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Euclides da Cunha e Manoel Bomfim – intelectuais e a circulação de ideias no Brasil na
passagem do Império à República
Fernanda Miranda de Carvalho Torres 1
Resumo: O fim do século XIX brasileiro foi marcado pela recepção de um conjunto ideias
científicas e filosóficas como o positivismo e o liberalismo. Com efeito, o período
compreendido entre 1870 e a primeira década do século XX, concentrou discussões baseadas
nessas concepções, sobretudo o evolucionismo, utilizadas pelos intelectuais brasileiros na
elaboração de diversas interpretações do Brasil. A diversidade do Brasil em relação à Europa,
para quem se voltaram como modelo a ser seguido, colocou alguns impasses para esses
pensadores nacionais, quanto à viabilidade futura do país. Identificado o lugar de partida
dessa reflexão, no presente ensaio apresentaremos um pouco da relação entre circulação
dessas ideias e a interpretação produzida a partir das mesmas por Euclides da Cunha e Manoel
Bomfim.
Palavras-chave: República. Intelectuais. Ideias. Nação. Brasil.
Abstract: The end of the Brazilian nineteenth century was marked by the receipt of a joint
scientific and philosophical ideas such as positivism and liberalism. Indeed, the period
between 1870 and the first decade of the twentieth century, focused discussions based on
these concepts, especially evolutionism, used by Brazilian intellectuals in the development of
different interpretations of Brazil. The diversity of Brazil compared to Europe, who turned as
a model to be followed, put some dead ends for these national thinkers about the future
viability of the country. Identified the place of departure of this reflection, in this paper we
present some of the relationship between movement of these ideas and the interpretation
produced from them by Euclides da Cunha and Manoel Bomfim.
Keywords: Republic. Intellectuals. Ideas. Nation. Brasil.
1 Por Fernanda Miranda de Carvalho Torres, mestranda do Programa de Pós-graduação em História da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (PPGH-UERJ), na linha de pesquisa Política e Cultura, bolsista Capes, orientada pela Prof.ª Dr.ª Eliane Garcindo de Sá.
2
1. A recepção das “ideias novas” no Brasil na passagem do século XIX ao século XX
Em Uma história intelectual: livros, leituras e literaturas, o historiador cultural Roger
Chartier afirma a cerca dessa relação e do trabalho que envolve a pesquisa a partir de fontes
literárias que “uma das tarefas fundamentais de todo trabalho intelectual consiste (...), em
fazer justiça, através de uma leitura atenta, às obras que ajudam a aperfeiçoar os parâmetros
intelectuais necessários para compreender de outra maneira as velhas questões.” 2
Partindo dessa perspectiva, as reflexões que se seguem não dão conta de uma leitura
ou análise aprofundada de Os sertões (1902) de Euclides da Cunha (1866-1909) ou de A
América Latina: males de origem (1905) de Manoel Bomfim (1868-1932), mas traduzem a
intenção de identificar algumas questões centrais aos desenvolvimentos intelectuais de tais
autores. Apontaremos aquelas questões que os atravessam nas abordagens que realizaram em
torno do tema da identidade nacional, ou ainda mais precisamente, da nacionalidade no Brasil
em fins do Século XIX e nos desdobramentos da primeira década do século XX.
Nesse sentido, circunscrevemos o contexto de surgimento dessas obras e de atividade
intelectual dos autores a partir da década de 1870, época que marca a intensificação da
propaganda republicana e a adesão de políticos e intelectuais a ideais reformistas, dando
margem à formação do que a historiografia convencionou como “geração de 1870”. Essa
geração se caracteriza pela emergência de um grupo de pensadores que fizeram da
problematização do futuro do Brasil, sobretudo político-social, um assunto de primeira ordem.
Havia naquele momento um ambiente de grande efervescência intelectual proporcionada pela
chegada das “ideias novas”, que passaram a orientar o trabalho da intelectualidade em busca
do caráter nacional do país, através da analise crítica do passado e da indicação de projetos
para o futuro.
Essa busca tinha como arcabouço teórico as doutrinas do positivismo; darwinismo
social; evolucionismo e dos conceitos de liberalismo e civilização, dando lugar ao quadro que
se denomina crise do Brasil-Império e sinaliza a tensão política, social e cultural que antecede
a mudança no modelo político do país. 3 Maria Tereza Chaves de Mello, afirma que o fim do
Império do Brasil assiste a difusão de uma cultura democrática e científica que criou uma
disponibilidade mental à ideia de república 4 - ensejando um desejo de futuro.
2 CHARTIER, Roger. “Uma história intelectual: livros, leituras, literaturas.” In: ROCHA, João Cezar de Castro (org.). A força das representações: história e ficção. Chapecó, Santa Catarina: Argos, 2011, p. 30-31. 3 ALONSO, Angela. Ideias em movimento: a geração de 1870 na crise do Brasil-Império. São Paulo: Paz e Terra, 2002. 4 MELLO, Maria Tereza Chaves de. A modernidade republicana. Tempo (online). 2009, vol. 13, n° 26, pp. 15-31. Disponível em http://www.scielo.br/pdf/tem/v13n26/a02v1326.pdf, acessado em outubro de 2015.
