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POR AMOR ÀS CIDADES - Jacques Le Goff

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Page 1: POR AMOR ÀS CIDADES - Jacques Le Goff

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Page 2: POR AMOR ÀS CIDADES - Jacques Le Goff

FUNDAÇÃO EDITORA DA UNESP

Presidente do Conselho CuradorMarcos Macari

Diretor-PresidenteJosé Castilho Marques Neto

Editor-ExecutivoJézio Hernani Bomfim Gutierre

Conselho Editorial AcadémicoAntónio Celso Ferreira

Cláudio António Rabello CoelhoJosé Roberto Ernandes

Luiz Gonzaga MarchezanMaria do Rosário Longo Mortatti

Mário Fernando BolognesiPaulo César Corrêa Borges

Maria Encarnação Beltrão SpositoRoberto André Kraenkel

Sérgio Vicente Motta

Editores-AssistentesAndcrson Nobara

Denise Katchuian DogniniDida Bessana

JACQUES LÊ GOFF

POR AMOR ÀS CIDADESCONVERSAÇÕES COM JEAN LEBRUN

TRADUÇÃOREGINALDO CARMELLO CORRÊA DE MORAES

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UNNESP

Page 3: POR AMOR ÀS CIDADES - Jacques Le Goff

ítema integradoJibliotecas/UFES

Copyright © 1997 by Lês Editions TextuelTítulo original em francês: Pour Vamour dês villes.

Entretiens avec Jean Lebrun

Copyright © 1998 da tradução brasileiraFundação Editora da UNESP (FEU)

Praça da Sé, 10801001-900 - São Paulo - SP

Tel.: (Oxxll) 3242-7171Fax: (Oxxll) 3242-7172

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Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)(Câmara Brasileira cio Livro, SP, Brasil)

Lê Goff, Jacques, 1924 -Por amor às cidades: conversações com Jean Lebrun; tradução Reginaldo

Carmello Corrêa de Moraes. - São Paulo: Fundação Editora da UNESP,1998. - (Prismas)

Título original: Pour 1'amour dês villes.ISBN 85-7139-194-7

1. Cidades-História 2. Cidades medievais 3. Idade Média - História 4.Urbanismo — História I. Título. II. Série.

98-2165 CDD-711.409

índice para catálogo sistemático:1. Cidades: Urbanismo: História 711.409

Editora afiliada:

Aasoclactòn de Kditorialcs Universitáriasde America Latina y el Caribe

Associação lirasileira deKdiloras Universilárias

Para Thomas.

Page 4: POR AMOR ÀS CIDADES - Jacques Le Goff

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INTRODUÇÃO

Esta representação de Tróia, após

sua reconstrução, mescla a IdadeMédia (muralha, torre) e a

Antiguidade (colunas, amplas

portas). Ela coloca em cena

aqueles que dominam a cidade,príncipe, cavaleiros e caçadores.

Iluminura extraída do Roman de

7ro/e, de Benoit de Sainte-Maure,

1340-1360 (manuscrito 1505,f.23 v.). Roma, Biblioteca

Apostólica do Vaticano.

ífe suas ideias preferidas é que há mais semelhanças entrea cidade contemporânea e a cidade medieval do que entre acidade medieval e a antiga.

Sim, as funções da cidade, seus monumentos mu-daram de tal modo que as duas cidades não sãocomparáveis. Em primeiro lugar, o templo. Curio-samente, não é mais isso que distingue a cidademedieval da cidade antiga, porque muitas vezesou o templo foi reutilizado como igreja, ou então aigreja cristã foi construída sobre o local do templo.Contudo, com a igreja, um elemento fundamen-talmente novo sobreveio. Os sinos aparecem e seinstalam no século VII no Ocidente. Eles serão pon-tos de referência da cidade; em particular na Itália,onde o sino muitas vezes é instalado não no corpodo monumento, como seria o caso mais frequenteno resto do Ocidente, mas ao lado, numa torre espe-cial: é o campanário. Quanto ao anfiteatro, ele foiabandonado, já que o cristianismo ocidental nãoadmite mais o circo; diferentemente de Bizâncio,em que a cidade antiga persiste (uma cidade "anti-ga" que, é verdade, não data senão do século IV, jáque Constantino fundou-a apenas em 330). O localserve doravante como depósito de pedras de cons-trução. Se ele subsiste ainda hoje - Nímes, Aries -é graças a uma hábil reconstituição. O estádio nãotem mais sua razão de ser: o esporte toma formas

