232

Propriedade Intelectual nos Países de Língua Portuguesanit.uesc.br/.../files/livros/Propiedade-Intelectual... · propriedade intelectual e o uso da informação tecnológica contida

  • Upload
    others

  • View
    1

  • Download
    0

Embed Size (px)

Citation preview

Page 1: Propriedade Intelectual nos Países de Língua Portuguesanit.uesc.br/.../files/livros/Propiedade-Intelectual... · propriedade intelectual e o uso da informação tecnológica contida
Page 2: Propriedade Intelectual nos Países de Língua Portuguesanit.uesc.br/.../files/livros/Propiedade-Intelectual... · propriedade intelectual e o uso da informação tecnológica contida

Propriedade Intelectual

nos Países de Língua Portuguesa:

Temas e Perspectivas

Rio de Janeiro, 2011

Page 3: Propriedade Intelectual nos Países de Língua Portuguesanit.uesc.br/.../files/livros/Propiedade-Intelectual... · propriedade intelectual e o uso da informação tecnológica contida
Page 4: Propriedade Intelectual nos Países de Língua Portuguesanit.uesc.br/.../files/livros/Propiedade-Intelectual... · propriedade intelectual e o uso da informação tecnológica contida

Organização

Ana Célia Castro

Cristina de Albuquerque Possas

Manuel Mira Godinho

Propriedade Intelectual

nos Países de Língua Portuguesa:

Temas e Perspectivas

Rio de Janeiro, 2011

Page 5: Propriedade Intelectual nos Países de Língua Portuguesanit.uesc.br/.../files/livros/Propiedade-Intelectual... · propriedade intelectual e o uso da informação tecnológica contida

© 2011 Ana Célia Castro, Cristina de Albuquerque Possas e Manuel Mira Godinho

Todos os direitos reservados. É permitida a reprodução parcial ou total desta obra, desde que citada a fonte

e que não seja para venda ou qualquer fi m comercial. A responsabilidade pelos direitos autorais de textos e

imagens dessa obra é da área técnica.

1ª edição – 2011

Produção Editorial

Capa, Projeto Gráfi co e Diagramação: Fernanda Dias Almeida - Departamento de DST, Aids e Hepatites Virais,

Secretaria de Vigilância em Saúde, Ministério da Saúde

Revisão: Angela Gasperin Martinazzo - Departamento de DST, Aids e Hepatites Virais, Secretaria de Vigilância

em Saúde, Ministério da Saúde.

Impresso no Brasil / Printed in Brazil

CIP-Brasil. Catalogação na Fonte

Sindicato Nacional dos Editores de Livro, RJ

______________________________________________________________________________________

P958

Propriedade intelectual nos países de língua portuguesa : temas e perspectivas /

organização Ana Célia Castro, Cristina de Albuquerque Possas, Manuel Mira Godinho. - Rio de

Janeiro : E-papers, 2011.

231p. : il.

Inclui bibliografi a

ISBN 978-85-7650-323-1

1. Propriedade intelectual. I. Castro, Ana Célia. II. Possas, Cristina de Albuquerque. III. Godinho,

Manuel Mira

11-7963.

CDU: 347.77

______________________________________________________________________________________

Títulos para indexação:

Em inglês: Intellectual Property in the Portuguese Speaking Countries: Issues and Perspectives

Em espanhol: Propiedad Intelectual en los Países de Lengua Portuguesa: Temas y Perspectivas

Page 6: Propriedade Intelectual nos Países de Língua Portuguesanit.uesc.br/.../files/livros/Propiedade-Intelectual... · propriedade intelectual e o uso da informação tecnológica contida

SUMÁRIO

Prefácio .................................................................................................................................................................................................... 7

Introdução ............................................................................................................................................................................................ 9

I. Propriedade Intelectual nos Países de Língua Portuguesa: Sinergias e Oportunidades.... 15

1. Propriedade intelectual - tendências globais ............................................................................................................17

Por João Paulo Remédio Marques

2. Propriedade intelectual: racional de utilização e desafi os futuros em países de

língua portuguesa ...........................................................................................................................................................................55

Por Manuel Mira Godinho

II. Inovação, Propriedade Industrial e Acesso a Produtos de Saúde .......................................75

3. Patentes biotecnológicas e o acesso a produtos de saúde -

uma perspectiva europeia e luso-brasileira ......................................................................................................................77

Por João Paulo Remédio Marques

4. Políticas de saúde, aids e propriedade industrial em Moçambique ..........................................................111

Por Eusebio Chaquisse

5. Acesso aos medicamentos antirretrovirais: desafi os em propriedade

intelectual para os países de língua portuguesa ........................................................................................................127

Por Cristina de Albuquerque Possas

6. As ciências de saúde em Moçambique: o papel da propriedade intelectual .....................................145

Por Maria Teresa Araújo

III. Propriedade Intelectual na Agricultura e Conhecimentos Tradicionais .........................149

7. Propriedade intelectual na agricultura e conhecimentos correlatos em Moçambique ...............151

Por Jorge Ferrão, Américo Uaciquete e Camilo Cuna

8. Educação para a inovação: ações do INPI no âmbito da agricultura ........................................................159

Por Rita Pinheiro-Machado

9. Regimes tecnológicos e propriedade intelectual na agricultura: o papel das novas instituições ......173

Por Ana Célia Castro, Sérgio Paulino de Carvalho e Marcos Paulo Fuck

IV. Direitos Autorais e Desenvolvimento ...................................................................................187

10. Inovação e propriedade intelectual na indústria de software na América Latina .........................189

Por Paulo Bastos Tigre e Felipe Silveira Marques

11. Dilemas da legislação autoral no Brasil .....................................................................................................................211

Por Allan Rocha de Souza

Page 7: Propriedade Intelectual nos Países de Língua Portuguesanit.uesc.br/.../files/livros/Propiedade-Intelectual... · propriedade intelectual e o uso da informação tecnológica contida
Page 8: Propriedade Intelectual nos Países de Língua Portuguesanit.uesc.br/.../files/livros/Propiedade-Intelectual... · propriedade intelectual e o uso da informação tecnológica contida

7

PREFÁCIO

Este livro aborda de forma inovadora um tema estratégico para a colaboração

científi ca e tecnológica na comunidade dos países de língua portuguesa: a questão

da propriedade intelectual, tratada de forma abrangente, em uma perspectiva

transdisciplinar.

Esse esforço colaborativo, possibilitado pela rede de pesquisa que se estabeleceu

entre os países em torno do tema, certamente contribuirá para a identifi cação do

estado da arte e de prioridades e lacunas na investigação nessa área, abrangendo

questões diversas e complexas: inovação e acesso a produtos de saúde, cruciais para

o enfrentamento da pandemia de aids e outros agravos; agricultura e conhecimentos

tradicionais; direitos autorais e desenvolvimento.

O fortalecimento dessa rede será certamente estratégico para a ampliação do

esforço de investigação, informando as políticas públicas e as estratégias de apoio à

ciência e tecnologia nos diferentes países.

Dirceu B. Greco

Departamento de DST, Aids e Hepatites Virais

Secretaria de Vigilância em Saúde

Ministério da Saúde

Page 9: Propriedade Intelectual nos Países de Língua Portuguesanit.uesc.br/.../files/livros/Propiedade-Intelectual... · propriedade intelectual e o uso da informação tecnológica contida
Page 10: Propriedade Intelectual nos Países de Língua Portuguesanit.uesc.br/.../files/livros/Propiedade-Intelectual... · propriedade intelectual e o uso da informação tecnológica contida

9

INTRODUÇÃO

1. Este livro é o produto da profícua rede de cooperação científi ca – Rede de Ensino

e Pesquisa em Propriedade Intelectual (REPPI) – que se construiu, entre as principais

instituições acadêmicas e de pesquisa dos países da Comunidade dos Países de Língua

Portuguesa com atuação nessa área.

O objetivo da Rede é discutir uma agenda de interesse comum aos países da

Comunidade dos Países de Língua Portuguesa (CPLP) em matérias relacionadas com

os direitos de propriedade intelectual. Os temas abordados incluem: as fl exibilidades do

Acordo TRIPS; o direito à saúde; a singularidade da propriedade intelectual na agricultura

e os conhecimentos tradicionais; os diferentes modelos de negócio em software; os

direitos de autor; as indústrias criativas. A discussão sobre esses temas possibilitou

um aprofundamento das questões envolvendo os direitos da propriedade intelectual,

em uma moldura que destaca a sua dimensão pública, conectada com a inovação, o

desenvolvimento e as mudanças institucionais.

Os resultados desse esforço, aqui apresentados, apontam para o fato de que países

com níveis diferenciados de desenvolvimento enfrentam, da mesma maneira, questões

que estão na fronteira do conhecimento, e se deparam com confl itos que envolvem:

a propriedade intelectual das inovações e as demandas crescentes da sociedade por

acesso universal a insumos estratégicos de saúde pública, como medicamentos e vacinas;

os processos de catching up na agricultura; e, fi nalmente, as questões estratégicas de

direitos autorais em softwares e de acesso à cultura.

2. O livro encontra-se organizado em quatro seções, da forma que se detalha a seguir.

A primeira seção – Propriedade intelectual nos países de língua portuguesa:

sinergias e oportunidades – é composta de dois artigos.

Remédio Marques, professor da Faculdade de Direito de Coimbra (Portugal), realiza

relevantes refl exões sobre as tendências mundiais da propriedade intelectual e sobre

a infl uência da globalização no regime do direito de autor, bem como dos direitos

conexos, discutindo o impacto dessas mudanças no regime das utilizações livres de

direito de autor, em particular a cópia privada. Seu trabalho possibilita considerações

sobre o regime da gestão coletiva dos direitos de autor, destacando a questão do direito

de autor tecnológico e a proteção de criações técnico-funcionais, com importantes

implicações sobre a CPLP.

Manuel Mira Godinho, professor catedrático do ISEG (Instituto Superior de Economia

e Gestão, da Universidade Técnica de Lisboa) discute, em profundidade, os fundamentos

do sistema de propriedade intelectual e os desafi os suscitados pela utilização da

propriedade intelectual, do ponto de vista das estratégias privadas e das políticas

públicas, em países de língua portuguesa. O trabalho concentra-se nos fundamentos

Page 11: Propriedade Intelectual nos Países de Língua Portuguesanit.uesc.br/.../files/livros/Propiedade-Intelectual... · propriedade intelectual e o uso da informação tecnológica contida

10

teóricos da propriedade intelectual, de patentes e marcas, e trata dos aspectos práticos

da utilização e desenvolvimento do sistema de propriedade intelectual nas décadas

mais recentes. Esse duplo enfoque, teórico e prático, permite extrair um conjunto de

conclusões cruciais para entender os desafi os que a propriedade intelectual coloca em

países de língua portuguesa.

Na segunda seção –, Inovação, propriedade industrial e acesso a produtos de saúde

–, têm-se quatro artigos abordando aspectos distintos do tema.

O segundo artigo de Remédio Marques, “Patentes biotecnológicas e o acesso a

produtos de saúde – uma perspectiva europeia e luso-brasileira”, apresenta uma visão

sobre as patentes de medicamentos nos países de língua portuguesa, destacando a

infl uência do Acordo TRIPS na União Europeia e nos países de língua portuguesa.

Aponta, neste trabalho, para as distintas confi gurações da patenteabilidade dos métodos

terapêuticos, diagnósticos e cirúrgicos, visando a regulação pública da comercialização

de medicamentos e o acesso da população aos medicamentos genéricos, destacando

a questão das licenças compulsórias e da exportação de fármacos para os países com

graves problemas de saúde pública.

No artigo “Políticas de saúde, aids e propriedade industrial em Moçambique”,

Eusébio Chaquisse, Coordenador do Núcleo Provincial de combate ao HIV em Nampula,

Moçambique, o autor apresenta dados sobre a pandemia do HIV e aids no país e sobre

os Planos Estratégicos e Políticas em curso para enfrentá-la, destacando a expansão do

acesso e gratuidade do tratamento antirretroviral (TARV) e a delegação de tarefas no

âmbito da TARV aos clínicos não médicos, aconselhamento e testagem voluntária e na

comunidade, a formação de técnicos de medicina, a prevenção da transmissão vertical

e a proteção de trabalhadores infectados no local de trabalho.

Em seu artigo “Acesso aos medicamentos antirretrovirais: desafi os em propriedade

intelectual para os países de língua portuguesa”, Cristina de Albuquerque Possas, Chefe

da Unidade de Pesquisa e Desenvolvimento Tecnológico do Departamento de DST, Aids

e Hepatites Virais do Ministério da Saúde do Brasil, discute os desafi os em propriedade

intelectual frente às crescentes demandas por acesso aos antirretrovirais, intensifi cadas

pela pandemia de HIV e aids. Apresenta, para cada um dos países da CPLP, uma síntese

dos principais indicadores epidemiológicos e das condições de acesso ao tratamento

antirretroviral, destacando a necessidade de fortalecimento da capacidade de produção

local dos medicamentos ARV e da ampliação das condições de acesso a estes, por meio

de um conjunto de políticas voltadas à redução dos preços: negociação de preços,

ampliação da competição por genéricos, licenças compulsórias, pools de patentes e

importação paralela.

Em “As ciências de saúde em Moçambique: o papel da propriedade intelectual”,

Maria Teresa Araújo, Diretora da Faculdade de Ciências da Saúde da Universidade Lúrio,

discute a questão da situação de desvantagem no âmbito da propriedade intelectual

Page 12: Propriedade Intelectual nos Países de Língua Portuguesanit.uesc.br/.../files/livros/Propiedade-Intelectual... · propriedade intelectual e o uso da informação tecnológica contida

11

envolvendo a cooperação internacional, que pôde observar ao longo dos anos na sua

condição de funcionária da Organização Mundial da Saúde. Mostra que essa situação é

extremamente lesiva para os pesquisadores e inovadores moçambicanos que, sem terem

instrumentos legais de proteção da propriedade intelectual a que possam recorrer, veem

prejudicados seus interesses e direitos pessoais e nacionais, decorrentes da apropriação

indevida e abuso intelectual. Conclui observando que tal situação só será revertida por

meio da aprovação de leis e respectivos regulamentos de aplicação que forneçam os

instrumentos indispensáveis para a proteção dos direitos de propriedade intelectual.

A terceira seção, Propriedade intelectual em agricultura e conhecimentos

tradicionais, é composta de três artigos.

O primeiro artigo, de Jorge Ferrão, Reitor da Universidade de Lúrio, Américo

Uaicquete e Camilo Cuna, professores da mesma Universidade, sobre Propriedade

intelectual na agricultura e conhecimentos correlatos em Moçambique, discute a

praticabilidade do direito de propriedade intelectual na agricultura em Moçambique,

apontado para as restrições impostas em sociedades em que a maioria das pessoas não

possui escolaridade sufi ciente para aceitar qualquer lei que altere o seu modus vivendi. Os

autores apontam para o principal desafi o a ser superado: embora exista uma estratégia

nacional sobre propriedade intelectual, sua implementação acaba se circunscrevendo a

uma discussão mais teórica e institucional, já que, na prática, o ordenamento jurídico e

as instituições do Estado não consagraram, ainda, os direitos de propriedade intelectual

como instrumento de defesa dos interesses nacionais e dos respectivos detentores

dessa propriedade.

O segundo artigo, de Rita Pinheiro Machado, coordenadora de Pesquisa e Educação

em Propriedade Intelectual, Inovação e Desenvolvimento do Instituto Nacional de

Propriedade Industrial (INPI) do Brasil, intitulado “Educação para a inovação: ações do

INPI no âmbito da agricultura”, apresenta e discute a atuação e estratégias do INPI nessa

área. Ressalta que, no contexto da nova política industrial, os desafi os concentram-se no

aumento da capacidade inovativa, no porte e no investimento em P&D pelas empresas

brasileiras, destacando a suma importância do entendimento do sistema de propriedade

intelectual, seus marcos legais e seus mecanismos pelos atores inovadores. Menciona

os resultados do importante esforço conjunto, nessa direção, entre a Empresa Brasileira

de Pesquisa Agropecuária (Embrapa), vinculada ao Ministério da Agricultura, Pecuária

e Abastecimento, e o INPI, que fi zeram convergir seus interesses, por meio de Acordo

de Cooperação em vigor, no sentido de promover o entendimento sobre o sistema de

propriedade intelectual e o uso da informação tecnológica contida em patentes pelos

pesquisadores e corpo técnico da Embrapa.

O terceiro artigo, de Ana Célia Castro, Professora Titular da Universidade Federal do

Rio de Janeiro e coordenadora do Programa de Pós-graduação em Políticas Públicas,

Estratégias e Desenvolvimento, Sérgio Paulino de Carvalho, Diretor de Articulação e

Page 13: Propriedade Intelectual nos Países de Língua Portuguesanit.uesc.br/.../files/livros/Propiedade-Intelectual... · propriedade intelectual e o uso da informação tecnológica contida

12

Informação Tecnológica do Instituto Nacional da Propriedade Industrial, e Marcos Fuck,

Professor do Centro de Engenharia da Universidade Federal do ABC, intitulado “Regimes

tecnológicos e propriedade intelectual na agricultura: o papel das novas instituições”,

examina as condições de formação de um novo regime tecnológico na agricultura.

Discute também o processo de catching up do sistema brasileiro de pesquisa agrícola,

destacando a nova institucionalidade em curso na pesquisa e na transferência das novas

tecnologias geradas no processo de melhoramento vegetal. O novo regime tecnológico

que emerge do processo de catching up revela uma diferente articulação entre os atores

públicos e privados participantes desse processo, e principalmente novas instituições,

entre as quais as formas de apropriabilidade do esforço inovativo decorrentes do

fortalecimento dos direitos de propriedade intelectual.

Na quarta seção – Direitos autorais e desenvolvimento – têm-se dois artigos

abordando aspectos distintos do tema.

No primeiro desses artigos, “Inovação e propriedade intelectual em software, por

Paulo Bastos Tigre, professor titular da Universidade Federal do Rio de Janeiro e Felipe

Silveira Marques, Doutorando do IE/UFRJ, aponta-se para o fato de que, embora

os direitos de propriedade intelectual constituam um instrumento de estímulo à

inovação, podem também obstaculizar a difusão do conhecimento na economia. Os

autores ilustram esse confl ito apresentando o caso da área de software, em que a

proteção de patentes é difi cultada pelo fato de os ativos serem intangíveis e replicáveis

praticamente sem custos. Discutem-se, também, as práticas de proteção à propriedade

intelectual tomando por base o caso latino-americano, examinando-as à luz de sua

efi cácia enquanto instrumento de estímulo à inovação e difusão das tecnologias

da informação. Conclui-se que é necessário harmonizar interesses confl itantes que

transcendem o aspecto técnico, levando em consideração a necessidade de assegurar

novos modelos de negócios e respeitar os acordos internacionais vigentes.

Finalmente, o segundo artigo, de Allan Rocha, Professor e Pesquisador em

Direitos Autorais da Universidade Federal do Rio de Janeiro, do Instituto Nacional

da Propriedade Industrial do Rio de Janeiro e da Pontifícia Universidade Católica do

Rio de Janeiro, intitulado “Legislação autoral no Brasil: confl itos e soluções”, aponta

para o fato de que a atual legislação é insatisfatória e marcada pela assimetria e pelo

desequilíbrio, permitindo uma expansão exacerbada dos interesses dos titulares em

prejuízo dos interesses dos elos realmente essenciais: o criador e o público. Mostra

que a excessiva concentração da titularidade em poucas entidades empresariais

e o obsessivo controle dos usos – inclusive os não comerciais – por essas poucas

entidades acabam conduzindo a um desvio funcional e estrutural injustifi cado do

foco da proteção das obras artístico-culturais. O autor conclui o artigo apresentando

diversas sugestões para o aperfeiçoamento do sistema nacional de proteção das

obras artístico-culturais no Brasil.

Page 14: Propriedade Intelectual nos Países de Língua Portuguesanit.uesc.br/.../files/livros/Propiedade-Intelectual... · propriedade intelectual e o uso da informação tecnológica contida

13

3. Esta publicação, ao buscar refl etir sobre questões relacionadas à inovação, essenciais

ao desenvolvimento e situadas na fronteira do conhecimento, propõe transcender uma

visão que tende a privilegiar apenas as dimensões assistencialistas no enfrentamento

da exclusão social nos países da CPLP. Embora também relevante, tal visão não

permite aproveitar e explorar de forma sistemática as oportunidades que se abrem aos

países em consequência da introdução e difusão da inovação e dos conhecimentos

economicamente relevantes.

Tendo em conta essa perspectiva mais abrangente, pretendeu-se constituir uma

rede de docentes e pesquisadores, que, além do ensino e da pesquisa, certamente

poderá contribuir para o aperfeiçoamento das posições da CPLP nas negociações

internacionais. Esse processo será favorecido pela afi nidade linguística e cultural que

une os países da Comunidade.

O presente livro, que é o resultado do I Seminário, privilegia o tratamento

interdisciplinar e intersetorial de diversas questões de política científi ca, tecnológica

e industrial, contribuindo com informações estratégicas que poderão subsidiar as

políticas governamentais voltadas ao desenvolvimento econômico e social nos países

mencionados.

Cabe destacar, fi nalmente, o caráter inovador das distintas abordagens teóricas

e metodológicas que fundamentaram os artigos apresentados, e que constituem

certamente uma importante contribuição ao tema. Com esse enfoque original, questões

cruciais e complexas são tratadas de forma criativa, possibilitando a compreensão,

em abordagens diversas, das novas articulações em curso entre política, economia

e regulação, sob a ótica do desenvolvimento e do interesse público, nos países da

comunidade da CPLP.

Ana Célia Castro

Cristina de Albuquerque Possas

Manuel Mira Godinho

Page 15: Propriedade Intelectual nos Países de Língua Portuguesanit.uesc.br/.../files/livros/Propiedade-Intelectual... · propriedade intelectual e o uso da informação tecnológica contida
Page 16: Propriedade Intelectual nos Países de Língua Portuguesanit.uesc.br/.../files/livros/Propiedade-Intelectual... · propriedade intelectual e o uso da informação tecnológica contida

I

PROPRIEDADE INTELECTUAL

NOS PAÍSES DE LÍNGUA POR TUGUESA:

SINERGIAS E OPOR TUNIDADES

Page 17: Propriedade Intelectual nos Países de Língua Portuguesanit.uesc.br/.../files/livros/Propiedade-Intelectual... · propriedade intelectual e o uso da informação tecnológica contida
Page 18: Propriedade Intelectual nos Países de Língua Portuguesanit.uesc.br/.../files/livros/Propiedade-Intelectual... · propriedade intelectual e o uso da informação tecnológica contida

CAPÍTULO 1

PROPRIEDADE INTELECTUAL – TENDÊNCIAS GLOBAIS1

João Paulo F. Remédio Marques 2

1 Baseado em palestra dada no seminário “Propriedade Intelectual Nos Países de Língua Portuguesa”, 30 de junho – 2 de julho

de 2008, Rio de Janeiro, Brasil.2 Professor da Faculdade de Direito de Coimbra (Portugal), Mestre em Ciências Jurídico-Forenses, Doutor em Direito

(Propriedade Intelectual).

Page 19: Propriedade Intelectual nos Países de Língua Portuguesanit.uesc.br/.../files/livros/Propiedade-Intelectual... · propriedade intelectual e o uso da informação tecnológica contida

18

1. INTRODUÇÃO: PRERROGATIVAS RÉGIAS, PROPRIEDADE INTELECTUAL E INTERESSE

PÚBLICO

O atual direito de propriedade intelectual teve as suas primícias, como todos sabem,

nos fi nais da Idade Média, nos séculos XIV e XV, quando os soberanos começaram a usar

o seu poder para criar privilégios de diferente jaez. O uso dessas prerrogativas soberanas

régias no sentido da criação de exclusivos comerciais, industriais e, no século XVI, de

exclusivos destinados à impressão de livros, tornou-se uma prática muito divulgada em

toda a Europa do fi nal da Idade Média e inícios do Renascimento.

Com o renascimento das cidades no sul e no norte da Europa (Bruges, Hamburgo,

Lisboa, Barcelona, etc.) e com o centralismo régio, tanto os soberanos quanto os poderes

autônomos do governo dessas cidades “descobriram” que uma forma de introduzir novas

tecnologias, de atrair recursos laborais e de controlar a liberdade de expressão, então

sob o controle dos editores, consistia na concessão de privilégios de comercialização, de

introdução de novas manufaturas ou indústrias e de impressão de livros em série.

Se, inicialmente, esse poder era exercido discricionariamente pelos soberanos ou

pelos príncipes, gradativamente ele foi sendo enquadrado nas novas funções do poder

legislativo, na medida em que se surpreendeu uma eminente função de prossecução

do interesse público no exercício dessas prerrogativas de autoridade. O Estatuto dos

Monopólios britânico, de 1604, constituiu um claro exemplo desse movimento.

Mas, por outro lado, a concessão das patentes por parte do soberano era já

circunscrita ao território do respectivo Estado: o princípio da territorialidade permanece

ainda hoje um elemento fundamental dos vários subsistemas da propriedade intelectual

(direito de autor e direitos conexos, e direitos de propriedade industrial).

A articulação entre as patentes e o interesse público já é claramente assumida por

James Madison, nos Federalist Papers (1787-1788), nos então recém-nascidos Estados

Unidos da América, segundo o qual o bem comum deve coincidir com as pretensões dos

indivíduos, ideal normativo que se encontra consagrado no artigo 1, Seção 8, Cláusula 8ª,

da Constituição dos E.U.A., no sentido da “promotion of progress in science and the useful

arts”. Da mesma sorte, a mudança ocorrida na Inglaterra, em 1716, pela qual passou a

ser requerida a descrição do invento e a forma de o atuar, traduz o reconhecimento da

tutela do interesse público (na divulgação da tecnologia e da execução do invento) por

ocasião da concessão de direitos de patente.

Por outro lado, a modelação desse subsistema das patentes (e dos modelos de

utilidade) foi efetuada de uma forma plenamente instrumental à medida dos objetivos

político-econômicos dos Estados soberanos: basta atentar para a forma como, a partir

de fi nais do século XIX, a Alemanha, a Suíça, a França e o Reino Unido modelaram

Page 20: Propriedade Intelectual nos Países de Língua Portuguesanit.uesc.br/.../files/livros/Propiedade-Intelectual... · propriedade intelectual e o uso da informação tecnológica contida

19

os respectivos regimes jurídicos em atenção à patenteabilidade dos produtos e dos

processos utilizados na indústria química e, logo, em atenção à concentração empresarial

e ao reforço do poder desses grupos econômicos.

2. A GLOBALIZAÇÃO DA PROPRIEDADE INTELECTUAL

Gradativamente, foi sendo erodida essa concepção soberana, territorialmente

delimitada e imune a quaisquer movimentos de harmonização procedimental ou material

do direito de patente, no seio das organizações internacionais.

Esse movimento começou, como é sabido, com a Convenção de Paris para a

Proteção da Propriedade Industrial (mais conhecida por Convenção da União de Paris), em

20 de março de 1883, subscrita inicialmente por 11 países, entre eles Portugal e Brasil.

O princípio do tratamento nacional e o direito de prioridade foram, provavelmente, os

dois maiores compromissos aí assumidos. Essa Convenção da União de Paris, constitutiva

de uma União para a proteção da propriedade industrial, já pretendia concretizar o

sonho de um direito de patente substantivamente uniformizado no quadro das nações

civilizadas - longe, porém, de o ter concretizado.

Mais de 100 anos depois, a Organização Mundial da Propriedade Intelectual (OMPI/

WIPO) constatou, em 1988, que, dos então 98 Estados Contratantes dessa Convenção da

União de Paris, 49 excluíam a patenteabilidade de fármacos; 45 proibiam a patenteabilidade

das raças animais; 42 afastavam a outorga de patentes relativas aos métodos de terapia,

cirúrgicos e de diagnóstico; 44 vedavam essa patenteação às variedades vegetais; 35

impediam a concessão de patentes sobre os alimentos; 32 proibiam a patenteabilidade

das invenções respeitantes a programas de computador; e 22 Estados Contratantes não

concediam patentes a invenções de produtos químicos3.

Essa diversidade legiferante traduz a forma, não raras vezes, instrumental como os

Estados contratantes da Convenção de Paris usam esse subsistema da propriedade

industrial. Em alguns casos, inclusivamente, essa visão instrumentalista serviu

prioritariamente a certos interesses públicos: basta ver as alterações da lei de patentes

da União Indiana, ocorridas em 1970, no sentido da promoção do desenvolvimento

econômico e, sobretudo, no sentido de prevenir o aumento do custo dos medicamentos

para uso humano4, por meio, inter alia, da proibição da patenteabilidade dos

medicamentos enquanto patentes de produto.

3 “Existence, scope and form of generally internationally accepted and applied standards/norms for the protection of intellectual

property”, World Intellectual Property Organization, WO/INF/29 September 1988, GATT Document number MTN:GNG/NG11/

W/24/Rev.1.4 RAMANNA, Anita, “Shifts in India’s Policy on Intellectual Property: The Role of Ideas, Coercion and Changing Interests”, in DRAHOS,

Peter (ed.), Death of Patents, Queen Mary Intellectual Property Institute, Lawtext Publishing Limited, 2005, p. 175 ss.

Page 21: Propriedade Intelectual nos Países de Língua Portuguesanit.uesc.br/.../files/livros/Propiedade-Intelectual... · propriedade intelectual e o uso da informação tecnológica contida

20

Um outro exemplo é o controverso poder jurídico que, a partir de 2001, no Brasil,

foi concedido à Agência Nacional de Vigilância Sanitária (ANVISA) para emitir um parecer

vinculante (a “anuência prévia” 5) sobre a concessão de patentes às invenções de novos

fármacos e processos farmacêuticos, enquanto proposta de resolução dirigida ao INPI

brasileiro, que o vincula aos aspectos da invenção6 que a essa ANVISA cumpre apreciar

- regime que, ao que parece, também vigora no Paraguai.

A essa concepção soberana e territorial da regulamentação da propriedade industrial,

maxime do direito de patente, opôs-se, já desde o Congresso de Viena de 1873, uma

concepção universalista. À luz desse outro paradigma, ainda em fi nais do século XIX,

os direitos naturais dos inventores formam a base jusnaturalista para a unifi cação ou a

globalização do direito de patente.

Embora as várias revisões da Convenção da União de Paris tenham sido importantes,

essa globalização foi totalmente lograda com o Acordo TRIPS, a partir de 1995, por meio

do qual foram estabelecidos padrões normativos mínimos quanto ao objeto da proteção,

aos requisitos de proteção e às medidas de aplicação efetiva dos direitos de propriedade

intelectual.

Mas já antes, em 1970, com o Tratado de Cooperação em Matéria de Patentes (Patent

Cooperation Treaty: PCT), se havia alcançado alguma uniformização dos procedimentos

de patenteabilidade entre os três maiores institutos de patentes (Instituto de Patentes

e Marcas dos E.U.A., o Instituto Europeu de Patentes e o Instituto Japonês de Patentes),

especialmente a partir das conferências trilaterais, que têm tido lugar desde 1983.

À parte o Conselho do TRIPS, o certo é que desde 1983 a Organização Mundial da

Propriedade Intelectual tem estado na senda da harmonização dos aspectos substantivos

do direito de patente: a Conferência Diplomática da Haia, de 1991, aprovou uma

proposta de Tratado sobre Direito de Patente.

5 Conforme preceitua o artigo 229º-C do Código da Propriedade Industrial brasileiro, na redação da Lei nº 10.196, de 2001.

6 A rigor, parece-me que a competência da ANVISA, no que tange a essa proposta de resolução (parecer vinculante) fundada

no pedido de patente, apenas deverá recair sobre a efi cácia, a bioequivalência e a segurança (e, eventualmente, a violação da

ordem pública e dos bons costumes no setor da saúde) do medicamento para que é pedida a constituição do direito de patente;

essa competência (scilicet, competência vinculante para o INPI brasileiro) não deverá recair sobre os aspectos respeitantes

à novidade, à industrialidade, à atividade inventiva, à sufi ciência da descrição ou ao objeto de proteção (v.g., admissibilidade

de patentes do segundo e dos usos terapêuticos subsequentes de substâncias ativas já conhecidas; a admissibilidade da

patenteabilidade dos polimorfos, etc.).

Page 22: Propriedade Intelectual nos Países de Língua Portuguesanit.uesc.br/.../files/livros/Propiedade-Intelectual... · propriedade intelectual e o uso da informação tecnológica contida

21

3. AS EXPRESSÕES REGIONAIS DA CONCEPÇÃO UNIVERSALISTA DA PROPRIEDADE

INTELECTUAL: A OPORTUNIDADE DO ENCONTRO DA LUSOFONIA NA PROPRIEDADE

INTELECTUAL

Essa concepção universalista da propriedade intelectual, et, pour cause, do direito de

patente, teve importantes expressões regionais. Atualmente, existem cinco organizações

regionais de propriedade intelectual e de direito de patente:

A • Organização Africana de Propriedade Intelectual (OAPI: aglutinadora dos países

de expressão linguística francesa).

A • Organização Regional Africana de Propriedade Intelectual (ARIPO, que aglutina

os países de língua ofi cial inglesa).

A • Organização Eurasiana de Patentes.

A • Convenção sobre a Patente Europeia.

O • Instituto de Patentes do Conselho de Cooperação do Golfo.

Talvez seja este o momento para propor a discussão da gênese de uma outra

organização internacional regional: a Organização de Propriedade Intelectual dos Países

de Expressão de Língua Ofi cial Portuguesa, destinada a estabelecer a promoção e a

cooperação nesse domínio, maxime dos institutos nacionais de propriedade industrial,

em matéria de objeto e critérios substanciais de proteção, bem como no quadro dos

procedimentos administrativos de proteção (v.g., realização de exames, pelos institutos de

outros Estados de expressão de língua portuguesa, a determinados tipos de pedidos

de proteção, centralização de alguns procedimentos, troca de informações sobre o

estado da técnica ou as divulgações anteriores, etc.) e na difusão e intercâmbio do

conhecimento jurídico sobre a propriedade intelectual (v.g., acesso on line a bases de

dados, para o efeito da pesquisa sobre o estado da técnica; realização de ações de

formação). A sua gênese tanto poderia residir na formação de uma associação privada

de propriedade intelectual provida de representantes desses países, como na criação

de uma pessoa de direito público internacional a partir da celebração de um acordo

internacional multilateral com os representantes dos respectivos Estados. As primícias

poderão consistir apenas em um Protocolo por meio do qual se criam as condições para

a partilha e a difusão dos conhecimentos em matéria de propriedade intelectual. Estará,

provavelmente, longínquo o tempo em que virá a ser possível, mediante um (único)

procedimento administrativo centralizado, peticionar e obter direitos de propriedade

industrial unitários, vigentes simultaneamente em todos os Estados contratantes de

expressão de língua portuguesa, e assim desligados do princípio da territorialidade e da

independência dos direitos dessa natureza.

Page 23: Propriedade Intelectual nos Países de Língua Portuguesanit.uesc.br/.../files/livros/Propiedade-Intelectual... · propriedade intelectual e o uso da informação tecnológica contida

22

A mais importante e decisiva instância em matéria de direito de patente é, porém,

a Convenção Sobre a Patente Europeia, a qual, por meio do seu Instituto Europeu de

Patentes, prevê um procedimento administrativo centralizado de exame e de oposição à

concessão, pelo qual se autoriza a dedução de um único pedido de patente que, quando

concedido, se transforma em um feixe de múltiplas patentes nacionais (scilicet, a partir

de 12 de dezembro de 2007, da totalidade dos Estados contratantes dessa organização

internacional regional, fi cando o titular livre de limitar posteriormente a proteção apenas

a alguns deles).

Todos os Estados-Membros da União Europeia são membros da Convenção sobre a

Patente Europeia (doravante, CPE), mas o inverso (ainda) não é verdadeiro7. Isso signifi ca

que essas duas organizações internacionais regionais estão umbilicalmente ligadas em

matéria de propriedade intelectual, o que foi notório por ocasião da aprovação da Diretiva

nº 98/44/CE, sobre o regime jurídico das invenções biotecnológicas, a qual suscitou, de

imediato, a alteração, em 1999, do Regulamento de Execução da CPE8. Essa integração

dos regimes substantivos e procedimentais ainda não foi (totalmente) lograda.

Na verdade, embora exista, desde 1975, uma proposta acerca da criação do regime

jurídico da patente comunitária (subordinada ao princípio da unidade e dotada de

efi cácia extraterritorial, de jeito a vigorar simultaneamente em todos os ordenamentos

jurídicos dos Estados-Membros da União Europeia), está ainda em discussão a proposta

de regulamento comunitário para a criação de uma patente comunitária, datada de

2003. A par dessa proposta, acha-se em acesa discussão a proposta de um Sistema

Europeu de Resolução de Litígios em Matéria de Patentes, de 2004 (European Patent

Litigation Agreement: EPLA) - sistema menos ambicioso que apenas visa a criação de

uma jurisdição unitária susceptível de resolver litígios em matéria de infração de direitos

de patentes e de pedidos de anulação de patentes (Tribunal Europeu de Patentes)9, que

não de um sistema fundado no princípio da unidade e da extraterritorialidade dos direitos

de patente adrede concedidos10. Neste último caso, muitos advogam a criação de uma

estrutura jurisdicional unifi cada susceptível de resolver litígios em matéria de patentes

europeias e da futura patente comunitária11, com base em um acordo internacional

7 A Noruega, a Suíça, a Islândia, o Lichtenstein, a Croácia e a Turquia não são membros da União Europeia, mas são Estados

contratantes da CPE. Outros Estados europeus, que não são membros da União Europeia, nem da Convenção sobre a Patente

Europeia (CPE), reconhecem nos respectivos territórios a validade e a efi cácia das patentes europeias concedidas pelo Instituto

Europeu de Patentes. É o caso da Albânia, da Bósnia-Herzegovina, da Sérvia e da antiga República Iugoslava da Macedônia.

8 Cfr. as Regras 23-b (defi nições), 23-c (invenções biotecnológicas patenteáveis), 23-d (exceções à patenteabilidade), 23-e

(o corpo humano e os seus elementos destacáveis), 28 (depósito da matéria biológica) e 28-a (novo depósito de matérias

biológicas), aprovadas pela Decisão do Conselho de Administração do Instituto Europeu de Patentes, de 16 de junho de

1999, com início de vigência em 1 de setembro de 1999, in http://www.epo.org/patents/law/legal-texts/decisions/

archives/16061999.html.

9 Provido de um tribunal de 1ª instância (com seções regionais sediadas nos Estados-Membros) e de um tribunal de recurso.

10 Cfr. a mais recente comunicação da Comissão Europeia ao Parlamento Europeu e ao Conselho, Bruxelas, Com(2007), 29-03-

07, intitulada “Enhancing the patent system in Europe”, pp. 9-11.

Page 24: Propriedade Intelectual nos Países de Língua Portuguesanit.uesc.br/.../files/livros/Propiedade-Intelectual... · propriedade intelectual e o uso da informação tecnológica contida

23

celebrado entre a União Europeia e a Convenção da Patente Europeia. As mais de

800.000 patentes europeias concedidas e em vigor em 2005 - a cujos litígios, após a

fase da concessão e da oposição junto do Instituto Europeu de Patentes, se aplicam as

variegadas regras materiais e processuais nacionais dos Estados contratantes da CPE (a

maioria deles Estados-Membros da União Europeia) - reclamam a urgente criação de

um sistema material e processual uniformizado, capaz de congregar o direito comunitário

derivado e o direito dessa outra organização internacional regional: a Convenção da

Patente Europeia.

De todo modo, ainda não foram ultrapassados os vários problemas de integração

das instituições criadas no seio dessas duas Organizações Internacionais regionais: a

integração jurisdicional (criação de um tribunal comunitário dotado de competência

para apreciar e julgar os pedidos de invalidação e de violação da patente comunitária

e, eventualmente, de pedidos de indenização por perdas e danos), profi ssional

(disciplina da atividade dos agentes da propriedade industrial não juristas) e linguística

(desnecessidade de efetuar as traduções dos pedidos de patentes para as línguas ofi ciais

dos Estados-Membros).

Todavia, a propriedade intelectual tem-se integrado no nível dos acordos bilaterais,

o que também propiciou a harmonização do seu regime jurídico material. Por exemplo,

o Acordo de Livre Comércio da América do Norte (NAFTA) e o Mercosul contribuem, de

várias formas, para a fi xação de bitolas mínimas de proteção dos direitos de propriedade

intelectual12.

No nível bilateral, a União Europeia e, sobretudo, os E.U.A., têm vindo a usar a sua

infl uência e peso negociais, de modo a estabelecer acordos bilaterais de livre comércio

susceptíveis de elevar os níveis de proteção da propriedade intelectual a estalões até

agora nunca experienciados (p. ex., a consagração da proibição da apresentação do

pedido e a concessão de autorização administrativa de comercialização de medicamentos

genéricos enquanto vigorarem os direitos de patente sobre os medicamentos de

referência; obrigatoriedade da proteção das variedades vegetais por direito de patente,

obrigatoriedade da proteção por direito de patente de produto das matérias biológicas

meramente isoladas do seu ambiente natural, etc.). Mas é tudo menos certo que os

E.U.A. e a União Europeia usem esse mecanismo dos acordos regionais de livre comércio

para o efeito de promover a diversidade dos regimes do direito de patente.

Em matéria de direito de patente, a experiência recente tem mostrado que o retorno

ao bilateralismo - protagonizado pelos E.U.A. - visa alcançar os níveis mais elevados de

11 Essa estrutura incluiria tribunais de 1ª instância de competência especializada em matéria de patentes sediados nos Estados-

Membros da União Europeia, cujas decisões, pautadas por regras materiais e procedimentos uniformes (eventualmente

fundados no Regulamento (CE) nº 44/2001, sobre a competência dos tribunais em matérias civis e comerciais), seriam objeto

de recurso para o Tribunal de 1ª instância da União Europeia e, ultima ratio, para o Tribunal de Justiça da União Europeia.

12 DRAHOS, Peter, “BIT’s and BIP’s – Bilateralism in Intellectual Property”, in Journal of World Intellectual Property, vol. 4, 2001, p.

791 ss.

Page 25: Propriedade Intelectual nos Países de Língua Portuguesanit.uesc.br/.../files/livros/Propiedade-Intelectual... · propriedade intelectual e o uso da informação tecnológica contida

24

proteção dos direitos de propriedade intelectual, não raras vezes ao arrepio dos interesses

públicos e dos interesses gerais da coletividade.

Em suma, caminha-se a passos largos para um sistema de direitos de patente

mundialmente harmonizado, provido de elevados níveis de proteção - promovidos pelos

lobbies das multinacionais europeias e estadunidenses13 - em desfavor das diversidades

regionais de regimes jurídicos, a que não é estranha a globalização da regulação que a

esse nível tem ocorrido: isso desde o Tratado de Cooperação em Matéria de Patentes (Patent

Cooperation Treaty), passando pelo Acordo TRIPS e pelo Tratado sobre Direito de Patente

(Patent Law Treaty). E o mesmo ocorre, embora em menor medida, com os restantes

“tipos” de propriedade intelectual (v.g., direitos de autor e direitos conexos, desenhos ou

modelos industriais, direito de marca, topografi as de produtos semicondutores).

4. A CONTRACORRENTE (NA LUSOFONIA) AO PARADIGMA UNIVERSALISTA DA PRO-

PRIEDADE INTELECTUAL

Perspectiva-se, contudo, uma estratégia alternativa em termos de contracorrente

relativamente a esse paradigma universalista e maximalista da proteção da propriedade

intelectual, em particular no quadro do direito de patente e nos países cuja fauna e fl ora

encerra uma enorme diversidade biológica, como acontece com a maioria dos países de

expressão de língua ofi cial portuguesa.

É, na verdade, possível perseguir uma política legislativa agressiva na proteção

de invenções por direito de patente e, ao mesmo tempo, assegurar a proteção dos

recursos genéticos e dos conhecimentos tradicionais das populações, relativamente à sua

localização, identifi cação, manipulação e preparação.

Todos estes nossos países unidos pela língua portuguesa podem (e devem) reforçar

a sua posição no que tange ao domínio dos recursos biológicos informacionais.

O Brasil tem-no feito, desde 2000 (rectius, desde a Medida Provisória nº 2.052, de 20

de junho de 200014). Portugal instituiu, desde 2002, um regime jurídico de proteção, algo

complexo, dos recursos genéticos vegetais autóctones e dos conhecimentos tradicionais

associados, pelo qual podem ser criados direitos sui generis de propriedade industrial

- bem como pode ser efetuada uma espécie de apropriação estadual pública do acesso

13 DRAHOS, Peter; BRAITHWAITE, John. Global Business Regulation, Cambridge, Cambridge University Press, 2000, p. 27.

14 Cfr. GÖTTING, Horst-Peter, “Biodiversität und Patentrecht”, in Gewerblicher Rechtsschutz und Urheberrecht, Internationaler Teil,

2004, p. 371 ss., p. 735; SILVA, Marina, “Medida Descabida”, in CARNEIRO, Fernanda / EMERICK, Maria Celeste (eds.), Limites: A

ética e o Debate Jurídico sobre o Acesso e Uso do Genoma Humano, Rio de Janeiro, dezembro de 2000, p. 209 ss.; FIORILLO, Celso

/ DIAFÉRIA, Adriana, Biodiversidade e Património Genético no Direito Ambiental Brasileiro, São Paulo, Max Limonad, 1999, p. 371

ss.; CARNEIRO, Ana Cláudia Mamede, “Acesso a Recursos Genéticos, Conhecimentos Tradicionais Associados e Repartição

de Benefícios”, in Revista da ABPI, n. 88, maio / junho 2007, p. 3 ss.; J. P. REMÉDIO MARQUES, Biotecnologia(s) e Propriedade

Intelectual, vol. II, Obtenções Vegetais, Conhecimentos Tradicionais, Sinais Distintivos, Bioinformática e Bases de Dados, Direito da

Concorrência, Coimbra, Almedina, 2007, pp. 334-344.

Page 26: Propriedade Intelectual nos Países de Língua Portuguesanit.uesc.br/.../files/livros/Propiedade-Intelectual... · propriedade intelectual e o uso da informação tecnológica contida

25

a tais recursos, a mais da precípua criação de uma base de dados dos recursos genéticos

que forem sendo objeto da proteção - e assegurada a partilha dos benefícios econômicos

obtidos por meio do acesso e da manipulação de tais recursos biológicos15.

Ora, isso permite, a um tempo, sindicar mais rigorosamente o requisito da novidade

dos inventos obtidos a partir de tais recursos genéticos, corpóreos ou incorpóreos,

constituir um acervo de informações juridicamente coisifi cáveis e, por consequência,

um acervo apto a poder ser objeto de negócios (v.g., contratos de partilha de proveitos

resultantes da exploração econômica das invenções obtidas a partir de tais recursos).

Estratégias, essas, que, ao rejeitarem a ideia de que esses conhecimentos e

recursos são uma espécie de “patrimônio comum da Humanidade”, livremente fruíveis

por todos, privilegiam, uno actu, a construção de quadros legais dirigidos à proteção

elevada desses direitos subjetivos privados de propriedade industrial e à exaustiva

documentação e proteção dos recursos genéticos e dos conhecimentos associados em

favor das comunidades locais, ainda que personifi cadas nos municípios ou em outras

autarquias ou pessoas coletivas locais, públicas ou privadas, sem fi nalidades lucrativas.

Por outro lado, detectam-se aqui e ali expressões da resistência à hiperproteção

de certas inovações pelos direitos de propriedade intelectual ou expressões dirigidas à

manutenção, à outrance, dos exclusivos já concedidos e dos monopólios de fato que por

meio deles são exercidos.

Os dispositivos do TRIPS-Plus negociados entre os E.U.A. e os Estados com quem

têm vindo a celebrar Acordos de Livre Comércio são o resultado dessa hiper-proteção,

maxime no setor farmacêutico, quais sejam, por exemplo16:

O prolongamento ou a extensão dos direitos de patente para além do prazo •

de 20 anos (que sucedeu ao tradicional prazo de 4 ou de 15 anos, o qual durou

até ao advento do TRIPS).

A existência de um • condicionamento preclusivo entre a vigência de uma

patente respeitante a um medicamento de referência e a aprovação e registro

de um genérico desse medicamento de referência.

A • proteção dos dados farmacológicos, pré-clínicos e clínicos comunicados às

entidades sanitárias, para efeitos de emissão da autorização de comercialização

do genérico do medicamento de referência.

A abolição das restrições à patenteabilidade.•

A restrição da concessão de • licenças compulsórias por motivos de falta de

exploração do invento no país ou por razões de interesse público.

15 Cfr. o Decreto-Lei nº 118/2002, de 20 de abril. Veja-se, para mais desenvolvimentos, J. P. REMÉDIO MARQUES, Biotecnologia(s)

e Propriedade Intelectual, vol. II, cit., 2007, pp. 620-680.

16 Veja-se, na doutrina brasileira, CHAVES, Gabriela Costa / OLIVEIRA, Maria Auxiliadora / HASENCLEVER, Lia / DE MELO, Luiz

Martins, “A evolução do sistema internacional de propriedade intelectual: proteção patentária para o setor farmacêutico e

acesso a medicamentos”, in Cadernos de Saúde Pública (Rio de Janeiro), vol. 32, nº 2, 2007, p. 257 ss., p. 264 ss.

Page 27: Propriedade Intelectual nos Países de Língua Portuguesanit.uesc.br/.../files/livros/Propiedade-Intelectual... · propriedade intelectual e o uso da informação tecnológica contida

26

No Brasil, temos o caso das denominadas patentes pipeline e da repercussão no

Brasil da extensão dessas patentes no país de origem. E temos também a questão do

exercício negativo da “anuência prévia”, por parte da ANVISA17, maxime em relação à

concessão de patentes para as segundas e subsequentes indicações terapêuticas

propiciadas por substâncias químicas já divulgadas. Isso já para não falar da proibição

da patenteabilidade dos seres vivos, no todo ou em parte, exceto os micro-organismos

geneticamente manipulados (artigo 18, inciso III, do Código da Propriedade Industrial –

CPI brasileiro de 1996)18.

Em Portugal e em muitos outros países, assistimos a tentativas de estabelecer uma

ligação preclusiva ou condicionadora entre a vigência dos direitos de patente sobre os

ingredientes ativos de medicamentos e o início do procedimento administrativo de

registro de medicamentos genéricos e de aprovação do seu preço máximo de venda ao

público - medicamentos bioequivalentes porque incorporam a mesma substância ativa -

junto à autoridade sanitária portuguesa competente (o INFARMED – Autoridade Nacional

do Medicamento)19.

5. A AXIOLOGIA DA CONCEPÇÃO UNIVERSALISTA DA PROPRIEDADE INTELECTUAL:

JUSNATURALISMO E PERSONALISMO VERSUS EFICIÊNCIA

Todavia, se se perguntar quais são os fundamentos axiológico-jurídicos dessa

concepção universalista dos direitos de propriedade intelectual, fi camos apenas com

a algo amarga sensação de que tais soluções arrancam dos paradigmas neoliberais

baseados na efi ciência e na maximização da riqueza. Que as concepções jusnaturalistas,

personalistas ou de justiça distributiva estão apartadas dessa legitimidade-legitimação da

atual propriedade intelectual, parece assim ser um dado adquirido.

17 Veja-se, recentemente, JANNUZI, Anna Haydée / VASCONCELLOS, Alexandre / DE SOUZA, Cristina Gomes, “Especifi cidades

do patenteamento no setor farmacêutico: modalidades e aspectos da proteção intelectual”, in Cadernos de Saúde Pública (Rio

de Janeiro), vol. 26, nº 6, 2008, p. 1.205 ss., p. 1208.

18 Lembre-se, todavia, que, para efeitos de patenteabilidade, é estreito o alcance da expressão “micro-organismo transgênico”,

visto que o § único desse artigo 18º preceitua que tais microrganismos são “organismos, exceto o todo ou parte de plantas

ou de animais, que expressem, mediante intervenção humana direta em sua composição, uma característica normalmente não

alcançável pela espécie em condições naturais”.

Assim se vê que no Brasil, diferentemente do que acontece na União Europeia, no E.U.A., no quadro dos outros Estados

Contratantes da CPE, na Austrália, na Nova Zelândia ou no Japão, não são patenteáveis, em termos de patente de produto, as

matérias biológicas (v.g., sequências genéticas, aminoácidos, bactérias, vírus, péptidos, células, etc.) meramente isoladas do

seu ambiente natural por meio de um processo técnico, nem as que, tendo sido geneticamente manipuladas, mimetizam as

propriedades ou as características das suas congéneres preexistentes na Natureza.

19 Sobre essa problemática, cfr. agora, J. P. REMÉDIO MARQUES, Medicamentos Versus Patentes – Estudos de Propriedade Industrial,

Coimbra Editora, Coimbra, 2008, p. 14 ss.

Page 28: Propriedade Intelectual nos Países de Língua Portuguesanit.uesc.br/.../files/livros/Propiedade-Intelectual... · propriedade intelectual e o uso da informação tecnológica contida

27

Parecem, ao invés, prevalecer os argumentos de índole funcional ou instrumental,

baseados na efi ciência econômica20.

Como explicar, de fato, a patenteabilidade de sequências genéticas, de células

geneticamente manipuladas, de péptidos, de invenções de programas de computador,

de métodos de fazer negócios ou, na Europa, como legitimar a proteção das bases de

dados (a extração e/ou a reutilização de partes substanciais dessas bases de dados),

mediante a constituição de um “direito especial” do fabricante dessas bases de dados

senão mediante a necessidade de remunerar o investimento econômico efetuado pelas

empresas?

Repare-se que, nessas eventualidades, já não está tanto em causa a remuneração do

trabalho intelectual dos criadores, mas antes a expansão do universo dos quia susceptíveis

de proteção pelos diferentes “tipos” ou “categorias” de propriedade intelectual, pois

somente assim se percepcionam os incentivos para o investimento.

Só que essa hiperinfl ação patenteária - essa “corrida às patentes” -, e a proliferação

global do patentear de todas e quaisquer realidades propiciadas pela enorme expansão

do objeto de proteção do direito de patente, gerará provavelmente a diminuição do valor

mercadológico dessas mesmas patentes, visto que é mínimo o nível inventivo atualmente

exigido como requisito de proteção. Além disso, poderá ocorrer uma espécie de

“tragédia” dos antibaldios (anti-commons)21, onde os titulares dos direitos podem vir a

suportar “custos de transação” inultrapassáveis, na eventualidade de o legislador ou os

tribunais (com o auxílio da doutrina jurídica) não procederem à adequada limitação do

âmbito de proteção dessas patentes ao real contributo técnico que efetivamente o titular

alcançou em face do teor das reivindicações e da descrição dos inventos.

Se assim for, os níveis de inovação (mesmo a inovação meramente incremental)

tenderão a diminuir e os agentes irão preferir regressar a um tempo em que era elevada

a distância entre o estado da técnica e a solução técnica concretamente reivindicada (nível

inventivo) a partir do qual podiam ser concedidos direitos de patente. Isso se os agentes

não seguirem uma outra estratégia, segundo a qual é preferível ser um poderoso titular

de uma patente “fraca”22, especialmente se puder ser dotado de um poder econômico

bastante para desfrutar de uma posição dominante no mercado.

20 STERCKX, Sigrid, “The Ethics of Patenting – Uneasy Justifi cations”, in DRAHOS, Peter (ed.), Death of Patents, Queen Mary

Intellectual Property Institute, University of London, Lawtext Publishing Limited, 2005, p. 175 ss., p. 193 ss.

21 ARAÚJO, Fernando, A Tragédia dos Baldios e dos Anti-Baldios – O Problema Económico do Nível Óptimo de Apropriação, Coimbra,

Almedina, 2008, p. 191 ss., p. 215 ss. (sobre os remédios para os antibaldios).

22 DRAHOS, Peter, “Death of a Patent System – Introduction”, in DRAHOS, Peter (ed.), Death of Patents, cit., 2005, p. 1 ss., p. 10.

Page 29: Propriedade Intelectual nos Países de Língua Portuguesanit.uesc.br/.../files/livros/Propiedade-Intelectual... · propriedade intelectual e o uso da informação tecnológica contida

28

6. A ATUAL CONSTELAÇÃO DOS INTERESSES EM JOGO: GLOBALIZAÇÃO VERSUS A INS-

TRUMENTALIZAÇÃO DA PROPRIEDADE INTELECTUAL VERSUS O REFORÇO DOS NÍVEIS

DE PROTEÇÃO

Surpreendem-se, no entanto, movimentos contestatários aos atuais modelos

de desenvolvimento econômico, expressão dos movimentos de antiglobalização

econômica, os quais têm vindo a marcar valiosos pontos na edifi cação das soluções

jurídico-políticas internacionais sobre a regulação do acesso, da utilização e da

preservação da diversidade biológica.

Desde logo, têm sido colocadas sérias objeções quanto à patenteabilidade das

invenções de plantas, animais e microrganismos enquanto matérias preexistentes na

natureza e geradoras de meras descobertas enquanto tal e, por isso, não patenteáveis.

Movimentos, estes, que tentam alterar o disposto no artigo 27º/3 do Acordo TRIPS, ao

arrepio do bloco formado pelos E.U.A., União Europeia, Suíça, Japão e os interesses da

maioria das empresas multinacionais farmacêuticas23.

Estamos, pois, no campo da normatividade negociada construída em vários

aerópagos internacionais: na “Comissão sobre os Recursos Genéticos Vegetais para

a Alimentação e Agricultura”, no seio da F.A.O., na Organização Mundial do Comércio,

na Conferência das Partes no quadro da Convenção sobre a Diversidade Biológica e na

Organização Mundial da Propriedade Intelectual.

As visões dos céticos da propriedade intelectual confrontam-se permanentemente

com as posições assumidas pelos corifeus do movimento que advoga o reforço do licere

ou das faculdades jurídicas inerentes aos direitos de propriedade intelectual.

Descortinam-se, no entanto, tentativas de imprimir maior pluralismo na ação dos

atores mundiais da propriedade intelectual.

Nota-se o trânsito dessas questões no âmbito da própria Comissão dos Direitos

Humanos das Nações Unidas, em particular, na “Subcomissão para a Promoção e Proteção

dos Direitos Humanos”, a qual adotou, em agosto de 2000, uma resolução, desprovida

embora de vinculatividade jurídica, intitulada “Intellectual Property Rights and Human

Rights”.

Essa resolução sinalizou vários problemas, tais como:

Os obstáculos resultantes da aplicação dos direitos de propriedade 1.

intelectual em matéria de transferência de tecnologia para os países em

desenvolvimento.

As consequências emergentes da concessão de direitos de 2. obtentor de variedades

vegetais e de direitos de patentes relativamente a organismos geneticamente

manipulados, em matéria de exercício e proteção do direito à alimentação.

23 PUGATCH, Meir Perez, The International Political Economy of Intellectual Property, Edward Elgar, Cheltenham, Northampton,

2004, pp. 162-163.

Page 30: Propriedade Intelectual nos Países de Língua Portuguesanit.uesc.br/.../files/livros/Propiedade-Intelectual... · propriedade intelectual e o uso da informação tecnológica contida

29

A (in)desejável redução dos poderes jurídicos das populações e comunidades 3.

locais relativos à participação procedimental nos mecanismos de alocação dos

recursos genéticos e dos objetos culturais.

A restrição do 4. acesso aos medicamentos patenteados, o preço (elevado) desses

fármacos e a infl uência desse regime no gozo do direito à saúde24.

Vemos, assim, que o objeto e o âmbito de proteção dos direitos de propriedade

intelectual se confrontam com a consideração dos direitos humanos enquanto posições

jurídicas fundamentais limitativas da constituição dos exclusivos industriais e do

respectivo âmbito de proteção.

Discute-se, hoje, a interferência dos direitos humanos no contexto da propriedade

intelectual. A questão já foi colocada no Tribunal Europeu dos Direitos Humanos - no caso,

ITP SA v. Cofl exip Stena Off shore Lts (2004) -, a propósito de uma ação interposta, nesse

tribunal, pelo titular de uma patente que fora revogada com base no fato de não dispor

(seja no Estado da sede, o Reino Unido, seja junto ao Instituto Europeu de Patentes) de

mecanismos de impugnação de decisões tomadas pelas Câmaras Técnicas de Recurso do

Instituto Europeu de Patentes, o que ofenderia o direito a um julgamento justo (artigo 6º/1

da Convenção Europeia dos Direitos Humanos).

Esse tipo de discussões relança a um primeiro plano a importância do direito-

liberdade geral de agir (in casu, a liberdade de iniciativa econômica privada, a liberdade de

pesquisa, de informação e de comunicação), a crença na economia de mercado, a crença

de que as pessoas não são mônadas, que apenas perseguem interesses egoísticos, e a

necessidade de serem devidamente sopesados os interesses gerais da coletividade.

O que signifi ca que, embora os direitos de propriedade intelectual (pelo menos

o direito de autor e o direito de patente) possam constituir direitos fundamentais de

natureza análoga ou, inclusivamente, direitos constitucionais fundamentais25, creio que

o reconhecimento ou a constituição dessas situações jurídicas subjetivas devem ser

havidas como exceções à regra26. E a regra é a liberdade, a liberdade de iniciativa econômica

privada; a liberdade de referência; a liberdade de citação, etc. No mínimo, parece razoável

sustentar que há outros valores e interesses providos de um idêntico estalão (o valor da

liberdade de expressão e de comunicação, o interesse em imitar as prestações de outrem,

o valor da sã e leal concorrência).

24 J. P. REMÉDIO MARQUES, Biotecnologia(s) e Propriedade Intelectual, vol. I, Almedina, Coimbra, 2007, pp. 54-46; KUR, Anette, “A

new framework for intellectual property rights – horizontal issues”, in International Review of Industrial Property and Copyright

Law, 2004, p. 1 ss. (a autora salienta, também, a necessidade de, perante esses desafi os, estabelecer redes de pesquisa -

research networks - constituídas não apenas por juristas, mas por pessoas oriundas de outras disciplinas científi cas).

25 J. J. GOMES CANOTILHO, “Liberdade e Exclusivo na constituição”, in Direito Industrial, Almedina, Coimbra, p. 57 ss., pp. 62-63.

26 CORNISH, William, Intellectual Property, Omnipresent, Distracting, Irrelevant?, Oxford University Press, 2004, pp. 113-114; J. P.

REMÉDIO MARQUES, Biotecnologia(s) e Propriedade Intelectual, vol. I, 2007, cit., p. 47.

Page 31: Propriedade Intelectual nos Países de Língua Portuguesanit.uesc.br/.../files/livros/Propiedade-Intelectual... · propriedade intelectual e o uso da informação tecnológica contida

30

Ora, vistas assim as coisas, o regime jurídico correspondente a cada um dos direitos

de propriedade intelectual deve ser o adequado e o necessário e, portanto, deve ser o

proporcional à prossecução dos objetivos que cada um dos exclusivos intelectuais ou

industriais visa realizar nos casos concretos27. Devem, assim, ser tomados em devida

conta os interesses paramétricos dos consumidores, dos concorrentes e da população em

geral, não apenas por ocasião da constituição ou do reconhecimento em concreto de

um direito de propriedade intelectual, mas também por ocasião da delimitação desse

âmbito de proteção.

7. A INFLUÊNCIA DA GLOBALIZAÇÃO DA PROPRIEDADE INTELECTUAL QUANTO AO

ALARGAMENTO DAS REALIDADES QUE PODEM SER PROTEGIDAS POR DIREITOS DE

PROPRIEDADE INTELECTUAL E QUANTO AO ÂMBITO DE PROTEÇÃO DESSES DIREITOS

Ocorreu (e ocorre) todo um movimento de contestação, muitas vezes não

institucionalizada e dotada, não raras vezes, de expedientes de ação direta, aos processos

de globalização da propriedade intelectual. Essa contestação marca muitos pontos a

seu favor.

De fato, os direitos de propriedade intelectual foram, de alguma maneira,

instrumentalizados para proteger os espectaculares avanços logrados nas tecnologias da

informação e nas biotecnologias aplicadas ao setor das indústrias químicas e farmacêuticas.

Se esses avanços foram, muitas vezes, alcançados por meio de fi nanciamentos oriundos

de empresas privadas em parcerias com institutos e universidades públicas (parcerias

público-privadas), à luz dessa lógica era necessário evitar a todo o custo o fenômeno

dos “passageiros clandestinos” (free riders) e a reprodução não autorizada das obras, das

ideias inventivas industriais ou das prestações empresariais protegidas pelos direitos de

propriedade intelectual.

Essa aparente vulnerabilidade perante o perigo da imitação ou da reprodução

conduziu à concentração empresarial e a um movimento de pressão a favor do aumento

dos níveis de proteção do subsistema jurídico da propriedade intelectual. E o Acordo

TRIPS mais não fez do que, ao harmonizar planetariamente o regime dos vários “tipos”

ou “categorias” de propriedade intelectual, enfocar a preocupação sobre os objetos ou as

realidades a proteger e a atribuição da titularidade28.

27 No plano oposto, sobre os requisitos das leis restritivas de direitos de autor, GOMES CANOTILHO, José Joaquim, “Liberdade

e Exclusivo na Constituição”, cit., 2005, pp. 66-67.

28 MAY, Cristopher, A Global Political Economy of Intellectual Property Rights, The new enclosures?, Routledge, London, 2000,

reimpressão, 2002, p. 73.

Page 32: Propriedade Intelectual nos Países de Língua Portuguesanit.uesc.br/.../files/livros/Propiedade-Intelectual... · propriedade intelectual e o uso da informação tecnológica contida

31

Veja-se a diretriz constante do artigo 8º do TRIPS: embora os Estados Contratantes

possam adotar medidas adequadas à proteção da saúde pública, da nutrição e da

promoção do interesse público, o certo é que essa tutela dos interesses públicos

somente pode ser licitamente atuada se e quando for compatível com o disposto nas

restantes regras e regimes jurídicos previstos nesse mesmo Acordo (v.g., a regra da não

discriminação da patenteabilidade em função dos setores da tecnologia; os princípios

do tratamento nacional e da nação mais favorecida; a inversão do ônus da prova nas

patentes de processo; a proteção das informações clínicas não divulgadas; a existência

de processos efi cazes de aplicação efetiva dos direitos de propriedade intelectual contra

quaisquer atos de infração, etc.)

Essa globalização do regime da denominada propriedade intelectual também se

fez sentir, como referi, na expansão do acervo de objetos ou de realidades passíveis de

proteção por esses direitos de exclusivo. Vejamos apenas alguns exemplos:

Desde logo, a proteção por direito de patente das invenções que implicam programas

de computador. Na União Europeia e no seio da CPC (Comunity Patent Convention), isso

foi conseguido a partir de meados dos anos oitenta do século passado29 por mor de

uma interpretação restritiva das exclusões à patenteabilidade previstas no artigo 52º/2

e 3 da CPE (maxime a expressão “programas de computador como tal”; e a expressão

programas de computador “sem qualquer contributo”, constante do artigo 52º/1, alínea

d), do Código da Propriedade Industrial - CPI português de 2003).

Depois, a possibilidade de reivindicar e patentear o segundo e os subsequentes

usos ou aplicações terapêuticas de uma substância química já conhecida. No Brasil, essa

prática vem sendo rejeitada pela ANVISA30, sendo porém admitida à luz do CPI brasileiro

e das diretrizes para exame no setor biotecnológico e farmacêutico31 emitidas pelo próprio

29 A partir da decisão T 208/84, de uma das Câmaras Técnicas de Recurso do Instituto Europeu de Patentes, no caso VICO (in

Offi cial Journal of the European Patent Offi ce, 1987, p. 14 = http://www.epo.org). Essa evolução pode ver-se desenvolvidamente

em J. P. REMÉDIO MARQUES, Biotecnologia(s) e Propriedade Intelectual, vol. II, 2007, cit., pp. 706-736; BERESFORD, Keith,

Patenting Software Under the European Patent Convention, Sweet & Maxwell, London, 2000, p. 47 ss.; MISSOTTEN, Stephanie,

“La brevetabilité du logiciel et des méthodes commerciales”, in Droits Intellectuels: à la recontre d’une stratégie pour l’enterprise,

Bruylant, Bruxelles, 2002, p. 101 ss., p. 106 ss.

30 Sobre isso, cfr. DE SOUZA, Marcela Trigo, “Should Brazil Allow Patents on Second Medical Uses?”, in Revista da ABPI, n. 93,

março/abril 2008, p. 53 ss., p. 61 ss. (contra a recusa da ANVISA em conceder a “anuência prévia” desse tipo de patentes, regime

que também existe, ao que parece, no Paraguai – CHAVES, Gabriela Costa / OLIVEIRA, Maria Auxiliadora / HASENCLEVER, Lia

/ DE MELO, Luiz Martins, “A evolução do sistema internacional de propriedade intelectual: proteção patentária para o setor

farmacêutico e acesso a medicamentos”, in Cadernos de Saúde Pública (Rio de Janeiro), vol. 23, n. 2, 2007, p. 257 ss., p.264);

tb. BARBOSA, Denis Borges, Uma Introdução à Propriedade Intelectual, Lúmen Iuris, 2ª edição, 2003, p. 442 (pronunciando-se

contra a atribuição à ANVISA, ou a qualquer outra entidade pública, de um poder discricionário relativamente ao exercício

do direito de requerer uma patente e ao direito de esta ser concedida, uma vez respeitados os requisitos objetivamente

plasmados na lei, quais sejam, a novidade, a atividade inventiva, a industrialidade, etc.).

31 INPI, Diretrizes Para Exame no Sector Biotecnológico e Farmacêutico, §§ 2.39.2.3. e 2.39.2.4 (aplicáveis aos pedidos efetuados a

partir de 31/12/2004).

Page 33: Propriedade Intelectual nos Países de Língua Portuguesanit.uesc.br/.../files/livros/Propiedade-Intelectual... · propriedade intelectual e o uso da informação tecnológica contida

32

INPI brasileiro32, bem como agora, de modo expresso, no CPI português de 2003 (artigo

54º/1, alíneas a) e b), na redação do Decreto-Lei nº 143/2008, de 25 de julho).

Em terceiro lugar, no quadro da União Europeia e da CPE, a patenteabilidade de

animais e de vegetais, se e quando a exequibilidade técnica do invento não se limitar

a uma única variedade vegetal ou raça animal, abertura que também se verifi ca nos

E.U.A. e na Austrália, bem como em todos os Estados com quem os E.U.A. celebraram

Acordos de Livre Comércio no âmbito do TRIPS plus (Panamá, México, Colômbia, Marrocos,

Jordânia, etc.); outrossim, a patenteabilidade das matérias biológicas meramente isoladas

do seu ambiente natural, incluindo os genes (humanos ou de outra origem biológica)

ou as sequências de genes.

Em quarto lugar, o regime dos desenhos ou modelos industriais permite agora a

proteção das características da aparência dos produtos artesanais33.

Em quinto lugar, o exclusivo conferido pelo direito de marca pode abarcar domínios

ultramerceológicos para os quais o sinal não fora registrado, como acontece no caso

das marcas renomadas ou de grande prestígio; e, por vezes, é conferida proteção às

marcas olfativas, o que parece infringir o princípio da capacidade distintiva34 e torna

excepcionalmente difícil, incerta ou mesmo impossível a determinação do círculo de

proteção do direito relativamente a outras marcas susceptíveis de serem julgadas iguais

ou semelhantes.

Quanto ao âmbito de proteção desses direitos de exclusivo, cabe referir, desde já, a

possibilidade aberta, na União Europeia, nos E.U.A. e também no Brasil - embora aqui

de forma vaga, genérica e, por isso, potencialmente “perigosa” e incerta para os agentes

econômicos interessados (artigo 41º, § 1 do CPI brasileiro) - no sentido de sancionar a

violação indireta do direito de patente, expediente que tem sido utilizado, igualmente,

no subsistema do direito de autor.

32 No quadro da CPE, a proteção da segunda e das subsequentes aplicações terapêuticas de substâncias já conhecidas é

admitida desde a decisão T 182/82, in Offi cial Journal of the European Patent Offi ce, 1984, p. 164; GÓMEZ SEGADE, José Antonio,

“La patenteabilidad de la segunda indicación médica de un producto farmacéutico”, in Actas de Derecho Industrial, Tomo IX,

1983, p. 241 ss.; SZABO, George, “Second medical and non-medical indication – The relevance of indications to novel subject-

matter”, in Zehn Jahre Rechtsprechung der Groβen Beschwerdekammer, Carl Heymanns Verlag, Köln, Berlin, Bonn, München,

1996, p. 11 ss.

Na Europa, hoje discute-se, a mais disso, a questão da patenteabilidade da segunda ou das subsequentes utilizações para a

mesma aplicação terapêutica de uma substância já conhecida, respeitantes a novas formas de apresentação ou de dosagem.