3
Em consonância com marcadas alterações sócio-econômicas, novas ideias penetraram intensamente a sociedade brasileira letrada – e talvez não só nela – a partir da década de 1870. A mais profunda mudança por elas produzida foi a de dar um conteúdo histórico à já difundida e assimilada noção de progresso, noção que, agora, extravaza o campo dos avanços materiais que, entretanto, tanto maravilham os contemporâneos, orgulhosos do seu tempo. Valendo-nos de códigos visuais da época, alcançar o progresso exigia o embarque no trem da evolução rumo à estação “civilização”. 5
De acordo com isso, a percepção do tempo, no que concernem às expectativas que
esses homens nutriam em relação ao futuro, foi alterada num duplo sentido: à medida que o
evolucionismo spenceriano ou darwinista dava margem para pensar o “progresso” humano, a
filosofia positivista e o horizonte da civilização apontavam para uma via modernizadora da
sociedade, vinculando progresso humano e material a um só tempo.
As “novas ideias”, todas materialistas, conjugaram ao positivismo, já posto na cidade letrada, o evolucionismo de Spencer, que era uma instrumentalização das teorias de Darwin para interpretar as sociedades humanas. O que cabe destacar é que elas foram capazes de renovar profundamente a mentalidade. 6
Em Literatura como missão, Nicolau Sevcenko afirma que a partir desse momento
tornou-se latente entre os homens que se dedicavam às letras ou a política - na maior parte das
vezes às duas coisas – projetar o fim de um Império que guardava como memória séculos de
um passado colonial. Segundo o autor a intelectualidade encontrava-se,
arrojados num processo de transformação social de grandes proporções, do qual eles próprios eram fruto na maior parte das vezes, os intelectuais brasileiros voltaram-se para o fluxo cultural europeu como a verdadeira, única e definitiva tábua de salvação, capaz de selar de uma vez a sorte de um passado obscuro e vazio de possibilidades (...). 7
Dessa maneira, a tábua de salvação avistada no fluxo das “novas ideias” ensejou novas
perspectivas no universo pensante brasileiro, mas, apesar disso, também colocou problemas
aos seus projetos quanto à viabilidade de desenvolvimento e modernização do Brasil,
enquanto nação moderna, os quais eles tiveram que enfrentar.
O darwinismo social e o evolucionismo, bases do pensamento cientificista, ambos
adaptados dos estudos de biologia para compreender as diferenças apresentadas entre os seres
humanos, propiciavam uma homologia de conceitos no campo das ciências biológicas e das
ciências humanas, permitindo que se realizasse a classificação dos “tipos” humanos
5 Ibidem, p. 18. 6 MELLO, p. 18. 7 SEVCENKO, Nicolau. Literatura como missão: tensões sociais e criação cultural na Primeira República. 2ª ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2003, p. 96.
4
semelhante a do reino animal. A escala de variações obedecia a critérios de desenvolvimento
baseados no modelo de civilização europeu, estabelecendo uma relação de superioridade e
inferioridade entre as sociedades a partir da Europa. Nessa escala, os povos africanos,
asiáticos, os indígenas e os mestiços do “Novo Mundo” foram considerados inferiores.
As “ideias novas”, nessa perspectiva, contribuíram para a produção de um contexto,
dentre outros, pessimista, sobre o futuro do Brasil. Numa acepção dos efeitos políticos desse
pessimismo, verifica-se que ao passo que o evolucionismo servia para afirmar e criar a
consciência de “superioridade” da civilização europeia, ideal a ser atingido, definia como
inferior a realidade nacional, gerando a noção de “país atrasado” que perpassou de alguma
forma toda a produção de ideias sobre o Brasil nesse contexto. Segundo Renato Ortiz, “aceitar
as teorias evolucionistas implicava analisar a evolução brasileira sob as luzes das
interpretações de uma história natural da humanidade”. 8
Assim, a diferença verificada entre o Brasil e o postulado ideológico europeu,
assumido pelos nossos pensadores, os levou a buscar formas de compreender o
distanciamento entre a teoria e prática – as ideias e a realidade nacional. Promovendo na
intelectualidade, segundo os historiadores Antonio Candido e Antonio Edmilson Martins
Rodrigues 9 uma dialética entre “localismo” e “cosmopolitismo” em torno da base comum da
ideia de nação e de modernidade, a qual na perspectiva de Rodrigues, permeou a configuração
de uma cultura política republicana na passagem do século XIX para o XX. 10
2. A dialética do localismo e do cosmopolitismo para a afirmação da nacionalidade
Conforme o exposto, o período que se estendeu da segunda metade do século XIX, até
a primeira década do século XX concentrou debates e enunciados e ideias em torno da
problemática colocada pela intelectualidade da época para o futuro do Brasil, baseados nos
ideais de civilização e progresso identificados com a Europa. Antonio Candido em Literatura
e Sociedade define esse quadro de dialética entre localismo e cosmopolitismo como processo
que consistia na integração progressiva de experiências literárias, por meio da tensão, com o
dado local. Na sua perspectiva, as primeiras manifestações para o conhecimento do país
teriam se desenvolvido por formas literárias ou ligadas à expressão desse gênero narrativo.