POR AMOR ÀS CIDADES

Page 5: POR AMOR ÀS CIDADES - Jacques Le Goff

A pregação dos fradesmendicantes é um dosmomentos fortes dasociabilidade urbana a partir

do século XIII. Ela combinadiscurso religioso e novidadesda vida na cidade. Domenico

Beccafumi, Freche de SaintBernardin de Sienne sur Ia Place

de Sienne, 1537. Fragmento da

secção inferior do altar para o

oratório de São Bernardino de

Siena. Paris, Museu do Louvre.

Introdução

completamente diferentes. Reservado à classe no-bre, ele se torna essencialmente exercício militar.As termas desaparecem, já que se estabelece umanova relação com o corpo, assim como novas for-mas de higiene e de sociabilidade. A Idade Médianão foi um período de imundície. A higiene cor-poral, em particular, é objeto de cuidados, seja noâmbito privado, seja mais tarde em estabelecimen-tos especiais, as saunas, que terão, aliás, má repu-tação - e em parte merecida - porque desempe-nhavam também o papel de bordel. Ao lado daregião das termas antigas, em que as pessoas selavavam, sentava-se às mesas das tavernas, ondese discutia: elas também não têm mais razão deser. Além do mais, a praça pública muda de esta-tuto. Nada mais de fórum! Não temos mais o lugarcentral em que os cidadãos se encontram, na au-sência de instituição urbana comum: apaga-se estehábito de discutir em conjunto os negócios dacidade ou os negócios privados. Quando há en-contros e discussões, isso se dá com mais frequên-cia nas igrejas, sobretudo na sua parte anterior,que geralmente é mais desenvolvida e à qual sedá um nome antigo, o átrio.

O mercado, contudo, resgata a tradição do fórum.Sim, e um historiador russo muito original, MikhailBakhtin, mostrou isso muito bem, mas se existerecreação, isso acontece em circunstâncias e sobformas muito diferentes daquelas da Antiguidade.

10 POR AMOR ÀS CIDADES

O aspecto da cidade construída para os vivos também mudouquanto ao lugar dos mortos.

Os gregos e os romanos impeliam o morto impuropara fora da cidade, o mais das vezes, sobretudopara as pessoas ricas ou importantes, ao longo dasprincipais vias que partiam da cidade. O cristianis-mo urbaniza os mortos, e a cidade torna-se tam-bém a cidade dos mortos; o cemitério, um lugar desociabilidade, alheio a todo respeito religioso: elesomente terá um estatuto exclusivamente religioso

POR AMOR ÀS CIDADES 11

Page 6: POR AMOR ÀS CIDADES - Jacques Le Goff

Introdução

Na Idade Média, o castelo, lugar

de poder económico e político,

domina a sociedade camponesa.É muitas vezes contra o poder

senhorial que a cidade afirmará

sua independência e, depois, suainfluência sobre o campo ao

redor. Lavouras diante do castelode Lusignan (detalhe do

calendário, com zodíaco, mês demarço). Iluminura extraída dasTrês riches heures du duc deBerry, de Pol de Limbourg, séculoXV (manuscrito 65/1284, f.3 v.).Chantilly, Museu Conde.

tardiamente, a partir do século XIII. Até então, éum lugar de encontro e mesmo de diversão.

Nunca se perde tempo exercitando um pouco a etimologia."Ville" vem de villa.

Não nos esqueçamos de que a palavra "ville", paradesignar aquilo que chamamos de cidade, é muitotardia. Até os séculos XI e XII, escreve-se quaseque estritamente em latim e, para designar umacidade, usa-se "civitas", "cite". Ou urbs, a rigor, masbasicamente civitas. E, quando as línguas vernáculasaparecerem, o termo "cite" vai permanecer por mui-to tempo. "Ville" tomará o sentido urbano apenastardiamente, já que, como você lembrou, antiga-mente a palavra designava de fato um estabeleci-mento rural importante. Uma "villa" - não se devepensar numa casa de subúrbio atual - é o centrode um grande domínio. Do ponto de vista dos ma-teriais, a construção permanece em geral bastantemodesta, mesmo quando se usa a pedra: não sepode falar de castelo. Enfim, a villa é um domíniocom um prédio principal que pertence ao senhor;em consequência, é um centro de poder, não ape-nas de poder económico, mas também de poderem geral sobre todas as pessoas, os camponeses eos artesãos que vivem nas terras ao redor. Dessemodo, quando se passa a dizer, em francês, "Iaville" (o italiano conservará o termo citta), marcar-se-á bem a passagem do poder do campo para acidade. O termo "villa", esse se aplicará à aldeianascente a partir dos séculos IX e X.