Cfr. o caso G 2/08, para efeitos de uniformização de jurisprudência, atualmente pendente na Grande-Câmara de Recurso do

Instituto Europeu de Patentes, suscitado pela decisão T 1319/04, de 22/04/2008 (in http://www.epo.org.): patenteabilidade do

uso de uma substância ativa já conhecida em uma nova e inventiva terapia aplicada à mesma doença, onde o nível inventivo

e a novidade da invenção (de uso) podem residir na dosagem dessa substância.

33 Artigo 3º, alínea b), do Regulamento (CE) nº 6/2002, do Conselho, de 12/12/2001, sobre o regime dos desenhos ou modelos

comunitários; artigo 174º/1 do CPI português de 2003.

34 GONÇALVES, Luís Couto, “Marca olfativa e o requisito de representação gráfi ca”, in Cadernos de Direito Privado, n. 1, 2003, p.

14 ss.; TRIGONA, Riccardo, Il marchio, la ditta, l’insegna – Recenti sviluppi legislativi e giurisprudenziale, Cedam, Padova, 2002, pp.

35-36.

Page 34: Propriedade Intelectual nos Países de Língua Portuguesanit.uesc.br/.../files/livros/Propiedade-Intelectual... · propriedade intelectual e o uso da informação tecnológica contida

33

Trata-se, em suma, daquelas situações em que o titular goza da faculdade jurídica de

impedir que, no Estado da proteção, terceiros coloquem no comércio ou comercializem

os meios respeitantes a elementos essenciais da invenção, tal como fora reivindicada, para

a por em prática por parte de pessoas não autorizadas a fazê-lo, quando esses terceiros

sabem ou não podem desconhecer que, de acordo com as circunstâncias, esses meios

são aptos a por em prática a invenção protegida. Inúmeras legislações contêm previsões

desse tipo35. Nessas eventualidades, a fabricação, a importação ou a venda de um produto

- normalmente um componente de uma máquina, de um sistema informático ou uma

matéria biológica que não tenha sido objeto de uma reivindicação independente - não

infringe, por si só, a patente, mas pode ser usado pelo adquirente desses meios para

a violar36. É o caso, por exemplo, da exportação para a China de componentes de um

sistema informático patenteado na Alemanha ou em Portugal, para o efeito de aí serem

montados e, de seguida, serem importados para o território dos Estados (europeus) da

proteção.

35 Por exemplo, o § 10(1) da Patentgesetz alemã de 1981; a Seção 60(2) do Patent Act do Reino Unido, de 1977; a Secção 117

do Patent Act australiano, de 1990; o art. L 613-4 do Code de la propriété intellectuelle francês, de 1992; o artigo 51, nº 1, da Ley

de Patentes espanhola, de 1986.

O artigo 41, § 1 do Código de Propriedade Industrial – CPI brasileiro, laconicamente, limita-se a determinar que: “Ao titular da

patente é assegurado ainda o direito de impedir que terceiros contribuam para que outros pratiquem os atos referidos neste artigo”.

Em Portugal, o CPI de 2003 não contém expressamente esse tipo de ilícito, à semelhança dos Códigos anteriores (de 1940

e de 1995). Porém, a recente transposição da Diretiva nº 2004/48/CE, relativa à aplicação efetiva dos direitos de propriedade

intelectual (in Jornal Ofi cial da União Europeia, nº L 157, de 30/04/2004, p. 45 ss.), efetuada por meio da Lei nº 16/2008, de

1° de abril, permite surpreender a previsão de alguns resquícios desse tipo de ilícito. Não deixa, porém, de ser uma violação

direta. É o caso do novo artigo 338º-D, nº 2, do CPI português de 2003, o qual autoriza as medidas judiciárias de preservação

da prova a incluir “a apreensão efetiva dos bens que se suspeite violarem direitos de propriedade industrial e, sempre que

adequado, dos materiais e instrumentos utilizados na produção ou distribuição desses bens, assim como dos documentos a eles

referentes” - o itálico é meu.

De resto, o novo artigo 338º-I do mesmo Código determina que as providências cautelares destinadas a inibir qualquer violação

iminente ou a proibir a continuação da violação “podem também ser decretadas contra intermediários cujos serviços estejam

a ser utilizados por terceiros para violar direitos de propriedade industrial” - o itálico é meu. É, como se vê, exigível a eminência ou

a atual verifi cação de uma violação direta, o que afasta, a despeito disso, a consagração, entre nós, desse ilícito da violação

indireta, já que este dispensa a alegação e prova da atualidade ou da eminência da violação direta da patente.

36 Sobre essa forma de violação do direito de patente, cfr. J. P. REMÉDIO MARQUES, Biotecnologia(s) e Propriedade Intelectual, vol.

I, 2007, cit., pp. 851-854; HÖLDER, Niels / SCHMIDT, Josef, “Indirect Infringement: Late Developments in Germany”, in European

Intellectual Property Review, 2006, p. 480 ss.; KRAβER, Rudolf, Patentrecht – Ein Lehr- und Handbuch, 5 Aufl age, Verlag C. H.

Beck, München, 2004, p. 830 ss.; KEUKENSCHRIJVER, Alfred, in BUSSE, Patentgesetz, Kommentar, 6 aufl age, De Gruyter, Berlin,

2003, § 10, anotação à margem 6 ss., pp. 312-313; POLLAUD-DULIAN, Frédéric, Droit de la propriété industrielle, Montchrestien,

Paris, 1999, p. 162; BENTLY, Lionel / SHERMAN, Brad, Intellectual Property Law, 2ª edição, Oxford University Press, 2004, p. 531;

BENYAMINI, Amiran, Patent Infringement in the European Community, VCH, Weiheim, 1992, p. 173 ss.; agora, J. P. REMÉDIO

MARQUES, “Contributory Infringement – Case Law and Comparative View”, texto apresentado no Congresso Challenges for

IP Protection and Enforcement, Union of European Practitioners in Intellectual Property, Porto, 29th – 30 may 2008, disponível,

para já, em http://www.lexmedicinae.pt. = O Direito, ano 140º, 2008, III.

Page 35: Propriedade Intelectual nos Países de Língua Portuguesanit.uesc.br/.../files/livros/Propiedade-Intelectual... · propriedade intelectual e o uso da informação tecnológica contida

34

Trata-se de um ilícito autônomo e independente. Pode-se demandar o contrafator

indireto, independentemente da demanda do contrafator direto ou da ocorrência de

uma violação direta da patente. São, desse modo, sancionados os atos facilitadores da

violação direta ainda antes de esta ocorrer ou de sua verifi cação estar eminente. Note-

se, na verdade, que, na União Europeia, essa violação indireta não está condicionada à

alegação e prova da eminência, da ameaça ou da efetiva violação direta da patente37.

Além disso, quer a oferta, quer o fornecimento dos meios, quer o local da utilização

do invento protegido devem ocorrer (ou refl etir-se diretamente) no Estado da proteção,

o que exclui a ilicitude dos atos de fornecimento, no estrangeiro, de meios por parte de

terceiros à pessoa que comete a violação direta da patente no Estado onde a proteção

vigora38, bem como afasta a ilicitude do fornecimento, nesse Estado, de meios para

fabricar o produto ou utilizar o processo no estrangeiro. Mas já haverá violação indireta

se alguns elementos ou componentes essenciais do invento protegido forem exportados

para, sendo montados no estrangeiro (v.g., em um país do sudoeste asiático) sob a

iniciativa de outros terceiros, serem, de seguida, importados para o Estado de origem

onde a patente está em vigor, e onde a invenção é usada39.

Já no ordenamento dos E.U.A., a verifi cação desse contributory infringement encontra-

se dependente da simultânea ocorrência de uma violação direta da patente, embora

se defenda que esta última violação pode ser predicada do fato de um determinado

dispositivo não ter outro efeito ou aplicação senão aquele que viola a patente40. Não

se exige, assim, a prova direta da ocorrência de uma violação direta da patente (id est, a

armazenagem, o transporte, a venda, a importação, etc., do produto patenteado ou dos

produtos resultantes do processo patenteado).

37 BENYAMINI, Amiran, Patent Infringement, cit., 1992, p. 181.

38 Por exemplo, a decisão do Tribunal de Grande Instance (TGI) de Paris, de 27/06/1997, in Propriété Intellectuelle, Bulletin

Documentaire, 1997, III, p. 581; e, no Reino Unido, o caso Kalman v. PLC Packaging (UK), in Fleet Street Reports, 1982, p. 406 ss.,

pp. 420-424.

39 Cfr., nesse sentido, a recente decisão do Supremo Tribunal Federal alemão (Bundesgerichtshof), de 30/01/2007, no caso

“Funkuhr II” / “Relógio-rádio II”, proc. nº X ZR 553/04, in http://www.bundesgerichtshof.de, = Gewerblicher Rechtsschutz und

Urheberrecht, 2007, p. 313, orientação que já havia sido seguida anteriormente, pelo mesmo Supremo Tribunal, em 26/02/2002,

no caso “Funkuhr I”, in Gewerblicher Rechtsschutz und Urheberrecht, 2002, p. 599. É ainda necessário que o fornecimento para

o estrangeiro de alguns meios essenciais para pôr em prática o invento tenha sido efetuado sob a intenção de a invenção ser

efetivamente usada, mais tarde, no país exportador e onde a proteção esteja em vigor. Cfr., ainda, THORLEY, Simon / MILLER,

Richard / BURKILL, Guy / BIRSS, Colin / CAMPBELL, Douglas, TERREL On the Law of Patents, 16ª edição, Sweet & Maxwell, London,

2006, p. 316; CORNISH, William / LLEWELYN, David, Intellectual Property, 5ª edição, Sweet & Maxwell, London, 2003, pp. 252-253;

JESTAEDT, Bernhardt, in BENKARD Europäisches Patentübereinkommen, C. H. Beck, München, 2002, art. 64, anotação à margem

n. 15, p. 648.

40 HARMON, Robert, Patents and the Federal Circuit, 4ª edição, The Bureau of National Aff airs, Washington D.C., BNA Books,

1998, p. 308.

Page 36: Propriedade Intelectual nos Países de Língua Portuguesanit.uesc.br/.../files/livros/Propiedade-Intelectual... · propriedade intelectual e o uso da informação tecnológica contida

35

Seja como for, a vigência do Acordo TRIPS culminou um movimento de afi rmação

do poder privado das estruturas do conhecimento científi co e tecnológico e da esfera

privada da detenção e da titularidade desse conhecimento. Isso, em detrimento da

esfera pública (onde estará, por princípio, sempre garantido o livre acesso e a partilha

dessas informações e conhecimentos).

Mas o subsistema normativo formal da propriedade intelectual vê-se, hoje,

confrontado e assolado por propostas da “sociedade civil” que abalaram a sua quietude

e a lógica dos tempos passados; os tempos em que a assimetria de poder e de informação

permitia que apenas os juristas e alguns representantes dos interesses econômicos

hegemônicos participassem no processo legislativo destinado à conformação do regime

jurídico desses direitos de propriedade intelectual.

Agora, a crítica e a (des)construção do subsistema normativo da propriedade

intelectual tende a “democratizar-se”.

Essa crítica e (des)construção acha-se, hoje, aberta a propostas que eram

impensáveis ou inexequíveis há alguns anos: p. ex., a menção, nos pedidos de patente,

da origem geográfi ca de certos recursos biológicos; o consentimento informado e o regime

da partilha dos benefícios entre o titular da patente e as populações locais detentoras

de conhecimentos acerca da localização e manipulação desses recursos biológicos

(benefícios, esses, resultantes da exploração comercial das invenções obtidas a partir

de tais conhecimentos, sob cominação de o pedido de patente ser recusado ou, nas

versões mais radicais, sob ameaça de o direito de patente ser posteriormente anulado)41;

e a concessão de licenças compulsórias para fabrico e exportação de fármacos a preços

bem mais baixos, destinados aos países com graves problemas de saúde pública.

41 Sobre a menção da origem dos recursos e a prestação do consentimento das populações autóctones (ou dos seus

representantes) no quadro do regime das concessão do direito de patente, cfr. J. P. REMÉDIO MARQUES, Biotecnologia(s) e

Propriedade Intelectual, vol. II, 2007, cit., pp. 533-589; CORREA, Carlos M., Establishing a disclosure of Origin Obligation in the TRIPS

Agreement, Occasional Paper 12, Quaker United Nations Offi ce, Buenos Aires, 2003, p. 2 ss., in http://www.geneva.quono.

info/pdf/disclosure%2oOP%2012.pdf; GIRSBERGER, Martin A., “Disclosure of the Source of Genetic Resources and Traditional

Knowledge in Patent Applications”, in International Expert Workshop on Access to Genetic Resources and Benefi t Sharing, México,

24 a 27 de outubro de 2004, in http://www.canmexworkshop.com/papers.cfm; GOPALAKRISHNAN, N. S., “TRIPs and Protection

of Traditional Knowledge of Genetic Resources: New Challenges to the Patent System”, in European Intellectual Property Review,

2005, pp. 12-13; JOSE MASSAGUER, “Algunos aspectos de la protección juridical de los conocimientos tradicionales asociados

a recursos genéticos mediante el sistema de propriedad intelectual”, in Actas de Derecho Industrial, Tomo XXII, 2002, p. 197 ss.;

BLUEMEL, “Substance Without Process: Analysing TRIPS Participatory Guarantees in the Light of Protected Indigenous rights”, in

Journal of the Patent and Trademark Offi ce Society, vol. 86, 2004, p. 700 ss.; CARVALHO, Nuno Pires de, The TRIPS Regime of Patent

Rights, 2ª edição, Kluwer Law International, The Hague, London, 2005, pp. 259-303; ROBERTS, Tim, in European Intellectual

Property Review, 2005, N-84-85; CORREA, Carlos M., in Resource Book on TRIPS and Development, UNCTAD-ICTSD, Cambridge

University Press, 2005, pp. 448-459.

Page 37: Propriedade Intelectual nos Países de Língua Portuguesanit.uesc.br/.../files/livros/Propiedade-Intelectual... · propriedade intelectual e o uso da informação tecnológica contida

36

8. A INFLUÊNCIA DA GLOBALIZAÇÃO NO REGIME DO DIREITO DE AUTOR E DOS DI-

REITOS CONEXOS: NOVAS “CATEGORIAS” DE PROPRIEDADE INTELECTUAL, EXPANSÃO

DO OBJETO DE PROTEÇÃO DAS “CATEGORIAS” EXISTENTES. O REGIME DA PROTEÇÃO

CONTRA AS NEUTRALIZAÇÕES DAS PROTEÇÕES TÉCNICAS

No que tange ao direito de autor na atual Sociedade da Informação, a globalização

da propriedade intelectual também se faz aqui sentir em uma dupla vertente: por um

lado, com a criação de novos “tipos” ou “categorias” protetoras (v.g., o “direito especial”

do fabricante de bases de dados não originais, em vigor nos Estados-Membros da

União Europeia; o “direito ao espetáculo”; o regime especial do direito de autor sobre

os programas de computador) e, por outro, com a ampliação das faculdades jurídicas

exercitáveis pelos titulares dos “tipos” de direitos já existentes42.

Depois, têm-se as regras de proteção jurídico-tecnológica do software43. A Diretiva

(CEE) nº 91/250 do Conselho, de 14 de maio de 1991, relativa à proteção jurídica dos

programas de computador, estabeleceu, desde logo, um acervo de proteções jurídicas

contra quem coloque em circulação ou possua, para fi ns comerciais, uma cópia de um

programa de computador, conhecendo ou não podendo ignorar o seu caráter ilícito, ou de

meios cujo único objetivo seja o de facilitar a supressão não autorizada ou a neutralização

de qualquer dispositivo técnico eventualmente usado na proteção do programa (artigo

7º dessa Diretiva). A própria lei portuguesa prevê a possibilidade de apreensão de

dispositivos em comercialização que tenham por fi nalidade exclusiva facilitar a supressão

não autorizada ou a neutralização de qualquer salvaguarda técnica colocada para proteger

o programa de computador ou uma base de dados (artigo 13º do Decreto-Lei nº 252/94,

de 20 de outubro, e o artigo 13º/2 do Decreto-Lei nº 122/2000, de 4 de julho).

Quanto ao regime jurídico da proteção contra as neutralizações das proteções técnicas44,

a Diretiva nº 2001/29/CE, relativa à harmonização de certos aspectos do direito de autor e dos

direitos conexos na sociedade da informação45 - baseada, é certo, nos artigos 11º e 12º do

Tratado da Organização Mundial da Propriedade Industrial (OMPI) - protege as medidas

técnicas efi cazes, nos casos em que, portanto, a obra ou o material protegido por direito

de autor ou direito conexo seja detido pelos titulares dos direitos por meio de um controle

de acesso ou de um processo de proteção, como, por exemplo, a codifi cação, a cifragem

42 Entre outros, GÓMEZ SEGADE, Jose Antonio, “A Mundialização da Propriedade Intelectual e o Direito de Autor”, in Studia

Iuridica, 48, Coimbra, Coimbra Editora, 2000, p. 7 ss., p. 22.

43 Cfr., agora, PEREIRA, Alexandre Dias, Direito de Autor e Liberdade de Informação, Dissertação, existente no fundo bibliográfi co

da Faculdade de Direito de Coimbra, Coimbra, 2007, p. 504 ss.

44 As quais, como se sabe, impedem a cópia da obra ou controlam o acesso a essa obra ou a qualquer outro material

protegido.

45 In Jornal Ofi cial das Comunidades Europeias, n. L 167, de 22/06/2001, p. 10 ss.

Page 38: Propriedade Intelectual nos Países de Língua Portuguesanit.uesc.br/.../files/livros/Propiedade-Intelectual... · propriedade intelectual e o uso da informação tecnológica contida

37

ou qualquer outra transformação da obra, ou um mecanismo de controle da cópia, que

garanta a realização do objetivo da proteção (artigo 6º/3 dessa Diretiva). Além de que

essa proteção jurídica aplica-se também contra o fabrico, a importação, a distribuição, a

venda, o aluguel, a publicidade ou a posse para fi ns comerciais de todos esses dispositivos

de contornamento de medidas de caráter tecnológico.

9. O IMPACTO DESSAS MUDANÇAS NO REGIME DAS UTILIZAÇÕES LIVRES DE DIREITO

DE AUTOR, EM PARTICULAR A CÓPIA PRIVADA

Mas poderá admitir-se que as utilizações livres (v.g., citação, paródia, comentário ou

crítica, para fi ns de ensino, educação, de exposição em bibliotecas, etc.) de direito de

autor possam ser suprimidas por meio desse regime jurídico das proteções técnicas?

Na União Europeia e, em alguns casos, nos E.U.A., chegou-se ao ponto de as

medidas efi cazes de caráter tecnológico contra a neutralização ou o contornamento dos

protocolos, dos algoritmos, dos formatos ou dos métodos de criptografi a, de codifi cação

ou de transformação poderem constituir um obstáculo ao exercício normal das utilizações

livres pelos seus benefi ciários.

No ambiente digital, as medidas tecnológicas predispostas pelos titulares do direito

de autor, e que impedem ou restringem o uso ou a fruição das utilizações livres por parte

de quem tenha legalmente acesso ao bem protegido, são lícitas nos casos em que as

obras ou as prestações ou produções protegidas são disponibilizadas ao público na

sequência de contratos celebrados entre os titulares e os utilizadores, de tal forma que

a pessoa possa aceder a elas a partir de um local e em um momento por ela escolhido (v.g.,

acessos on line a conteúdos protegidos: programas de televisão, músicas, retransmissões

de eventos previamente gravadas e disponibilizadas na Internet, etc.)46. Nos outros

casos, fi ca assegurado que os benefi ciários das utilizações livres delas possam tirar partido

mesmo contra medidas técnicas de proteção utilizadas pelos titulares dos direitos47.

Logo, não há uma imperatividade das utilizações livres (ou não existe uma

imperatividade das “exceções” ao direito de autor, como alguns preferem). Daqui decorre

que os limites à liberdade contratual não operam no ambiente digital, nas eventualidades

em que o utilizador pode aceder às obras ou às prestações protegidas a partir de um local

e em um momento por ele escolhido. Isto é grave, pois se cria uma espécie de lock-up

digital em favor do titular dos direitos de exploração econômica, na medida em que os

utilizadores fi nais são normalmente levados a subscrever licenças de utilização (End User

46 Cfr. o artigo 222º do Código do Direito de Autor português, na sequência da transposição da citada Diretiva nº 2001/29/CE,

do Parlamento Europeu e do Conselho, de 22 de maio de 2001, relativa à harmonização de certos aspectos do direito de autor e

dos direitos conexos na sociedade de informação, transposição que foi efetuada por meio da Lei nº 50/2004, de 24 de agosto.

Page 39: Propriedade Intelectual nos Países de Língua Portuguesanit.uesc.br/.../files/livros/Propiedade-Intelectual... · propriedade intelectual e o uso da informação tecnológica contida

38

Licence Agreements: EULA48), predispostas unilateralmente pelo titular da propriedade

intelectual, cujas cláusulas são inalteráveis por esse titular49.

E, ultima ratio, faz-se então mister recorrer ao regime das cláusulas contratuais

(conquanto em ações populares), para o efeito de fazer apreciar e julgar a invalidade

desse tipo de cláusulas50. Pelo contrário, nos E.U.A., há um forte movimento que se

pronuncia contra a neutralização dos limites do copyright mediante o direito dos

contratos ou de meios tecnológicos apropriados. O fair use é aí visto como um limite à

liberdade contratual51.

Não obstante, a lei portuguesa e as demais leis dos Estados-Membros da União

Europeia vão no sentido de conferir prevalência à liberdade de cópia privada sobre as

cláusulas contratuais gerais em sentido contrário (artigo 75º/1 a 3 do Código do Direito

de Autor): a lei comina a nulidade de certas cláusulas, embora permita que as partes

acordem as formas do seu exercício, maxime no que respeita aos montantes das

remunerações equitativas.

E é, ainda, duvidosa a licitude da cópia privada na modalidade de on-line storage52.

Já quanto à realização de cópias de segurança, essa conduta é lícita no quadro do direito

de autor sobre programas de computador. Mas já é uma atividade ilícita no quadro do

regime do “direito especial” de extração e/ou de reutilização de partes substanciais da

47 Nesse caso, o Código do Direito de Autor português estabeleceu, no seu artigo 221º, um procedimento especial, de jeito a

que as medidas técnicas não impeçam o exercício normal de um lato acervo de utilizações livres (as previstas essencialmente

no artigo 75º/2 do mesmo Código), por parte dos seus benefi ciários. Assim, todo aquele que pretenda efetuar uma utilização

livre (v.g., uma Universidade que deseje incluir um hiperlink na sua página da Web para determinados manuais ou artigos, que

se encontram no acervo de uma base de dados) deverá procurar celebrar um acordo com o titular dos direitos de autor ou

direitos conexos. Se não o conseguir, poderá recorrer à Comissão de Mediação e Arbitragem, criada pela Lei nº 83/2001, de 3 de

agosto, de cujas decisões, sujeitas a eventuais sanções pecuniárias compulsórias, cabe recurso para o Tribunal de 2ª instância

territorialmente competente (o Tribunal da Relação). Sobre isso, cfr. PEREIRA, Alexandre Dias, Direito de Autor e Liberdade de

Informação, 2007, cit., p. 528 ss.

Todavia, como a obra protegida está no acervo de uma base de dados on line de acesso condicionado (idem, para os demais

ordenamentos europeus), o titular do direito de autor pode impedir, de iure, esse acesso, à luz do disposto na citada diretiva

comunitária e do artigo 222º do referido Código do Direito de Autor. Nessa eventualidade, não se aplicam as normas

imperativas que garantem “sempre” as referidas utilizações contra as medidas técnicas predispostas pelo titular.

48 BURKE, John A., “Reinventing Contract”, in Murdoch University Electronic Journal of Law, vol. 10, n. 2, 2003, p. 18 ss., = http://

www.murdoch.edu.au/elaw/issues/v10n2/burke102_text.html.

49 CORREA, Carlos M., “Fair Use in the Digital Era”, in International Review of Industrial Property and Copyright Law, 2002, p. 570 ss.;

FOGED, T., “US v. EU anti Circumvention Legislation: Preserving the Public’s Privileges in the Digital Age”, in European Intellectual

Property Review, 2002, p. 525 ss.; BURREL, Robert / COLEMAN, Allison, Copyright Exceptions – The Digital Impact, Cambridge

University Press, Cambridge, New York, etc., 2005, 3ª reimpressão, 2006, pp. 67-69; LUCCHI, Nicola, Digital Media & Intellectual

Property, 2006, cit., pp. 102-113.

50 BURREL, Robert / COLEMAN, Allison, Copyright Exceptions, 2006, cit., pp. 306-309; LUCCHI, Nicola, Digital Media & Intellectual

Property, 2006, cit., p. 99 ss., p. 118 ss.

51 Por exemplo, McMANNIS, Charles, “The Privatization (or ‘Shrink-wrapping’) of American Copyright Law”, in California Law

Review, 1999, p. 173 ss.; BURREL, Robert / COLEMAN, Allison, Copyright Exceptions – The Digital Impact, 2006, cit., p. 73.

Page 40: Propriedade Intelectual nos Países de Língua Portuguesanit.uesc.br/.../files/livros/Propiedade-Intelectual... · propriedade intelectual e o uso da informação tecnológica contida

39

base, o qual benefi cia o fabricante de bases de dados eletrônicas (artigos 6º/2, alínea a),

e 9º da Diretiva nº 96/9/CE, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 11 de março,

relativa à proteção jurídica das bases de dados).

Assim, o regime das proteções técnicas, o das licenças de utilização e o da proteção

antineutralização tornam quase obsoleta a proteção pelo direito de autor quando essa

tutela é aplicada ao ambiente digital: o titular da obra ou da prestação empresarial

protegida tende a usar, doravante, o direito dos contratos e o regime da responsabilidade

civil para o efeito de permitir a utilização ou o “consumo” da sua obra ou prestação53.

Atenta a enorme facilidade e frequência de reprodução não autorizada de obras e à sua

“distribuição digital”, o titular dos direitos de exploração econômica tenderá a mobilizar

um acervo de proteções técnicas e de medidas antineutralização em vez das medidas

repressivas decorrentes da titularidade do direito patrimonial de autor e dos aspectos

também patrimoniais dos direitos conexos. Mas isso extravasa as preocupações do

regime jurídico estrito do direito de autor.

De resto, também a interoperabilidade passa a estar limitada, pois, diferentemente

do que acontece nos E.U.A. (com o Digital Millenium Copyright Act, de 1999), na

União Europeia não fi cou ressalvada a liberdade de pesquisa de software para fi ns de

desenvolvimento de criptografi a.

A cópia privada está, de igual modo, limitada: o titular dos direitos de autor ou de

direitos conexos pode utilizar medidas efi cazes de caráter tecnológico para condicionar

o número de reproduções não autorizadas relativas ao uso privado (artigo 221º/8 do

Código do Direito de autor português).

O novo regime jurídico europeu instituiu expressamente uma remuneração

compensatória pela reprodução para uso privado, remuneração que é predisposta

em benefício dos titulares dos direitos; no ambiente analógico, essa remuneração é

estabelecida em favor dos editores. Note-se, porém, que essa compensação econômica

só se dá se o titular dos direitos não utilizar medidas de caráter tecnológico destinadas

a impedir a reprodução da obra.

Assim, a reprodução para uso privado deixou de ser uma utilização livre de direitos de

autor, já que ao titular é atribuída uma pretensão compensatória54. No ambiente digital, os

titulares são normalmente as empresas de conteúdos, que prestam serviços na Internet, e

a reprodução de obras ou outros materiais protegidos para uso privado integra o direito

de reprodução (artigo 75º/1 do Código do Direito de Autor português).

52 Em sentido afi rmativo, PEREIRA, Joel Timóteo Ramos, Compêndio Jurídico da Sociedade da Informação, Lisboa, Quid Iuris,

2004, pp. 768-769. Sobre isto, PEREIRA, Alexandre Dias, Direitos de Autor e Liberdade de Informação, 2007, cit., p. 559 ss.

53 BECHTOLD, Stefan, “Digital Rights Management: Destruction or Protection of the Commons?”, in Juridische aspekten van

Internet / Juridisch Tijdschrift voor Internet en E-business, 2003, p. 162 ss., pp. 162-165.

Page 41: Propriedade Intelectual nos Países de Língua Portuguesanit.uesc.br/.../files/livros/Propiedade-Intelectual... · propriedade intelectual e o uso da informação tecnológica contida

40

A lei portuguesa e a dos restantes Estados-Membros da União Europeia passaram

a consagrar o direito de controlar o acesso à obra no conteúdo dos direitos de autor

enquanto meio de proteção dos direitos dos autores - e não uma nova faculdade de

cariz patrimonial55 -, mesmo que o seja sob a condição de a sua exploração ser efetuada

com o recurso a proteções técnicas.

Chega-se ao ponto de incluir o consumidor fi nal no círculo de oponibilidade, contra

quem os titulares dos direitos de propriedade intelectual podem reagir, nos termos da

Diretiva nº 2004/48/CE, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 29 de abril de 200456,

sobre a aplicação efetiva dos direitos de propriedade intelectual, transposta para o direito

português por meio da Lei nº 16/2008, de 1 de abril57 (artigo 2º dessa lei, a qual aditou

o artigo 210º-F ao Código do Direito de Autor: o nº 2 desse artigo passou a determinar

que a obrigação de prestação de informações sobre a origem e as redes de distribuição

dos bens ou serviços em que se materializa a violação do direito de autor ou de direitos

conexos pode recair sobre quem tenha sido encontrado na posse dos bens - o que pode

abranger os consumidores ou utilizadores fi nais das obras ou dos conteúdos protegidos - ou

esteja a utilizar ou prestar os serviços, em escala comercial, que se suspeite violarem tais

exclusivos, bem como quem tenha sido indicado pelas pessoas atrás mencionadas).

Não é, por isso, estultice apontar uma espécie de requiem aos direitos de autor no

ambiente digital e salientar a emergência do direito dos contratos enquanto forma de

(limitar o) acesso e de utilização, caso a caso, das obras ou de outros materiais protegidos

(v.g., partes substanciais do conteúdo de bases de dados não originais).

10. O REGIME DA GESTÃO COLETIVA DO DIREITO DE AUTOR

No que tange à gestão coletiva das obras ou prestações, a lei atribui poderes de

representação dos direitos dos titulares a determinadas pessoas (p. ex., aos produtores

de obras cinematográfi cas: artigo 126º/3 do Código do Direito de Autor português; às

pessoas autorizadas a divulgar obra anônima), mesmo que de uma forma obrigatória

(no caso do direito de retransmissão por cabo (artigos 7º e 8º do Decreto-Lei nº 33/97, na

sequência da Diretiva nº 93/83/CEE, do Conselho, de 27/09/1993, relativa à coordenação

de determinadas disposições em matéria de direito de autor e direitos conexos aplicáveis

à radiodifusão por satélite e à retransmissão por cabo).

54 Desenvolvidamente, PEREIRA, Alexandre Dias, Direitos de Autor e Liberdade de Informação, 2007, cit., p. 583.

55 VICENTE, Moura, “Direito de Autor e Medidas Tecnológicas de Protecção”, in Direito Comparado, Perspectivas Luso-Americanas,

vol. I, Fundação Luso-Americana, Coimbra, Almedina, 2006, p. 161 ss., p. 176; OLIVEIRA ASCENSÃO, “Propriedade Intelectual e

Internet”, in Direito da Sociedade da Informação, vol. VI, Coimbra, Coimbra Editora, 145 ss., p. 156; TRABUCO, Cláudia, O Direito de

Reprodução de Obras Literárias e Artísticas no Ambiente Digital, Coimbra, Coimbra Editora, 2006, p. 728.

56 In Jornal Ofi cial da União Europeia, n. L 157, de 30/04/2004, p. 45 ss; PEREIRA, Alexandre Dias, Direitos de Autor e Liberdade de

Informação, 2007, cit., p. 550-554.

Page 42: Propriedade Intelectual nos Países de Língua Portuguesanit.uesc.br/.../files/livros/Propiedade-Intelectual... · propriedade intelectual e o uso da informação tecnológica contida

41

Assim, o direito de autor degrada-se praticamente a um mero direito de remuneração

por meio da gestão que é confi ada a um terceiro, sendo duvidoso se o titular dos

direitos pode reservar a não atribuição de certos poderes jurídicos à entidade de gestão

coletiva.

No ambiente digital, as empresas de conteúdos têm, ainda, todo o interesse em confi ar

a gestão dos seus direitos a essas entidades, visto que elas desempenham melhor a tarefa

de “policiar” a rede. De todo modo, há que intuir e estar alerta para o poder econômico

exercido, na Europa, por essas entidades de gestão coletiva. Todavia, essa gestão coletiva está

sujeita ao controle do direito nacional e comunitário da concorrência.

11. A GESTÃO COLETIVA DO DIREITO DE AUTOR E O PROCESSAMENTO DE “INFORMA-

ÇÕES SENSÍVEIS” DOS UTILIZADORES

Há, ainda, que considerar o problema da proteção das informações para a

gestão (coletiva) de direitos, no sentido da prevenção da retirada ou da alteração das

informações, bem como a distribuição, a importação para distribuição, a radiodifusão,

a comunicação ao público ou colocação à sua disposição de obras ou outro material

protegido por todo aquele que sabe ou deverá razoavelmente saber que, ao fazê-lo,

está a provocar, permitir, facilitar ou a dissimular a violação de um direito de autor ou

de direitos conexos (artigo 87º/1 da citada Diretiva nº 2001/29/CE; artigo 223º/1 a 3

do Código do Direito de Autor português). É o caso, por exemplo, das entidades que,

gerindo certas páginas da Internet, suprimem as informações que constam de certas

fotografi as ou imagens pelas quais os utilizadores que a elas acedem on line fi cariam a

saber que se tratava de obras ou de material protegido.

Mas essa proteção das informações pode conduzir a um outro extremo reprovável:

o do processamento de informações para a gestão dos direitos, que, pela sua concepção,

possa processar simultaneamente dados pessoais sobre os hábitos de consumo do

material protegido por parte dos particulares e detectar comportamentos on line,

violando, destarte, o direito à intimidade ou à reserva da vida privada. É o que tem

acontecido com a monitorização respeitante a cópias privadas no ambiente digital, a qual

tem implicado, por vezes, o acesso eletrônico ao computador pessoal dos utilizadores

em busca de cópias ilícitas. Trata-se de uma atividade ilícita não coberta, naturalmente,

pelos direitos de autor.

12. O REPÚDIO DO DETERMINISMO TECNOLÓGICO NO AMBIENTE DIGITAL: ALGU-

MAS SOLUÇÕES

De tudo isso, decorre um conjunto de perplexidades evidenciadas pelo ocaso do

direito de autor no ambiente digital, pelo determinismo tecnológico agora erigido por

Page 43: Propriedade Intelectual nos Países de Língua Portuguesanit.uesc.br/.../files/livros/Propiedade-Intelectual... · propriedade intelectual e o uso da informação tecnológica contida

42

mor do direito dos contratos58 (p. ex., licenças shrink-wrap) e pelo recuo da consagração

de regime imperativo das utilizações livres (ou “exceções”) de direito de autor e direitos

conexos.

Doravante, a informação, as prestações empresariais e as obras podem passar a ser

protegidas, não por serem originais, mas antes por estarem codifi cadas, sendo tal proteção

alvo de um regime jurídico específi co de acesso condicionado ao pagamento, caso a caso

(serviço a serviço), de uma quantia predeterminada, e à sua utilização individualmente

controlável. Eis um paradigma em que seriam bem mais baixos os “custos de transação”.

Mas essa nova realidade - que está a dar os seus passos nos E.U.A. e na Europa

- deverá ser planetariamente contrariada por meio de um conjunto de medidas.

Vejamos.

Necessita-se de mais interoperabilidade informática, não apenas nas interfaces

equipamentos versus programas e programas versus programas, mas também no que

respeita ao modelo das próprias redes e ao reforço da interatividade dos dados e das

informações que circulam por essas redes informáticas.

Depois, far-se-á mister reduzir a infl uência do regime do direito de autor na

sedimentação da tutela dos serviços remunerados de acesso condicional, imunes ao

princípio do esgotamento dos direitos. Pois, caso contrário, corremos já hoje o sério risco

de codifi car o princípio da onerosidade de cada ato de desfrute individual de uma obra ou

prestação - como se fosse mais justo pagarmos um preço de cada vez que (re)lemos um

livro acessível on line, ou todas as vezes em que assistimos a um fi lme ou ouvimos uma

música no ambiente digital.

Em breve, as proclamadas autoestradas da informação, por meio das quais

deveriam fl uir correntes de cultura, de entretenimento e de inovação, transformar-se-ão

em estradas pejadas de pedágios e, por conseguinte, atravessadas ou visitadas por um

número cada vez menor de utilizadores.

Pelo contrário, o direito de autor deverá estar na base de um novo modelo

econômico da sociedade da informação: a informação deverá ser livre, e o fi nanciamento,

efetuado por meio da publicidade no seio das comunidades virtuais. Todavia, importa

não descurar a exigência de remuneração do investimento na criação, interesse que é

tanto mais relevante quanto mais intensa é a possibilidade de este ser logrado, atentas

as modernas técnicas digitais de reprodução. Assim, embora essas tecnologias impeçam

que o utilizador proceda à sua retransmissão ou ao carregamento descendente (download)

57 Isso é conseguido mediante a previsão de um acervo de obrigações de informação que impedem sobre qualquer pessoa

que “tenha sido encontrada na posse dos bens ou a utilizar ou prestar os serviços, à escala comercial, que se suspeite violarem direitos

de propriedade intelectual” (artigo 210 - F/2, alínea a), do Código do Direito de Autor, na redação da citada Lei nº 16/2008, de

1º de abril), bem como as informações sobre “as quantidades produzidas, fabricadas, entregues, recebidas ou encomendadas,

bem como sobre o preço obtido” e sobre “os nomes e os endereços dos produtores, fabricantes, distribuidores, fornecedores ou outros

possuidores anteriores desses bens ou serviços” (artigo 210º-F/1, alíneas a) e b), do mesmo Código), obrigação que também

benefi cia os titulares de direitos de propriedade industrial.

Page 44: Propriedade Intelectual nos Países de Língua Portuguesanit.uesc.br/.../files/livros/Propiedade-Intelectual... · propriedade intelectual e o uso da informação tecnológica contida

43

e ao armazenamento no disco duro do seu computador pessoal (v.g., de escritos, imagens,

sons, etc.), elas também permitem reduzir os custos marginais de produção dessas obras

ou prestações empresariais e, consequentemente, criam condições para oferecer os

produtos culturais, a informação e o entretenimento a preços mais baixos.

Em terceiro lugar, o direito de autor deverá posicionar-se como um instrumento de

promoção da concorrência no mercado da informação digital. Para isso, haverá que alargar

a doutrina estadunidense do fair use no seio das utilizações livres previstas nos Códigos

do Direito de Autor da União Europeia, de jeito a que as obras derivadas não estejam

sempre sujeitas à autorização do titular do direito de autor sobre a obra originária - o

que se revestirá do maior interesse em sede de aperfeiçoamento de motores de busca, de

sistemas de navegação e de hiperlinks, impondo, também, o alargarmento do direito de

cópia ou de reprodução para fi ns criativos, independentemente de autorização do titular

(v.g., o movimento open source).

Em quarto lugar, deverá resistir-se a criar novas formas ou “tipos” de propriedade

intelectual sobre o conteúdo de bases de dados ou compilações, tal como ocorreu na

União Europeia com a Diretiva nº 96/9/CE, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 11

de março, relativa à proteção jurídica das bases de dados, cujo regime jurídico monstruoso

impede, na prática, a livre extração ou reutilização desse conteúdo, bem como, nas bases

de dados eletrônicas, a mera transferência não autorizada desse conteúdo para o “disco

duro” do computador de todo aquele que não tenha sido autorizado pelo titular desses

direitos sui generis.

Assim, na União Europeia, o acesso a certos conteúdos de uma biblioteca digital

on line, cujos direitos sui generis são titulados por empresas sediadas nesse espaço

geográfi co, fi ca dependente de autorização, não ocorrendo, tão pouco, o esgotamento

desse direito de propriedade intelectual.

Em quinto lugar, o princípio democrático e o direito-liberdade de expressão e de

informação parecem exigir que a reprodução, a comunicação ao público ou a colocação

à disposição do público de artigos de atualidade, de discussão econômica, política ou

religiosa para fi ns de crítica sobre as ideias discutidas nessas obras não devem estar

condicionadas à reserva ou à autorização do titular - o que ainda não acontece no

direito português (artigo 75º/2, alínea m), do Código do Direito de Autor).

Ademais, a tutela do patrimônio histórico e arquitetônico e da inerente herança

cultural imporá a liberdade de reprodução, em formato eletrônico, de obras protegidas

pelos direitos de autor, para fi ns de preservação e de arquivo, ainda que estas já estejam

incluídas no acervo de materiais inseridos em uma base de dados eletrônica.

Por último, o direito de autor e o regime sui generis da extração ou da reutilização

do conteúdo de bases de dados não originais não devem ser utilizados para - sob o

abrigo irrestrito do direito dos contratos e da sacrossanta liberdade contratual - impor uma

proibição total da neutralização das barreiras técnicas (v.g., mediante protocolos, formatos,

Page 45: Propriedade Intelectual nos Países de Língua Portuguesanit.uesc.br/.../files/livros/Propiedade-Intelectual... · propriedade intelectual e o uso da informação tecnológica contida

44

algoritmos, métodos de criptografi a ou de codifi cação) ao acesso a tais conteúdos. Se

assim suceder, teremos um “super direito de autor” impeditivo de qualquer acesso à

informação tecnicamente protegida. O direito de autor clássico corre o risco de claudicar,

porque desnecessário, em favor do determinismo tecnológico apoiado na lei, no direito

dos contratos e na responsabilidade civil.

13. O DIREITO DE AUTOR TECNOLÓGICO E A PROTEÇÃO DE CRIAÇÕES TÉCNICO-FUN-

CIONAIS

A constatação de que o direito de autor oferece uma mais fácil e extensa tutela

dos seus titulares tem levado o legislador e alguns intérpretes a recorrer ao direito de

autor para lograr a proteção de certos resultados de ordem prático-funcional, tutela que

outrora era apenas reservada ao direito de patente.

Emergiu, destarte, um direito de autor tecnológico. Essa tendência manifesta-se,

essencialmente, em duas direções.

Por um lado, assistimos à crescente “invasão” do direito de autor relativamente

a territórios que, no paradigma clássico, eram reservados ao direito de patente. Basta

recordar a formidável blitz do direito de autor no campo do software59.

Por outro lado, surpreendemos a pretensão do subsistema do direito de autor em

tutelar certas realidades que o ordenamento havia excluído do universo do patenteável:

é o caso da possibilidade de os mapas genéticos e das sequências genéticas (rectius, das

sequências de nucleotídeos) serem objeto de proteção pelo direito de autor. Solução

que me parece, liminarmente, de afastar60: as sequências de nucleotídeos não podem

ser assimiladas a um programa, a uma compilação ou a uma base de dados, a uma obra

derivada (maxime, a uma tradução), ou a uma carta geográfi ca: a forma mental não é,

nesse caso, uma forma imaginativa; há apenas uma descrição, uma estruturação e uma

representação técnicas de objetos, formas naturais ou formas extraídas e isoladas da

natureza.

Além disso, os constrangimentos técnico-funcionais não asseguram qualquer grau

de liberdade ao “criador”, sob pena de as sequências genéticas assim “criadas” se revelarem

completamente inúteis do ponto de vista prático-funcional. Mesmo que isso fosse

legalmente possível, o âmbito de proteção reconhecido ao seu titular seria limitadíssimo:

58 CAHIR, John, “The Moral Preferences for DRM Ordered Markets in the Digitally Networked Environment”, in MACMILLAN,

Fiona (ed.), New Directions in Copyright Law, Edward Elgar, Cheltenham, Northampton, 2005, p. 24 ss., pp. 46-48; LUCCHI, Nicola,

Digital Media & Intellectual Property, Management of Rights and Consumer Protection in a Comparative Analysis, Springer, 2006,

p. 99 ss.

59 GHIDINI, Gustavo, Aspectos actuales del Derecho industrial – Propriedad intelectual y competencia, Editorial Comares, Granada,

2002, p. 89.

Page 46: Propriedade Intelectual nos Países de Língua Portuguesanit.uesc.br/.../files/livros/Propiedade-Intelectual... · propriedade intelectual e o uso da informação tecnológica contida

45

ele não poderia impedir a utilização das mesmas sequências se estas resultassem de uma

criação independente.

De resto, bastaria efetuar pequenas alterações na forma da sequência de

nucleotídeos, para o efeito de obter o mesmo resultado técnico: a expressão formal seria

diferente. Por fi m, a utilização de conceitos comunicacionais da linguagem informática

(código genético, programa genético, informação genética, etc.) apenas desfruta de um

valor heurístico susceptível de ser mais facilmente intuído pelos leigos; essa utilização da

linguagem informática não traduz as complexidades biológicas ocorridas por ocasião da

replicação do DNA e da produção de proteínas61.

Em segundo lugar, sob a aparentemente correta justifi cação da “unidade da arte”,

assistimos, em alguns ordenamentos - de que é exemplo o português (artigo 200º

do CPI de 200362) -, à tutela autoral automática das características da aparência dos

produtos industriais (v.g., linhas, contornos, formas, texturas, cores), tão logo elas sejam

protegidas pelo regime dos desenhos ou modelos, independentemente de o legislador

exigir expressamente a presença de uma criação artística; ou seja, independentemente

da verifi cação dos requisitos específi cos de proteção previstos no Código do Direito

de Autor63 - o que constitui um enorme equívoco jurídico quanto aos objetos e aos

requisitos de proteção.

Em terceiro lugar, no quadro jurídico da União Europeia, a criação do “direito

especial” do fabricante de bases de dados, previsto em Portugal no Decreto-Lei nº

122/2000, de 4 de julho, relativamente aos atos de extração ou de reutilização de partes

substanciais dessas bases, constitui mais uma outra monstruosidade jurídica. Já que

as apresentações de informações não podem ser objeto de direito de patente (artigo

52º/2, alínea d), da Convenção sobre a Patente Europeia; idem, artigo 52º/1, alínea e),

do Código da Propriedade Industrial português de 2003), esse outro regime introduz a

possibilidade da apropriação das meras informações enquanto tal ou outros materiais,

independentemente de se revestirem de nível artístico ou desfrutarem de originalidade

sufi ciente para poderem ser protegidas pelo direito de autor.

Em vez de essa proteção ser efetuada à luz do regime da concorrência desleal, o

legislador da União Europeia fez introduzir, nos ordenamentos jurídicos dos Estados-

Membros, uma tutela dominial, de natureza absoluta – direito cujo reconhecimento e

constituição está dependente da verifi cação de parâmetros meramente econômico-

quantitativos, quais sejam, o ter havido um investimento substancial na obtenção, na

60 J. P. REMÉDIO MARQUES, Biotecnologia(s) e Propriedade Intelectual, vol. I, 2007, cit., pp. 143-156, p. 191 ss., p. 210 ss.

61 J. P. REMÉDIO MARQUES, Biotecnologia(s) e Propriedade Intelectual, cit., vol. I, 2007, pp. 195-200.

62 Que reza deste modo: “Qualquer desenho ou modelo registado benefi cia, igualmente, da proteção conferida pela legislação

em matéria de direito de autor, a partir da data em que o desenho ou modelo foi criado, ou defi nido, sob qualquer forma”.

Page 47: Propriedade Intelectual nos Países de Língua Portuguesanit.uesc.br/.../files/livros/Propiedade-Intelectual... · propriedade intelectual e o uso da informação tecnológica contida

46

seleção e na apresentação ou na disposição do acervo dessa base de dados. Direito,

também, cuja violação está dependente do valor comercial dos dados ou informações

extraídas ou reutilizadas. Tudo isso para remunerar o investimento em uma prestação

empresarial realizada na obtenção, na seleção e na apresentação dessas informações, e

não para remunerar a criação intelectual. Essa solução segue em contracorrente com

a do resto do planeta – basta lembrar que nos E.U.A., no caso Feist, foi, apesar de tudo,

salvaguardada a inapropriação da informação “pura” e dos dados enquanto tais.

O direito de autor e os direitos conexos traduzem, assim, um “território redescoberto”

pelas empresas que vêm ocupando posições dominantes no mercado.

14. A NOSTALGIA DO PASSADO, OS NOVOS RUMOS E A CONCERTAÇÃO DOS INTE-

RESSES DIVERGENTES

Vale a pena, apesar de tudo, perguntarmos a razão de ser dessa nostalgia do

paradigma clássico do direito de autor, e se esses novos caminhos não são um sinal de

vitalidade desse subsistema da propriedade intelectual.

A resposta há-de residir na forma como o legislador estabelece (se estabelece) o

equilíbrio entre os diferentes interesses antagônicos que aqui se digladiam.

Lembremo-nos de que, em harmonia com esse paradigma clássico, vale o princípio

da liberdade de iniciativa econômica e de gozo do patrimônio cultural intelectual.

Apesar de a criação intelectual e os resultados dessa criação plasmados nos direitos

de propriedade intelectual poderem ser perspectivados, em um certo sentido, como

direitos fundamentais constitucionais64, a exceção é o exclusivo; a regra é a liberdade. Além

disso, o elenco das faculdades jurídicas do titular há-de ser um elenco fechado. De resto,

à luz desse paradigma clássico, há uma antinômica dicotomia entre as criações estéticas,

63 Para a crítica, desenvolvidamente, J. P. REMÉDIO MARQUES, Biotecnologia(s) e Propriedade Intelectual, vol. I, 2007, cit., pp.

169-177. Nós entendemos que o legislador português não terá tido a absurda intenção de conferir uma tutela autoral,

cumulativa, absoluta e automática a todo e qualquer desenho ou modelo registrado junto ao INPI. Propomos, assim, uma

redução teleológica dessa norma. Cremos, pelo contrário, que as características da aparência dos produtos precipuamente

registradas somente se benefi ciam da tutela pelo direito de autor se e quando constituírem criações intelectuais, recte, quando

tais características da aparência constituírem uma “criação artística” (artigo 2º/1, alínea i), do Código do Direito de Autor), à luz

dos requisitos dessa outra codifi cação. De resto, foi esse o primevo sentido aplicado na França. Desde o seu início no dealbar

do século XX, o princípio da unidade da arte nunca dispensou a presença do requisito da originalidade enquanto expressão

de uma criação individualizante e, por isso, uma criação personalizada. A proteção por meio do regime do direito de autor

exige uma criação artística, sendo que a proteção pela propriedade industrial é independente da primeira. Pelo que é errôneo

pretender extrair do ordenamento francês qualquer arrimo que justifi que uma proteção cumulativa absoluta e automática

dessas características pelo direito de autor a todo o desenho ou modelo que reúna os requisitos constitutivos próprios do direito

de propriedade industrial para que se pede proteção. Esses requisitos são, na União Europeia, a novidade e a singularidade das

características da aparência. Tb. RIBEIRO, Bárbara Quintela, “A tutela jurídica da moda pelo regime dos desenhos ou modelos”,

in Direito Industrial, vol. V, Coimbra, Almedina, 2008, p. 477 ss., p. 501 ss., p. 507 (propendendo, também, para o cúmulo relativo

de tutelas: haverá uma tutela conjunta, desde que as características da aparência dos produtos preencham os pressupostos de

aplicação do respectivo regime - haverá tutela pelo direito de autor se e quando tais características possam ser consideradas

criações artísticas).

Page 48: Propriedade Intelectual nos Países de Língua Portuguesanit.uesc.br/.../files/livros/Propiedade-Intelectual... · propriedade intelectual e o uso da informação tecnológica contida

47

literárias e artísticas (protegidas pelo direito de autor) e as criações utilitárias, ou seja, as

ideias inventivas industriais, susceptíveis de proteção pelo direito de patente.

De um lado, temos os interesses dos autores, criadores intelectuais ou dos

inventores, pessoas humanas; do outro, os interesses das empresas que fi nanciam essas

criações artísticas e inovações técnicas; enfi m, também surpreendemos os interesses dos

concorrentes: estes desejam minimizar ou anular os efeitos dos direitos de exclusivo;

aqueles querem maximizá-los. Por outro lado, ainda, não podem menosprezar-se, hoje,

os interesses dos consumidores (das soluções técnicas patenteáveis, ou das criações

estéticas tuteladas por direito de autor), os quais são atraídos pela inovação e pelo preço

reduzido dos bens.

Temos, desse modo, uma economia caracterizada por uma situação acentuadamente

monopolista ou oligopolista dos mercados em face do dever de prossecução do interesse

público em manter uma fi sionomia concorrencial dos mercados onde se faz e se vende

a inovação estética e a tecnológica - mercados que devem ser aptos a manter uma

concorrência e uma inovação razoavelmente efetivas.

Há, por isso, que olhar para a forma como as tecnologias da informação se

caracterizam. A resposta é a seguinte: elas materializam-se e atuam por meio de um

sistema de redes, de conexões e de protocolos entre os diferentes utilizadores. O movimento

open source, no quadro dos programas de computador e das obras ou outras criações

artísticas (creative commons), é disso exemplo. E o lema propugnado por essa economia

das redes é o seguinte: “o que é aberto é bom e o que é fechado é mau” (what is open is

good, what is closed is bad).

Daí que as próprias interfaces, que permitem a conexão entre os diferentes

computadores e/ou entre os próprios programas informáticos, devem achar-se

submetidas, se for o caso, a regimes de licenças compulsórias remuneradas, de jeito a

prevenir ou a reprimir o abuso de posição dominante, de que foram exemplos, na União

Europeia, o caso Magill (1995) e, recentemente, o caso Microsoft c. Comissão (setembro

de 2007).

Defende-se, desse modo, uma interpretação e uma visão pró-competitiva dos direitos

de propriedade intelectual65, baseada, uno actu, no estímulo ao investimento em pesquisa

e desenvolvimento e na repressão dos comportamentos objetivamente excludentes dos

agentes econômicos e dos consumidores, bem como dos comportamentos nocivos

para as indústrias das redes (network industries).

64 GOMES CANOTILHO, José Joaquim, “Liberdade e Exclusivo na Constituição”, in Direito Industrial, vol. IV, Almedina, Coimbra,

p. 57 ss., p. 62 ss., p. 65 ss.

65 J. P. REMÉDIO MARQUES, “Propriedade Intelectual e Interesse público”, in Revista da Faculdade de Direito de Coimbra, vol. 79,

2003, p. 293 ss., pp. 321-322, p. 350

Page 49: Propriedade Intelectual nos Países de Língua Portuguesanit.uesc.br/.../files/livros/Propiedade-Intelectual... · propriedade intelectual e o uso da informação tecnológica contida

48

Isso para evitar que a conformação dos atuais regimes jurídicos da propriedade

intelectual não sirva apenas para tutelar privilegiadamente, e em escala mundial, os

interesses dos atuais detentores da liderança tecnológica e das indústrias culturais. Que

essa conformação do regime jurídico não venha a servir, afi nal, para manter ou para

reforçar as situações de exclusão, real ou potencial, da livre iniciativa econômica privada e

da circulação e partilha das informações e dos conhecimentos, é um dos objetivos que

cumpre perseguir.

Page 50: Propriedade Intelectual nos Países de Língua Portuguesanit.uesc.br/.../files/livros/Propiedade-Intelectual... · propriedade intelectual e o uso da informação tecnológica contida

49

REFERÊNCIAS

ARAÚJO, Fernando, A Tragédia dos Baldios e dos Anti-Baldios – O Problema

Económico do Nível Óptimo de Apropriação, Coimbra, Almedina, 2008, p. 191 ss.,

p. 215 ss.

Artigo 3º, alínea b), do Regulamento (CE) nº 6/2002, do Conselho, de 12/12/2001, sobre

o regime dos desenhos ou modelos comunitários; artigo 174º/1 do CPI português

de 2003.

BARBOSA, Denis Borges, Uma Introdução à Propriedade Intelectual, Lúmen Iuris, 2ª

edição, 2003, p. 442.

BECHTOLD, Stefan, “Digital Rights Management: Destruction or Protection of the

Commons?”, in Juridische aspekten van Internet / Juridisch Tijdschrift voor Internet

en E-business, 2003, p. 162 ss., pp. 162-165.

BENTLY, Lionel / SHERMAN, Brad, Intellectual Property Law, 2ª edição, Oxford

University Press, 2004, p. 531;

BENYAMINI, Amiran, Patent Infringement in the European Community, VCH,

Weiheim, 1992.

BERESFORD, Keith, Patenting Software Under the European Patent Convention,

Sweet & Maxwell, London, 2000, p. 47 ss.

BLUEMEL, “Substance Without Process: Analysing TRIPS Participatory Guarantees in

the Light of Protected Indigenous rights”, in Journal of the Patent and Trademark

Offi ce Society, vol. 86, 2004, p. 700 ss.;

BURKE, John A., “Reinventing Contract”, in Murdoch University Electronic Journal

of Law, vol. 10, n. 2, 2003, p. 18 ss., = http://www.murdoch.edu.au/elaw/issues/v10n2/

burke102_text.html.

BURREL, Robert / COLEMAN, Allison, Copyright Exceptions – The Digital Impact,

Cambridge University Press, Cambridge, New York, etc., 2005, 3ª reimpressão, 2006.

CAHIR, John, “The Moral Preferences for DRM Ordered Markets in the Digitally

Networked Environment”, in MACMILLAN, Fiona (ed.), New Directions in Copyright

Law, Edward Elgar, Cheltenham, Northampton, 2005, p. 24 ss., pp. 46-48;

Page 51: Propriedade Intelectual nos Países de Língua Portuguesanit.uesc.br/.../files/livros/Propiedade-Intelectual... · propriedade intelectual e o uso da informação tecnológica contida

50

CARVALHO, Nuno Pires de, The TRIPS Regime of Patent Rights, 2ª edição, Kluwer

Law International, The Hague, London, 2005, pp. 259-303;

CHAVES, Gabriela Costa / OLIVEIRA, Maria Auxiliadora / HASENCLEVER, Lia / DE MELO,

Luiz Martins, “A evolução do sistema internacional de propriedade intelectual: proteção

patentária para o setor farmacêutico e acesso a medicamentos”, in Cadernos de

Saúde Pública (Rio de Janeiro), vol. 23, n. 2, 2007, p. 257 ss., p.264)

CORNISH, William, Intellectual Property, Omnipresent, Distracting, Irrelevant?,

Oxford University Press, 2004, pp. 113-114.

CORNISH, William/LLEWELYN, David, Intellectual Property, 5ª edição, Sweet &

Maxwell, London, 2003, pp. 252-253;

CORREA, Carlos M., Establishing a disclosure of Origin Obligation in the TRIPS

Agreement, Occasional Paper 12, Quaker United Nations Offi ce, Buenos Aires, 2003, p.

2 ss., in http://www.geneva.quono.info/pdf/disclosure%2oOP%2012.pdf;

CORREA, Carlos M., “Fair Use in the Digital Era”, in International Review of Industrial

Property and Copyright Law, 2002, p. 570 ss.;

CORREA, Carlos M., in Resource Book on TRIPS and Development, UNCTAD-ICTSD,

Cambridge University Press, 2005, pp. 448-459.

DRAHOS, Peter, “BIT’s and BIP’s – Bilateralism in Intellectual Property”, in Journal of

World Intellectual Property, vol. 4, 2001, p. 791 ss.

DRAHOS, Peter (ed.), Death of Patents, Queen Mary Intellectual Property Institute,

Lawtext Publishing Limited, 2005, p. 175 ss.

DRAHOS, Peter; BRAITHWAITE, John. Global Business Regulation, Cambridge,

Cambridge University Press, 2000, p. 27.

FOGED, T., “US v. EU anti Circumvention Legislation: Preserving the Public’s Privileges in

the Digital Age”, in European Intellectual Property Review, 2002, p. 525 ss.;

GHIDINI, Gustavo, Aspectos actuales del Derecho industrial – Propriedad

intelectual y competencia, Editorial Comares, Granada, 2002, p. 89.

GIRSBERGER, Martin A., “Disclosure of the Source of Genetic Resources and Traditional

Knowledge in Patent Applications”, in International Expert Workshop on Access to

Genetic Resources and Benefi t Sharing, México, 24 a 27 de outubro de 2004, in http://

www.canmexworkshop.com/papers.cfm;

Page 52: Propriedade Intelectual nos Países de Língua Portuguesanit.uesc.br/.../files/livros/Propiedade-Intelectual... · propriedade intelectual e o uso da informação tecnológica contida

51

GOMES CANOTILHO, José Joaquim, “Liberdade e Exclusivo na Constituição”, in Direito

Industrial, vol. IV, Almedina, Coimbra, p. 57 ss., p. 62 ss., p. 65 ss.

GÓMEZ SEGADE, Jose Antonio, “A Mundialização da Propriedade Intelectual e o Direito

de Autor”, in Studia Iuridica, 48, Coimbra, Coimbra Editora, 2000, p. 7 ss., p. 22.

GÓMEZ SEGADE, José Antonio, “La patenteabilidad de la segunda indicación médica de

un producto farmacéutico”, in Actas de Derecho Industrial, Tomo IX, 1983, p. 241 ss.

GONÇALVES, Luís Couto, “Marca olfativa e o requisito de representação gráfi ca”, in

Cadernos de Direito Privado, n. 1, 2003, p. 14 ss.; TRIGONA, Riccardo, Il marchio, la

ditta, l’insegna – Recenti sviluppi legislativi e giurisprudenziale, Cedam, Padova, 2002,

pp. 35-36.

GOPALAKRISHNAN, N. S., “TRIPs and Protection of Traditional Knowledge of Genetic

Resources: New Challenges to the Patent System”, in European Intellectual Property

Review, 2005, pp. 12-13;

HARMON, Robert, Patents and the Federal Circuit, 4ª edição, The Bureau of National

Aff airs, Washington D.C., BNA Books, 1998, p. 308.

HÖLDER, Niels / SCHMIDT, Josef, “Indirect Infringement: Late Developments in

Germany”, in European Intellectual Property Review, 2006, p. 480 ss.;

INPI, Diretrizes Para Exame no Sector Biotecnológico e Farmacêutico, §§ 2.39.2.3. e

2.39.2.4.

J. J. GOMES CANOTILHO, “Liberdade e Exclusivo na constituição”, in Direito Industrial,

Almedina, Coimbra, p. 57 ss., pp. 62-63.

J. P. REMÉDIO MARQUES, Biotecnologia(s) e Propriedade Intelectual, vol. II, 2007.

J. P. REMÉDIO MARQUES, “Contributory Infringement – Case Law and Comparative

View”, texto apresentado no Congresso Challenges for IP Protection and Enforcement,

Union of European Practitioners in Intellectual Property, Porto, 29th – 30 may 2008,

disponível, para já, em http://www.lexmedicinae.pt. = O Direito, ano 140º, 2008, III.

J. P. REMÉDIO MARQUES, Medicamentos Versus Patentes – Estudos de

Propriedade Industrial, Coimbra Editora, Coimbra, 2008, p. 14 ss.

J. P. REMÉDIO MARQUES, “Propriedade Intelectual e Interesse Público”, in Revista da

Faculdade de Direito de Coimbra, vol. 79, 2003, p. 293 ss., pp. 321-322, p. 350 ss.

Page 53: Propriedade Intelectual nos Países de Língua Portuguesanit.uesc.br/.../files/livros/Propiedade-Intelectual... · propriedade intelectual e o uso da informação tecnológica contida

52

JANNUZI, Anna Haydée / VASCONCELLOS, Alexandre / DE SOUZA, Cristina Gomes,

“Especifi cidades do patenteamento no setor farmacêutico: modalidades e aspectos

da proteção intelectual”, in Cadernos de Saúde Pública (Rio de Janeiro), vol. 26, nº 6,

2008, p. 1.205 ss., p. 1208.

JESTAEDT, Bernhardt, in BENKARD, Europäisches Patentübereinkommen, C. H. Beck,

München, 2002, art. 64, anotação à margem n. 15, p. 648.

Jornal Ofi cial da União Europeia, n. L 157, de 30/04/2004, p. 45 ss;

Jornal Ofi cial das Comunidades Europeias, n. L 167, de 22/06/2001, p. 10 ss.

JOSE MASSAGUER, in Actas de Derecho Industrial, Tomo XXII, 2002, p. 197 ss.;

Kalman v. PLC Packaging (UK), in Fleet Street Reports, 1982, p. 406 ss., pp. 420-424.

KRAβER, Rudolf, Patentrecht – Ein Lehr- und Handbuch, 5 Aufl age, Verlag C. H.

Beck, München, 2004, p. 830 ss.;

KEUKENSCHRIJVER, Alfred, in BUSSE, Patentgesetz, Kommentar, 6 aufl age, De

Gruyter, Berlin, 2003, § 10, anotação à margem 6 ss., pp. 312-313;

MAY, Cristopher, A Global Political Economy of Intellectual Property Rights, The

new enclosures?, Routledge, London, 2000, reimpressão, 2002, p. 73.

McMANNIS, Charles, “The Privatization (or ‘Shrink-wrapping’) of American Copyright

Law”, in California Law Review, 1999, p. 173 ss.;

MISSOTTEN, Stephanie, “La brevetabilité du logiciel et des méthodes commerciales”,

in Droits Intellectuels: à la recontre d’une stratégie pour l’enterprise, Bruylant,

Bruxelles, 2002, p. 101 ss., p. 106 ss.

Offi cial Journal of the European Patent Offi ce, 1984, p. 164

OLIVEIRA ASCENSÃO, “Propriedade Intelectual e Internet”, in Direito da Sociedade da

Informação, vol. VI, Coimbra, Coimbra Editora, 145 ss., p. 156;

PEREIRA, Joel Timóteo Ramos, Compêndio Jurídico da Sociedade da Informação,

Lisboa, Quid Iuris, 2004, pp. 768-769.

PEREIRA, Alexandre Dias, Direito de Autor e Liberdade de Informação, Dissertação,

existente no fundo bibliográfi co da Faculdade de Direito de Coimbra, Coimbra, 2007.

POLLAUD-DULIAN, Frédéric, Droit de la propriété industrielle, Montchrestien, Paris,

1999, p. 162;

Page 54: Propriedade Intelectual nos Países de Língua Portuguesanit.uesc.br/.../files/livros/Propiedade-Intelectual... · propriedade intelectual e o uso da informação tecnológica contida

53

Propriété Intellectuelle, Bulletin Documentaire, 1997, III, p. 581;

PUGATCH, Meir Perez, The International Political Economy of Intellectual

Property, Edward Elgar, Cheltenham, Northampton, 2004, pp. 162-163.

RIBEIRO, Bárbara Quintela, “A tutela jurídica da moda pelo regime dos desenhos ou

modelos”, in Direito Industrial, vol. V, Coimbra, Almedina, 2008, p. 477 ss., p. 501 ss., p.

507.

ROBERTS, Tim, in European Intellectual Property Review, 2005, N-84-85;

DE SOUZA, Marcela Trigo, “Should Brazil Allow Patents on Second Medical Uses?”, in

Revista da ABPI, n. 93, março/abril 2008, p. 53 ss., p. 61 ss.

STERCKX, Sigrid, “The Ethics of Patenting – Uneasy Justifi cations”, in DRAHOS, Peter

(ed.), Death of Patents, Queen Mary Intellectual Property Institute, University of

London, Lawtext Publishing Limited, 2005, p. 175 ss., p. 193 ss.

SZABO, George, “Second medical and non-medical indication – The relevance of

indications to novel subject-matter”, in Zehn Jahre Rechtsprechung der Groβen

Beschwerdekammer, Carl Heymanns Verlag, Köln, Berlin, Bonn, München, 1996, p. 11 ss.

THORLEY, Simon / MILLER, Richard / BURKILL, Guy / BIRSS, Colin / CAMPBELL, Douglas,

TERREL On the Law of Patents, 16ª edição, Sweet & Maxwell, London, 2006, p. 316;

TRABUCO, Cláudia, O Direito de Reprodução de Obras Literárias e Artísticas no

Ambiente Digital, Coimbra, Coimbra Editora, 2006, p. 728.

VICENTE, Moura, “Direito de Autor e Medidas Tecnológicas de Protecção”, in Direito

Comparado, Perspectivas Luso-Americanas, vol. I, Fundação Luso-Americana,

Coimbra, Almedina, 2006, p. 161 ss., p. 176;

World Intellectual Property Organization, WO/INF/29 September 1988, GATT

Document number MTN:GNG/NG11/W/24/Rev.1.

Page 55: Propriedade Intelectual nos Países de Língua Portuguesanit.uesc.br/.../files/livros/Propiedade-Intelectual... · propriedade intelectual e o uso da informação tecnológica contida
Page 56: Propriedade Intelectual nos Países de Língua Portuguesanit.uesc.br/.../files/livros/Propiedade-Intelectual... · propriedade intelectual e o uso da informação tecnológica contida

CAPÍTULO 2

PROPRIEDADE INTELECTUAL: RACIONAL DE UTILIZAÇÃO E DESAFIOS

FUTUROS EM PAÍSES DE LÍNGUA POR TUGUESA66

Manuel Mira Godinho 67

66 Baseado em palestra dada no seminário “Propriedade Intelectual Nos Países de Língua Portuguesa”, 30 de junho – 2 de julho

de 2008, Rio de Janeiro, Brasil.

67 Professor Catedrático no Instituto Superior de Economia e Gestão, Universidade Técnica de Lisboa Membro da UECE

([email protected])

Page 57: Propriedade Intelectual nos Países de Língua Portuguesanit.uesc.br/.../files/livros/Propiedade-Intelectual... · propriedade intelectual e o uso da informação tecnológica contida

56

INTRODUÇÃO

O presente estudo tem como objetivo rever os fundamentos do sistema de

propriedade intelectual e os desafi os suscitados pela utilização da propriedade

intelectual, do ponto de vista das estratégias privadas e das políticas públicas, em países

de língua portuguesa.

Em um primeiro momento, este trabalho concentra-se nos fundamentos teóricos

da propriedade intelectual, designadamente de duas das suas principais modalidades, as

patentes e as marcas. Em um segundo momento, o trabalho trata dos aspectos práticos

da utilização e de desenvolvimento do sistema de propriedade intelectual nas décadas

mais recentes. Esse duplo enfoque, teórico e prático, permite extrair um conjunto de

conclusões vitais para perspectivar os desafi os que a propriedade intelectual coloca em

países de língua portuguesa.

PROPRIEDADE INTELECTUAL

Entende-se por Propriedade Intelectual o conjunto de direitos privados, designados

por direitos de propriedade intelectual, concedidos pelo Estado, cuja função é proteger

criações intelectuais com potencial aplicação econômica.

Essas “criações intelectuais” são bens intangíveis, obtidos por meio de atividades

organizadas que envolvem esforço e criatividade. O produto dessas atividades é, em

primeiro lugar, conhecimento novo ou substancialmente distinto de conhecimento

previamente existente. Esse conhecimento é posteriormente materializado ou surge

associado a obras, processos ou artefatos que se destinam a responder a necessidades

econômicas e sociais.

Os “direitos de propriedade intelectual” são concedidos pelo Estado a indivíduos

ou organizações e, como tais, constituem uma intervenção do Estado na economia. Os

agentes privados procuram benefi ciar-se da proteção atribuída por esses direitos, afi m

de obter compensação pelo esforço realizado e pela criatividade existente nas suas obras

intelectuais. Mesmo quando é possível solicitar esses direitos simultaneamente para

diversos países, a respectiva legitimação ocorre geralmente no âmbito individual de cada

país. As principais modalidades de direitos de propriedade intelectual são as patentes, as

marcas comerciais, os desenhos ou modelos industriais e os direitos de autor.

O principal argumento subjacente aos direitos de propriedade intelectual é que,

na ausência da sua concessão, o potencial de oferta de novas criações intelectuais

com interesse econômico seria defi citário. De acordo com essa linha de argumentação,

esses direitos são necessários para que os indivíduos e organizações se empenhem na

produção de criações intelectuais. Concretamente, argumenta-se que é a possibilidade de

Page 58: Propriedade Intelectual nos Países de Língua Portuguesanit.uesc.br/.../files/livros/Propiedade-Intelectual... · propriedade intelectual e o uso da informação tecnológica contida

57

obtenção de condições de monopólio, por via da concessão dos direitos de propriedade

intelectual, que permite aos agentes criativos recuperar de forma compensatória os

investimentos realizados na produção das suas obras intelectuais.

