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1 Projeto Diretrizes Associação Médica Brasileira e Conselho Federal de Medicina O Projeto Diretrizes, iniciativa conjunta da Associação Médica Brasileira e Conselho Federal de Medicina, tem por objetivo conciliar informações da área médica a fim de padronizar condutas que auxiliem o raciocínio e a tomada de decisão do médico. As informações contidas neste projeto devem ser submetidas à avaliação e à crítica do médico, responsável pela conduta a ser seguida, frente à realidade e ao estado clínico de cada paciente. Autoria: Sociedade Brasileira de Anestesiologia Hipertermia Maligna Elaboração Final: 29 de setembro de 2009 Participantes: Amaral JLG, Carvalho RB, Cunha LBP, Batti MAS, Issy AM, Habib AK, Silva HCA, Cagnolatti DC, Simões CM

Projeto DiretrizesHipertermia Maligna 5 Projeto Diretrizes Associação Médica Brasileira e Conselho Federal de Medicina exposição ao agente desencadeante 8(D)14(C).A crise de HM

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Projeto DiretrizesAssociação Médica Brasileira e Conselho Federal de Medicina

O Projeto Diretrizes, iniciativa conjunta da Associação Médica Brasileira e Conselho Federal

de Medicina, tem por objetivo conciliar informações da área médica a fim de padronizar

condutas que auxiliem o raciocínio e a tomada de decisão do médico. As informações contidas

neste projeto devem ser submetidas à avaliação e à crítica do médico, responsável pela conduta

a ser seguida, frente à realidade e ao estado clínico de cada paciente.

Autoria: Sociedade Brasileira de Anestesiologia

Hipertermia Maligna

Elaboração Final: 29 de setembro de 2009

Participantes: Amaral JLG, Carvalho RB, Cunha LBP, Batti MAS,Issy AM, Habib AK, Silva HCA, Cagnolatti DC,Simões CM

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2 Hipertermia Maligna

DESCRIÇÃO DO MÉTODO DE COLETA DE EVIDÊNCIA:Considerada a natureza da hipertermia maligna, sua incidência limitada e intrínsecamortalidade, não é viável aplicar estudos clínicos randomizados e controladospara definir alternativas de diagnóstico ou tratamento desta síndrome. As informaçõesdisponíveis baseiam-se em conclusões obtidas de séries limitadas de casos eestudos experimentais.

GRAU DE RECOMENDAÇÃO E FORÇA DE EVIDÊNCIA:A: Estudos experimentais ou observacionais de melhor consistência.B: Estudos experimentais ou observacionais de menor consistência.C: Relatos ou séries de casos.D: Publicações baseadas em consensos ou opiniões de especialistas.

OBJETIVO:Reunir subsídios para compreensão da fisiopatologia, orientação do diagnósticoe tratamento da hipertermia maligna.

CONFLITO DE INTERESSE:Nenhum conflito de interesse declarado.

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3Hipertermia Maligna

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INTRODUÇÃO

DEFINIÇÃO

A hipertermia maligna (HM) é uma afecção hereditária elatente, caracterizada classicamente por uma síndromehipermetabólica em resposta à exposição aos anestésicos voláteis(halotano, enflurano, isoflurano, sevoflurano e desflurano) e/ousuccinilcolina1(D).

INCIDÊNCIA

Em geral, a HM incide a cada 50 mil anestesias realizadas emadultos e a cada 15 mil anestesias aplicadas a crianças. A HMpode ocorrer em extremos de idade, mas estes episódios sãoraros2(C). A HM é relatada ao redor do mundo, afetando todos osgrupos raciais3(C). A suscetibilidade ocorre igualmente em ambosos sexos, ainda que as crises sejam mais comuns em homens4(D).

A incidência da HM pode ser maior que a referida na literatura,visto que, em muitos episódios, o quadro clínico é discreto e muitossuscetíveis têm antecedentes de exposição a agentes desencadeantes,sem qualquer manifestação da doença5,6(C).