8 ORTIZ, Renato. Cultura brasileira e identidade nacional. São Paulo: Editora Brasiliense, 1985, p. 15. 9 Cf. em CANDIDO, Antonio. Literatura e sociedade. 9ª ed. Rio de Janeiro: Ouro Sobre o Azul, 2006 e RODRIGUES, Antonio Edmilson Martins. “Cultura política na passagem brasileira do século XIX ao século XX”. In: LESSA, Mônica; e FONSECA, Silvia Carla P. B. Entre a Monarquia e a república: Imprensa, pensamento político, e historiografia (1822-1889). Rio de Janeiro: Eduerj, 2008, p. 209-220. 10 Ibidem, p. 218-219.
5
Pode-se chamar dialético a este processo porque ele tem realmente consistido numa integração progressiva de experiência literária e espiritual, por meio da tensão com o dado local (que se apresenta como substancia de expressão) e os moldes herdados da tradição europeia (que se apresentam como forma da expressão). A nossa literatura, tomado o termo no sentido restrito quanto amplo, tem, sob este aspecto, consistido numa superação constante de obstáculos, entre os quais o sentimento de inferioridade que um país novo, tropical e largamente mestiço desenvolve em face de velhos países de composição étnica estabilizada, com uma civilização elaborada em condições geográficas bastante diferentes. O intelectual brasileiro, procurando identificar-se a esta civilização, se encontra todavia ente particularidade de meio, raça, e história nem sempre correspondentes aos padrões europeus que a educação lhe propõe, e por vezes se elevam em face deles como elementos divergentes, aberrantes. A referida dialética e, portanto, grande parte da nossa dinâmica espiritual, se nutrem deste dilaceramento, que observamos desde Gregório de Matos no século XVII, ou Claúdio Manoel da Costa no século XVIII, até o sociologicamente expressivo grito de brancura em mim de Mário de Andrade, - que exprime, sob a forma de um desabafo individual, uma ânsia coletiva de afirmar componentes europeus da nossa formação. 11
Deste modo, de acordo com a passagem de Candido, a diferenciação do contexto
social e de produção intelectual brasileiro transborda em nossa literatura ao longo do tempo e
reflete, ao mesmo tempo, uma espécie de angústia nacional, gerada pelo fato de não se ver
refletida no espelho da Europa - promovendo uma imagem de país dilacerado, dividido,
entrecortado ante a realidade presente e a expectativa do que se queria ser. Imagem que
Rodrigues reforça ao afirmar que, as ideias resultantes dessa dialética entre substancia
brasileira e tradição europeia, promoveram a “identidade de um Brasil novo, mestiço e
tropical, diverso e dilacerado em contraposição ao equilíbrio e às unidades europeias.” 12
Diante disso, precisamos destacar que a tensão entre diversidade brasileira ou
americana e unidade/homogeneidade europeia é latente e se desdobra num duplo confronto: é
preciso definir a nação brasileira em relação ao mundo “civilizado” e ao mesmo a nação para
os brasileiros, revelando sua identidade, conformando uma identificação própria. Ou seja, à
medida que a sociedade procurava se afirmar externamente deveria o fazer internamente, pois
mesmo levando em consideração o aspecto europeu na conformação de visões acerca da
nação e na afirmação de uma modernidade do ponto de vista externo, as especificidades de
um país mestiço e tropical estiveram presentes.
A propósito dessa dinâmica, Antonio Edmilson pontua a originalidade do movimento
intelectual que levara a cabo a proposta de interpretar a nação,
a inteligência brasileira não aparece somente na organização de um novo regime político ou na luta contra a escravidão, mas no modo de interpretar o Brasil como um espaço novo e, por isso, diferente de qualquer outra experiência. A abolição da escravidão e a república estão
11 CANDIDO, 2006, p. 116-117. 12 RODRIGUES, 2008, p. 210.
6
contidas como ideias na maneira de interpretar o caminho de futuro do Brasil. A imitação é relativizada porque o mundo intelectual esboça uma interpretação capaz de relacionar o localismo e o cosmopolitismo, e a mudança é feita sob a égide da inteligência. 13
Compreende-se a partir disso que a circulação de ideias estrangeiras no Brasil
impulsionou os intelectuais a um movimento de (re) conhecimento do país, através dos
olhares investigativos que estes laçaram sobre o povo, a geografia, o clima e a política. Um
movimento amplo de identificação e interpretação dos dados locais em confluência com as
teorias e métodos disponibilizados à época. A “imitação fora relativizada”, porque a tentativa
de compreender o nacional através de concepções formuladas em contexto diverso ao nosso
se exerceu pelo debate e interpretação crítica das mesmas, reconhecendo nossa singularidade
histórica de país tropical.