FUNDAMENTAÇÃO ECONÔMICA DA CONCESSÃO DE PATENTES PARA INVENÇÕES

TECNOLÓGICAS

O argumento referido no parágrafo precedente foi formalizado pela teoria

econômica, para o caso particular das patentes, há cerca de cinco décadas. O que os

economistas afi rmaram foi que na ausência de patentes se verifi caria uma “falha de

mercado”, isto é, o mercado a atuar por si só, livremente, não suscitaria uma oferta

de novos conhecimentos tecnológicos correspondente à quantidade socialmente

desejável (ARROW, 1962).

Essa oferta defi citária de conhecimentos verifi car-se-ia porque, na ausência da

proteção atribuída pelas patentes, os imitadores teriam acesso sem restrições aos novos

conhecimentos, podendo dessa forma usá-los abusivamente para fi ns comerciais

próprios. A falha de mercado verifi car-se-ia porque, na ausência da proteção concedida

pela patente, nenhum agente econômico individual é incentivado a investir em pesquisa,

dada a assimetria esperada entre os recursos investidos na invenção (privados) e o

retorno desse investimento (socializado por via da exploração partilhada da inovação

com os imitadores).

Um primeiro corolário dessa argumentação é que é legítima e desejável a

intervenção do Estado na economia mediante a atribuição de direitos privados, para

permitir que a oferta de novos conhecimentos com aplicação econômica se situe no nível

socialmente desejável. É a existência de patentes que cria a envolvente apropriada para

o agente criativo ter a percepção de que poderá compensar de forma adequada o seu

esforço. Um segundo corolário é que, no caso de novos conhecimentos sem aplicação

econômica imediata, mas ainda assim com interesse para a sociedade no longo prazo,

o Estado deve (em alternativa à atribuição de patentes) subsidiar a produção desses

conhecimentos (NELSON, 1959).

Esses dois corolários constituem a fundamentação econômica de duas instituições

centrais nas atuais economias capitalistas: o sistema de patentes, por um lado, que estimula

o desenvolvimento de conhecimentos tecnológicos, e o sistema de conselhos de pesquisa,

por outro lado, que fi nanciam o desenvolvimento de conhecimentos científi cos.

Arrow (1962) reconhece, no seu trabalho pioneiro, que, apesar de ter vantagens,

o sistema de patentes é gerador de uma situação subótima em termos econômicos.

Essa situação decorre de as patentes criarem um monopólio que restringe a difusão

da inovação. Porém, essa restrição da difusão é limitada temporalmente (depois de

20 anos, o conteúdo da patente “cai” no domínio público) e é compensada pelo fato

Page 59: Propriedade Intelectual nos Países de Língua Portuguesanit.uesc.br/.../files/livros/Propiedade-Intelectual... · propriedade intelectual e o uso da informação tecnológica contida

58

de o conhecimento subjacente à patente ser necessariamente publicado em forma

impressa no momento de concessão da patente. O monopólio que é criado, sendo uma

circunstância por natureza indesejável, incide apenas na exploração para fi ns comerciais

da inovação. Porém, com a publicação do conteúdo da patente, o novo conhecimento

econômico fi ca automaticamente disponível para outros agentes inovadores se

poderem nele inspirar e assim realizar novos avanços tecnológicos.

Acresce que Arrow reconhece que, apesar de subótima, a situação criada pelas

patentes é claramente preferível à possibilidade de o mercado ser deixado a atuar

livremente, dado que, nesse caso, se correria o risco de os agentes inovadores não

investirem no desenvolvimento de novas tecnologias por não percepcionarem

incentivos para realizar esforços criativos. Foi nesse contexto de análise que Arrow

analisou outras alternativas ao sistema de patentes, designadamente a atribuição de

prêmios, mas concluiu, porém, serem inoperacionais essas alternativas.

Na sequência do trabalho de Arrow (1962), desenvolveu-se uma signifi cativa linha

de pesquisa sobre a “análise econômica de patentes”. A questão fundamental dessa

linha de pesquisa foi saber se o sistema de patentes, tal como ele existe atualmente, se

encontra devidamente calibrado para equilibrar as necessidades contraditórias de oferta

de proteção, necessária para estimular a inovação, e de permitir um amplo acesso dos

utilizadores aos benefícios das inovações, necessário para maximizar o bem-estar social.

Em termos sintéticos, essa questão consubstancia-se no problema da intensidade

de proteção do sistema de patentes, sendo essa intensidade controlada por três

parâmetros fundamentais (GODINHO, 2000). O primeiro desses parâmetros é a “extensão

da patente”, ou seja, o tempo de duração da proteção. Esse assunto foi discutido por

Nordhaus (1969, 1972) e Scherer (1972). O segundo parâmetro é a “largura da patente”

e tem a ver com a maior ou menor facilidade de acesso a novas patentes por parte

de invenções relativamente semelhantes a outras já patenteadas. Essa temática foi

inicialmente investigada por Klemperer (1990), no âmbito de um modelo dedicado à

análise do grau de diferenciação entre invenções patenteadas e outras candidatas à

obtenção de novas patentes. O terceiro parâmetro é a “amplitude” do sistema de patentes,

problemática relativa à extensão de áreas técnicas abrangidas pelo sistema de patentes.

As discussões recentes sobre a patenteabilidade do software, de organismos vivos ou

dos chamados métodos de negócio, têm precisamente a ver com essa dimensão da

“amplitude” do sistema de patentes.

Como se verá adiante, a discussão econômica sobre patentes progrediu, nas

últimas décadas, da temática da “calibração” ótima, para questões mais amplas que têm

a ver com a própria natureza da instituição “sistema de patentes”, tendo em conta a sua

evolução histórica e a forma como se estruturou em alguns países a partir de meados

do século XIX.

Page 60: Propriedade Intelectual nos Países de Língua Portuguesanit.uesc.br/.../files/livros/Propiedade-Intelectual... · propriedade intelectual e o uso da informação tecnológica contida

59

FUNDAMENTAÇÃO ECONÔMICA DA CONCESSÃO DE REGISTROS DE MARCAS

COMERCIAIS

As marcas comerciais são sinais distintivos que se destinam a identifi car bens e

serviços fornecidos por um determinado indivíduo ou empresa. Em contraste com

as patentes, que têm uma duração limitada no tempo, as marcas comerciais não têm

limitação temporal, desde que delas seja feito um bom uso e sejam pagas taxas de

manutenção ao Estado.

Também em contraste com as patentes, as marcas comerciais não se benefi ciam

de uma fundamentação teórica muito detalhada da ciência econômica. Em um dos

poucos trabalhos existentes sobre essa matéria, Economides (1987) propõe uma

análise custo-benefício para o investimento em marcas. A ideia, simples, é que uma

empresa investirá em uma marca se o valor esperado do retorno, dado pelo produto

da probabilidade de registro da marca vezes o fl uxo de rendimentos que ela permitirá

obter, exceder o somatório do custo de oportunidade de requerer o registro da marca e

do valor atualizado das taxas de manutenção pagas ao Estado.

Economides (1987) refere que as marcas comerciais são essenciais para garantir

uma alocação efi ciente de produtos nos mercados, devido ao fato de facilitarem a

escolha dos consumidores em contextos, como os existentes nas economias atuais,

de grande variedade de tipos e qualidade dos produtos. Porém, esse autor reconhece

igualmente que o potencial de monopólio existente nessa modalidade de propriedade

intelectual pode provocar inefi ciências e distorções na alocação de recursos, sendo que

os benefícios informacionais de que os consumidores dispõem são prejudicados por

custos decorrentes de barreiras à entrada no mercado, impostas a potenciais novos

concorrentes.

A conjectura a propósito das marcas comerciais desenvolvida por Mendonça,

Pereira e Godinho (2004), é que o fl uxo de novas marcas que solicitam registro pode ser

observado como um indicador de inovação. Naturalmente, nem todas as novas marcas

podem ser observadas como destinadas a proteger inovações importantes. Sabe-se,

designadamente, que é frequente serem pedidas marcas para produtos que não são

substancialmente distintos de outros já existentes no mercado. Porém, admite-se que

essa seja uma situação relativamente minoritária. Uma empresa apenas terá capacidade

de recuperar o investimento associado a uma marca, materializado em publicidade para

obtenção de notoriedade, taxas de registro e de manutenção, etc., se o produto ao qual

a marca é associada dispuser de um signifi cativo grau de diferenciação e vantagens em

face dos produtos dos concorrentes.

Page 61: Propriedade Intelectual nos Países de Língua Portuguesanit.uesc.br/.../files/livros/Propiedade-Intelectual... · propriedade intelectual e o uso da informação tecnológica contida

60

A UTILIZAÇÃO PRÁTICA DAS PATENTES

Em um trabalho pioneiro, resultante de uma pesquisa realizada em meados da

década de 1980, Levin et al. (1987) demonstram que um grande número de setores

de atividade dão prioridade a outros mecanismos de proteção da inovação que não

as patentes. Concretamente, de acordo com o tipo de tecnologia empregada e as

características do mercado em que atuam, é dada preferência ao segredo industrial, à

reputação comercial ou à liderança sistemática em face dos rivais. A importância desses

mecanismos alternativos foi posteriormente confi rmada pelo estudo de Cohen et al.

(2000) que evidencia o uso complementar de vários meios de proteção, entre os quais

se contam as patentes.

Oferecendo um panorama realista dos meios de proteção que as empresas

inovadoras empregam, esses estudos contribuíram para desmistifi car, de forma muito

incisiva, a importância das patentes enquanto mecanismo único para proteger inovações.

Esses estudos evidenciam uma signifi cativa variância intersetorial no uso das patentes

e na importância que a elas se atribui, para além do fato de que, na maior parte dos

setores de atividade, dá-se prioridade a mecanismos alternativos de proteção. Em suma,

a perspectiva aberta por esses estudos contribuiu para desmistifi car a centralidade do

sistema de patentes.

Por outro lado, estudos mais recentes têm argumentado que muitas das patentes

em vigor não se destinam a proteger a inovação. Um maior recurso a patentes com

pouco valor tecnológico ou com pouco potencial de aplicação prática, verifi cado nos

últimos anos, decorre de táticas premeditadas que visam a estabelecer vastos portfolios

de ativos intangíveis. Esse tipo de estratégia destina-se a suscitar efeitos de reputação

e valorização em bolsa, a criar muros protetores em torno de áreas tecnológicas vitais

para a empresa, a oferecer moeda de troca quando há acusações comprovadas de

infração de direitos de propriedade intelectual de terceiros, ou, ainda, a constituir base

de licenciamento cruzado de tecnologias complementares (COHEN et al., 2000).

Esse tipo de utilização estratégica de patentes, realizada em articulação com o

emprego de outras modalidades de propriedade intelectual, tem refl exo na literatura

acadêmica que se desenvolveu sobre corridas pela patente e outras abordagens

baseadas no instrumental de teoria dos jogos, de que o trabalho de Scherer (1967) é um

precursor longínquo.

Para todos os efeitos, é claro que as motivações que atualmente conduzem muitas

empresas a procurar obter patentes estão longe da função originalmente reconhecida

à atribuição destas por parte dos Estados nacionais, que era, recorde-se, o estímulo à

invenção e o favorecimento da subsequente exploração da inovação no mercado.

Referenciando o caso americano, Jaff e e Lerner (2004) sugerem que um recurso

crescente a patentes sem relevância econômica e social tem sido estimulado por

Page 62: Propriedade Intelectual nos Países de Língua Portuguesanit.uesc.br/.../files/livros/Propiedade-Intelectual... · propriedade intelectual e o uso da informação tecnológica contida

61

práticas forenses que privilegiam excessivamente os direitos dos detentores de patentes

e por uma diminuição dos limiares de exigência por parte do instituto de patentes dos

Estados Unidos (USPTO).

A prática de estratégias agressivas e o uso excessivo de patentes estará, inclusive,

a conduzir a uma situação em que o benefício econômico líquido das patentes é

atualmente negativo, em virtude de os custos de contencioso estarem a aumentar

exponencialmente (BESSEN; MEURER, 2008). Esse resultado foi verifi cado por um estudo

detalhado dos proveitos e custos de contencioso com patentes entre 1984 e 1999 de

empresas cotadas em bolsa nos Estados Unidos, verifi cando-se para a totalidade dos

setores de atividade, com exceção da indústria farmacêutica. Os custos foram estimados

por esse estudo tomando em conta os honorários dos advogados e a degradação que

ocorre no valor das respectivas ações cada vez que as empresas têm de ir a tribunal por

casos associados a patentes. Bessen e Meurer (2008) argumentam que as patentes não

dispõem, com exceção de em áreas como a da química, da capacidade de identifi car

adequadamente as fronteiras do objeto de proteção, o que suscita a possibilidade de

contestação em tribunal. Nesse sentido, esses autores propõem um aproximar das

patentes aos direitos de autor, com a propriedade a incidir mais no objeto e menos no

conhecimento.

O agravamento do panorama de uso de patentes em anos recentes nos Estados

Unidos é tal que, recentemente, têm-se verifi cado apelos, não apenas provenientes de

perspectivas radicais, mas inclusive de economistas mainstream, para a abolição pura

e simples do sistema de patentes (BOLDRIN; LEVINE, 2008). Esses autores afi rmam que

o monopólio proporcionado pelas patentes (e também pelo direito de autor) está a

provocar mais prejuízos que benefícios.

ALTERNATIVAS ÀS MODALIDADES INSTITUCIONALIZADAS DE PROPRIEDADE

INTELECTUAL

Esse recente questionar do sistema de patentes, quanto à sua utilidade prática e

quantos a vários aspectos perniciosos que decorrem da sua forma de funcionamento,

tem levado a análise acadêmica a considerar ativamente não só possíveis linhas de

reforma do sistema a serem adotadas, como também sistemas alternativos que possam

substituir ou complementar o sistema de patentes.

Curiosamente, no seu trabalho de 1962, Arrow comparou o sistema de patentes

a outros sistemas alternativos de estímulo à inovação, ventilando três situações

(analisadas em detalhe in Wright, 1983). A primeira dessas situações tem uma

natureza essencialmente teórica, envolvendo a consideração de um “agente-central”

(provavelmente, uma versão ampliada dos atuais institutos de patentes) que avaliaria em

Page 63: Propriedade Intelectual nos Países de Língua Portuguesanit.uesc.br/.../files/livros/Propiedade-Intelectual... · propriedade intelectual e o uso da informação tecnológica contida

62

termos econômicos cada invenção e proporia um “preço justo” a pagar ao inventor pela

respectiva compra, disponibilizando-a posteriormente para uso livre. A segunda situação

envolve a existência de contratos entre o Estado e inventores profi ssionais (empresas de

pesquisa, etc.), para a produção de invenções em áreas de carência pré-identifi cadas.

Finalmente, o terceiro caso baseia-se no anúncio de prêmios, em alternativa a contratos,

a atribuir nas referidas áreas carentes de invenções. Arrow (1962) concluiu, com base em

critérios de natureza prática, pela vantagem do sistema de patentes.

Porém, de forma interessante, passadas mais de quatro décadas do seu trabalho, a

terceira alternativa por ele ventilada tem vindo a atrair a atenção, designadamente por,

em vários casos signifi cativos recentes, se ter retornado ao sistema de prêmios que tinha

já, historicamente, estado associado a algumas invenções de grande importância, como

o cronômetro para medida de longitude em alto mar ou os recipientes para conservar

alimentos. Na verdade, em anos recentes têm sido instituídos prêmios que variam entre

signifi cativas somas em dinheiro, como o atribuído ao primeiro voo privado suborbital

(Ansari X-Prize, 10 milhões de dólares), até a prêmios de menor dimensão pecuniária,

como os atribuídos por comunidades na Internet para a resolução de pequenos

problemas de software (SAAR, 2006; STIGLITZ, 2006).

Tão interessante como a recuperação do sistema de prêmios é, de um ponto de

vista histórico, o retorno a mecanismos de desenvolvimento cumulativo da inovação

por comunidades de inovadores. Nuvolari (2001) descreve precisamente a existência de

comunidades desse tipo, durante a revolução industrial na Inglaterra.

Os regimes designados por “open source” e “software livre” correspondem,

atualmente, a versões atuais dessas comunidades. Esses regimes, apesar de diferenciados

entre si, baseiam-se em mecanismos de desenvolvimento partilhado da inovação que

reconhecem haver vantagem em as inovações se manterem acessíveis à comunidade

de inovadores. Dessa forma, os múltiplos inovadores podem introduzir, de forma

cumulativa, melhorias incrementais nas respectivas áreas tecnológicas. A manutenção

dos conhecimentos em regime “aberto” contribui assim, de acordo com os apologistas

dessas metodologias, para um progresso tecnológico global mais rápido que o possível

no contexto do sistema de patentes.

Nesses regimes, a partilha dos conhecimentos não é vista como contraditória da

apropriação provada de benefícios. Essa apropriação não decorre, porém, da patente,

mas essencialmente da reputação que o inovador adquire ao produzir inovações

sucessivas em uma determinada área tecnológica. É o reconhecimento da competência

tecnológica do inovador que contribui para que os seus serviços sejam requisitados por

uma base de clientes progressivamente mais alargada.

Page 64: Propriedade Intelectual nos Países de Língua Portuguesanit.uesc.br/.../files/livros/Propiedade-Intelectual... · propriedade intelectual e o uso da informação tecnológica contida

63

QUE DIZEM AS ESTATÍSTICAS

De forma algo paradoxal, apesar da insatisfação crescente com o funcionamento

do sistema de patentes e da tentativa de explorar regimes alternativos de incentivo ao

desenvolvimento tecnológico, o número total de patentes solicitadas e concedidas, à

escala global, tem vindo a aumentar signifi cativamente nas últimas décadas. Na verdade,

os dados da Figura 1 revelam essa tendência. Desde 1991, o número de pedidos de

patentes realizados à escala mundial praticamente duplicou, atingindo em 2006 um

valor de 1,7 milhões de pedidos.

Há a referir que esse número diz respeito a atos individuais de pedidos e não a

pedidos de direitos de proteção em diferentes países. Essa distinção tem a ver com o

fato de um pedido individual de uma “patente internacional” (patentes PCT), ou de uma

patente europeia (patentes concedidas pelo EPO), poder indicar em simultâneo até

algumas dezenas de países em que procura proteção. Tendo em conta essa distinção,

estima-se que existiam em 2006 cerca de 5,6 milhões de pedidos de direitos de proteção

por patente à escala global (TRILATERAL, 2007).

O muito signifi cativo aumento de pedidos de patentes registrados no período mais

recente, identifi cado por Granstrand (1999) como correspondendo à entrada da economia

mundial em uma “época pró-patente”, deve-se fundamentalmente a quatro tipos de razões:

(i) desenvolvimento de novas áreas tecnológicas com grande propensão a patentear

(biotecnologia, tecnologias de informação, nanotecnologia...); (ii) desenvolvimento de

um clima de proteção mais favorável; (iii) utilização estratégica de patentes por parte de

grandes companhias à escala global; (iv) legislação que estimulou a entrada de novos

atores nas atividades de obtenção de patentes (designadamente universidades).

Figura 1 - Número total de pedidos de patentes, 1985-2006

Fonte: WIPO Statistics Database, 2008

2,64,8

1,7 0,4

-1,1

-10,9

6,2

0,1 0,9

10,1

2,66,4

3,35,6

8,76,0

-0,7

2,95,2

8,34,9

0

200.000

400.000

600.000

800.000

1.000.000

1.200.000

1.400.000

1.600.000

1.800.000

19

85

19

86

19

87

19

88

19

89

19

90

19

91

19

92

19

93

19

94

19

95

19

96

19

97

19

98

19

99

20

00

20

01

20

02

20

03

20

04

20

05

20

06

me

ro d

e P

ed

ido

s

Taxa de Crescimento (%) Pedidos de Patentes

Page 65: Propriedade Intelectual nos Países de Língua Portuguesanit.uesc.br/.../files/livros/Propiedade-Intelectual... · propriedade intelectual e o uso da informação tecnológica contida

64

A razão da fl utuação registrada no gráfi co da Figura 1 entre 1985 e 1995 prende-

se, fundamentalmente, ao colapso da União Soviética, que no seu auge gerava mais

de 200 mil patentes. Como é visível na Figura 2, o número de pedidos com origem na

Federação Russa é agora bastante inferior, situando-se abaixo dos 50 mil pedidos/ano.

A Figura 2, apresentando informação para um período de 124 anos, de 1883 a

2006, mostra que atualmente os principais institutos de patentes à escala mundial, em

termos de recepção de pedidos de patentes, são o norte-americano e o japonês, ambos

com mais de 400 mil pedidos/ano em 2006. Os outros grandes institutos são, neste

momento, e por essa ordem, em termos de volume de pedidos processados em 2006,

o chinês, o sul coreano e o europeu (EPO).

Há a notar que os dados constantes dos gráfi cos da Figura 2, relativos aos principais

países em termos de recepção de pedidos de patentes, dizem respeito ao somatório

de pedidos de entidades residentes com os de entidades não-residentes. Para todos os

efeitos, a evolução recente dos pedidos na Coreia do Sul e, em particular, na China, é

verdadeiramente notável.

Figura 2 - Pedidos de patentes nos principais institutos de patentes: 1883-2006Fonte: WIPO Statistics Database, 2008

Figura 2a

0

150.000

300.000

450.000

1883 1893 1903 1913 1923 1933 1943 1953 1963 1973 1983 1993 2003

Núm

ero

de P

edid

os

E UA JapãoChina República da CoreiaEuropean Patent Office União Soviética

Page 66: Propriedade Intelectual nos Países de Língua Portuguesanit.uesc.br/.../files/livros/Propiedade-Intelectual... · propriedade intelectual e o uso da informação tecnológica contida

65

Figura 2b

0

50.000

100.000

150.000

200.000

Núm

ero

de P

edid

os

Alemanha CanadáFederação Russa AustráliaReino Unido França

Nas Figuras 3 e 4, a ótica de observação é distinta, estando os dados contabilizados

em ambas as fi guras em termos de pedidos originários de diferentes países. Na primeira

dessas duas fi guras, tem-se a distribuição percentual dos pedidos de patentes, por países,

em 2006. É visível que o Japão e os E.U.A. lideram a hierarquia, concentrando esses dois

países mais de metade dos pedidos de patentes à escala global (com respectivamente,

29,1% e 22,1%). Os países da União Europeia, no seu conjunto, detêm também uma

proporção considerável da procura global de patentes. Porém, individualmente, a

Coreia do Sul surge em terceiro lugar, originando quase 10% dos pedidos globais, vindo

a China em quinto, logo depois da Alemanha, com 7,3% dos pedidos em 2006. Há a

notar que, para além desse top 10 constante na Figura 3, o grupo designado por “outros”

concentra uma proporção de apenas 14,8% dos pedidos globais.

Figura 3 - Distribuição percentual dos pedidos de patentes, por países, em 2006Fonte: WIPO Statistics Database, 2008

EUA; 22,10%

França ; 2,50% República da Coreia; 9,80%

Federação Russa; 1,60%

Alemanha; 7,40%

Japão ; 29,10%

Suiça; 1,40%

China ; 7,30%Outros ; 14,80%

Holanda ; 1,60%

Reino Unido ; 2,30%

Outros: 14,80%

Holanda: 1,60%

Reino Unido: 2,30%

EUA: 22,10%

França: 2,50% República da Coreia: 9,80% Alemanha: 7,40%

Federação Russa: 2,50%

Japão: 29,10%

Suíça: 1,40%

China: 7,30%

Page 67: Propriedade Intelectual nos Países de Língua Portuguesanit.uesc.br/.../files/livros/Propiedade-Intelectual... · propriedade intelectual e o uso da informação tecnológica contida

66

Os dois gráfi cos que a Figura 4 contém também apresentam a informação em

termos de pedidos originários de diferentes países, mas com os dados processados

mediante um indicador que pondera o número de pedidos de patentes por milhão de

habitantes. É visível a enorme vantagem do Japão e da Coreia do Sul, contando ambos

os países com mais de 2.500 pedidos por milhão de habitantes. Note-se que Portugal

surge com um valor, para esse indicador, inferior a 20 pedidos por milhão de habitantes,

um pouco abaixo do Brasil.

Figura 4 - Pedidos de patentes de residentes, por milhão de habitantes, 2000 e 2006

Fonte: WIPO Statistics Database and World Bank (World Development Indicators), 2008

Figura 4a

3200

2400

1600

800

0

2006 2000

Japã

o

Cor

eia

do S

ul

EUA

Alem

anha

Nov

a Ze

lând

ia

Finl

ândi

a

Rei

no U

nido

Din

amar

ca

Áust

ria

Suéc

ia

Nor

uega

Fran

ça

Suíç

a

Irela

nda

Fede

raçã

oR

ussa

Can

adá

Islâ

ndia

Eslo

veni

a

Sing

apur

a

Aust

rália

Hol

anda

Caz

aqui

stão

Chi

na

Pedi

dos

de re

side

ntes

por

milh

ão d

e ha

bita

ntes - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - -

- - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - -

- - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - -

- - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - -

Figura 4b

- - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - -

- - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - -

- - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - -

- - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - -

Ucr

ânia

Espa

nha

Cro

ácia

Hun

gria

Rep

úblic

a C

heca

Poló

nia

Luxe

mbu

rgo

Gré

cia

Litu

ânia

Bélg

ica

Isra

el

Eslo

váqu

ia

Chi

pre

Estó

nia

Bélg

ica

Hon

g Ko

ng

Bras

il

Chi

le

Portu

gal

Turq

uia

Taiâ

ndia

Síria

Méx

ico

Aráb

ia S

audi

ta

Índi

a

2006 2000

60

30

0

90

120

Pedi

dos

de re

side

ntes

por

milh

ão d

e ha

bita

ntes

Page 68: Propriedade Intelectual nos Países de Língua Portuguesanit.uesc.br/.../files/livros/Propiedade-Intelectual... · propriedade intelectual e o uso da informação tecnológica contida

67

Os Quadros 1 e 2 fornecem informação relativamente a um subconjunto dos

dados analisados nos parágrafos precedentes, concentrando-se nas chamadas

“patentes internacionais” (ou patentes PCT, de Patent Cooperation Treaty). Esse tipo de

patente, que começou a ser concedido em 1978, permite a um residente em um dos

países signatários do acordo PCT solicitar, por meio de um único pedido, uma proteção

múltipla nos diferentes países signatários. Tipicamente, recorrem a esse tipo de pedido

grandes companhias que atuam simultaneamente em diferentes mercados.

É visível, por meio do Quadro 1, o predomínio nos pedidos de patentes PCT dos

mesmos países assinalados anteriormente, os E.U.A. e o Japão, mas surgindo agora

a Alemanha a uma menor distância relativa. Tendo em conta os dados para 2008, os

pedidos de patentes PCT oriundos da China surgem já em 5º lugar, logo depois da

Coreia do Sul e da França. A assinalável evolução da China nos anos 2000 nessa

matéria é coroada, simbolicamente, pelo fato de uma companhia desse país (a Huawei

Technologies CO., Ltd.) surgir, em 2008, como o principal requerente global de pedidos

de patente PCT (ver Quadro 2).

Referenciando os casos do Brasil e Portugal, o número de pedidos de patentes PCT

oriundos de residentes em cada um desses países foi, em 2008, de 470 e 100, em face

de valores em 2000 de, respectivamente, 178 e 21. Essa evolução indica um crescimento

mais rápido que o registrado pelo número total de pedidos PCT entre 2000 e 2008, mas

indica igualmente existir, em ambos os casos, um longo caminho a percorrer para se

obter a convergência com as economias que lideram a utilização desse tipo de patente.

Quadro 1 - Evolução dos pedidos PCT, principais países Fonte: WIPO Statistics Database, abril 2009

2000 2001 2002 2003 2004 2005 2006 2007 2008

Total 93.238 108.230 110.393 115.204 122.632 136.752 149.657 159.921 161.982

Canadá 1801 2114 2260 2271 2104 2319 2572 2843 2886

China 784 1731 1018 1295 1706 2503 3927 5440 6094

França 4138 4707 5090 5171 5184 5748 6260 6559 6505

Alemanha 12582 14031 14326 14662 15214 15984 16732 17816 18669

Itália 1393 1623 1982 2163 2189 2348 2706 2944 2877

Japão 9567 11904 14063 17414 20264 24868 27024 27754 28783

Holanda 2928 3410 3977 4479 4284 4500 4544 4373 4309

Coreia do Sul 1580 2324 2520 2949 3558 4689 5946 7060 7910

Suécia 3091 3421 2990 2612 2851 2883 3333 3656 4114

Suíça 1989 2349 2755 2861 2899 3291 3612 3796 3849

CONTINUA

Page 69: Propriedade Intelectual nos Países de Língua Portuguesanit.uesc.br/.../files/livros/Propiedade-Intelectual... · propriedade intelectual e o uso da informação tecnológica contida

68

Reino Unido 4795 5482 5376 5206 5027 5085 5085 5526 5492

E.U.A. 38007 43054 41296 41033 43352 46830 51246 54025 51351

Brasil 178 173 201 219 278 270 333 397 470

Portugal 21 42 34 36 49 55 68 92 100

Quadro 2 - Principais requerentes de patentes PCT em 2008

Fonte: WIPO Statistics Database, 2009

País de OrigemPedidos PCT

publicados

HUAWEI TECHNOLOGIES CO., LTD. China 1.737

PANASONIC CORPORATION Japão 1.729

KONINKLIJKE PHILIPS ELECTRONICS N.V. Holanda 1.551

TOYOTA JIDOSHA KABUSHIKI KAISHA Japão 1.364

ROBERT BOSCH GMBH Alemanha 1.273

SIEMENS AKTIENGESELLSCHAFT Alemanha 1.089

NOKIA CORPORATION Finlândia 1.005

LG ELECTRONICS INC. Coreia 992

TELEFONAB LM ERICSSON (PUBL) Suécia 984

FUJITSU LIMITED Japão 983

Para fi nalizar esta seção, em que a análise se concentrou fundamentalmente na

procura de patentes, faz sentido referenciar a procura pelo registro de marcas comerciais

à escala global. Para essa modalidade, a Figura 5 ilustra um processo de crescimento

idêntico ao verifi cado para as patentes, mas porventura mais pronunciado ainda. Na

verdade, em 1985 verifi cava-se menos de 1 milhão de pedidos de marcas (953.190);

em 2007, esse valor tinha bastante mais que triplicado (para 3.432.441). Desse total de

pedidos de registro de marcas em 2007, estima-se que 23% são realizados na China,

seguindo-se a esse país os Estados Unidos (8,9%), o Japão (4,2%) e, novamente, a

Coreia do Sul (4,1%). Para além da liderança da China, o outro dado a reter é o fato

de nessa modalidade surgirem na hierarquia, seguidamente, outros dois países em

desenvolvimento, a Índia (com 3,3%) e o Brasil (com 3,1%).

CONTINUAÇÃO

Page 70: Propriedade Intelectual nos Países de Língua Portuguesanit.uesc.br/.../files/livros/Propiedade-Intelectual... · propriedade intelectual e o uso da informação tecnológica contida

69

O Quadro 3 fornece informação em uma ótica um pouco diferente, pois registra

apenas os pedidos de marcas nacionais feitos no próprio país pelos respectivos

residentes. Esse quadro permite verifi car que as disparidades entre alguns países de

desenvolvimento intermédio e os mais desenvolvidos é bastante menor nesse indicador

que no indicador correspondente de patentes. Os valores identifi cados nesse quadro

revelam, igualmente, uma intensidade de uso marcas comerciais em Portugal e Macau

bastante elevada.

Figura 5 – Pedidos totais de marcas, 1985-2007

Fonte: WIPO Statistics Database, 2008

Pedidos Totais de Marcas

750.0001.250.0001.750.0002.250.0002.750.0003.250.0003.750.000

1984 1988 1992 1996 2000 2004 2008

Quadro 3 – Pedidos de marcas nacionais por residentes,

2006, nos principais países e em territórios de língua portuguesa

Fontes: WIPO Statistics Database, 2008; Human Development Report 2007/8

PedidosPedidos por milhão de

habitantes

China 669.276 509

E.U.A. 233.311 778

Japão 111.754 874

Coreia do Sul 105.544 2203

Brasil 76.827 411

Índia (2005) 73.308 65

Alemanha 68.810 832

CONTINUA

Page 71: Propriedade Intelectual nos Países de Língua Portuguesanit.uesc.br/.../files/livros/Propiedade-Intelectual... · propriedade intelectual e o uso da informação tecnológica contida

70

França 66.501 1090

Argentina 60.777 1570

México 45.161 433

Macau 531 1062

Moçambique 553 27

Portugal 11.902 1134

A ECONOMIA POLÍTICA DA PROPRIEDADE INTELECTUAL

As instituições da propriedade intelectual surgiram historicamente, em primeiro

lugar, na Itália do Renascimento e se desenvolveram, posteriormente, na Inglaterra

da Revolução Industrial, assumindo nesse país, durante o século XIX, boa parte das

características que marcam o atual sistema de propriedade intelectual. Durante as últimas

décadas do século XX esse sistema evoluiu para formas de proteção mais intensas, por

via de extensão de prazos de proteção, de um sistema legal e jurídico robustecido, e por

uma articulação crescente da propriedade intelectual com o comércio internacional,

materializada fundamentalmente com o acordo TRIPS. Simultaneamente, os níveis

de utilização das principais modalidades de propriedade intelectual têm aumentado

de forma assinalável nos últimos anos. Devido a esse conjunto de desenvolvimentos,

Granstrand (1999) argumentou que a economia mundial entrou em um período que

ele designou por “capitalismo intelectual”.

Como se verifi ca ao longo deste trabalho, a propriedade intelectual é uma temática

altamente politizada. O reconhecimento da existência de uma “falha de mercado”

signifi ca que se aceita, de forma explícita e racionalizada, a intervenção do Estado, por

via da política de atribuição de direitos de propriedade intelectual. Na análise que se

seguiu a Arrow (1962), reconheceu-se que o Estado pode, de forma deliberada, gerir a

intensidade de proteção atribuída, por via da extensão temporal, da largura da proteção

e da amplitude de áreas técnicas consideradas.

Em anos mais recentes, a análise acadêmica progrediu das questões de calibração

ótima do sistema existente para questões de relevância prática, mais substanciais. Essa

progressão verifi ca-se em consonância com a própria evolução da realidade, em que

se registra a recuperação de sistemas de prêmios e de comunidades de inovadores, a

par de uma contestação crescente, nos países em desenvolvimento mas também em

setores diversifi cados dos países desenvolvidos, do sistema de propriedade intelectual

institucionalizado.

A situação que se vive atualmente é, pois, a diversos títulos, paradoxal. Existe um

diagnóstico extenso dos problemas que afetam o sistema de propriedade intelectual,

CONTINUAÇÃO

Page 72: Propriedade Intelectual nos Países de Língua Portuguesanit.uesc.br/.../files/livros/Propiedade-Intelectual... · propriedade intelectual e o uso da informação tecnológica contida

71

mas verifi ca-se uma inércia institucional que entrava qualquer reforma profunda. A par

do fortalecimento da proteção e da utilização mais intensiva das modalidades existentes,

verifi cam-se experiências com mecanismos alternativos de incentivo à inovação, com

grande relevância prática.

Nesse quadro, impõe-se identifi car estratégias efi cazes no mundo de língua

portuguesa. Tais estratégias têm, naturalmente, de ter em conta a diversidade

de situações em termos de utilização relativa das diferentes modalidades, de

desenvolvimento socioeconômico e de enquadramento geopolítico dos diversos

territórios onde se fala português. Acresce que, mesmo no interior de cada um desses

territórios, há uma variância signifi cativa em termos de propensão a produzir criações

intelectuais e inovação tecnológica, sendo a esse respeito o caso mais notável o Brasil.

Essa diversidade de situações suscita, naturalmente, difi culdades na identifi cação de

uma agenda comum sistemática que possa congregar agentes públicos e privados em

todo o espaço lusófono. Existem, porém, alguns aspectos fundamentais nos quais pode

haver cooperação produtiva entre as partes.

A propriedade intelectual, além de altamente politizada, é atualmente uma

temática de natureza global. É desejável que, nesse quadro, atuando nas organizações

internacionais relevantes, incluindo a OMPI e a OMC, se procure identifi car uma agenda

mínima de reforma do sistema global de propriedade intelectual, de forma a reduzir os

custos de acesso e, uma vez dentro do sistema, os custos operacionais (incluindo-se

aqui os possíveis custos de litigação). A reforma de aspectos processuais é uma questão

de natureza jurídica complexa, mas na qual valerá a pena investir para caminhar para

uma utilização mais justa e equilibrada da propriedade intelectual.

Um outro aspecto relevante tem a ver com a imposição do português como uma

das línguas nucleares do sistema global de propriedade intelectual. A documentação

associada aos direitos de propriedade intelectual veicula informação técnica e comercial

de importância estratégica, pelo que a sua ampla disponibilização em língua portuguesa

pode atuar como um veículo importante de difusão de novos conhecimentos.

Finalmente, um domínio vital de atuação é o da partilha de recursos e conhecimentos

na educação e informação sobre propriedade intelectual. Para obter-se benefício do

sistema existente, seja pela absorção de informação ou pela obtenção de proteção, há

necessidade de um conhecimento do enquadramento jurídico, das modalidades e dos

aspectos técnicos associados ao seu emprego. Abrem-se aqui, pois, duas vertentes de

atuação importantes: a formação de quadros para os organismos que determinam as

políticas de propriedade intelectual e a gestão do sistema em cada um dos países; e a

formação de técnicos especializados em propriedade intelectual nas organizações que

produzem criações intelectuais com potencial aplicação econômica ou que pretendem

utilizar a informação constante do sistema global de propriedade intelectual.

Page 73: Propriedade Intelectual nos Países de Língua Portuguesanit.uesc.br/.../files/livros/Propiedade-Intelectual... · propriedade intelectual e o uso da informação tecnológica contida

72

REFERÊNCIAS

ARROW, K. Economic welfare and the allocation of economic resources for invention.

In: NATIONAL BUREAU OF ECONOMIC RESEARCH (Estados Unidos). The rate and

direction of inventive activity: Economic and social factors. [Cambridge], 1962. p.

609-652.

BOLDRIN, M.; LEVINE, D. Against intellectual monopoly. Cambridge: Cambridge

University Press, 2008.

COHEN, W. M.; NELSON, R. R.; WASH, J. Appropriability conditions and why fi rms

patent and why they do not in the American manufacturing sector. [S.l.: s.n.,

1996?]. Comunicação à Conferência da OCDE sobre “New S&T Indicators for the

Knowledge-Based Economy”, Paris, 19-21 junho, 1996.

ECONOMIDES, N. The economics of trademarks. TradeMark Register, [S.l.], v. 78, p.

523-539, 1987.

EUROPEAN PATENT OFFICE; JAPAN PATENT OFFICE; UNITED STATES PATENT AND

TRADEMARK OFFICE. Trilateral statistical report. Munich, Trilateral Offi ces, 2008.

GODINHO, M. Análise económica de patentes: apresentada para provas públicas de

agregação em economia. Lisboa: UTL/ ISEG, 2000.

GRANSTRAND, O. The economics and management of intellectual property:

Towards intellectual capitalism. Cheltenham: Edward Elgar, 1999.

JAFE, A; LERNER, J. Innovation and its discontents: How our broken patent system

is endangering innovation and progress, and what to do about It. Princeton: Princeton

University Press, 2004.

KLEMPERER, P. How broad should the scope of protection patents be? The RAND

Journal of Economics, Washington, DC, v. 21, n. 1, p. 113-130, 1990.

LEVIN, R. C. et al. Appropriating the returns from industrial research and development.

Brooking Papers on Economic Activity, Washington, DC, v. 3, p. 783-831, 1987.

MENDONÇA, S., PEREIRA, T., GODINHO, M. Trademarks as an Indicator of Innovation and

Industrial Change, Research Policy, [S.l.], v. 33, n. 9, p. 1385-1404, Nov. 2004.

NELSON, R. R. The simple economics of basic scientifc research. The Journal of

Political Economy, Chicago, v. 67, p. 297-306, Feb./Dec., 1959.

Page 74: Propriedade Intelectual nos Países de Língua Portuguesanit.uesc.br/.../files/livros/Propiedade-Intelectual... · propriedade intelectual e o uso da informação tecnológica contida

73

NORDHAUS, W. D. Invention, growth and welfare. Cambridge: MIT Press, 1969.

_____. The optimum life of a patent: reply. The American Economic Review,

Nashville, p. 428-431, 1972.

NUVOLARI, A. Collective invention during the British Industrial Revolution:

The case of the Cornish Pumping Engine. Copenhagen: DRUID, 2001. (DRUID working

paper, n. 01-05).

SAAR, J. Prizes: The Neglected Innovation Incentive. Aalborg: The European Inter-

University Association on Society, Science and Technology, 2006.

SCHERER, F. M. Research and development allocation under rivalry. Quarterly Journal

of Economics, Cambridge, v. 81, p. 359-394, 1967.

_____. Nordhaus’ theory of optimal patent life: a geometric reinterpretation. The

American Economic Review, Nashville, p. 422-427, 1972.

STIGLITZ, J. Scrooge and intellectual property rights. British Medical Journal,

London, v. 333, n. 7582, p. 1279-1280, Dec. 2006.

WRIGHT, B. D. The economics of invention incentives: patents, prizes, and research

contracts. The American Economic Review, Nashville, v. 73, n. 4, p. 691-707, 1983.

Page 75: Propriedade Intelectual nos Países de Língua Portuguesanit.uesc.br/.../files/livros/Propiedade-Intelectual... · propriedade intelectual e o uso da informação tecnológica contida
Page 76: Propriedade Intelectual nos Países de Língua Portuguesanit.uesc.br/.../files/livros/Propiedade-Intelectual... · propriedade intelectual e o uso da informação tecnológica contida

II

INOVAÇÃO, PROPRIEDADE INDUSTRIAL E ACESSO A

PRODUTOS DE SAÚDE

Page 77: Propriedade Intelectual nos Países de Língua Portuguesanit.uesc.br/.../files/livros/Propiedade-Intelectual... · propriedade intelectual e o uso da informação tecnológica contida
Page 78: Propriedade Intelectual nos Países de Língua Portuguesanit.uesc.br/.../files/livros/Propiedade-Intelectual... · propriedade intelectual e o uso da informação tecnológica contida

CAPÍTULO 3

PATENTES BIOTECNOLÓGICAS E O ACESSO A PRODUTOS DE SAÚDE –

UMA PERSPECTIVA EUROPEIA E LUSO-BRASILEIRA68

JOÃO PAULO F. REMÉDIO MARQUES69

68 Baseado em palestra dada no seminário “Propriedade Intelectual Nos Países de Língua Portuguesa”, 30 de junho – 2 de julho

de 2008, Rio de Janeiro, Brasil.

69 Professor da Faculdade de Direito de Coimbra (Portugal), Meste em Ciências Jurídico-Forenses, Doutor em Direito

(Propriedade Intelectual)

Page 79: Propriedade Intelectual nos Países de Língua Portuguesanit.uesc.br/.../files/livros/Propiedade-Intelectual... · propriedade intelectual e o uso da informação tecnológica contida

78

1. INTRODUÇÃO. AS PATENTES NO SETOR DA SAÚDE HUMANA

Ao iniciarmos este breve apontamento, há um ponto sobre o qual se faz mister

afi rmar uma primeva razão de ordem: as patentes biotecnológicas e, em geral, as patentes

aplicadas no setor da saúde humana não devem estar sujeitas à mesma atenção e,

logo, ao mesmíssimo regime jurídico das patentes relativas - digamos - a aspiradores,

máquinas de torrar o pão ou a espremedores de sucos. Isso porque as patentes

respeitantes a produtos, processos ou usos aplicados na prestação de cuidados de saúde

atinem à vida humana e ao bem-estar físico, psíquico e social das pessoas, valores não

exatamente assimiláveis aos valores mercadológicos dos produtos que incorporam as

invenções materializadas nas referidas máquinas.

Dado que às pessoas é reconhecido um núcleo infrangível de direitos fundamentais,

aí onde se incluem o direito à vida, o direito à saúde e o direito à autodeterminação (v.g.,

autodeterminação informativa, no que tange ao cumprimento do dever de informar

por ocasião da prestação do consentimento informado em matéria de administração

de cuidados de saúde), é justo e razoável impor, aos titulares das patentes aplicadas

no setor médico e farmacêutico, certos deveres de proteção e de atuação em função da

aplicação última das soluções técnicas sobre as quais gozam e exercem os direitos de

patente, quais sejam: a prevenção ou o restabelecimento do equilíbrio daquele bem-

estar. Isso não obstante esses titulares também serem inegavelmente titulares de

faculdades jurídicas de exercício negativo (ius prohibendi), por isso mesmo veiculadas

mediante autorizações e licenças contratuais.

Serve isso para afi rmar que devem ser proscritas todas as atividades materiais ou

jurídicas que, direta ou indiretamente:

Visem retardar a colocação de medicamentos genéricos no mercado após a •

caducidade da patente do medicamento de referência.

Visem impedir ou retardar injustifi cadamente a concessão de • licenças obrigatórias.

Conduzam à prática de condições • discriminatórias no acesso aos medicamentos

patenteados.

2. UMA VISÃO SOBRE AS PATENTES DE MEDICAMENTOS NOS PAÍSES DE EXPRESSÃO

DE LÍNGUA PORTUGUESA

A atividade econômica do fabrico e venda de medicamentos para uso humano

constitui um negócio que movimenta triliões de euros todos os anos.

Na Europa, as maiores empresas farmacêuticas têm a sua sede na Alemanha, no

Reino Unido, na França e na Suíça. Constata-se uma enorme concentração dessa atividade

Page 80: Propriedade Intelectual nos Países de Língua Portuguesanit.uesc.br/.../files/livros/Propiedade-Intelectual... · propriedade intelectual e o uso da informação tecnológica contida

79

econômica em um reduzido número de empresas societárias. Quer em Portugal, quer

no Brasil, há um conjunto de empresas menores, dotadas de capitais nacionais e,

não raras vezes, saídas dos meios universitários, que se envolveram na pesquisa e no

desenvolvimento de novos produtos, maxime no setor das biotecnologias.

De todo o jeito, a política legislativa portuguesa e brasileira em matéria de cuidados

de saúde é coincidente: sob a reserva do possível, fazer chegar a todas as pessoas os

cuidados de saúde, independentemente das possibilidades econômicas dos cidadãos.

O dilema é o seguinte: como estimular sufi cientemente a indústria farmacêutica no

sentido da inovação sob o horizonte de um universo de maximização do lucro e, uno

actu, como manter os custos dos sistemas nacionais de saúde em um nível socialmente

aceitável?

De resto, mais na União Europeia e menos no Brasil ou nos outros países de

expressão ofi cial em língua portuguesa, foi assumido o paradigma segundo o qual, na

ausência de direitos de patente providos de um licere forte, a indústria farmacêutica

provavelmente não sobreviveria; o desenvolvimento e a inovação não prosperariam;

o desemprego aumentaria e a prestação de cuidados de saúde sairia a perder. Esse

paradigma não está demonstrado, nem provavelmente será fácil provar a adequação

das suas premissas.

Seja qual for o cenário mais verossímil, o certo é que o regime do direito de patente

infl uenciou tanto a atual confi guração das indústrias farmacêuticas quanto o statu

quo dessas indústrias, e os lobbies representativos dos seus interesses modelaram, em

aspectos importantes, o concreto regime do direito de patente70 - basta, por exemplo,

pensar no regime jurídico instituído no artigo 230º do Código da Propriedade Industrial

brasileiro71 sobre as patentes pipeline, o que, como é sabido, não era tão pouco exigido

pelo Acordo TRIPS.

70 VAVER, David / BASHEER, Shamnad, “Popping Patented Pills: Europe and a Decade’s Dose of TRIPs”, in European Intellectual

Property Review, 2006, p. 282 ss., p. 282.

71 De acordo com essa disposição, permite-se “o depósito de pedido de patente relativo às substâncias, matérias ou produtos

obtidos por meios ou processos químicos e as substâncias, matérias, misturas ou produtos alimentícios, químico-farmacêuticos

e medicamentos de qualquer espécie, bem como os respectivos processos de obtenção ou de modifi cação, por quem tenha

proteção garantida em tratado ou convenção em vigor no Brasil, fi cando assegurada a data do primeiro depósito no exterior,

desde que o seu objeto não tenha sido colocado em qualquer mercado, por iniciativa direta do titular ou por terceiro com o seu

consentimento, nem tenham sido realizados, por terceiros, no País, sérios e efetivos preparativos para a exploração do objeto do pedido

ou da patente” - o itálico é meu.

Por sua vez, o § 3 desse Código determina que “… uma vez atendidas as condições estabelecidas neste artigo e comprovada

a concessão da patente no país onde foi depositado o primeiro pedido, será concedida a patente no Brasil, tal como concedida

no país de origem”, mais dizendo o § 6 dessa norma que “fi ca assegurado à patente concedida com base neste artigo o prazo

remanescente de proteção no país onde foi depositado o primeiro pedido, contado da data do depósito no Brasil e limitado ao

prazo previsto no artigo 40º, não se aplicando o disposto no seu parágrafo único”.

Page 81: Propriedade Intelectual nos Países de Língua Portuguesanit.uesc.br/.../files/livros/Propiedade-Intelectual... · propriedade intelectual e o uso da informação tecnológica contida

80

Diga-se, desde já, que essa consagração das denominadas patentes de pipeline ou de revalidação encontra apoio no artigo 1º/4

da Convenção de Paris para a Proteção da Propriedade Industrial, de 1883: essa norma pretendeu fazer estender as disposições

da referida Convenção aos direitos de patente, incluindo as patentes de importação.

Como se intui, por outro lado, o regime jurídico dessas patentes pipeline, embora não decorra do disposto no artigo 70º do

Acordo TRIPS, maxime dos seus nos 8 e 9, contém uma “solução paralela” à prevista nesse nº 9 (embora no artigo 230º do Código

brasileiro não se exija que o pedido de patente ou a concessão sejam efetuadas no estrangeiro após o dia 1º de janeiro de 2005,

data do início de vigência do TRIPS), e inspira-se na ideia de que poderá ser concedido um exclusivo comercial ou industrial

no Brasil, ainda quando a invenção já tenha sido divulgada no estrangeiro, mas aí ou no Brasil ainda não tenha sido objeto de

comercialização pelo titular (ou requerente da proteção) ou por um terceiro, com o seu consentimento.

Há uma outra regra paralela no artigo 18º/1 da Convenção de Berna para a proteção das obras literárias e artísticas, de 1886

(aprovada, entre nós, para adesão pelo Decreto nº 73/78, de 26 de julho), ex vi do artigo 70º/2 do TRIPS, segundo a qual as

obrigações relativas a obras preexistentes serão defi nidas nos termos do artigo 18º da referida Convenção, que é o mesmo que

dizer que as obras preexistentes deverão ser protegidas a partir da data da entrada em vigor do TRIPS, desde que ainda não

tenham caído no “domínio público”, ou seja, contanto que ainda não tenha expirado o seu prazo de proteção (o que suscitou

uma conhecida polêmica entre os E.U.A. e o Japão - e, depois, a União Europeia - acerca da proteção das gravações efetuadas

nos E.U.A. antes de 1972, data em que a lei interna estadunidense passou a proteger tais obras: os E.U.A. pretendiam que a

proteção de tais obras (no Japão) fosse retroativa, com efeitos a partir de 1946, embora o ordenamento japonês somente

protegesse tais obras a partir de 1971.

Nesse caso, previsto no artigo 230º do Código da Propriedade Industrial brasileiro de 1996, a novidade intelectiva (e absoluta)

da invenção cede o terreno à exigência e verifi cação de uma novidade apenas merceológica - baseada na ideia segundo a

qual não deve o objeto da invenção ter sido colocado em qualquer mercado do planeta pelo titular ou por um terceiro com

o seu consentimento, um pouco à semelhança do que ocorre no regime jurídico do direito de obtentor de variedade vegetal

(artigo 6º/1, alínea b), da Convenção UPOV, na redação de 1978, a que o Brasil e Portugal se acham vinculados; artigo 10º/1 do

Regulamento (CEE) nº 2.100/94, do Conselho, de 27 de julho de 1994, relativo ao direito de obtentor comunitário de variedades

vegetais; e artigo 5º/1, alínea d), do Regulamento sobre a proteção das obtenções vegetais, aprovado pela Portaria nº 940/90, de

4 de outubro), o qual, como se sabe, prevê, no quadro do texto saído da revisão de 1991 da Convenção UPOV, a possibilidade

de uma proteção cumulativa, seja pelo direito de patente, seja pelo regime das obtenções vegetais, na medida em que as plantas

subsumíveis ao conceito de variedade vegetal também podem servir para resolver inúmeros problemas técnicos, de modo

que os setores normativos de aplicação dos dois subsistemas da propriedade industrial e os respectivos “círculos de proibição”,

não, de todo em todo, totalmente independentes (cfr., sobre essa aproximação dos dois subsistemas, J. P. REMÉDIO MARQUES,

Biotecnologia(s) e Propriedade Industrial, vol. II, Obtenções Vegetais, Conhecimentos Tradicionais, Sinais Distintivos, Bioinformática e

Bases de Dados, Direito da Concorrência, Almedina, Coimbra, 2007, pp. 98-104) - e o ordenamento brasileiro passa a reconhecer

as situações jurídicas de direito de patente já constituídas (ou em vias de constituição) no estrangeiro, na decorrência de pedidos de

patente efetuados há mais de um ano (relativamente ao pedido de proteção efetuado no Brasil) ou de patentes já concedidas

no estrangeiro. De acordo com essa norma do artigo 230º do citado Código, ocorre o reconhecimento, no Brasil, de situações

jurídicas criadas no estrangeiro de conformidade com as normas do ordenamento estadual de que aquelas dependem (o país da

data do primeiro depósito), de harmonia com os preceitos de uma legislação que a si própria se considere competente e

que tire a sua competência de princípios universalmente válidos e legítimos (o que normalmente sucede, pois a lei aplicável é,

nessas eventualidades, a lei do Estado cuja Administração competente concede o direito de patente). E mesmo que assim não

sucedesse, dever-se-á, em regra, reconhecer as situações jurídicas multinacionais criadas sob o abrigo de leis estrangeiras, mesmo

que eventualmente tais leis não sejam aplicáveis à luz dos critérios normais de atribuição de competência consagrados no

direito de confl itos do foro (FERRER CORREIA, Lições de Direito Internacional Privado, I, com a colaboração de Luís Barreto Xavier,

Almedina, Coimbra, 2000, p. 386, p. 391 ss., p. 397).

Embora o Acordo TRIPS não densifi que, na 1ª parte do nº 1 do seu artigo 27º, o conteúdo do requisito da novidade das invenções

enquanto condição indefectível de constituição desse direito de propriedade industrial - remetendo essa densifi cação para o

quadro da discricionariedade legislativa reconhecida aos Estados contratantes da Organização Mundial do Comércio, domínio

onde os Estados são livres de consagrar um sistema de novidade cognoscitiva absoluta ou, pelo contrário, um sistema de

novidade relativa como é, por exemplo, a novidade merceológica, nos termos previstos na legislação brasileira -, tem sido

altamente discutível e controvertido o problema da constitucionalidade desse artigo 230º do Código da Propriedade Industrial

brasileiro de 1996, em face do disposto no artigo 5º, XXIX, da Constituição Brasileira de 1988 e do princípio da independência

dos direitos de patente consagrado no artigo 4º-bis da Convenção da União de Paris. Uma coisa também nos parece certa:

o requisito da novidade das invenções pode ser entendido em termos fl exíveis. E o princípio da proporcionalidade lato sensu

permite sindicar até que ponto as soluções consagradas pelo legislador foram, ou não, excessivas, inadequadas ou desnecessárias

relativamente aos fi ns que se pretendiam prosseguir e à defesa dos interesses contrapostos.

Em primeiro lugar, foram salvaguardados em termos de cláusula de imunidade (ou de inoponibilidade d)os interesses de todos

aqueles que já usavam, no Brasil, o objeto da invenção protegida no estrangeiro ou faziam preparativos sérios para aí a usar

(uso prévio anterior).

Page 82: Propriedade Intelectual nos Países de Língua Portuguesanit.uesc.br/.../files/livros/Propiedade-Intelectual... · propriedade intelectual e o uso da informação tecnológica contida

81

Em segundo lugar, ainda quando a patente tenha sido concedida no estrangeiro sem a realização de um exame substancial,

nada impede que a patente pipeline brasileira seja objeto de ação de nulidade perante os tribunais brasileiros, pois o

reconhecimento dessa situação jurídica constituída no estrangeiro não remove a aplicação do princípio da territorialidade e o

da independência do direito de patente. Basta também recordar que, por exemplo, vigora nos E.U.A. o período de graça de um

ano após a divulgação da invenção, por qualquer meio (ou no estrangeiro, por escrito), que não destrói a novidade do invento e

a regra da prioridade com a duração de um ano a contar da data do primeiro depósito do pedido de patente em qualquer país

contratante da Convenção da União de Paris e da Organização Mundial do Comércio.

Depois, a regra ínsita no artigo 70º/3 do Acordo TRIPS, que não obriga os Estados contratantes a restabelecer a proteção de

invenções que, no dia 01/01/1996, tenham caído no “domínio público”, apenas se aplica às invenções divulgadas anteriormente

no Estado cujo ordenamento não permitia a proteção de tais realidades ou cuja proteção já tenha expirado nesse Estado.

São também conhecidos os regimes que vigoraram no passado respeitantes às patentes de importação de invenções já

divulgadas e exploradas em países estrangeiros, o que sucedeu em muitos países (em Portugal; na Espanha: Estatuto de la

Propriedad Industrial, de 1929; na Bélgica: lei de patentes, de 1854; na Argentina: Código da Propriedade Industrial, de 1864).

Por último, não se deve defender que a consagração desse tipo de patentes (pipeline ou de revalidação) viole direitos adquiridos

por terceiros ou pela comunidade, mesmo à luz da dogmática jurídica brasileira, visto que um direito adquirido constitui

sempre um direito subjetivo ou uma posição jurídica subjetiva de natureza patrimonial, e o fato de as invenções já terem sido

divulgadas fora do Brasil, eventualmente para além do prazo da prioridade unionista (um ano) não faz ingressar qualquer direito

patrimonial na esfera jurídica subjetiva de cidadãos ou de entidades sujeitas ao ordenamento jurídico brasileiro.

Não se esqueça que, como atrás referi, fi caram protegidos (scilicet, são oponíveis ao requerente da patente pipeline) os interesses

de todos os terceiros (nacionais ou estrangeiros, à luz do princípio da igualdade) que, na data do pedido da patente pipeline,

tenham efetuado preparativos sérios e efetivos com vista à exploração econômica do objeto dessa invenção no Brasil. Sobre

isso, cfr. AHLERT, Ivan Bacelar / ANTUNES, Paulo de Bessa, “Pipeline e Constituição: de que inconstitucionalidade falamos”, in

Revista da ABPI (Associação Brasileira de Propriedade Intelectual), n. 87, mar./abril 2007, p. 45 ss., p. 53 ss.; DI BLASSI, Gabril /

GARCIA, Mário Sorensen / MENDES, Paulo Parente M., A Propriedade Industrial, Editora Forense, Rio de Janeiro, 2000, p. 124

(de acordo com os autores, a condição, absoluta ou relativa, da novidade deve ser defi nida por cada legislador ordinário);

GOMES CANOTILHO / JÓNATAS MACHADO, A Questão da Constitucionalidade das Patentes Pipeline à Luz da Constituição Federal

de 1988, (com a colaboração de Vera Lúcia Raposo), Almedina, Coimbra, 2008; BARBOSA, Denis Borges, “Inconstitucionalidade

das Patentes Pipeline”, 2006, in http://denisbarbosa.addr.com/pipeline.pdf; BARBOSA, Denis Borges / BARBOSA, Pedro Marcos

Nunes, “Algumas notas à intercessão do SPC e a patente pipeline”, in Revista da ABPI, n. 93, mar./abril 2008, p. 35 ss., p. 40;

TIBURCIO, Carmen, “Patente de Revalidação (Pipeline), Extensão do Prazo de Proteção da Patente Originária no Exterior. Efeitos

sobre a Patente Pipeline Nacional”, in Revista da ABPI, n. 92, janeiro/ abril 2008, p. 44 ss.; CLÉVE, Clémerson / BREKENFELD, Melina,

“A repercussão, no regime da patente pipeline, da declaração de nulidade do privilégio originário”, in Revista da ABPI, n. 66,

setembro /outubro 2003, p. 24.

Page 83: Propriedade Intelectual nos Países de Língua Portuguesanit.uesc.br/.../files/livros/Propiedade-Intelectual... · propriedade intelectual e o uso da informação tecnológica contida

82

Na Europa e, provavelmente, ainda no Brasil, os governos aceitam a retórica

argumentativa das empresas farmacêuticas transnacionais, de harmonia com a qual é

necessário ou imprescindível proteger, mediante o direito de patente, os medicamentos

e os processos de obtenção ou fabricação de medicamentos enquanto forma de estimular

a obtenção de medicamentos mais efi cientes. Retórica argumentativa de acordo com a

qual as faculdades jurídicas reconhecidas ao titular dessas patentes devem ser poderosas,

no sentido de atribuir aos titulares o controle sobre a pesquisa, o desenvolvimento, a

produção e a comercialização, nacional ou no estrangeiro, desses “novos” fármacos.

Seja como for, a era pós-TRIPS - caracterizada pelo reforço da proteção dos titulares

de patentes dessa natureza - chegou à União Europeia sob a veste da Diretiva nº 98/44/

CE, do Conselho e do Parlamento Europeu, de 6 de julho de 1998, relativa à proteção das

invenções biotecnológicas72 . Os considerandos nºs 1, 2, 3, 11, 14, 17 e 18 dessa diretiva se

posicionam, algo contraditoriamente, entre Scilla e Caribdis. De fato, ao mesmo tempo

em que o legislador europeu almeja dotar a indústria farmacêutica de um acervo mais

reforçado de faculdades jurídicas, ele visa também a promover a prestação dos cuidados

de saúde nos países em desenvolvimento, por meio do direito de patente, bem como

a exportação de fármacos e a regulação pública da comercialização dos medicamentos

para uso humano.

O certo é que, para a indústria farmacêutica, a instrumentalização dos seus

objetivos opera por meio da infl uência nas políticas legislativas, mediante os lobbies

e a litigância nos tribunais. Não é por acaso que, por força do Regulamento (CE) nº

726/2004, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 31 de março de 200473, que

estabeleceu o procedimento comunitário de autorização e fi scalização de medicamentos

para uso humano e veterinário, e que instituiu a Agência Europeia do Medicamento, foi

alcançado um sistema centralizado europeu de aprovação de medicamentos que

incorporam inovações biotecnológicas, para efeitos de registro, junto à Agência Europeia

do Medicamento74.

É, na verdade, do interesse das empresas multinacionais farmacêuticas sofrer

menores “custos de transação” no processo de aprovação desse tipo de medicamentos

para uso humano.

Já quanto aos procedimentos administrativos destinados a obter a fi xação do preço

máximo de venda ao público desses medicamentos, a estratégia é puramente nacional,

que não europeia, pois mais vale “dividir para reinar”.

72 In Jornal Ofi cial das Comunidades Europeias, n. L 213, de 30 de julho de 1998.

73 In Jornal Ofi cial da União Europeia, n. L 136, de 30 de abril de 2004, p. 1 ss.

74 Esse regulamento somente atinge o procedimento administrativo centralizado destinado à aprovação e ao registro de

medicamentos desenvolvidos por meio de: tecnologia do DNA recombinante; de métodos de hibridoma e anticorpos

monoclonais e a expressão controlada da codifi cação de genes para proteínas biologicamente ativas em organismos procariotas

e eucariotas.

Page 84: Propriedade Intelectual nos Países de Língua Portuguesanit.uesc.br/.../files/livros/Propiedade-Intelectual... · propriedade intelectual e o uso da informação tecnológica contida

83

Por exemplo, em 2005, o custo do fornecimento do medicamento comercializado

sob a marca “Prozac” custou, por embalagem, cerca de 18,49 euros na Itália e 40,48 euros

na Eslováquia. Isso porque os países da União Europeia, bem como os vários Estados da

União, no Brasil, não estão dotados de uma agência centralizada de compras.

3. A INFLUÊNCIA DO ACORDO TRIPS NA UNIÃO EUROPEIA E NO QUADRO DA CPE

Tanto a Convenção sobre a Patente Europeia (doravante, CPE), quanto a União

Europeia, no que tange à transposição da diretriz sobre a proteção das inovações

biotecnológicas, incorporaram o espírito e o corpo do TRIPS, em matéria de direito de

patente.

3.1. A EXTENSÃO DO PATENTEÁVEL A TODOS OS SETORES DA TECNOLOGIA

Desde logo, foi transposto o regime segundo o qual deve ser assegurada a

patenteabilidade em todos os domínios ou setores da tecnologia (artigo 27º/1 do TRIPS).

Por outro lado, a revisão da CPE, ocorrida em novembro de 2000 - com início de

vigência em 13 de dezembro de 2007 - suavizou a aplicabilidade da cláusula da ordem

pública ao direito de patente: se até aí os pedidos de patente podiam ser recusados

por contrariedade aos bons costumes ou à ordem pública com base na mera publicação

desse pedido de patente, doravante a recusa da concessão somente pode verifi car-se se

a exploração comercial for contrária à ordem pública ou aos bons costumes75.

3.2. A DIFERENTE CONFIGURAÇÃO DA PATENTEABILIDADE DOS MÉTODOS TERAPÊUTICOS, DE DIAG-

NÓSTICO E CIRÚRGICOS

Uma outra alteração da CPE, na sequência da revisão de 2000, ocorreu em matéria

de patenteabilidade dos métodos terapêuticos, de diagnóstico e cirúrgicos76. Agora,

eles são susceptíveis de constituírem invenções, mas tais invenções não são agora

patenteáveis, nos termos do artigo 53º, alínea c), da CPE, diferentemente do disposto no

ordenamento brasileiro; nesse ordenamento jurídico, tais métodos não são susceptíveis

de patenteabilidade por falta de industrialidade, como, de resto, era a solução que

anteriormente constava do artigo 52º/4 da mesma CPE. Mas essas invenções não são,

em geral e como referi, patenteáveis. A nova redação do artigo 53º/3, alínea c), do CPI de

2003 (doravante, CPI de 2003), na redação do Decreto-Lei nº 143/2008, de 25 de julho,

75 Essa alteração já aparece refl etida no artigo 6º/1 da Diretiva nº 98/44/CE, sobre a proteção das invenções biotecnológicas.

76 Cfr. J. P. REMÉDIO MARQUES, “A patenteabilidade dos métodos de diagnóstico, terapêuticos e cirúrgicos: Questão (bio)

ética ou questão técnica? - O estado do problema”, in Estudos de Direito da Bioética, vol. II, Associação Portuguesa de Direito

Intelectual, Almedina, Coimbra, 2008, p. 211 ss., p. 217, p. 220, p. 243 ss.

Page 85: Propriedade Intelectual nos Países de Língua Portuguesanit.uesc.br/.../files/livros/Propiedade-Intelectual... · propriedade intelectual e o uso da informação tecnológica contida

84

determina que, a mais de outras invenções insusceptíveis de proteção, não podem ser

objeto de patente “os métodos de tratamento cirúrgico ou terapêutico do corpo humano,

e os métodos de diagnóstico aplicados ao corpo humano ou animal”.

Quer isso dizer que essa exclusão da patenteabilidade é pautada por preocupações

de política legislativa em matéria de saúde pública. Todavia, os tribunais dos Estados, que

veem o exercício da medicina como uma simples atividade econômica lucrativa, sentir-

se-ão assim mais à vontade para restringir o alcance dessa proibição de patentear as

invenções respeitantes aos referidos métodos.

3.3. A FALTA DE HARMONIZAÇÃO DAS SOLUÇÕES (DENTRO DA UNIÃO EUROPEIA): O PROBLEMA

DO ÂMBITO DE PROTEÇÃO DAS PATENTES DE SEQUÊNCIA GENÉTICAS; A FALTA DE MENÇÃO DA ORI-

GEM GEOGRÁFICA DOS RECURSOS BIOLÓGICOS

O dever de os Estados Contratantes do TRIPS assegurarem a patenteabilidade das

invenções em todos os setores tecnológicos foi mais “levado a sério” na União Europeia

com o advento da Diretiva nº 98/44/CE, sobre a proteção das invenções biotecnológicas,

pese embora alguns Estados-Membros tivessem levantado sérias objeções quanto à

patenteabilidade dos genes humanos e das matérias biológicas meramente isoladas

do seu ambiente natural e dotadas da mesma estrutura. Porém, o Tribunal de Justiça

da União Europeia rejeitou as ações de impugnação dirigidas contra essa Diretiva77,

o que levou à rápida transposição do texto dessa Diretiva para o ordenamento dos

Estados-Membros, ainda que sob cominação da ameaça, por vezes concretizada, da

apresentação de queixa junto ao mesmo Tribunal por motivo da não implementação

de legislação comunitária.

De qualquer jeito, essa transposição ocorreu. Em Portugal, ela deu-se em 2003,

com a entrada em vigor do novo Código da Propriedade Industrial (CPI de 2003).

Só que a transposição do regime dessa Diretiva nº 98/44/CE foi tudo menos

uma transposição da qual tenha resultado uma harmonização dos regimes jurídicos.

Por exemplo, em matéria de delimitação do âmbito de proteção de uma patente sobre

sequências de genes humanos, assiste-se a uma notável disparidade de soluções

legislativas.

De fato, contrariamente à visão tradicional segundo a qual a proteção de uma

patente (maxime, de uma patente de produto) é uma proteção absoluta78 - que torna

oponível o direito do titular relativamente a todas e quaisquer utilizações do objeto

77 Processo C-377/98, países Baixos c. Parlamento Europeu e Conselho, in Colectânea de Jurisprudência do Tribunal de Justiça das

Comunidades Europeias, 2001, I, p. 7079 (ação a que, depois, aderiram a Noruega e a Itália).

78 Sobre isto, desenvolvidamente, J. P. REMÉDIO MARQUES, Biotecnologia(s) e Propriedade Intelectual, vol. I, Direito de Autor,

Direito de Patente e Modelo de Utilidade, Desenhos ou Modelos, Almedina, Coimbra, 2007, pp. 878-919.

Page 86: Propriedade Intelectual nos Países de Língua Portuguesanit.uesc.br/.../files/livros/Propiedade-Intelectual... · propriedade intelectual e o uso da informação tecnológica contida

85

da invenção, que não possam ser excepcionadas pelo regime das denominadas

utilizações livres -, alguns ordenamentos europeus (no caso, a França79 e a Alemanha80)

determinaram que o âmbito das patentes relativas a genes humanos é limitado à

específi ca função ou efeito técnico reivindicado e descrito no pedido de patente, e não a

quaisquer outras funções ou efeitos técnicos81.

O próprio Parlamento Europeu, em uma Resolução de 26/10/200582, entende que

a Diretiva nº 98/44/CE fornece indicações claras no sentido da limitação do âmbito de

proteção das patentes de genes às concretas funções indicadas no pedido de patente.

Mas a Comissão Europeia83 sustenta, pelo contrário, que nesse setor das invenções

biotecnológicas não existem motivos ponderosos e razões objetivas para instituir um

regime jurídico diferente daquele que vigora para as restantes invenções químicas.

A citada Diretiva nº 98/44/CE e os Códigos da Propriedade Industrial dos Estados-

Membros da União Europeia84 determinam que o âmbito de proteção das patentes de

matérias biológicas ou de processos que permitem a produção de matérias biológicas

se estende a todas as matérias obtidas, direta ou indiretamente, por reprodução ou

multiplicação, sob forma idêntica ou diferenciada, contanto que sejam dotadas das mesmas

propriedades exibidas pelas matérias inicialmente patenteadas, ou as que resultaram

diretamente do processo biotecnológico patenteado.

79 Veja-se a nova redação do art. L. 611-18, e do art. L. 613-2-1, do Code de la propriété intellectuelle, segundo a qual “os direitos

conferidos pela patente relativa a uma sequência genética não podem ser invocados contra reivindicações posteriores

respeitantes à mesma sequência genética, se essa reivindicação satisfi zer as condições previstas no art. L. 611-18 e indicar

uma outra aplicação específi ca dessa sequência”.