ETIOLOGIA

A HM foi definida como “herança autossômica dominante compenetrância reduzida e expressão variável”, pois está associada adiferentes mutações genéticas, a maioria no cromossoma 19, nogene para o receptor rianodina4,7(D). Devido à grandeheterogenicidade das mutações até o momento encontradas, aindanão é possível diagnosticar ou excluir HM por meio de testesgenéticos somente. Existe questionamento sobre a consistência daassociação da HM com algumas destas mutações7(D).

FISIOPATOLOGIA

Em condições normais, os níveis de Ca++ no mioplasma sãocontrolados pelo receptor rianodina do retículo sarcoplasmático,o receptor di-hidropiridina do túbulo transverso e pelo sistema

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4 Hipertermia Maligna

Ca++-adenosina trifosfatase (Ca++-ATPase).Na crise de HM, o desarranjo da homeostaseintracelular do Ca++ desencadeiahiperatividade contrátil, hidrólise do ATP,hipertemia, aumento do consumo de O2,produção de CO2 e ácido lático, desacoplamentoda fosforilação oxidativa, lise celular eextravasamento do conteúdo do citoplasma8(D).

DIAGNÓSTICO

CLÍNICO

Os sintomas das crises de HM sãovariáveis1(D). As crises são classificadasconforme sua apresentação clínica, segundo Elliset al.9(C) e Ranklev-Twetman10(D) (Quadro 1).

Os sintomas podem variar de acordo com aintensidade da crise, da forma fulminante aquadros abortivos9(C). Nem sempre hipertermiaé manifestação inicial ou proeminente daHM11(D). A rigidez de masseter pode existir em25% dos suscetíveis12(C). A hipertermia podeser tardia e pode estar ausente8(D). Ahipercarbia, já detectada à capnografia, parecepreceder as demais manifestações8(D). Ahiperventilação, bloqueadores neuromusculares,barbitúricos e hipotermia podem mascarar odiagnóstico de HM13(C).

A HM surge a qualquer momento duranteou após a anestesia, tendo sido descrita a suaocorrência até 6 horas após a interrupção da

Classificação das crises de Hipertermia Maligna

Segundo Ellis et al. (1990)9(C) Segundo Ranklev-Twetman10(D)

Fulminante clássica: potencialmente fatal; Fulminantemúltiplas manifestações metabólicas e musculares.

Moderada: manifestações metabólicas e musculares Abortivassem a gravidade da forma fulminante.

Leve: discretas alterações metabólicas, semmanifestações musculares.

Rigidez de masseter com evidência de lesão muscular Espasmo de masseter(elevação da creatino-cinase sérica e mioglobinúria,por exemplo).

Rigidez de masseter associada a alterações metabólicas(elevação da temperatura, arritmias cardíacas,por exemplo).

Rigidez de masseter isolada.

Morte súbita ou parada cardíaca inexplicadas duranteanestesia. Atípicas

Outras: febre pós-operatória, rabdomiólise,insuficiência renal, antecedentes familiares suspeitos.

Quadro 1

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5Hipertermia Maligna

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exposição ao agente desencadeante8(D)14(C). Acrise de HM pode manifestar-se tardiamente demaneira recorrente, mesmo após a interrupçãoda administração do agente desencadeante ematé 20% dos casos15(B). Alguns mecanismos sãosugeridos como possíveis causas para osurgimento tardio do quadro como, por exemplo,o agente ter pouco poder desencadeante dasíndrome, que parece ser o caso dodesflurano14(C). Tem-se a impresssão de haverdiferenças entre os halogenados com relação aoseu potencial para desencadear crises de HM,sendo o halotano o de maior risco16(D).

O xenônio parece ser um agente anestésicoseguro para HM, de acordo com estudoexperimental em porcos suscetíveis a HM, que

não apresentaram crises quando expostos aoxenônio, no entanto vieram a desencadeá-la comhalotano e succinilcolina17(D).