12 POR AMOR ÀS CIDADES 13

Page 7: POR AMOR ÀS CIDADES - Jacques Le Goff

AMORAS CIDADES

POR AMOR ÀS CloADES 15

Page 8: POR AMOR ÀS CIDADES - Jacques Le Goff

Introdução

A villa da Antiguidade não tem mais razão de ser. E a palavra"subúrbio", então? Ela manifesta, se continuarmos a exercitar aetimologia, um fenómeno que diferencia a Idade Média daAntiguidade: a cidade obtém um poder novo sobre um setor que

depende dela.Absolutamente. Com a instalação de uma nova clas-se dominante, originada dos bárbaros ou, com maisfrequência, da fusão entre populações romanas an-tigas e populações bárbaras estabelecidas no terri-tório do antigo Império Romano, aparece uma for-ma de poder cujas origens são germânicas e que sedenomina a banalidade, o direito de banalidade. Éum direito de comando bastante geral, que incluidireitos de justiça, mas sobretudo direitos econó-micos: a obrigação de moer sua farinha no moinhodo senhor, a obrigação de pagar para poder ven-der sua colheita no mercado etc. É o direito debanalidade. E, a partir do século XI, aproximada-mente, esse direito espalha-se essencialmente nocampo, e forma-se uma estrutura que é típica dafeudalidade, que se chama a "senhoriagem banal".Mas esse termo, a banalidade, diz respeito tambémao território urbano er sobretudo, suburbano. A par-tir do século X, mas principalmente do XI, é o grandeperíodo de urbanização - prefiro utilizar esse ter-mo mais do que o de renascimento urbano, já quepenso que, salvo exceção, não há continuidadeentre a Idade Média e a Antiguidade. Esse desen-volvimento urbano faz-se a partir de núcleos. Es-ses núcleos são dominados ou por um senhor ecle-siástico, o bispo, em geral, nas cidades episcopais,ou por um senhor leigo, sobretudo um conde, des-

; precedentes.

2rda,ada de portas, a muralha

espaço urbano no planoil, assegura sua defesa e

? o controle da circulação

exterior. Em horas

inadas, à tarde e pela, a cidade se fecha atrás

; muralhas. A alegoria da

nça sobrevoa a cidade,

gio Lorenzetti, Effets duluvernement dans Ia ville,

339 (detalhe: torre da). Siena, Palácio Público.

ta.v1 põe fim ao

suramento de Parisirmando as muralhas emrés com plantas (os atuais

is Boulevards"). Hoje,

eriférica, muralha oca,i cidade para responder a

ova necessidade: melhorarlação urbana. Bulevariço de Paris, vistata de Champerret.•afia, 1974.

Introdução

POR AMOR ÀS CIDADES

de a época carolíngia. Eles governam a partir deseu palácio episcopal ou de seu castelo - que naItália são frequentemente estabelecidos em lugaresescarpados, que serão chamados de rocca. Em tor-no desses postos de comando constituem-se doistipos de territórios: de um lado, a cidade propria-mente dita, cingida em torno deles e entremeadade campos, e, de outro, os burgos da periferia. Des-de o século XII, a evolução das cidades medievaisconsistiu na reunião, lenta e numa única institui-ção, do núcleo primitivo da cidade e de um oudois burgos importantes. A cidade vai portanto lan-çar seu poder sobre certa extensão em volta, naqual exercerá direitos mediante coleta de taxas: éisso que se chamará de subúrbio. É certo que jáexistiam em Roma os arrabaldes, por exemplo, osarrabaldes dos marinheiros, da plebe, como a mal-afamada Suburre; mas a unidade contemporâneaentre cidade e seu subúrbio, tão interdependentes,

data da Idade Média.

Ainda assim a muralha isola a cidade. Com suas portas que

podem se fechar de novo para o subúrbio.Observe que essas portas dão o ritmo à nova mu-ralha, que é, em Paris, o bulevar periférico, tornan-do-o ao mesmo tempo tão impermeável e poroso

quanto as velhas muralhas.;

É a permeabilidade, desde a Idade Média, entre o subúrbio e acidade, sobre a qual o senhor gosta de insistir.