A historiadora Maria Regina Capelari Naxara, compreende o período abordado como
um momento privilegiado para o estudo das representações e do imaginário sobre a população
nacional brasileira, em que a intelectualidade da época esboçou as primeiras tentativas de
entendimento da cultura e da história do Brasil. Reconhece na literatura o canal privilegiado
na divulgação de certas representações que se forjaram sobre o brasileiro como indolente,
vadio preguiçoso e não civilizado, cristalizadas no imaginário social ao longo do tempo. 14
Para a autora esse imaginário surge das interpretações do evolucionismo e de análises
deterministas da história, além da crença dominante de que a humanidade se encontrava numa
marcha em direção ao progresso, finalidade a ser alcançada por todos os povos. Interpretação
que coaduna com a identidade de um Brasil diverso e dilacerado diante da homogeneidade
europeia, conforme indicou Rodrigues. 15 Contextualmente, o imaginário de desqualificação
do brasileiro inicialmente se restringiu aos nacionais livres e pobres, abarcando ao longo do
tempo ao conjunto social, constituído em sua maioria por mestiços, e “ganhou contornos de
representação da nacionalidade como um todo, estendendo-se à própria concepção de
brasilidade e passando a fazer parte da construção da identidade do brasileiro”. 16
A imagem do brasileiro como um desqualificado se construiu a partir de uma visão
comum, tanto das elites nacionais, quanto dos viajantes que vinham ao Brasil, do abandono da
população brasileira vista como inadequada econômica e socialmente, vivendo à margem da
organização social. Essa concepção da população promoveu o afastamento e a marginalização
da parcela social - constituída pelos nacionais livres inicialmente, incorporando os libertos no
13 Ibidem, p. 210. 14 NAXARA, Marcia Regina Capelari. “A construção da identidade: um momento privilegiado”. In: Revista Brasileira de História. São Paulo: Editora Marco Zero, vol., n° 23/24 setembro 91/agosto de 92, p. 181-190. 15 RODRIGUES, p. 210. 16 NAXARA, p. 181.
7
pós-abolição - concebidos como “estrangeira em sua própria terra” - dando margem a
interpretações que afirmavam a ausência de um povo brasileiro. Conforme a Naxara,
o povo brasileiro, (principalmente a população mestiça, ou de alguma forma vinculada à escravidão) vistos pelas suas elites, aproximava-se do atraso e da barbárie, enquanto que o que se procurava era o progresso e a civilização. Tal questionamento acabou levando a uma definição do brasileiro pela ausência do que se esperava que ele pudesse ser, ou seja, por aquilo que lhe faltava. (...) O Brasil tornava-se, de forma cada vez mais contundente e visível, o lugar da heterogeneidade, em todos os sentidos: diversidade de cor, de classe, de raça, de aparências e falares. A preocupação, para se formar a nação, por seu lado, colocava a possibilidade de se poder pensar em termos de homogeneidade, de características comuns ao povo brasileiro, o que era extremamente complexo, num país multi-racial. 17
A interpretação da história de acordo com essa tendência, orientou-se na busca de uma
identidade para o brasileiro, e da superação de seu atraso. A pergunta que buscaram responder
provinha da critica anti-romântica, colocada pela geração de 1870: O que é a nação?. 18
Fazendo com que intelectuais e pensadores, se inclinassem à análise, diagnostico e profilaxia
dos “males nacionais”, para utilizarmos uma linguagem médica - cara ao doutor Manoel
Bomfim; permitindo construir, erigir e promover o desenvolvimento da estrutura social -
falando próximo ao engenheiro Euclides da Cunha. Ambos pensadores que apontaram temas
centrais para a descoberta e reconhecimento do Brasil, conforme podemos perceber nas
preocupações que expuseram em suas obras e escritos.
3. As apropriações das “ideias novas” Pertencentes ao grupo de intelectuais do ultimo quartel do século XIX, Euclides e
Bomfim acompanharam os principais desdobramentos políticos e sociais que encaminharam o
fim do Império e como os demais pensadores da época depositavam sua esperança na
República, um futuro desejado e que se encontrava em consonância com os primados do
cientificismo.
Tanto Comte quanto Spencer entendiam o desenrolar da história humana como uma sucessão escalonada de superações, pelas quais a religião e a monarquia eram valores de um passado caduco. Todas as sociedades caminhavam inexoravelmente para o advento de um mundo guiado pela ciência e pela democracia. Nessa cultura científica e democrática o regime republicano era uma necessária culminância política. 19
Para eles o advento republicano cumpria uma etapa do processo de desenvolvimento
histórico e no Brasil significava um caminho para a superação do atraso, cuja representação
17 NAXARA, p. 184. 18 VENTURA, Roberto. Estilo tropical: história cultural e polêmicas literárias no Brasil (1870-1914). São Paulo: Cia. das Letras, 1991. 19 MELLO, p. 17.
8
se encarnava na permanência da monarquia no poder, visto a necessidade de reformas
políticas e institucionais que promovessem o progresso.
José Veríssimo (1857-1916), importante crítico literário, proclamou o “modernismo” 20 e a “superioridade do retrato fiel da sociedade e dos homens, dos seus costumes e vivências,
descritos com verdade e imparcialidade”, 21 contra o sentimentalismo e idealização do
romantismo, - que subjugado pelo cientificismo passará a ser visto como negativo e vinculado
à monarquia. Segundo Clóvis Bevilacqua (1859-1944),
(...) representou [o romantismo], no campo da imaginação, o que a monarquia constitucional representou na política ou, com mais propriedade, o que representa a metafísica na ordem filosófica, – uma fase transitória, exercendo sobre os espíritos uma ação negativa indispensável para o aplainamento do terreno.22
Além de vinculado a monarquia, para Bevilacqua o romantismo era uma fase
transitória, que apesar de negativa se fez necessária para estabilização e desenvolvimento da
atmosfera cultural.