80 § 9a da lei de patentes alemã (PatG), em vigor desde o dia 28 de fevereiro de 2005 (Bundesgesetzblatt, n. 6, 2005, p. 46). De

acordo com o parágrafo III desse artigo da lei de patentes alemã, as patentes que visam a proteção das sequências de ácidos

nucleicos e de outras matérias, que incluem informação genética proveniente de seres humanos e de primatas, são vistas

como patentes de produtos vinculadas ao específi co uso do produto para que se destinam (“ … In das dieses Erzeugnis Eingang

fi ndet und in dem genetische Information enthalten ist und ihre Funktion erfüllt”) - o itálico é meu. Sobre isto, na doutrina alemã,

cfr. KRAUβ, Jan, “Die Eff ekte der Umsetzung der Richtlinie über den rechtlichen Schutz biotechnologischer Erfi ndungen auf

die deutsche Praxis im Bereich dieser erfi ndungen”, in Mitteilungen des deustchen Patentanwälte, 2005, p. 490 ss., pp. 491-492;

ENSTHALER, Jürgen / ZECH, Herbert, “Stoff schutz bei gentechnischen Patenten – Rechtslage nach Erlass des Biopatentgesetzes

und Auswirkung auf chemiepatente”, in Gewerblicher Rechtsschutz und Urheberrecht, 2006, p. 529 ss., p. 534; FELDGES, J., “Ende

des absoluten Stoff schutzes?, Zur Umsetzung der Biotechnologie-richtlinie”, in Gewerblicher Rechtsschutz und Urheberrecht,

2005, p. 978 ss.; J. P. REMÉDIO MARQUES, Biotecnologia(s) e Propriedade Intelectual, vol. I, 2007, cit., pp. 891-892.

81 O considerando nº 25 da Diretiva nº 98/44/CE, sobre a proteção das invenções biotecnológicas, reforça essa posição,

visto que preceitua que: “para a interpretação dos direitos conferidos por uma patente, em caso de sobreposição de sequências

[recte, sequências de genes] apenas nas partes que não são essenciais à invenção, cada sequência é considerada uma sequência

autônoma para efeitos do direito de patente”.

82 Resolução do Parlamento Europeu sobre invenções relativas a invenções biotecnológicas, de 26 de outubro de 2005,

Documento P6-TA-PROV(2005)0407, adotada por uma maioria de 338 votos a favor, 272 votos contra e 35 abstenções.

83 Relatório da Comissão Europeia ao Conselho e ao Parlamento Europeu, intitulado “Desenvolvimentos e Implicações do

Direito de Patentes no Setor da Biotecnologia e da Engenharia Genética”, de 14 de julho de 2005, Documento COM(2005)312

fi nal, in http://www.europa.eu.

84 Artigo 97º/3 e 4 do CPI português de 2003.

Page 87: Propriedade Intelectual nos Países de Língua Portuguesanit.uesc.br/.../files/livros/Propiedade-Intelectual... · propriedade intelectual e o uso da informação tecnológica contida

86

Isso já levou alguns setores da indústria a defender e a litigar (em alguns tribunais

dos Estados-Membros da União Europeia), no sentido de que o titular da patente possa

proibir a importação para a União Europeia - e a venda adentro desse espaço econômico

- de alimentos obtidos a partir de cereais em cujo processo de reprodução foram usadas

sementes geneticamente manipuladas (nas respectivas células e sequências de DNA) para

resistir a certas pragas de insetos ou a pesticidas, ainda que os alimentos (o produto

fi nal) não exibam as células ou os genes precipuamente manipulados ou somente

exibam resíduos insignifi cantes dessas substâncias. O mesmo tipo de litígios poderá

emergir a propósito da importação e venda de vestuário ou calçado em cujo processo

de obtenção ou fabricação se verifi cou, algures a montante, a intervenção de matérias

biológicas patenteadas. E quem diz vestuário ou calçado diz medicamentos obtidos a

partir de matérias biológicas patenteadas (v.g., vírus, bactérias, cosmídeos, plasmídeos,

outros vetores de expressão de genes, etc.).

Ou seja: será que o controle da patenteabilidade de uma determinada ferramenta

biotecnológica faz depender do consentimento do titular dessa patente a obtenção,

sob forma idêntica ou diferenciada, e o uso, para fi ns comerciais, de quaisquer outras

matérias (biológicas ou não biológicas) obtidas a jusante, bastando, para esse efeito, que

a matéria biológica protegida tenha estado na gênese mais ou menos longínqua dessas

outras matérias ou produtos ou tenha sido utilizada no respectivo processo de produção?

Creio que não.

A resposta só pode ser a seguinte: o âmbito de proteção dessas patentes somente

pode estender-se às matérias obtidas por reprodução ou multiplicação se estas últimas

continuarem a exercer ou a exibir, a jusante, as propriedades ou as características

precipuamente reivindicadas e descritas no pedido de patente, e desde que um perito na

especialidade possa prever tais características ou propriedades com base na consulta e

análise do fascículo da patente (na data do pedido de patente ou da prioridade), sem

exercer atividade inventiva própria85. O âmbito (tecnológico) de proteção de um direito

de patente nunca pode estender-se para além do acervo de regras técnicas novas e

inventivas objetivamente reconhecíveis no fascículo da patente (nas reivindicações

apoiadas pela descrição), na data do pedido de proteção (ou na data da prioridade),

pelos peritos na especialidade.

É, pois, importante salientar que as propriedades ou as características exibidas

e reivindicadas pelo dispositivo acusado sejam as mesmas que hajam sido tomadas

em consideração para resolver o problema técnico que objetivamente caracteriza a

invenção biotecnológica protegida, ou seja, as propriedades ou as características que

85 Em sentido análogo, já o meu J. P. REMÉDIO MARQUES, Biotecnologia(s) e Propriedade Intelectual, vol. I, 2007, cit., pp. 1071-

1073.

Page 88: Propriedade Intelectual nos Países de Língua Portuguesanit.uesc.br/.../files/livros/Propiedade-Intelectual... · propriedade intelectual e o uso da informação tecnológica contida

87

jamais poderiam ser alcançadas sem a consideração e a relevância das características

ou das propriedades da invenção biotecnológica patenteada; dispositivo acusado este

em que se constata, assim, a infl uência das regras técnicas que permitiram a execução do

produto ou processo biotecnológico patenteado.

Outro exemplo de soluções legiferantes díspares: se, no pedido de patente, faltar

a menção da origem geográfi ca dos recursos biológicos que deram origem à invenção

para que é pedida a patente, esse vício gera, em alguns ordenamentos, a invalidade

da patente que vier a ser concedida (Bélgica, Itália); em outros, essa falta de menção

não provoca qualquer efeito (v.g., Portugal, Espanha, França); em outros, ainda (p. ex.,

Dinamarca), essa omissão gera um ilícito não criminal, sancionado com o pagamento de

uma multa, sempre que o requerente conheça ou não possa razoavelmente desconhecer

essa origem geográfi ca.

4. A REGULAÇÃO PÚBLICA DA COMERCIALIZAÇÃO DE MEDICAMENTOS E O ACESSO DA

POPULAÇÃO AOS MEDICAMENTOS GENÉRICOS

Um outro tema intimamente conexo com o acesso aos cuidados de saúde e aos

medicamentos é o do impacto do direito de patente sobre os medicamentos de referência

e a regulação pública atinente à autorização administrativa para fi ns de comercialização de

medicamentos genéricos e à fi xação do preço máximo de venda desses medicamentos.

A Diretiva nº 2004/27/CE, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 31 de

março de 200486 - que alterou a Diretiva nº 2001/83/CE, sobre o código comunitário

respeitante aos medicamentos para uso humano -, a par do Código da Propriedade

Industrial português de 2003, teve um importante impacto no exercício das faculdades

jurídicas inerentes à titularidade de direitos de patente sobre os medicamentos para uso

humano.

Em primeiro lugar, essa Diretiva consagrou - tal como o CPI português de 2003

já o havia anteriormente feito no artigo 101º, alínea c) - a possibilidade de efetuar

testes farmacológicos, pré-clínicos e clínicos durante a vigência do direito de patente

do medicamento de referência, para efeitos de obtenção de autorização administrativa

destinada a comercializar os medicamentos (maxime, os medicamentos biossimilares

e não tanto os genéricos, cuja aprovação não carece, na Europa, da realização de tais

testes). Isso corresponde à solução alcançada no Painel de resolução de litígios junto

à Organização Mundial do Comércio, no conhecido caso Canada – Patent Protection

of Pharmaceutical Products, de 17 de março de 200087. Nesse caso, decidiu-se que

86 In Jornal Ofi cial da União Europeia, nº L 136, de 30 de abril de 2004, p. 34 ss.

87 Documento WT/DS114/R, in http://www.wto.org.

Page 89: Propriedade Intelectual nos Países de Língua Portuguesanit.uesc.br/.../files/livros/Propiedade-Intelectual... · propriedade intelectual e o uso da informação tecnológica contida

88

era inválida uma disposição da lei de patentes do Canadá, segundo a qual terceiros

fi cavam autorizados a armazenar os medicamentos genéricos nos seis meses anteriores

à caducidade da patente sobre os medicamentos de referência. Todavia, o dito Painel

já considerou, conforme o Acordo TRIPS, uma outra disposição legal canadense que

permitia efetuar os referidos testes exclusivamente para fi ns de obtenção de autorização

administrativa de colocação dos medicamentos no mercado, independentemente do

consentimento do titular da patente.

Essa é a chamada exceção Bolar/Roche aos direitos de patente, a qual, de resto, já

vinha sendo praticada nos E.U.A. desde 1984 (desde a lei Hatch-Waxman, ou seja, desde

o Drug Price Competition and Patent Term Restoration Act) e na União Europeia, in casu,

na Alemanha, pelo menos desde 1997, na sequência dos casos Clinical Trials I e II (este

último, de 1998), decidido pelo Supremo Tribunal Federal alemão88. O artigo 43º, inciso

VII, do Código da Propriedade Industrial brasileiro, também contém essa exceção aos

direitos de patente, na sequência da redação introduzida pela Lei nº 10.196, de 2001.

Mais: não somente a realização daqueles exames e testes fi cou imune a qualquer

interferência repressiva do titular da patente sobre o medicamento de referência, como

também, ao que julgo, essa Diretiva nº 2004/27/CE, ao modifi car o artigo 10º/6 da citada

Diretiva nº 2001/83/CE, passou a prever que, para além da livre realização daqueles

testes e ensaios, é dispensada a autorização do titular da patente relativamente à

realização de outras atividades jurídicas posteriores, na medida em que tais atividades

ou atos supervenientes refl itam as exigências práticas decorrentes da realização daqueles

testes e ensaios.

Assim, no meu entender, durante o período de vigência do direito de patente respeitante

a um medicamento de referência, passaram a ser livres as atividades de importação e o

armazenamento de amostras destinadas, razoável e exclusivamente, a ser usadas junto

às entidades sanitárias competentes, para fi ns de registro dos medicamentos, bem

como passou a ser livre o pedido de autorização administrativa de comercialização e,

bem assim, os próprios atos administrativos autorizativos e de fi xação do preço máximo

de venda dos medicamentos ao público. Já em 1996, uma Resolução do Parlamento

Europeu abriu esse caminho.

88 Sobre isso, cfr., desenvolvidamente, J. P. REMÉDIO MARQUES, Medicamentos versus Patentes – Estudos de Propriedade Industrial,

Coimbra Editora, Coimbra, 2008, p. 11 ss., § 4.2. ss., § 5, p. 94 ss., p. 99 ss., p. 112 ss.; J. P. REMÉDIO MARQUES, Biotecnologia(s)

e Propriedade Intelectual, vol. I, 2007, cit., pp. 1147-1156; DOMEIJ, Benght, Pharmaceutical Patents in Europe, Kluwer Law

International, Norstedts Juridik, The Hague, London, Boston, 2000, p. 293 ss.; CORNISH, William, “Experimental Use of Patented

Inventions in European Community States”, in International Review of Industrial Property and Copyright Law, 1996, p. 735 ss.;

BURSHTEIN, Sheldon, “Experimental use Exception to Patent Infringement”, in Intellectual Property, vol. XII (3), 2006, p. 744 ss.;

COOK, Trevor, The Protection of Regulatory Data in the Pharmaceutical and Other Sectors, Sweet & Maxwell, London, 2000, p. 6 ss.;

MADAWELA, Yvonne, “European Bolar Exemption Update”, in IP World – Bio Supplement, maio de 2007, p. 18 ss.

Page 90: Propriedade Intelectual nos Países de Língua Portuguesanit.uesc.br/.../files/livros/Propiedade-Intelectual... · propriedade intelectual e o uso da informação tecnológica contida

89

Na verdade, no parágrafo nº 17 da Resolução do Parlamento Europeu nº

A4-0194/96(1), de 16 de abril de 1996, sobre a “Política Industrial para o Setor

Farmacêutico”89 já se afi rmava: “Entende que, para que a União Europeia possa ser

competitiva nos mercados em expansão europeus e internacionais de produtos não

protegidos, se devem adotar medidas que permitam que as empresas farmacêuticas

iniciem, antes de a patente ou o certifi cado complementar de protecção expirarem,

as experiências laboratoriais e os preparativos regulamentares necessários para o

registro de medicamentos genéricos fabricados na União Europeia, de modo a poderem

estar imediatamente disponíveis no mercado uma vez fi ndo o prazo de validade de uma

patente ou do certifi cado complementar de protecção para um produto com patente” - o

itálico é meu.

Trata-se, em suma, de exigências regulatórias públicas destinadas a aferir a segurança,

a qualidade e a bioequivalência dos medicamentos que se pretendem comercializar

relativamente aos medicamentos que (ainda) se encontram patenteados. Exigências

que não importam a utilização mercadológica do objeto da invenção patenteada. São

estas, antes, atividades e usos, quais “paper acts” cuja prática é estritamente necessária

para colocar os medicamentos (genéricos) no mercado tão logo o direito de patente

sobre os medicamentos de referência caducar, ou seja, antecipadamente invalidado.

Se assim não se entender, o titular da patente desfrutará de um ilícito período de

exclusivismo fático de comercialização dos medicamentos, mesmo para além e após

a extinção das patentes ou dos períodos de extensão dessas patentes respeitantes

aos medicamentos de referência (na Europa, por meio dos denominados certifi cados

complementares de proteção de produtos farmacêuticos).

Em Portugal, quanto ao preço de venda ao público dos medicamentos genéricos,

o regime jurídico previsto no artigo 9º/1 e 2 do Decreto-Lei nº 65/2007, de 14 de

março, determina que este deve ser inferior em 35% ao preço de venda ao público

do medicamento de referência autorizado em Portugal, com igual dosagem e na mesma

forma farmacêutica - exceto se o preço deste último for inferior a 10 euros, eventualidade

em que o preço do genérico deverá ser inferior em 20% ao preço do primeiro.

No Brasil, após o início de vigência da Lei nº 9.787, de 10 de fevereiro de 1999

(que dispôs sobre a vigilância sanitária, estabeleceu o medicamento genérico e dispôs

sobre a utilização de nomes genéricos em produtos farmacêuticos), constata-se que os

genéricos se apresentam 40% mais baratos do que os medicamentos de referência logo

que entram no mercado, aumentando essa diferença de preços após alguns anos de

permanência no mercado90.

89 In Jornal Ofi cial das Comunidades Europeias, nº C 141, de 13/05/1996, p, 63.

90 Veja-se VIEIRA, Fabiola Sulpino / ZUCCHI, Paola, “Diferenças de preços entre medicamentos genéricos e de referência no

Brasil”, in Revista de Saúde Pública (São Paulo), vol. 40, n. 3, 2006, p. 444 ss., p. 448.

Page 91: Propriedade Intelectual nos Países de Língua Portuguesanit.uesc.br/.../files/livros/Propiedade-Intelectual... · propriedade intelectual e o uso da informação tecnológica contida

90

Revela-se, pois, um objetivo importante a criação de condições legiferantes

claras e não ambíguas para que os medicamentos genéricos e os medicamentos

biossimilares possam obter autorização administrativa de comercialização, de fi xação do

preço de venda e de (eventual) margem de comparticipação estadual no preço, ainda

durante a vida do direito de patente ou do certifi cado complementar de proteção,

independentemente do consentimento do titular desses direitos de propriedade

industrial, de jeito a poderem ser imediatamente colocados no mercado após a extinção

desses direitos de exclusivo91.

5. O PRAZO DE PROTEÇÃO DOS DADOS

Em segundo lugar, essa Diretiva nº 2004/27/CE alterou o regime jurídico do

prazo de proteção dos dados farmacológicos, pré-clínicos e clínicos comunicados às

autoridades nacionais sanitárias, com vista à concessão de autorização administrativa

de comercialização.

Na sequência do disposto no artigo 39º/3 do Acordo TRIPS, foi estabelecido um

prazo normal de proteção desses dados com a duração de 10 anos, que benefi cia os

titulares de autorizações de comercialização respeitantes a novos fármacos. A fórmula

do legislador europeu, já transposta para os ordenamentos dos Estados-Membros, é a

seguinte: 8 + 2+ 192, ou seja:

(1) O requerente da autorização para um medicamento genérico está livre de

apresentar o pedido de autorização administrativa de comercialização, uma vez decorrido

o prazo de oito anos a contar da data da emissão da autorização administrativa respeitante

ao medicamento de referência. Todavia, a autorização administrativa requerida nunca

será concedida senão após o decurso do prazo de 10 anos a contar da autorização (ou

do registro) do referido medicamento de referência.

91 Note-se, porém, que deverá depender do consentimento do titular desses exclusivos a promoção (maxime, a promoção

publicitária) desses medicamentos, ainda quando esta for acompanhada da rigorosa e terminante advertência de que tais

produtos somente serão colocados no mercado após a extinção dos direitos de patente ou dos certifi cados complementares

de proteção. Tb., nesse sentido, a decisão do Supremo Tribunal Federal alemão (Bundesgerichtshof), de 5/12/2006, proc. X ZR

76/05, in Gewerblicher Rechtsschutz und Urheberrecht, 2007, p. 221. É que, a mais de outras considerações, a promoção desses

produtos em uma época em que os direitos de propriedade industrial ainda estão em vigor afeta injustifi cadamente o mercado

e os interesses econômicos do respectivo titular: os potenciais adquirentes dos medicamentos tenderão a aguardar a colocação

no mercado dos genéricos ou dos biossimilares, afectando assim o volume de vendas do titular da patente ou do certifi cado

complementar no ocaso da vigência desses direitos de exclusivo.

92 Cfr. o artigo 19º/3, alíneas a) e b), do Decreto-Lei nº 176/2006, de 30 de agosto, que transpôs para o ordenamento jurídico

português a citada Diretiva nº 2004/27/CE. Veja-se, também, J. P. REMÉDIO MARQUES, Medicamentos versus Patentes – Estudos

de Propriedade Industrial, 2008, cit., p. 30 ss., pp. 51-62.

Page 92: Propriedade Intelectual nos Países de Língua Portuguesanit.uesc.br/.../files/livros/Propiedade-Intelectual... · propriedade intelectual e o uso da informação tecnológica contida

91

(2) As empresas farmacêuticas podem obter um ano adicional de proteção dos

dados comunicados à entidade sanitária competente (v.g., em Portugal: a Autoridade

Nacional do Medicamento - INFARMED), na eventualidade de que, nos primeiros oito dos

dez anos subsequentes à autorização inicial do medicamento de referência, o titular da

autorização de comercialização desse medicamento tenha obtido uma outra autorização

administrativa para uma ou mais indicações terapêuticas novas que, de acordo com a

avaliação científi ca prévia, se considere traduzirem um benefício clínico signifi cativo em

face das terapias até aí existentes.

6. A EQUIPARAÇÃO DAS FORMAS FARMACÊUTICAS ORAIS DE LIBERAÇÃO IMEDIATA

E DOS SAIS, ÉSTERES, ISÔMEROS E MISTURAS DE ISÔMEROS À SUBSTÂNCIA ATIVA

PARA QUE FORA CONCEDIDA A INICIAL PROTEÇÃO DOS DADOS E O EXCLUSIVISMO

MERCADOLÓGICO

Em terceiro lugar, foi estancada uma vulgar estratégia usada pelas empresas

farmacêuticas destinada a obter novas e sucessivas autorizações de comercialização

para a “mesma” substância ativa.

Curava-se do expediente traduzido na apresentação de pedidos de registro para os

diferentes sais, ésteres, isômeros e misturas de isômeros, complexos ou derivados de uma

substância ativa anteriormente autorizada na União Europeia, bem como da formulação

de pedidos de registro relativamente às diferentes formas farmacêuticas orais de liberação

imediata da substância ativa. Estratégia que, assim, visava primacialmente impedir as

importações paralelas de medicamentos e prolongar o exclusivo após a caducidade da

patente ou da extensão dessa patente com a vigência do certifi cado complementar de

proteção: após a obtenção de um novo registro junto às entidades sanitárias competentes,

a empresa peticionava então a emissão de um certifi cado complementar de proteção

junto dos institutos de patentes dos Estados-Membros.

Doravante, a autorização administrativa inicial para a colocação do fármaco no

mercado cobre as diferentes formas farmacêuticas orais de liberação imediata e, outrossim,

os diferentes sais, ésteres, isômeros e misturas de isômeros, na medida em que todas essas

substâncias são consideradas a mesma substância ativa93.

93 Artigo 19º/4, alíneas a) e b), do Decreto-Lei nº 176/2006, de 30 de agosto (Estatuto do Medicamento português).

Isso só não será assim se e quando essas substâncias diferirem signifi cativamente em propriedades relacionadas com a segurança

ou a efi cácia, hipóteses em que o requerente da autorização de comercialização tem de fornecer dados suplementares

destinados a comprovar a segurança, a efi cácia dos vários sais, ésteres ou derivados de uma substância ativa autorizada.

Page 93: Propriedade Intelectual nos Países de Língua Portuguesanit.uesc.br/.../files/livros/Propiedade-Intelectual... · propriedade intelectual e o uso da informação tecnológica contida

92

Por outro lado, na União Europeia, na sequência da citada Diretiva nº 2004/27/

CE, foi abolida a regra de harmonia segundo a qual somente era possível conceder

uma autorização administrativa de comercialização de medicamentos genéricos94 se o

medicamento de referência, que fora objeto da autorização inicial na União Europeia, ainda

estivesse a ser comercializado no Estado-Membro para onde se requerera a autorização.

Isso porque a manutenção dessa regra conduziu a abusos de posição dominante. Veja-

se o caso da sociedade AstraZeneca, que foi punida, em junho de 2005, pela Comissão

Europeia com uma multa de 60 milhões de euros, por motivo de ter retirado do mercado

dinamarquês o conhecido fármaco comercializado sob a marca “Losec” e, desse modo,

impedir que a colocação no mercado do genérico desse medicamento de referência

pudesse ser aí autorizada.

7. O DIREITO DE PRIORIDADE UNIONISTA, A CPE E A PATENTEABILIDADE DE FÁR-

MACOS NA EUROPA

Como é sabido, os requerentes de patentes em um Estado contratante da referida

Convenção de Paris, de 1883, benefi ciam-se de um direito de prioridade, com a duração

de um ano, a contar da data em que tenham efetuado um primeiro pedido de proteção,

fi cando salvos de efetuar, nesse ínterim, idêntico pedido de proteção em um outro Estado

contratante da mesma Convenção de Paris (artigo 4º/C, nº 1, da referida Convenção).

Ora, todos os Estados-Membros da União Europeia são membros da Convenção

sobre a Patente Europeia, embora essa CPE - ou seja, o Instituto Europeu de Patentes e os

seus órgãos jurisdicionais (in casu, as Divisões de Oposição, as Câmaras Técnicas de Recurso

e a Grande-Câmara de Recurso) - nada tenha a ver com a União Europeia. Por outro lado,

a própria União Europeia aderiu ao Acordo TRIPS, em fi nais de 1994. E todos os Estados-

Membros da União Europeia são membros da Organização Mundial do Comércio, tendo

subscrito, por conseguinte, o Acordo TRIPS.

Só que isso não signifi ca que a própria CPE esteja vinculada às disposições do

Acordo TRIPS. Não está. E nem está a CPE vinculada à Convenção Europeia dos Direitos

Humanos, de 1950. É, porém, certo que todos os Estados-Membros da União Europeia

(e outros Estados europeus) se acham obrigados pelo Acordo TRIPS.

94 Ou seja, de medicamentos com a mesma composição qualitativa e quantitativa em substâncias ativas, sob a mesma forma

farmacêutica e para os quais, sempre que se revela necessário, foi demonstrada a bioequivalência com o medicamento de

referência.

Page 94: Propriedade Intelectual nos Países de Língua Portuguesanit.uesc.br/.../files/livros/Propiedade-Intelectual... · propriedade intelectual e o uso da informação tecnológica contida

93

Daí que, até 13 de dezembro de 2007 - data do início de vigência da revisão da

CPE -, a CPE não reconheceu qualquer prioridade aos pedidos de patente inicialmente

depositados em países que não fazem parte da referida Convenção de Paris, de 188395.

Esse status quo impediu que pudesse ser patenteada junto à CPE (dando logo

origem a um feixe de patentes nos Estados europeus contratantes dessa Convenção)

uma invenção respeitante a um fármaco, cuja patente havia sido inicialmente pedida na

Índia, já que, ao tempo, esse país somente integrava a Organização Mundial do Comércio,

e não a referida Convenção de Paris, de 188396.

Resultado: esse fármaco pôde livremente ser comercializado nos Estados

contratantes da CPE, uma vez obtida a autorização administrativa junto das entidades

sanitárias competentes.

Ou seja: enquanto até 13 de dezembro de 2007, os pedidos de patentes nacionais

efetuados junto aos institutos dos Estados-Membros da CPE benefi ciavam-se do

direito de prioridade emergente de idênticos pedidos anteriormente efetuados junto a

países-membros da Organização Mundial do Comércio - pois as obrigações do TRIPS a

isso conduzem -, os mesmos pedidos de patentes feitos junto ao Instituto Europeu de

Patentes não podem benefi ciar-se dessa prioridade (a prioridade unionista). A situação

foi, no entanto, corrigida após o dia 13 de dezembro de 2007.

8. O ACESSO AOS MEDICAMENTOS E AS LICENÇAS COMPULSÓRIAS

O acesso aos cuidados de saúde é logrado, inter alia, por meio da administração de

fármacos. Todavia, se os fármacos estão protegidos por direito de patente, o seu titular

apenas tem o dever jurídico de explorar a invenção patenteada no território do Estado que

lhe concedeu a patente.

E mesmo assim, esse dever jurídico pode ser cumprido, em alguns países, mediante

a prova da mera comercialização do fármaco nesse país. Não é exigido o fabrico do

objeto da patente no território do Estado da proteção. Isso não acontece, felizmente,

no Brasil, aí onde o dever de explorar o invento só se satisfaz com o fabrico do objeto da

patente no Brasil, o que signifi ca um estímulo para o desenvolvimento da indústria local,

propiciando a comunicação do saber-fazer e as demais tecnologias não integralmente

divulgadas na descrição que acompanha os pedidos de patente97.

95 Após a entrada em vigor da revisão da CPE, a nova redação do artigo 87º dessa Convenção permite reconhecer o direito de

prioridade relativamente a pedidos de proteção inicialmente realizados em Estados contratantes da Organização Mundial do

Comércio, mesmo que estes não tenham aderido à Convenção de Paris.

96 Nesse sentido, cfr. as decisões G 02/02 e G 03/02, tiradas na Grande-Câmara de Recurso do Instituto Europeu de Patentes,

de 26 de abril de 2004.

97 Como é sabido, somente o ordenamento de patentes dos E.U.A. exige que o requerente da proteção descreva a melhor

maneira de executar a invenção para que pede proteção (requisito do best mode).

Page 95: Propriedade Intelectual nos Países de Língua Portuguesanit.uesc.br/.../files/livros/Propiedade-Intelectual... · propriedade intelectual e o uso da informação tecnológica contida

94

A liberdade contratual é conatural do titular da patente e é por ele exercida em

termos de modelar a oportunidade, o conteúdo e os efeitos jurídicos dos contratos pelos

quais ele autoriza o exercício de todas ou de algumas das faculdades jurídicas inerentes

ao direito (de patente) de que é titular: v.g., o fabrico, o transporte, o armazenamento, a

comercialização, a importação, etc.

Em suma: essas autorizações são autorizações voluntárias. Se o titular da patente

não quiser celebrar os contratos de licença, sibi imputet. E nem vale obtemperar dizendo

que terceiros podem potestativamente usar o objeto da invenção e depois remunerar

essa utilização, já que esse proceder constitui uma indesmentível violação do direito de

patente, que, como se sabe, é um direito subjetivo privado absoluto de patrimonial.

Contudo, da falta de celebração de contratos de licença de patentes (as licenças

voluntárias) podem resultar prejuízos e danos gravíssimos para os destinatários dos

cuidados de saúde e, inclusivamente, para os Governos dos Estados que prosseguem

objetivos pautados pela melhoria dos cuidados de saúde.

Se o titular da patente decidir não realizar contratos de licença de exploração

da patente, é bem provável que a especulação provoque o aumento do preço que

seria livremente negociável no mercado. Pense-se nas pandemias (maxime, a aids) e

nas epidemias (v.g., a malária, a hepatite C, a tuberculose) que afetam os países em

desenvolvimento e os países menos desenvolvidos. Pense-se, igualmente, na ameaça

de certas epidemias de curta duração que podem afetar os países mais desenvolvidos,

como tem sido a (constante) ameaça da gripe aviária.

8.1. AS LICENÇAS COMPULSÓRIAS E A EXPORTAÇÃO DE FÁRMACOS PARA OS PAÍSES COM GRAVES

PROBLEMAS DE SAÚDE PÚBLICA (AS FLEXIBILIDADES DO TRIPS)

Os ordenamentos nacionais prevêem, há muito98, a possibilidade de emissão

das denominadas licenças obrigatórias ou compulsórias de direitos de propriedade

industrial, maxime, as licenças obrigatórias de direitos de patente. São licenças onerosas

e, em princípio, são licenças não exclusivas, cuja remuneração é estipulada pela entidade

administrativa competente ou por um tribunal.

Coloca-se, todavia, um importante obstáculo à praticabilidade desse sistema. É que

as licenças obrigatórias ou compulsórias de direito de patente visam apenas autorizar a

98 Em Portugal, essa possibilidade existe já desde o CPI de 1940 (artigo 30º), aplicável sempre que o titular não explorasse o

invento, durante o prazo de três anos, a contar da concessão, ou não o fi zesse de modo a ocorrer às necessidades nacionais,

bem como nas eventualidades em que fosse exigível essa utilização por terceiros em indústrias com considerável importância

para a economia nacional. O ato de concessão da licença obrigatória consistia, ao tempo, na prolação de uma sentença de

natureza constitutiva, precedida de uma ação declarativa junto ao tribunal judicial competente. A partir do CPI português de

1995, a concessão de licença obrigatória passou a operar por meio da emissão de um ato administrativo por parte do INPI ou

do Governo (no caso de serem invocados e estarem verifi cados motivos de interesse público: artigo 110º/4 do CPI de 2003).

Page 96: Propriedade Intelectual nos Países de Língua Portuguesanit.uesc.br/.../files/livros/Propiedade-Intelectual... · propriedade intelectual e o uso da informação tecnológica contida

95

utilização do objeto da invenção no território do Estado cuja administração constituiu ou

concedeu o direito de propriedade industrial, independentemente do consentimento

do titular da patente. O princípio da territorialidade dos direitos de propriedade industrial,

et, pour cause, dos direitos de patente, impõe naturalmente essa solução.

O próprio Acordo TRIPS permite o licenciamento compulsório “predominantemente

para fornecimento do mercado interno do Membro que autorizou essa utilização” (artigo

31º, alínea f ), do TRIPS).

Na verdade, com base nesse preceito, o INPI português ou o congênere brasileiro

não podem autorizar a utilização do objeto da patente para o fi m de efetuar a exportação

de um fármaco carenciado em um país terceiro, em desenvolvimento ou menos

desenvolvido. É certo que esse país terceiro, cujos habitantes carecem da administração

desse fármaco, está salvo de conceder uma licença obrigatória para importação para

o respectivo território nacional, com base em razões de saúde pública ou por outros

motivos de interesse público (v.g., segurança nacional, desenvolvimento econômico e

tecnológico do país). Todavia, o fármaco apenas poderá ser importado a partir de um

país em cujo território não esteja em vigor a patente que protege essa invenção ou,

estando aquela em vigor, o titular da patente autorize, nesse outro país, a fabricação e a

subsequente exportação.

8.2. A DECLARAÇÃO DE DOHA E OS DESENVOLVIMENTOS POSTERIORES

Essa difi culdade em obter fármacos patenteados a um preço razoavelmente acessível

foi acentuada, em 2001, por ocasião das queixas apresentadas pelos E.U.A. contra os

governos do Brasil99 e da África do Sul, junto da Organização Mundial do Comércio. Esse

foi, de resto, o mote para a emissão da conhecida Declaração de Doha, sobre o Acordo

TRIPS e a saúde pública, de 20 de novembro de 2001100, a qual visou agilizar o fabrico e a

exportação de medicamentos genéricos (bioequivalentes, qualitativa e quantitativamente,

aos medicamentos de referência), a preços inferiores, para países menos desenvolvidos.

O parágrafo 6º da referida Declaração de Doha reconheceu que os países com

escassa ou nula capacidade industrial instalada no setor farmacêutico são incapazes de

utilizar efi cazmente o mecanismo das licenças compulsórias existente nos respectivos

ordenamentos jurídicos e solicitou que o Conselho do TRIPS procedesse à análise desse

problema e recomendasse as soluções adequadas.

99 Como é sabido, a queixa dirigida contra o Brasil baseou-se no fato de o regime jurídico das licenças compulsórias poder atuar

nos casos em que o objeto da patente não for fabricado no Brasil. Não basta a mera importação e comercialização, no Brasil,

do objeto da patente; faz-se mister que o fabrico ocorra no Brasil, por óbvias razões de promoção e de estímulo da atividade

industrial no país e da transferência de tecnologia para as indústrias brasileiras ou estrangeiras com fi liais no Brasil.

100 Documento WT/MIN(01)DEC/2.

Page 97: Propriedade Intelectual nos Países de Língua Portuguesanit.uesc.br/.../files/livros/Propiedade-Intelectual... · propriedade intelectual e o uso da informação tecnológica contida

96

Em 30 de agosto de 2003, o Conselho do TRIPS, com a preciosa ajuda e mediação

da União Europeia, acordou sobre a implementação do referido parágrafo 6º da

Declaração de Doha, ainda que a título provisório, até que fosse alcançado um consenso

alargado no que respeita à alteração do referido artigo 31º, alínea f ), do TRIPS. Assim, os

Estados contratantes da Organização Mundial do Comércio - OMC passaram a poder

ser dispensados do cumprimento das obrigações emergentes do TRIPS, para o efeito de

adotarem as medidas julgadas necessárias em matéria de importação, exportação ou

fabrico de fármacos, com vista a satisfazer os interesses da saúde pública101.

Essa Decisão tornou, na prática, inaplicável o requisito previsto na alínea f) do

artigo 30º do TRIPS, de harmonia com o qual as licenças compulsórias somente devem

ser emitidas para fi ns de utilização do objeto da patente no mercado interno do Estado

que autorizou essa utilização. Essa decisão permite, desse modo e pelo contrário, que

os ordenamentos nacionais criem mecanismos pelos quais uma licença obrigatória pode

ser concedida para fi ns de fabrico e exportação de determinado tipo de medicamentos102

destinados a países com específi cas necessidades de utilização desses medicamentos.

Assim, o Estado importador (Estado contratante do TRIPS) que pretenda usar esses

fármacos deve notifi car o Conselho do TRIPS e comunicar que não desfruta de capacidade

industrial instalada ou ela é insufi ciente (exceto se for um país menos desenvolvido).

Se nesse Estado importador o medicamento estiver protegido por direito de patente,

esse Estado deve declarar que já emitiu ou pretende emitir uma licença compulsória -

exceto se for um país menos desenvolvido, a quem o parágrafo 7º da Declaração de Doha

autoriza não sancionar, no seu território, o exercício de direitos de patente. Esse Estado

importador também deve identifi car um potencial Estado exportador.

Uma entidade desse Estado exportador deve, por sua vez, iniciar negociações para a

celebração de um contrato de licença com o titular da patente, em termos comercialmente

razoáveis, e por um período de tempo comercialmente razoável. Se a licença voluntária

for recusada, o exportador potencial deverá solicitar uma licença compulsória junto ao

seu próprio Governo, limitada a um único fornecimento.

Por sua vez, o Estado exportador deverá notifi car o Conselho do TRIPS dos termos

da licença compulsória para exportação, incluindo o destino, as quantidades a fornecer

e a duração da licença.

101 J. P. REMÉDIO MARQUES, “Propriedade Intelectual e Interesse público”, in Boletim da Faculdade de Direito de Coimbra, vol.

79, 2003, p. 293 ss., p. 332-335 e nota 91; CARVALHO, Nuno Pires de, The TRIPS Regime of Patent Rights, 2ª edição, Kluwer Law

International, The Hague, 2005, pp. 339-364.

102 O conceito de medicamento utilizado no §1, alínea a), dessa Decisão cobre os ingredientes ativos, os kits de diagnóstico e,

ao que julgo, as vacinas. Tb. in ABOTT, Frederick, in Resource Book on TRIPS and Development, Cambridge University Press, 2005,

p. 484.

Page 98: Propriedade Intelectual nos Países de Língua Portuguesanit.uesc.br/.../files/livros/Propiedade-Intelectual... · propriedade intelectual e o uso da informação tecnológica contida

97

O exportador deverá solicitar o registro do fármaco e demonstrar a bioequivalência

e a biodisponibilidade deste, segundo as normas previstas no Estado importador.

Prevê-se o pagamento de uma remuneração adequada, a fi xar caso a caso, em favor

do titular da patente. Os fármacos fornecidos sob o abrigo dessa licença devem estar

identifi cados por meio de embalagens diferentes, de cores ou de outras características

da aparência.

Antes de iniciar a importação para o país carenciado, o titular da licença deverá

publicitar as quantidades fornecidas e as características distintivas do produto.

O exportador deve notifi car o Conselho do TRIPS sobre a concessão da licença e o

respectivo conteúdo.

Depois, a Decisão de implementação da Declaração de Doha determina a obrigação

de o Estado importador prevenir a reexportação dos mesmos fármacos para outros países,

bem como o dever de qualquer Estado-Membro da OMC prevenir a importação para

os respectivos países de fármacos fabricados e exportados sob o abrigo dessas licenças

compulsórias. Essa medida visa prevenir que os produtos assim transacionados sejam

distraídos para outros mercados de Estados que não se confrontam com problemas

graves de saúde pública, bem como contornar as objeções postas por alguns Estados,

que viram nesse esquema um astucioso expediente, passível de colidir, de modo

injustifi cável, com a exploração normal dos direitos de patente (artigo 30º do TRIPS).

No entanto, esse mecanismo instituído pela referida Decisão, de 30 de agosto

de 2003, foi transformado em um instrumento jurídico permanente, incluído no corpo

normativo do próprio TRIPS, por meio do aditamento do artigo 31º-bis ao TRIPS, efetuado

em 8 de dezembro de 2005. A sua vigência enquanto instrumento jurídico inserido no

Acordo TRIPS depende da adesão de dois terços dos Estados contratantes da OMC, e a

data-limite de adesão a essa alteração termina em 31 de dezembro de 2009.

8.3. A REAÇÃO DA UNIÃO EUROPEIA E DE OUTROS ESTADOS NÃO MEMBROS

Alguns Estados não membros da União já procederam à densifi cação das condições

de cuja verifi cação depende a emissão desse tipo de licenças para exportação. Fê-lo a

Noruega103, o Canadá104, a Índia105 e a China.

103 Decreto Real de 14 de maio de 2004, o qual alterou os artigos 49º e 69º da lei de patentes norueguesa, de 15/12/1967 –

http://www.dep.no/ud/engelsk.

104 Em maio de 2004, o legislador canadense alterou o Patent Act e o Food and Drugs Act e prescreveu uma lista de produtos

dessa natureza “candidatos positivos” ao “benefício” da outorga de licenças obrigatórias. Cfr. ABOTT, Frederick, in Resource Book

on TRIPS and Development, 2005, cit., p. 483.

105 A Índia procedeu à alteração da sua lei de patentes.

Page 99: Propriedade Intelectual nos Países de Língua Portuguesanit.uesc.br/.../files/livros/Propiedade-Intelectual... · propriedade intelectual e o uso da informação tecnológica contida

98

Os Estados-Membros da União Europeia não alteraram os respectivos regimes

internos, na sequência dessa Decisão do Conselho do TRIPS, de 30 de agosto de 2003.

Ao invés, a Comissão Europeia promoveu a harmonização vertical desse problema,

por meio da emissão do Regulamento (CE) nº 816/2006, do Parlamento Europeu e do

Conselho, de 17 de maio de 2006, relativo à concessão de licenças obrigatórias de direitos

de patente e certifi cados complementares de proteção destinados ao fabrico de produtos

farmacêuticos destinados à exportação para países com problemas de saúde pública. A

Noruega e o Canadá também legislaram a esse respeito.

Em todas essas hipóteses legiferantes, foi adotado o modelo da concessão de licenças

compulsórias (de exportação) de jaez nacional, provido de mecanismos procedimentais

complexos (notifi cações, embalagens, acondicionamento, rotulagem, oposição do

titular da patente, etc.), em vez de ser criado um esquema de licenças de direito, de

constituição mais rápida e sem efeito suspensivo após a dedução de oposição do titular

da patente. Não se esqueça, ainda, que esse mecanismo deverá ser desencadeado

tantas vezes quantos forem os lotes de medicamentos a serem exportados, caso a caso

e pontualmente, para os países com graves problemas de saúde pública.

Assim, os representantes do país importador, de organismos da ONU ou de uma

organização não governamental que atue como a autoridade formal de um ou de

vários importadores devem apresentar uma notifi cação às autoridades competentes do

Estado-Membro em que produzam efeitos patentes ou certifi cados complementares de

proteção e declarar que pretendem utilizar esse mecanismo para fazer face a problemas

de saúde pública (artigo 5º, alíneas a) e b), artigo 6º/1 e 3, ambos do Regulamento (CE)

nº 816/2006). A autoridade competente notifi ca imediatamente o titular dos direitos

do pedido de licença obrigatória, dando-lhe a oportunidade de exercer o contraditório

acerca do pedido e prestar informações relevantes. Não obstante, o requerente da licença

no país exportador deve demonstrar, perante as autoridades competentes, que efetuou

diligências para obter uma licença voluntária e que tais diligências não tiveram êxito

(artigo 9º/1), exceto nas situações de emergência nacional ou outras circunstâncias de

extrema urgência. Se emitir a licença obrigatória, o Estado-Membro exportador deve

notifi car o Conselho do TRIPS, por meio da Comissão Europeia, informando-o das

condições dessa licença (artigo 12º). Tais condições são, sumariamente, as seguintes:

a licença obrigatória é, em princípio, intransmissível; é constituída ad tempus e deve

limitar-se estritamente a todos os atos. A quantidade dos lotes a exportar não deve

ultrapassar o necessário para satisfazer as necessidades do(s) país(es) importador(es)

mencionado(s) no pedido, tendo em conta a quantidade do(s) produto(s) fabricado(s)

sob o abrigo de outras licenças obrigatórias concedidas em qualquer outro lugar; os

produtos fabricados sob o abrigo da licença devem ser claramente identifi cados por

Page 100: Propriedade Intelectual nos Países de Língua Portuguesanit.uesc.br/.../files/livros/Propiedade-Intelectual... · propriedade intelectual e o uso da informação tecnológica contida

99

meio de rotulagem e devem distinguir-se dos fabricados pelo titular da patente por

meio de uma embalagem especial, com cor ou formas distintas, provida com indicação

de que o produto está sujeito a uma licença obrigatória.

A concessão da licença obrigatória para exportação é, obviamente, uma licença

onerosa. Em situações de emergência nacional do país importador, a remuneração

deve corresponder a 4%, no máximo, do preço total a pagar pelo país importador

ou em nome desse país. Nos demais casos, a remuneração é determinada tendo em

consideração o valor econômico da utilização que foi autorizada sob o abrigo da licença

para o país importador em causa, bem como as circunstâncias humanitárias ou não

comerciais relacionadas com a emissão da licença (artigo 9º, alíneas a) e b), do citado

regulamento).

Por outro lado, proíbe-se a importação, para a Comunidade, dos produtos fabricados

sob o abrigo da licença obrigatória, bem como a reexportação, colocação sob um regime

suspensivo ou colocação em uma zona franca.

De fato, o esquema das licenças compulsórias instituído por esse regulamento

comunitário pressupõe a intervenção procedimental do titular da patente, seja

para fornecer informações relevantes, seja para propor a correção de erros, seja para

impugnar a decisão; e a sua impugnação é efetuada sob o abrigo dos direitos nacionais,

substantivos e processuais, dos Estados-Membros da União Europeia, podendo ter efeito

suspensivo (artigo 17º/2º do referido regulamento), consoante a previsão nesses direitos

nacionais106.

Parece, inclusivamente, que esse complexo esquema procedimental serve apenas

como instrumento de dissuasão, que será raramente posto em prática, na medida em

que, como no-lo revela a experiência brasileira (com exceção da licença obrigatória

concedida para exploração no Brasil do efavirenz, em maio de 2007) e da África do Sul

(aí onde a autoridade da concorrência, após ter aplicado uma multa e haver considerado

que a titular da patente efetuara uma prática restritiva da concorrência), esse titular da

patente preferirá negociar a celebração de um contrato de licença do que sujeitar-

se a ver contra si concedida e efetivada uma licença compulsória, com o que esse ato

implicará termos de “imagem” das empresas do grupo nas cadeias de distribuição dos

produtos.

106 Por exemplo, no direito português, a concessão de uma licença compulsória pode ser objeto de recurso para o juízo de

propriedade intelectual de Lisboa (artigo 40º/2, ex vi do artigo 112º/2, ambos do CPI de 2003, na redação da Lei nº 52/2008,

de 28 de agosto); depois, o titular da patente pode recorrer ao tribunal de 2ª instância (tribunal da Relação de Lisboa) e,

excepcionalmente, ao Supremo Tribunal de Justiça (artigo 46º/2 do mesmo Código). A decisão favorável à concessão só produz

efeitos após o trânsito em julgado e depois de ter sido averbada no registro do INPI português (artigo 112º/4 do mesmo

Código).

Page 101: Propriedade Intelectual nos Países de Língua Portuguesanit.uesc.br/.../files/livros/Propiedade-Intelectual... · propriedade intelectual e o uso da informação tecnológica contida

100

8.4. ALGUMAS DIFICULDADES DE IMPLEMENTAÇÃO DO REGULAMENTO (CE) Nº 816/2006 E DA

DECISÃO DO CONSELHO DO TRIPS, DE 30 DE AGOSTO DE 2003

Subsistem, ainda, dois outros problemas susceptíveis de difi cultar a implementação

e atuação efetiva do mecanismo das licenças obrigatórias.

O primeiro tem a ver com a utilização dos dados farmacológicos, pré-clínicos e

clínicos pela entidade sanitária no país importador, com vista a emitir a autorização

administrativa de comercialização nesse país. É que essa utilização é normalmente

efetuada ainda durante o prazo de proteção dos dados (na União Europeia a fórmula é,

como referimos supra, 8 + 2 + 1).

Ora de duas, uma: ou bem que é paga ao titular da patente uma remuneração

global adequada no país exportador pela utilização desses dados no país importador,

por isso mesmo susceptível de incorporar o valor dos dados e o valor econômico da

utilização que for autorizada - pois só assim se respeita o disposto no artigo 39º/3 do

TRIPS107 -, ou bem que a patente apenas abrange um dos ingredientes ativos de que o

fármaco é composto. Nesse último caso, o titular da licença obrigatória deverá, ainda,

obter no país importador uma autorização administrativa de comercialização108.

A União Europeia resolveu parcialmente esse problema no artigo 18º/2 do citado

Regulamento (CE) nº 816/2006, de 17 de maio de 2006, visto que se o pedido de licença

compulsória for relativo a um genérico de um medicamento de referência, que seja ou

tenha sido autorizado sob o abrigo do artigo 6º da Diretiva nº 2001/83/CE, e sob o

abrigo da legislação interna dos Estados-Membros, são inaplicáveis os referidos períodos

de proteção dos dados farmacológicos, pré-clínicos e clínicos, previstos no Regulamento

(CE) nº 726/2004 e nos nos 1 a 5 da mencionada Diretiva nº 2001/83/CE.

O segundo problema é gerado pela falsa premissa de que cada fármaco

patenteado é atingido por uma única patente titulada por uma única pessoa (humana

ou jurídica), o que não é verdade, especialmente nas patentes de biotecnologia: uma

vacina geneticamente manipulada ou um antirretroviral são, não raras vezes, atingidos

por patentes pertencentes a várias pessoas ou entidades. Assim, poderá ser necessário

remunerar adequadamente duas ou mais pessoas ou entidades, nos termos do artigo 31º,

alínea h), do Acordo TRIPS.

E mesmo que apenas seja enfocado o produto ou o fármaco, que não a pessoa

do titular da patente - como parece sugerir a redação do parágrafo 7 da Declaração

de Doha -, pode suceder que o fármaco seja composto por vários ingredientes ativos

patenteados e por um ou vários excipientes também objeto de patente, de sorte que

107 Nessa eventualidade, não existe a necessidade de emitir duas licenças obrigatórias - uma para fabricar e exportar o fármaco

e outra para utilizar os dados farmacológicos, pré-clínicos e clínicos no país importador, com vista à emissão da autorização

administrativa destinada a permitir a colocação desse fármaco no mercado do país importador.

108 Também, nesse sentido, CARVALHO, Nuno Pires de, The TRIPS Regime of Patent Rights, 2ª edição, 2005, cit., pp. 366-367.

Page 102: Propriedade Intelectual nos Países de Língua Portuguesanit.uesc.br/.../files/livros/Propiedade-Intelectual... · propriedade intelectual e o uso da informação tecnológica contida

101

cada um dos ingredientes ativos e excipientes poderá ser considerado um produto

diferente, relativamente ao qual terá que ser emitida a respectiva licença compulsória.

Seja como for, a remuneração adequada é calculada com base no valor econômico

da utilização que for autorizada sob o abrigo da licença para os países importadores (artigo

10º/9, alínea b), do Regulamento (CE) nº 816/2006), independentemente do número

de licenças e de licenciantes compulsórios envolvidos: os royalties e as demais quantias

entregues deverão ser repartidos entre todos, de acordo com os critérios estabelecidos

pela entidade administrativa que conceder a licença obrigatória109.

9. OS ACORDOS BILATERAIS (O TRIPS-PLUS) EM MATÉRIA DE PATENTES E O MIN-

GUAR DAS UTILIZAÇÕES LIVRES

Os resultados do chamado bilateralismo no quadro do direito de patentes também

têm espelhado a maneira como os Estados economicamente hegemônicos tentam

transpor os seus regimes jurídicos para o quadro normativo dos Estados com quem

celebram acordos comerciais.

Fazem-no os E.U.A. e também a União Europeia, embora sejam os primeiros aqueles

que assumem uma estratégia de plasmar nos Acordos de Livre Comércio o objetivo de

elevação dos níveis de proteção dos direitos de propriedade intelectual. Não é por acaso

que os maiores atores transnacionais do fabrico e do comércio de medicamentos têm a

sua sede nos E.U.A. e na União Europeia.

Aqui, o princípio do tratamento nacional (artigo 3º/1 do Acordo TRIPS) é a mola que

impulsiona a elevação de novos patamares e níveis de proteção, visto que a celebração

de um acordo bilateral entre um determinado Estado e os E.U.A. ou a União Europeia,

provido de novos objetos de proteção ou de um âmbito de proteção mais alargado, obriga

esse Estado a conceder o mesmo tratamento aos nacionais de outros Estados-Membros

da OMC. Então, se esse novo patamar ou nível de proteção se tornar mais ou menos

hegemônico, tanto os E.U.A. quanto a União Europeia tentam introduzi-lo no quadro

das negociações do TRIPS110.

Os Acordos de Livre Comércio celebrados ou projetados pelos E.U.A. seguem esse

paradigma: se o universo dos objetos ou realidades patenteáveis se estende a qualquer

setor tecnológico (artigo 27º/1 do TRIPS), é natural que se queira eliminar todas e quaisquer

“exceções”, tais como a eliminação da proibição da patenteabilidade de uma miríade de

matérias biológicas: sequências genéticas meramente isoladas do estado natural, células,

plantas, animais, processos (micro)biológicos de obtenção de plantas ou animais.

109 Em sentido análogo, cfr. CARVALHO, Nuno Pires de, The TRIPS Regime of Patent Rights, 2ª edição, 2005, cit., p. 356.

110 VAVER, David / BASHEER, Shamnad, “Popping Patented Pills …”, 2006, cit., p. 288.

Page 103: Propriedade Intelectual nos Países de Língua Portuguesanit.uesc.br/.../files/livros/Propiedade-Intelectual... · propriedade intelectual e o uso da informação tecnológica contida

102

Outrossim, tem-se em vista a abolição da regra que veda a patentabilidade dos

métodos de diagnóstico, terapêuticos e cirúrgicos aplicados diretamente ao corpo

humano e a regra que permite a proibição da patenteabilidade das invenções que

violam a ordem pública, o meio ambiente ou a saúde pública.

Isso sem esquecer a introdução da regra de harmonia com a qual o Estado

contratante de acordos bilaterais desse jaez se obriga a não receber nem apreciar os

pedidos de registro de medicamentos genéricos enquanto não caducar a patente do

medicamento de referência. Esse regime traduz o famoso linkage ou mecanismo de

articulação entre a vigência do direito de patente e a aprovação e registro de medicamentos

genéricos ou biossimilares por parte das entidades sanitárias competentes. Atente-se

também para a regra de acordo com a qual, após a caducidade da patente pelo decurso

do prazo, é possível estender a duração do exclusivo resultante de demoras não razoáveis

para obter a aprovação dos fármacos.

E, enfi m, o dever jurídico de os Estados passarem a proteger as patentes de segundo

e subsequentes usos terapêuticos de substâncias já conhecidas.

Na União Europeia, o regime do certifi cado complementar de proteção para

produtos farmacêuticos - que constitui um novo direito de propriedade industrial ligado à

substância ativa autorizada pelas entidades sanitárias competentes e que fora protegida

pela patente de base - permite adicionar um período máximo de cinco anos aos 20

anos de duração da patente. Isso na hipótese mais extrema de decorrer um prazo de 10

anos entre o depósito do pedido de patente e a data da aprovação do medicamento

e a entrada nos circuitos comerciais: em qualquer caso, a duração efetiva do exclusivo

comercial nunca pode durar mais de 15 anos111.

O artigo 17.9.1. do Acordo de Livre Comércio celebrado entre os E.U.A. e o Chile é

exemplo do recuar do contra legem em matéria de direito de patente.

É, porém, certo que a maioria das exceções e impedimentos à patenteabilidade

das invenções tiveram a sua origem na Convenção sobre a Patente Europeia, de 1973, e,

antes dela, nos ordenamentos nacionais de alguns Estados europeus, em particular, na

Alemanha, Reino Unido e França. Todavia, é comumente aceite que essas exceções ou

impedimentos devem ser interpretados restritivamente, o que me parece uma inversão

axiológico-metodológica: de fato, a regra é a da liberdade; a regra da liberdade de

exercício de atividades econômicas e de iniciativa privada (artigo 61º/1 da Constituição da

República Portuguesa), que apenas é limitada aí onde, por outras razões também elas

ponderosas, o legislador resolva criar exclusivos comerciais ou industriais.

111 Artigo 13º do Regulamento (CEE) nº 1.768/92, do Conselho, de 18 de junho de 1992, relativo à criação de um certifi cado

complementar de proteção para os medicamentos.

Page 104: Propriedade Intelectual nos Países de Língua Portuguesanit.uesc.br/.../files/livros/Propiedade-Intelectual... · propriedade intelectual e o uso da informação tecnológica contida

103

Ademais, mesmo no ordenamento europeu, aqui onde se determina a proibição

da patenteabilidade dos métodos de diagnóstico praticados sobre o corpo humano

vivo (artigo 52º/4 da CPE), a mais alta jurisprudência do Instituto Europeu de Patentes

instituiu um regime de “exceção à exceção” da patenteabilidade dessas realidades, qual

seja: os métodos de diagnóstico são, apesar de tudo, patenteáveis se a sua execução

somente fornecer resultados intermédios (e não um diagnóstico fi nal) - já que se estará

apenas perante um método de obtenção de dados ou elementos informativos acerca do

estado de (des)equilíbrio psico-físico do examinando - ou se for executado fora do corpo

humano vivo (v.g., em amostras de matérias biológicas retiradas do corpo humano)112.

Do mesmo modo, a proibição das patentes de métodos terapêuticos é de alguma

forma “contornada” mediante a admissão, no artigo 54º/5 da CPE, da patenteabilidade

do uso de uma substância para o fabrico de um medicamento para ser usado na execução

de métodos de diagnóstico, terapêuticos ou cirúrgicos (segundo e subsequentes

usos médicos de substâncias já conhecidas)113. No mesmo sentido navega agora o

disposto no artigo 54º/1, alínea a) e b), do CPI de 2003, na redação do Decreto-Lei nº

143/2008, de 25 de julho. Diz-se, então, que esse tipo de reivindicação não atinge o

método terapêutico, mas apenas as atividades preliminares de produção ou fabrico de um

medicamento (a partir de uma substância química já conhecida) usado em uma nova

aplicação terapêutica. A invenção parece estar no novo efeito técnico associado à

segunda ou às subsequentes aplicações terapêuticas, efeito este que estaria, apesar de

tudo, “escondido” do conhecimento dos peritos na especialidade quando essa mesma

substância fora utilizada para outros propósitos114. É claro que, depois, a sindicação da

novidade (e o nível inventivo) dessas invenções far-se-á à luz dos critérios das invenções

de seleção de substâncias químicas integradas em compostos constituídos por centenas

ou milhares de substâncias.

Essas considerações não impedem que sejam, por vezes, concedidas patentes de

uso relativas a aplicações médicas praticamente banais ou triviais. Foi o que, em minha

opinião, terá acontecido na decisão T 1020/03, proferida por uma das Câmaras Técnicas

112 Decisão G 01/04, da Grande-Câmara de Recurso, de 16/12/2005, in http://www.epo.org.; agora, no mesmo sentido,

decisão T 330/03, no caso ABOTT LABORATORIES/Multiplex sensor and method of use, de 7/02/2006, in http://www.epo.org. Cfr.

J. P. REMÉDIO MARQUES, “A patenteabilidade dos métodos de diagnóstico, terapêuticos e cirúrgicos: Questão (bio)ética ou

questão técnica? – O actual estado do problema”, in Estudos de Direito da Bioética, vol. II, Almedina, Coimbra, 2008, p. 211 ss.,

pp. 248 ss. = in Lex Medicinae, Revista Portuguesa de Direito da Medicina, n. 6, 2006, p. 73 ss., p. 95 ss.

113 Esse artigo 54º/5 da CPE traduz, assim, uma exceção à exceção prevista no artigo 52º/4, que, inter alia, veda a patenteabilidade

dos métodos terapêuticos.

114 Sobre essas patentes do segundo e dos subsequentes usos médicos de substâncias já conhecidas, cfr. PATERSON, Gerald, The

European Patent System, The Law and Practice of the European Patent Convention, 2ª edição, Sweet & Maxwell, London, 2001,

pp. 518-530; PATERSON, Gerald, “The Novelty of Use Claims”, in International Review of Industrial Property and Copyright Law,

1996, p. 179 ss.; J. P. REMÉDIO MARQUES, Biotecnologia(s) e Propriedade Intelectual, vol. I, 2007, cit., pp. 924-929.

Page 105: Propriedade Intelectual nos Países de Língua Portuguesanit.uesc.br/.../files/livros/Propiedade-Intelectual... · propriedade intelectual e o uso da informação tecnológica contida

104

de Recurso do Instituto Europeu de Patentes, no caso Method of Administration of

IGF-1/Genentech, de 29/10/2004: as reivindicações incidiam sobre o “uso de um fator de

crescimento do tipo insulina na preparação de um medicamento para ser administrado em

mamíferos” e o tribunal aceitou que a novidade residia apenas na dose usada e na forma

de aplicação dessa substância.

Mas a situação é, por vezes, caricata: em certos países que adotaram o regime jurídico

do TRIPS-Plus, as empresas europeias estão livres de patentear invenções cuja proteção

lhes seria negada no quadro da Convenção da Patente Europeia e dos ordenamentos

nacionais dos seus Estados contratantes. E a inversa também é verdadeira.

Tudo isso não impede, porém, que os Estados contratantes da OMC e obrigados

a cumprir o Acordo TRIPS utilizem todas as “proibições” da patenteabilidade previstas

na CPE, mas sem abrir “exceções às exceções”. Podem assim tais Estados proibir a

patenteabilidade das invenções respeitantes a plantas e a animais, bem como impedir

a patenteação dos processos essencialmente biológicos ou microbiológicos de produção

ou fabrico de outras matérias.

De igual modo, podem tais Estados proibir a patenteabilidade das invenções

contrárias à promoção da saúde pública, ao meio ambiente, à dignidade e à integridade

dos seres humanos, ainda que no estado embrionário, ou que impliquem um sacrifício

ou sofrimentos desmesurados aos animais não humanos em cujo organismo sejam

executadas, etc.

Outrossim, estão salvos de fazer depender a concessão da patente da menção

da origem geográfi ca dos recursos biológicos com base nos quais foi, sem margem

para dúvidas, obtida a invenção e/ou o consentimento informado das pessoas cujos

conhecimentos serviram para a obter.

Por outro lado, temos assistido ao minguar das chamadas utilizações livres do direito

de patente, ou seja, todas aquelas situações em que terceiros estão livres para usar o

objeto da invenção patenteada independentemente do consentimento do titular da

patente. Isso é mais acentuado no caso das patentes biotecnológicas.

De fato, na União Europeia (e nos E.U.A., embora não haja norma expressa nesse

outro ordenamento jurídico), é limitadíssimo o alcance do princípio do esgotamento

do direito de patente biotecnológica: mesmo quando aliena ou permite a alienação das

primevas matérias biológicas patenteadas, o titular da patente pode sempre controlar,

legal ou contratualmente, direta ou indiretamente, as subsequentes multiplicações ou

reproduções e, por consequência, pode ele controlar as subsequentes alienações das

matérias biológicas obtidas a partir das primeiras (artigo 103º/2 do CPI português de

2003, na sequência do disposto no artigo 10º da citada Diretiva nº 98/44/CE).

O chamado privilégio do agricultor ou do criador pecuário somente o autorizam a

utilizar, na respectiva exploração, as sementes, os materiais de reprodução animal ou os

animais protegidos pela patente (artigo 11º da citada Diretiva nº 98/44/CE e artigo 97º/6

Page 106: Propriedade Intelectual nos Países de Língua Portuguesanit.uesc.br/.../files/livros/Propiedade-Intelectual... · propriedade intelectual e o uso da informação tecnológica contida

105

do CPI português de 2003)115. Por exemplo, esses agricultores ou criadores pecuários

estão inibidos de, respectivamente e sem o consentimento do titular da patente, ceder

gratuitamente sementes das colheitas dos anos anteriores aos agricultores vizinhos, ou

ceder gratuitamente o material de reprodução animal ou os próprios animais protegidos.

De igual sorte, os criadores pecuários não podem ceder ou vender os animais assim

obtidos, com vista a uma atividade de reprodução com fi ns comerciais, mas apenas podem

vendê-los para abate ou para outros fi ns (v.g., circos, animais de companhia).

Aliás, os legisladores não falam em utilizações livres, mas sim em exceções ao direito

de patente - veja-se, por exemplo, o disposto no artigo 30º do TRIPS.

Esquece-se, todavia, que o subsistema jurídico da propriedade intelectual não

contém apenas as pautas jurídicas dos titulares desses direitos; esse subsistema é

condicionado por outros valores e interesses relevantes, especialmente os que são referidos

nos artigos 7º e 8º do Acordo TRIPS e no considerando nº 16 da Diretiva nº 98/44/CE,

sobre invenções biotecnológicas:

promoção e inovação tecnológica.•

transferência de tecnologia.•

bem estar social e econômico.•

desenvolvimento socioeconômico e tecnológico.•

conciliação entre direitos e obrigações.•

proteção da saúde pública e da alimentação. •

dignidade e integridade das pessoas humanas.•

Por conseguinte, quando desejarmos referir as utilizações livres no quadro dos

direitos de patente, deveremos falar antes em direitos dos utilizadores, em vez de exceções

aos direitos de patente.

E esses direitos dos utilizadores ou direitos de utilização do objeto das patentes

(biotecnológicas) são vários, a saber, no essencial116:

os atos praticados em um • âmbito privado e sem fi ns comerciais.

os atos realizados exclusivamente para fi ns de • ensaio ou experimentais.

os atos realizados para fi ns de ensino.•

os atos praticados sobre o objeto da invenção para a testar ou aperfeiçoar.•

os atos realizados exclusivamente para preparar e instruir procedimentos •

administrativos destinados a obter a aprovação dos produtos patenteados junto

às entidades administrativas competentes, com vista à sua comercialização

após a extinção dos direitos de patente.

115 J. P. REMÉDIO MARQUES, Biotecnologia(s) e Propriedade Intelectual, vol. II, cit., 2007, pp. 174-180, pp. 209-213, pp. 221-223.

116 Sobre isso, desenvolvidamente, J. P. REMÉDIO MARQUES, Biotecnologia(s) e Propriedade Intelectual, vol. I, 2007, cit., pp. 1137-

1196.

Page 107: Propriedade Intelectual nos Países de Língua Portuguesanit.uesc.br/.../files/livros/Propiedade-Intelectual... · propriedade intelectual e o uso da informação tecnológica contida

106

os atos praticados ou os preparativos sérios para a prática de atos de boa fé •

por terceiros, que tenham chegado por meios próprios ao conhecimento da

invenção antes da data do pedido de proteção ou da data da prioridade.

Pois só assim poderemos falar em um sistema de direito de patente equilibrado,

que não seja pautado por uma racionalidade eminentemente política de programação

e institucionalização de objetivos político-sociais dos utilizadores hegemônicos desse

subsistema (as empresas transnacionais, o Governo dos E.U.A. e algumas instituições

políticas da União Europeia). Só assim poderemos, de fato, construir e problematizar

um sistema de patentes cujo regime jurídico permita lograr consequências jurídicas e

soluções justas.

Page 108: Propriedade Intelectual nos Países de Língua Portuguesanit.uesc.br/.../files/livros/Propiedade-Intelectual... · propriedade intelectual e o uso da informação tecnológica contida

107

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ABOTT, Frederick. Resource book on TRIPS and development. Cambridge:

Cambridge University Press, 2005.

AHLERT, Ivan Bacelar; ANTUNES, Paulo de Bessa. Pipeline e Constituição: de que

inconstitucionalidade falamos. Revista da ABPI, São Paulo, n. 87, p. 45 ss., p. 53, mar./

abr. 2007.

BARBOSA, Denis Borges. Inconstitucionalidade das patentes pipeline. [S.l.: s.n.],

2006. Disponível em: <http://denisbarbosa.addr.com/pipeline.pdf>. Acesso em: 5

maio 2008.

_____.; BARBOSA, Pedro Marcos Nunes. Algumas notas à intercessão do SPC e a

patente pipeline. Revista da ABPI, São Paulo, n. 93, p. 35, p. 40, mar./abril 2008.

BURSHTEIN, Sheldon. Experimental use exception to patent infringement. Intellectual

Property, [S.l.], v. 12, n. 3, p. 744-745, 2006.

CANOTILHO, J.J.G.; MACHADO, J. A questão da constitucionalidade das patentes

pipeline à luz da Constituição Federal de 1988. Coimbra: Almedina, 2008.

CARVALHO, Nuno Pires de. The TRIPS regime of patent rights. 2. ed. The Hague:

Kluwer Law International, 2005. p. 339-364.

CLÉVE, Clémerson; BREKENFELD, Melina. A repercussão, no regime da patente pipeline,

da declaração de nulidade do privilégio originário. Revista da ABPI, São Paulo, n. 66,

p. 24, set. /out. 2003.

COOK, Trevor. The protection of regulatory data in the pharmaceutical and

other sectors. London: Sweet & Maxwell, 2000. p. 6.

CORNISH, William. Experimental use of patented inventions in European Community

states. International Review of Industrial Property and Copyright Law, Munich,

p. 735, 1996.

DI BLASSI, Gabril; GARCIA, Mário Sorensen; MENDES, Paulo Parente M. A propriedade

industrial. Rio de Janeiro: Forense, 2000. p. 124.

DOMEIJ, Benght. Pharmaceutical patents in Europe. The Hague: Kluwer Law

International, 2000. p. 293.

Page 109: Propriedade Intelectual nos Países de Língua Portuguesanit.uesc.br/.../files/livros/Propiedade-Intelectual... · propriedade intelectual e o uso da informação tecnológica contida

108

ENSTHALER, Jürgen; ZECH, Herbert. Stofschutz bei gentechnischen Patenten –

Rechtslage nach Erlass des Biopatentgesetzes und Auswirkung auf chemiepatente.

Gewerblicher Rechtsschutz und Urheberrecht, Germany, p. 529-534, 2006.

FELDGES, J. Ende des absoluten Stofschutzes? Zur Umsetzung der Biotechnologie-

richtlinie. Gewerblicher Rechtsschutz und Urheberrecht, Germany, p. 978, 2005.

CORREIA, A. Ferrer. Lições de direito internacional privado, I. Coimbra: Almedina,

2000. p. 386, p. 391, p. 397.

MARQUES, J. P. R. A patenteabilidade dos métodos de diagnóstico, terapêuticos

e cirúrgicos: Questão (bio)ética ou questão técnica? - O estado do problema.

Coimbra: Almedina; Associação Portuguesa de Direito Intelectual, 2008. p. 211, 217,

220, 243. (Estudos de direito da bioética, v. 2).

_____. Biotecnologia(s) e propriedade intelectual. Coimbra: Almedina, 2007. v.

1-2.

_____. Medicamentos versus patentes: Estudos de propriedade industrial. Coimbra:

Coimbra Editora, 2008. p. 11 § 4.2., § 5, p. 94 , p. 99, p. 112.

_____. Propriedade intelectual e interesse público. Boletim da Faculdade de Direito

de Coimbra, Coimbra, v. 79, p. 293, 332-335 e nota 91, 2003.

MADAWELA, Yvonne. European bolar exemption update. IP World – Bio

Supplement, [S.l.], p. 18, maio 2007.

PATERSON, Gerald. The European patent system: The law and practice of the

European Patent Convention. 2. ed. London, Sweet & Maxwell, 2001. p. 518-530.

_____. The novelty of use claims. International Review of Industrial Property

and Copyright Law, Munich, p. 179-190, 1996.

TIBURCIO, Carmen. Patente de revalidação (Pipeline), extensão do prazo de proteção

da patente originária no exterior: Efeitos sobre a patente pipeline nacional. Revista da

ABPI, São Paulo, n. 92, p. 44, jan./ abr. 2008.

UNIÃO EUROPEIA. Directiva 96/9/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 11 de

março de 1996. Jornal Ofi cial da União Europeia, Luxembourg, n. C 141, 13 maio

1996.

_____. Directiva 98/44/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 6 de Julho de

1998 relativa à protecção jurídica das invenções biotecnológicas Jornal Ofi cial da

União Europeia, Luxembourg, n. L 213, 30 jul.1998.

Page 110: Propriedade Intelectual nos Países de Língua Portuguesanit.uesc.br/.../files/livros/Propiedade-Intelectual... · propriedade intelectual e o uso da informação tecnológica contida

109

_____. Directiva 2004/48/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 29 de Abril

de 2004 relativa ao respeito dos direitos de propriedade intelectual. Jornal Ofi cial da

União Europeia, Luxembourg, n. L 136, 30 abr. 2004.

_____. Comissão Europeia. Relatório da Comissão Europeia ao Conselho e ao

Parlamento Europeu: Desenvolvimentos e implicações do direito de patentes no

setor da Resolução do Parlamento Europeu sobre invenções relativas a invenções

biotecnológicas, de 26 de outubro de 2005. [S.l.: s.n., 2005?]. Documento P6-TA-

PROV(2005)0407.

_____. Tribunal de Justiça. Processo C-377/98, Países Baixos c. Parlamento Europeu

e Conselho. Colectânea de Jurisprudência do Tribunal de Justiça das

Comunidades Europeias, p. 7079, 2001. Ação a que, depois, aderiram a Noruega e a

Itália.

VAVER, David; BASHEER, Shamnad. Popping patented pills: Europe and a decade’s dose

of TRIPs. European Intellectual Property Review, London, p. 202, p. 282, 2006.

VIEIRA, Fabiola Sulpino; ZUCCHI, Paola. Diferenças de preços entre medicamentos

genéricos e de referência no Brasil. Revista de Saúde Pública, São Paulo, v. 40, n. 3, p.

444-449, 2006.

