obrigatório, é extremamente recomendável. Os meios de prova de autoria sobre um programa de computador, seja pela parte demandante, seja pela demandada, não se restringem ao registro no órgão competente, mas amplia-se para todos os meios de prova admitidos em direito, dentro dos princípios processuais da livre produção de provas e do livre convencimento do juiz. 71 Ou seja, concorrência desleal, tal como definida na Convenção da União de Paris e no art. 195 da Lei de Propriedade Industrial brasileira.

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Assemelhando-se à prática legal brasileira, nos Estados Unidos72, o registro de um programa de computador (e de qualquer obra protegida pelo direito autoral) perante o órgão competente constitui evidência prima facie de titularidade de direito de autor sobre a obra, invertendo o ônus da prova para a outra parte, que deverá provar a inexistência de direito pelo titular do registro, mas não é o único meio probatório.

8. Considerações finais: que rumo poderia seguir a tutela jurídica dos softwares?

Conforme pudemos observar neste estudo, os programas de computador são obras de natureza técnica e seu valor encontra-se nos aspectos funcionais que desempenham, os quais são percebidos pelo usuário mediante sua execução no computador. Não obstante, a legislação atualmente vigente no Brasil replica princípios adotados na quase totalidade dos países do mundo, dispostos no Acordo TRIPS, equiparando os softwares às obras literárias e, portanto, protegendo-os sob a tutela dos direitos de autor. No Brasil, ainda que seja regido por lei própria – a Lei 9.609/98 –, as diferenças básicas entre a proteção jurídica conferida aos programas de computador por esta lei e àquela atribuída pela lei dos direitos de autor (Lei 9.610/98) às obras literárias em geral são de que, de um lado, diminuíram-se os direitos morais de autor, reduzindo-os, para os softwares, aos direitos à integridade e à paternidade73, que seguem os parâmetros mínimos estabelecidos na Convenção de Berna de 188674, aplicável em face do art. 10(1) do Acordo TRIPS; e, de outro lado, suavizaram o tempo de proteção para 50 (cinquenta) anos, que nas obras literárias corresponde à vida do autor acrescida de 70 (setenta) anos. A tutela legal dos direitos de autor não é apropriada aos programas de computador, por diversos motivos. O primeiro é de que não fornece proteção a elementos que, sob o ponto de vista patrimonial dos seus desenvolvedores, realmente são significativos para a indústria de software, permitindo que uma empresa replique a quase totalidade dos aspectos funcionais e gráficos de um programa de computador de sucesso desenvolvido pela sua concorrente, sem que isso seja considerado infração legal, desde que o código-fonte não tenha sido copiado, total ou parcialmente. Além disso, um segundo aspecto negativo é o de que o prazo de proteção jurídica de 50 (cinquenta) anos não atende aos interesses dos desenvolvedores de software, já que sua defasagem tecnológica normalmente corresponde a cerca de 10% (dez por cento) deste tempo, sendo demasiado longo para seu objeto tecnológico. Um terceiro ponto é de que os direitos morais à integridade e à paternidade (autoria), na prática, não encontram qualquer utilidade aos autores de programas de computador, tendo caídos em natural desuso. Ora, com o exemplo do direito à paternidade, de fato não parece ser compatível a obrigação de uma empresa desenvolvedora de softwares fazer constar de maneira explícita o nome de todos os programadores e outros profissionais que participaram do desenvolvido do respectivo programa. Isso é

72 Entendimento firmado no caso Bibbero Sys., Inc. v. Colwell Sys., Inc., 893 F.2d 1104, 1106 (9th Cir. 1990). Estados Unidos. 73 Há outras distinções, mas que não fazem parte do escopo deste estudo. 74 Convenção de Berna de 1886 consolidada, art. 6 bis (1). Disponível em http://www.wipo.int/treaties/en/ip/berne/trtdocs_wo001.html#P123_20726