Jamais se dirá o suficiente quanto à importância dasordens mendicantes, dominicanos e franciscanos

POR AMOR ÀS CIDADES 17

Page 9: POR AMOR ÀS CIDADES - Jacques Le Goff

Introdução

principalmente, na história das cidades da IdadeMédia. Vou contar como os mendicantes utilizarama unidade, o vaivém entre cidade e subúrbio. Noséculo XIII, parecia essencial a essas ordens faze-rem-se aceitas dando às populações o exemplo dapobreza e da humildade; elas extraem as liçõesdos movimentos sociais que estão emergindo, nosquais as pessoas simples da cidade questionam aatitude dos poderosos e, em particular, a dos se-nhores, os quais, de seu campo, de suas fortalezas,continuam a dominar o espaço, incluindo o espa-ço urbano. Em contraposição, a riqueza se cria deum modo ainda mais brutal na cidade, com os mer-cadores, os burgueses, o comércio. Diante da arro-gância dos novos ricos e dos antigos poderososque estão sempre aí, para convencer o povo, paranão deixá-los rebelar-se contra a ideologia cristãda época - perdoem-me a expressão -, essas no-vas ordens mendicantes querem dar o exemplo. Éessa mesma a expressão que eles empregam: "pre-gar o exemplo". Como, então, eles concebem suainscrição no espaço? Eles chegam a uma cidade,fala-se deles, são novos personagens que provo-cam uma certa curiosidade. Mas eles ainda não ad-quiriram prestígio nem poder e, além disso, empe-nham-se em pôr em prática os ideais que pregam.Onde vão se estabelecer então? No limite da cida-de. E com frequência fora dela, na proximidade desuas portas. Onde o terreno é barato, onde muitasvezes recebem de presente uma casa ou um lotede terra. Como este não tem valor tão alto, não

Introduçao

A partir do século XIII, a notóriaopulência da Igreja suscita adúvida em número cada vez maiorde fiéis. São Francisco e SãoDomingos estão na origem de

uma renovação da sensibilidadereligiosa. Instalam-se nas portas dacidade, assumem sua pobreza eatraem número cada vez maior deteigos. Na fachada de um hospital,

simbolizando a caridade urbana,°s fundadores das duas grandesordens mendicantes urbanas, no"ifcio do século XIII, trocam umabraço que exprime a paz e a ,

fraternidade que fazem reinar naCldade. Andrea Delia Robbia,^encontre de Saint François et de*"nt Dominique, século XV.Crença, Hospital São Paulo dosConvalescentes

chega a ser um donativo oneroso o que lhes é con-cedido. Já não são mais os tempos dos séculos pre-cedentes, em que os ricos senhores davam aos con-ventos beneditinos, às igrejas vastas terras situadasno campo e, mais raramente, na cidade.Os mendicantes, portanto, encontram-se modesta-mente instalados na periferia, perto da muralha, nointerior, mas às vezes também no exterior, da cida-de. Eles manifestam assim o caráter subordinado epobre do subúrbio com relação à cidade e ao centroda cidade. E o que acontece em seguida? Rapida-mente, os mendicantes, dominicanos e franciscanosem particular, tornam-se conhecidos, estimados e po-derosos. Não diria ricos, porque recusam sempre a

POR AMOR ÀS CIDADES POR AMOR ÀS CIDADES 19

Page 10: POR AMOR ÀS CIDADES - Jacques Le Goff

Introdução

propriedade individual, mas são assessorados poradministradores leigos que gerenciam para eles osbens importantes, e seus conventos e suas igrejasaproximam-se pouco a pouco do centro ou, emtodo caso, do interior da cidade. Isso é muito níti-do na Itália, em Florença, em Veneza. Na França,muitos desses conventos foram destruídos quandoda Revolução Francesa. Podemos apenas decifrá-los nos nomes dos lugares e ruas, ali onde estavaminstalados, sob a Revolução Francesa, os clubes po-líticos: o convento dos jacobinos, do qual nada maisresta, que ficava ao lado do Panthéon, na Rua Saint-Jacques, e o convento dos cordeliers, cujo vestígioé, na Universidade de Paris-V, a antiga Faculdadede Medicina. Como melhor ilustrar a imantação dosubúrbio pelo centro, que a Idade Média colocouem movimento e a época contemporânea concluiu?