Page 111: Propriedade Intelectual nos Países de Língua Portuguesanit.uesc.br/.../files/livros/Propiedade-Intelectual... · propriedade intelectual e o uso da informação tecnológica contida
Page 112: Propriedade Intelectual nos Países de Língua Portuguesanit.uesc.br/.../files/livros/Propiedade-Intelectual... · propriedade intelectual e o uso da informação tecnológica contida

117 Baseado em palestra dada no seminário “Propriedade Intelectual Nos Países de Língua Portuguesa”, 30 de junho – 2 de julho

de 2008, Rio de Janeiro, Brasil.

118 Coordenador do Núcleo Provincial de combate ao HIV, Nampula, Moçambique.

CAPÍTULO 4

POLÍTICAS DE SAÚDE, AIDS E PROPRIEDADE

INDUSTRIAL EM MOÇAMBIQUE117

Eusebio Chaquisse118, médico e docente na Universidade Lúrio

Page 113: Propriedade Intelectual nos Países de Língua Portuguesanit.uesc.br/.../files/livros/Propiedade-Intelectual... · propriedade intelectual e o uso da informação tecnológica contida

112

LISTA DE ABREVIATURAS E ACRÔNIMOS

CD4CÉLULAS DO SISTEMA IMUNOLÓGICO CONTENDO RECEPTORES EM SUA PARTE

EXTERIOR QUE PERMITEM AO HIV LIGAR-SE A ELAS

CNCS CONSELHO NACIONAL DE COMBATE AO SIDA

CV CARGA VIRAL

CVM CRUZ VERMELHA DE MOÇAMBIQUE

DFC DANIDA FELLOWSHIP CENTRE

DFG DISCUSSÕES EM GRUPOS FOCAIS

EP2 ENSINO PRIMÁRIO DO SEGUNDO GRAU

EPP EPIDEMIOLOGICAL PROJECTION PACKAGE

GATV GABINETE DE ACONSELHAMENTO E TESTAGEM VOLUNTÁRIA

HD HOSPITAL-DIA

HIV VÍRUS DA IMUNODEFICIÊNCIA HUMANA

INE INSTITUTO NACIONAL DE ESTATÍSTICA

ITS INFECÇÃO DE TRANSMISSÃO SEXUAL

MISAU MINISTÉRIO DA SAÚDE

ONG ORGANIZAÇÕES NÃO GOVERNAMENTAIS

PEN PLANO NACIONAL ESTRATÉGICO

PMTCT PREVENÇÃO DA TRANSMISSÃO DA MÃE PARA O FILHO

PNPCS PROGRAMA NACIONAL DE PREVENÇÃO E CONTROLE DE SIDA

PVHA PESSOAS VIVENDO COM HIV E AIDS

SAAJ SERVIÇOS AMIGÁVEIS DE ADOLESCENTES E JOVENS

SIDA (AIDS) SÍNDROME DA IMUNODEFICIÊNCIA ADQUIRIDA

SNS SISTEMA NACIONAL DE SAÚDE

SSRAJ SAÚDE SEXUAL E REPRODUTIVA DO ADOLESCENTE E JOVEM

TARV TERAPIA ANTIRRETROVIRAL

UEM UNIVERSIDADE EDUARDO MONDLANE

UNAIDS PROGRAMA CONJUNTO DAS NAÇÕES UNIDAS SOBRE O HIV E AIDS

Page 114: Propriedade Intelectual nos Países de Língua Portuguesanit.uesc.br/.../files/livros/Propiedade-Intelectual... · propriedade intelectual e o uso da informação tecnológica contida

113

I. INTRODUÇÃO

O HIV/aids é um dos mais terríveis desafi os à vida humana, constituindo uma

emergência nacional em Moçambique devido aos seus efeitos devastadores em escala

nacional e ao seu impacto negativo nos esforços realizados com o objetivo de promover

o desenvolvimento econômico e social e o bem-estar das famílias. A perda de membros

economicamente ativos dos agregados familiares e o aumento do número de pessoas

econômica e socialmente vulneráveis, como os órfãos e os idosos, condiciona o efetivo

gozo dos direitos humanos (MOÇAMBIQUE, 2003).

Moçambique possui uma população de cerca de 20 milhões de habitantes, dos

quais 44,8% são menores de 15 anos. A população jovem, ou seja, entre 15 e 24 anos

de idade, constitui 32,2% da população (PNUD, 2006). A pandemia do HIV/aids afeta

todos os grupos populacionais, ricos e pobres, sem distinção de idade, sexo ou raça,

e estima-se que, em 2007, 1,8 milhões de pessoas estavam infectadas pelo HIV, o que

equivale a uma prevalência de 16%, ocorrendo por dia cerca de 500 novas infecções

(MOÇAMBIQUE, 2007). As mulheres constituem o grupo populacional mais afetado e

vulnerável à epidemia do HIV/aids, particularmente as moças, o que se refl ete na diferença

de prevalência da infecção no grupo etário de 15-24 anos, em que o sexo feminino está

3 vezes mais afetado que o masculino (MOÇAMBIQUE, 2007; MOÇAMBIQUE; INE, 2003).

A desigualdade de gênero faz com que seja muito difícil para as mulheres terem

a capacidade de negociar o “sexo seguro” e insistir em que os seus parceiros utilizem

preservativos. As mulheres jovens são especialmente vulneráveis ao HIV devido ao sexo

entre gerações e ao sexo transacional (CHAQUISSE, 2006). Adicionalmente, estima-se

que 36,8% dos homens, 57% das mulheres e 6,2% das crianças vivem com o HIV/aids,

com implicações severas sobre o seu bem-estar econômico e social (MOÇAMBIQUE,

2003). O peso dessa pandemia afeta desproporcionalmente as mulheres, que, pela

natureza da evolução do processo de doença dos indivíduos infectados no respectivo

agregado familiar, muitas vezes têm que cuidar dos doentes e ao mesmo tempo prover

a alimentação da família, reduzindo assim a sua possibilidade de ingresso nas escolas e

no trabalho e encarecendo, ainda, os custos dos cuidados domiciliares.

A pobreza pode ser identifi cada como um dos fatores que contribuem para a

rápida expansão da epidemia do HIV em Moçambique. Os pobres são mais vulneráveis

à infecção, podendo-se apontar fatores que infl uenciam a sua vulnerabilidade, tais

como a migração e prostituição, o que aumenta a probabilidade de terem múltiplos

parceiros sexuais; as mulheres, além disso, enfrentam riscos adicionais ao envolverem-

se em atividades sexuais para subsistência, reduzindo o seu poder de negociação para

o uso do preservativo, o que é agravado pelo pouco acesso e procura pelos cuidados

de saúde após envolverem-se em atividades sexuais de risco (MOÇAMBIQUE, 2003;

CHAQUISSE, 2006).

Page 115: Propriedade Intelectual nos Países de Língua Portuguesanit.uesc.br/.../files/livros/Propiedade-Intelectual... · propriedade intelectual e o uso da informação tecnológica contida

114

II. A EPIDEMIA DO HIV E AIDS EM MOÇAMBIQUE

O primeiro caso de aids em Moçambique foi diagnosticado em 1986. A partir de

março de 1987 e durante vários meses foi levado a cabo, em várias cidades do país,

um inquérito sero-epidemiológico, um dos primeiros jamais realizados, que detectou

infecções, sobretudo, pelo HIV-2 (taxa de prevalência de 2% na população estudada),

mas também pelo HIV-1 (taxa de prevalência de 1,2% na população estudada). A cidade

mais afetada foi Nampula, com taxas de prevalência de 2,8% para o HIV-2 e 2,2% para o

HIV-1, logo seguida por Lichinga e Inhambane. Nesta última já predominava o HIV-1, do

mesmo modo que em Chimoio, Quelimane e Pemba. As cidades menos afetadas foram

Pemba e Xai-Xai. Entretanto, no decurso de 1987, foram notifi cados os primeiros 5 casos

clínicos em cidadãos nacionais. No período que se seguiu, até 1989, o número de casos

duplicou a cada ano, tendo em julho de 1989 chegado ao total de 41 casos. O grupo

etário mais atingido era o dos 20 aos 29 anos, como sucede em outras partes do mundo,

mas as crianças também fi guravam de maneira signifi cativa no total de casos arrolados,

com 5 casos. Já se sabia, nessa altura, que tais números estavam longe de traduzir a

situação real do país (CONSELHO NACIONAL DE COMBATE AO SIDA, 2004).

A situação de guerra que o país viveu, para além de produzir um elevado número de

vítimas mortais e casos de incapacidade por lesão permanente, levou ao deslocamento

de povoações inteiras em busca de refúgio e segurança, quer para outras áreas do país,

quer para países vizinhos. O confl ito armado também causou danos materiais de vulto

em todos os setores de atividade, incluindo as infraestruturas da Saúde. Assistiu-se,

então, à drenagem da maior parte dos recursos disponíveis para o esforço de defesa.

Por força dessas difi culdades conjunturais, o combate ao HIV/aids foi-se transformando,

essencialmente, em responsabilidade do MISAU (CONSELHO NACIONAL DE COMBATE

AO SIDA, 2004), cujo Programa Nacional de Prevenção e Controle do SIDA continuou

a liderar o processo. De notar também que, naquela ocasião (fi nais da década de 80 e

início dos anos 90), outros países africanos apresentavam taxas muito mais elevadas do

que as que o inquérito de 1987 havia mostrado no nosso país, pelo que o interesse das

organizações internacionais e das agências de desenvolvimento se concentrava nesses

países, considerando-se Moçambique como um problema menor.

No ano 2000, o MISAU criou 20 postos-sentinela para a vigilância epidemiológica

no país, tendo-se chegado a 36 em 2001, número que se mantém até ao presente. Só a

partir dos últimos anos é que se passou a ter a real noção da gravidade da situação.

Entretanto, a partir de 2002, por meio dos órgãos de comunicação social, começa-

se a passar a mensagem de que a degradação da situação era devida ao regresso

maciço de populações que, em resultado do confl ito armado, se tinham refugiado nos

países vizinhos, onde as taxas de seroprevalência eram altas. Muito embora esse afl uxo

populacional tenha sido provavelmente um fator real de agravação da situação, a forma

Page 116: Propriedade Intelectual nos Países de Língua Portuguesanit.uesc.br/.../files/livros/Propiedade-Intelectual... · propriedade intelectual e o uso da informação tecnológica contida

115

como ele foi apresentado criou um certo espírito de tranquilidade, pois acreditava-se

que, com o reassentamento dos regressados, tudo se iria normalizar. Não se insistiu

sufi cientemente no fato de a infecção estar já bem instalada no país, com todas as

condições para se desenvolver endogenamente.

Os estudos sobre Conhecimentos, Atitudes e Práticas fazem-se no país desde 1988,

mas, na sua maior parte, incidem sobre grupos populacionais específi cos ou então estão

circunscritos a áreas geográfi cas limitadas e à escala nacional.

A propagação do HIV continua a ser uma realidade bastante preocupante em

Moçambique, e ainda não há sinais que permitam visualizar a reversão desse quadro.

Em 1999, a aids matou 41.000 pessoas no país, e as estimativas apontavam para uma

tendência de crescimento nos anos subsequentes. O índice de seroprevalência em 2004

entre pessoas de 15 e 49 anos de idade atingia os 16,2% e, segundo dados do Instituto

Nacional de Estatística (INE), o ano de 2005 registrou, muito provavelmente, mais de

225.000 novas infecções (PNUD, 2006).

A estratégia de combate ao HIV/aids adotada pelo governo de Moçambique

assenta na realização de campanhas de educação, informação e comunicação, na

criação de condições para o aconselhamento e testagem voluntária, no tratamento

das infecções oportunistas e na terapia antirretroviral, bem como na prevenção da

transmissão vertical, ou seja, da mãe para o fi lho (CONSELHO NACIONAL DE COMBATE

AO SIDA, 2004).

III. EVOLUÇÃO DA PREVALÊNCIA DO HIV EM MOÇAMBIQUE

As últimas rondas de vigilância epidemiológica, realizadas em 2004 e 2007, indicam

que as regiões Sul e Centro do país apresentam as mais elevadas taxas de prevalência

do HIV, havendo uma tendência crescente da epidemia na região Sul, onde as taxas

observadas se situaram entre 23% e 27% na ronda de 2007, com exceção da província

de Inhambane, que registrou a prevalência de 12%. As taxas de prevalência no Centro

do país continuam a ser relativamente elevadas, situando-se entre 13-23% nas quatro

províncias da região. No Norte, a prevalência continua a ser menor em comparação

com o Centro e o Sul, sendo a prevalência regional estimada em 9%. Portanto, com a

estimativa nacional de 16% para o ano de 2007, a prevalência verdadeira provavelmente

está entre 14% e 17% (MOÇAMBIQUE, 2007).

Page 117: Propriedade Intelectual nos Países de Língua Portuguesanit.uesc.br/.../files/livros/Propiedade-Intelectual... · propriedade intelectual e o uso da informação tecnológica contida

116

Nas regiões Centro e Norte, a prevalência tende a estabilizar-se quando comparada

com a do Sul (ver Tabela 1).

Tabela 1

Comparação das taxas estimadas de prevalência do HIV provinciais, regionais e nacional,

baseadas no Epidemiological Projection Package (EPP). Moçambique, 2001-2007

Província 2001 2002 2004 2007

Maputo

Cidade17% (12%-20%) 18% (13%-23%) 21% (16%-26%) 23% (18%-29%)

Maputo

Província16% (10%-24%) 18% (12%-26%) 22% (15%-31%) 26% (18%-34%)

Gaza 19% (12%-26%) 21% (14%-29%) 25% (17%-33%) 27% (18%-35%)

Inhambane 8% (6%-14%) 9% (6%-15%) 10% (7%-16%) 12% (7%-16%)

Zambezia 16% (9%-23%) 17% (10%-25%) 18% (12%-28%) 19% (12%-29%)

Sofala 25% (15%-31%) 24% (16%-32%) 24% (17%-33%) 23% (17%-33%)

Manica 18% (10%-23%) 17% (10%-23%) 16% (10%-23%) 16% (10%-23%)

Tete 16% (11%-21%) 15% (11%-21%) 14% (11%-21%) 13% (11%-21%)

Niassa 6% (3%-11%) 7% (4%-12%) 8% (4%-14%) 8% (4%-14%)

Nampula 8% (5%-10%) 9% (6%-11%) 9% (6%-12%) 8% (6%-12%)

Cabo

Delgado8% (4%-12%) 9% (5%-13%) 9% (6%-14%) 10% (6%-14%)

Região 2001 2002 2004 2007

Sul 15% (10%-17%) 16% (12%-18%) 19% (14%-21%) 21% (16%-23%)

Centro 18% (16%-20%) 18% (17%-20%) 19% (17%-21%) 18% (17%-21%)

Norte 7% (6%-8%) 8% (6%-9%) 9% (7%-10%) 9% (7%-10%)

Nacional2001 2002 2004 2007

14% (12%-14%) 15% (13%-15%) 16% (14%-16%) 16% (14%-17%)

Fonte: MISAU, Moçambique, 2007

Na região Sul observa-se uma tendência de crescimento consistente da prevalência

nas últimas quatro rondas, variando de 15 a 21%. Em relação à região Centro, observa-

se uma taxa entre 18 e 19% nas rondas de 2001 e 2007, respectivamente; essas taxas

mostram um grau de consistência que revela uma epidemia mais antiga relativamente

às outras regiões do país. Na região Norte, registrou-se um ligeiro aumento da

prevalência entre as rondas de 2001 a 2004, situação que viria a alterar-se na ronda de

2007, em que se manteve a taxa estimada em 2004, situada em 9%; com base nos dados

disponíveis sobre essa região, pode-se considerar que a prevalência tende a entrar na

Page 118: Propriedade Intelectual nos Países de Língua Portuguesanit.uesc.br/.../files/livros/Propiedade-Intelectual... · propriedade intelectual e o uso da informação tecnológica contida

117

fase de estabilização. Porém, a região Norte somente possui dados a partir do ano 2000,

ao passo que, em outras regiões, foram considerados dados históricos mais antigos, isto

é, a partir de 1994 para a região Centro e a partir de 1988 para a região Sul.

Quanto à prevalência nacional, registrou-se um ligeiro crescimento de 2001 a

2004, e de 2004 a 2007 observa-se uma tendência de estabilização, chegando a uma

prevalência de 16%. Isso signifi ca que a taxa de prevalência estimada para o ano

2007 não difere muito da taxa estimada em 2004. É importante lembrar que a nova

metodologia indica que a taxa nacional de prevalência nesse ano estaria entre 14 e

17%, sendo que em 2004 situava-se entre 14 e 16%. Qualquer diferença aparente deve-

se à nova metodologia de estimativa e não a uma verdadeira queda na prevalência

(MOÇAMBIQUE, 2007).

IV. A RESPOSTA DE MOÇAMBIQUE À PANDEMIA DA AIDS

A) ANTECEDENTES

Como referido anteriormente, o primeiro caso de aids em Moçambique foi

diagnosticado em 1988. Já em 1985, um Comitê de Especialistas da OMS, reunido em

Banguí, tinha feito a defi nição de caso clínico de aids na África. A Organização Mundial

da Saúde passou, então, a recomendar aos países-membros a constituição de comitês

nacionais de luta contra a aids. Nesse quadro, foi criado em Moçambique, em agosto de

1986, o primeiro organismo de combate ao HIV/aids, com a designação de Comissão

Nacional do SIDA.

Em fevereiro de 1988, foram reorganizadas as estruturas de combate à aids, sendo

formada no MISAU uma Comissão Nacional de Combate ao SIDA, com 39 membros.

A maior parte dos integrantes da Comissão (21 membros) era do próprio MISAU, mas

contava-se também com representantes de organizações democráticas de massas,

de credos religiosos, da Cruz Vermelha (CVM), do Centro de Estudos Africanos da

Universidade Eduardo Mondlane (UEM) e também de 5 Ministérios (Defesa, Interior,

Educação, Justiça e Informação). Presidia à Comissão o Diretor do INS. Na mesma

ocasião, foi instituído, na Direção Nacional de Saúde do MISAU, um Programa Nacional

de Prevenção e Controle do SIDA (PNPCS), de onde são provenientes muitos dos

membros do MISAU na referida Comissão Nacional. A Comissão teve um início de

atividades promissor, pois que representou, de fato, a primeira abordagem multi-setorial

no combate à aids; porém, ao longo da sua existência, ela nunca conseguiu um real

envolvimento dos outros setores no nível político e estratégico.

Page 119: Propriedade Intelectual nos Países de Língua Portuguesanit.uesc.br/.../files/livros/Propiedade-Intelectual... · propriedade intelectual e o uso da informação tecnológica contida

118

B) PLANOS ESTRATÉGICOS DE COMBATE À AIDS

Em fi ns de 1999, o Governo da República de Moçambique criou o Plano Estratégico

Nacional (PEN) para o combate das Infecções de Transmissão Sexual (ITS), incluindo o

HIV e o SIDA, para o período de 2000 a 2002, o qual foi estendido até 2003. O PEN

fornecia um quadro e defi nia as grandes estratégias adotadas pelo Governo na sua

batalha contra a epidemia do HIV/aids.

No plano estratégico, reconheceu-se que uma abordagem multissetorial ao

problema seria a forma mais efi ciente de combater o HIV/aids. Para a coordenação

dessas intervenções multissetoriais no nível nacional, provincial e da comunidade, havia

necessidade de um órgão coordenador no alto nível. A sua missão seria de dirigir a luta

contra o HIV/aids por meio de:

Mobilização de liderança social e política de alto nível e comprometimento;•

Coordenação de uma resposta multissetorial envolvendo todos os membros •

da sociedade;

Melhoria da qualidade e cobertura da prestação de serviços;•

Abordagem da epidemia do HIV/aids nas suas dimensões social, econômica, •

de saúde e desenvolvimento; e

Resposta aos desafi os especiais das pessoas que vivem com o HIV/aids.•

Assim, no ano 2000 foi criado, pelo Decreto Ministerial nº 10/2000, de 23 de maio,

o Conselho Nacional de Combate ao SIDA (CNCS), que tinha o objetivo de coordenar

as estratégias de combate ao HIV/aids em Moçambique. O CNCS é presidido pela

Primeira-Ministra e tem como Vice-Presidente o Ministro da Saúde. Além do Ministério

da Saúde, o CNCS integra os Ministérios dos Negócios Estrangeiros e Cooperação, da

Educação e Cultura, da Juventude e Desporto, da Mulher e Coordenação da Ação social,

do Plano e Desenvolvimento e o Ministério das Finanças. O Decreto também estabelece

um Secretariado para servir de organismo operacional para a coordenação da resposta

nacional e principal força de advocacia da atenção à pandemia da aids. Também é sua

responsabilidade levar a aids à arena da política nacional e de integrar as questões do

HIV/aids no diálogo social e político em Moçambique.

O segundo Plano Estratégico (PEN II) foi aprovado pelo conselho de Ministros

em 2004 e cobre o período de 2005 a 2009. O PEN II é concebido como um plano

de médio termo; porém, algumas das projeções que ele comporta estendem-se pelos

próximos 10 anos. A sua perspectiva de abordagem é rigorosamente multissetorial,

sendo considerados todos os atores que trabalham em prol da redução da propagação

da epidemia e que trabalham com a população direta ou indiretamente afetada, além

de todas as parcerias que podem ser mobilizadas, quer nacionais, quer internacionais. O

Page 120: Propriedade Intelectual nos Países de Língua Portuguesanit.uesc.br/.../files/livros/Propiedade-Intelectual... · propriedade intelectual e o uso da informação tecnológica contida

119

Plano identifi ca os grandes objetivos a atingir, defi ne prioridades e propõe as estratégias

necessárias para que os objetivos sejam atingidos (CHAQUISSE, 2006).

Tanto na formulação de objetivos como na escolha das estratégias que se

propõem, procurou-se sempre tirar lições de análise da situação efetuada e das relações

causais entre um certo número de fatores e a probabilidade de facilitar a propagação

da infecção pelo HIV/aids. Dessa forma, tanto a formulação de objetivos como a escolha

das estratégias decorrem das causas básicas, subjacentes e imediatas que foram

identifi cadas para essa propagação.

Como a problemática do HIV/aids é, por excelência, um domínio multissetorial,

fi xaram-se responsabilidades para o CNCS e os seus Núcleos Provinciais, mas, igualmente,

para os diversos setores que participam desse combate.

O PEN II é consistente com o Programa Geral de Desenvolvimento do Governo,

que se encontra descrito no Plano Quinquenal do Governo (2005-2009), e com o

segundo Plano de Ação para a Redução da Pobreza Absoluta (PARPA II, 2006-2009). O

PEN II compreende sete objetivos fundamentais, por áreas:

1. ÁREA DA PREVENÇÃO:

Objetivo Geral:

Reduzir o número de novas infecções do nível atual, de 500 por dia, para menos de 350

em 5 anos e menos de 150 em 10 anos;

2. ÁREA DA ADVOCACIA:

Objetivo Geral:

Transformar o combate ao HIV/aids em uma emergência nacional;

3. ÁREA DO ESTIGMA E DISCRIMINAÇÃO:

Objetivo Geral:

Reduzir o estigma e a discriminação ligados ao HIV/aids;

4. ÁREA DO TRATAMENTO:

Objetivo Geral:

Tratamento: prolongar e melhorar a qualidade de vida das pessoas infectadas pelo HIV

e dos doentes de aids;

5. ÁREA DA MITIGAÇÃO DAS CONSEQUÊNCIAS:

Objetivo Geral:

Mitigação das Consequências do HIV e Aids: reduzir as consequências do HIV/aids no

nível dos indivíduos, das famílias, comunidades, empresas, considerando, ainda, os

impactos globais;

Page 121: Propriedade Intelectual nos Países de Língua Portuguesanit.uesc.br/.../files/livros/Propiedade-Intelectual... · propriedade intelectual e o uso da informação tecnológica contida

120

6. ÁREA DA PESQUISA:

Objetivo Geral:

Aumentar o grau de conhecimento científi co sobre o HIV/aids, suas consequências e as

melhores práticas no seu combate;

7. ÁREA DA COORDENAÇÃO DA RESPOSTA NACIONAL

Objetivo Geral:

Desenvolver a capacidade de planifi car e descentralizar os mecanismos de tomada de

decisão e gestão de recursos, a fi m de aumentar gradualmente a resposta nacional.

Essa estratégia tem sido acompanhada por um incremento da alocação orçamental

do Estado, que tem apoiado especifi camente os diversos setores na mitigação do

impacto do HIV/aids, particularmente em termos de capacidade humana e expansão

da cobertura geográfi ca da resposta, sobretudo nas zonas menos privilegiadas, onde

os serviços de prevenção e tratamento não estão disponíveis (MOÇAMBIQUE, 2003).

Promover ações que reduzam o peso dos cuidados domiciliares sobre as mulheres e

empreender ações de combate à feminização do HIV/aids são considerados fatores

importantes para a redução do impacto da epidemia nas famílias e comunidades.

No quadro do princípio dos “Três Uns” (Um Órgão de Coordenação da Resposta

Nacional, Um Plano Estratégico de Combate ao HIV/Aids e Um Sistema de Monitoramento

e Avaliação), o Secretariado Executivo do Conselho Nacional de Combate ao SIDA criou,

em colaboração com parceiros nacionais e estrangeiros, um sistema único de Monitoria

e Avaliação da Resposta Nacional de Combate ao HIV/SIDA, instrumento que fornece

uma base conceitual e mecanismos operacionais para o desenvolvimento do processo

de monitoramento e avaliação situacional e programática e do esforço nacional de

combate ao HIV/aids em Moçambique.

V. ORGANIZAÇÃO DO SISTEMA NACIONAL DE SAÚDE EM FACE DA EPIDEMIA DA

AIDS EM RESPOSTA ÀS ATRIBUIÇÕES PREVISTAS NO PEN II

Como foi referido atrás, desde o aparecimento do primeiro caso de aids em

Moçambique em 1986 e em resposta à recomendação da OMS de 1985, o MISAU

assumiu a dianteira nos esforços de descrição e controle da epidemia.

Nesse sentido, o MISAU, no quadro das suas atribuições, em face da realidade da

existência de pessoas necessitando do tratamento como consequência da epidemia do

HIV/aids, estabeleceu novos serviços de Aconselhamento e Testagem Voluntária para a

Saúde (ATS), abriu Hospitais-Dia (HD), Cuidados Domiciliares (CD) e Programas de Saúde

Sexual e Reprodutiva do Adolescente e Jovens (SAARJ), bem como a sua massifi cação, e

estabeleceu metas a alcançar visando mitigar os efeitos da epidemia da aids.

Page 122: Propriedade Intelectual nos Países de Língua Portuguesanit.uesc.br/.../files/livros/Propiedade-Intelectual... · propriedade intelectual e o uso da informação tecnológica contida

121

O acesso aos novos serviços ora criados é feito a partir de qualquer ponto de

contato do paciente com os serviços de saúde, como, por exemplo, consultas externas

nas Unidades Sanitárias (US) espalhadas pelo país, serviços de internação em Medicina,

Cirurgia, Pediatria, consultas de ITS (Infecções de Transmissão Sexual), Saúde Materno-

Infantil (SMI), ou então referência e encaminhamento a partir de serviços de laboratório

e banco de sangue.

A organização desses serviços traz consigo novos desafi os para o Sistema Nacional

de Saúde (SNS) em termos da captação de recursos humanos em quantidade e

qualidade. Os serviços de laboratórios de Biologia Molecular para a medição da carga

viral do CD4, bioquímica capaz de responder às necessidades da demanda dos novos

serviços, constituiu prioridade para garantir a oferta de tratamento às pessoas em

necessidade de acesso à terapia antirretroviral, bem como o monitoramento laboratorial

dos pacientes em TARV.

Com efeito, inicialmente foram providos os Hospitais Centrais de Maputo, Beira

e Nampula, que fazem parte das regiões Sul, Centro e Norte, respectivamente, com

equipamento capaz de dar resposta à demanda em exames laboratoriais para o

monitoramento da Carga Viral (CV) e células linfocitárias T auxiliadoras (CD4). Atualmente,

esses serviços estão a ser oferecidos nos Hospitais Provinciais, e, gradualmente, estarão

disponíveis nos Hospitais Rurais e Distritais.

Em termos de prestação de cuidados de saúde, a epidemia de HIV trouxe novos

desafi os na defi nição de políticas. Por um lado, devido às particularidades que a

epidemia de aids arrasta consigo, as políticas de resposta do setor de saúde devem

ser defi nidas com base na evidência da previsão das consequências e do seu impacto

nos setores de desenvolvimento, familiar e comunitário. Por outro lado, outros fatores

devem ser igualmente considerados, como, por exemplo, a disponibilidade de recursos,

particularmente humanos, fi nanceiros e materiais. Assim, ao longo do tempo, foram

defi nidas políticas no setor de saúde para acomodar a nova realidade.

Na área dos Recursos Humanos, o Ministério da Saúde (MISAU), assumindo os

efeitos e o impacto previsível da epidemia de aids no país, estabeleceu, em 2006, o Plano

Acelerado de Formação de Quadros para o setor, que consiste no aumento do número

de cursos que anteriormente eram lecionados nas instituições de formação da saúde.

Por seu turno, o Governo de Moçambique criou, também em 2006, a Universidade Lúrio,

sediada em Nampula; esta priorizou a abertura da Faculdade de Ciências de Saúde, que

lançou os primeiros cursos no ano de 2007. A formação de médicos generalistas e de

outros técnicos superiores de saúde é de inquestionável importância para um país em

que a cobertura da rede sanitária é considerada de 40%.

Juntam-se a esses esforços o aumento do número de médicos graduados pelas

Universidades Eduardo Mondlane (UEM), em Maputo, e Católica, na Cidade da Beira.

Page 123: Propriedade Intelectual nos Países de Língua Portuguesanit.uesc.br/.../files/livros/Propiedade-Intelectual... · propriedade intelectual e o uso da informação tecnológica contida

122

No âmbito do desenvolvimento de ações tendentes a reverter a situação do

alastramento da infecção pelo HIV, o MISAU, em 1992, iniciou a notifi cação de casos de

infecções de transmissão sexual pelas Unidades de Saúde (US), por meio do Sistema

Nacional, como atividade de rotina, e defi niu a abordagem sindrômica como a principal

estratégia para o tratamento das ITS. Para fazer estimativas e projeções de HIV e aids,

bem como prever seu impacto demográfi co, o MISAU reforçou a extensão da rede de

postos de vigilância epidemiológica no país, os Postos Sentinela (PS), que passaram de 4

em 1998 para 20 em 2000. Em 2001, esse número aumentou para 36.

Do 1,8 milhão de pessoas vivendo com HIV em Moçambique, estima-se que cerca

de 300.000 adultos necessitem de tratamento antirretroviral. Até julho de 2007, eram

cerca de 60.000 adultos sob TARV em Moçambique, representando aproximadamente

20% de adultos em necessidade de tratamento. A redução dos preços dos medicamentos

antirretrovirais foi um dos principais determinantes do aumento do número de pessoas

benefi ciadas. Quando o tratamento foi introduzido, seu custo anual ascendia a US$

1,500. Atualmente, em média, o custo anual do regime de primeira linha é de US$ 274

ao ano (dado de 2007), enquanto que o do regime de segunda linha, considerado mais

caro, é de US$ 2.804 ao ano. O tratamento de primeira linha usa diferentes combinações,

de forma a acomodar as diferentes necessidades dos doentes antes de se passar para

a segunda linha; contudo, a maior parte dos pacientes está ainda na primeira linha de

tratamento com os ARV (MBOFANA et al., 2007).

O acesso dos jovens e adolescentes aos serviços de aconselhamento e testagem

voluntária foi alargado mediante a abertura, nas Unidades Sanitárias de quase todo o

país, de clínicas com serviços de aconselhamento em saúde sexual e reprodutiva dos

adolescentes e jovens.

De 23 a 26 de março de 2006, o MISAU realizou uma reunião sobre HIV e aids

na qual foi tomada a decisão de expandir a TARV, treinar os técnicos em medicina e

colocar o medicamento mais próximo do doente. Na ocasião, foi também priorizada a

formação em equipe dos técnicos de saúde lotados nas unidades sanitárias, bem como

a indicação de coordenadores das grandes endemias no nível das direções provinciais,

o que inclui o HIV, a tuberculose e a malária.

VI. RESULTADOS ALCANÇADOS

Como resultado da criação de condições para o acesso dos cidadãos necessitando

tratamento, o governo aprovou, em 2001, o Diploma Ministerial número 183-A/2001, de

18 de dezembro, que introduz o tratamento antirretroviral nas Unidades Sanitárias do

Sistema Nacional de Saúde (SNS) e estabelece princípios orientadores para o acesso ao

tratamento de pessoas com infecção pelo HIV e doentes de aids. O diploma também

Page 124: Propriedade Intelectual nos Países de Língua Portuguesanit.uesc.br/.../files/livros/Propiedade-Intelectual... · propriedade intelectual e o uso da informação tecnológica contida

123

defi ne as linhas de tratamento a serem seguidas e as alternativas aos medicamentos,

conforme as necessidades específi cas de cada doente, além estabelecer que o acesso à

TARV é gratuito no país (MOÇAMBIQUE, 2001).

Os esforços para o aumento do acesso ao Aconselhamento e Testagem em Saúde

(ATS), a oferta dos serviços que visam reduzir a transmissão vertical do HIV da mãe para

o fi lho, a criação de condições para a expansão do tratamento antirretroviral até ao

nível mais periférico e a oferta dos serviços de TARV (tratamento antirretroviral) em 211

Unidades Sanitárias do país têm mostrado resultados encorajadores. Com efeito, até

abril de 2008, 101.163 pessoas estavam em TARV em todo o país; destas, cerca de 62%

são do sexo feminino e 7% são crianças (MOÇAMBIQUE, 2008).

A expansão da TARV para as unidades periféricas tem sido possível graças à política

de delegação de tarefas a níveis inferiores ao do médico, como é o caso do treino de

técnicos em medicina, iniciado em 2006.

O programa de prevenção da transmissão vertical começou a ser expandido

signifi cativamente desde 2002 e, em 2006, cerca de 222 Unidades Sanitárias ofereciam

serviços de prevenção da transmissão vertical. Em 2006, 46.784 mulheres grávidas

soropositivas receberam profi laxia com antirretrovirais (MOÇAMBIQUE, 2008; ASSAN et

al., 2008).

Nos esforços para reduzir a estigmatização e dar a oportunidade para que os cidadãos

infectados possam continuar a gozar os seus direitos fundamentais, a Assembleia da

República aprovou a Lei nº 5/2002, de 5 fevereiro de 2002, que foi consequentemente

promulgada pelo Presidente da República; essa lei protege as Pessoas Vivendo com HIV

e Aids (PVHA) no local de trabalho e ao se candidatarem a emprego. Por outro lado, a

nova Lei de Trabalho nº 23/2007, de 1º de agosto de 2007, enfatiza o que diz a Lei nº

5/2002, em termos do respeito e proteção de que o trabalhador deve gozar em caso de

infecção pelo HIV e/ou agravo por aids.

VII. CONCLUSÕES

Desde o início da epidemia do HIV/aids, as políticas de saúde em Moçambique

foram orientadas para responder às exigências da epidemia; contudo, a falta de

recursos humanos, materiais e fi nanceiros condicionou a sua aplicação. Desde o início

da epidemia, a prevenção foi e continua a ser a prioridade nas estratégias de combate

à aids. A expansão e integração dos serviços de aconselhamento e testagem em saúde,

visando a oferta dos testes voluntários, também é prioritária para que os cidadãos

tenham a oportunidade de conhecer o seu estado sorológico em relação ao HIV e

usufruir dos atuais serviços disponíveis no sistema nacional de saúde.

Page 125: Propriedade Intelectual nos Países de Língua Portuguesanit.uesc.br/.../files/livros/Propiedade-Intelectual... · propriedade intelectual e o uso da informação tecnológica contida

124

Políticas relativas ao acesso à TARV, redução da transmissão do HIV da mãe para o

fi lho, bem como a expansão desses serviços aos cidadãos são desenhadas tendo em

conta a capacidade do setor de saúde de oferecer serviços de qualidade e sustentáveis.

Os Recursos Humanos no setor de saúde continuam a ser a maior limitação para uma

reposta efetiva à pandemia da aids.

Houve sempre vontade política do Governo em instituir políticas que pudessem

reduzir as consequências e o impacto da aids; contudo, as políticas que puderam ser

implementadas mostraram uma resposta às necessidades reais das comunidades.

Em Moçambique, a defi nição de políticas de saúde em relação às leis da Propriedade

Intelectual para o acesso aos cuidados de saúde de pessoas infectadas pelo HIV e

doentes de aids é feita acompanhando os desafi os que a epidemia impõe.

Page 126: Propriedade Intelectual nos Países de Língua Portuguesanit.uesc.br/.../files/livros/Propiedade-Intelectual... · propriedade intelectual e o uso da informação tecnológica contida

125

REFERÊNCIAS

ASSAN, A. et al. Task shifting for scaling up HIV services in Mozambique.

[S.l.: s.n., 2008?]. Abstract presented in HIV implementers’ meeting. Kampala, Uganda.

2008.

CHAQUISSE, E. Porque alto risco de infecção pelo HIV nos Jovens dos 15-

19 anos de idade na cidade de Nampula e Distrito de Lalaua, Província de

Nampula, Moçambique. [S.l.: s.n.], jun. 2006. Universidade Copenhaga.

CONSELHO NACIONAL DE COMBATE AO HIV/SIDA (Moçambique). Plano Estratégico

para o Combate ao HIV/SIDA 2005-2009. Maputo, 2004.

MBOFANA, F. et al. Innovative fi nancing methods for accelerated access to HIV/

AIDS care, treatment and prevention in Mozambique. Maputo, [s.n.], dezembro

2007.

MOÇAMBIQUE. Governo. Plano de Acção para a Redução da Pobreza Absoluta

2006-2009. Maputo, 2003.

MOÇAMBIQUE. Ministério da Saúde. Relatório sobre a revisão dos dados de

vigilância epidemiológica do HIV: Ronda 2007. Maputo, 2007.

_____. Diploma Ministerial nº 183-A/2001, BR nº 50, 4º Suplemento. Maputo,

dezembro 2001.

_____. Plano Estratégico do Sector da Saúde. Maputo, 2008.

_____.; INSTITUTO NACIONAL DE ESTATÍSTICA (INE) (Moçambique). Impacto

Demográfi co do HIV/SIDA em Moçambique. Maputo: setembro 2008.

PROGRAMA DAS NAÇÕES UNIDAS PARA O DESENVOLVIMENTO (PNUD). Relatório

Nacional de Desenvolvimento Humano 2005: Alcançando os Objectivos de

Desenvolvimento do Milénio. Maputo, 2006.

Page 127: Propriedade Intelectual nos Países de Língua Portuguesanit.uesc.br/.../files/livros/Propiedade-Intelectual... · propriedade intelectual e o uso da informação tecnológica contida
Page 128: Propriedade Intelectual nos Países de Língua Portuguesanit.uesc.br/.../files/livros/Propiedade-Intelectual... · propriedade intelectual e o uso da informação tecnológica contida

119 Pesquisadora, Chefe da Unidade de Pesquisa e Desenvolvimento Tecnológico do Departamento de DST, Aids e Hepatites

Virais, Ministério da Saúde, Brasil.

CAPÍTULO 5

ACESSO AOS MEDICAMENTOS ANTIRRETROVIRAIS:

DESAFIOS EM PROPRIEDADE INTELECTUAL PARA OS PAÍSES

DE LÍNGUA POR TUGUESA

Cristina de Albuquerque Possas119

Page 129: Propriedade Intelectual nos Países de Língua Portuguesanit.uesc.br/.../files/livros/Propiedade-Intelectual... · propriedade intelectual e o uso da informação tecnológica contida

128

INTRODUÇÃO

No cenário internacional, o debate sobre a propriedade intelectual (PI) de insumos

essenciais à saúde pública e sobre o impacto dos monopólios temporários resultantes

das patentes sobre os seus preços, limitando condições de acesso das populações dos

países em desenvolvimento a esses insumos, vem ganhando crescente importância,

sobretudo nos países mais afetados pela pandemia do HIV/aids, entre os quais se

incluem, como se verá mais adiante, diversos países da CPLP.

Esse debate vem-se realizando em um ambiente internacional bastante propício,

marcado pela valorização dos diversos aspectos normativos e regulatórios da inovação

na pesquisa farmacêutica, tais como, além da propriedade intelectual, as questões de

bioética e de biossegurança envolvendo procedimentos de modifi cação genética.

Destaca-se, nesse contexto, o gigantesco potencial econômico da pesquisa

farmacêutica, tornando a questão da propriedade intelectual de suas aplicações

um aspecto crucial da política científi ca e tecnológica em saúde nos países em

desenvolvimento, em sua interface com a política pública em saúde.

As controvérsias sobre PI nessa área intensifi caram-se ao longo da última década,

em decorrência do Acordo TRIPS na OMC, que introduziu a PI dos medicamentos na

legislação internacional, vinculando-a às regras do comércio mundial (CORREA, 2002).

Recentes acordos bilaterais entre países desenvolvidos (E.U.A., União Europeia) e alguns

países em desenvolvimento, caracterizados como “TRIPS Plus”, contendo cláusulas ainda

mais rígidas que as do Acordo TRIPS, vêm tornando esse cenário ainda mais complexo.

Em tese, o processo de harmonização internacional da propriedade intelectual

dos medicamentos e outros insumos em saúde, ao criar condições regulatórias e

normativas compatíveis e compartilhadas por diferentes países, desenvolvidos e

em desenvolvimento, possibilitaria assegurar a proteção dos direitos do cidadão e a

melhoria da qualidade de vida das populações envolvidas.

Além disso, argumenta-se que essa harmonização contribuiria, na crescente

e acirrada competição internacional, a estimular, por meio do aperfeiçoamento do

arcabouço regulatório no comércio mundial, o processo inovativo em redes colaborativas

de pesquisa, favorecendo o estabelecimento de parcerias estratégicas entre os setores

público e privado e assegurando, assim, a efetiva integração econômica e social.

No entanto, há evidências de que o processo de harmonização em curso no âmbito

do Acordo TRIPS da Organização Mundial de Comércio e dos acordos bilaterais de livre-

comércio (FTAs), estabelecidos pelos Estados Unidos e a União Europeia com países em

desenvolvimento, vem-se dando, em decorrência da implantação de procedimentos

pouco fl exíveis de propriedade intelectual, em direção oposta às intenções enunciadas.

Ao contribuir para uma expressiva elevação dos preços dos medicamentos e ao

restringir signifi cativamente a possibilidade de competição por genéricos, esses acordos

Page 130: Propriedade Intelectual nos Países de Língua Portuguesanit.uesc.br/.../files/livros/Propiedade-Intelectual... · propriedade intelectual e o uso da informação tecnológica contida

129

vêm limitando consideravelmente, nesses países, o acesso das populações a insumos

essenciais à saúde pública.

Considerando essas difi culdades, os governos, as comunidades científi cas e

as distintas organizações da sociedade civil envolvidas vêm buscando conceber e

implementar novas normas e procedimentos de propriedade intelectual, de modo

a conciliar dois objetivos que têm sido apontados como antagônicos: de um lado,

estimular a inovação, procurando harmonizar, no plano internacional, os diferentes

sistemas de propriedade intelectual; de outro, criar fl exibilidades que permitam uma

efetiva negociação de preços, tais como a competição com medicamentos genéricos,

a transferência de tecnologia e a produção local de insumos estratégicos para a saúde

pública, buscando atender às especifi cidades e peculiaridades sociais dos países em

desenvolvimento.

Examinaremos aqui, com foco nas questões relacionadas à propriedade intelectual

dos medicamentos antirretrovirais (ARV), as implicações dessas tendências regulatórias

globais e seus efeitos para a cooperação internacional entre os membros da Comunidade

de Países de Língua Portuguesa (CPLP).

A nosso ver, uma maior clareza nas complexas questões que envolvem a PI dos

medicamentos ARV no âmbito dos países da CPLP poderá certamente contribuir para

o compartilhamento de experiências e para o compromisso político dos seus governos,

no sentido do aperfeiçoamento do atual arcabouço legal internacional, reduzindo, com

isso, o impacto da pandemia do HIV/aids sobre suas populações.

A PANDEMIA DO HIV/AIDS

No decorrer dos últimos 25 anos, a epidemia do HIV/aids se disseminou rapidamente

em escala mundial, transformando-se em uma pandemia e criando graves problemas

sociais e econômicos, sobretudo nas nações em desenvolvimento. Nesse período, cerca

de 60 milhões de homens, mulheres e crianças foram infectados pelo HIV e quase 25

milhões de pessoas já morreram em decorrência da aids.

Cerca de 33 milhões de pessoas vivem hoje no mundo com HIV/aids, das quais

70% no continente africano. A cada ano, ocorrem 2,5 milhões de novas infecções e 2

milhões de pessoas morrem de aids (WHO; UNAIDS, 2007).

O HIV/aids tornou-se, portanto, uma das principais causas de mortalidade mundial,

sendo hoje a principal causa de morte na África, sobretudo na região sul do continente,

que concentra cerca de 35% dos casos e 32% dos óbitos por aids no mundo. As taxas de

prevalência do HIV/aids nos países mais afetados alcançaram níveis antes impensáveis.

Essa situação permite constatar que em nenhuma outra parte do mundo a pandemia

do HIV/aids teve um impacto tão devastador sobre as populações afetadas.

Page 131: Propriedade Intelectual nos Países de Língua Portuguesanit.uesc.br/.../files/livros/Propiedade-Intelectual... · propriedade intelectual e o uso da informação tecnológica contida

130

Estudos baseados em modelagem matemática para a construção de cenários

estimam que, se mantidas as atuais condições de acesso e tratamento ARV no

continente africano, que tendem a agravar consideravelmente o quadro da epidemia,

até 2025 terão morrido na África 67 milhões de pessoas com aids (UNAIDS, AIDS Africa

Project, 2004), caracterizando uma situação catastrófi ca e sem precedentes em termos

de saúde pública.

A PANDEMIA NOS PAÍSES DA CPLP

O dramático impacto da pandemia do HIV/aids, agravado pela exclusão da maioria

das populações da possibilidade de acesso à terapia antirretroviral, é uma realidade

sombria na maioria dos países que integram a CPLP, à exceção de Portugal e do Brasil,

como se pode ver mais adiante.

Cabe ressaltar, nesse contexto, a diversidade das epidemias e subepidemias no

conjunto desses países. Ilustra bem esse quadro a grande variação entre as diferentes

prevalências, chamando a atenção o contraste entre a baixíssima prevalência estimada

para o Timor Leste, epidemias generalizadas como a de Moçambique e epidemias

concentradas, como a do Brasil, nos grupos mais vulneráveis da população.

Embora na maioria desses países a qualidade da informação epidemiológica ainda

seja precária, caracterizada pela subnotifi cação, os dados epidemiológicos disponíveis

nos permitem ter uma visão, ainda que limitada, da extensão e gravidade desse

quadro.

1. PREVALÊNCIA ESTIMADA DO HIV/AIDS NA POPULAÇÃO DE 15 A 49 ANOS

Moçambique – 16,2%

Guiné-Bissau - 7,3%

Angola - 2,5%

São Tomé e Príncipe – 1%

Cabo Verde – 0,5 a 1,5%

Brasil - 0,6 %

Timor Leste – 0,2 a 0,5%

Portugal – 0,4%

2. NOVOS CASOS DE HIV/AIDS POR ANO

Moçambique - 100.000 ou mais

Angola, Brasil - 10.000 a < 50.000

Page 132: Propriedade Intelectual nos Países de Língua Portuguesanit.uesc.br/.../files/livros/Propiedade-Intelectual... · propriedade intelectual e o uso da informação tecnológica contida

131

Guiné-Bissau - 1.000 a < 10.000

Portugal, Timor-Leste - <1.000

Cabo Verde, São Tomé e Príncipe - dados não disponíveis

3. INCIDÊNCIA DO HIV/AIDS

Moçambique - 1,00% a < 2,00%

Angola - 0,2% a < 0,3%

Guiné-Bissau - 0,10% a < 0,20%

Brazil, Portugal, Timor Leste - < 0,10%

Cabo Verde, São Tomé e Príncipe - dados não disponíveis

Fontes: Para o Brasil, Departamento de DST, Aids e Hepatites Virais, Ministério da Saúde (2007). Para os demais países,

Organização Mundial da Saúde/UNAIDS (2007) e Programas Nacionais de Aids, em UNAIDS/CPLP (2008).

CONDIÇÕES DE ACESSO UNIVERSAL AO TRATAMENTO ARV

Em 2006, os Estados-Membros da Assembleia Geral das Nações Unidas sobre

HIV/Aids (incluindo-se aqui os países-membros da CPLP) ratifi caram o entendimento

comum sobre o acesso universal. Este foi defi nido, em uma perspectiva multissetorial,

como um esforço integrado no sentido de oferecer a toda a população, particularmente

os grupos populacionais mais vulneráveis, as condições de acesso à informação de

qualidade e cientifi camente embasada e aos insumos de prevenção, em especial o

preservativo; de acesso a aconselhamento e testagem; de acesso ao tratamento

antirretroviral e de enfermidades oportunistas, além dos cuidados essenciais às pessoas

vivendo com HIV/aids.

Contrastando com esse entendimento, os dados epidemiológicos acima

apresentados apontam para uma situação dramática, agravada pelas condições de

exclusão social e extrema pobreza na maioria dos países em desenvolvimento que

integram a CPLP. Eles evidenciam, à exceção do Brasil – onde o acesso das pessoas com

indicação para o tratamento ARV (cerca de 30% das pessoas vivendo com o HIV/aids) é

universal e gratuito – a exclusão, nesses países, da maioria da população vivendo com

HIV/aids da possibilidade de acesso aos medicamentos ARV.

Verifi camos, na maioria dos países da CPLP, a inexistência de sistemas públicos

de saúde, como o Sistema Único de Saúde (SUS) brasileiro, que possam assegurar a

distribuição universal e gratuita dos ARV. Essa lacuna acaba obrigando os portadores do

HIV/aids a dependerem de doações esporádicas de organizações internacionais e, em

situações excepcionais, da compra privada individual (“out of pocket”) de medicamentos

em farmácias.

Page 133: Propriedade Intelectual nos Países de Língua Portuguesanit.uesc.br/.../files/livros/Propiedade-Intelectual... · propriedade intelectual e o uso da informação tecnológica contida

132

Essa dependência, limitando e mesmo impedindo o acesso das populações aos

medicamentos ARV, leva ao rápido agravamento da morbi-mortalidade pelo HIV/aids,

com profundas implicações sociais, econômicas e culturais.

Como o cidadão comum desses países não tem recursos para comprar

medicamentos ARV do setor privado, esse quadro acabou levando à excessiva

dependência externa de doadores internacionais, como, entre outros, o Plano de

Emergência do Presidente dos E.U.A. para o Alívio da Aids (PEPFAR).

Essa situação de dependência resultou em diversos impasses, a exemplo do boicote

pelos E.U.A. à compra, com fundos doados pelo referido Plano, de ARV genéricos não

aprovados pelo governo americano, limitando a possibilidade de aquisição, pelos países

africanos, dos medicamentos mais baratos disponíveis.

Destacam-se, ainda, problemas como a difi culdade de retenção dos pacientes

nos programas de tratamento, o elevado número de pacientes que desconhecem sua

condição sorológica ou que são diagnosticados muito tarde e morrem nos primeiros

seis meses de tratamento.

Esse quadro é particularmente agravado pela coinfecção com a tuberculose, que

constitui uma das principais causas de morte de pessoas vivendo com HIV/aids no

mundo e a primeira causa de morte entre os portadores do HIV que vivem na África.

É necessário reconhecer que o ano de 2007 marcou, inegavelmente, uma etapa

importante na história mundial da pandemia do HIV/aids e do acesso ao tratamento

ARV. Nesse ano fi nalmente atingiu-se, com dois anos de atraso, a meta da “Iniciativa 3

por 5” de se chegar, em 2005, a cerca de 3 milhões de pessoas HIV-positivas em países em

desenvolvimento recebendo a terapia antirretroviral, o que elevou signifi cativamente

a cobertura do tratamento (WHO; UNAIDS; UNICEF, 2008). Com efeito, essa estratégia

possibilitou que muitas pessoas até então limitadas pela doença e vivendo em condições

de pobreza passassem a ter, com a ampliação do acesso ao tratamento antirretroviral, a

possibilidade de retornar à atividade econômica e à vida social.

Esse aumento da cobertura tem sido atribuído à ampliação de iniciativas

internacionais diversas e também ao esforço de alguns países em desenvolvimento no

sentido de assegurarem a maior disponibilidade de medicamentos, pela redução de

preços, o aumento da testagem e do diagnóstico – estimulando a demanda –, além da

ampliação, simplifi cação e descentralização dos serviços e dos sistemas de dispensação

dos medicamentos.

No entanto, é importante destacar que, apesar desse esforço internacional, essa

meta da Iniciativa 3 por 5 atingiu apenas 31% do número estimado de 9,7 milhões de

pessoas nos países em desenvolvimento que necessitavam da terapia antirretroviral no

fi nal de 2007. Isso signifi ca que cerca 74% das pessoas que necessitam do tratamento

nesses países ainda estão distantes da possibilidade de acesso a medicamentos

antirretrovirais que salvam vidas.

Page 134: Propriedade Intelectual nos Países de Língua Portuguesanit.uesc.br/.../files/livros/Propiedade-Intelectual... · propriedade intelectual e o uso da informação tecnológica contida

133

A gravidade desse quadro impõe a necessidade de ampliação do esforço

colaborativo da comunidade internacional, em particular da CPLP, envolvendo os

governos, o meio científi co e as organizações da sociedade civil dessa comunidade,

no sentido de tentar reverter a presente situação, o que exige um amplo conjunto de

ações e de políticas mais fl exíveis de propriedade intelectual (PI) dos medicamentos

antirretrovirais e de outros insumos em saúde, propiciando a diminuição dos preços e

facilitando o acesso de populações hoje excluídas do tratamento.

A POLÍTICA BRASILEIRA DE ACESSO UNIVERSAL E GRATUITO AOS ARV

No Brasil, o Departamento de DST, Aids e Hepatites Virais do Ministério da Saúde

assegura, desde 1996, apoiado pela legislação em vigor, o acesso universal e gratuito ao

tratamento antirretroviral. Em apenas seis anos, de 1996 a 2002, essa política resultou

em um dramático declínio de 70% na mortalidade e 80% na morbidade, além de uma

diminuição de 70% nas internações hospitalares e uma economia de U$ 2,2 bilhões

no gasto público. No entanto, contrastando com esses resultados notáveis e muito

positivos, a sustentabilidade dessa política de acesso universal permanece como uma

questão crucial para o país.

Apesar de importantes esforços na última década em direção ao desenvolvimento

de medicamentos genéricos e negociações com empresas farmacêuticas multinacionais,

os preços dos medicamentos ARV persistiram muito altos, particularmente para a

segunda e terceira gerações de medicamentos. Por outro lado, como consequência

de pressões internacionais e políticas tecnológicas e industriais locais pouco efetivas, o

desenvolvimento e a produção local desses medicamentos por laboratórios públicos e

empresas privadas nacionais permaneceram em níveis baixos.

Na última década, a perspectiva de poder produzir localmente alguns dos

medicamentos ARV de primeira geração e de importar princípios ativos da China e da

Índia possibilitou ao Brasil negociar a redução de preços com as empresas farmacêuticas

multinacionais. Ademais, a introdução de medicamentos genéricos no mercado

brasileiro foi vista como uma estratégia para superar o problema dos altos preços do

tratamento antirretroviral no país (ORSI et al., 2003). A diminuição do poder de compra

governamental dos ARV, pelo rápido aumento nos preços, pelo declínio na produção

local por empresas privadas nacionais e a tendência global no sentido de uma escassez

de princípios ativos, resultante do rápido crescimento da demanda e estabilização do

número de fornecedores, tornou evidente, no fi nal de 2004, que a licença compulsória

de alguns medicamentos ARV era urgente e não podia mais ser adiada. Os casos de

países desenvolvidos, como os E.U.A. e o Canadá, nos quais a licença compulsória para

medicamentos já havia sido usada com relativa frequência, forneciam o fundamento

histórico para a adoção dessa medida. Portanto, em 2005, depois de uma decisão

Page 135: Propriedade Intelectual nos Países de Língua Portuguesanit.uesc.br/.../files/livros/Propiedade-Intelectual... · propriedade intelectual e o uso da informação tecnológica contida

134

política em favor da licença compulsória pelo Presidente do Brasil, um instrumento legal

(Portaria) foi preparado pelo então Programa Nacional de DST e Aids, do Ministério da

Saúde, para a licença compulsória de quatro medicamentos ARV: efavirenz (Merck, Sharp

& Dome), nelfi navir (Roche), lopinavir/ritonavir (Abbott) e tenofovir (Gilead Sciences), os

quais respondiam por cerca de 70% do orçamento do Ministério da Saúde para a terapia

ARV (destinado a um total de 15 medicamentos ARV).

No entanto, o Ministro da Saúde à época, que estava até então comprometido

com a decisão do Presidente, desistiu no último minuto, de forma surpreendente, de

assinar a licença compulsória desses quatro medicamentos. Vários argumentos foram

trazidos à cena política para justifi car a sua decisão, incluindo a alegação de falta de

capacidade de produção pelas empresas privadas nacionais (contrariando avaliações

anteriores do próprio Ministério da Saúde, feitas pelo então Programa Nacional de DST

e Aids e posteriormente apoiadas por avaliações do PNUD, da REBRIP e da Fundação

Clinton, confi rmando a existência de capacidade nacional de produção).

Diante de todos esses obstáculos e resistências, somente em maio de 2007 o

novo Ministro da Saúde fi nalmente conseguiu emitir a licença compulsória de um

medicamento (o efavirenz, da Merck), após mais de uma década de negociações e

ameaças de competição de preços com a produção local de genéricos. Essa decisão

ocasionou uma drástica redução de preço e resultará, como se verá mais adiante, em

uma economia expressiva para o país.

Esse longo processo político indica como pode ser difícil a utilização da fl exibilidade

do TRIPS por países em desenvolvimento.

CONDIÇÕES DE ACESSO NOS DEMAIS PAÍSES DA CPLP

Como se verá a seguir, na maioria dos países da CPLP as condições de acesso

sustentável ao tratamento ARV são bastante precárias, à exceção de Portugal e Brasil,

como mostram dados de fontes diversas: para Portugal, WHO, UNAIDS, UNICEF (2008),

para o Brasil, Departamento de DST, Aids e Hepatites Virais, Ministério da Saúde (2007).

Para os demais países, Organização Mundial da Saúde/UNAIDS (2007) e Programas

Nacionais de Aids, em UNAIDS/CPLP (2008).

PORTUGAL

Em Portugal, como no Brasil, toda a população tem acesso aos serviços prestados

pelo Serviço Nacional de Saúde. Com uma população estimada em 10,5 milhões de

habitantes, o país possui uma elevada expectativa de vida (75 anos para homens e 82

para mulheres). À semelhança do Brasil, a epidemia em Portugal é concentrada nos

grupos mais vulneráveis, no caso, os usuários de drogas injetáveis, homens que fazem

Page 136: Propriedade Intelectual nos Países de Língua Portuguesanit.uesc.br/.../files/livros/Propiedade-Intelectual... · propriedade intelectual e o uso da informação tecnológica contida

135

sexo com homens e a população confi nada. Possui um total de 34.000 pessoas vivendo

com HIV/aids nos diferentes estágios da doença, dos quais 14.195 casos de aids. Existem

18.679 pessoas em tratamento antirretroviral.

MOÇAMBIQUE

Em Moçambique, cerca de 78% da população, que é de cerca de 20 milhões de

habitantes, vivem abaixo da linha de pobreza. É uma população muito jovem, com

metade de seus habitantes menores de 18 anos. O acesso a serviços de saúde é muito

limitado. Aproximadamente 1,6 milhões de pessoas estão infectadas pelo HIV, com cerca

de 160 mil óbitos anuais. A prevalência estimada do HIV é altíssima, da ordem de 16,2%

na população de 15 a 49 anos (2007). Apesar dos esforços governamentais no sentido

da ampliação do tratamento, mais de 80% das pessoas que vivem com HIV/aids não

têm acesso aos medicamentos ARV. Cerca de 260.000 pessoas necessitam atualmente

de medicamentos ARV no país. Estima-se que, com o agravamento desse quadro, no

ano de 2010 o número de pessoas infectadas pelo vírus poderá chegar a 1,9 milhões de

pessoas, com grande impacto no desenvolvimento social e econômico do país.

ANGOLA

Em Angola, cerca de 42% da população vivem abaixo da linha de pobreza; a

expectativa de vida é de 38 a 42 anos e a rede de saúde e educação é insufi ciente para

satisfazer as necessidades básicas da população, apesar dos esforços governamentais

para aumento da cobertura e descentralização. A prevalência do HIV estimada na

população de 15 a 49 anos é elevada (2,1%), embora, comparativamente, mais baixa que

a dos demais países da África Austral. Com uma população de 16 milhões de habitantes,

o país possui cerca de 183.000 pessoas vivendo com HIV/aids e cerca de 51.000 órfãos

em decorrência da aids. Segundo o Programa Nacional de SIDA em Angola, apenas 6,5%

das pessoas vivendo com HIV/aids têm acesso ao tratamento ARV e apenas 20% das

pessoas com infecção avançada estão recebendo o tratamento.

GUINÉ BISSAU

Em Guiné Bissau, cerca de 70% da população vivem abaixo da linha de pobreza,

com acesso muito restrito a serviços de saúde e educação. A prevalência do HIV é muito

elevada, estimada em 7,3%. O país está em uma situação de epidemia generalizada e

enfrenta o risco de expansão massiva da epidemia. Em uma população de 1,6 milhões

de habitantes, há um número estimado de 16.300 pessoas vivendo com HIV/aids, e

somente 28% das pessoas com infecção avançada estão recebendo o tratamento ARV.

Page 137: Propriedade Intelectual nos Países de Língua Portuguesanit.uesc.br/.../files/livros/Propiedade-Intelectual... · propriedade intelectual e o uso da informação tecnológica contida

136

CABO VERDE

Cabo Verde é um país com cerca de 60% de sua população vivendo abaixo da

linha de pobreza. Embora possua indicadores de saúde mais favoráveis que a maioria

dos países da CPLP (expectativa de vida de 72 anos, melhores condições de acesso

a serviços de saúde em uma rede descentralizada), possui ainda, apesar dos esforços

governamentais, uma prevalência estimada do HIV entre 0,5 e 1,5%. Com uma

população de cerca de 520 mil habitantes, o país tem cerca de 2.000 pessoas vivendo

com HIV/aids, sendo o modo de transmissão predominantemente heterossexual (80%),

marcado por crescente feminização da epidemia. O acesso à terapia antirretroviral ainda

é relativamente restrito, pois apenas 28% das pessoas com infecção avançada recebem

o tratamento ARV.

TIMOR LESTE

O Timor Leste é um dos países de população mais jovem do mundo. Entre seus

habitantes, 41% vivem abaixo da linha de pobreza. Com uma população estimada

de 1 milhão de pessoas, são muito restritas as condições de acesso aos serviços de

saúde. A taxa de prevalência estimada é relativamente baixa, situando-se na faixa de

0,2 a 0,5%. Contudo, as condições muito precárias de vigilância da epidemia permitem

supor que o número de pessoas infectadas é muito maior que o número de pessoas

HIV positivas registradas. Não existem dados ofi ciais disponíveis sobre o número de

pessoas em infecção avançada em tratamento ARV. Os medicamentos antirretrovirais

foram providos pelo governo brasileiro mediante acordo de cooperação e os dados

disponíveis informam que existem apenas 20 pessoas vivendo com HIV/aids em

tratamento antirretroviral.

SÃO TOMÉ E PRÍNCIPE

O arquipélago de São Tomé e Príncipe possui cerca de 50% de sua população

abaixo da linha de pobreza. A expectativa de vida, embora baixa, em torno de 60 anos, é

considerada elevada quando comparada com a de outros países da África Subsaariana.

O acesso a serviços de saúde também é precário, porém melhor que o dos demais países

da região. Com cerca de 155 mil habitantes, o país possui uma taxa de prevalência de

1%, com uma estabilização dos óbitos por aids. O modo de transmissão predominante

do HIV é heterossexual (89,5%), com feminização da epidemia. Cerca de 300 pacientes

necessitam atualmente de tratamento ARV no país; destes, porém, apenas cerca de 27%

têm acesso aos medicamentos.

Page 138: Propriedade Intelectual nos Países de Língua Portuguesanit.uesc.br/.../files/livros/Propiedade-Intelectual... · propriedade intelectual e o uso da informação tecnológica contida

137

DEPENDÊNCIA EXTERNA NO ENFRENTAMENTO DA EPIDEMIA

À exceção de Brasil e Portugal, os demais países da CPLP estão em uma situação de

alta dependência externa no enfrentamento da epidemia. Em que pese os importantes

esforços de iniciativas internacionais como os do Fundo Global de Luta contra a Aids,

do Banco Mundial (Programa Multinacional contra a Aids e Programa de Aceleração do

Tratamento), do Governo americano (PEPFAR), da Fundação Clinton e outras agências bi

e multilaterais, a inexistência, nesses países, de sistemas de saúde estruturados capazes

de assegurar a sustentabilidade a longo prazo do tratamento e a rápida elevação dos

preços de medicamentos protegidos por patentes, agravada pelo acordo TRIPS, torna

esse quadro bastante sombrio.

PROPRIEDADE INTELECTUAL: PATENTES E PREÇOS DOS ARV

A crítica situação epidemiológica aqui apontada e as atuais barreiras ao acesso, nos

países que integram a CPLP, a insumos essenciais para o enfrentamento da pandemia do

HIV/aids decorrem de um complexo conjunto de fatores econômicos, sociais, culturais e

de saúde pública dos países em questão, que merecem análise em profundidade e que

certamente não se limitam às questões de PI.

No entanto, sem dúvida, a rigidez do atual regime internacional de PI no âmbito

do Acordo TRIPS e dos acordos bilaterais “TRIPS Plus” entre os Estados Unidos, a União

Europeia e países em desenvolvimento, incentivando regras ainda mais rígidas de PI

no âmbito desses acordos, contribui de forma signifi cativa para o agravamento desse

quadro. Além disso, essa harmonização acrítica acaba criando uma camisa de força legal

e impedindo a necessária adequação das regras de PI à peculiaridade das condições

sociais, econômicas e de saúde pública desses países.

Ao estimular monopólios temporários em áreas hiperendêmicas, como nos países

do sul da África, esse regime acaba contribuindo para uma elevação expressiva dos

preços dos medicamentos ARV, excluindo amplas parcelas da população portadora do

HIV/aids da possibilidade de acesso ao tratamento.

Como consequência, medicamentos mais recentes e efi cazes de segunda linha, tais

como os recomendados pela Organização Mundial da Saúde (OMS) em suas diretrizes

de tratamento, acabam fi cando, pela rigidez da proteção patentária e pelas restrições à

produção de genéricos e a competição de preços, excluídos dos serviços de saúde por

serem muito mais caros que os remédios antigos, de primeira linha.

Se a barreira da propriedade intelectual perdurar e a produção de medicamentos

antirretrovirais no mundo continuar concentrada em poucas empresas farmacêuticas,

inviabilizando a produção local de genéricos nos países em desenvolvimento, a situação

Page 139: Propriedade Intelectual nos Países de Língua Portuguesanit.uesc.br/.../files/livros/Propiedade-Intelectual... · propriedade intelectual e o uso da informação tecnológica contida

138

da pandemia do HIV/aids nesses países, em particular nos países da CPLP, tende a se

agravar consideravelmente.

Essa situação impõe, como se discutirá a seguir, a necessidade de ampla mobilização

política, nos países em questão, em torno da necessidade de revisão dos atuais acordos

internacionais relativos à propriedade intelectual, buscando-se a criação de novos

arcabouços legais e institucionais que assegurem o respeito às condições específi cas

dos países cuja população está sendo dizimada pela pandemia.

LICENÇA COMPULSÓRIA: A BUSCA DE ESTRATÉGIAS ALTERNATIVAS DE INCENTIVO À

INOVAÇÃO E DE COMPENSAÇÃO

Um importante argumento exposto pelos defensores das atuais regras

comerciais internacionais e sua aplicação a insumos de primeira necessidade, como os

medicamentos antirretrovirais, é a existência do mecanismo de licença compulsória,

uma “fl exibilidade” do TRIPS, que pode ser aplicada a qualquer momento pelos países

em desenvolvimento, em caso de situações de interesse público ou emergência.

Com efeito, algumas experiências de licenças compulsórias, cujos resultados ainda

estão sendo analisados, ocorreram recentemente em países da CPLP, como Moçambique

e Brasil.

Em abril de 2004, o Ministério da Indústria e Comércio de Moçambique emitiu a

licença compulsória para as patentes da lamivudina, da estavudina e da nevirapina. A

licença foi concedida à Pharco Moçambique Ltda, uma empresa local, para a manufatura

desses antirretrovirais como uma dose fi xa combinada, prevendo-se royalties de até 2%

das vendas.

No Brasil, apesar de diversas ameaças de licença compulsória de medicamentos ARV

na última década por diferentes Ministros da Saúde, apenas recentemente, em maio de

2007, essa provisão legal foi aplicada com sucesso para um medicamento, o efavirenz, da

empresa Merck, cuja produção está sendo iniciada por Far-Manguinhos, uma instituição

pública, em parceria com a iniciativa privada. Segundo estimativas governamentais,

essa versão genérica do medicamento poderá permitir ao país economizar cerca de

US$ 240 milhões até 2012, quando a patente da Merck terá expirado.

No entanto, em que pesem alguns avanços nessa área, a experiência de países

em desenvolvimento, como o Brasil e Moçambique, mostra que, embora esta seja de

fato uma importante fl exibilidade, tendo sido buscada em diversas oportunidades

por esses países, sua aplicação é bastante difícil. Na verdade, ela exige dos governos

locais uma complexa negociação política interna e externa, além do enfrentamento

de pressões comerciais e ameaças de retaliação por parte das empresas dos países

detentores das patentes.

Page 140: Propriedade Intelectual nos Países de Língua Portuguesanit.uesc.br/.../files/livros/Propiedade-Intelectual... · propriedade intelectual e o uso da informação tecnológica contida

139

A constatação dessa difi culdade de aplicação do mecanismo de licença

compulsória vem levando os países em desenvolvimento a uma crescente mobilização

em torno da necessidade urgente de revisão do regime internacional de proteção da

propriedade intelectual de medicamentos essenciais, como os medicamentos ARV.

Essa revisão do regime de PI se orientaria para a defi nição de novos mecanismos, além

de licenças compulsórias e voluntárias, que permitissem a adequada compensação

de investimentos em pesquisa, desenvolvimento e inovação (PDI) feitos por empresas

privadas e públicas na área farmacêutica.

Tais empresas poderiam, além disso, se benefi ciar de incentivos alternativos,

tais como incentivos fi scais e garantia de compra tecnológica antecipada (um bom

exemplo é a Lei de Inovação brasileira, que permite a compra tecnológica de inovações

isenta da exigência dos tradicionais processos licitatórios). Outros incentivos são os

procedimentos de aprovação regulatória de insumos essenciais ao enfrentamento de

pandemias (rápidos, mais ágeis, em sistema “fast-track”).

Fundos de Pesquisa e Desenvolvimento (P&D) têm sido propostos nos casos de

licença compulsória, de forma a compensar os investimentos realizados em inovação.

Tais fundos preveem um pagamento direto ao detentor da patente, sendo uma

percentagem do próprio Fundo de P&D e uma participação do detentor da patente no

Fundo (LOVE, 2005a; 2006). No Brasil, esse Fundo foi incorporado ao decreto anterior

proposto (mas não assinado pelo então Ministro da Saúde) para a licença compulsória

de medicamentos antirretrovirais, em 2005.

Consórcios (pools) de patentes para licenças (LOVE, 2005b) podem ser criados

como entidades não lucrativas, constituindo uma estratégia colaborativa para a gestão

coletiva dos direitos de propriedade intelectual. Um bom exemplo é a recente proposta

de um novo “patent pool” da UNITAID, um fundo multilateral para o fi nanciamento

sustentável de medicamentos ARV. Segundo a proposta em discussão, qualquer

novo medicamento que surja sob o “pool” seria vendido de forma não lucrativa e

os proprietários originais das patentes receberiam um “royalty” determinado pelos

administradores do “patent pool” e apoiado pelo fi nanciamento da UNITAID, prevendo-

se uma entidade legal separada, constituída como uma Fundação, para administrar o

“pool”.

Finalmente, também se concebeu um novo sistema de remuneração para incentivo

à inovação, o Medical Innovation Prize Fund, segundo o qual o mercado para produtos

é separado do mercado para inovações, possibilitando que os produtos possam ser

disponibilizados ao público a preços genéricos, enquanto os inovadores se benefi ciam

de um sistema separado (LOVE, 2005).