Com relação a outros agentes capazes dedesencadear crises de HM, assinala-se um casode coma diabético tratado com insulina, empreparação contendo como preservante o cresol.Nesta situação, o cresol foi apontado comoprovável agente provocador18(C). Tambémexistem relatos de HM desencadeadas por álcool,cocaína e outras medicações3,9(C).

DOENÇAS ASSOCIADAS

Intensa rigidez de masseter, a ponto dedificultar a intubação traqueal após a

Manifestações clínicas de crises de HM

INICIAIS

Clínicas LaboratoriaisTaquicardia Hipercapnia (acidose respiratória)Elevação progressiva do CO2 exalado Acidose metabólicaTaquipneia HiperlacticidemiaRigidez muscular localizada Hiperpotassemia(incluindo rigidez de masseter) Dessaturação venosa centralCianoseArritmiasHipertermiaSudorese profusa

TARDIAS

Febre acima de 400C MioglobinemiaCianose Elevação da creatino-cinase plasmáticaMá perfusão cutânea Elevação da creatininemiaInstabilidade pressórica Coagulação intravascular disseminadaRigidez muscular generalizada

Quadro 2

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6 Hipertermia Maligna

administração de succinilcolina, tem sidodescrita por preceder muitos episódios de HM,e é a mais comum manifestação de HM,principalmente em crianças. Aproximadamente25% dos adultos que apresentam rigidez demasseter são positivos ao teste paraHM8(D)12(C). A rigidez de masseter deve serconsiderada como um possível sinal desuscetibilidade à HM e, caso a cirurgia sejaeletiva, ela deverá ser postergada. No caso deuma emergência, a anestesia deverá continuarcom agentes considerados seguros4(D) (Quadro 3).

Acreditava-se que várias miopatias poderiam terassociações com a HM, no entanto a única miopatiaque apresenta uma correlação direta é a doença donúcleo central (central core disease). Pacientes comdistrofias musculares como Duchenne e Beckerpodem apresentar hipercalemia quando expostas aosagentes desencadeantes da HM, principalmente asuccinilcolina. No entanto, estas alterações nãoparecem estar relacionadas à HM e devem sertratadas com medidas gerais para redução do potássioplasmático como bicarbonato de sódio, glicose einsulina, cálcio, diuréticos e hiperventilação4(D).

CRISE DE HM

Nas crises, o diagnóstico de HM éfundamentado no quadro clínico. A partir da opiniãode experts, foram atribuídos pesos às diversasmanifestações associadas à HM e assim elaboradauma escala de probabilidade de um eventocorresponder a esta síndrome19(D). No entanto,considerando-se a ampla variabilidade dasmanifestações clínicas deve prevalecer o julgamentoclínico.

A capnografia tem grande valor nodiagnóstico precoce da HM e na avaliação daresposta ao tratamento. De fato, elevaçõesacentuadas do EtCO2 são obser vadasprecocemente nos casos fulminantes, maspodem ser atenuadas por hiperventilação nascrises moderadas13(C).

Destacam-se ainda aumentos da potassemia,creatininemia e distúrbios da hemostasia.Algumas crises de HM podem ser acompanhadasde elevação dos níveis de creatina-fosfocinase(CPK) acima de 20.000 UI/L (o pico éalcançado entre 24 a 48 horas do início da crise).

Agentes anestésicos e HM

Agentes desencadeantes Agentes segurosSuccinilcolina Relaxantes musculares adespolarizantesHalotano Óxido nitrosoIsoflurano PropofolEnflurano EtomidatoSevoflurano BenzodiazepínicosMetoxiflurano BarbitúricosDesflurano VasopressoresOutros: álcool, ecstasy, 4-m-cresol

Quadro 3

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7Hipertermia Maligna

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Não somar pontos de indicadores de um mesmo processo fisiopatológico. Considerar apontuação máxima de cada processo