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perfeitamente compreensível para uma obra literária – um livro, um artigo, etc -, mas não encontra guarida racional para ser aplicável também a programas de computador. Não há um efetivo bem jurídico de âmbito personalíssimo a ser tutelado. Entendemos ser necessário conferir alguma forma de proteção jurídica aos elementos não literais de um programa de computador, é dizer, aos elementos gráficos percebidos pelos usuários ao momento de sua execução em um computador, com a finalidade de evitar o desenvolvimento de softwares idênticos que aproveitam e têm copiado uma exteriorização original que foi projetada e desenvolvida por terceiros. Os elementos não literais a serem protegidos devem atender a dois critérios: originalidade, para evitar que seja uma reprodução de antecessores; ser utilizado para desempenhar uma função ou utilidade como principal objetivo75, em oposição ao mero embelezamento, que é objeto de obras artísticas, já que o elemento da funcionalidade ou utilidade é o principal componente da natureza dos programas de computador. O prazo para proteção desses elementos não literais de um programa de computador deve ser suficiente para que haja um efetivo aproveitamento econômico por aqueles que investiram em sua criação, de forma que tenham um retorno comercial desejado, mas que seja limitado a um período conciliável com sua rápida defasagem tecnológica e que, ao seu final, em que a utilização e remodelamento por terceiros será permitida, possibilite certo grau de uniformização, que é desejável para facilitar a utilização de diferente softwares similares pelos usuários. No Manifesto sobre a Proteção Jurídica dos Programas de Computador, Pamela Samuelson e outros autores76 propõem que sejam proibidas as condutas de réplica aos comportamentos realizados por um programa e ao seu desenho industrial que tenham por finalidade produzirem um determinado comportamento eficiente [ao computador], mediante um período automático de proteção anti-clonagem para tais inovações. Segundo eles77, o período deve ser suficientemente longo para incentivar o investimento no desenvolvimento de programas inovadores e curto o bastante para não impedir que novos players participem do seu mercado e promovam melhoramentos na invenção inicial após seu desenvolvedor originário tenha recuperado o investimento inicial realizado. Dessa maneira e diante das lições aprendidas com os diversos inconvenientes gerados pelas leis vigentes ao redor documento, acreditamos que os seguintes princípios deveriam ser adotados para o desenvolvimento de uma nova legislação de proteção à propriedade intelectual do programa de computador:

75 LEMLEY, Mark A. Op. Cit. 76 “We propose to remedy market-destructive appropriations of program behavior and the industrial designs aimed at producing efficient program behavior through a period of automatic anti-cloning protection for these innovations.” SAMUELSON, Pamela; DAVIS, Randall, KAPOR, Mitchell D.; e REICHMAN, J.H. Op. Cit. P. 2308-2431. 77 “The period should be long enough to give efficient incentives to invest in the development of innovative software, yet short enough to avert the market failure that would result if second computers and follow-on innovators were blocked from entering the market long after the first firm had recouped its initial investment.” SAMUELSON, Pamela; DAVIS, Randall, KAPOR, Mitchell D.; e REICHMAN, J.H. Op. Cit. P. 2308-2431.

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1) o foco deve ser dado à exteriorização da funcionalidade do software, sob a forma de elementos visualmente perceptíveis aos usuários no momento da execução em um computador; 2) para gozarem de proteção, os elementos visuais que compõem as exteriorizações das funcionalidades do software devem atender ao requisito de originalidade, no sentido de ser algo originalmente desenvolvido pelo seu autor, ou seja, um critério de apreciação subjetivamente menos rigoroso que o aplicável às obras literárias; 3) o prazo deve ser curto, por volta dos 5 anos, a ser apurado em levantamentos econômicos, mas bastante diferente dos 50 anos atualmente conferidos no Brasil; 4) não devem existir direitos morais sobre os softwares, pois não há caráter personalíssimo em uma obra de natureza técnica e funcional, sem cunho artístico; os direitos morais sobre programas de computador não exercem qualquer função social relevante, de maneira que deve-se dar maior atenção aos direitos patrimoniais em detrimento daqueles. 5) sobre o código-fonte e o código-objeto, inicialmente não enxergamos inconvenientes em ser conferida proteção análoga à das obras literárias, exceto seu prazo de proteção, que pode ser um pouco superior aos 5 (cinco) anos sugeridos no item 3 (três) acima, mas bastante inferior aos 50 (cinquenta) anos da atual lei, e os direitos morais sobre eles, os quais não devem existir. O modelo ora recomendado encontra algumas similitudes com a proposta do Japão78 na década de 1980, por sugerir a inexistência de direitos morais e um prazo de proteção mais curto que o dos direitos de autor, mas tem seu foco voltado nos elementos gráficos de exteriorização das funcionalidades exercidas por um software durante sua execução em um computador. Para se chegar a um entendimento mais refinado de que elementos deveriam ser protegidos no software, seu prazo de proteção e critérios a serem utilizados, seria necessário a retomada do debate em plano internacional, com ouvida dos diversos segmentos empresariais, da sociedade civil e do governo interessados, uma vez que uma legislação assim afetaria um setor que não reconhece fronteiras. Infelizmente, no momento atual, parece estar longe a possibilidade de uma discussão desta natureza e amplitude que possa gerar resultados práticos imediatos. Esperamos que os problemas, soluções e nortes trazidos neste estudo, além de poderem ser aplicados à realidade atual do Brasil, sirvam para conscientizar e reforçar a necessidade de construções jurídicas mais aprofundadas e que visem a reformar os princípios atinentes à proteção jurídica da propriedade intelectual dos programas de computador. Uma proteção assim deve estar sob uma nova categoria sui generis da propriedade intelectual, mais efetiva e pragmática e que leve em consideração os diversos interesses econômicos e sociais envolvidos.

78 Information Industry Committee, Industrial Structure Council, Protecting Software. Interim Report, December 1983 (não publicado) apud BARBOSA, Denis Borges. Op. cit. (1987).