Nessa perspectiva, para a compreensão do significado e amplitude dessas
circunstâncias de época para a produção de um imaginário sobre a nacionalidade, como
também, para podermos compreender, como tais concepções foram recebidas por Euclides da
Cunha e Manoel Bomfim, nos utilizamos do arcabouço teórico da história cultural, abarcada
no trabalho de Roger Chartier como possibilidade interpretativa fecunda. Tomamos por
princípio a história cultural como instrumento de análise cujo objetivo é identificar como a
“realidade social é construída, pensada e dada a ler” 23. Sendo necessário, de acordo com isso,
identificar as formas pelas quais se dão os sistemas de percepção e apreciação do real, através
da forma pela qual são produzidos os esquemas intelectuais e de representações sociais que
dão sentido ao presente, inteligibilidade ao outro e ao seu espaço social.
Por conseguinte, é preciso destacar que as representações do social não refletem a
maneira pela qual a totalidade de uma sociedade concebe o mundo, mas, antes, são sempre
determinadas pelos interesses dos grupos que as construíram. As representações sociais se
referem deste modo, a um sistema de nomeação ou enunciação das experiências vividas e
compartilhadas por um grupo. Disto decorre a necessidade de relacionarmos as interpretações
20 Veríssimo não se refere, nesse momento, ao modernismo enquanto expressão de um movimento artístico e literário como o iniciado em 1922, mas a um contexto de modernização, ou modernidade, em que a literatura deveria orientar-se no sentido de priorizar uma narrativa mais sociológica em detrimento do que foram as expressões românticas. 21 MELLO, p. 23 22 BEVILACQUA, Clóvis apud MELLO, p. 23, apud MARTINS, Wilson. História da Inteligência Brasileira, São Paulo, Cultrix, 1977, v. 4, p. 142. 23 CHARTIER, Roger. A história cultural: entre práticas e representações. Lisboa: Difel, 1990, pp.16-17.
9
acerca do mundo social aos agentes que as produziram, movimento nos permitirá explicar a
produção de sistemas ideológicos ou de ideias, articulados às estratégias de legitimação e
disputa de poder político e simbólico na conjuntura analisada.
Partindo de tais pressupostos, percebemos a apropriação que Euclides da Cunha e
Manoel Bomfim das “ideias novas” como um conjunto de estratégias discursivas de
representação da realidade por eles experimentadas e que nos informa sobre aspectos desse
passado. Cremos ser importante situá-los ao contexto social, cultural e político do qual faziam
parte, considerando que diante da tentação de entender suas abordagens sobre o nacional
através de generalizações, antes dizem respeito a pontos de vistas singulares e que podem ou
não ter encontrado correspondência no universo social do qual faziam parte.
Euclides da Cunha, natural do Rio de Janeiro, nasceu em 1866 e veio a óbito também
nessa cidade no ano de 1909, engenheiro formado pela Escola Militar em 1892, também foi
jornalista e escritor, autor de Os sertões, publicado no ano de 1902. Manoel Bomfim, natural
de Sergipe, nasceu em Aracaju no ano de 1868 e faleceu no Rio de Janeiro em 1932. Médico
formado pela Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro em 1890 com a tese Das Nephrites –
onde discutiu sobre quadros infecciosos 24, também foi psicólogo e pedagogo, pensador da
história e ensaísta, autor de América Latina: males de origem, publicado em 1905.
Ambos expressam nessas obras interpretações sobre a nação, percebida e analisada
sem seus aspectos políticos, sociais e culturais, que repercutiram no meio intelectual do qual
faziam parte adensando o ambiente de debates sobre o futuro da nação.
4. Os sertões
Enviado ao sertão baiano para cobrir os desdobramentos da guerra de Canudos na
quarta expedição do exército em 1897, Euclides da Cunha ficou perplexo ao se deparar com a
realidade, até então, desconhecida. O autor que vinha interpretando o conflito no sertão
baiano como a nossa “Vendéia”, em dois artigos publicados em O Estado de São Paulo em
março e julho de 1897, acreditou que o exército estava lutando contra a restauração
monárquica, como a ocorrida na França na época da Revolução de 1793 a 1795. 25
A comparação garantia, pela crença na repetição da história, a certeza da vitória sobre os rebeldes do Conselheiro (...). Cinco anos depois, em Os sertões, Euclides criticou tal confronto entre Canudos e a Vendéia, ao descartar a ideia de uma conspiração monárquica e
24 BOMFIM, Manoel. Das nefrites. 1890.65 f. Tese. (Doutorado em Medicina) – Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 1980. 25 VENTURA, Roberto. “Euclides da Cunha e a República”. In: Estudos Avançados. São Paulo: IEA-USP, 1996, 278.
10
mostrar que a rebelião dos seguidores de Antônio Conselheiro era muito mais mística e religiosa do que propriamente política. 26
Nesse sentido, Os sertões também foi uma obra de crítica à política republicana. Para
Euclides a República sairá triunfante, mas, com efeito, o episódio de Canudos assumirá o
caráter de genocídio, ação cuja “necessidade” foi questionada. O autor caudatário das ideias
evolucionistas cria que aqueles mestiços, que ali se encontravam, em estado de barbárie - sem
civilização, estavam condenados ao desaparecimento, pela força motriz da história, que de
acordo com as concepções evolucionistas mostrariam a sua inaptidão à vida.