Risco de HM123456

Estimativa da probabilidade de acerto do diagnóstico clínico de HM

Processo Indicadores PontosfisiopatológicoRigidez Generalizada (exceto calafrio) 15 ouMuscular Espasmo de masseter após succinilcolina 5

CPK > 20 000 UI com succinilcolina 15 ouDestruição CPK > 10 000 UI sem succinilcolina 15 ouMuscular Urina escura 10 ou

Mioglobinúria > 60 mcg.L-1 5 ouMioglobinemia > 170 mcg.L-1 5 ouPotassemia > 6 mEq.L-1 3

Acidose PETCO2 > 55 mmHg em ventilação controlada 15 ouRespiratória adequada 15 ou

PETCO2 > 60 mmHg em ventilação espontânea 15 ouPaCO2 > 60 mmHg em ventilação controlada adequada 15 ouPaCO2 > 65 mmHg em ventilação espontânea 15 ouHipercarbia inapropriada 10Taquipneia inapropriada

Acidose BE arterial < -8 mEq.L-1 10MetabólicaAcidemia pH arterial < 7,25 10

Hipertermia Elevação rápida e inapropriada da T 15 ouT > 38,8ºC (inapropriada) 10

Ritmo Cardíaco Taquicardia sinusal (inapropriada) 3 ouTaquicardia ou fibrilação ventricular 3

Dantrolene e Reversão rápida 5AcidoseAntecedente Em familiar de 1o grau 15Familiar Em familiar outro que não de 1º grau 5Antecedente História familiar positiva para HM e outro indicador 10Familiar e pessoal sugestivo em experiência anestésica préviaPessoalBioquímica CK elevada em repouso 10Pré-operatória (em paciente com antecedente familiar de HM)

Quadro 4

Pontuação0

3 a 910 a 1920 a 3435 a 4950 ou +

ProbabilidadeQuase impossível

ImprovávelAlgo menos que provávelAlgo mais que provável

Bastante provávelQuase certo

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8 Hipertermia Maligna

Todavia, na maioria dos casos, os valores de CPKnão excedem este limiar. Em cerca de 30% dascrises de HM tratadas com dantrolene, os picosde CPK encontram-se dentro dos níveisassociados à maioria dos procedimentoscirúrgicos. A succinilcolina está relacionada avalores mais expressivos de CPK20(C).

DIAGNÓSTICO DIFERENCIAL

Algumas situações podem mimetizar umepisódio agudo de HM. Níveis inadequados dehipnose e analgesia e bacteremia peri-operatóriasão exemplos de condições que podem mimetizara crise de HM1(D). Devem-se descartar causasventilatórias e mecânicas do aumento da fraçãoexpirada de CO2, bem como outras causas dehipermetabolismo.

A síndrome neuroléptica maligna apresentahipertermia, acidose, hipercalemia e mioglo-binúria após a exposição a agentes neurolépticos,principalmente haloperidol.

A elevação da temperatura pode tambémresultar de sistemas de aquecimento malajustados, tireotoxicose, feocromocitoma,osteogênese imperfeita, infecção, reaçãopirogênica, lesão hipotalâmica, reação a drogas,como anfetaminas, inibidores da monoamino-oxidase, atropina, glicopirrolato, cocaína,anfetamina, droperidol, metoclopramida,cetamina e síndrome neuroléptica maligna1(D).

Pacientes suscetíveis a HM podem tambémdesenvolver síndrome do choque térmico,rabdomiólise induzida pelo exercício ehipertermia e acidose durante o uso de algumasdrogas como 3,4-metilenodioxidome-tanfetamina (MDMA), também conhecidacomo ecstasy4,21(D).

SUSCETIBILIDADE À HM

SINTOMAS

Manifestações como febre, cansaçomuscular, câimbras ou fraqueza sãodemasiadamente inespecíficas para sugerirsuscetibilidade.

ANTECEDENTES PESSOAIS E FAMILIARES

Suspeita-se da suscetibilidade em razão deantecedentes (crise sugestiva de HM duranteexposição a agentes desencadeantes) pessoais oufamiliares de HM.