De modo a mudar radicalmente a forma como os governos apoiam a P&D na área

médica, a proposta de um novo Tratado foi assinada por 162 cientistas, especialistas

em saúde pública, professores de direito, economistas, autoridades governamentais,

Page 141: Propriedade Intelectual nos Países de Língua Portuguesanit.uesc.br/.../files/livros/Propiedade-Intelectual... · propriedade intelectual e o uso da informação tecnológica contida

140

membros do Congresso e organizações da sociedade civil, apontando para o fato de que

o atual arcabouço legal internacional para apoio à P&D na área médica possui distorções

signifi cativas e impõe elevados custos sociais. Os signatários da carta, apresentada em

fevereiro de 2005 à OMS, na Assembleia Mundial da Saúde e à CIPIH (WHO Commission

on IPR, Innovation and Health) apelavam para a necessidade de debates sobre um

arcabouço legal global em P&D na área médica, para atender de forma mais adequada

o objetivo de prover o “acesso a medicamentos para todos”.

A PAR TICIPAÇÃO DA CPLP EM UMA AGENDA PARA O DESENVOLVIMENTO

Como as estratégias alternativas aqui apresentadas só serão viáveis no longo prazo

se forem incorporadas nos novos acordos comerciais internacionais, é fundamental a

mobilização dos países em desenvolvimento, e em particular os da CPLP, em torno de

uma agenda para o desenvolvimento.

Com essa perspectiva, durante a 31ª Sessão da Organização Mundial de

Propriedade Intelectual - OMPI (WIPO, sigla em inglês), realizada em Genebra, em 2004,

as delegações de diversos países em desenvolvimento, inclusive do Brasil, apresentaram

em conjunto uma proposta denominada “Friends of Development Group”. Em 2007, os

países-membros da WIPO fi nalmente concordaram com o estabelecimento de uma

agenda para o desenvolvimento a ser submetida à Assembleia da WIPO naquele ano.

Eles também concordaram com um novo Comitê da WIPO em desenvolvimento e

propriedade intelectual.

Na agenda em HIV/aids, diversos países em desenvolvimento, com a participação

do Brasil, criaram durante a Conferência Internacional de aids em 2004 em Bangcoc,

uma rede de cooperação em insumos estratégicos (medicamentos ARV, vacinas,

microbicidas, kits para monitoramento e diagnóstico e preservativos), fi rmando um

compromisso com relação ao aprimoramento do arcabouço ético, regulatório e de

propriedade intelectual.

A ampliação da participação dos países da CPLP nessas diversas iniciativas de

fortalecimento da cooperação Sul-Sul em torno de questões de prevenção, acesso e

propriedade intelectual de insumos estratégicos em HIV/aids certamente contribuirá

para a mobilização internacional necessária ao enfrentamento da pandemia.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Examinou-se aqui em que medida os países que integram a CPLP são afetados pela

pandemia do HIV/aids e de que forma a atual legislação internacional de propriedade

intelectual e os acordos bilaterais de livre comércio vêm contribuindo para difi cultar a

competição por genéricos e, em consequência, afetando os preços dos medicamentos

Page 142: Propriedade Intelectual nos Países de Língua Portuguesanit.uesc.br/.../files/livros/Propiedade-Intelectual... · propriedade intelectual e o uso da informação tecnológica contida

141

antirretrovirais. Tal situação vem tornando esses países cada vez mais dependentes da

excepcionalidade do mecanismo de licença compulsória, que, pelas pressões políticas

e comerciais, é bastante difícil de ser efetivamente implementado.

Constatou-se que, embora os atuais obstáculos ao acesso a medicamentos ARV

devam ser examinados em uma perspectiva mais ampla, considerando o complexo

conjunto de questões econômicas, sociais, culturais e de saúde pública envolvidas, o

aprimoramento do atual regime internacional de propriedade intelectual será decisivo

para impulsionar a atividade científi ca e tecnológica na área farmacêutica, assegurando

a proteção dos direitos humanos, o desenvolvimento social e a melhoria das condições

de vida e de saúde das populações afetadas pela pandemia.

As informações aqui apresentadas chamam a atenção para a necessidade

urgente de revisão da legislação e dos procedimentos internacionais de propriedade

intelectual, tornando-os menos restritivos e mais fl exíveis, de modo a levar em conta

as peculiaridades econômicas dos países em desenvolvimento, assegurando-lhes a

necessária autonomia para fortalecimento de sua capacidade nacional de pesquisa,

desenvolvimento e inovação, além da possibilidade de optarem pelas respostas mais

adequadas às suas necessidades locais.

Em síntese, a possibilidade de reversão do quadro epidemiológico e de acesso aos

medicamentos ARV aqui apresentada para os países da CPLP exigiria uma estratégia

integrada, em uma perspectiva macroestrutural, contemplando:

1. Novas estratégias de prevenção, com ações no nível dos comportamentos,

atitudes e práticas sexuais e do consumo de drogas, estratégias de prevenção positiva

e de intervenção comunitária.

2. Apoio à pesquisa científi ca e ao desenvolvimento tecnológico em DST/

HIV/aids, gerando novos conhecimentos, fortalecendo a capacidade de pesquisa,

desenvolvimento e inovação de insumos estratégicos (medicamentos, kits para

diagnóstico e monitoramento, preservativos e apoio ao desenvolvimento de vacinas

anti-HIV) e subsidiando o processo decisório dos governos no enfrentamento da

pandemia.

3. Busca de novos paradigmas para a propriedade intelectual nos países em

desenvolvimento, em particular na CPLP, estimulando a produção local de medicamentos

antirretrovirais, reduzindo preços e ampliando o acesso das pessoas vivendo com

HIV/aids ao tratamento ARV. Aqui, é necessário lembrar que sistemas muito rígidos

de propriedade intelectual, ao invés de estimular a inovação, acabam tendo o efeito

inverso de a restringir, o que signifi ca um obstáculo ao desenvolvimento econômico e

social (Stiglitz, 2004).

Page 143: Propriedade Intelectual nos Países de Língua Portuguesanit.uesc.br/.../files/livros/Propiedade-Intelectual... · propriedade intelectual e o uso da informação tecnológica contida

142

4. Fortalecimento das estratégias de cooperação internacional entre países em

desenvolvimento em pesquisa, desenvolvimento e inovação em HIV/aids, bem como

dos aspectos éticos e regulatórios relacionados.

A cooperação internacional em ciência, tecnologia e inovação entre os países no

âmbito da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa, destacando a propriedade

intelectual e as demais questões éticas e regulatórias envolvidas, será crucial para

viabilizar essa abordagem macroestrutural. Ela possibilitará a troca de experiências,

a transferência de tecnologias e uma refl exão conjunta entre os diferentes atores

envolvidos (governos, sociedade civil, doadores multilaterais e bilaterais e setor privado)

sobre os possíveis cenários futuros para o desenvolvimento de novas intervenções,

insumos e produtos no enfrentarmento da pandemia do HIV/aids, fundamentando a

busca de soluções criativas e inovadoras nesse campo.

Page 144: Propriedade Intelectual nos Países de Língua Portuguesanit.uesc.br/.../files/livros/Propiedade-Intelectual... · propriedade intelectual e o uso da informação tecnológica contida

143

REFERÊNCIAS

CORREA, C.M. Implications of the Doha Declaration on the TRIPS Agreement

and Public Health. Geneva: WHO, 2002. (Health economics and drugs series, n. 12).

EDM/PAR/2002.3.

GROUP FRIENDS OF DEVELOPMENT. Proposal to establish a development agenda

for the World Intellectual Property Organization (WIPO): An elaboration of

issues raised in document WO/GA/31/11, WIPO. Geneva, 2004.

LOVE, J. Remuneration guidelines for non-voluntary use of a patent on medical

technologies. Geneva: WHO, 2005a. (Health Economics and Drugs Series, n. 18).

_____. Proposal for patent pool for essential medicines (PPEM), CPTECH, Addis

Ababa. [S.l.: s.n.], 2005b.

_____. Measures to enhance access to medical technologies and new methods

of stimulating medical R & D. [S.l.: s.n.], 2006. Paper for the WIPO Open Forum on the

draft Substantive Patent Law Treaty (SPLT).

ORSI, F. et al. Intellectual Property Rights, Anti-AIDS Policy and Generic Drugs, Lessons

from the Brazilian Public Health Program. In: MOATTI, J.P. et al. Economics of AIDS

and access to HIV/AIDS care in developing countries: Issues and challenges. Paris:

ANRS, 2003. (Collection Social Sciences and AIDS).

STIGLITZ, J. Towards a Pro-Development and Balanced Intellectual Property Regime,

Keynote address presented at the Ministerial Conference on Intellectual Property for

Least Developed Countries, World Intellectual Property organization (WIPO)UNAIDS,

AIDS Africa Project, Geneva, 2004).

UNAIDS; COMUNIDADE DOS PAÍSES DE LÍNGUA PORTUGUESA. Epidemia de VIH nos

países de língua portuguesa: situação atual e perspectivas futuras rumo ao acesso

universal à prevenção, tratamento e cuidados. Genebra: WHO/UNAIDS, 2006. Draft

Report on WHO/UNAIDS Meeting on Forecasting ARV needs up to 2010.

WHO; UNAIDS; UNICEF. Towards universal access: scaling up priority HIV/AIDS

interventions in the health sector. Geneva, 2008.

Page 145: Propriedade Intelectual nos Países de Língua Portuguesanit.uesc.br/.../files/livros/Propiedade-Intelectual... · propriedade intelectual e o uso da informação tecnológica contida
Page 146: Propriedade Intelectual nos Países de Língua Portuguesanit.uesc.br/.../files/livros/Propiedade-Intelectual... · propriedade intelectual e o uso da informação tecnológica contida

CAPÍTULO 6

AS CIÊNCIAS DE SAÚDE EM MOÇAMBIQUE:

O PAPEL DA PROPRIEDADE INTELECTUAL120

Maria Teresa Araújo 121

120 Comunicação apresentada no I Seminário Internacional: Propriedade Intelectual nos Países de Língua Portuguesa, Rio de

Janeiro, de 30 de junho a 2 de julho de 2008.

121 Médica Ginecologista-Obstetra, atual Diretora da Faculdade de Ciências da Saúde da Universidade Lúrio.

Page 147: Propriedade Intelectual nos Países de Língua Portuguesanit.uesc.br/.../files/livros/Propiedade-Intelectual... · propriedade intelectual e o uso da informação tecnológica contida

146

Em Moçambique, durante o período colonial, existia legislação que regia a questão

da propriedade intelectual como um todo, não havendo, no entanto, procedimentos

para a sua aplicação. Após a independência nacional, em 1975, o assunto não foi

esquecido, mas, em face dos grandes desafi os que se colocavam ao jovem país, essa

não era a grande prioridade.

Posteriormente, o Ministério da Ciência e Tecnologia produziu um documento

preliminar sobre a “Estratégia da Propriedade Intelectual”. Nesse documento, os direitos

de autor estão plasmados com pormenor, mas, no que respeita à área da saúde, apenas

se afl oram assuntos relacionados com a medicina tradicional e a pesquisa relativa a

alguns produtos da ervanária (para a terapêutica ou cosmética), e pouco ou quase nada

sobre outros aspectos. Mas mais uma vez, a grande difi culdade está em como aplicar

qualquer que seja a legislação nesse sentido e em controlar aspectos relacionados com

a fuga de ideias, informação e outros aspectos, sem que para tal se criem e aprovem

os instrumentos reguladores e se defi nam, de forma clara, os conceitos e os direitos de

todos os atores. Muitas vezes tive acesso a publicações em que o autor mencionado

havia sido mais fi nanciador e/ou promotor e não o executor, tendo-se limitado a alterar

algumas palavras por sinônimos e a corrigir algumas vírgulas. Tive a oportunidade

de conhecer, diretamente ou em reuniões internacionais, vários desses executores

espoliados do seu trabalho intelectual, que deveria ser sua propriedade, mas que não

tinham instrumentos que lhes permitissem defender os seus direitos.

A minha experiência pessoal, tanto em Moçambique – em vários níveis do Serviço

Nacional de Saúde e atualmente, na área da Educação, como diretora da Faculdade

de Ciências de Saúde da Universidade Lúrio – quanto ao longo dos 18 anos na OMS,

onde tive o privilégio de trabalhar, permite-me avançar com as refl exões que a seguir

apresento:

1. Intencionalmente ou não, a cooperação com os países benefi cia bastante o

propositor da cooperação, individualmente:

a. muitos dos que passaram por Moçambique e outros países ascenderam a

postos importantes em organismos internacionais ou nos seus países de origem. A

razão desse fato pode encontrar-se em:

i. terem melhorado o seu currículo graças ao trabalho feito com a colaboração das

equipes em que foram inseridos.

ii. terem publicado trabalhos executados com quadros nacionais, os quais não são

sequer mencionados.

iii. terem “copiado” programas ou normas de Moçambique, aplicando-os em outras

cooperações, sem mencionarem a origem.

Page 148: Propriedade Intelectual nos Países de Língua Portuguesanit.uesc.br/.../files/livros/Propiedade-Intelectual... · propriedade intelectual e o uso da informação tecnológica contida

147

Os fatos acima descritos são reprováveis em qualquer parte do mundo. Reprováveis

porque quem os pratica sequer menciona, mesmo que a título de agradecimento, o

nome das pessoas ou dos programas que realizaram o trabalho ou nele colaboraram.

Reprováveis porque usam conhecimentos e mão de obra de pessoas a quem faltam

meios e informação jurídica que lhes permitam fazer valer os seus direitos.

2. No nível político, a cooperação “convence” os decisores políticos que, por sua

vez, “obrigam” os executores técnicos a seguirem linhas que não as mais apropriadas ou

as mais ajustadas à realidade de Moçambique ou do país em questão. Isso se manifesta

nomeadamente na transposição, linear e direta, de métodos ou formas que deram certo

na realidade concreta do país ofertante da cooperação. Tal se observa, sobretudo, no

reforço às instituições.

3. A pressão econômica é também um fator que leva à perda de propriedade

intelectual, pois embora as ideias e protocolos tenham um determinado “nascimento”,

acabam por pertencer a quem as fi nancia e não a quem as elaborou e executou. Esse

fator manifesta-se mais em projetos e programas de pesquisa.

4. Outro aspecto, não menos relevante, está relacionado com o fato de os superiores

hierárquicos darem aos seus subordinados instruções de trabalho e de pesquisa muitas

vezes irrelevantes para as funções ou responsabilidades que estes desempenham,

e depois as publicarem em seu nome pessoal sem para isso nada terem feito e, mais

uma vez, sem mencionarem os executores, com o agravante de os desviarem das suas

funções e obrigações principais.

Tudo isso resulta em uma situação extremamente lesiva para os pesquisadores e

inovadores moçambicanos que, sem terem instrumentos legais a que possam recorrer,

são colocados em uma situação de desvantagem lesiva para os seus interesses e direitos

pessoais e para os interesses nacionais, e de abuso intelectual.

Essas condições são propícias para:

Oportunismos individuais de pessoas que se aproveitam do trabalho e ideias •

alheias e fi cam impunes;

Uso de mão de obra especializada para pesquisa e tratamento de dados, sem •

que seja reconhecido o direito de autor;

Apropriação de ideias e inovações, individuais ou coletivas, fi cando os seus •

autores no anonimato total;

Apropriação de conceitos nacionais;•

Page 149: Propriedade Intelectual nos Países de Língua Portuguesanit.uesc.br/.../files/livros/Propiedade-Intelectual... · propriedade intelectual e o uso da informação tecnológica contida

148

Imposição de ideias e de conceitos por meio do fi nanciamento ou de •

políticas;

Diminuição da autoestima e aumento do desinteresse dos quadros nacionais •

por não verem reconhecido o seu esforço ou trabalho nem a sua capacidade

intelectual, o que leva à inibição mental e, muitas vezes, estimula a fuga de

cérebros para outros locais onde “pensam” que terão algum reconhecimento.

Tudo isso só será revertido mediante a aprovação de leis e respectivos regulamentos

de aplicação que forneçam os instrumentos indispensáveis para a proteção dos direitos

de propriedade intelectual.

Page 150: Propriedade Intelectual nos Países de Língua Portuguesanit.uesc.br/.../files/livros/Propiedade-Intelectual... · propriedade intelectual e o uso da informação tecnológica contida

III

PROPRIEDADE INTELECTUAL NA AGRICULTURA

E CONHECIMENTOS TRADICIONAIS

Page 151: Propriedade Intelectual nos Países de Língua Portuguesanit.uesc.br/.../files/livros/Propiedade-Intelectual... · propriedade intelectual e o uso da informação tecnológica contida
Page 152: Propriedade Intelectual nos Países de Língua Portuguesanit.uesc.br/.../files/livros/Propiedade-Intelectual... · propriedade intelectual e o uso da informação tecnológica contida

CAPÍTULO 7

PROPRIEDADE INTECTUAL NA AGRICULTURA

E CONHECIMENTOS CORRELATOS EM MOÇAMBIQUE

Jorge Ferrão122, Américo Uaciquete123 e Camilo Cuna124

122 Reitor da Univerisdade Lúrio (UNILÚRIO), Moçambique.

123 Professor de Biologia na Univerisdade Lúrio (UNILÚRIO), Moçambique, Doutorando na Universidade Witswatersrand,

Joanesburgo, África do Sul.

124 Professor de Ética e Bioética na Univerisdade Lúrio (UNILÚRIO), Moçambique, PhD na Universidade de Roma, Itália.

Page 153: Propriedade Intelectual nos Países de Língua Portuguesanit.uesc.br/.../files/livros/Propiedade-Intelectual... · propriedade intelectual e o uso da informação tecnológica contida

152

1. INTRODUÇÃO

Se aceitarmos que propriedade signifi ca um bem materialmente real, então a

propriedade intelectual poderá ser entendida como a posse de ambos, o bem/produto

ou capital e o conhecimento associado à aplicação do mesmo. Portanto, o saber aplicar

o recurso, produto ou capital é ato humano e consciente. Nesse contexto, a propriedade

se associa de forma indiferenciada ao recurso Homem.

Aqui, propomo-nos a analisar o atual estágio do discurso sobre a propriedade

intelectual, quer no nível global, quer, sobretudo, no contexto particular de Moçambique,

com destaque para o âmbito da agricultura.

2. PROPRIEDADE INTELECTUAL NO CONTEXTO GLOBAL

De acordo com Prado (2005), ao longo das últimas décadas tornou-se lugar comum

afi rmar-se que estamos vivendo em uma sociedade de informação e que o capitalismo

contemporâneo estaria em uma nova fase, a chamada pós-grande indústria. Nessa fase,

por consequência, a principal fonte de valorização deixa de ser o tempo de trabalho,

passando a ocupar o seu lugar o desenvolvimento da ciência e da tecnologia.

A esse pressuposto Albagli (1998) designará como imperativo tecnológico, que

coloca a ciência e a tecnologia em um novo patamar, ou seja, as suas relações com as

estruturas de poder vigentes. Desse modo, ciência e tecnologia passam a constituir-se

em bens mercantis e bens estratégicos, ao mesmo tempo protegidos e restritamente

tornados disponíveis no mercado global, privatizados e comercializados pelos grandes

agentes econômicos.

A transformação em mercadoria das formas culturais e históricas da atividade

intelectual reveste-se de contornos de expropriação. Desse modo, a evolução que

acontece no mundo está extremamente distante do horizonte de países menos

desenvolvidos, cuja preocupação ainda é eliminar a fome e outras carências.

Ao refl etirmos sobre a propriedade intelectual, julgamos imperioso questionar:

de que modo as esferas públicas locais e regionais, mediante os blocos regionais e

mesmo – convenhamos – a Organização Mundial do Comércio, por meio do TRIPS

(Trade Related Aspects of Intellectual Property), poderiam abandonar o foro tradicional

das discussões sobre propriedade intelectual para acomodar o interesse dos países

mais carenciados, porém detentores de uma potencial biodiversidade? Como esses

países poderiam defender a sua propriedade intelectual, sem que esta fi que diluída na

propriedade industrial ou em outros domínios, no âmbito dos quais esses países não

teriam condições técnicas, científi cas e práticas de se autodefenderem? E qual seria,

concretamente, o lugar da propriedade intelectual?

Page 154: Propriedade Intelectual nos Países de Língua Portuguesanit.uesc.br/.../files/livros/Propiedade-Intelectual... · propriedade intelectual e o uso da informação tecnológica contida

153

No nosso modo de entender, a importância dos sistemas de direito de propriedade

intelectual reside, essencialmente, na promoção da inovação por intermédio de leis

ou normas que encorajam o inovador a desvendar o seu conhecimento ao público e,

por conseguinte, estimulam o progresso científi co e artístico. Assim, o recurso Homem

representa o aspecto mais preponderante em uma esfera global onde o conhecimento

desempenha, cada vez mais, um papel de progresso tecnológico, industrial e, em suma,

de desenvolvimento.

Na verdade, a propriedade intelectual recai, em última instância, sobre quem quer

que seja o responsável pela administração do recurso Homem, quer no espaço, quer no

tempo. Em muitos casos, os responsáveis são os Estados.

Nos moldes do desenvolvimento econômico moderno, a propriedade e, por

conseguinte, o poderio econômico dos Estados assenta no conhecimento. Os recursos

físicos ou materiais, como a terra, o mar, a fl ora e a fauna, representam apenas a matéria-

prima, cujo valor, na economia global, decresce cada vez mais. Novos recursos, tais como

a Internet, o capital humano qualifi cado e os produtos transformados, vão tomando a

essência do progresso econômico das pessoas, empresas, corporações, Estados e até de

regiões estratégicas.

O perfi l do intelecto de um Estado, bem como a sua diversidade e organização,

mostram-se cada vez mais importantes quando, por exemplo, se nota que, no nível

do comércio global, a venda anual de bens culturais aumentou quatro vezes entre

1980 e 1998. Em muitos casos, esses bens representam o saber milenar dos povos,

amalgamado em danças, vestes, traços na madeira, na pedra e até em composições

de artefatos diversos como artigos de cestaria, sons musicais e instrumentos e, ainda,

em composições de expressão linguística própria. No nível internacional, são duas

as organizações com responsabilidade de implementar as leis internacionais de

propriedade intelectual: A Organização Mundial de Propriedade Intelectual – OMPI

(WIPO, sigla em inglês) e a Organização Mundial de Comércio – OMC (WTO, sigla em

inglês), das quais Moçambique é membro, mediante as Resoluções Nºs. 12/96 e 31/94.

3. PROPRIEDADE INTELECTUAL NA AGRICULTURA EM MOÇAMBIQUE

O reconhecimento dos direitos de propriedade intelectual, sem dúvida, galvaniza

a inovação e competitividade em todas as esferas da vida. Neste trabalho, porém,

pretendemos:

(1) Elucidar o cenário da valorização da propriedade intelectual em Moçambique,

na esfera da agricultura e aspectos a ela associados. Em outras palavras, analisaremos

como o inovador na agricultura moçambicana vende seu produto ou sistema

ao governo, em troca do monopólio da sua criatividade por um determinado

Page 155: Propriedade Intelectual nos Países de Língua Portuguesanit.uesc.br/.../files/livros/Propiedade-Intelectual... · propriedade intelectual e o uso da informação tecnológica contida

154

período, e, ademais, como o governo investe na promoção desse tipo de negócio,

assumindo-o como relevante para o desenvolvimento acelerado da sua economia.

Entenda-se agricultura no seu sentido lato, em que as plantas são combinadas com

animais em benefício da vida humana, tanto no campo como nas zonas urbanas;

(2) Analisar os nexos que se estabelecem entre a estratégia nacional de

propriedade intelectual e a sua implementação em face dos acordos internacionais,

particularmente os TRIPS, na atual conjuntura e condição socioeconômica

de Moçambique. De salientar que este trabalho, pela sua natureza, resulta

essencialmente do estudo sistemático de documentos e de alguma bibliografi a

sobre o tema.

Até 2004, Moçambique aparecia registrado como participante de três acordos

internacionais relacionados com a propriedade intelectual, designadamente: 1) o

acordo de Madri sobre o registro internacional de marcas (Resolução Nº 20/97),

2) o acordo internacional sobre a classifi cação de bens e serviços para o registro de

marcas (Resolução Nº 35/99) e 3) a União de Paris (Resolução Nº 21/97). Esses acordos

obrigam os governos-membros a proteger o direito de propriedade intelectual nos

seus territórios. No contexto da agricultura, isso signifi ca referir-se à emergência de

agropatentes protegidas por lei, tal como acontece nas indústrias gráfi ca e discográfi ca,

por exemplo.

Em Moçambique, o governo deu alguns passos signifi cativos, convenhamos,

nessa perspectiva, mediante a criação de bases institucionais e legislativas: o Decreto

Nº 50/2003 cria e confere estatuto orgânico ao Instituto de Propriedade Industrial; o

Decreto Nº 4/2006 versa sobre o código de propriedade industrial; o Decreto Nº 19/99

regula o funcionamento de agentes ofi ciais de propriedade industrial; e a Resolução Nº

34/99 dispõe sobre a adesão de Moçambique à legislação regional sobre o direito de

propriedade intelectual (ARIPO).

No contexto da agricultura, existe o Regulamento Nº 184/2001, que estabelece

as normas para a produção, comercialização, controle de qualidade e certifi cação de

germoplasma. Contrariamente ao que acontece em alguns países da região, como

o Quênia, o Zimbábue e a Suazilândia, que já têm leis específi cas sobre os direitos

do melhorador de plantas, o regulamento acima referido não assegura direitos de

propriedade para além do registro de autoria, no caso particular de variedades de

espécies vegetais cultivadas.

Ainda, a grande maioria dos intervenientes no processo desconhece não só a

importância da propriedade intelectual, como também a legislação existente, inclusive

os mecanismos à sua disposição para defender os seus interesses, fato que torna os

avanços acima mencionados inexpressivos ou pouco relevantes.

Page 156: Propriedade Intelectual nos Países de Língua Portuguesanit.uesc.br/.../files/livros/Propiedade-Intelectual... · propriedade intelectual e o uso da informação tecnológica contida

155

Há uma consciência dos acontecimentos internacionais que inclui organizações/

sistemas como a União Internacional para a proteção de novas variedades de plantas

(UPOV/1978). A aliança voluntária é limitada e, portanto, o instrumento não foi adotado

por muitos países africanos, à exceção do Quênia e da África do Sul, essencialmente

devido ao seu impacto sobre a livre e secular partilha de sementes pelos camponeses.

Em 2002, a Organização da Unidade Africana, publicou uma lei modelo para a proteção

dos direitos das comunidades locais, camponeses e melhoradores da África, no contexto

do acesso aos recursos biológicos. Em Moçambique, essa lei ainda é pouco conhecida.

É verdade que o direito de monopólio do conhecimento requer do governo o

desenvolvimento de sistemas de tipifi cação e catalogação de tecnologias baseadas

no conhecimento e essa missão cabe ao Instituto de Propriedade Industrial, criado

pelo Decreto Nº 50/2003. Além disso, o governo de Moçambique já mostrou certo

comprometimento na promoção do desenvolvimento por meio da inovação

tecnológica, criando o chamado Fundo Competitivo Nacional para a Investigação -

FNI (Decreto nº 12/2005). Todavia, falta um aspecto preponderante, que é a proteção

do direito de monopólio das criações resultantes por tempo determinado, sobretudo

na área da agricultura. Em consequência disso, as ideias, marcas e produtos nacionais

praticamente continuam a carecer de proteção e reconhecimento. Como agravante, as

plantas nacionais que concorrem para o tratamento de diversas doenças continuam a

ser exploradas até por estrangeiros, abusivamente, sem que as comunidades locais, que

transmitem o conhecimento sobre o seu uso, se benefi ciem de qualquer incentivo.

É provavelmente importante levantar uma questão que afeta não apenas

Moçambique. Se o monopólio da criação tem sido justifi cado internacionalmente com

base nos investimentos realizados em prol dessa criação, como poderá ser justifi cado o

monopólio quando a inovação provém de capitais públicos?

A pesquisa privada em Moçambique é quase inexistente. Essa ideia é corroborada

por outros analistas, como é o caso da Fundação Joaquim Chissano, segundo a qual a

ciência e a tecnologia ainda são áreas de fraca divulgação no país. Mesmo o conhecimento

básico existente reside mais nos estabelecimentos acadêmicos e de pesquisa científi ca,

nos Ministérios e em diversas outras instituições, públicas e privadas.

Esse conhecimento se encontra pouco disponível para o grande público,

pouco contribuindo, portanto, para a solução dos problemas nacionais ligados ao

desenvolvimento. Semelhante défi cit de divulgação do conhecimento e tecnologia

básicos deixa muitos produtores, sobretudo comunitários, completamente entregues

às práticas de produção rudimentares que pouco concorrem para a produção rentável

de bens e serviços. Os serviços de extensão que deveriam transmitir conhecimentos

científi cos básicos, incluindo resultados da pesquisa científi ca e promover a utilização

de tecnologias apropriadas, são igualmente incipientes. Nesse cenário, parece coerente

a alegação de que o espírito de monopólio é o impeditivo básico da implementação

Page 157: Propriedade Intelectual nos Países de Língua Portuguesanit.uesc.br/.../files/livros/Propiedade-Intelectual... · propriedade intelectual e o uso da informação tecnológica contida

156

da legislação de propriedade intelectual, ou seja, o monopólio do direito milenar dos

povos e de recursos, quando o fi nanciamento é público, em benefício de um indivíduo

singular ou coletivo. Aliás, a cláusula UPOV91, que proíbe a partilha de sementes entre

produtores no campo, é o exemplo típico disso.

Nas sociedades em que a maioria das pessoas não possui escolarização sufi ciente

para perceber o benefício das leis futuristas, qualquer norma que altere o seu modus

vivendi é contra a ordem natural ou tradicional da sua existência, pelo que a rejeição

daquela é a mais óbvia opção.

Em resumo, a praticabilidade do direito de propriedade intelectual na agricultura

em Moçambique poderá estar condicionada a três fatores, nomeadamente: (1) a fonte do

fi nanciamento da inovação; (2) a competência do estabelecimento dos limites entre uma

criação e outra; e (3) a educação massiva da sociedade sobre as vantagens da substituição

da lei tradicional da livre troca do conhecimento por uma lei de comercialização deste,

na perspectiva de um rápido desenvolvimento econômico, evitando, assim, que os

gigantes econômicos do mundo se apoderem do fosso tecnológico dos pobres.

4. CONCLUSÃO

Embora exista uma estratégia nacional sobre propriedade intelectual, a sua

implementação circunscreve-se mais a uma discussão teórica e institucional. Na prática,

o ordenamento jurídico e as instituições do Estado não consagram, ainda, os direitos

de propriedade intelectual como instrumento de defesa dos interesses nacionais e dos

respectivos detentores dessa propriedade.

A revisão constitucional ocorrida em 2004, no seu nº 02, do artigo 82, prevê a

possibilidade de expropriação de direitos de propriedade por necessidade, utilidade e

interesses públicos, mediante pagamento de justa indenização. Todavia, a abordagem

histórica e sistemática na interpretação das normativas e decretos de vária ordem não

favorece nem o Estado, nem os cidadãos nacionais e, muito menos, as regiões rurais,

detentoras do “saber tradicional”.

A estratégia nacional da propriedade intelectual nem por isso terá criado as

condições reais para a implementação do acordo TRIPS, e nem é previsível que, fora

da esfera institucional, o cidadão comum adote o acordo para a defesa dos seus

interesses.

Impõe-se, enfi m, o desafi o ao Estado e a todos os intervenientes no discurso sobre

a propriedade intelectual na agricultura em Moçambique para que algo seja feito no

sentido de melhorar o atual cenário, tão cedo quanto possível.

Page 158: Propriedade Intelectual nos Países de Língua Portuguesanit.uesc.br/.../files/livros/Propiedade-Intelectual... · propriedade intelectual e o uso da informação tecnológica contida

157

REFERÊNCIAS

ALBAGLI, Sarita. Geopolítica da biodiversidade. Brasília, DF: IBAMA, 1998.

EXPERE, J. A. The African Model Law. Addis Ababa: Organization of African Unity,

2000.

FUNDAÇÃO JOAQUIM CHISSANO. Desenvolvimento econômico e social.

Disponível em: <http:www.jchissano.org.mz/conteudos/portugues/PA_desenvol%20

%20%econ%20%20social.pdf>. Acesso em: 17 maio 2008.

KUYEK, D. Intellectual property rigths in African agriculture: implications for small

scale farmers. Barcelona: GRAIN, Aug. 2002.

MOÇAMBIQUE. Constituição da República. 2004. Disponível em:< http://www.

mozambique.mz/pdf/constituicao.pdf>. Acesso em: 28 mar. 2008.

MOMOANE, Ana. Os desafi os do fi nanciamento da investigação e de

desenvolvimento dos bens intangíveis da propriedade intelectual.

Disponível em: <http/www.ipi.gov.mz/img/ppt/ipstrategy-mozambique>. Acesso em:

17 maio 2008.

PRADO, Eleutério F.S. Desmedida do valor: crítica da pós-grande indústria. São

Paulo: Xamã, 2005.

WORLD TRADE ORGANIZATION. Agreement on trade related aspects of

intellectual property rights: Nnex 1C of the Marrakech agreement establishing

the World Trade Organization, signed in Marrakech, on April 15, 1994. Geneva, 1994.

Page 159: Propriedade Intelectual nos Países de Língua Portuguesanit.uesc.br/.../files/livros/Propiedade-Intelectual... · propriedade intelectual e o uso da informação tecnológica contida
Page 160: Propriedade Intelectual nos Países de Língua Portuguesanit.uesc.br/.../files/livros/Propiedade-Intelectual... · propriedade intelectual e o uso da informação tecnológica contida

125 As opiniões expressas no texto são de responsabilidade da autora. Baseado em palestra dada no seminário “Propriedade

Intelectual Nos Países de Língua Portuguesa”, 30 de junho – 2 de julho de 2008, Rio de Janeiro, Brasil.

126 Coordenadora Geral de Articulação Institucional e Difusão Regional ([email protected]).

CAPÍTULO 8

EDUCAÇÃO PARA A INOVAÇÃO:

AÇÕES DO INSTITUTO NACIONAL DE PROPRIEDADE INDUSTRIAL

- INPI NO ÂMBITO DA AGRICULTURA125

RITA PINHEIRO-MACHADO126

Page 161: Propriedade Intelectual nos Países de Língua Portuguesanit.uesc.br/.../files/livros/Propiedade-Intelectual... · propriedade intelectual e o uso da informação tecnológica contida

160

1. INTRODUÇÃO

A institucionalização da ciência no Brasil teve início na década de 50 e se baseou

na ideia da ciência como “fronteira sem fi m”, em que todos os campos do conhecimento

eram merecedores de fi nanciamento, e todos os bons projetos deviam ser apoiados

pelo governo. Na década de 70, a ciência como força produtiva e educação para formar

pessoas qualifi cadas foram ideias incorporadas ao Programa de Metas e Bases do

Governo (1970) como uma das doze conquistas essenciais a serem alcançadas. Isso deu

grande impulso à ciência e permitiu ao Brasil dispor, hoje, de um parque científi co que

cobre grande parte das áreas do conhecimento.

A partir da década de 80, o governo brasileiro esvaziou o programa ofi cial de

fi nanciamento à pesquisa, mas passou a fazer expressivos investimentos na formação

de pessoal pós-graduado. Desde então, houve um aumento progressivo no total de

bolsas de estudo concedidas no país, além de apoio crescente para o desenvolvimento

da infraestrutura necessária aos cursos de pós-graduação credenciados – o que se

distingue da estratégia utilizada por outros países em desenvolvimento, que enviam

seus estudantes para centros de pesquisa estrangeiros. A Figura 1 mostra a evolução

do número total de bolsas de estudo de mestrado e doutorado concedidas no país, no

período de 1970 – 2009, indicando um forte crescimento tanto na formação de novos

mestres quanto de novos doutores no país.

Figura 1: Bolsas de mestrado e doutorado, 1970–2009.

1970 1975 1980 1985 1990 1995 2000 2005 20100

5000

10000

15000

20000

25000

30000

35000

40000

45000

Mestrado

Doutorado

Total

Fonte: MCT, acesso setembro/10.

Page 162: Propriedade Intelectual nos Países de Língua Portuguesanit.uesc.br/.../files/livros/Propiedade-Intelectual... · propriedade intelectual e o uso da informação tecnológica contida

161

A Figura 2 apresenta a produção científi ca resultante dos investimentos

governamentais realizados na área de ciência e tecnologia (C&T) em números absolutos

(2A) e como percentual em relação a tudo o que é produzido anualmente no mundo e

em comparação com a produção da América Latina (2B).

O investimento realizado na pós-graduação traduziu-se em aumento da

contribuição do Brasil em publicações técnicas e científi cas em revistas indexadas. Em

1968, a participação brasileira na produção mundial representava apenas 0,015% (n =

53) do total publicado no ano (n = 364.723). Quatro décadas depois, passou para 2,63%

(n = 30.415), um crescimento na participação de 175,3 vezes dentro do período (1968

- 2009), como mostra a Figura 2A. Esse crescimento ocorreu também como percentual

do total produzido por países da América Latina (Figura 2B) que passou de 34,3% para

54,56% entre 1981 e 2008, um aumento de 59 vezes em 28 anos. Todo esse movimento

tem relação direta com o investimento feito na pós-graduação e o consequente

crescimento da comunidade científi ca, pois o aumento no número de pesquisadores

ativos está relacionado com o total de recém-doutores que entram no sistema de C&T.

Figura 2: (A) Total de publicações brasileiras em revistas indexadas e (B) Porcentagem das publicações brasileiras em relação ao total produzido

no mundo e na América Latina, 1975–2009.

Tot

al

A1975 1980 1985 1990 1995 2000 2005 2010

Ano

30000

27500

25000

22500

20000

17500

15000

12500

10000

7500

5000

2500

01975 1980 1985 1990 1995 2000 2005 2010

Ano

B 0.0

0.5

1.0

1.5

2.0

2.5

3.0

0

20

40

60

80

100

% M

undi

al (

)

% A

mérica L

atina ( )

Fonte: MCT, acesso setembro/2010.

Esse conjunto de dados indica que, apesar dos períodos de instabilidade econômica,

houve aumento dos recursos destinados ao treinamento de pessoal para C&T; além

disso, apesar das fl utuações nas verbas destinadas aos programas de pesquisa, o Brasil

apresentava (e apresenta) uma ciência em processo de crescimento contínuo devido à

Page 163: Propriedade Intelectual nos Países de Língua Portuguesanit.uesc.br/.../files/livros/Propiedade-Intelectual... · propriedade intelectual e o uso da informação tecnológica contida

162

manutenção do programa de concessão de bolsas de estudo, principal componente da

rubrica Ensino de Pós-Graduação.

A Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) aponta,

como papel central das políticas públicas em ciência, tecnologia e inovação (C,T&I),

alavancar o desenvolvimento econômico e social sustentável, por meio de investimentos

em pesquisa e desenvolvimento (P&D), ampliação e qualifi cação de recursos humanos,

aumento do capital social e recursos fi nanceiros. Para tanto, as políticas públicas devem

usar mecanismos diretos e indiretos, tais como promoção do capital de risco, juros

baixos e redução de impostos, além de investimentos públicos na obtenção de ativos

intangíveis (MCT/ABC).

Nos anos 90, o cenário mudou drasticamente em relação à época em que o Brasil

começou a caminhar no sentido de seu desenvolvimento científi co e tecnológico.

A política de abertura econômica e de inserção do país no mercado internacional

modifi cou as condições de funcionamento da economia brasileira. Nesse novo

ambiente, estruturaram-se programas de C&T voltados para fortalecer a competitividade

do parque industrial do país.

Apesar do contexto histórico de desbalanceamento nas ações de P&D e da falta de

uma política integrada de desenvolvimento industrial e tecnológico, o Brasil sempre se

posicionou pioneiramente na adoção de marcos reguladores de Propriedade Intelectual

(PI), tendo sido um dos países a integrar o grupo de primeiros signatários da Convenção

de Paris (1883). Entretanto, apenas em 1996 foi aprovada a atual Lei da Propriedade

Industrial, em adequação a requisitos apresentados no Acordo TRIPS, bem antes do

prazo máximo permitido pela atual OMC. Tais marcos legais apontam, principalmente,

para duas situações: o tratamento isolado dado à matéria PI, desarticulado do contexto

de esforços de desenvolvimento industrial e tecnológico; e a disponibilização de uma

estrutura de base legal de “proteção”, não levando, necessariamente, a níveis elevados

de inovação.

Após mais de uma década de ausência de uma política industrial que propiciasse

uma mudança no patamar competitivo da indústria nacional, o Governo Federal

formulou e implementou, em 2004, a Política Industrial, Tecnológica e de Comércio

Exterior – PITCE, de longo prazo e direcionada para o futuro. A PITCE baseava-se em um

conjunto articulado de medidas para fortalecer e expandir a base industrial por meio

da melhoria da capacidade inovadora das empresas, tendo como objetivo o aumento

da efi ciência econômica e do desenvolvimento e a difusão de tecnologias com maior

potencial de competição no comércio internacional. Ademais, foi aprovada a Lei de

Inovação Tecnológica (Lei nº 10.973/2004), regulamentada pelo Decreto nº 5.563, de

2005. Com essas iniciativas, o governo brasileiro apresentou um conjunto de medidas

para promover o desenvolvimento produtivo que geraram avanços, tais como:

Page 164: Propriedade Intelectual nos Países de Língua Portuguesanit.uesc.br/.../files/livros/Propiedade-Intelectual... · propriedade intelectual e o uso da informação tecnológica contida

163

Fortalecimento do diálogo entre o setor público e o privado, com a criação •

do Conselho Nacional de Desenvolvimento Industrial – CNDI e da Agência

Brasileira de Desenvolvimento Industrial – ABDI;

Melhoramento no âmbito dos processos relacionados ao registro de •

propriedade industrial, por meio da reestruturação do Instituto Nacional da

Propriedade Industrial – INPI;

Criação de programas de fi nanciamento específi cos para setores estratégicos, •

como o de fármacos e de software.

Entretanto, para além das conquistas já alcançadas pela PITCE, o momento atual da

economia brasileira demanda apoio amplo e fi rme à formação de capital e à inovação,

visando a sustentabilidade do crescimento em longo prazo. Para dar continuidade

ao processo de desenvolvimento industrial, tornou-se necessário conferir potência

à política industrial, ampliando sua abrangência, aprofundando as ações iniciadas e

consolidando a capacidade de implementar e avaliar políticas públicas. É exatamente

isso o que pretende a Política de Desenvolvimento Produtivo (PDP), lançada em maio

de 2008.

A seguir, trataremos do INPI dentro do atual contexto de políticas públicas.

2. O INPI E O CONTEXTO NACIONAL

O INPI é uma autarquia federal vinculada ao Ministério do Desenvolvimento,

Indústria e Comércio Exterior (MDIC), responsável pela concessão de patentes de

invenção e modelo de utilidade e por registros de marcas, programas de computador,

topografi a de circuitos, desenho industrial e indicações geográfi cas, além de averbação

de contratos de transferência de tecnologia e de franquia empresarial, de acordo com a

Lei da Propriedade Industrial (Lei nº 9.279/96) e da Lei de Software (Lei nº 9.609/98). Foi

criado em dezembro de 1970, pela Lei nº 5.648, em uma época marcada pelo esforço de

industrialização do país, pautando sua atuação em uma postura cartorial, limitando-se à

concessão de ativos intangíveis e controlando a importação de novas tecnologias.

Com as mudanças trazidas pela PITCE e com a modernização do país, o INPI foi

reestruturado, a partir de 2004, com o objetivo de promover o uso do sistema como

instrumento de capacitação e competitividade, condições fundamentais para alavancar

o desenvolvimento tecnológico e econômico do país.

A reestruturação envolveu a modernização tanto dos processos administrativos

quanto das áreas fi ns, em especial as relacionadas às marcas e patentes. Ademais, foi

criada, no mesmo ano, a Diretoria de Articulação e Informação Tecnológica (DART),

que aprimorou a comunicação entre o Instituto e a sociedade, facilitando o acesso às

informações tecnológicas disponíveis no INPI e disseminando a cultura da PI. No que tange

Page 165: Propriedade Intelectual nos Países de Língua Portuguesanit.uesc.br/.../files/livros/Propiedade-Intelectual... · propriedade intelectual e o uso da informação tecnológica contida

164

à cooperação institucional, o Instituto procura consolidar os laços com as instituições

do Sistema Nacional de Inovação - associações empresariais, federações, universidades

e agências de desenvolvimento, buscando a efetiva participação das empresas e

universidades brasileiras nos programas de capacitação relacionados ao tema.

Dentro desse novo contexto, a tímida participação dos principais atores nacionais

de inovação no uso do sistema de PI apresenta-se como um refl exo da incapacidade

de se criar um Sistema de Inovação equilibrado e efi ciente. Do total de depósitos de

patentes realizados no Brasil, uma média de 30% provêm de residentes, enquanto

que, do total de concessões, apenas 20% destinam-se a estes. Ademais, 75% desses

depósitos são feitos por pessoa física, fato que aponta para uma infraestrutura de

inovação imatura. Somado à falta de procura dos atores residentes pelos mecanismos

de proteção, ocorre o baixo uso da informação tecnológica disponível no INPI, e que

se encontra nos bancos de patentes. Estes oferecem oportunidades estratégicas, tais

como: 1) tecnologias que já estão em domínio público e podem ser usadas livremente;

2) tecnologias patenteadas em outros países que não foram depositadas no Brasil; 3)

uso da informação para pesquisa; 4) uso da informação para monitorar a concorrência e

apontar melhores rotas tecnológicas; e 5) uso da informação para estudos de prospecção

tecnológica; entre outras.

As ações que o INPI vem desempenhando se revestem de caráter estratégico

no contexto das políticas de desenvolvimento. Para o que se quer ressaltar aqui,

importa a criação de unidades no INPI voltadas à pesquisa e à educação, em particular,

a criação da Coordenação de Pesquisa e Educação em Propriedade Intelectual,

Inovação e Desenvolvimento (COPEPI), subordinada à DART, e que desde 2006 vem

executando atividades de cunho acadêmico. Devido à sua missão de formar e treinar

recursos humanos, a COPEPI vem realizando estudos e pesquisas sobre PI envolvendo

universidades e outras instituições públicas e privadas. Desse modo, ela passa a

desempenhar um papel ativo na articulação do Instituto com os demais agentes que

compõem o Sistema Nacional de Inovação brasileiro, e fi rma a imagem deste como

instituição produtora e disseminadora de conhecimentos em PI. A outra iniciativa do INPI

é o Mestrado Profi ssional em PI e Inovação, que visa formar recursos humanos em nível de

pós-graduação. Assim, espera-se vencer o desafi o da disseminação da cultura da PI, por

um lado, inserindo o tema nas grades curriculares das graduações e pós-graduações do

sistema educacional brasileiro, priorizando uma abordagem multidisciplinar ao invés da

tradicional abordagem jurídica à qual o tema tem sido relegado; por outro, oferecendo

serviços educacionais pautados em uma qualifi cada apresentação do sistema de PI e de

sua importância no mundo atual.

Dentro desse enfoque, serão destacadas, a seguir, as ações desenvolvidas pelo

Instituto desde 2005.

Page 166: Propriedade Intelectual nos Países de Língua Portuguesanit.uesc.br/.../files/livros/Propiedade-Intelectual... · propriedade intelectual e o uso da informação tecnológica contida

165

3. AÇÕES DO INPI: DISSEMINAÇÃO E CAPACITAÇÃO EM PI

Tendo em vista o contexto da política governamental, que tem incentivado a

promoção da inovação e do desenvolvimento tecnológico, vem crescendo o número de

instituições públicas e privadas que se mostram interessadas em capacitar seus gestores,

técnicos e pesquisadores no uso de mecanismos de proteção de PI, bem como no acesso

e uso estratégico das informações contidas em bancos de patentes. Para enfrentar a

grande demanda existente, o INPI, por intermédio da DART, vem estabelecendo, desde

2005, inúmeras parcerias, objetivando a disseminação e a capacitação em PI de agentes

do Sistema Nacional de Inovação.

Dessa forma, cursos para gestores de tecnologia vêm sendo articulados e

realizados pela DART, totalizando 3.731 pessoas capacitadas nas cinco macrorregiões

do país, alcançando 20 Estados, além do Distrito Federal. A Tabela 1 mostra o total dos

cursos e ofi cinas realizados entre janeiro de 2005 e dezembro de 2008, divididos por

região do país.

Tabela 1: Cursos e ofi cinas de Propriedade Intelectual realizados entre janeiro de 2005 e dezembro de 2008, divididos por macrorregião do país.

Região Total de cursos Pessoas capacitadas

NORTE 10 221

CENTRO-OESTE 16 507

SUL 20 789

NORDESTE 25 784

SUDESTE 48 1.430

TOTAL 119 3.731

Fonte: INPI

Atividades como a identifi cação de conhecimentos passíveis de patenteamento,

o estabelecimento de acordos de licenciamento com o setor industrial, o apoio aos

pesquisadores, a utilização da PI como fator estratégico para o aumento de valor

agregado, a diferenciação competitiva e a entrada de royalties demandam a formação

de expertise específi ca e complexa por parte dos gestores, envolvendo desafi os nos

campos da proteção de intangíveis, da negociação e estabelecimento de contratos, da

valoração do intangível e da colocação das invenções no mercado.

A realização de ações a cargo de profi ssionais com as habilidades acima referidas

apresenta-se como fator importante para desempenhos satisfatórios por parte das diversas

instituições que compõem o sistema de inovação brasileiro. Nesse contexto, apresenta-

Page 167: Propriedade Intelectual nos Países de Língua Portuguesanit.uesc.br/.../files/livros/Propiedade-Intelectual... · propriedade intelectual e o uso da informação tecnológica contida

166

se como medida importante a capacitação e o estabelecimento de metodologias que

venham a dar o suporte necessário às unidades de apoio à gestão da PI.

Com o intuito de capacitar os funcionários de Instituições Parceiras que tratam com

Propriedade Intelectual, o INPI vem fi rmando Acordos de Cooperação que possibilitam,

por exemplo, um programa de qualifi cação para que noções de PI sejam inseridas tanto

no suporte a ser dado aos usuários do sistema, quanto no contexto da avaliação de

fi nanciamentos de tecnologia. Essa iniciativa foi estruturada com diversas instituições

parceiras, como a Financiadora de Estudos e Projetos – FINEP e a Petróleo Brasileiro S.A.

– PETROBRAS, entre outras.

No caso do setor de agropecuária, o INPI fi rmou Acordos de Cooperação com o

Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento – MAPA e com a Empresa Brasileira

de Pesquisa Agropecuária – Embrapa. O modelo de atendimento previu cursos voltados

especifi camente para os funcionários, visando mostrar a importância do uso estratégico

do sistema de PI, os retornos que a proteção dos intangíveis pode trazer e a apresentação

de casos de sucesso. A Tabela 2 mostra a capacitação de funcionários realizada entre

2005 e 2007, quando foram treinadas 135 pessoas ligadas ao dito setor.

Tabela 2 – Capacitação de funcionários do setor de agroindústria, distribuídos por ano de realização (janeiro de 2005 a dezembro de 2007).

Instituição ParceiraCursos

2005

Cursos

2006

Cursos

2007

Total de

horasPessoas

Embrapa - - 4 120 92

MAPA 10 9 - 440 43

Total 10 9 4 560 135

Fonte: INPI

3.1. MINISTÉRIO DA AGRICULTURA, PECUÁRIA E ABASTECIMENTO – MAPA

O Ministério tem como missão estimular o aumento da produção agropecuária

e o desenvolvimento do agronegócio, para atender ao consumo interno e formar

excedentes para exportação. Essa é a missão institucional que tem como consequência

a geração de emprego e renda, a promoção da segurança alimentar, a inclusão social

e a redução das desigualdades sociais. Para tanto, o MAPA formula e executa políticas

para o desenvolvimento do setor, atuando na busca da sanidade animal e vegetal, na

organização da cadeia produtiva do agronegócio, na modernização da política agrícola,

no incentivo às exportações e no uso sustentável dos recursos naturais.

Page 168: Propriedade Intelectual nos Países de Língua Portuguesanit.uesc.br/.../files/livros/Propiedade-Intelectual... · propriedade intelectual e o uso da informação tecnológica contida

167

No que concerne aos ativos intangíveis, o MAPA tem ligação direta com:

1) A proteção de cultivares cuja primeira legislação, promulgada em 25 de abril

de 1997, garantiu os direitos de obtentores de novas variedades de plantas (Lei nº 9.456,

regulamentada pelo Decreto nº 2.366, de 5 de novembro de 1997) e criou, no Ministério,

o Serviço Nacional de Proteção de Cultivares - SNPC, que tem como competência a

proteção de cultivares no país.

2) O incentivo às Indicações Geográfi cas (IG), por meio da Secretaria de

Desenvolvimento Agropecuário e Cooperativismo/Departamento de Propriedade

Intelectual e Tecnologia da Agropecuária (DEPTA), cujas atribuições norteiam ações que

visam apoiar o desenvolvimento de estudos subsidiários e instrumentos de parcerias

quanto ao reconhecimento de IG de produtos agropecuários.

Dentro dessa perspectiva, o INPI fi rmou, em 2005, um primeiro acordo com o

MAPA objetivando a cooperação técnica, mediante a reunião de esforços visando à

implementação de atividades conjuntas na área de competência institucional e de

conhecimento específi co de cada partícipe, com ações voltadas à disseminação da

cultura da PI. No âmbito do acordo citado, os agentes das Superintendências Estaduais

do Ministério foram distribuídos pelos cursos para Gestores de Tecnologia, organizados

pelo INPI em cidades próximas aos seus respectivos estados (ver Tabela 2). Além disso,

foram realizados eventos para promoção de IG em Florianópolis/SC e em Salinas/MG,

com a participação de 122 pessoas (Tabela 3).

Tabela 3 – Eventos promovidos pelo INPI e pelo MAPA em parceria, no âmbito do primeiro Acordo de Cooperação (vigência: dezembro de 2005 a novembro de 2007).

Eventos Cidade/Local Participantes

1. Ofi cina de Indicações Geográfi cas Florianópolis - SC 70

2. Seminário de lançamento da

Indicação Geográfi ca Cachaça de

Salinas

Salinas - MG 52

Total de participantes nos eventos 122

Fonte: INPI, 2008.

Atualmente, o INPI está articulando um novo acordo com o Ministério para ampliar

a ação conjunta, apresentando as seguintes ações no plano de trabalho do referido

acordo:

Page 169: Propriedade Intelectual nos Países de Língua Portuguesanit.uesc.br/.../files/livros/Propiedade-Intelectual... · propriedade intelectual e o uso da informação tecnológica contida

168

Disponibilizar informações sobre o estágio de desenvolvimento da tecnologia 1.

agropecuária, promovendo a disseminação da cultura de PI e da inovação no

setor do agronegócio;

Capacitar técnicos, pesquisadores, empresários e produtores rurais em temas 2.

afetos aos participantes, com vistas a apoiar a implementação da Lei de

Inovação;

Fomentar o uso do sistema de PI e a inovação tecnológica no setor do 3.

agronegócio;

Estimular a transferência de tecnologia e o uso do sistema de PI e da inovação 4.

tecnológica no setor agropecuário;

Disseminar e fomentar a proteção de IG de produtos agropecuários; 5.

Promover estudos, diagnósticos e pesquisas em temas que envolvam o setor 6.

dentro do Observatório Tecnológico.

3.2. EMPRESA BRASILEIRA DE PESQUISA AGROPECUÁRIA - EMBRAPA

A Embrapa foi criada em 26 de abril de 1973, e é uma empresa pública de direito

privado, vinculada ao Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento. Sua missão

é viabilizar soluções para o desenvolvimento sustentável do agronegócio por meio da

geração, adaptação e transferência de conhecimentos e tecnologias, em benefício da

sociedade. É considerada a maior e mais importante instituição de pesquisa agropecuária

do país, sendo que, na esfera internacional, destaca-se como o principal centro de

tecnologia agropecuária tropical do mundo.

A Embrapa atua por intermédio de 38 Unidades de Pesquisa, três Unidades de

Serviços e 13 Unidades Administrativas, desenvolvendo atividades em quase todos

os estados da Federação. Está sob a sua coordenação o Sistema Nacional de Pesquisa

Agropecuária - SNPA, constituído por instituições públicas federais e estaduais,

universidades, empresas privadas e fundações, que, de forma cooperada, executam

pesquisas nas diferentes áreas geográfi cas e campos do conhecimento científi co. Para

tornar-se uma das maiores instituições de pesquisa do mundo tropical, a Empresa

investiu sobretudo em recursos humanos, possuindo atualmente 8.155 funcionários, dos

quais 2.097 são pesquisadores (25% com mestrado e 66% com doutorado), operando

um orçamento da ordem de R$ 1 bilhão. As tecnologias geradas pela Embrapa têm

permitido a substituição de fertilizantes químicos por processos biológicos e a

substituição de agrotóxicos por controle biológico.

A inovação tecnológica contribui para o desenvolvimento econômico e social do

país, uma vez que permite a otimização dos recursos, podendo modifi car a estrutura

produtiva e acelerar o crescimento. No que concerne às empresas, a inovação impacta

o processo produtivo em seus aspectos econômicos, fi nanceiros e gerenciais e

Page 170: Propriedade Intelectual nos Países de Língua Portuguesanit.uesc.br/.../files/livros/Propiedade-Intelectual... · propriedade intelectual e o uso da informação tecnológica contida

169

proporciona o aumento da competitividade. A tecnologia é um ativo econômico que,

na Era do Conhecimento, apresenta-se como fator determinante de ganhos. Nesse

contexto, a Propriedade Intelectual deve servir como um instrumento importante para

a inovação tecnológica. Não obstante o relevante valor estratégico da PI, entidades

nacionais geradoras de conhecimento desconhecem os benefícios relativos ao tema e,

por conseguinte, a participação de nacionais no sistema de propriedade intelectual é

proporcionalmente inferior ao potencial inventivo dos atores nacionais.

No contexto da nova política industrial, os desafi os concentram-se no aumento

da inovatividade, no porte e investimento em P&D pelas empresas brasileiras. Dentre

as linhas de ação dessa política, estão: a inovação e o desenvolvimento tecnológico, a

modernização industrial, a capacidade e escala produtiva e a inserção internacional.

Diante disso, torna-se necessário o estabelecimento de iniciativas que estimulem

a participação de um número crescente de atores em atividades inovadoras, ao mesmo

tempo em que se criem condições para que instituições de C&T implementem unidades

de gerenciamento de tecnologia com foco especial em PI. Além disso, é importante que

seja difundido o conhecimento acerca da Propriedade Intelectual e da transferência de

tecnologia.

Nesse novo contexto político, é de suma importância o fomento e o entendimento

do sistema de propriedade industrial, seus marcos legais e seus mecanismos, no âmbito

dos atores inovadores. Torna-se, portanto, de fundamental importância a capacitação

dos funcionários da Embrapa, tanto para estratégias de proteção de PI quanto para o

uso da informação tecnológica contida em patentes, que servem para subsidiar decisões

de fomento à inovação.

Nesse sentido, a Embrapa e o INPI convergiram seus interesses para disseminar o

uso e o entendimento do sistema de PI, viabilizando ações de capacitação do corpo

técnico da empresa. Isso foi feito por meio de um Acordo de Cooperação assinado em

2007, com vigência até 2010. As atividades já realizadas se encontram na Tabela 4.

Page 171: Propriedade Intelectual nos Países de Língua Portuguesanit.uesc.br/.../files/livros/Propiedade-Intelectual... · propriedade intelectual e o uso da informação tecnológica contida

170

Tabela 4 – Eventos promovidos pelo INPI e Embrapa em parceria no âmbito do primeiro Acordo de Cooperação (vigência: maio de 2007 a abril de 2010).

Eventos Cidade/Local Participantes

1. Seminário de Sensibilização Distrito Federal - DF

193 – participação

presencial

86 – por teleconferência

2. Curso Básico de Propriedade

IntelectualDistrito Federal - DF 29

3. Curso Intermediário de

Propriedade IntelectualDistrito Federal - DF 31

4. Curso Básico de Propriedade

IntelectualSão Paulo - SP 38

5. Curso Intermediário de

Propriedade IntelectualSão Paulo - SP 39

Fonte: INPI, 2008.

4. CONSIDERAÇÕES FINAIS

O Brasil fez importantes investimentos para gerar uma capacidade científi ca que

repercute expressivamente na produção científi ca mundial (2,0% do total mundial, em

2008). Entretanto, o sistema de PI não é utilizado adequadamente, mostrando que a

carência está no conhecimento sobre o sistema. O Brasil se assemelha a outros países

com sistema de inovação imaturo e comunidade científi ca estabelecida, mas que

não conseguem estabelecer o link entre o conhecimento produzido e as inovações

desenvolvidas no âmbito das empresas, universidades e centros de pesquisa. O papel

do INPI, nesse aspecto, é fundamental para que possamos reverter o quadro atual e

aumentar o número de nacionais utilizando o sistema em vigor, conforme determina a

Política de Desenvolvimento Produtivo.

No âmbito do Mestrado Profi ssional em Propriedade Intelectual e Inovação, linhas

de pesquisa e disciplinas são direcionadas justamente para o estudo e refl exão em

temas afetos ao agronegócio, como biocombustíveis e energias renováveis, além do

estudo sobre as formas de proteção dentro de indústrias importantes, como a de cana-

de-açúcar e soja, entre outros aspectos relevantes. O INPI, dessa forma, procura criar

massa crítica para refl etir temas importantes ligados ao sistema de PI e ao uso efi ciente

deste para o desenvolvimento tecnológico sustentável do país.

Page 172: Propriedade Intelectual nos Países de Língua Portuguesanit.uesc.br/.../files/livros/Propiedade-Intelectual... · propriedade intelectual e o uso da informação tecnológica contida

171

REFERÊNCIAS

BRASIL. Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento. [Ministério da

Agricultura, Pecuária e Abastecimento: home page]. Disponível em: < http://

www.agricultura.gov.br/>. Acesso em: 2 jun. 2008.

BRASIL. Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento. Informações aos

usuários do SNPC. Disponível em: < http://www.agricultura.gov.br/pls/portal/

docs/PAGE/MAPA/SERVICOS/CULTIVARES/PROTECAO/MENU_LATERAL_PROTECAO/

INFORMA%C7%D5ES%20AOS%20USU%C1RIOS%20DO%20SNPC.PDF. Acesso em: 2

jun. 2008.

BRASIL. Ministério da Ciência e da Tecnologia; ACADEMIA BRASILEIRA DE CIÊNCIAS.

Ciência, tecnologia e inovação: desafi o para a sociedade brasileira - Livro Verde.

Brasília, DF, 2001. 278 p. Coordenação: Cylon Gonçalves da Silva e Lúcia Carvalho

Pinto de Melo.

BRASIL. Ministério do Desenvolvimento, Indústria e Comércio Exterior.

Desenvolvimento produtivo: desafi os. Disponível em: < http://www.

desenvolvimento.gov.br/pdp/index.php/politica/desenvolvimentoProdutivo/

desafi os>. Acesso em: 2 jun. 2008.

EMBRAPA. [Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária: home page].

Disponível em: <http://www.embrapa.br/a_embrapa/atuacao>. Acesso em: 2 jun.

2008.

GUIMARÃES, R. FNDCT: uma nova missão. In: CIÊNCIA E TECNOLOGIA NO BRASIL: uma

nova política para um mundo global. Rio de Janeiro: Fundação Getúlio Vargas / Escola

de Administração de Empresas, 1993.

SALLES-FILHO, S. (Org.). Ciência, tecnologia e inovação: a reorganização da pesquisa

pública no Brasil. Campinas: Komedi, 2000. 416 p.

TEITEL, S. Patents, R&D, country size and per-capita income: an international

comparison. Scientometrics, Amsterdam, v. 29, n. 1, p. 137-159, 1994.

Page 173: Propriedade Intelectual nos Países de Língua Portuguesanit.uesc.br/.../files/livros/Propiedade-Intelectual... · propriedade intelectual e o uso da informação tecnológica contida
Page 174: Propriedade Intelectual nos Países de Língua Portuguesanit.uesc.br/.../files/livros/Propiedade-Intelectual... · propriedade intelectual e o uso da informação tecnológica contida

127 Artigo que fundamenta a palestra dada no seminário “Propriedade Intelectual Nos Países de Língua Portuguesa”, 30 de

junho – 2 de julho de 2008, Rio de Janeiro, Brasil.

128 Professora titular da Universidade Federal do Rio de Janeiro, UFRJ.

129 Coordenador Geral de Articulação Institucional do Instituto Nacional da Propriedade Industrial, INPI.

130 Professor Adjunto da Universidade Federal do ABC.

CAPÍTULO 9

REGIMES TECNOLÓGICOS E PROPRIEDADE

INTELECTUAL NA AGRICULTURA:

O PAPEL DAS NOVAS INSTITUIÇÕES127

ANA CÉLIA CASTRO128, SERGIO PAULINO DE CARVALHO

129 E MARCOS FUCK130

Page 175: Propriedade Intelectual nos Países de Língua Portuguesanit.uesc.br/.../files/livros/Propiedade-Intelectual... · propriedade intelectual e o uso da informação tecnológica contida

174

1. INTRODUÇÃO

O presente trabalho apresenta alguns dos principais elementos que estão

afetando o processo de inovação nas atividades de melhoramento vegetal no Brasil.

Notadamente a partir da segunda metade dos anos noventa, profundas transformações

tecnológicas e institucionais impactaram a estrutura do mercado brasileiro de sementes

e as estratégias dos principais agentes, públicos e privados, envolvidos nas atividades de

pesquisa e comercialização desses materiais.

Pretende-se contextualizar essas questões a partir da análise do processo de

catching up do sistema brasileiro de pesquisa agrícola. Grosso modo, esse processo

pode ser dividido em duas grandes fases. A primeira estaria concentrada no período

que se estende do fi nal dos anos 1940 até o fi nal dos anos 1980, enquanto a segunda

poderia ser datada de meados dos anos 1990 até o presente, e ainda se encontra em

pleno curso. Dessa forma, o artigo pretende tratar da segunda fase do catching up

do sistema brasileiro de pesquisa agrícola, com especial atenção às implicações da

biotecnologia e da propriedade intelectual nas articulações entre alguns dos principais

atores participantes dessa nova fase das pesquisas em melhoramento vegetal.

2. REGIMES TECNOLÓGICOS E INSTITUIÇÕES

A transformação produtiva do sistema de pesquisa agrícola no Brasil - que sugerimos

dividir, para efeitos de análise, em duas grandes fases - faz parte de um processo mais

amplo ocorrido na economia brasileira131, caracterizado como de emparelhamento

tecnológico com países da fronteira do conhecimento agroindustrial. Mais do que isso,

as origens desse processo na agricultura até mesmo pareciam coincidir com o ponto

de partida dos processos que aconteciam na indústria, a partir da segunda metade dos

anos 1940.

Essa primeira fase de transformação produtiva está ainda assentada no chamado

paradigma da Revolução Verde, cuja base é, de forma muito simplifi cada, a introdução de

sementes de alto rendimento (em muitos casos sementes de híbridos) e de todo o pacote

tecnológico que as acompanha - fertilizantes, defensivos, máquinas, equipamentos e

irrigação. Do ponto de vista institucional, por outro lado, a difusão desse paradigma

exigiu a montagem de um sólido sistema de pesquisa agropecuária132, constituído

131 O autor que assumidamente introduziu essa temática e interpretou o desenvolvimento industrial brasileiro como um

processo de catching up foi Antonio Barros de Castro. O artigo “Renegade Development: Rise and Demise of State-led

Development in Brazil”, in Smith, W. et all (Organizer), Miami: Transaction Publishers, 1993, é o ponto de partida de uma rica

refl exão que se desdobra em outros trabalhos do mesmo autor.

132 O Sistema Nacional de Pesquisa Agropecuária teve suas bases nos Institutos Estaduais de Pesquisa (como o Instituto

Agronômico de Campinas, o do Paraná e o de Pernambuco) que pré-existiam antes da constituição da Embrapa, em 1973.

Page 176: Propriedade Intelectual nos Países de Língua Portuguesanit.uesc.br/.../files/livros/Propiedade-Intelectual... · propriedade intelectual e o uso da informação tecnológica contida

175

basicamente de instituições públicas de pesquisa, articulado à assistência técnica e

à extensão rural, sendo a extensão rural também de base pública (federal, estadual e

municipal) e amparado por instrumentos de crédito ao produtor e à comercialização

dos produtos.

Esse tipo de desenvolvimento, que tendeu a ocorrer de forma bastante similar

em países muito distintos, estava inserido em uma conjuntura marcada pela fome e

escassez de alimentos, que acompanhou o período que se seguiu à Segunda Guerra

Mundial, e correspondia a uma visão compatível com o desenvolvimentismo, baseada

na ideia chave do aumento da produtividade agrícola com transferência de mão de

obra do campo para as cidades.

Pela ótica de regimes tecnológicos, poderíamos então dividir a transformação

produtiva do sistema de pesquisa agrícola brasileiro em duas grandes fases, ou dois

regimes tecnológicos. A primeira concentrar-se-ia no período que se estendeu do fi nal

dos anos 1940 até o fi nal dos anos 1980, associada ao paradigma da Revolução Verde,

enquanto a segunda poderia ser datada de meados dos anos 1990 até o presente, e

ainda se encontra em pleno curso.

Entende-se como emparelhamento ou equiparação tecnológica ao “estado das

artes” internacional um processo que tende a ocorrer de forma concentrada em um

período de tempo determinado, acompanhado de taxas expressivas de crescimento da

economia, com elevação da produtividade e da competitividade internacional de setores

e empresas. Entretanto, o consenso que emergiu da literatura consagrada (“clássica”)

sobre os processos de emparelhamento tecnológico encontra-se presentemente em

evolução, especialmente a partir dos resultados das pesquisas em curso na rede liderada

pelos professores Richard Nelson e Franco Malerba (NELSON; MALERBA, 2008)133.

A contínua aceleração da inovação tecnológica na última década, no plano

internacional, especialmente nos campos da biotecnologia e das tecnologias de

informação, com inegáveis impactos sobre o “agronegócio”, entre outros setores da

economia, tem deslocado a fronteira tecnológica setorial. Na realidade, sugerimos que

o regime tecnológico “baseado em ciência de segunda geração”, basicamente as novas

biotecnologias (CORIAT; ORSI; WEINSTEIN, 2002), fecundou o sistema agroalimentar e

transformou as instituições constitutivas do regime tecnológico da Revolução Verde.

Nesse sentido, os regimes tecnológicos possuem uma dimensão dinâmica, e devem ter

em conta o conjunto daquelas instituições constitutivas e de suas relações intersetoriais

ou sistêmicas, ou seja, devem considerar a articulação do sistema agroalimentar em seu

conjunto.

133 A rede PASTAS, liderada por Franco Malerba, propõe-se a estudar a dimensão setorial dos processos de catching up em

uma perspectiva comparativa entre países. Os setores da rede são, em inglês: “pharmaceuticals, automobiles, software,

telecomunication, agrifood and semiconductors”. Os países que fazem parte da perspectiva comparativa são, no caso do

agronegócio, Brasil, China, Costa Rica, Nigéria e Vietnã.

Page 177: Propriedade Intelectual nos Países de Língua Portuguesanit.uesc.br/.../files/livros/Propiedade-Intelectual... · propriedade intelectual e o uso da informação tecnológica contida

176

Dessa forma, predominaram, no primeiro regime tecnológico, as instituições

constitutivas da Revolução Verde (o já mencionado tripé pesquisa-extensão-crédito

rural), difusoras de uma tecnologia intensiva em energia, insumos e máquinas. Na

segunda fase, maior atenção é dada às questões de qualidade, “grades and standards”

e requisitos de desenvolvimento sustentável. O objetivo passa a ser capturar o valor

intangível incorporado nos produtos. Isso ocorre por meio das patentes, registro de

cultivares, indicações geográfi cas e conhecimentos tradicionais, que são os alicerces

da vantagem competitiva social e institucionalmente construída nos novos mercados.

Esse novo modelo não é compatível com o anterior. Verifi ca-se a formação de um novo

regime tecnológico baseado em novas tecnologias, como a biotecnologia, que não é

compatível com as instituições anteriores.