Em face disso, Luiz Costa Lima, em Terra Ignota, pondera os efeitos da denúncia
contra a República, quando analisa a relação entre a ação das tropas do exército sobre a
população canudense e a perspectiva de Euclides, a partir da sua crença de que os sertanejos
estavam fadados ao desaparecimento. Para o autor a inferência evolucionista enfraquecia o
tom da denúncia, suavizando seu impacto na sociedade.
Não é que a explicação evolucionista impugnasse o tom da denúncia, mas a enfraquecia de maneira taxativa: a comunidade que ali se trucidara, durante anos de uma luta desigual, já estava fadada pela ‘força motriz da história’ a desaparecer. Conquanto a ação do governo republicano haja sido impiedosa ou mesmo criminosa, buscando resolver pelas armas o que era um conflito de mentalidades e assim demonstrando, em seu “litoralismo”, como diria Amoroso Lima, uma ignorância mais injustificada que a dos fanáticos, o fato cientifico cru era que os assassinados tinham curto prazo de vida. A explicação evolucionista não coibia a denúncia, mas a limitava ao aspecto humanitário. 27
De formação positivista e evolucionista, Euclides acreditava que os efeitos da
mestiçagem eram um entrave ao desenvolvimento daquela população considerada
degenerada. Não obstante, a crítica de Costa Lima, destacamos que a República foi alvo de
decepção para o engenheiro que não concordava com os rumos que o país seguia após,
alcançar mais uma etapa do processo histórico de acordo com as concepções positivistas.
Canudos teria sido o resultado da instabilidade dos primeiros anos de uma República, decretada ‘de improviso’ e introduzida como ‘herança inesperada’ ou ‘civilização de empréstimo’, que copiava os códigos europeus. Em trecho de Os sertões, que não foi incluído na versão final do livro, observou que o novo regime fora incapaz de romper com o passado: ‘A república poderia ser a regeneração. Não o foi (...) a velha sociedade não teve energia para transformar a revolta feliz numa revolução fecunda’. 28
A República, de acordo com o que se passou no sertão baiano, não estaria fazendo
juízo ao lema: ordem e progresso, adotada na bandeira nacional e retirado da fórmula
26 Ibidem, p. 278. 27 LIMA, Luiz Costa. Terra ignota: a construção dos sertões. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1997, p. 27. 28 VENTURA, 1996, p. 284.
11
positivista: “Amor por princípio e a Ordem por base; e o progresso por fim”, que para o
filósofo fundador do positivismo, Auguste Comte (1798-1857) representava os fenômenos da
sociedade. 29 Ao invés de levar a ordem para aquele lugar, os soldados do exército se
mostraram “tão bárbaros” quanto os que ali se encontravam.
A narrativa dos sertões, desse modo, foi estruturada a partir de três pontos: a terra, o
homem e a luta. Em “A terra” tratou da geologia brasileira e do meio físico do sertão baiano;
em “O homem” discutiu a formulação do homem americano, a formulação do sertanejo e os
males da mestiçagem e em “A luta” narrou a Guerra de Canudos como resultante de fatores
naturais, étnicos e históricos. 30
As principais referências teóricas para a construção da narrativa euclidiana são,
primeiramente, o historiador francês Hippolyte Taine (1828-1893), que formulou na em sua
obra Histoire de La Littérature anglaise (1863) a concepção naturalista de história
“determinada a partir de três fatores: o meio, com o ambiente físico e geográfico; a raça,
responsável pelas disposições inatas e hereditárias; e o momento, resultante das duas
primeiras causas” 31. Em segundo, o sociólogo austríaco Ludwig Gumplowicz (1838-1909)
para quem a história era resultante da luta entre as raças, com a liquidação dos grupos fracos,
pelos fortes.
De acordo com essa concepção de que o produto histórico é determinado na “luta entre
as raças”, Euclides concluiu que o conflito entre Canudos e a República era resultado,
do choque e entre dois processos de mestiçagem: a litorânea e a sertaneja. O mestiço do sertão apresentaria vantagem sobre o mulato do litoral, devido ao isolamento histórico e à ausência de componentes africanos, que tornariam mais estável sua evolução racial e cultural. ‘O sertanejo é, antes de tudo, um forte. Não tem o raquitismo exaustivo dos mestiços neurastênicos do litoral.’ 32
Nesse sentido Maria Regina Capelari Naxara afirma que o autor trabalhava com uma
ideia de raça que pressupunha a heterogeneidade inicial dos povos, diferenciação que era
superada com o tempo (a história), através da constituição de uma identidade para o grupo
social (alcançando a homogeneidade racial), através da fusão de gêneros heterogêneos. 33
29 Cf. em BARRETO, Luís Pereira. Soluções positivas da política brasileira. In: MESQUITA, André Campos (org.). Rio de Janeiro: Editora Escala, s/d., p. 9. 30 Roberto Ventura defende que Euclides assumiu em Os sertões o mesmo tom de acusação que Émile Zola empregara na defesa do capitão Dreyfus, responsabilizando os governos federal e estadual pelo massacre da população de Canudos, sobretudo o exército. Seu objetivo era “denunciar a guerra como fratricídio, matança entre irmãos, filhos do mesmo solo.” Cf. em Euclides da Cunha: esboço biográfico – retrato interrompido da vida de Euclides da Cunha. São Paulo: Companhia da Letras, 2003, p. 198. 31 Ibidem, p. 200. 32 Ibidem, p. 202. 33 NAXARA, p.186.