A ausência de crise de HM após exposiçõesanteriores não exclui a suscetibilidade. Muitospacientes já expostos a agentes desencadeantesnão apresentaram a síndrome, mesmo sendoexpostos mais de uma vez6(C).

Entre os fatores que possam ter atenuado aresposta aos agentes provocadores são lembrados:temperatura ambiente baixa22(D), barbitúricos,opioides, bloqueadores neuromusculares,variabilidade da potência que tem os agentes paradesencadear as crises16(D), penetrância genéticatambém variável da HM7(D).

CREATINO CINASE (CPK) EM REPOUSO

A presença de CPK elevado em repouso,excluídos exercício extenuante ou traumamuscular, tem valor relativo apenas emfamiliares de casos suscetíveis. Sem outraexplicação, níveis elevados de CPK em repousotrazem a suspeita de miopatia.Tais alterações sãomuito comuns e não justificam a dosagem deCPK plasmático na população geral20(C).

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9Hipertermia Maligna

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TESTE DE CONTRAÇÃO À EXPOSIÇÃO AO

HALOTANO-CAFEÍNA

Mesmo nos casos clássicos, a confirmaçãodiagnóstica se faz obrigatória, possibilitando oplanejamento da investigação nos familiares dosafetados. O padrão de herança autossômicodominante resulta em pelo menos 50% deprobabilidade de positividade nos parentesdiretos (pais, filhos e irmãos) de um indivíduoconfirmado. Serão, portanto, estes pacientes eseus familiares diretos os candidatos àconfirmação diagnóstica por meio de testes decontração ao halotano e à cafeína em materialobtido por meio de biopsia muscular23(D).

O teste de contração ao halotano-cafeína(CHCT) é o padrão adotado para o diagnósticode HM24(B). Através da análise da respostacontrátil à exposição a concentrações crescentesde cafeína e halotano é possível discriminarsuscetíveis e normais. Este método foipadronizado diferentemente na Europa e naAmérica do Norte. Segundo o protocolo norte-americano, o TCHC consiste em avaliar aresposta contrátil de fascículos muscularessubmetidos à tensão de repouso de 2 g e expostosa concentrações crescentes de halotano (1% a3%) e cafeína (0,125 a 16 mM). O material éimerso em solução de Krebs-Ringer equilibradacom O2 95% e CO2 5%, mantido a 37oCdurante o teste. Uma resposta contrátil superiora 0,5 - 0,7 g quando o halotano a 3% éborbulhado no banho, ou acima de 0,2 - 0,3 gapós a adição de 2 mM de cafeína, indicapositividade. A prévia estimulação supramáximagarante a viabilidade do material biopsiado. OCHCT, realizado conforme o protocolo norte-americano, tem 97% de sensibilidade e 78% deespecificidade24(B).

Evita-se realizar a biopsia com peso inferiora 20 kg em pacientes sob tratamento comdantrolene sódico ou bloqueadores de canais deCa++ e nos três meses seguintes a uma crisede HM, quando ainda pode ser encontrada lesãomuscular residual25(D). Os locais preferenciaispara biopsia são os músculos do vasto lateral dacoxa e o reto abdominal. Os testes devem estarconcluídos antes de 5 horas decorridas dabiopsia, o que exige encaminhar os pacientes aserem estudados aos centros de biopsia. Oprocedimento é realizado sob anestesia geral ouregional, desde que sejam evitados os agentesdesencadeantes e haja dantrolene sódicoimediatamente disponível25(D).

TRATAMENTO

O protocolo de tratamento da HM delineadoabaixo é internacionalmente recomendado,baseado na interrupção da exposição a agentesdesencadeantes, administração de medicaçãoespecífica (dantrolene sódico) e medidas desuporte ou destinadas à prevenção decomplicações associadas26,27(D).