A assistência técnica, por exemplo, sofre profundas transformações, com o modelo

tradicional fragmentando-se cada vez mais a partir dos anos noventa. As empresas

fornecedoras de insumos químicos e biológicos passam a incorporar a assistência

técnica. Além disso, o fortalecimento das instituições ligadas aos produtores rurais e

os novos arranjos entre elas e as instituições públicas de pesquisa (principalmente a

Embrapa, no caso brasileiro) passam a dar uma nova tônica ao processo de pesquisa e

transferência de tecnologia agropecuária, confi gurando um novo modelo de assistência

técnica. Ou seja, a mudança entre os dois períodos de catching up diz respeito não só ao

conjunto das instituições, mas também às articulações entre elas.

Enfatiza-se, portanto, neste trabalho, que o novo regime tecnológico do sistema

de pesquisa agrícola brasileiro, baseado em ciência de segunda geração, tem outro

arcabouço institucional distintivo. Esse arcabouço tem semelhanças com o que é

descrito na literatura sobre o regime baseado em ciência de segunda geração, mas

guarda também singularidades e especifi cidades nacionais. Entre elas, a presença da

Embrapa, por meio da política de proteção de seus ativos intelectuais e de articulação

com os demais atores participantes do processo de pesquisa e comercialização de

cultivares, talvez seja a mais importante. É disso que tratam os itens a seguir. Antes,

porém, interessante é observar o contexto de evolução da produção e da produtividade

da agricultura nacional, embasada não somente na expansão da fronteira agrícola e do

crédito rural, mas na incorporação de novas tecnologias e inovações no campo, exigindo-

se, assim, um tratamento diferente de temas até então consolidados no mainstream e

mesmo a incorporação de discussões que pouco faziam parte desse campo de estudo

- como as interações entre os setores públicos e privados (especialmente no tocante ao

desenvolvimento da pesquisa e da inovação) e, consequentemente, da repartição dos

riscos e dos benefícios aí envolvidos.

Page 178: Propriedade Intelectual nos Países de Língua Portuguesanit.uesc.br/.../files/livros/Propiedade-Intelectual... · propriedade intelectual e o uso da informação tecnológica contida

177

3. MUDANÇA DA BASE TÉCNICA NOS ANOS NOVENTA

A aceleração do crescimento da produção e da produtividade agrícola pode ser

avaliada a partir dos dados que a seguir são apresentados, em que é visível a mudança na

inclinação da curva (para cima) a partir dos anos 90. Como aponta o Gráfi co 1, nas últimas

três décadas a produção nacional cresceu de forma expressiva. A estimativa da Companhia

Nacional de Abastecimento (Conab) é de que, na safra 2008/09, a produção brasileira de

grãos tenha alcançado 134,3 milhões de toneladas. Devido a problemas climáticos, houve

recuo em relação à safra anterior, que havia sido de 144,1 milhões de toneladas, o maior

volume já colhido no país. Se a análise é feita por cultura, notadamente sobre as cinco

principais (soja, milho, arroz, feijão e trigo), observa-se que a soja e o milho contribuíram

signifi cativamente para essa evolução, enquanto o arroz e o feijão mantiveram um

comportamento relativamente estável nas últimas décadas e o trigo oscilou em função da

falta de incentivos específi cos, entre outras razões. Como dito, na última safra houve recuo

na produção nacional de grãos devido às condições climáticas adversas - estiagem nos

estados da região Sul e Centro-Oeste, o que reduziu a produtividade de algumas lavouras,

principalmente as de milho e soja. A redução na produção nacional na última safra é

explicada também pela redução na área plantada com milho, em função dos preços de

mercado considerados pouco atrativos pelos produtores e também pela estiagem, a qual

impediu o próprio plantio deste em algumas áreas.

Pela previsão da Conab, a soma das produções de soja e milho deve representar

aproximadamente 80% da produção nacional de grãos. Esse número comprova a

importância das duas culturas no agronegócio brasileiro. Com base nas expectativas

com relação às próximas colheitas, a tendência é que a participação da soja e do milho

na produção brasileira continue expressiva.

Gráfi co 1. Evolução da produção brasileira de arroz, feijão, trigo, milho e soja, da colheita de 1976/77 à de 2008/09.

em m

il to

nela

das

ARROZ FEIJÃO MILHO SOJA TRIGO TOTAL

* * * * *

Fonte: Conab

Page 179: Propriedade Intelectual nos Países de Língua Portuguesanit.uesc.br/.../files/livros/Propiedade-Intelectual... · propriedade intelectual e o uso da informação tecnológica contida

178

O aumento da produção brasileira de grãos, ainda que tenha se benefi ciado pelo

incremento da área plantada, deve-se, principalmente, ao aumento expressivo da

produtividade, verifi cado ao longo das últimas décadas. A incorporação progressiva de

novas áreas para a agricultura permitiu que se chegasse a uma área de 49 milhões de

hectares cultivados com grãos no Brasil, na safra 2004/05. Na última safra, a área fi cou

em 47,7 milhões de hectares, a terceira maior área já cultivada no país.

A ampliação da produtividade das plantações se deve, entre outros fatores, aos

investimentos em pesquisa e desenvolvimento dirigidos à agricultura. Parte expressiva

do aumento de produtividade “dentro da porteira” deve ser consagrada às instituições

públicas e privadas de pesquisa dirigidas à agricultura, principalmente nos últimos anos,

em que as investigações realizadas por essas instituições tiveram um papel central,

possibilitando uma importante articulação entre as diferentes fontes de dinamismo

tecnológico da agricultura (POSSAS et al., 1996). Conforme aponta o Gráfi co 2, os números

da Conab apontam para uma produtividade média nacional acima de 3 mil quilos por

hectare na safra 2007/08. Mesmo com os problemas climáticos, a produtividade média

nacional fi cou em 2,8 mil toneladas por hectare na safra 2008/09.

Gráfi co 2. A evolução da área e da produtividade dos principais grãos cultivados no Brasil, nas colheitas de 1976/77 a 2008/09

0

10.000

20.000

30.000

40.000

50.000

60.000

1976

/77

1978

/79

1980

/81

1982

/83

1984

/85

1986

/87

1988

/89

1990

/91

1992

/93

1994

/95

1996

/97

1998

/99

2000

/01

2002

/03

2004

/05

2006

/07

2008

/09

em m

il he

ctar

es

-

500

1.000

1.500

2.000

2.500

3.000

3.500

em q

uilo

s po

r hec

tare

Área Produtividade

Fonte: Conab

Page 180: Propriedade Intelectual nos Países de Língua Portuguesanit.uesc.br/.../files/livros/Propiedade-Intelectual... · propriedade intelectual e o uso da informação tecnológica contida

179

4. O SISTEMA DE PROTEÇÃO DE CULTIVARES E DE INOVAÇÕES DA BIOTECNOLOGIA

VEGETAL NO BRASIL

Como apontado acima, a proteção à propriedade intelectual é um elemento

central no novo regime tecnológico que vem sendo construído. Assim como ocorreu

em outros setores, o potencial de maior apropriabilidade do esforço inovativo, na

agricultura, atraiu maiores investimentos, notadamente das grandes empresas, e abriu

novas oportunidades de articulações.

Conforme discutido em Fuck & et al. (2007), o Brasil adotou como norma de

proteção de sementes e mudas o sistema sui generis, referenciado pela União para a

Proteção de Obtenções Vegetais (UPOV). A Lei de Proteção de Cultivares (LPC), de 1997,

foi formulada agregando pontos das Atas da UPOV que foram considerados estratégicos

para o país, como o reconhecimento dos direitos dos titulares de variedades que sejam

utilizadas como fonte de variação para a obtenção de novas variedades (as variedades

essencialmente derivadas); a consideração de que a proteção de cultivares é a única

forma de proteção jurídica das inovações em plantas; a proibição da dupla proteção

(que é a proteção simultânea por patentes e por registro de proteção de cultivares),

entre outros aspectos.

Como dito pelos mesmos autores, na prática, além da LPC, os obtentores/

melhoristas podem utilizar a legislação brasileira de propriedade industrial como forma

de proteção à propriedade intelectual nas atividades de melhoramento vegetal (exceto

patentes de plantas, o que não está previsto na legislação), embora essa legislação

restrinja a proteção de genes e organismos geneticamente modifi cados (SALLES-FILHO

et al., 2007). Essa restrição está expressa de duas formas na legislação:

Ao não considerar como invenção ou modelo de utilidade do todo ou parte 1.

de seres vivos naturais e materiais biológicos encontrados na natureza ou

dela isolados, incluindo, de forma expressa, o genoma ou germoplasma de

qualquer natureza e os processos naturais (Art. 10, inciso IX);

Ao não considerar como matéria patenteável o todo ou parte dos seres vivos, 2.

exceto os organismos geneticamente modifi cados para fi ns transgênicos

que contemplem as exigências de novidade, atividade inventiva e aplicação

industrial (Art. 18). O parágrafo único desse artigo explicita que são

considerados patenteáveis os micro-organismos transgênicos que tenham

sofrido intervenção humana direta e cujas características não se encontrem

na espécie em condições naturais.

Com a formação de um novo ambiente institucional (a legislação de propriedade

industrial também é da segunda metade dos anos noventa), novas formas de articulação

Page 181: Propriedade Intelectual nos Países de Língua Portuguesanit.uesc.br/.../files/livros/Propiedade-Intelectual... · propriedade intelectual e o uso da informação tecnológica contida

180

passaram a ser verifi cadas entre os principais atores participantes do processo de pesquisa

e de comercialização de sementes. A Embrapa, a principal instituição de pesquisa

agropecuária brasileira, passou a valorizar mais seus ativos, principalmente seus bancos

de germoplasma, com o amparo da legislação nacional de propriedade intelectual e

também a partir de políticas internas relacionadas às articulações com seus parceiros.

5. A POLÍTICA DE PROPRIEDADE INTELECTUAL DA EMBRAPA

Com base em uma sólida estrutura de pesquisa, a Embrapa desenvolve diversas

tecnologias aplicadas às atividades agrícolas. Para que essas tecnologias se tornem

efetivamente disponíveis aos produtores rurais, a Embrapa faz parcerias com outros

atores, públicos e privados, que estejam mais próximos aos produtores, como as

empresas produtoras de sementes. A Embrapa adotou, em 1996, a Política Institucional

para a Gestão da Propriedade Intelectual, segundo a qual a Instituição procura ativamente

a proteção legal dos resultados de suas pesquisas e maximiza o uso de direitos de

propriedade intelectual mediante a licença de processos e produtos, sem comprometer

sua missão social.

Essa Política passou a ser o principal marco regulador a sinalizar o relacionamento

da Embrapa com seus parceiros externos. Em 2000, a Embrapa estabeleceu normas

de observância obrigatória no conjunto de suas unidades de pesquisa, alinhadas aos

princípios destacados na Política, que passaram a regular o seu relacionamento com

seus parceiros públicos e privados. Nos quatro anos seguintes, muitas normas foram

aprovadas, visando regular a transferência de tecnologias ao setor privado e “evitar a

armadilha do favorecimento a empresas ou grupos de empresas” (CUNHA; BOTELHO

FILHO, 2007, p. 4). Atualmente, a Embrapa possui 14 escritórios que coordenam a

transferência de tecnologia para empresas do setor agropecuário em diferentes regiões

do país (TAKAKI et al., 2008).

A parceria da Embrapa com o setor privado é fortemente monitorada, segundo

Carvalho et al. (2007). Isso porque a Embrapa editou normas estabelecendo que os

parceiros envolvidos em programas de melhoramento genético por ela conduzidos não

podem possuir programas próprios de pesquisa nessa área ou trabalhar em conjunto

com organizações que tenham esses programas. A Embrapa também passou a não

admitir a cotitularidade com parceiros privados. Essa postura foi importante em um

momento em que as grandes empresas transnacionais estavam avançando no mercado

brasileiro, a partir da aquisição de importantes empresas sementeiras nacionais. A partir

dessa posição, a Embrapa teve maior controle sobre seu banco de germoplasma134.

134 Germoplasma, segundo Wilkinson & Castelli (2000), “é o conjunto de genes encontrados em uma população ou, de forma

mais ampla, em um conjunto de populações”.

Page 182: Propriedade Intelectual nos Países de Língua Portuguesanit.uesc.br/.../files/livros/Propiedade-Intelectual... · propriedade intelectual e o uso da informação tecnológica contida

181

Outro acontecimento importante, ocorrido no período, diz respeito ao rompimento

da parceria existente entre a Embrapa e a Fundação Mato Grosso. A Fundação Mato

Grosso não aceitou se enquadrar na nova regulamentação imposta pela Embrapa

quanto à titularidade e a divisão dos royalties e, em consequência dessas novas regras,

decidiu criar seu próprio programa de melhoramento genético de soja e algodão (DE

CARLI, 2005). Assim, se por um lado a política da Embrapa favorece as articulações com

as fundações de produtores que não possuem programas próprios de pesquisa, por

outro lado as parcerias com instituições de maior porte fi caram comprometidas.

No geral, a Embrapa realiza parcerias com o setor privado nas fases fi nais de

pesquisa e na colocação das tecnologias no mercado. Os acordos estabelecem que

o parceiro privado aporte recursos na pesquisa e, em contrapartida, receba o direito

de ser licenciado de forma exclusiva para explorar esses materiais. Essa exclusividade é

relativa, na medida em que os parceiros em questão são as fundações de produtores de

sementes, o que aumenta a amplitude de absorção dessa tecnologia (TEIXEIRA, 2008).

A única forma de garantir a exclusividade ao parceiro privado é a proteção

intelectual. De outra forma, a Embrapa não teria como garantir a exclusividade na

utilização da cultivar por parte do parceiro privado. Esse modelo de parceria tem

ampliado os recursos para as pesquisas da Embrapa devido ao aporte fi nanceiro dado

pelo setor privado, pelos ganhos com os royalties decorrentes da tecnologia que foi

licenciada e pela venda da semente básica que foi desenvolvida pela Embrapa. Além

da ampliação dos recursos, o desenvolvimento de novas cultivares é favorecido pelos

pontos de testes ofertados pelos parceiros privados, o que representa um importante

feedback em relação às diferentes regiões produtoras do país.

Dessa forma, como se percebe, o caso da Embrapa revela que a propriedade

intelectual pode ser utilizada como um instrumento essencial no processo de produção

e transferência de tecnologias aos produtores rurais. Com base nessa percepção e com

uma expressiva capacitação construída nas últimas décadas, a Embrapa destaca-se em

relação às formas de proteção intelectual de seus ativos. Segundo Castelo Branco &

Vieira (2008), entre os anos de 1996 a 2006 a empresa depositou no Instituto Nacional

de Propriedade Industrial (INPI) 190 pedidos de patentes, 191 marcas e 25 registros de

software. No mesmo período, depositou no exterior 65 patentes e uma marca. Ainda

segundo os autores, a Embrapa possui um portfólio tecnológico de 129 patentes

concedidas, 168 marcas registradas e 30 softwares registrados.

Em relação, especifi camente, aos certifi cados de proteção de cultivares no Brasil,

a situação de janeiro de 1998 a outubro de 2008135 era a seguinte: a Embrapa, como

titular e cotitular, possuía cerca de 26% do total de 1.105 registros de proteção de

cultivares, incluindo os certifi cados provisórios. Na sequência das principais instituições

135 Segundo o levantamento do Serviço Nacional de Proteção de Cultivares (SNPC).

Page 183: Propriedade Intelectual nos Países de Língua Portuguesanit.uesc.br/.../files/livros/Propiedade-Intelectual... · propriedade intelectual e o uso da informação tecnológica contida

182

com cultivares protegidas estava a Monsoy (Monsanto), com 7%, e a Coodetec, com 4%.

Entre as 46 espécies vegetais que possuíam cultivares protegidas até aquele momento,

a soja era principal delas, com participação de 34% do total.

Dados mais recentes confi rmam a presença majoritária da soja em relação às

demais culturas protegidas. Conforme descrito na Tabela 1, até julho de 2009 eram

426 certifi cados de proteção de cultivares de soja, incluindo cultivares geneticamente

modifi cadas (GM). A propósito, vale destacar que atualmente existem dois mercados

de sementes de soja: o de soja convencional e o de soja transgênica. No mercado

de sementes convencionais, a Embrapa, individualmente e em parceria com outras

organizações, é o principal player do mercado. Ela possui o maior número de sementes

protegidas, muitas delas de grande sucesso comercial. A Monsanto é a maior empresa

privada no mercado de soja convencional, o que conseguiu a partir da compra de

importantes empresas sementeiras nacionais. Na sequência, aparecem a Coodetec

(cooperativa de pesquisa ligada às cooperativas paranaenses) e a Naturale (empresa

nacional).

Tabela 1. Certifi cados de Proteção de Cultivares de Soja, de janeiro de 1998 a julho de 2009.

Titulares Soja Convencional Soja GM TotalEMBRAPA 80 23 103 AGENCIARURAL/EMBRAPA 7 1 8 EMBRAPA/EPAMIG 5 - 5 EMBRAPA/EPAMIG/AGROP. BOA FÉ/COPAMIL/APSEMG 4 - 4 CTPA/AGENCIARURAL/EMBRAPA 4 - 4 EMBRAPA/EMATER-GO/AGROSEM 3 - 3 EMBRAPA/FUNDAÇÃO-MT 2 - 2 EMBRAPA/EPAMIG/CENTRO TECNOLÓGICO DO TRIÂNGULO E ALTO PARNAÍBA 1 1 2 EMBRAPA/FUNDAÇÃO-MT/CTPA 1 - 1 EMBRAPA/SEAGRO - 1 1 EMBRAPA/FEPAGRO 1 - 1 EMATER-GO/AGROSEM/EMBRAPA 1 - 1 CTPA/EMBRAPA/AGENCIARURAL 1 - 1 EPAMIG/CENTRO TECNOLÓGICO DO TRIÂNGULO E ALTO PARNAÍBA/EMBRAPA 1 - 1 EPAMIG/EMBRAPA 1 - 1MONSOY LTDA. 39 41 80COODETEC 22 9 31NATURALLE AGROMERCANTIL LTDA 22 - 22DUPONT DO BRASIL S/A - DIVISÃO PIONEER SEMENTES 7 9 16ANGLO NETHERLANDS GRAINS B.V. 11 4 15FTS SEMENTES S.A. 10 3 13UNIVERSIDADE FEDERAL DE VIÇOSA-UFV 13 - 13ASOCIADOS DON MARIO S.A. - 11 11NIDERA S. A. - 9 9FUNDAÇÃO MT 8 - 8 FUNDAÇÃO MT/TROPICAL MELHORAMENTO E GENÉTICA/UNISOJA 1 4 5 FUNDAÇÃO MT/UNISOJA - 3 3 UNISOJA/FUNDAÇÃO MT/TROPICAL MELHORAMENTO E GENÉTICA 1 2 3 UNISOJA/TROPICAL MELHORAMENTO E GENÉTICA/FUNDAÇÃO MT - 1 1 TROPICAL MELHORAMENTO E GENÉTICA/UNISOJA/FUNDAÇÃO MT 1 2 3 TROPICAL MELHORAMENTO E GENÉTICA/FUNDAÇÃO MT/UNISOJA - 1 1FUNDAÇÃO CENTRO DE EXPERIMENTAÇÃO E PESQUISA - FUNDACEP FECOTRIGO 3 5 8 FUNDACEP-FECOTRIGO/COODETEC 1 - 1SYNGENTA SEEDS LTDA 5 3 8CM SEMENTES BIOTECNOLOGIA E COMÉRCIO LTDA. 7 - 7PIONEER OVERSEAS CORPORATION 7 - 7GRANAR S/A - 6 6AGENCIARURAL 2 3 5COOPERATIVA AGROPECUARIA DO ALTO PARNAIBA-COOPADAP 4 - 4UNIVERSIDADE FEDERAL DE UBERLÂNDIA-UFU 2 - 2AGRO NORTE PESQUISA E SEMENTES LTDA. 2 - 2INSTITUTO MATO-GROSSENSE DO ALGODÃO-IMA 2 - 2TROPICAL MELHORAMENTO E GENÉTICA - 1 1FUNDAÇÃO ESTADUAL DE PESQUISA AGROPECUARIA-FEPAGRO 1 - 1Total 283 143 426

Page 184: Propriedade Intelectual nos Países de Língua Portuguesanit.uesc.br/.../files/livros/Propiedade-Intelectual... · propriedade intelectual e o uso da informação tecnológica contida

183

No mercado de soja GM, a situação é o oposto. Quem possui o maior número de

cultivares protegidas é a Monsanto. A Embrapa ocupa o segundo lugar. A Coodetec e

a Dupont possuem algumas cultivares protegidas também. Empresas argentinas (Don

Mario e Nidera) e uma paraguaia (Granar) também passaram a proteger cultivares no

Brasil (cultivares desenvolvidas inicialmente nos países vizinhos). As variedades de soja

GM protegidas são as resistentes ao herbicida glifosato (soja RR – Roundup Ready). Como

a Monsanto tem direitos sobre esse tipo de material (pela tecnologia de engenharia

genética que “transforma” a soja), consegue cobrar “taxas tecnológicas” pela utilização

de sua tecnologia. Por exemplo, em uma semente de soja RR da Embrapa, o produtor

paga pela tecnologia da semente (para a Embrapa, com base na Lei de Proteção de

Cultivares) e pela tecnologia RR (para a Monsanto). Além disso, o herbicida glifosato

também é produzido, embora não exclusivamente, pela Monsanto.

Percebe-se, então, que a Embrapa vem atuando no mercado de sementes

convencionais e transgênicas. No primeiro caso, como dito, é a líder. No mercado de

soja RR, ela não poderia ofertar esse tipo de material sem a parceria com a Monsanto.

Optou-se pela parceria de modo a também participar desse mercado. Além da soja RR,

outras variedades de soja transgênica estão em fase de pesquisa pela Embrapa. Uma

delas é originada de acordo entre a Embrapa e a Basf. Trata-se de uma variedade de

soja transgênica que está sendo desenvolvida no Brasil sob coordenação da Embrapa.

Pelo acordo, a Basf forneceu o gene ahas, que foi aplicado a uma variedade de soja da

Embrapa. A nova semente é resistente aos herbicidas da classe das imidazolinonas, que

matam ervas daninhas. Essas sementes ainda estão em fase de testes. Quando forem

liberadas para comercialização, devem ampliar a oferta de sementes de soja transgênica,

aumentando a concorrência no mercado, sobretudo em relação às variedades

resistentes ao glifosato. A Embrapa também está desenvolvendo uma variedade de soja

GM com maior resistência ao estresse hídrico (seca) em parceria com o JIRCAS (Japan

International Research Center for Agricultural Sciences). Esses dois exemplos colocam a

Embrapa entre as principais organizações que pesquisam soja GM no mundo.

6. CONCLUSÃO

As questões referentes à geração de novos conhecimentos na agricultura e aos

direitos de propriedade intelectual ocupam um lugar de destaque nesse novo cenário da

pesquisa agrícola, em especial em relação às atividades relacionadas ao melhoramento

vegetal. O desenvolvimento de novas cultivares, que a partir da Revolução Verde

assumiu um papel central na nova trajetória tecnológica então em curso, segue sendo

o elemento central de um conjunto de tecnologias que constituem a base do chamado

“agronegócio”.

Page 185: Propriedade Intelectual nos Países de Língua Portuguesanit.uesc.br/.../files/livros/Propiedade-Intelectual... · propriedade intelectual e o uso da informação tecnológica contida

184

Porém, diferentemente do que ocorria em momentos anteriores, novas questões

estão infl uenciando a forma de fazer pesquisa e as relações que se estabelecem entre

seus participantes. Se a inovação cerca de maneira cada vez mais profunda essas

atividades, a propriedade intelectual passa a ser um tema estratégico na formação do

arcabouço institucional do novo regime tecnológico e, por conseguinte, da dinâmica

de inovação da agricultura. Nesse sentido, é responsável pela incorporação de novas

tecnologias associadas a um padrão mais intensivo em ciência, que redefi ne o conjunto

de investimentos dirigidos ao setor. As novas cultivares promovem uma reordenação

do mercado de sementes, com o ingresso de novos atores e com a possibilidade de

fortalecimento das instituições de pesquisa (o que necessariamente depende da forma

como cada instituição passa a valorizar seus ativos).

Em um momento de forte concentração no mercado de sementes e mudas (em

2008, a Monsanto adquiriu importantes empresas brasileiras de pesquisa genética de

cana-de-açúcar e citros), somada à incerteza que sempre ronda o fi nanciamento das

atividades de pesquisa no país, verifi ca-se a necessidade de se ampliar a discussão

sobre a forma como se organizam (e reorganizam) as instituições envolvidas com o

processo de pesquisa. Essa necessidade fi ca evidente ao se considerar que a fronteira

do conhecimento em agricultura se move de forma extremamente rápida, com forte

impacto nas atividades de pesquisa em melhoramento vegetal. Caso o Brasil se distancie

dessa fronteira, corre-se o risco de que a capacitação acumulada em pesquisa agrícola

nos últimos 200 anos136 fi que ameaçada.

Esse novo ordenamento caminha ao lado da revisão dos marcos legais que se

encontra em pleno curso e, de certa forma, exige um novo movimento de capacitação

do conjunto dos atores envolvidos na inovação agrícola. Admitindo-se que o “novo”

paradigma já esteja em pleno processo de implementação, está mais do que na hora de

se refl etir sobre esses assuntos.

136 O marco inicial da pesquisa agrícola no Brasil pode ser considerado a fundação do Jardim Botânico, no Rio de Janeiro, em

1808.

Page 186: Propriedade Intelectual nos Países de Língua Portuguesanit.uesc.br/.../files/livros/Propiedade-Intelectual... · propriedade intelectual e o uso da informação tecnológica contida

185

REFERÊNCIAS

CARVALHO, S.P.M.; SALLES-FILHO, S.M.; PAULINO, S.R. Propriedade intelectual e

organização da P&D vegetal: evidências preliminares da implantação da Lei de

Proteção de Cultivares. Revista de Economia e Sociologia Rural, Rio de Janeiro,

v.45, n. 1, p. 9-26, 2007.

CASTELO BRANCO, R.; VIEIRA, A. Patentes e biotecnologia aceleram o crescimento

da agricultura brasileira. Parcerias Estratégicas, Brasília, DF, n. 26, p. 33-99, jun. 2008.

CORIAT, B.; ORSI, F.; WEINSTEIN, O. Science-based innovation regimes and institutional

arrangements: from science based “1” to science based “2” regimes: toward a new

Science-based regine? In: DRUID SUMMER CONFERENCE ON INDUSTRIAL DYNAMICS

OF THE NEW AND OLD ECONOMY - who is embracing whom?, 2002, Copenhagen.

Papers to be presented at the DRUID... [Copenhagen: DRUID, 2002].

CUNHA, E. ; BOTELHO FILHO, F. Impactos dos direitos de propriedade intelectual

na Embrapa. In: CONGRESSO DA SOCIEDADE BRASILEIRA DE ECONOMIA,

ADMINISTRAÇÃO E SOCIOLOGIA RURAL, 45., 2007, Londrina. Anais... [S.l.: s.n., 2007?].

CD-ROM.

DE CARLI, C. R. Embrapa: precursora da parceria público-privada no Brasil. Dissertação

(Mestrado)-Centro de Desenvolvimento Sustentável (CDS). Universidade de Brasília,

Brasília, 2005.

FUCK, M.P.; BONACELLI, M.B.M. O avanço na utilização de sementes geneticamente

modifcadas no mundo e suas implicações para a pesquisa agrícola no Brasil. Boletim

Economia & Tecnologia, Curitiba, ano 4, v. 12, jan./mar. 2008.

FUCK, M.P; BONACELLI, M.B.M; CARVALHO, S.P. Propriedade intelectual em

melhoramento vegetal: o que muda com a alteração na Lei de Cultivares no Brasil.

Boletim Economia & Tecnologia, Curitiba, ano 3, v. 11, out./dez. 2007.

NELSON, R.; MALERBA, F. Catching up in diff erent sectoral systems. [S.l.: s.n., 2008?].

Catch up Meeting, Maastricht, 14-15 February 2008.

SALLES-FILHO, S.M. et al. Innovación y propiedad intelectual en el sector agrícola

de America Latina: una vision introductoria sobre Argentina, Brasil y Colombia.

[Campinas?: Unicamp?], 2007. Informe elaborado para la Organización Mundial de la

Propiedad Intelectual, 2007.

Page 187: Propriedade Intelectual nos Países de Língua Portuguesanit.uesc.br/.../files/livros/Propiedade-Intelectual... · propriedade intelectual e o uso da informação tecnológica contida

186

TAKAKI, A. et al. Propriedade intelectual e inovação: uma análise de dez instituições

brasileiras. Parcerias Estratégicas, Brasília, DF, n. 26, p. 179-224, jun. 2008.

TEIXEIRA, F. Apresentação no 1º Seminário Internacional de Propriedade

Intelectual nos países de língua portuguesa. Rio de Janeiro, 1/jul/2008. [S.l.:

s.n., 2008?].

WILKINSON, J.; CASTELLI, P. A transnacionalização da indústria de sementes

no Brasil: biotecnologias, patentes e biodiversidade. Rio de janeiro: ActionAid, Brasil,

2000.

Page 188: Propriedade Intelectual nos Países de Língua Portuguesanit.uesc.br/.../files/livros/Propiedade-Intelectual... · propriedade intelectual e o uso da informação tecnológica contida

IV

DIREITOS AUTORAIS E DESENVOLVIMENTO

Page 189: Propriedade Intelectual nos Países de Língua Portuguesanit.uesc.br/.../files/livros/Propiedade-Intelectual... · propriedade intelectual e o uso da informação tecnológica contida
Page 190: Propriedade Intelectual nos Países de Língua Portuguesanit.uesc.br/.../files/livros/Propiedade-Intelectual... · propriedade intelectual e o uso da informação tecnológica contida

CAPÍTULO 10

INOVAÇÃO E PROPRIEDADE INTELECTUAL

NA INDÚSTRIA DE SOFTWARE NA AMÉRICA LATINA137

Paulo Bastos Tigre138

Felipe Silveira Marques139

Agradecemos os comentários e sugestões de Elvira Andrade do INPI e dos pareceristas

anônimos. Entretanto, as opiniões, assim como eventuais erros e omissões, são de exclusiva

responsabilidade dos autores e não representam as instituições a que eles estão vinculados.

137 Baseado em palestra dada no seminário “Propriedade Intelectual Nos Países de Língua Portuguesa”, 30 de junho – 2 de julho

de 2008, Rio de Janeiro, Brasil.

138 Professor Titular, Instituto de Economia, Universidade Federal do Rio de Janeiro (IE/UFRJ).

139 Economista do BNDES, Doutor em Economia pelo IE/UFRJ.

Page 191: Propriedade Intelectual nos Países de Língua Portuguesanit.uesc.br/.../files/livros/Propiedade-Intelectual... · propriedade intelectual e o uso da informação tecnológica contida

190

INTRODUÇÃO

A relação entre inovação e direitos de propriedade intelectual sempre levantou

controvérsias, dada a grande heterogeneidade existente nas formas de apropriação dos

resultados de esforços de inovação tecnológica. Os direitos de propriedade intelectual

constituem essencialmente um estímulo à inovação, recompensando o inovador em

relação aos riscos inerentes à atividade. Por outro lado, podem representar um obstáculo à

ampla difusão do conhecimento na economia, na medida em que conferem ao detentor

de patentes o direito de excluir terceiros do acesso a inovações. Harmonizar o incentivo

ao inovador com o amplo acesso à torrente de informação que brota da dinâmica

tecnológica constitui um desafi o que transcende o aspecto puramente técnico.

Na área de software, a controvérsia sobre as formas de proteção da propriedade

intelectual está associada à natureza única dos programas que desempenham funções

técnicas por meio de algoritmos. Ao invés de enfatizar o meio físico, o software é intangível

e pode ser replicado praticamente sem custos. O software é caro de produzir e barato

de se reproduzir, ou seja, possui altos custos fi xos e baixos custos marginais (Shapiro e

Varian, 1999). Por isso, seu preço é fi xado de acordo com o valor que o consumidor está

disposto a pagar por ele, e não como função direta dos custos de produção.

O título de propriedade intelectual atribuído internacionalmente ao software é o

direito de autor140. Alguns países, entretanto, concedem patentes de invenções relativas

a serviços fi nanceiros, vendas eletrônicas, métodos de negócios e publicidade pela

Internet que se expressam por meio de programas de computador. A demanda pelo

patenteamento de software se deve ao fato de o direito de autor proteger apenas as

“expressões literais” dos programas de computador. Como o valor do software não está

apenas na sua forma, mas também nas “ideias” nele contidas, as patentes passam a ser

uma forma de apropriação tecnológica mais forte. Elas protegem a funcionalidade do

programa e não apenas a forma como este foi escrito. Em termos práticos, o direito de autor

protege contra a pirataria, enquanto as patentes evitam a cópia por concorrentes.

Um dos principais argumentos em favor das patentes de inovações implementadas

por meio de software é que o conceito do programa precisa ser protegido para

favorecer a atividade inventiva. Na medida em que o software interage com o hardware,

oferecendo um conjunto de instruções que permitem que a máquina desempenhe

uma determinada função, argumenta-se que ambos precisam ser protegidos. Por outro

140 Usaremos aqui direito de autor e copyright como sinônimos, embora haja diferenças entre os dois. O copyright, como o

próprio nome diz, foi criado para proteger a cópia e, dessa forma, o editor. Já o direito autoral visa proteger o autor. A diferença

básica entre as duas modalidades recai nos direitos morais.

Page 192: Propriedade Intelectual nos Países de Língua Portuguesanit.uesc.br/.../files/livros/Propiedade-Intelectual... · propriedade intelectual e o uso da informação tecnológica contida

191

lado, existe oposição ao patenteamento de software e modelos de negócios em função

de suas implicações econômicas e sociais. Argumenta-se que a proteção por patentes

pode inibir a competição em função das características da inovação em software. Ao

contrário do que ocorre em áreas em que a inovação é centralizada, o desenvolvimento

de software envolve, tipicamente, a cumulatividade, a inovação sequencial e o reuso de

módulos em novos programas.

Este artigo analisa as práticas de propriedade intelectual adotadas na indústria

latino-americana de software. A principal questão discutida é a efi cácia das patentes

de software como instrumento de estímulo à inovação e difusão das tecnologias da

informação e da comunicação (TIC). Como garantir os legítimos direitos de apropriação

tecnológica sem reduzir o espaço para a diversidade e convivência de modelos de

negócios distintos? A metodologia utilizada inclui análise do banco de dados de patentes

(SIMPI) do Instituto Nacional da Propriedade Industrial. Diante dos impasses atuais no

debate sobre o regime de propriedade intelectual do software no âmbito do Acordo

TRIPS (Trade-Related Aspects of Intellectual Property Rights) da Organização Mundial

do Comércio, o aprofundamento do tema é importante para balizar as negociações

bilaterais e multilaterais em curso envolvendo países latino-americanos.

I. A INDÚSTRIA DE SOFTWARE E SERVIÇOS NA AMÉRICA LATINA

Para entender a importância dos direitos de propriedade intelectual na indústria

latino-americana de software, precisamos inicialmente avaliar suas características,

dinâmica e relevância na indústria global. A tabela abaixo apresenta os dados de vendas,

exportações e emprego em oito países da América Latina141. Empresas de software e

serviços de informática (SSI) instaladas nos principais mercados da região obtiveram um

faturamento conjunto de US$ 17 bilhões, equivalentes a pouco menos de 3% do mercado

mundial. Dentre eles, o Brasil constitui o principal mercado, com cerca de 60% do total.

Cabe lembrar que o valor registrado das atividades de SSI é geralmente subestimado,

já que parte das atividades não é contabilizada, por ser realizada internamente pelas

empresas usuárias. Além disso, alguns serviços são executados de maneira informal, não

aparecendo nas estimativas de faturamento.

As empresas de SSI empregavam formalmente 371,2 mil pessoas nos oito países

estudados, em 2005. No entanto, o número real de trabalhadores no setor pode ser

141 Os dados foram obtidos por consultores de um projeto da Comissão Econômica para a América Latina e Caribe - CEPAL

e apresentam algumas diferenças em relação aos da World Information Technology and Services Alliance - WITSA (2006),

principalmente para a Colômbia, cuja estimativa não inclui empresas locais de serviços. Um dos motivos para tanto é que os

dados são de produção de software e serviços e não de gasto.

Page 193: Propriedade Intelectual nos Países de Língua Portuguesanit.uesc.br/.../files/livros/Propiedade-Intelectual... · propriedade intelectual e o uso da informação tecnológica contida

192

substancialmente maior, devido não só ao desenvolvimento de software e serviços pelos

próprios usuários, mas também por causa da prática, amplamente adotada no setor, de

utilizar contratos informais de trabalho. Mochi e Hualde (2009, p. 188s) estimam, para

o caso do México, que o número efetivo de trabalhadores em SSI é cinco vezes maior

do que o registrado nas empresas especializadas. Tomando esse número como base,

chegaríamos a 1,8 milhões de trabalhadores, o que equivale a 1,6% da força de trabalho

total da região. Em contraste, nos países da OECD, que apresentam maior difusão de TI, a

força de trabalho no setor corresponde a 3 a 4% do total, dado que confi rma a coerência

de tais estimativas (OCDE, 2006, p. 217).

Ainda no tocante ao fator trabalho, verifi camos que o perfi l de empregos das

nove principais empresas multinacionais que atuam na região varia signifi cativamente

em função do segmento de mercado visado. As subsidiárias de empresas dedicadas

exclusivamente à prestação de serviços empregam, em média, 16,4 pessoas para cada

milhão de dólares de vendas. Já as empresas que oferecem software produto, por

trazerem soluções prontas do exterior, geram somente 2,6 empregos por milhão (TIGRE;

MARQUES, 2007). Como não desenvolvem localmente, as subsidiárias de empresas de

software-produto tampouco exportam.

A dinâmica da indústria mundial de software é muito infl uenciada pelo feedback

positivo que torna os padrões dominantes cada vez mais fortes (SHAPIRO; VARIAN,

1999), especialmente no segmento de “software-produto”. Poucas empresas dominam

o mercado global de pacotes e sistemas operacionais, deixando pouco espaço para as

empresas independentes de software. Mesmo em nichos específi cos, o software-produto

tende a se concentrar em poucos fornecedores globais. Tal monopólio foi consolidado

com o surgimento do microcomputador e a subsequente guerra de padrões em sistemas

operacionais. Diante da necessidade de garantir a compatibilidade e a comunicação

entre programas aplicativos, o mercado acabou por selecionar um “padrão de fato” para

sistema operacional que acabou por dominar praticamente todo o mercado.

O fato de o padrão ser praticamente monopolizado tem gerado grandes

assimetrias na rede de fornecedores de software. O acesso ao código-fonte, que permite

o desenvolvimento de aplicativos por empresas independentes, tem sido difi cultado por

práticas de integração vertical por meio de pacotes. Ao embutir em um mesmo pacote

uma ampla gama de aplicativos que, alternativamente, seriam fornecidos separadamente

por empresas independentes, o proprietário do padrão unifi ca e concentra o mercado

de software. Ao fornecer um pacote completo, ele evita que os clientes procurem outros

fornecedores para complementar suas necessidades. Assim como os supermercados

vendem “de tudo” para evitar a dispersão dos clientes, as grandes empresas de software

formatam pacotes com uma ampla gama de aplicativos, visando criar barreiras para

fornecedores de programas individuais.

Page 194: Propriedade Intelectual nos Países de Língua Portuguesanit.uesc.br/.../files/livros/Propiedade-Intelectual... · propriedade intelectual e o uso da informação tecnológica contida

193

A América Latina ainda não desempenha um papel na indústria mundial de

software e serviços compatível com seu potencial. As exportações estão muito

aquém do padrão da Índia, que concentra 85% das exportações mundiais de software

pelo modelo de terceirização de serviços para outros países (off shore outsourcing) e

representa um paradigma para outros países em desenvolvimento. Porém, segundo a

World Information Technology and Services Alliance - WITSA (2006), o mercado latino-

americano de software e serviços (SSI) cresce mais do que a média mundial, e a indústria

local vem aumentando sua participação nas vendas globais. A participação das empresas

localizadas em 14 países142 latino-americanos nas vendas globais cresceu de 1,94%, em

2001, para 2,72%, em 2005 (TIGRE; MARQUES, 2009b, p. 251).

As exportações de software e serviços da região são estimadas em cerca de US$ 1 bilhão.

Em termos relativos, a Costa Rica, o Uruguai e a Argentina são os países que mais exportam

em relação ao faturamento total, com 44,5%, 39,5% e 18,3%, respectivamente. Esses três

países são, justamente, aqueles que apresentam os melhores indicadores educacionais no

subcontinente, sugerindo que a qualifi cação da força de trabalho constitui um fator-chave

nas exportações de software e serviços. Chile e México, com 5%, estão próximos à média

da amostra, que é de 6%. O Equador (12%) está em situação intermediária. Já o Brasil e a

Colômbia exportam apenas 3% do faturamento total.

Tabela 1 - Faturamento, emprego e exportações de SSI em países selecionados, 2005.

Fatura-

mento

(US$

milhões)

Emprego/

setor

(em mil

pessoas)

Exporta-

ções (US$

milhões)

Fatura-

mento/

PIB

% do

empre-

go total

Expor-

tação

Argentina 1.342 32,0 245,1 0,74 0,20 18,3

Brasil 10.347 219,3 314,0a 1,30 0,25 3,0

Chile 1.385a 24,9a 68,8a 1,20 0,42 5,0

Colômbia 340a 31,7a 10,3a 0,28 0,16 3,0

Costa Rica 248 nd 110,3 1,28 ndb 44,5

Equador 90a 4,5a 10,7a 0,25 0,07 11,9

México 3.128 53,9 164,0 0,41 0,13 5,2

Uruguai 265 4,9a 104,5 1,57 0,30 39,5

Total 17.145 371,2 1.027,7 0,83 0,21 6,0

a Dados de 2004.

b nd: não disponível.

Fonte: CAMTIC (2006, p. 3) para Costa Rica; Tigre e Marques (2008) para os demais países.

142 Além dos 7 países abordados em Tigre e Marques (2009a), há informações sobre a Bolívia, Costa Rica, Honduras, Jamaica,

Panamá, Peru e Venezuela.

Page 195: Propriedade Intelectual nos Países de Língua Portuguesanit.uesc.br/.../files/livros/Propiedade-Intelectual... · propriedade intelectual e o uso da informação tecnológica contida

194

O Uruguai é o país em que o setor tem o maior peso relativo no PIB (1,57%), seguido

pelo Brasil (1,30%), Costa Rica (1,28%) e Chile (1,20%). O software tem uma participação

relativamente menor no México (0,41%), Colômbia (0,28%) e Equador (0,25%). A

Argentina, com 0,74% encontra-se em situação intermediária, próxima à média dos oito

países, que é de 0,83%.

II. FORMAS DE PROTEÇÃO À PROPRIEDADE INTELECTUAL EM SOFTWARE

Os mecanismos legais disponíveis para a proteção da propriedade intelectual são a

patente e o direito autoral, também existindo, em um contexto mais restrito, a proteção

de marcas e símbolos de negócio, mediante o seu registro. Além disso, são utilizadas

formas técnicas de proteção, de forma a assegurar o segredo de negócio, como a

autenticação digital, a criptografi a, o controle de acesso, a segregação de funções e a

auditoria de sistemas para proteger ativos. Frequentemente, um único produto utiliza

mais de uma dessas formas de proteção.

A indústria de software é naturalmente segmentada entre produtos e serviços,

embora possa haver uma combinação entre as duas modalidades. O software-produto

ou pacote de software é uma aplicação preparada previamente, que serve a um conjunto

amplo de clientes. A competitividade nesse segmento é defi nida pela capacidade de

desenvolvimento técnico e de comercialização de produtos em massa. Os investimentos

necessários para desenvolver e lançar produtos são altos e o retorno depende de sua

aceitação pelo mercado. O software-produto diferencia-se dos serviços de software em

função de suas características concorrenciais, pois envolve ganhos crescentes de escala.

Segundo Roselino (2006), o desenvolvimento de software-pacote envolve, de modo

geral, uma menor interação entre a empresa de software e o potencial demandante,

aumentando, assim, a necessidade de proteção legal.

DIREITO DE AUTOR

Tradicionalmente, o software é protegido por copyrights. O Acordo TRIPS, da

Organização Mundial do Comércio (OMC), referendou essa interpretação em 1994,

dispondo, no seu artigo 10, que “programas de computador, em código-fonte ou objeto,

serão protegidos como obras literárias, segundo a Convenção de Berna”. O copyright

é o regime de proteção conferido especifi camente às criações literárias, artísticas

e científi cas. Para a obtenção de um registro de direito autoral, é necessário apenas

que o autor declare que o objeto constitui uma criação original e independente, sem

necessidade de exame. Esse registro confere ao autor o direito exclusivo de utilizar, fruir

Page 196: Propriedade Intelectual nos Países de Língua Portuguesanit.uesc.br/.../files/livros/Propiedade-Intelectual... · propriedade intelectual e o uso da informação tecnológica contida

195

e dispor da obra literária, artística ou científi ca, ou seja, basicamente, o de impedir que

terceiros copiem o que foi criado, sem o seu consentimento. O registro do software é

opcional, já que o direito do autor nasce com a obra e, consequentemente, não se aplica

a uma concepção abstrata ou simples ideia, mas a algo escrito, pintado ou esculpido,

expressando uma ideia, em uma forma concreta de criação. O registro de direito autoral

protege tanto o código-fonte quanto o código-objeto (ou código-executável) relativo ao

software. Tal proteção está relacionada à “forma de expressão da ideia” e não à “aplicação

da ideia” que o software executa (ANDRADE et al., 2007).

O copyright protege uma criação original de software, o que garante ao criador

um controle exclusivo sobre este, incluindo o direito de vender e licenciar o trabalho

e vedando a terceiros a apropriação, réplica ou venda do programa sem permissão.

O sistema de proteção não exclui a possibilidade de outros agentes desenvolverem

outros trabalhos semelhantes de forma independente, com base nas mesmas ideias ou

propósitos. O titular original pode, também, manter controle sobre trabalhos derivados,

tais como novas versões. O software é geralmente licenciado a qualquer usuário, mas a

licença pode conter termos e condições arbitrárias de uso, pagamento e disseminação,

incluindo prazos, abrangência da licença e formas de pagamento.

No entanto, à medida que o software efetivamente comanda todo o sistema

computacional, levando-o a realizar múltiplas funções, fi ca claro que ele representa

muito mais do que é literalmente expresso pelo seu código. Sob esse argumento, as

empresas de software incluíam, na solicitação de registro de direito autoral, aspectos

relacionados às funções executadas pelo programa. A tutela de direito autoral, por estar

relacionada às criações artísticas, científi cas e literárias, é uma proteção de forma e de

aspectos literais, não cabendo qualquer proteção a funcionalidades. Assim, tais artifícios

foram negados judicialmente, posto que os aspectos funcionais não se enquadravam

na categoria de direito autoral.

Segundo o Manual Frascati (OCDE, 2002, p. 46), para um projeto de desenvolvimento

de software ser classifi cado como Pesquisa e Desenvolvimento, sua consecução deve

depender de avanços técnicos ou científi cos ou o seu objetivo deve ser a resolução

sistemática de uma incerteza científi ca ou tecnológica. O uso de um software para uma

nova aplicação ou propósito não constitui necessariamente um avanço. Dessa forma, é

difícil identifi car o que é de fato uma inovação no setor. Valimaki (2005, p. 69) aponta que

muitos programadores renomados não se reconhecem como inovadores, mas como

autores. Estes comparam o desenvolvimento de um novo software à escrita e afi rmam

que um novo software não é “descoberto”, mas implementado. Nesse contexto, o direito

de autor constitui a forma mais adequada de propriedade intelectual para o software.

Na tradição do direito autoral, a lei protege a forma de expressão de um programa,

e não a sua ideia ou utilidade. A interpretação corrente é de que as telas e relatórios de

Page 197: Propriedade Intelectual nos Países de Língua Portuguesanit.uesc.br/.../files/livros/Propiedade-Intelectual... · propriedade intelectual e o uso da informação tecnológica contida

196

um programa podem ser copiados sem violação dos direitos autorais; o que não pode

ser copiado é seu código-fonte (VEIGA, 1998). Também não constitui ofensa aos direitos

do titular a ocorrência de semelhanças de um programa a outro, quando esta se der por

força das características funcionais da aplicação, da observância de preceitos normativos

e técnicos ou de limitação de forma alternativa para a sua expressão. Existem, ainda, os

casos de realização de uma única cópia de salvaguarda e de citação parcial para fi ns

didáticos, que são explicitamente permitidos na lei. A lei exclui, também explicitamente,

os direitos morais do autor, exceto o direito de reivindicar a paternidade do programa e

de se opor a qualquer modifi cação que possa prejudicar sua honra ou reputação. Além

disso, são reconhecidos como pertencentes exclusivamente ao empregador os direitos

de propriedade de programas desenvolvidos sob vínculo empregatício. Para usufruto

dos direitos de autor decorrentes do desenvolvimento de programas de computador,

não há necessidade de nenhuma formalidade ou registro.

PATENTES ENVOLVENDO SOFTWARE

As patentes relacionadas aos sistemas de controle dedicado, defi nidos como

“softwares embarcados”, sempre foram admitidas pelas instituições de registro de

patentes. Programas de controle de equipamentos e sistemas como freio ABS em

automóveis e programas embutidos em telefones celulares e máquinas de lavar não

têm sido objeto de controvérsias relevantes. Porém, observa-se claramente que a

maioria dos debates relativos à patenteabilidade das invenções implementadas por

computador gira em torno do critério, escopo e forma de proteção segundo os quais

devem ser concedidas patentes relacionadas a softwares cuja aplicação se destina a

computadores de aplicações gerais, tais como o microcomputador pessoal (ANDRADE

et al., 2007).

Já as patentes de métodos de realização de negócios que habitualmente

incorporam software aplicativo começaram a concedidas em 1998. Apesar de a exclusão

de programas para computador em si da proteção por patente estar contemplada

no art. 52 da European Patent Convention (EPC), bem como nas legislações nacionais,

milhares de patentes têm sido concedidas pelo European Patent Offi ce (EPO) e por

alguns escritórios de Estados-Membros da União Europeia (UE). Nos Estados Unidos, a

concessão de patentes tem sido ainda mais liberal, tanto no processo de análise quanto

no escopo das inovações.

As criações envolvendo programas de computador eram consideradas uma

extensão do pensamento, atos puramente mentais, que não se enquadram como

invenções. Porém, com o intuito de forçar uma proteção mais ampla, empresas de TIC

passaram a submeter, sistematicamente, depósitos de pedidos de patente envolvendo

Page 198: Propriedade Intelectual nos Países de Língua Portuguesanit.uesc.br/.../files/livros/Propiedade-Intelectual... · propriedade intelectual e o uso da informação tecnológica contida

197

programas de computador. Tal ação rendeu frutos, posto que hoje em dia algumas

instituições envolvidas em PI já admitem que os programas de computador atribuem

um caráter técnico ao objeto, deixando este de ser considerado apenas um ato mental

abstrato.

As grandes empresas de software-produto, que vendem pacotes padronizados, são

as que mais pressionam os escritórios de Propriedade Intelectual por uma proteção mais

abrangente. Elas procuram criar novas condições técnicas e jurídicas para proteger seus

produtos. Entretanto, os critérios de patenteabilidade para as invenções implementadas

em computador não são claros e, em decorrência disso, vêm sendo interpretados de

forma diferente nos diversos países, gerando problemas comerciais transfronteiriços.

O advento da Internet facilitou ainda mais a distribuição e circulação do software,

acentuando as características descritas por Lemos (2005) como res commune, isto é,

bens de todos e, ao mesmo tempo, bens de ninguém. Evitar a circulação de cópias

não autorizadas passou a ser mais difícil e a indústria de TIC tem-se preocupado em

criar novas formas de proteger seus ativos intangíveis por meios jurídicos (patentes) e

técnicos (proteções eletrônicas).

A concessão de patentes de software pode resultar na concentração do mercado.

O poder de inovação da pequena empresa é inibido pela patente, já que o seu alto custo

de obtenção – que varia de € 10 mil nos E.U.A. a quase € 50 mil na Europa – aumenta

o risco de serem excluídas do mercado, por não terem condições de arcar com esses

custos. Outra consequência das patentes de software seria o aumento nos pedidos de

patentes, e, consequentemente, no tempo que estas levam para serem concedidas,

elevando, assim, a incerteza legal do sistema. As pequenas empresas não seriam capazes

de competir em bases iguais com grandes corporações que possuem advogados

especializados, podendo requisitar centenas ou milhares de patentes anualmente e

iniciar processos legais indiscriminadamente, como medida de intimidação.

Outro argumento contra o patenteamento é que produtos de software tendem a

ser sistemas construídos a partir de vários subsistemas pré-existentes. Permitir a patente

desses componentes poderia implicar o pagamento simultâneo de várias licenças, de

forma a poder comercializar um dado produto, resultando em um custo maior para

a sociedade. Dessa forma, as grandes empresas seriam favorecidas devido aos seus

grandes portfólios de patentes e, consequentemente, poder de barganha para negociar

licenças cruzadas entre si.

Os opositores das patentes de software argumentam, ainda, que os bancos de

dados utilizados pelos escritórios nacionais de patentes não contemplam grande parte

do estado da técnica para softwares, difi cultando signifi cativamente o procedimento de

exame de patente na aferição de novidade e não-obviedade. Em consequência, corre-

se o risco de que softwares que já fazem parte do estado da técnica sejam apropriados

indevidamente por meio de patentes (VALIMAKI, 2005).

Page 199: Propriedade Intelectual nos Países de Língua Portuguesanit.uesc.br/.../files/livros/Propiedade-Intelectual... · propriedade intelectual e o uso da informação tecnológica contida

198

FORMAS TÉCNICAS DE PROTEÇÃO

Muitas empresas, principalmente de pequeno e médio porte, não utilizam meios

jurídicos para proteger sua propriedade intelectual, preferindo recorrer a elementos

tecnológicos. Os meios técnicos de proteção ao software incluem autenticação digital,

criptografi a, controle de acesso, auditoria de sistemas e segregação de funções. A

efi cácia desses procedimentos pode variar segundo a complexidade do software e o

mercado ao qual ele se dirige. Empresas que desenvolvem produtos sob encomenda

de usuários específi cos não necessitam de registros de software, pois podem controlar

o acesso de usuários e criptografar as comunicações que envolvem o programa. Já os

provedores de produtos voltados para o grande público utilizam códigos e protocolos

para difi cultar a cópia ilegal e monitorar as ações dos usuários. Independentemente da

questão legal, as formas técnicas de proteção estão ganhando crescente importância

nas estratégias competitivas adotadas na indústria de software.

III. INOVAÇÃO E PROPRIEDADE INTELECTUAL NA INDÚSTRIA DE SOFTWARE

O conceito de software como um componente distinguível de um sistema

computacional, segundo Mowery e Rosenberg (2005), nasceu nos anos 1950, com o

advento da arquitetura de Von Neumann de computadores com programas armazenados.

Porém, o software permaneceu intimamente ligado ao hardware e o desenvolvimento

de uma indústria de software nos Estados Unidos só começou realmente quando os

computadores passaram a ser produzidos em grandes quantidades. Ao fi nal dos anos

60, os produtores de computadores começaram a “desembutir” suas ofertas, separando

o preço e a distribuição do software, fato que estimulou a entrada de produtores

independentes de programas aplicáveis a computadores de grande porte.

A invenção do microprocessador pela Intel, em 1971, revolucionou a tecnologia

de hardware ao integrar toda a Unidade Central de Processamento (CPU, na sigla em

inglês) de um computador em um único chip. Com a maior integração de circuitos,

a disponibilidade de memória deixou de ser um recurso escasso para se transformar

em uma solução virtualmente ilimitada. Em consequência, multiplicou-se a oferta, a

custos declinantes, da capacidade de armazenamento, processamento e transmissão

da informação digitalizada, o que permitiu sustentar uma crescente expansão das

aplicações de bens da informação.

O crescimento do valor atribuído ao software na cadeia de valor resultou em um

maior interesse por parte da indústria em proteger seus ativos intangíveis. O software

passou a ser um produto à parte, cobrado separadamente do hardware, o que propiciou

Page 200: Propriedade Intelectual nos Países de Língua Portuguesanit.uesc.br/.../files/livros/Propiedade-Intelectual... · propriedade intelectual e o uso da informação tecnológica contida

199

o desenvolvimento de uma indústria independente. Tal indústria passou a reivindicar

maior proteção legal, visando reaver os investimentos realizados no desenvolvimento

de programas e impedir a circulação de cópias não autorizadas. Diante dessa nova

situação, chegou-se a um consenso no âmbito da Organização Mundial de Propriedade

Intelectual (OMPI) de que os programas de computador precisavam ser protegidos,

dando origem a intensas discussões sobre o papel do regime de Propriedade Intelectual

(WIPO, 2004, p. 436).

O advento da Internet facilitou ainda mais a distribuição e circulação do software,

acentuando suas características de intangibilidade e fácil distribuição. O valor de

uma tecnologia geralmente depende das condições de apropriabilidade, ou seja,

da possibilidade de se manter o controle monopolista sobre essa tecnologia por um

determinado período de tempo. Tal controle é geralmente exercido por meio da

propriedade intelectual sobre bens imateriais, principalmente por meio de patentes

ou direitos autorais. Em alguns casos, a tecnologia não é patenteável e a proteção é

mantida por segredo industrial. Uma tecnologia não protegida e facilmente imitável

leva os rendimentos monopolistas de uma inovação a quase zero (DOSI et al., 2003).

Por outro lado, uma apropriação exclusiva e prolongada de direitos sobre inovações

pode restringir a difusão do conhecimento. Isso ocorre não apenas porque o monopólio

resulta em maiores custos para os usuários, mas principalmente pela pouca transparência

técnica oferecida. O software proprietário constitui uma “caixa preta” cujo código-fonte

não está aberto a terceiros. Em consequência, há pouca troca de conhecimentos e

insufi cientes incentivos para o processo de aprendizado interativo. As tecnologias

proprietárias, quando bem sucedidas, constituem um monopólio natural em função das

economias de rede que geram para seus usuários (SHAPIRO; VARIAN, 1999).

Diante da heterogeneidade existente na indústria de software com relação a

tamanho de empresas, modelos de negócios, mercados e tecnologias utilizadas,

observam-se acirrados confl itos quanto à forma de proteção a ser conferida ao software-

produto. Tais confl itos foram evidenciados por ocasião das discussões, iniciadas no

início da década de 2000 no Parlamento Europeu, sobre uma proposta de diretiva

europeia para o patenteamento de software. Dois grupos podem ser identifi cados como

polarizadores da discussão.

O primeiro grupo é constituído pelas grandes empresas do setor de TIC, que exercem

uma considerável pressão junto a organismos multilaterais e governos nacionais, não

só pela manutenção do status quo como também pelo aumento da abrangência da

patenteabilidade de invenções implementadas em computador. Na Europa, um grupo

formado por Nokia, Philips, Siemens, Ericsson e Alcatel enviou um documento à União

Europeia estimando um prejuízo de 15 a 18,5 bilhões de euros em seus gastos com

pesquisa de desenvolvimento (P&D), caso não fossem permitidas patentes relacionadas

a software (SILVA, 2007).

Page 201: Propriedade Intelectual nos Países de Língua Portuguesanit.uesc.br/.../files/livros/Propiedade-Intelectual... · propriedade intelectual e o uso da informação tecnológica contida

200

Outro argumento é que restrições às patentes de software irão ter implicações

negativas na economia da Europa como um todo, onde acabarão por acarretar a perda

de milhares de empregos de alta qualifi cação em pesquisa e desenvolvimento (P&D).

As grandes empresas alegam que uma diretiva estabelecendo limites a patentes de

software poderia induzir a fuga de especialistas e investimentos para os Estados Unidos

e, portanto, o fortalecimento do regime de propriedade intelectual seria uma forma de

defender a Europa da competição com os E.U.A.

O segundo grupo, contrário ao fortalecimento do sistema de proteção à propriedade

intelectual em software, é formado por um conjunto abrangente de atores, incluindo a

comunidade de software livre e código aberto, instituições acadêmicas e associações de

pequenas e médias empresas. Eles argumentam que as patentes relacionadas a software

irão desestimular a inovação e farão com que os desenvolvedores de softwares corram o

risco de serem processados por grandes empresas (ANDRADE et al., 2007).

A exemplo de outros bens imateriais, o software se caracteriza como um bem não

competitivo, ou seja, pode ser compartilhado por todos sem custos adicionais. O fato

de uma pessoa utilizar um programa não priva ninguém mais da possibilidade de fazer

o mesmo, em igualdade de condições (LEMOS, 2005). Por esse motivo, desde 1980, vêm

surgindo modelos alternativos de produção e distribuição. Questionando a necessidade

de licenças que, cada vez mais, restringiam a liberdade dos usuários, as comunidades

de software livre adotam diferentes iniciativas como a criação de sistemas operacionais

e aplicativos com código-fonte aberto e que são distribuídos gratuitamente mediante

uma licença de uso específi ca.

Os adeptos do software aberto defendem que um regime sem patentes, que

estimule o acesso ao conhecimento e a competição entre empresas independentes, é

uma forma preferível de incentivar a inovação no setor e garantir a interoperabilidade

entre os programas, sistemas e redes. Eles argumentam que as patentes de software

prejudicam o processo de padronização e aprisionam usuários em tecnologias

proprietárias. O patenteamento de modelos de negócios é visto como um fator de

distorção da competição no mercado, pois confere direitos exclusivos desproporcionais

em relação aos investimentos realizados pelo detentor da patente. Tendo em vista o

custo desproporcional imputado à sociedade pela concessão de direitos exclusivos, os

métodos de negócios deveriam ser considerados de domínio publico, a exemplo das

leis da natureza e dos princípios científi cos.

Page 202: Propriedade Intelectual nos Países de Língua Portuguesanit.uesc.br/.../files/livros/Propiedade-Intelectual... · propriedade intelectual e o uso da informação tecnológica contida

201

IV. PROPRIEDADE INTELECTUAL DE SOFTWARE NA AMÉRICA LATINA

Em conformidade com a Convenção de Berna, os países latino-americanos

conferem ao software a proteção autoral concedida às obras literárias. Vários países

revisaram recentemente seu marco regulatório referente à propriedade intelectual,

de forma a se adequar à legislação sugerida pelo acordo TRIPS. Hoje existem apenas

diferenças pontuais nas políticas adotadas pelos países da região em relação a PI. Por

exemplo, a Argentina, ao contrário do Brasil, do Chile e da Colômbia, não inclui obras

de multimídia em sua lei de proteção ao software. Outra diferença se verifi ca, ainda,

nos órgãos responsáveis pelo registro de software. Enquanto que no Brasil, no Chile, no

Equador e no México o registro é feito pela instituição que concede também a patente,

na Colômbia e no Uruguai este é realizado pela instituição que faz o registro de livros e

outras obras, ao passo que na Argentina o mesmo é feito por uma associação do setor.

Quadro 1: Legislação sobre proteção de software na América Latina

País Lei AnoForma de

proteçãoQuem faz o registro

Argentina 11.723 1998Direito

de autor

Cámara de Empresas de Software

(CESSI)

Brasil 9.609 1998Direito

de autor

Instituto Nacional de Propriedade

Industrial (INPI)

Chile 17.336 1970Direito

de autor

Departamento de Derechos de la

Propiedad Intelectual

Colômbia 603 2000Direito

de autor

Dirección Nacional de Derechos de

Autor

Equador 83 1998Direito

de autor

Instituto Ecuatoriano de la Propiedad

Intelectual (IEPI)

México 122 1996Direito

de autor

Instituto Mexicano de la Propiedad

Intelectual

Uruguai 17.616 2003Direito

de autorConsejo de Derechos de Autor

Fonte: elaboração própria a partir de Chudnovsky, López e Melitsko (2001, p. 91-96) para a Argentina; Marques (2009a, p. 99s)

para o Brasil; Alvarez e Lillo (2009, p. 130s) para o Chile; Rodríguez (2009) para a Colômbia; Mireles (2007, p. 64) para o Equador;

Mochi e Hualde (2009, p. 195ss) para o México; e González (2009, p. 244) para o Uruguai.

Page 203: Propriedade Intelectual nos Países de Língua Portuguesanit.uesc.br/.../files/livros/Propiedade-Intelectual... · propriedade intelectual e o uso da informação tecnológica contida

202

Embora a legislação preveja a proteção por direito de autor, alguns países da região

concedem patentes de software, registradas como patentes de invenção. No Chile, em

1991, houve apenas um pedido de patente; em 1998, oito; em 2004, 123; e em 2005, 140

(ALVAREZ; LILLO, 2009, p. 130s.). Devido ao alto custo – entre US$ 1,3 mil e US$ 3,7 mil –

as empresas de capital chileno não costumam solicitar patentes de software.

O CASO DAS PATENTES DE SOFTWARE NO BRASIL

O caso do Brasil merece ser destacado pelo fato de o país ter um histórico de efetiva

concessão de patentes de software e também por ser o principal mercado na região. Em

1998, foi aprovada a nova lei de software (ANDRADE et al., 2007). A política anterior já

sofria pressões em função da inclusão do tema de propriedade intelectual na pauta de

negociações da Rodada Uruguai do então General Agreement for Trade and Tariff s (GATT),

que antecedeu a OMC. Desde 1994, quando foi criado o TRIPS Em consequência, o Brasil

vinha discutindo a reformulação de sua legislação sobre direitos autorais, estabelecendo

o direito autoral para programas de computador pelo prazo de cinquenta anos.

Apesar de não incluir explicitamente patentes de software, esse tipo de proteção

vem sendo efetivamente concedida, segundo a prática adotada na Europa e nos Estados

Unidos. O software é geralmente patenteado como uma invenção implementada por

computador. Para isso, os solicitantes argumentam que, conforme o acordo TRIPS (artigo

27.1), as patentes devem ser disponíveis para invenções em todos campos tecnológicos,

devendo a proteção patentária, portanto, se estender também ao software.

Em uma busca no sistema de patentes do Instituto Nacional da Propriedade

Intelectual (SINPI) realizada em março de 2007 por Antônio Carlos de Souza Abrantes,

foram identifi cadas 590 patentes de software decididas (deferidas e indeferidas). A busca

utilizou as seguintes palavras-chave: “Computador, microprocessador, microcontrolador,

notebook, programa ou software”. Foram considerados apenas pedidos de patente de

invenção (PI), que é a natureza adequada para os pedidos relacionados a programas de

computador. Dos 590 pedidos decididos, 439 foram deferidos (74%) e 151 indeferidos

(26%). As patentes de invenção concedidas são dos seguintes tipos:

Sistema operacional (SO) •

Interfaces de usuário (IU) •

Telecomunicações (TC) •

Processamento gráfi co (PG) •

Controle de impressão (PR) •

Automação industrial (AU): controle de freios de trens e elevadores, controle •

automático de marchas de automóveis

Page 204: Propriedade Intelectual nos Países de Língua Portuguesanit.uesc.br/.../files/livros/Propiedade-Intelectual... · propriedade intelectual e o uso da informação tecnológica contida

203

Codifi cação de dados (ML)•

Distribuição e seleção de programas de televisão•

Processamento de linguagem com sistemas de reconhecimento de voz (PL) •

Controle de instalações elétricas (EE)•

Edição de texto (ET)•

A tabela abaixo mostra que, do total de 590 pedidos de patentes decididos, 512

foram solicitados por não residentes (87%) contra apenas 78 de residentes no país

(13%). Das patentes solicitadas por não residentes, a maioria (83%) foi efetivamente

concedida. Em contraste, apenas 18% dos pedidos feitos por residentes foram deferidos.

Tais pedidos foram feitos principalmente por pessoas físicas e a maior parte dos

indeferimentos foi atribuída à insufi ciência descritiva. Já as patentes concedidas a não

residentes foram solicitadas por empresas que, em sua grande maioria, já haviam obtido

tal registro no exterior. Das 590 decisões, 457 já possuíam patente americana concedida

pelo United States Patent and Trademark Offi ce - USPTO, sendo que 388 (85%) acabaram

sendo deferidas pelo INPI. Destas, 309 haviam obtido patente europeia, das quais 279

(90%) foram deferidas e apenas 30 (10%) indeferidas.

Tabela 2. Pedidos de patentes relativas a programas de computador, INPI, Brasil, 2007.

Origem Pedidos totaisPatentes

concedidasNão concedidas

Residentes78

(13%)

14

(18%)

64

(82%)

Não residentes512

(87%)

425

(83%)

87

(17%)

Total590

100%

439

(74%)

151

(26%)

Fonte: SINPI (INPI)

Podemos observar que apenas 14 patentes de software (3% do total) foram

concedidas a residentes no país. Nenhuma empresa ou instituição brasileira detém

mais de duas patentes de software, o que revela a pouca importância atribuída a

esse mecanismo de apropriação no âmbito local. Questionada sobre esse fato, uma

empresa nacional entrevistada revelou que, embora nunca tenha solicitado patente no

país, já possui um título nos Estados Unidos. A patente foi obtida para evitar confl itos

com eventuais detentores de direitos de propriedade intelectual nas exportações de

software.

Page 205: Propriedade Intelectual nos Países de Língua Portuguesanit.uesc.br/.../files/livros/Propiedade-Intelectual... · propriedade intelectual e o uso da informação tecnológica contida

204

Os dados sugerem que as patentes de software, no Brasil, representam

essencialmente uma extensão de direitos de propriedade já obtidos em outros países.

O sistema local parece dar vigência e efi cácia às patentes concedidas no exterior, sem

representar um efetivo estímulo à atividade inventiva local.

V. A QUESTÃO DA PIRATARIA

Em uma economia crescentemente baseada na informação e no conhecimento,

a apropriação de ativos intangíveis por meio de direitos de propriedade é um tema de

crescente importância nas relações internacionais. Visando monitorar o movimento de

cópias não autorizadas, conscientizar a opinião pública sobre ilegalidade e pressionar

governos nacionais a combater a pirataria por meio de ações penais, empresas de

software criaram associações em toda a América Latina. No plano político, além de

angariar apoio local, tais associações contam com apoio tácito dos governos de

seus países de origem. O governo norte-americano, em particular, criou a US Special

301 Priority Watch List com o objetivo de dar consistência legal a ações de retaliação

comercial a países suspeitos de praticarem pirataria de software. Atualmente, o México

é um dos países latino-americanos incluídos na lista.

Um estudo da Business Software Association (IDC; BSA, 2005, p. 14) estima que

a perda das empresas de software com as cópias não autorizadas na América Latina

atingiu US$ 2 bilhões em 2005. Tal estimativa é feita com base na avaliação do

número de cópias piratas em circulação multiplicado pelo preço da licença original.

Comparativamente, a perda com a pirataria de software na América Latina seria, em

linhas gerais, equivalente ao estimado para o Oriente Médio e África (US$ 1,6 bilhão)

e para o Leste Europeu (US$ 3 bilhões). As perdas em países desenvolvidos seriam

de US$ 6,9 bilhões nos Estados Unidos, US$ 3,2 bilhões na França, US$ 1,9 bilhão na

Alemanha e US$ 1,8 bilhão no Reino Unido. Porém, como o mercado desses países é

maior, as perdas estimadas nos países em desenvolvimento são mais signifi cativas em

termos relativos. O estudo avalia que a taxa de pirataria chega a 68% na América Latina

contra 36% na União Europeia.

Entretanto, tais estimativas de pirataria estão provavelmente superestimadas.

(CORREA, 1999) critica os cálculos da BSA por partirem da hipótese de que as cópias

piratas existentes em circulação seriam alternativamente compradas a preços de

mercado. Para esse autor, uma estimativa mais realista deveria levar em conta as vendas

que as empresas efetivamente deixaram de realizar em consequência da pirataria.

Nesse sentido, é razoável supor que muitos consumidores que copiaram ou compraram

softwares piratas a um preço inferior ao do original não estariam dispostos a pagar o

preço cheio das licenças ofi ciais. Caso a pirataria fosse efetivamente controlada, muitos

Page 206: Propriedade Intelectual nos Países de Língua Portuguesanit.uesc.br/.../files/livros/Propiedade-Intelectual... · propriedade intelectual e o uso da informação tecnológica contida

205

usuários simplesmente deixariam de usar programas proprietários. Esse argumento, já

levantado na literatura, sugere que as cópias não autorizadas ajudam a difundir padrões

tecnológicos proprietários em países emergentes. Apesar de não gerarem receitas

imediatas, o uso não autorizado dos programas contribui para o feedback positivo,

gerando efeitos de rede essenciais para a consolidação de padrões no mercado.

A pirataria afeta principalmente as empresas que vendem pacotes genéricos. Já as

empresas que prestam serviços ou que customizam produtos para seus clientes estão

menos preocupadas com cópias ilegais. Uma pesquisa conduzida por Chudnovsky,

López e Melitsko (2001, p. 95), na Argentina, revelou que 60% das 39 empresas locais

desenvolvedoras de software entrevistadas alegaram não serem afetadas por pirataria por

parte dos usuários, enquanto que metade delas não temia a pirataria de competidores.