A questão central deste livro consistirá em interrogar a cidadena longa duração que começa, a seu ver, na Idade Média.A cidade se estende para todos os lados hoje, e os terrenospróximos dos aeroportos ou das novas confluências de viaspodem tornar-se mais caros que os do centro. Os equilíbriostradicionais da urbanização não foram rompidos em proveitoda periferia?

Você aponta para uma diferença de dimensão que épreciso desde já esclarecer pela demografia. Hoje, amaioria da população mundial vive em cidades, oque não significa que todos os citadinos renunciaramàs atividades agrícolas - pensemos nas cidades daChina, nas do leste da Rússia, ou em Kinshasa, que

POR AMOR ÀS CIDADES

Introdução

nisso lembram as cidades medievais. Ocorre queestas, no início do século XVI, concentravam talvez10% da população do Ocidente - 10% apenas. Masesses 10% dispunham de um poder criador, umpoder de dominação, um poder de difusão de ri-quezas, um poder que não era proporcional aosnúmeros da população. Tal como aquelas águasnas quais se derrama uma gota de corante, quebasta para colorir toda a bacia.

POR AMOR ÀS CIDADES 21

Page 11: POR AMOR ÀS CIDADES - Jacques Le Goff

A cidadeinovadora,palco de igualdade

e festa da troca

Page 12: POR AMOR ÀS CIDADES - Jacques Le Goff

A cidade inovadora, palco de igualdade e festa da troca

A entrada de reis e príncipes

glorifica a função de encontro,

de hospitalidade e de festa

cujo lugar central, material

e simbólico, é a porta da capital.

Carlos IV, o Belo, recebe em Parissua irmã Elizabeth, rainha

da Inglaterra, 1325. Iluminurae«raída das Cbron/quescie s/re Jean Froissart,

século XIV (manuscrito francês2643, f.1). Paris,B|blioteca Nacional da França.

A cidade contemporânea, apesar degrandes transformações, está mais próximada cidade medieval do que esta última da

cidade antiga. A cidade da Idade Média éuma sociedade abundante, concentradaem um pequeno espaço, um lugar deprodução e de trocas em que se mesclam oartesanato e o comércio alimentados poruma economia monetária. É também ocadinho de um novo sistema de valoresnascido da prática laboriosa e criadora dotrabalho, do gosto pelo negócio e pelodinheiro. É assim que se delineiam, aomesmo tempo, um ideal de igualdade euma divisão social da cidade, na qual osjudeus são as primeiras vítimas. Mas acidade concentra também os prazeres, osda festa, os dos diálogos na rua, nastabernas, nas escolas, nas igrejas e mesmonos cemitérios. Uma concentração decriatividade de que é testemunha a jovemuniversidade que adquire rapidamentepoder e prestígio, na falta de uma plenaautonomia.

POR AMOR ÀS CIDADES 25

Page 13: POR AMOR ÀS CIDADES - Jacques Le Goff

A cidade inovadora, palco de igualdade e festa da troca

O Sena ocupa um lugar

maior na vida da capital.As mercadorias chegam ao

porto de Greve. A cidade queexibe seu nome (Parísius) mostra

ao mesmo tempo suas funções

defensiva e económica.

A poderosa corporação dos

mercadores-barqueiros está naorigem da autonomia progressiva

de um poder municipal. Sobre aponte, quatro homens puxamum barril; no Sena, um barco

de carvoeiro. Iluminura extraídade La vie de Monseigneur Saint

Denis, glorieux apôtre de France,compilada segundo Hilduin peloabade Gilles, século XIV

(manuscrito 2092, f.1). Paris,

Biblioteca Nacional da França.

Em 1300, menos de 20% da população do Ocidente reside emcidades e a maior aglomeração é, de longe, Paris, com... 200mil habitantes, não mais.