DANTROLENE SÓDICO

O relaxante muscular dantrolene sódico éum derivado hidantoínico. A formulação parauso intravenoso é apresentada em frascos-ampola de 70 mL, contendo 20 mg dedantrolene, 3 g de manitol e hidróxido de sódiosuficientes para elevar o pH a 9,5 após diluição.O conteúdo de cada frasco-ampola deve serdiluído em 60 ml de água estéril (há dificuldadeem diluir este agente em outras soluções) e serinfundido em um equipo de sangue com filtro.O dantrolene sódico inibe a liberação de cálciodo retículo sarcoplasmático, mantendo arecaptação inalterada.

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10 Hipertermia Maligna

Deve-se evitar a administração debloqueadores de canal de cálcio junto comdantrolene sódico, pois apesar do dantrolene nãoapresentar efeitos de depressão do miocárdio emhumanos, em cães há depressão da funçãocardíaca e surgimento de arritmias.

Entre outros efeitos colaterais do dantrolene,incluem-se náusea, vômitos, mal-estar, tonturase irritação local devido ao elevado pH da solução.No puerpério imediato, o dantrolene pode causaratonia uterina27(D).

FASE AGUDA

1. Interrupção imediata da inalação deanestésicos voláteis e/ou succinilcolina:A progressão das manifestações HM (formasabortivas) pode ser interrompida com aretirada do agente desencadeante. No casode uma crise abortiva ou rigidez de masseter,desde que possível, o procedimento cirúrgicodevem ser adiado4(D).

2. Chamar por ajuda: A diluição dodantrolene sódico é trabalhosa e demora,portanto um colega poderá ajudá-lo nadiluição e também no tratamento dos outrossintomas que compõem o quadro. Oaquecimento do diluente do dantrolenesódico pode facilitar a diluição e reduzir,assim, o tempo para administração28(D).

3. Hiperventilação com oxigênio puro: Nãohá necessidade de troca do circuito circularou sistema de absorção de CO2

21(D).

4. Tratamento específico: Injeções intra-venosas de 2,5 mg/kg de dantrolene sódico,repetidas até o completo controle dasmanifestações de HM, até 10 mg/kg21(D).

5. Controle da acidose metabólica: Bicarbonatode sódio intravenoso, conforme gasometriaarterial (em geral, 1 a 2 mEq/kg)26(D).

6. Resfriamento ativo: Lavagem gástrica,vesical, retal e cavidades (peritoneal ou torácica)eventualmente abertas com NaCl 0,9% gelado;colchão hipotérmico e aplicação de gelo nasuperfície corporal, até atingir a temperaturade 38oC, para evitar hipotermia29(D).

7. Tratamento das arritmias cardíacas:Geralmente controladas com o tratamentoda hiperpotassemia e acidemia. As drogasutilizadas devem ser as mesmas preconizadaspelo suporte avançado de vida em cardiologia(ACLS), incluindo lidocaína, amiodaronae procainamida. Não se deve utilizarbloqueadores do canal de cálcio pelo riscode interação com dantrolene sódico26,27(D).

8. Tratamento da hiperpotassemia: Elevaçãodo pH com hiperventilação e/ou infusão debicarbonato de sódio; insulina 0,1 U/kg emglicose 50%, 1 ml/kg, sem administrarcloreto de cálcio, pois pode piorar a crise26(D).

9. Diurese: Manter diurese acima de 2 ml/kg/hora com hidratação e/ou diuréticos (manitolou furosemida) para evitar lesão secundáriaà rabdomiólise26(D).

FASE TARDIA

1. Observação: Existem relatos de recidivas decrises de HM aparentemente controladas hámuitas horas30(D). Recomenda-se observaçãoem Unidade de Tratamento Intensivo durantepelo menos 24 horas12(C).

2. Dantrolene intravenoso: 1 mg/kg a cada6 horas, durante 48 horas. Controles a cada6 horas - temperatura, gasometria arterial,

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11Hipertermia Maligna

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níveis sanguíneos de CPK, potássio e cálcio,coagulograma, mioglobina sérica eurinária26,27(D).