Na medida em que seus programas precisam ser adaptados às necessidades dos

clientes, o produto em si não tem valor de revenda para imitadores pouco qualifi cados

tecnicamente.

A principal alternativa para os usuários de software que não querem se submeter

às condições de licenciamento e às restrições técnicas impostas pelos fornecedores de

software proprietário é o software livre ou aberto. Os modelos de negócios baseados

nesse tipo de licença partem do princípio de que o valor está no serviço e não no

produto. Adotado inicialmente por pequenas empresas, vem ganhando adeptos entre

âncoras da indústria, como a IBM e a Sun. Os programas são doados ou licenciados

a preços simbólicos aos clientes em troca de contratos de prestação de serviços.

Empresas usuárias não necessitam apenas do programa, mas principalmente de serviços

técnicos e tecnológicos como o desenvolvimento e implementação de interfaces com

sistemas legados, adaptação dos programas às características das empresas, serviços de

manutenção, treinamento e consultoria. Assim, as receitas de royalties são substituídas

por serviços ao cliente.

VI. CONCLUSÕES

A América Latina vem aumentando gradativamente sua participação na indústria

global de software e serviços, graças à disponibilidade de recursos humanos qualifi cados

a custos relativamente baixos e a um mercado interno em franco crescimento. A

principal área de oportunidade para os países da região reside na prestação de serviços,

já que os pacotes de software são monopolizados por poucas empresas globais (TIGRE;

MARQUES, 2009b; MARQUES, 2009b). Por ser de produção cara e reprodução barata, o

software-produto implica grande economia de escala e escopo. Além disso, o feedback

positivo e os efeitos de rede conduzem à lógica do “vencedor leva tudo”.

Page 207: Propriedade Intelectual nos Países de Língua Portuguesanit.uesc.br/.../files/livros/Propiedade-Intelectual... · propriedade intelectual e o uso da informação tecnológica contida

206

O fortalecimento dos mecanismos de apropriação interessa essencialmente

a empresas de pacotes que praticamente não produzem na América Latina. As

grandes empresas multinacionais que efetivamente produzem e geram divisas na

região são predominantemente voltadas à prestação de serviços de outsourcing, um

ramo de negócios que tem pouca necessidade de proteção patentária. As empresas

nacionais de software tampouco consideram as patentes importantes. Elas se utilizam

essencialmente de procedimentos técnicos e somente julgam necessária a proteção

por patente quando exportam para os Estados Unidos.

Assim, levando em conta os interesses regionais, um regime de baixa

apropriabilidade tecnológica é mais favorável à inovação, dado o caráter cumulativo

e modular das soluções. Como o desenvolvimento de software se baseia no

aproveitamento de componentes pré-existentes, a patente desses subsistemas inibe

a inovação, seja pelo alto custo de licenciamento ou pela proibição da utilização de

determinados componentes.

O fato de as patentes inibirem a inovação em software, no entanto, não justifi ca o

desrespeito a leis e acordos internacionais. Nesse aspecto, a maioria dos países latino-

americanos se enquadra nas orientações do acordo TRIPS de proteger os produtos

contra a pirataria por meio de copyrights. Tais países alteraram suas legislações na década

de 90 para se adaptar às exigências multilaterais e hoje se observa uma signifi cativa

homogeneidade nas legislações. Entretanto, o controle legal de cópias não autorizadas

é difícil até mesmo em países desenvolvidos, fato que vem levando muitas empresas a

adotarem formas técnicas de proteção como autenticação digital, criptografi a, controle

de acesso, segregação de funções e auditoria de sistemas para proteger seus ativos.

Outra estratégia é adotar modelos de negócios mais apoiados em software livre e na

prestação de serviços.

Apesar do enquadramento às normas internacionais, os países-membros da

Organização Mundial do Comércio (OMC) vêm enfrentando crescentes pressões

para aumentar a proteção aos direitos de propriedade de programas de computador

(SHADLEN; SCHRANK; KURTZ, 2005). Tais pressões contribuem para uma maior

liberalidade na concessão de patentes, principalmente no Brasil, que responde por

mais da metade do mercado latino-americano de software. Outro aspecto importante

na agenda comercial dos países latino-americanos é a questão das perdas na

indústria de software, motivadas pela pirataria. As estimativas são superestimadas em

função da metodologia adotada, mas, mesmo assim, servem de base para ameaças

de retaliação comercial. Entretanto, isso não quer dizer que a pirataria não deva ser

combatida. Assegurar os direitos de propriedade intelectual é uma obrigação do

Estado e da Justiça.

Page 208: Propriedade Intelectual nos Países de Língua Portuguesanit.uesc.br/.../files/livros/Propiedade-Intelectual... · propriedade intelectual e o uso da informação tecnológica contida

207

Em síntese, a propriedade intelectual é um instrumento legal que busca garantir a

apropriação tecnológica, diante dos riscos e difi culdades enfrentados pelos inovadores.

A dinâmica do mercado de software é permanentemente afetada por inovações em

rede que ampliam as interfaces, permitindo o surgimento de novas formas de produzir

e compartilhar informação e conhecimento. Em consequência, o mercado se subdivide

com a criação de novos segmentos, como o de software aberto, gerando modelos de

negócios e padrões de competição signifi cativamente distintos.

Nesse contexto, os organismos encarregados da política industrial se defrontam

com o desafi o de harmonizar interesses confl itantes que transcendem o aspecto técnico.

Por um lado, precisam atender à demanda das grandes empresas por maior proteção,

segundo as legislações e os acordos internacionais vigentes. Por outro, é necessário levar

em conta que as mudanças tecnológicas exigem a abertura de espaço no mercado para

novas formas cooperativas de produção internacional de conhecimentos digitalmente

codifi cados. Uma excessiva restrição à circulação de conhecimentos poderá difi cultar

essa missão. Os debates sobre o tema são ainda incipientes e necessitam ser reforçados

por meio de uma agenda de pesquisa independente, que analise o impacto das patentes

de software sobre o processo de inovação e as alternativas existentes para estimular as

atividades inventivas no setor.

Page 209: Propriedade Intelectual nos Países de Língua Portuguesanit.uesc.br/.../files/livros/Propiedade-Intelectual... · propriedade intelectual e o uso da informação tecnológica contida

REFERÊNCIAS

ALVAREZ, V.; LILLO, C. Chile: desarrollo endógeno con proyecciones externas. In: TIGRE,

P.; MARQUES, F. (ed.). Desafíos y oportunidades de la industria del software en

América Latina. Colômbia: Mayol e CEPAL, 2009.

Andrade, E.; Tigre, P.; Silva, L; Oliveira, R. ;Souza, A.; Silva, D.; (2007). Evolução e

Perspectivas da Propriedade Intelectual em Software. Revista Brasileira de

Inovação. Volume 6, Número 1, janeiro/junho. Rio de Janeiro. ISSN 1677-2504.

CAMTIC (2006). Estado Nacional Software 2005: Estadísticas Sectoriales de Costa

Rica. CAMTIC, 2006.

Correa, C. (1999), “Propiedad intelectual y programas de computación”, 2° Congreso

sobre Propiedad Intelectual. Cultura, Ciencia y Tecnología en la Universidad, Serie

Ciencia y Tecnología en la UBA, Buenos Aires.

Chudnovsky, D., A. López y S. Melitsko (2001), “El sector de software y servicios

informáticos en la Argentina. Situación actual y perspectivas de desarrollo”, CENIT,

Documento de Trabajo Nº 27, Buenos Aires.

Dosi, G.; Faillo, M.; Marengo, L. (2003). “HYPERLINK “http://ideas.repec.org/p/ssa/

lemwps/2003-11.html” Organizational Capabilities, Patterns of Knowledge

Accumulation and Governance Structures in Business Firms. An Introduction,”

HYPERLINK “http://ideas.repec.org/s/ssa/lemwps.html” LEM Papers Series 2003/11,

Laboratory of Economics and Management (LEM), Sant’Anna School of Advanced

Studies, Pisa, Italy.

González, I. (2009). “Uruguay: dinámica estimulada por la capacitación”. Em: Tigre, P.

& Marques, F. (eds.) Desafíos y oportunidades de la industria del software en

América Latina. Colômbia: Ed. Mayol e CEPAL.

INTERNATIONAL DATA CORPORATION; BUSINESS SOFTWARE ALLIANCE. Third Annual

BSA and IDC Global Software Piracy Study. Washington, DC: IDC: BSA, 2006.

Lemos, R. (2005). Direito, Tecnologia e Cultura. Rio de Janeiro: FGV Editora.

López, A.; Ramos, D. (2009). “Argentina: nuevas estrategias empresarias en un modelo

más abierto”. Em: Tigre, P. & Marques, F. (eds.) Desafíos y oportunidades de la

industria del software en América Latina. Colômbia: Ed. Mayol e CEPAL.

Page 210: Propriedade Intelectual nos Países de Língua Portuguesanit.uesc.br/.../files/livros/Propiedade-Intelectual... · propriedade intelectual e o uso da informação tecnológica contida

209

Marques, F. (2009a). “Brasil: mercado interno como base del crecimiento”. Em: Tigre, P.

& Marques, F. (eds.) Desafíos y oportunidades de la industria del software en

América Latina. Colômbia: Ed. Mayol e CEPAL.

Marques, F. (2009b). A América Latina e a Internacionalização do Mercado de

Serviços: o caso da indústria de software. Tese de Doutorado, Instituto de Economia,

UFRJ.

Mireles, M. “La Industria de Software en Ecuador”, Informe para o projeto

“Oportunidades e Desafi os da Indústria de Software na América Latina”. CEPAL,

2007.

Mowery, D.; Rosenberg, N. (2005). Trajetórias da Inovação: A mudança tecnológica

nos Estados Unidos da América no século XX. Campinas: Editora Unicamp (Série

Clássicos da Inovação).

Mochi, P.; Hualde, A. (2009). “México: producción interna e integración mundial”. Em:

Tigre, P. & Marques, F. (eds.) Desafíos y oportunidades de la industria del software

en América Latina. Colômbia: Ed. Mayol e CEPAL.

OCDE (2002). Frascati Manual: Proposed Standard Practice for Surveys on Research

and Experimental Development. OCDE, 2002.

OCDE (2006). OECD Information Technology Outlook 2006. OCDE, 2006.

Rodríguez, K. (2009). “Colombia: desafíos de una industria en formación”. Em: Tigre, P.

& Marques, F. (eds.) Desafíos y oportunidades de la industria del software en

América Latina. Colômbia: Ed. Mayol e CEPAL

Roselino, J. (2006). A indústria de software: o “modelo brasileiro” em perspectiva

comparada. Tese de Doutorado. Instituto de Economia/Unicamp.

Shadlen , K.; Schrank, a.; Kurtz, M. (2005). The Political Economy of Intellectual

Property Protection: The Case of Software. Ohio State University, 2005.

Shapiro, C.; Varian, H. (1999) Economia da Informação. Rio de Janeiro: Editora

Campus.

Silva, D. (2007). O Confl ito de Interesses na Proteção do Software por Patentes:

O caso da União Européia. Dissertação para o MBA em Análise de Políticas Públicas

em Inovação e Propriedade Intelectual UFRJ/INPI.

Page 211: Propriedade Intelectual nos Países de Língua Portuguesanit.uesc.br/.../files/livros/Propiedade-Intelectual... · propriedade intelectual e o uso da informação tecnológica contida

210

Tigre, P. & Marques, F. (2009a) Desafíos y oportunidades de la industria del

software en América Latina. Colômbia: Ed. Mayol e CEPAL.

Tigre, P.; Marques, F. (2009b) “A Indústria de Software e Serviços na América Latina: uma

visão de conjunto”. Em: Tigre, P. & Marques, F. (eds.) Desafíos y oportunidades de la

industria del software en América Latina. Colômbia: Ed. Mayol e CEPAL

Valimaki, M. (2005) The Rise of Open Source Licensing: A Challenge to the Use of

Intellectual Property in the Software Industry. Turre Publishing, 2005.

Veiga, R. “Comentários sobre a nova Lei do software”. Disponível: Site SEPROS -

Sindicato das Empresas de Processamento de Dados do Rio Grande do Sul.

<URL: http://www.seprors.com.br/parecer.htm > (1 Jul.1998).

WITSA. Digital Planet 2006: The Global Information Economy. Maio, 2006.

WIPO Intellectual Property Handbook: Police, law and Use,2004.

Page 212: Propriedade Intelectual nos Países de Língua Portuguesanit.uesc.br/.../files/livros/Propiedade-Intelectual... · propriedade intelectual e o uso da informação tecnológica contida

CAPÍTULO 11

DILEMAS DA LEGISLAÇÃO AUTORAL NO BRASIL143

Allan Rocha de Souza144

143 Texto originalmente apresentado em Audiência Pública realizada na Comissão de Educação e Cultura da Câmara dos

Deputados, em 11.11.08, em Brasília-DF, por ocasião da discussão sobre a reforma da lei autoral no Brasil.

144 Doutor em Direito Civil pela UERJ. Professor e Pesquisador de Dirieto Civil na UFRRJ/ITR. Professor e Pesquisador de Direitos

Autorais na UFRJ/PPED.

Page 213: Propriedade Intelectual nos Países de Língua Portuguesanit.uesc.br/.../files/livros/Propiedade-Intelectual... · propriedade intelectual e o uso da informação tecnológica contida

212

1. EM BUSCA DO EQUILÍBRIO

A proteção jurídica das obras artísticas abrange essencialmente duas ordens de

interesses: os do criador e os da sociedade.

Ao criador de uma expressão personalizada de conteúdo artístico, literário ou

científi co são constitucionalmente atribuídos direitos de utilização equiparados ao de

propriedade, inclusive com relação à satisfação obrigatória de sua função social145.

À sociedade e aos usuários são reconhecidos direitos igualmente constitucionais e

fundamentais de usos essenciais à educação146, pesquisa147, cultura148 e comunicação149,

todos essenciais para a interação sociocultural150 e para a própria formação da pessoa e

construção de sua dignidade151.

145 Constituição Federal de 1988, art. 5º: “Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos

brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à

propriedade, nos termos seguintes: (...) XXII - é garantido o direito de propriedade; XXIII - a propriedade atenderá à sua função

social; (...) XXVII - aos autores pertence o direito exclusivo de utilização, publicação ou reprodução de suas obras, transmissível

aos herdeiros pelo tempo que a lei fi xar; XXVIII - são assegurados, nos termos da lei: a) a proteção às participações individuais

em obras coletivas e à reprodução da imagem e voz humanas, inclusive nas atividades desportivas; b) o direito de fi scalização

do aproveitamento econômico das obras que criarem ou de que participarem aos criadores, aos intérpretes e às respectivas

representações sindicais e associativas”.

146 Id., art. 6o:: “São direitos sociais a educação, a saúde, o trabalho, a moradia, o lazer, a segurança, a previdência social, a

proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados, na forma desta Constituição”; art. 205: “A educação,

direito de todos e dever do Estado e da família, será promovida e incentivada com a colaboração da sociedade, visando ao

pleno desenvolvimento da pessoa, seu preparo para o exercício da cidadania e sua qualifi cação para o trabalho”; art. 206:

“O ensino será ministrado com base nos seguintes princípios: (...) II - liberdade de aprender, ensinar, pesquisar e divulgar o

pensamento, a arte e o saber”.

147 Ibid., art. 218: “O Estado promoverá e incentivará o desenvolvimento científi co, a pesquisa e a capacitação tecnológicas”.

148 Ibid., art. 215: “O Estado garantirá a todos o pleno exercício dos direitos culturais e acesso às fontes da cultura nacional,

e apoiará e incentivará a valorização e a difusão das manifestações culturais. § 1º O Estado protegerá as manifestações das

culturas populares, indígenas e afro-brasileiras, e das de outros grupos participantes do processo civilizatório nacional. (...)

§ 3º A lei estabelecerá o Plano Nacional de Cultura, de duração plurianual, visando ao desenvolvimento cultural do País e à

integração das ações do poder público que conduzem à: I defesa e valorização do patrimônio cultural brasileiro; II produção,

promoção e difusão de bens culturais; (...) IV democratização do acesso aos bens de cultura”; art. 216: “Constituem patrimônio

cultural brasileiro os bens de natureza material e imaterial, tomados individualmente ou em conjunto, portadores de referência

à identidade, à ação, à memória dos diferentes grupos formadores da sociedade brasileira, nos quais se incluem: I - as formas

de expressão; II - os modos de criar, fazer e viver; III - as criações científi cas, artísticas e tecnológicas; IV - as obras, objetos,

documentos, edifi cações e demais espaços destinados às manifestações artístico-culturais”.

149 Ibid., art. 221: “A produção e a programação das emissoras de rádio e televisão atenderão aos seguintes princípios: I -

preferência a fi nalidades educativas, artísticas, culturais e informativas; II - promoção da cultura nacional e regional e estímulo

à produção independente que objetive sua divulgação; III - regionalização da produção cultural, artística e jornalística,

conforme percentuais estabelecidos em lei”.

150 O reconhecimento do direito fundamental à cultura é inerente ao Pacto dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais,

ratifi cado pelo Brasil em 1992, e parte indissociável do conjunto de direitos humanos fundamentais positivados no conjunto

de instrumentos internacionais promulgados pela UNESCO. Seu valor se torna extremamente relevante quando consideramos

os efeitos das interações culturais na construção das identidades e na coesão social, como expresso na Declaração Universal

sobre Diversidade Cultural, adotada na 31ª Conferência Geral da UNESCO, em novembro de 2001.

151 ONU. Pacto dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais. Preâmbulo: “Reconhecendo que esses direitos (à educação e

cultura) decorrem da dignidade inerente à própria pessoa humana.”

Page 214: Propriedade Intelectual nos Países de Língua Portuguesanit.uesc.br/.../files/livros/Propiedade-Intelectual... · propriedade intelectual e o uso da informação tecnológica contida

213

Com a função de unir esses interesses, pode haver diversos intermediários, cujas

atividades empresariais destinam-se ao lucro e justifi cam-se exclusivamente por este.

Os intermediários desempenham uma gama variada de ações de cunho

empresarial. Encarregam-se da tarefa de viabilizar a utilização comercial de grupos

de obras artísticas, produzindo e circulando riqueza. São importantes no processo de

divulgação e distribuição das obras artísticas de valor comercial para o seu mercado.

Podem ser igualmente importantes na produção de certas obras, principalmente as de

caráter complexo, devido ao necessário investimento na própria produção da obra152.

Seus direitos não são direitos autorais, mas apenas equiparados, mutatis mutandis,

aos direitos patrimoniais do autor.

Suas ações têm cunho estritamente empresarial e seus interesses são estritamente

econômicos, não se confundindo, portanto, com os interesses do autor, ainda que

equivocadamente insistam alguns em falar pelos autores, sem, porém, substancialmente

representá-los e até se contrapondo aos seus interesses153.

Ao mesmo tempo, outros intermediários – porém com baixa representatividade

política e poder econômico – ocupam-se da circulação não comercial e não concorrencial,

promovendo e viabilizando a diversidade cultural154.

Acertadamente, todos clamam por segurança jurídica, pois esta permite a

construção de um ambiente propício ao desenvolvimento da economia e da cultura,

favorencendo a robustez de nossa rica diversidade cultural.

Há uma gama variada de confl itos entre as partes envolvidas e um grande número

desses problemas encontra-se carente de solução ou insatisfatoriamente resolvido.

A ausência de soluções legislativas satisfatórias para todos os interessados acaba

por gerar forte tensão política, inúmeros confl itos sociais e grande demanda judicial,

favorecendo, com o seu escalonamento, a posição estrutural, econômica e politicamente

dominante das entidades empresariais, frente tanto aos criadores quanto aos usuários.

Os dispositivos da atual legislação não estão sufi cientemente adequados à

preservação nem da remuneração equitativa do autor nem do espaço essencial de

liberdade de utilização e, em razão dessa assimetria, não conseguem garantir a segurança

jurídica. Nesse sentido, a legislação não é satisfatória para ninguém.

152 Como o audiovisual, por exemplo, em que o produtor deve voltar a ser positivado como titular original, mas não autor, dos

direitos de exploração econômica.

153 Interessante notar a posição e considerações dos sindicatos de músicos apresentadas nos Seminários promovidos pelo

Ministério da Cultura (MinC) – em especial, aquele dedicado aos Autores e Artistas, realizado no Rio de Janeiro em 27 e 28 de

outubro de 2008 – pois revelam alguns dos confl itos entre titulares empresariais e autores ou artistas da área musical, sempre

em favor dos primeiros, em razão do próprio poder econômico.

154 Esse circuito não comercial abriga iniciativas como os cineclubes, que promovem a exibição pública de obras audiovisuais

não disponíveis, com fi nalidade cultural e educativa, permitindo, como consequência essencial, uma rica interação

sociocultural a partir da discussão sobre os sentidos da obra exibida.

Page 215: Propriedade Intelectual nos Países de Língua Portuguesanit.uesc.br/.../files/livros/Propiedade-Intelectual... · propriedade intelectual e o uso da informação tecnológica contida

214

A parte primária, nuclear, desse conjunto de relações é necessariamente o

autor, pessoa humana criadora, que dá forma personalizada à expressão, que é de

imediato protegida pelo Direito. A par dos elementos inerentes à personalidade do

criador, inalienáveis, há a exclusividade de utilização econômica, objeto de cessão ou

licenciamento de conteúdo patrimonial. Essa exclusividade de utilização comercial é o

incentivo econômico para a produção de cultura material artística.

Na outra ponta, temos toda a sociedade, que é fonte de referências para as novas

criações e que, complementariamente, as incorpora como instrumentos essenciais para

a interação sociocultural, educação e comunicação. Os cidadãos constituem, por isso,

os destinatários das obras artísticas, que são igualmente culturais e cujas utilizações são

intrínsecas ao próprio processo de formação. São bens essenciais e indispensáveis à

própria formação sociocultural dos cidadãos e, em última instância, da nação e do país.

Nunca se deve esquecer que a disponibilidade e utilização constitui a própria

justifi cativa e função da exclusividade de exploração econômica atribuída ao autor155 –

massivamente cedida aos empresários da cultura –, pois o objetivo fi nal da proteção é

aprimorar o espaço público, garantindo o enriquecimento cultural e elevação espiritual,

e não só após o longuíssimo prazo de proteção, mas também durante o prazo de

proteção, reservando sufi cientes usos incondicionados e livres.

Os criadores, os destinatários e os empresários da cultura clamam, justifi cadamente,

por segurança jurídica como condição para a ampla circulação dos bens culturais e

maior densidade econômica da atividade. Contudo, a própria segurança jurídica, cara à

atividade econômica, depende do equilíbrio na representação dos interesses, sob pena

de ver-se deslegitimada e conscientemente desobedecida.

Devem ser aperfeiçoados os instrumentos que ampliem a segurança jurídica156,

sem que seja olvidado que em um Estado Democrático de Direito, como impõe a

Constituição Federal, a almejada segurança jurídica somente será assegurada com uma

representação justa dos diversos interesses legítimos no marco legal ordinário.

A segurança jurídica, portanto, depende do equilíbrio dos interesses projetados na

legislação.

155 Eduardo Vieira Manso, antes mesmo da CF/88, aponta que “o fundamento jurídico do Direito Autoral reside no interesse

público de toda obra do engenho humano que, sendo original ou criativa, ou ambas, corresponda a uma parcela

de manifestação da sociedade em que foi gerada. [...] O interesse público que há sobre e por toda obra intelectual é que

fundamenta a extensão das prerrogativas próprias de seu autor. [...] Esse interesse público, de outro público, fundamenta e

justifi ca as ressalvas, as exceções que se impõem aos autores quanto a determinados usos – inclusive para fi ns econômicos –

de sua obra, para permitir e possibilitar que ela efetivamente cumpra o seu papel cultural e realize sua função social.” MANSO,

Eduardo Vieira. Direito Autoral. São Paulo: José Bushatsky, 1980. p. 24-25.

156 Um exemplo é garantir ao produtor audiovisual a titularidade original dos direitos patrimoniais da obra resultante.

Page 216: Propriedade Intelectual nos Países de Língua Portuguesanit.uesc.br/.../files/livros/Propiedade-Intelectual... · propriedade intelectual e o uso da informação tecnológica contida

215

A atual legislação, porém, contraria a história da matéria e confronta os

mandamentos constitucionais fundamentais de proteção ampla à pessoa, suas

expressões e sua formação (incluindo o acesso incondicionado aos bens essenciais à

sua formação), permitindo uma expansão exacerbada dos interesses dos titulares em

prejuízo dos interesses dos elos realmente essenciais: o criador e o público.

O gritante desequilíbrio é a causa da ilegitimidade social dessa legislação e do

amplo desrespeito às suas determinações.

A excessiva concentração da titularidade em poucas entidades empresariais e o

obsessivo controle dos usos – inclusive os não comerciais – que querem estas poucas

entidades exercer conduzem a um desvio funcional e estrutural injustifi cado do foco da

proteção das obras artístico-culturais.

Os direitos de remuneração equitativa dos criadores, pessoas físicas, não é

assegurado, deixando à liberdade negocial a tarefa de garantir a representatividade dos

interesses. O desequilíbrio – econômico, jurídico e político – de forças é refl etido nos

contratos em que todos os direitos são cedidos sem razoável contraprestação. Sequer

a garantia de ampla distribuição – dever legal e contratual, além de razão de existir

dos intermediários – é assegurada. São muitas as manifestações dos autores sobre a

assimetria das relações e suas consequências (baixa remuneração aos autores e altos

lucros aos empresários da cultura), bem como sobre a necessidade de uma correção157.

Ao mesmo tempo em que os autores e artistas são economicamente oprimidos, o

livre exercício dos direitos transindividuais à educação e cultura é fortemente ameaçado

pelo alcance que os titulares – majoritariamente não autores – querem atribuir à

proteção patrimonial, apropriando-se de usos consagradamente livres158.

Como a própria atividade de aprender, comunicar-se e interagir demanda acesso,

cópia, reprodução, representação, a sua restrição ou impedimento carece de justifi cativa

e ofende os valores constitucionais e humanos vigentes, gerando um forte sentimento

de injustiça e uma resistência ao cerceamento de um direito fundamental, essencial à

formação da própria pessoa como ser social159.

157 Ver, por exemplo, as apresentações nos Seminários do MinC, ocasião em que os autores puderam livremente expor suas

difi culdades e carências.

158 Um interessante exemplo disso é a interpretação que se quer forçosamente atribuir ao art. 46 da Lei do Direito Autoral –

LDA, que trata, junto com os artigos 47 e 48, dos limites da exclusividade privada. Pretendem os titulares que o artigo 46 seja

interpretado restritivamente. Essa visão não coaduna com uma interpretação sistemática e teleológica do Direito, prendendo-

se a uma perspectiva do positivismo novecentocentista de interpretação literal ou gramatical, na contramão dos movimentos

de atualização já dominantes no Direito Contemporâneo.

159 A Organização Mundial de Saúde - OMS entende que o ser humano saudável é aquele que é física, mental e socialmente

ajustado e, para tanto, é fundamental que possa participar incondicional e ativamente das relações socioculturais que desejar.

Ver o conceito de saúde no documento de Constituição da OMS, disponível em http://www.who.int/governance/eb/who_

constitution_en.pdf

Page 217: Propriedade Intelectual nos Países de Língua Portuguesanit.uesc.br/.../files/livros/Propiedade-Intelectual... · propriedade intelectual e o uso da informação tecnológica contida

216

As omissões e inexatidões da legislação permitem ainda que, mediante beligerância

e ameaça, as organizações de titulares utilizem o seu poder econômico, político e jurídico

para construir, impor e efetivar uma verdadeira legislação privada, e, por meio desses

métodos, ilegitimamente e injustifi cadamente expropriam direitos alheios, privatizando

direitos fundamentais individuais e sociais.

Essa apropriação privada se dá tanto com relação aos direitos patrimoniais dos

criadores – ao impor-lhes condições contratuais abusivas, sob pena de exclusão do

mercado cultural – como do público – ao constantemente ameaçá-lo com ações

judiciais, aproveitando-se do desconhecimento específi co do tema para impedir que os

cidadãos legitimamente exerçam seus direitos à cultura e educação e utilizem os bens

culturais ou tenham acesso ao seu conteúdo – conteúdo que, deve-se sempre lembrar,

não é protegido pelos direitos autorais, que apenas protegem a expressão, ou seja, a

forma extrínseca da criação.

Na ausência de defi nição, regulação e atuação do Estado, cria-se um espaço fértil

para o fl orescimento do condicionamento privado do comportamento e da defi nição

particular das regras de convivência social, decorrentes do uso inapropriado e ilegítimo

da força e ameaças – econômicas e jurídicas – por parte dos titulares ou pelas entidades

de titulares160.

Os desequilíbrios contidos na Lei nº 9.610/98 têm causado inúmeros confl itos sociais

e jurídicos desde a sua promulgação, que se têm acentuado nos últimos tempos161.

Resta claro que as demandas para uma atuação legislativa corretiva são fortes e

sua urgência, imediata. Os desequilíbrios no sistema são gritantes e precisam ser logo

corrigidos para que os problemas não se agravem. É necessário fortalecer os dois únicos

interesses essenciais e fundamentais do sistema – autores e usuários – que se encontram

ilegítima e abusivamente restringidos em prol dos interesses puramente mercantis dos

empresários culturais ou das agências e associações de arrecadação de direitos.

Para se alcançar o tão almejado equilíbrio, basta o reconhecimento da natureza

fundamental desses direitos e sua inclusão na legislação ordinária que controla a

circulação e usos das obras artístico-culturais.

160 Um paralelo disso se observa cotidianamente nos jornais, ao tratarem das milícias que dividem, com o tráfi co de drogas e

armas, o domínio de vastas regiões do Rio de Janeiro, em detrimento da segurança, da justiça e da própria legitimidade do

Estado. A persistirem os desequilíbrios e a ausência do Estado na regulação do exercício justo dos direitos autorais, estamos

condenados a vivenciar, ao lado da verdadeira pirataria – que é organizada, comercial e concorrencial –, o surgimento de

novas milícias, comandadas pelas poderosas e autointeressadas associações de titulares, com o objetivo principal de impedir

qualquer utilização social livre dos bens artístico-culturais e de cercear ao máximo a concretização dos direitos fundamentais

à educação, cultura e conhecimento.

161 O crescente número de ações judiciais, o alto índice de inadimplência no pagamento de direitos e a articulação de

entidades de defesa dos direitos dos usuários são todos exemplos dessa situação confl ituosa que se vivencia.

Page 218: Propriedade Intelectual nos Países de Língua Portuguesanit.uesc.br/.../files/livros/Propiedade-Intelectual... · propriedade intelectual e o uso da informação tecnológica contida

217

2. FUNDAMENTOS JURÍDICOS DOS DIREITOS DA SOCIEDADE

Os direitos à educação e cultura estão expressos na Constituição Federal do Brasil

e nos tratados internacionais de direitos fundamentais, sendo seus efeitos sobre os

direitos autorais, no plano internacional, limitados apenas pelo “teste dos três passos”

da Convenção de Berna e do Acordo sobre Aspectos dos Direitos de Propriedade

Intelectual relacionados ao Comércio – ADPIC/TRIPS.

Esses direitos fundamentais sociais – educação, cultura e comunicação – que

condicionam e limitam os direitos econômicos dos titulares – autores ou não – de obras

artístico-culturais estão positivados em nosso ordenamento, são de concretização

contínua e obrigatória e são qualifi cados como preceitos máximos e inexpugnáveis do

ordenamento, sendo de cumprimento compulsório.

As restrições a esses direitos sociais – seja pelos direitos autorais ou por outros

motivos – são igualmente limitadas, não podendo ser incompatíveis com sua natureza

e devendo ser legislativamente expressas, com o objetivo único de favorecer o bem

estar geral162.

Além de constarem expressamente nos artigos 6º, 205, 206, 215, 216, 218 e 221

da Constituição Federal do Brasil, os direitos à educação e cultura são consequências

inevitáveis da ampla proteção à pessoa, em todas as suas dimensões, em sua dignidade,

que é um dos fundamentos essenciais da República, conforme positivado no art. 1º,

inciso III, do mesmo ordenamento163. Além do mais, a construção de uma sociedade

livre, justa e solidária é um dos objetivos da República, o que, por si só, já impõe que

as legislações ordinárias, como a Lei do Direito Autoral – LDA, refl itam e tenham por

princípios tanto a liberdade como a justiça e solidariedade164.

É primordial compreender que a própria liberdade individual só é possível mediante

o respeito a esses direitos sociais165. A proteção total e integral à pessoa humana implica

tanto a liberdade de expressão, inclusive artística, quanto a utilização e acesso aos bens

essenciais à sua integridade físico-psico-social, dentre os quais os bens artístico-culturais.

162 Art. 4º do Pacto Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais (1966): “Os Estados partes do presente Pacto

reconhecem que, no exercício dos direitos assegurados em conformidade com o presente Pacto pelo Estado, este poderá

submeter tais direitos unicamente às limitações estabelecidas em lei, somente na medida compatível com a natureza desses

direitos e exclusivamente com o objetivo de favorecer o bem-estar geral em uma sociedade democrática”.

163 Constituição Federal do Brasil, art. 1º: “A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e

Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos: I - a soberania; II - a

cidadania; III - a dignidade da pessoa humana”.

164 Ibid., art. 3º: “Constituem objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil: I - construir uma sociedade livre, justa

e solidária”.

165 Essa afi rmação é premissa do Pacto dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, deriva da própria Declaração Universal dos

Direitos Humanos e é ratifi cada no Pacto de São José da Costa Rica.

Page 219: Propriedade Intelectual nos Países de Língua Portuguesanit.uesc.br/.../files/livros/Propiedade-Intelectual... · propriedade intelectual e o uso da informação tecnológica contida

218

Encontram-se igualmente positivados nos principais tratados internacionais de

direitos fundamentais, que recebem apreço especial em nosso ordenamento, por força

dos §§ 2º166 e 3º167 da Constituição Federal do Brasil168, e cuja aplicação é imediata, por

força do § 1º169.

Dentre os tratados internacionais de direitos fundamentais ratifi cados pelo Brasil

e de aplicação direta às questões aqui abordadas, podemos destacar a Declaração

Universal dos Direitos Humanos, o Pacto dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais e

o Pacto de São José da Costa Rica.

A Declaração Universal dos Direitos Humanos aborda no mesmo artigo tanto o

direito à proteção quanto o direito de acesso, impondo sua conjunção170.

O Pacto dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais – ratifi cado pelo Decreto nº

591/1992 –, em seu preâmbulo, após reconhecer que esses direitos sociais derivam

da própria dignidade humana171, afi rma que o ideal de um homem livre não pode ser

realizado sem que seja possível concretizar os direitos econômicos, sociais e culturais,

bem como os civis e políticos172. Acrescenta ainda que todos – sem isentar nem autores

nem, muito menos, titulares não autores – devem contribuir para a concretização desses

direitos e da própria dignidade173.

166 “§ 2º - Os direitos e garantias expressos nesta Constituição não excluem outros decorrentes do regime e dos princípios por

ela adotados, ou dos tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte”.

167 “§ 3º - Os tratados e convenções internacionais sobre direitos humanos que forem aprovados, em cada Casa do

Congresso Nacional, em dois turnos, por três quintos dos votos dos respectivos membros, serão equivalentes às emendas

constitucionais”.

168 Os §§ 3º e 4º do art. 5º foram acrescidos por força da Emenda Constitucional 45/04.

169 “§ 1º - As normas defi nidoras dos direitos e garantias fundamentais têm aplicação imediata”.

170 “27.1.: Todo homem tem o direito de participar livremente da vida cultural da comunidade, de fruir as artes e de participar

do progresso científi co e de fruir de seus benefícios. 27.2.: Todo homem tem direito à proteção dos interesses morais e

materiais decorrentes de qualquer produção científi ca, literária ou artística da qual seja autor”.

171 “Reconhecendo que esses direitos decorrem da dignidade inerente à pessoa humana”.

172 “Reconhecendo que, em conformidade com a Declaração Universal dos Direitos do Homem, o ideal do ser humano livre,

liberto do temor e da miséria, não pode ser realizado a menos que se criem condições que permitam a cada um gozar de seus

direitos econômicos, sociais e culturais, assim como de seus direitos civis e políticos.”

173 “Compreendendo que o indivíduo por ter deveres para com seus semelhantes e para com a coletividade a que pertence,

tem a obrigação de lutar pela promoção e observância dos direitos reconhecidos no presente Pacto (...)”

Page 220: Propriedade Intelectual nos Países de Língua Portuguesanit.uesc.br/.../files/livros/Propiedade-Intelectual... · propriedade intelectual e o uso da informação tecnológica contida

219

Esse instrumento igualmente aponta os limites da restrição ao exercício desses

direitos sociais174 e a essencialidade dos direitos fundamentais à educação175 e cultura176

para a completude da dignidade e do próprio exercício da liberdade, e seu caráter de

obrigatoriedade é reforçado.

O Pacto de São José da Costa Rica – documento internacional de Direitos Humanos

das Américas – confi rma, logo em seu preâmbulo, que o ideal de liberdade só poderá

ser alcançado quando as condições permitirem que cada pessoa possa usufruir de

seus direitos individuais e sociais177. Igualmente reafi rmado é o direito de liberdade de

expressão e da livre circulação de ideias e informações178. Concretiza a obrigatoriedade

de sua efetivação progressiva, a ser alcançada por meio de diversos instrumentos,

inclusive a utilização da via legislativa179.

174 “Art. 4º: Os Estados partes do presente Pacto reconhecem que, no exercício dos direitos assegurados em conformidade

com o presente Pacto pelo Estado, este poderá submeter tais direitos unicamente às limitações estabelecidas em lei, somente

na medida compatível com a natureza desses direitos e exclusivamente com o objetivo de favorecer o bem-estar geral em

uma sociedade democrática”.

175 “Art. 13: Os Estados Partes do presente Pacto reconhecem o direito de toda pessoa à educação. Concordam em que a

educação deverá visar o pleno desenvolvimento da personalidade humana e do sentido de sua dignidade e fortalecer o

respeito pelos direitos humanos e liberdades fundamentais. Concordam ainda em que a educação deverá capacitar todas

as pessoas a participar efetivamente de uma sociedade livre, favorecer a compreensão, a tolerância e a amizade entre todas

as nações e entre todos os grupos raciais, étnicos ou religiosos e promover as atividades das Nações Unidas em prol da

manutenção da paz”.

176 “Art. 15, 1. Os Estados Partes do presente Pacto reconhecem a cada indivíduo o direito de: a) Participar da vida cultural; b)

desfrutar o progresso científi co e suas aplicações; c) benefi ciar-se da proteção dos interesses morais e materiais decorrentes

de toda a produção científi ca, literária ou artística de que seja autor. 2. As medidas que os Estados Partes do presente

Pacto deverão adotar com a fi nalidade de assegurar o pleno exercício desse direito aquelas necessárias à conservação, ao

desenvolvimento e à difusão da ciência e da cultura. 3. Os Estados Partes do presente Pacto comprometem-se a respeitar

a liberdade indispensável à pesquisa científi ca e à atividade criadora. 4. Os Estados Partes do presente Pacto reconhecem

os benefícios que derivam do fomento e do desenvolvimento da cooperação e das relações internacionais no domínio da

ciência e da cultura”.

177 Reiterando que, de acordo com a Declaração Universal dos Direitos Humanos, só pode ser realizado o ideal do ser

humano livre, isento do temor e da miséria, se forem criadas condições que permitam a cada pessoa gozar dos seus direitos

econômicos, sociais e culturais, bem como dos seus direitos civis e políticos.

178 “Art. 13 – Liberdade de Pensamento e Expressão: § 1. Toda pessoa tem o direito à liberdade de pensamento e de expressão.

Esse direito inclui a liberdade de procurar, receber e difundir informações e ideias de qualquer natureza, sem considerações

de fronteiras, verbalmente ou por escrito, ou em forma impressa ou artística, ou por qualquer meio de sua escolha. (...) § 5. Não

se pode restringir o direito de expressão por vias e meios indiretos, tais como o abuso de controles ofi ciais ou particulares de

papel de imprensa, de frequências radioelétricas ou de equipamentos e aparelhos usados na difusão de informação, nem por

quaisquer outros meios destinados a obstar a comunicação e a circulação de ideias e opiniões”.

179 “Art 15: Os Estados-Membros comprometem-se a adotar as providências, tanto no âmbito interno, como mediante

cooperação internacional, especialmente econômica e técnica, a fi m de conseguir progressivamente a plena efetividade

dos direitos que decorrem das normas econômicas, sociais e sobre educação, ciência e cultura, constantes da Carta da

Organização dos Estados Americanos, reformada pelo Protocolo de Buenos Aires, na medida dos recursos disponíveis, por via

legislativa ou por outros meios apropriados”.

Page 221: Propriedade Intelectual nos Países de Língua Portuguesanit.uesc.br/.../files/livros/Propiedade-Intelectual... · propriedade intelectual e o uso da informação tecnológica contida

220

A esses tratados devemos acrescer ainda as recentes Declaração Universal sobre a

Diversidade Cultural e Convenção para Promoção e Preservação da Diversidade Cultural.

A Declaração, que foi aprovada na 31ª Assembleia Geral em novembro de 2001,

antecedeu a Convenção propriamente dita. Seu principal efeito é a consolidação, no plano

internacional, do direito fundamental à cultura180. Isso é obtido pelo reconhecimento

internacional de sua relevância e encontra-se expresso nos seus termos, por meio dos

quais as questões são apresentadas181. Traz também importante afi rmação quanto à

essencialidade e especialidade dos bens artístico-culturais, o que afeta como deve ser

compreendida a proteção proprietária privada a esses bens concedida182. Informa ainda,

como parte do plano de ação, o caráter fundamental do direito à cultura183 e insiste na

necessidade de equilibrá-lo com os direitos autorais, preservando o máximo de ambos,

como já demandara a Declaração Universal dos Direitos Humanos184.

180 “Art. 5º: Os direitos culturais são partes integrantes dos direitos humanos, que são universais, indissociáveis e interdependentes.

O desenvolvimento de uma diversidade criativa exige a plena realização dos direitos culturais, tal como os defi ne o Artigo

27 da Declaração Universal de Direitos Humanos e os artigos 13 e 15 do Pacto Internacional de Direitos Econômicos, Sociais

e Culturais. Toda pessoa deve, assim, poder expressar-se, criar e difundir suas obras na língua que deseje e, em partícular, na

sua língua materna; toda pessoa tem direito a uma educação e uma formação de qualidade que respeite plenamente sua

identidade cultural; toda pessoa deve poder participar na vida cultural que escolha e exercer suas próprias práticas culturais,

dentro dos limites que impõe o respeito aos direitos humanos e às liberdades fundamentais”.

181 É de salutar leitura o preâmbulo, que sintetiza as razões e justifi cativas: “Reafi rmando seu compromisso com a plena

realização dos direitos humanos e das liberdades fundamentais proclamadas na Declaração Universal dos Direitos Humanos e

em outros instrumentos universalmente reconhecidos, como os dois Pactos Internacionais de 1966 relativos respectivamente,

aos direitos civis e políticos e aos direitos econômicos, sociais e culturais, Recordando que o Preâmbulo da Constituição da

UNESCO afi rma ‘(...) que a ampla difusão da cultura e da educação da humanidade para a justiça, a liberdade e a paz são

indispensáveis para a dignidade do homem e constituem um dever sagrado que todas as nações devem cumprir com um

espírito de responsabilidade e de ajuda mútua’, Recordando também seu Artigo primeiro, que designa à UNESCO, entre outros

objetivos, o de recomendar ‘os acordos internacionais que se façam necessários para facilitar a livre circulação das ideias por

meio da palavra e da imagem’, Referindo-se às disposições relativas à diversidade cultural e ao exercício dos direitos culturais

que fi guram nos instrumentos internacionais promulgados pela UNESCO, Reafi rmando que a cultura deve ser considerada

como o conjunto dos traços distintivos espirituais e materiais, intelectuais e afetivos que caracterizam uma sociedade ou

um grupo social e que abrange, além das artes e das letras, os modos de vida, as maneiras de viver juntos, os sistemas de

valores, as tradições e as crenças, Constatando que a cultura se encontra no centro dos debates contemporâneos sobre a

identidade, a coesão social e o desenvolvimento de uma economia fundada no saber, Afi rmando que o respeito à diversidade

das culturas, à tolerância, ao diálogo e à cooperação, em um clima de confi ança e de entendimento mútuos, estão entre as

melhores garantias da paz e da segurança internacionais, Aspirando a uma maior solidariedade fundada no reconhecimento

da diversidade cultural, na consciência da unidade do gênero humano e no desenvolvimento dos intercâmbios culturais,

Considerando que o processo de globalização, facilitado pela rápida evolução das novas tecnologias da informação e da

comunicação, apesar de constituir um desafi o para a diversidade cultural, cria condições de um diálogo renovado entre as

culturas e as civilizações, Consciente do mandato específi co confi ado à UNESCO, no seio do sistema das Nações Unidas, de

assegurar a preservação e a promoção da fecunda diversidade das culturas”.

182 “Art. 8º: Frente às mudanças econômicas e tecnológicas atuais, que abrem vastas perspectivas para a criação e a inovação,

deve-se prestar uma particular atenção à diversidade da oferta criativa, ao justo reconhecimento dos direitos dos autores e

artistas, assim como ao caráter específi co dos bens e serviços culturais que, na medida em que são portadores de identidade,

de valores e sentido, não devem ser considerados como mercadorias ou bens de consumo como os demais”.

183 “4. Avançar na compreensão e no esclarecimento do conteúdo dos direitos culturais, considerados como parte integrante

dos direitos humanos”.

184 “16. Garantir a proteção dos direitos de autor e dos direitos conexos, de modo a fomentar o desenvolvimento da criatividade

contemporânea e uma remuneração justa do trabalho criativo, defendendo, ao mesmo tempo, o direito público de acesso à

cultura, conforme o Artigo 27 da Declaração Universal de Direitos Humanos”.

Page 222: Propriedade Intelectual nos Países de Língua Portuguesanit.uesc.br/.../files/livros/Propiedade-Intelectual... · propriedade intelectual e o uso da informação tecnológica contida

221

A qualifi cação desses tratados no ordenamento nacional passa por um processo

de mudança, cujo marco político foi a Emenda Constitucional nº 45, de 2004. O marco

judicial dessa transformação está sendo revisto a partir do Recurso Extraordinário nº

466.343.

Esse julgamento é de extrema relevância também para os demais Poderes da

República, no cumprimento do dever constitucional de realizar os direitos fundamentais

até então não sufi cientemente considerados na proteção autoral.

O Supremo Tribunal Federal, em síntese, coloca que sua interpretação sobre o papel

dos direitos fundamentais originados dos tratados internacionais deve ser alterada e

adequada a uma posição equitativa aos demais Direitos Fundamentais, signifi cando

que os tratados de direitos fundamentais devem passar a ter, então, uma posição

intermediária, supralegal, entre a Constituição e as demais leis ordinárias185.

Tal mudança resulta da “premente necessidade de se dar efetividade à proteção

dos direitos humanos nos planos interno e internacional”, que “torna imperiosa uma

mudança de posição quanto ao papel dos tratados internacionais sobre os direitos na

ordem jurídica nacional”. Conclui-se que “diante do inequívoco caráter especial dos

tratados internacionais que cuidam da proteção dos direitos humanos, não é difícil

entender que a sua internalização no ordenamento jurídico por meio de procedimento

de ratifi cação previsto na Constituição tem o condão de paralisar a efi cácia jurídica, de

toda e qualquer disciplina infraconstitucional com ela confl itante”, complementando:

“tendo em vista o caráter supra legal desses diplomas normativos internacionais, a

legislação infraconstitucional posterior que com ele seja confl itante, também tem a sua

efi cácia paralisada. Isso ocorre também com toda legislação anterior” 186.

Nesse sentido, todos os tratados internacionais, inclusive os que versam sobre os

direitos fundamentais sociais – cultura, educação e informação – tornam-se imperiosos

na nossa ordem jurídica, tanto quanto os direitos individuais, e os efeitos da concretização

desses direitos sobre os direitos autorais deverão ser avaliados política e juridicamente,

de forma a preservar o máximo de ambos na conformação dos limites de cada um

desses conjuntos em face do outro.

Essa decisão traz a superação de um suposto confl ito, de uma dicotomia entre os

direitos fundamentais individuais e sociais, permitindo a integração dos interesses que

revolvem em torno da pessoa humana.

185 RE 466.343. Voto Gilmar Mendes, p 16: “Em outros termos, os tratados sobre direitos humanos não poderiam afrontar a

supremacia da Constituição, mas teriam lugar especial reservado no ordenamento jurídico. Equipará-los à legislação ordinária

seria subestimar o seu valor especial no contexto do sistema de proteção dos direitos da pessoa humana”.

186 Ibidem, p. 26 e ss.

Page 223: Propriedade Intelectual nos Países de Língua Portuguesanit.uesc.br/.../files/livros/Propiedade-Intelectual... · propriedade intelectual e o uso da informação tecnológica contida

222

Como apontado, os tratados internacionais que regulamentam a propriedade

intelectual (e em especial os Direitos Autorais) preveem os critérios dentro dos quais

os países podem estabelecer livremente os limites da proteção. Tanto a Convenção de

Berna como o ADPIC/TRIPS estabelecem o “teste dos três passos” como o padrão de

conformação dos limites da proteção, padrão este que os países se comprometem a

respeitar.

O acordo TRIPS defi ne ainda, entre os seus objetivos, a necessidade – segundo

alguns, a obrigatoriedade – de equilíbrio entre os direitos patrimoniais dos titulares

de propriedade intelectual e os interesses da coletividade187. Quando se expõem os

princípios que pautam a proteção, é reiterada a liberdade dos Estados-Membros de

promover o interesse público e evitar o abuso dos titulares188.

Portanto, desde que se obedeça aos limites impostos pelo “teste dos três passos”,

podem e devem os Estados estabelecer o equilíbrio entre os interesses público e

privado.

Os citados três passos demandam que o estabelecimento de espaços de usos

livres pelas legislações nacionais deve obedecer aos seguintes limites: (1) sejam casos

especiais; (2) não prejudiquem a exploração normal da obra; e (3) não causem prejuízo

injustifi cado ao titular.

Obviamente, a interpretação desses limites internacionais impostos não pode ser

tal que desvirtue do contexto sistêmico em que está inserido o “teste dos três passos”

– pois o equilíbrio entre os interesses públicos e privados é essencial e indispensável,

conforme positivado nos próprios tratados189.

Por conseguinte, a interpretação do “teste dos três passos” deve ser direcionada

a alcançar o equilíbrio entre os interesses econômicos do titular e os de acesso a bens

essenciais da sociedade, sob pena de se desvirtuarem os seus objetivos primordiais.

187 “Art. 7º: A proteção e a aplicação de normas de proteção dos direitos de propriedade intelectual devem contribuir para

a promoção da inovação tecnológica e para a transferência e difusão de tecnologia, em benefício mútuo de produtores e

usuários de conhecimento tecnológico e de uma forma conducente ao bem-estar social econômico e a um equilíbrio entre

direitos e obrigações”.

188 “Art. 8º: 1. Os Membros, ao formular ou emendar suas leis e regulamentos, podem adotar medidas necessárias para proteger

a saúde e nutrição públicas e para promover o interesse público em setores de importância vital para seu desenvolvimento

socioeconômico e tecnológico, desde que estas medidas sejam compatíveis com o disposto neste Acordo. 2. Desde que

compatíveis com o disposto neste Acordo, poderão ser necessárias medidas apropriadas para evitar o abuso dos direitos de

propriedade intelectual por seus titulares ou para evitar o recurso a práticas que limitem de maneira injustifi cável o comércio

ou que afetem adversamente a transferência internacional de tecnologia”.

189 Nesse sentido, a “Declaração sobre o Teste dos Três Passos do Direito de Autor”, de autoria de Christophe Geiger, Jonathan

Griffi ths e Reto M. Hilty, elaborada em conjunto entre o Instituto Max Planck de Propriedade Intelectual e a Queen Mary

University, é esclarecedora. Encontra-se disponível para assinatura no sítio eletrônico do Instituto Max Planck.

Page 224: Propriedade Intelectual nos Países de Língua Portuguesanit.uesc.br/.../files/livros/Propiedade-Intelectual... · propriedade intelectual e o uso da informação tecnológica contida

223

Recorde-se, ainda, que a Constituição Federal do Brasil demanda que qualquer

propriedade atenda à sua função social190, sendo indiscutível a necessidade e

obrigatoriedade de ampliação dos espaços de liberdade de utilização das obras artístico-

culturais, de maneira que não se impeça ou difi culte o exercício e concretização dos

direitos fundamentais à educação e cultura.

Alcançar uma composição equilibrada entre os interesses fundamentais em

jogo é o desafi o mais urgente dos Poderes da República no que concerne à proteção

jurídica dos direitos autorais. O fracasso em alcançar esse equilíbrio signifi cará a redução

injustifi cada dos direitos fundamentais dos cidadãos à educação e cultura e uma falha

dos poderes em realizar suas obrigações constitucionais de progressiva concretização

desses direitos.

3. OS USOS LIVRES FUNDAMENTAIS

A legislação ordinária vigente mostra-se incapaz de harmonizar o conjunto de

interesses que devem, obrigatoriamente, ser refl etidos na lei ordinária.

Esse processo de relativização das propriedades, imposto pela Carta Magna,

deve ser consignado via legislação ordinária, que necessita obedecer ao princípio da

proporcionalidade191.

Uma interpretação literal, ou pouco informada, da legislação em vigor resultaria

em uma desproporcionalidade gritante. A ostensiva difusão dessa visão pelos titulares e

suas organizações confi gura uma forma de apropriação privada dos espaços públicos,

para o qual utilizam argumentos de autoridade e ameaças visando impor privadamente

os limites públicos que acharem convenientes.

190 Sobre esse aspecto, vale a refl exão do Ministro Gilmar Mendes, em seu voto no RE 466.343, p. 46 e ss.: “Sobre o direito

de propriedade, pode-se afi rmar que eventual redução legal das faculdades a ele inerentes pode ser vista sob uma dupla

perspectiva: para o futuro, cuida-se de uma nova defi nição do direito de propriedade; em relação ao direito fundado no

passado, tem-se uma nítida restrição. [...] Inexiste, todavia, um conceito constitucional fi xo, estático, de propriedade, afi gurando-

se, fundamentalmente, legítimas não só as novas defi nições de conteúdo como a fi xação de limites destinados a garantir a

sua função social. É que, embora não aberto, o conceito constitucional de propriedade há de ser necessariamente dinâmico.

Nesse passo, deve-se reconhecer que a garantia constitucional da propriedade está submetida a um processo de relativização,

sendo interpretada, fundamentalmente, de acordo com parâmetros fi xados pela legislação ordinária. As disposições legais

relativas ao conteúdo têm, portanto, inconfundível caráter constitutivo. Isso não signifi ca, porém, que o legislador possa

afastar os limites constitucionalmente estabelecidos. A defi nição desse conteúdo pelo legislador há de preservar o

direito de propriedade enquanto garantia institucional. Ademais, as limitações impostas ou as novas conformações

conferidas ao direito de propriedade hão de observar especialmente o princípio da proporcionalidade, que exige que

as restrições legais sejam adequadas, necessárias e proporcionais. Como acentuado pelo Bundesverfassungsgericht, a faculdade

confi ada ao legislador de regular o direito de propriedade obriga-o a “compatibilizar o espaço de liberdade do indivíduo no

âmbito da ordem de propriedade com o interesse da comunidade”. Essa necessidade de ponderação entre o interesse individual

e o interesse da comunidade é, todavia, comum a todos os direitos fundamentais, não sendo uma especifi cidade do direito

de propriedade. [...] Vê-se, pois, que o legislador dispõe de uma relativa liberdade na defi nição do conteúdo da propriedade e

na imposição de restrições. Ele deve preservar, porém, o núcleo essencial (Wesensgehalt) do direito, constituído pela utilidade

privada e, fundamentalmente, pelo poder de disposição. A vinculação social da propriedade, que legitima a imposição de

restrições, não pode ir ao ponto de colocá-la, única e exclusivamente, a serviço do Estado ou da comunidade”.

191 Como exposto pelo atual Presidente do STF, Ministro Gilmar Mendes, no RE 466.343, supracitado.

Page 225: Propriedade Intelectual nos Países de Língua Portuguesanit.uesc.br/.../files/livros/Propiedade-Intelectual... · propriedade intelectual e o uso da informação tecnológica contida

224

Isso ocorre, por exemplo, com relação à interpretação dos limites à proteção

patrimonial dos direitos autorais, estabelecidos no art. 46 e seguintes da LDA, que

insistem em dizer ser restritiva, quando a única solução juridicamente possível é a sua

interpretação extensiva.

Os diversos usos das obras artístico-culturais podem ser classifi cados em quatro

grandes categorias, que são:

(1) os usos patrimoniais reservados e privados, que dependem de autorização

prévia do titular e pagamento;

(2) os usos livres que independem de autorização, mas em que se deve compensar

os autores e titulares, pois, pelo impacto comercial que causam, geram uma

diminuição injustifi cada do potencial de rendimento econômico;

(3) os usos livres que, sem fi nalidade lucrativa, e com objetivos de concretização

de direitos fundamentais à educação e cultura, independem de remuneração ao

autor ou titular;

(4) os usos lícitos e incondicionais, inclusive para fi ns comerciais. Nesse campo

têm-se as obras em domínio público.

A nossa legislação prevê apenas três tipos de usos: patrimoniais privados e

reservados; livres, mas restritos às fi nalidades de concretização de direitos fundamentais

sociais (embora estes estejam insufi cientemente previstos); e o das obras totalmente livres.

Ainda não se encontra incorporada em nosso ordenamento a regulação das situações

em que os usos devam ser livres, mas condicionados ao pagamento de direitos.

Contudo, a preocupação principal desta exposição é com a indevida apropriação

dos usos livres que objetivam a efetivação de direitos fundamentais essenciais e o

relevante interesse público em jogo.

É inadiável a construção e preservação desses espaços de liberdade, em que a

própria cidadania cultural é construída. Ignorar o dever de construção destes espaços

– inclusive jurídicos – de liberdade é ignorar os deveres constitucionamente impostos

e relegar à inefetividade direitos fundamentais essenciais à própria formação da pessoa

humana. Dentre as diversas difi culdades concernentes, destacam-se:

(1) O ARQUIVAMENTO E PRESERVAÇÃO DO CONTEÚDO DA OBRA ARTÍSTICO-CULTURAL ORIGINAL,

AINDA QUE COM FINALIDADE HISTÓRICA.

Isso acontece atualmente, por exemplo, com a Biblioteca Nacional, cuja principal

função legal de arquivamento e preservação encontra-se ameaçada e seus dirigentes e

funcionários temem problemas jurídicos decorrentes do simples cumprimento de seu

dever profi ssional.

Page 226: Propriedade Intelectual nos Países de Língua Portuguesanit.uesc.br/.../files/livros/Propiedade-Intelectual... · propriedade intelectual e o uso da informação tecnológica contida

225

De forma semelhante, mesmo o exercício dos direitos fundamentais básicos do

consumidor, garantidos na Constituição Federal, estão ameaçados, como ocorre, por

exemplo, com o simples arquivamento de obras ou a sua inserção em bancos de dados

privados não disponibilizados publicamente, a exemplo da inclusão, em uma biblioteca

virtual particular, das músicas de um CD adquirido legitimamente; ou, ainda, quando se

quer ouvir música legitimamente adquirida em tocadores digitais de música (MP3, MP4

- dispositivos atuais equivalentes ao antigo walk-man);

(2) OS USOS DIDÁTICOS DAS OBRAS PROTEGIDAS EM AMBIENTE DE ENSINO.

Isso ocorre, por exemplo, com os livros de edição esgotada ou de difícil acesso,

mas de uso essencial ao ensino ou pesquisa, condição para o aperfeiçoamento pessoal

e profi ssional do cidadão e que não pode depender dos desejos dos titulares.

Mesmo o uso de material audiovisual, por não estar expressamente previsto, é

entendido pelos titulares como sendo não autorizado, ainda que seja contemplada a

utilização de obras musicais e teatrais;

(3) A PROMOÇÃO REGULAR E INCONDICIONAL DA VIDA SOCIOCULTURAL DA NAÇÃO, COM A NECES-

SÁRIA UTILIZAÇÃO – SEMPRE NÃO COMERCIAL - DAS OBRAS ESSENCIAIS À FORMAÇÃO CULTURAL

BRASILEIRA E HUMANÍSTICA.

A ocorrência de espaços de interação que possibilitem a participação de todos os

cidadãos na vida sociocultural da nação é imperativa para que todos possam agir no

processo de construção dos signifi cados culturais.

Essas atividades, que se desenrolam em espaços comunitários, preservam

tradições, garantem a diversidade cultural, promovem novas formas de expressão e,

mais importante, permitem a inclusão de cidadãos na construção social dos signifi cados

culturais que balizam as identidades.

São promovidas, por exemplo, em cineclubes, grupos amadores de teatro, serestas

informais, festejos culturais locais, espaços e centros comunitários, instituições de ensino

e outros;

(4) A ADAPTAÇÃO PLENA DONS BENS CULTURAIS PARA USO POR DEFICIENTES, SEJAM ELES AUDITI-

VOS, MOTORES OU MESMO VISUAIS;

Contemplando as obras cuja liberdade de uso é plena, podendo, por isso, serem

utilizadas para qualquer fi nalidade – inclusive exploração econômica –, resta igualmente

evidente a urgência de ampliar o rol das que compõem essa categoria, acrescentando ao

domínio público as obras abandonadas ou órfãs ou as de titularidade desconhecida.

Page 227: Propriedade Intelectual nos Países de Língua Portuguesanit.uesc.br/.../files/livros/Propiedade-Intelectual... · propriedade intelectual e o uso da informação tecnológica contida

226

4. CONSIDERAÇÕES FINAIS

Há, assim, uma clara necessidade de se prevenir confl itos, equilibrando a

representação dos interesses na legislação, impedindo os abusos dos titulares e

adequando a legislação à progressiva concretização do direito fundamental à educação

e cultura.

O próprio estabelecimento de usos livres é uma imposição que se justifi ca nos

direitos fundamentais constitucionais e parte dos diversos tratados internacionais

ratifi cados pelo Brasil, com força vinculante, sendo hierarquicamente superiores às leis

ordinárias, que com aqueles não podem confl itar, sejam anteriores ou posteriores aos

Tratados ou à Constituição.

A lei de direitos autorais, da maneira como se encontra, é especialmente afetada

por essa posição, que a eiva de vícios e omissões e a inviabiliza.

Os direitos autorais, como todos os direitos, são frutos de um processo histórico

de construção e reconstituição dos institutos sociais – o que signifi ca dizer que são e

devem ser regularmente revisitados. Não há, portanto, nenhuma novidade na revisão

da legislação.

Nessa mais que necessária revisão, deve-se considerar que o país ainda está em

desenvolvimento e não pode abrir mão da circulação das obras artístico-culturais para

completar a formação social, cultural, política e histórica dos seus cidadãos, para que

estes, aí sim, possam exercer plenamente a liberdade e assegurar sua dignidade.

Além do mais, os direitos autorais pertencem ao gênero maior da propriedade

intelectual, como as patentes, que estão funcionalizadas pela lei de propriedade

industrial e são exemplos internacionais de liderança mundial exercida pelo Brasil. Pode-

se e deve-se fazer o mesmo com os Direitos Autorais192.

A inclusão de cláusulas gerais que busquem corrigir os desequilíbrios do sistema

permitirá a abertura deste, tornando-o mais permeável às questões concretas que

busca resolver e, portanto, mais efi ciente para dirimir confl itos e para aplicação pelo

judiciário193.

A função social dos direitos autorais, que é constitucionalmente assegurada, pode

ser garantida com algumas poucas alterações na legislação ordinária.

192 Não se deve esquecer que um substancial conjunto de usos livres cria demanda cultural e forma plateias, que, por sua vez,

retroalimentam o próprio mercado de bens culturais, fechando o ciclo e favorecendo todos os atores.

193 A utilização dessa técnica legislativa foi muito bem sucedida com relação, por exemplo, ao Código de Defesa do Consumidor,

o Estatuto da Criança e do Adolescente e o novo Código Civil Brasileiro.

Page 228: Propriedade Intelectual nos Países de Língua Portuguesanit.uesc.br/.../files/livros/Propiedade-Intelectual... · propriedade intelectual e o uso da informação tecnológica contida

227

Além de uma cláusula geral reafi rmando o condicionamento constitucional, deve-

se incluir – para fortalecer o equilíbrio dos interesses público e privado e a segurança

jurídica – a referência direta ao mencionado “teste dos três passos” para guiar a

interpretação sobre a extensão dos usos livres permitidos e a redefi nição do artigo 46,

apontando situações exemplifi cativas de usos livres.

Dentre esses usos livres, devem ser especifi cadas as reproduções, apresentações,

representações, execuções e exibições não concorrenciais para fi ns exclusivamente

privados, educativos e culturais ou para a preservação da cultura e história material da

sociedade e nação.

Já as relações entre autores artistas e empresas titulares podem ser equilibradas

com a o reconhecimento, via cláusula geral, do direito legal à remuneração equitativa

pela exploração econômica de sua criação194, e através do fortalecimento da posição

contratual dos autores.

Muitos dos problemas carecem de uma instância de intermediação e regulação

para que sejam encaminhadas soluções de forma ágil. Os confl itos atuais e futuros

podem ser direcionados à resolução mediante a criação de um órgão administrativo,

com funções consultivas e arbitrais, como ocorria com o extinto Conselho Nacional de

Direitos Autorais – CNDA.

Essas são algumas das sugestões para aperfeiçoamento do sistema nacional de

proteção das obras artístico-culturais.

194 O direito de remuneração equitativa, reconhecido via cláusula geral, deve ser complementado para garantir a efetiva

circulação da obra – dever contratual e legal do editor e do distribuidor – e o direito constitucional de fi scalização por parte do

autor. Este último, obviamente, também deve receber prestação de contas correta, direta e regularmente por parte do editor,

distribuidor ou entidade arrecadadora de direitos, independentemente do que estiver estabelecido em contrato.

Page 229: Propriedade Intelectual nos Países de Língua Portuguesanit.uesc.br/.../files/livros/Propiedade-Intelectual... · propriedade intelectual e o uso da informação tecnológica contida

REFERÊNCIAS

ASCENSÃO, José de Oliveira. O direito de autor no ciberespaço. In: ________. Direito

da internet e da sociedade da informação. Rio de Janeiro: Forense, 2002.

________. Direito da internet na sociedade de informação. Rio de Janeiro:

Forense, 2002.

________. Direitos de autor e direitos conexos. Coimbra: Coimbra Editora, 2002.

BARROSO, Luís Roberto. Fundamentos teóricos e fi losófi cos do novo direito

constitucional brasileiro. In: BARROSO, Luís Roberto (Org.). A nova interpretação

constitucional: ponderação, direitos fundamentais e relações privadas. Rio de Janeiro:

Renovar, 2003.

________. O direito constitucional e a efetividade de suas normas. Rio de

Janeiro: Renovar, 2003.

BITTAR, Carlos Alberto. Contornos atuais do direito de autor. 2. ed. São Paulo:

Revista dos Tribunais, 1999.

BONAVIDES, Paulo. Curso de direito constitucional. 13. ed. São Paulo: Malheiros,

2003.

BOURDIEU, Pierre. A distinção: crítica social do julgamento. São Paulo: EDUSP, 2008.

________; DARBEL, Alain. O amor pela arte: os museus de arte na Europa e seu

público. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo: Zouk, 2003.

BRANCO JÚNIOR, Sérgio Vieira. Direitos autorais na internet e o uso de obras

alheias. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2007.

CARBONI, Guilherme. Função social do direito de autor. Curitiba: Juruá Editora,

2006.

CHAVES, Antônio. O criador da obra intelectual. São Paulo: LTR, 1995.

DAVID, René. Os grandes sistemas do direito contemporâneo. São Paulo: Martins

Fontes, 2002.

DAVIES, Gillian. Copyright and the public interest. Londres: Sweet & Maxwell, 2002.

Page 230: Propriedade Intelectual nos Países de Língua Portuguesanit.uesc.br/.../files/livros/Propiedade-Intelectual... · propriedade intelectual e o uso da informação tecnológica contida

229

FOULCAULT, Michael. O que é um autor? In: MOTTA, Manoel Barros da (Org.). Ditos

e escritos III – estética: literatura e pintura, música e cinema. Rio de Janeiro: Forense

Universitária, 2001.

FRANCIONI, Francesco. Culture, heritage and human rights: an introduction. In:

FRANCIONI, Francesco; SCHEININ, Martin (Ed.). Cultural human rights. Boston:

Martinus Nijhof Publishers, 2008.

GEERTZ, Cliford. Art as a cultural system. In: GEERTZ, Cliford. Local knowledge. New

York: Basic Books, 1983.

GEIGER, Christophe. Constitutionalising intellectual property law? The infl uence of

fundamental rights on intellectual property in the European Union. International

Review of Intellectual Property and Competition Law, Munich, v. 37, n. 4, 2006.

________. Copyright and free access to information: for a fair balance of interests in a

globalised world. European Intellectual Property Review, London, v. 28, n. 7, 2006.

________. The three-step-test: a threat to a balanced copyright law?. International

Review of Intellectual Property and Competition Law, Munich, v. 37, n. 6, 2006.

KARTASHKIN, Vladimir. Economic, social and cultural rights. In: VASAK, Karel. The

international dimensions of human rights. Paris: Unesco, 1982.

LEWICKI, Bruno Costa. Limitações aos direitos de autor: releitura na perspectiva do

direito civil contemporâneo. 2007. 299 f. Tese (Doutorado em Direito Civil) – Centro de

Ciências Sociais, Faculdade de Direito, Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rio de

Janeiro, 2007.

LIPSYC, Delia. Utilizaciones libres e uso privado. In: CONGRESSO IBERO-AMERICANO

DE DIREITO DE AUTOR E DIREITOS CONEXOS, 2., 1994, Lisboa. Num mundo novo de

direito de autor. Lisboa: Arco-Íris: Cosmos, 1994. v. 2.

MANSO, Eduardo Vieira. Direito autoral: exceções impostas aos direitos autorais. São

Paulo: José Buschatsky, 1980.

NETANEL, Neil Weinstock; ELKIN-KOREN, Niva. The commodifcation of information.

Londres: Kluwer Law International, 2002.

PONTIER, Jean-Marie; RICCI, Jean-Claude; BOURDON, Jacques. Droit de La culture.

Paris: Dalloz, 1990.

Page 231: Propriedade Intelectual nos Países de Língua Portuguesanit.uesc.br/.../files/livros/Propiedade-Intelectual... · propriedade intelectual e o uso da informação tecnológica contida

230

SARMENTO, Daniel. Colisões entre direitos fundamentais e interesse público. In:

SARMENTO, Daniel; GALDINO, Flavio (Org.). Direitos fundamentais: estudos em

homenagem ao Professor Ricardo Lobo Torres. Rio de Janeiro: Renovar, 2006.

________. Interesses públicos vs. interesses privados na perspectiva da teoria e da

fi losofi a constitucional. In: SARMENTO, Daniel (Org.). Interesses públicos versus

interesses privados: desconstruindo o princípio da supremacia do interesse público.

Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2005.

SILVA, José Afonso da. Aplicabilidade das normas constitucionais. 6. ed. São

Paulo: Editora Malheiros, 2003.

________. Ordenação constitucional da cultura. São Paulo: Malheiros, 2001.

SILVA, Vasco Pereira. A cultura a que tenho direito. Coimbra: Almedina, 2007.

STAMATOPOULOU, Elsa. Cultural rights in international law. Boston: Martinus

Nijhof Publishers, 2008.

TEPEDINO, Gustavo. Normas constitucionais e direito civil na construção unitária

do ordenamento. In: SOUZA NETO, Cláudio Pereira; SARMENTO, Daniel. A

constitucionalização do Direito: fundamentos teóricos e aplicações práticas. Rio de

Janeiro: Lumen Juris, 2007.

TRINDADE, Antônio Augusto Cançado. A proteção internacional dos direitos

humanos no Brasil. Brasília, DF: Editora Universidade de Brasília, 1998.

VASAK, Karel. The international dimensions of human rights. Paris: Unesco, 1982.

WISTRAND, Hugo. Les exceptions apportées aux droits de l’auteur sur ses

ouvres. Paris: Montchrestien, 1968.

Page 232: Propriedade Intelectual nos Países de Língua Portuguesanit.uesc.br/.../files/livros/Propiedade-Intelectual... · propriedade intelectual e o uso da informação tecnológica contida