A importância de Paris decorre da justaposição devárias populações. De um lado, uma população àsvezes ainda agrícola, artesã e comerciante, e, deoutro, uma população aristocrática. Diferentemen-te das cidades francesas, em particular do Norte,onde a nobreza não reside, em Paris residem geral-mente as grandes famílias ou os altos prelados, comoo abade de Cluny (daí o Hotel de Cluny), como oarcebispo de Sens, de quem depende o bispo deParis (daí o Hotel de Sens). Essa população aristocrá-tica dispõe de um forte poder de consumo: pode-sedizer que uma das principais indústrias parisiensesé a indústria suntuária; os ofícios de arte não farãooutra coisa senão se desenvolver até a Revolução,concentrados no subúrbio de Saint-Antoine, que noslegou marceneiros e lojas de móveis. Essa locali-zação mostra, aliás, que, apesar de tudo, mesmouma atividade económica tão honorável como a dosofícios de arte não se situa no coração da cidade-, éfora das muralhas que se encontra o subúrbio deSaint-Antoine. As atividades económicas que seinstalam no próprio coração da cidade são essencial-mente os locais de abastecimento, como Lês Halles,em Paris.Três espaços principais dividem a Paris medie-val: o económico, o político e o universitário. Oprimeiro é a margem direita, em torno dos mer-cados construídos por Philippe Auguste, com o

26 POR AMOR ÀS CIDADESPOR AMOR ÀS CIDADES

Page 14: POR AMOR ÀS CIDADES - Jacques Le Goff

A cidade inovadora, palco de igualdade e festa da troca A cidade inovadora, palco de igualdade e festa da troca

Religião e economia: umepisódio da vida de São Denis,

padroeiro de Paris; é a

oportunidade para representar a

alimentação da cidade graças

aos numerosos barcos-moinhos,

sob a Grande Ponte, no Sena.O papa Sisinio mostra a São

Denis, São Rustique e São

Eleutério os corpos dos cristãos

que condenou à morte. No Sena,

os moinhos sob a Grande Ponte

de Paris. Iluminura extraída da La

v/e c/e Monse/gnet/r Saint Denis,

glor/eux apôtre de France,

compilada segundo Hilduin pelo

abade Gilles, século XIV

(manuscrito 2092, f.37 v.). Paris,

Biblioteca Nacional da França.

porto, a Place de Greve, onde se situa também omercado da mão-de-obra. Os equipamentos aí sãoextremamente rudimentares. O que quer que acon-teça (Fluctuat nec mergitur), esse lugar é estimula-do pelo comércio por via fluvial - controlado pelaguilda dos mercadores-barqueiros - que sobe oSena desde Rouen. Já na Antiguidade, eram po-derosos os navegadores parisienses que maneja-vam os barcos transportando mercadorias, comopode testemunhar um monumento conservado nomuseu de Cluny. A íle de Ia Cite é o lugar dopoder político e eclesiástico, o rei e o bispo, de-pois o parlamento, a partir do fim do século XIII.Por fim, na margem esquerda concentra-se a ci-dade escolar, universitária e intelectual. Essa tri-partição marca ainda fortemente a fisionomia deParis: basta observar hoje o protesto que suscita odeslocamento das maisons de moda, tradicional-mente mais numerosas na margem direita, em di-reção a Saint-Germain-des-Prés!

O que significa que, se pensamos na longa duração, se formosalém mesmo do caso de Paris, as funções essenciais de umacidade são a troca, a informação, a vida cultural e o poder.As funções de produção- o setor secundário - constituemapenas um momento da história das cidades, notadamente noséculo XIX, com a Revolução Industrial, visível sobretudo nossubúrbios situados na periferia. Elas podem desfazer-se;a f unção da cidade permanece.

Não estou completamente de acordo com a famo-sa divisão dos economistas em setores primário,secundário e terciário. Parece-me que atividades

POR AMOR ÀS CIDADES POR AMOR ÀS CIDADES 29

Page 15: POR AMOR ÀS CIDADES - Jacques Le Goff

A cidade inovadora, palco de igualdade e festa da trocaA cidade inovadora, palco de igualdade e festa da troca

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POR AMOR ÀS CIDADES

POR AMOR ÀS CIDADES 31

Page 16: POR AMOR ÀS CIDADES - Jacques Le Goff

A cidade inovadora, palco de igualdade e festa da troca

Páginas precedentes.

À esquerda.Até o século XIX, a cidade épermeada de jardins, locais deprodução hortícola, de lazer dos

poderosos ou de silêncio em

torno das propriedades

eclesiásticas. Seu bom

ordenamento testemunha a

racionalização da natureza e daagricultura no ambiente urbano,

no fim da Idade Média. Jardim

de recreação num ambienteurbano. Os jardineiros se ocupam

sob o olhar do mestre. Iluminura

extraída de Lê livre dês prouffitz

champestres, de Pierre de

Crescens, século XV (manuscrito

5064). Paris, Biblioteca do

Arsenal.