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Deslocando a questão da superioridade entre povos distintos para os seus graus de cultura e
não de sua natureza. 34 Nessa perspectiva, para Ivana Stolze Lima, conhecer a Guerra de
Canudos significou para Euclides conhecer o sertanejo, homem do interior que se forjou em
contato com a aridez do sertão, pois “as características dos homens que fabricaram aquela
história viriam do fato de serem mestiços” 35, considerando importante a identificação da
gênese das “raças mestiças”, através do estudo de cada uma das “raças” que formariam o
Brasil.
5. Os males de origem e as causas do atraso do Brasil
O meu livro é uma obra de amor – de muito amor à minha terra. Quando o escrevi, roubando meu tempo às excursões, aos passeios e aos estudos que deveria fazer na Europa, é porque
estava convencido que se deviam dizer e propagar as verdades que nele se dizem. Manoel Bomfim
Para o autor o presente seria compreendido à luz do passado e por isso havia uma
necessidade de compreensão de suas causalidades hereditárias:
Diante de uma fórmula, o indivíduo para, suspende o raciocínio, quebra a resolução, desanima e, dominado pelo respeito à frase consagrada, é incapaz, de reagir, de avançar para o Bonzo, e analisá-lo, para ver o que ali existe de justo e de exato. Portugal explorava o Brasil, e, para garantir uma exploração fácil e completa, determinou que a colônia fosse exclusivamente agrícola; assim foi, e a tradição ficou. Um dia, um estadista retórico, cujas ideias políticas eram as mesmas – do Estado colonial – formulou: O Brasil é uma nação essencialmente agrícola. Foi o bastante, e ficou assim consagrada a rotina econômica; ninguém teve coragem de tomar essa inépcia, e mostrar o quanto é idiota e irracional e conservar-se um país, qualquer que ele seja, como puramente agrícola. 36
Nessa perspectiva, Manoel Bomfim ao analisar a problemática do caráter nacional
brasileiro, em seu livro, a concebe como parte de um todo maior: a América Latina, o que
equivale a redimensionar as questões sobre o país para as relações políticas entre América
Latina e Europa. Nesse sentido, o atraso brasileiro em relação ao progresso das sociedades
europeias, na obra de Bomfim vai ser compreendido como consequência das relações entre as
34 Thomas Glick, autor de trabalhos sobre a recepção do darwinismo na Espanha e em países ibero-americanos, afirma que o poligenismo brasileiro era a forma darwinista de “racismo cientifico” – ressaltando, no entanto, que Darwin era monogenista – e que os trabalhos dos primeiros poligenistas norte-americanos como os de Samuel George Morton eram celebrados pelos darwinistas sociais brasileiros, como Euclides, que em sua perspectiva foi atraído pela ideia da origem diferenciada das raças, que fazia possível uma América autônoma, berço da espécie humana. Cf. em GLICK, Thomas. “Introdução”. In: DOMINGUES, Heloisa Maria Bertol (org.). et al. A recepção do darwinismo no Brasil. Rio de Janeiro: Editora da Fiocruz, 2003, 24. 35 LIMA, Ivana Stolze. O Brasil mestiço: discurso e prática sobre relações raciais na passagem do século XIX para o século XX. Dissertação de Mestrado. Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro, 1994, p. 77. 36BOMFIM, Manoel. América Latina: males de origem. Rio de Janeiro: Editora Topbooks, 2005. , p. 193-194.
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“nações hegemônicas e as nações dependentes”, ou seja, os países europeus e suas ex-colônias
dado que é analisado sob a metáfora biológica da relação de exploração e dependência
decorrente do parasitismo. 37
De acordo com Roberto Ventura, esses conceitos eram de dois franceses, o botânico
Jean Massart (1865-1925) e do político socialista Émile Vandervelde (1866-1938), “segundo
o qual um ser vivo se torna parasita ao viver a custa de outro, explorando-o e sugando-lhe as
forças e os alimentos.” 38 Com o emprego do conceito, Bomfim metaforicamente denunciava
a exploração que as metrópoles portuguesa e espanhola teriam praticado contra o povo da
América; “num contexto em que o discurso dominante proclamava a euforia do progresso, o
diagnóstico do parasitismo como a lógica estruturadora da sociedade era, portanto, um
contraste radical em relação ao otimismo propagado.” 39
Sob essa ótica de compreensão Manoel Bomfim faz uma análise crítica da formação
histórico-cultural do continente Sul-americano e parte da experiência da colonização ibérica
para explicar os “males” nacionais. Seu “diagnóstico” indica que as causas do atraso do Brasil
estavam condicionadas ao prolongamento de um estatuto colonial, com a permanência de uma
mentalidade colonizadora e das oligarquias no poder, além dos interesses do imperialismo
estrangeiro – que para ele fundamentavam as análises pessimistas sobre o país pelos teóricos
da rapinagem, os europeus.
Sua análise não se detém apenas em aspectos políticos, Bomfim nos apresenta dados
psicológicos da formação da mentalidade do brasileiro na tentativa de demonstrar a relação
intrínseca entre o processo colonizador e a formação de identidades nacionais. Assim, na
perspectiva do autor é fundamental considerar as relações que foram estabelecidas com a
metrópole portuguesa para compreendermos os hábitos, as formas de ser, que foram
assimiladas pelo povo colonizado.