3. Orientação do paciente e familiaresacerca da doença: Informações acerca dadoença devem ser oferecidas verbalmente epor escrito ao paciente e seus familiares. Nãofazê-lo, seja a partir de um caso fatal ou deuma situação clínica controlada, representaexpor paciente e familiares a uma criseadicional1(D).

ANESTESIA PARA O PACIENTE SUSPEITO DE

SER PORTADOR OU COM DIAGNÓSTICO

CONFIRMADO DE SUSCETIBILIDADE À HM

Vários cuidados são necessários quando umpaciente apresentou crise suspeita dehipertermia maligna, ou diagnóstico confirmadode suscetibilidade após CHCT e necessita sersubmetido a qualquer tipo de cirurgia. Dentreeles, o preparo do aparelho de anestesia se fazretirando os vaporizadores; troca da cal sodadado canister; passagem de fluxo de oxigêniocontínuo com dez litros por minuto, durantedez minutos31(D); instalação de circuito novoe troca da bolsa de ventilação. Administraranestesia regional nas suas diversas formas desdeque a cirurgia, ou o paciente, permitam. Se forindicada, a anestesia geral deverá ser realizadacom agentes seguros. Permanentemente, noambiente cirúrgico, deverá haver pelo menostrinta e seis frascos de dantrolene sódiconecessários para o tratamento agudo de crise deHM em adulto de 70 kg27(D). Disponibilidadede fármacos para tratamento deeventuais alterações hemodinâmicas, arrítmicas,do equilíbrio ácido-básico e eletrolítico.Dispositivos para controle de temperatura:colchão e/ou manta térmica, assim como

soluções geladas de uso venoso e gelo.Monitorizar de acordo com a Resolução CFM1802/200632(D), dando ênfase à monitorizaçãodo gás carbônico ao final da expiração e datemperatura em suas diversas formas, de acordocom a técnica da anestesia. No pós-anestésicoimediato, além da verificação rotineira de sinaisvitais, controlar a temperatura e verificarpresença ou não de contraturas musculares, nomínimo por quatro horas33(A). Havendo suspeitade desencadeamento de crise, tratar como sendouma crise aguda, inclusive com administraçãode dantrole, cuidados pós-anestésicos e acesso aexames laboratoriais utilizados em suspeita decrise. As equipes anestésico-cirúrgicas e deenfermagem deverão ter treinamento regularpara terem participação efetiva em suspeita decrise de HM34(D).

ANESTESIA AMBULATORIAL E HM

Os pacientes suscetíveis a HM podem sersubmetidos a procedimentos ambulatoriaisutilizando para anestesia os agentes consideradosseguros.

Considerando-se a improbabilidade deepisódios graves de HM sem prévia exposição aagentes desencadeantes e não ser o dantroleneisento de efeitos colaterais, não há atualmenterazão para sua administração profilática.

Existem relatos de casos de pacientessucetíveis que receberam somente anestésicosseguros e desenvolveram episódios prováveis deHM no período pós-operatório imediato.Portanto, a recomendação atual é que ospacientes suscetíveis ou com história familiarde HM sejam monitorizados por pelo menos 4a 5 horas no pós-operatório imediato33(A). Nocaso de hipertermia isolada no período pós-

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12 Hipertermia Maligna

operatório, recomenda-se a admissão hospitalare observação mais prolongada.

PREVENÇÃO

As crises de HM nem sempre podem serevitadas, mas a detecção precoce permitirá o

tratamento adequado e melhoresresultados26(D). Assim, a resolução 1802 doConselho Federal de Medicina reforça anecessidade de monitorização adequada, bemcomo da disponibilidade do tratamentoespecífico, possibilitando adequado diagnósticoe tratamento da HM32(D).

Algoritmo da investigação diagnóstica HM

Figura 1

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13Hipertermia Maligna

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