Assistidos, reconfortados por estes, os elementos refratários do passado parasitário, revivem, proliferam, doutrinam, orientam; e a nova pátria não chega nunca a ser uma pátria, senão a ex-colônia, que se prolonga pelo Estado independente, contra as leis da evolução, sufocando o progresso, presa a mil preconceitos, peada pela ignorância sob o conservantismo. 40
37 Segundo definição corrente parasito ou parasita tem os seguintes significados: s.m. Biologia. Ser que obtém seu alimento retirando-o de outro, chamado hospedeiro; p.ex., a tênia do homem. O mesmo que parasita. Fig. Pessoa que vive a expensas de outrem. Disponível em: Dicionário online de Português http: http://www.dicio.com.br/parasito/, acessado em janeiro de 2015. 38 VENTURA, Roberto. “Manoel Bomfim, a América latina: males de origem”. In: MOTA, Lourenço Dantas (organizador.). Introdução ao Brasil: um banquete no trópico. São Paulo: Senac, 2000, p. 245. 39 KROPF, Simone Petrglia. “Manoel Bomfim e Euclides da Cunha: vozes dissonantes nos horizontes do progresso.” In: História, ciências, saúde: Manguinhos, vol. III (1), Rio de Janeiro, mar/jun de 1996, p. 92. 40 BOMFIM, 2005, p. 358.
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Manoel Bomfim procura demonstrar que os problemas contemporâneos àquela época
decorriam da formação da sociedade ibero-americana, refutando as análises que condenavam
o país pela miscigenação do seu povo. Para ele a miscigenação era um fator positivo e até
renovador, pois “tenderia a reequilibrar os elementos negativos herdados da colonização” 41 e
afirma:
Não há na história da América Latina um só fato provando que os mestiços houvessem degenerado de caráter, relativamente às qualidades essenciais das raças progenitoras. Os defeitos e virtudes que possuem vêm da herança que sobre eles pesa, da educação recebida e da adaptação às condições de vida que lhes são oferecidas. 42
Pelo exposto, podemos perceber que as análises de Bomfim divergem radicalmente
das dos demais autores pensadores da nação no mesmo período e ao mesmo tempo
estabeleceu um contradiscurso 43 no cenário intelectual de então. Procurando demonstrar, que
os problemas que os povos da América Latina enfrentavam representavam uma herança muito
mais cultural, decorrente da colonização ibérica, do que racial ou mesológica. 44 Para esse
pensador os problemas dos países latino-americanos eram de ordem estrutural, ou seja,
estavam ligados a maneira como funcionava a sociedade que havia acabado de se tornar
republicana.
A miscigenação desse modo, não é compreendida na obra de Bomfim como um
impedimento ao desenvolvimento do país. Para ele as teorias que condenavam a nação pela
mistura de “raças” eram resultantes de uma “tradição” de pensar o Brasil sob a ótica da
exploração baseada numa economia agrária. Esse modo de ver a sociedade brasileira teria
permanecido no pós-independência e se mantido após a Proclamação da República, como
uma espécie de herança intelectual, baseada numa mentalidade de conservadorismo.
Conforme Antonio Candido “está é uma das ideias fundamentais de Manoel Bomfim, talvez
que seja politicamente a mais importante do seu livro, e sem dúvida uma das mais fecundas e
esclarecedoras para analisar a sociedade brasileira tradicional.” 45
41 ORTIZ, 1985, p. 26. 42 BOMFIM, 2005, p. 291. 43 Cf. em: AGUIAR, 2000; SUSSEKIND e VENTURA, 1984.
44 CAIRO, Luiz Roberto Velloso e SANTOS, Davi Siqueira. “O pensamento intelectual de Manoel Bomfim, em
A América Latina: males de origem”. In: Antares. São Paulo, nº 2, jul-dez 2009.
45 CANDIDO, Antonio. “Radicalismos”. In: Estudos avançados. São Paulo: USP, vol. 4, nº 8, 1990, p. 13.
Disponível em http://www.revistas.usp.br/eav/article/view/8540/10091, acessado em maio de 2014.
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6. Considerações finais Este ensaio constituiu um esforço no sentido de problematizar e mapear algumas
questões pontuais no âmbito da circulação das ideias estrangeiras no Brasil, a saber, o
positivismo, darwinismo social, evolucionismo, em fins do século XIX e inicio do XX.
Tentamos pontuar de que forma essas ideias compreenderam um todo, de forma a moldar um
aparato conceitual utilizado pelos intelectuais abordados, para compreenderem uma formação
nacional diversa em relação ao ambiente europeu, indicando como foram empregadas essas
teorias para a compreensão da nacionalidade.
Cremos que o esse exercício de sintetizar alguns pontos dessa virada de século
brasileiro, é importante para refletirmos sobre os desdobramentos que tais ideias e visões de
mundo, marcadamente orientadas a partir da Europa, são importantes para compreendermos
os desdobramentos que tiveram na sociedade e na configuração de uma perspectiva de
progresso própria de uma sociedade latino-americana.
Torna-se igualmente relevante focalizar propostas e pensamentos que ultrapassaram os
parâmetros recorrentes e avançaram para outros paradigmas de análise, como os apresentados
pelos intelectuais aqui tratados.
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