À direita.

Os jardins persistem no século

XX, na periferia parisiense. Sua

produção hortícola beneficia ocotidiano das famílias operárias.

Jardins operários em Suresnes.Fotografia, 1943.

importantes estão assentadas em dois setores, e pen-so, em particular, no artesanato. Naturalmente, oartesanato faz vir de fora as matérias-primas, masas transformações são feitas em Paris. O artesanatoé de grande importância, ele é muito produtivo.São Luís, que pretendeu controlá-lo, descreveu-oem uma medida disciplinar. Pediu ao preboste deParis, Étienne Boileau, que fossem redigidos os es-tatutos dos ofícios de Paris, aquilo que se denomi-na Livre dês métiers: há mais de cem deles! Assim,o artesanato estende-se entre aquilo que se costu-ma chamar de primário e secundário. Como, aliás,a produção da farinha, do pão. A este respeito,Paris, durante muito tempo, foi um grande centro"industrial". Ainda podem ser vistos, não longe docentro de Paris, os Grandes Moinhos, que estãodesaparecendo nas amplas transformações atuais.Da mesma forma que desapareceram há muito tem-po os barcos sobre os quais eram fixados os moi-nhos e que eram amarrados às pontes, às dezenas.Conservamos miniaturas que nos mostram as pon-tes de Paris, com as casas construídas em cima e osmoinhos amarrados aos pilares.

Da mesma maneira que se esquece aquilo que foi a funçãoagrícola das cidades, e que reencontramos em algumas cidadesda África, Bangui, Brazzaville, Kinshasa. Em Bamako, oscriadores peúles guardam as cabras na cidade. Parece que 20%da população do Cairo pratica a agricultura.

É uma situação medieval. A "desruralização" da ci-dade é um fenómeno do século XIX. Até o século

A cidade inovadora, palco de igualdade e festa da troca

XIX, persiste uma certa atividade rural nas cidadese ela é sempre suscetível de ser retomada em casode necessidade. Vi isso recentemente na China: acasa da família, com o quintalzinho para os le-gumes, os frutos necessários ao consumo familiare que são trocados com os vizinhos. Encontram-se assim campos e, principalmente, terrenos ondepodem pastar os rebanhos. A cidade, portanto,pode ser penetrada pelo campo; não seria per-tinente definir, a este respeito, uma separaçãoabsoluta.

Desruralização da cidade no século XIX, desindustrialização noséculo XX, a cidade contemporânea perdura, contudo, na suaessência. E sua essência está em outro lugar, na função da troca.

A cidade é agrupamento de profissionais, de espe-cialistas. Pensemos naquilo que é hoje, em Paris,primeira cidade europeia de congressos, o Salãoda Agricultura. A feira e o mercado da Idade Médiaofereciam as mesmas ocasiões de trocas e de opor-tunidades de modernização. Os Conselhos das or-dens mendicantes que se tornaram as principaisordens religiosas a partir do século XIII ocorremnas cidades e provocam uma grande aglomeraçãonão apenas de religiosos, mas também de todo umcírculo para alimentá-los, fornecer-lhes livros, ob-jetos religiosos etc. Na sociedade antiga, o grandedomínio, a villa, era um centro de produção e decomercialização que reduzia a função económicadas cidades. Esta começa a se desenhar na IdadeMédia nos termos que conhecemos.

Páginas seguintes.À esquerda.O mercado intra muros éinstalado perto da porta poronde chega o abastecimento.Lojas e açougues testemunham ainfluência da arquitetura urbanasobre os estabelecimentoseconómicos. Vista do mercadoda porta de Ravena, em Bolonha.Iluminura extraída de ummanuscrito italiano, século XV.Bolonha, Museu Cívico.

A direita.O mercado anima regularmenteas praças urbanas e permanece olugar dos bons negócios, comoaqui ao pé do Temple Neuf, emMetz. Na cidade moderna, elemuitas vezes conservou sualocalização central, perto de umaigreja. Mercado, Praça daComédia, em Metz, Moselle.Fotografia, 1978.

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v

Page 18: POR AMOR ÀS CIDADES - Jacques Le Goff

A cidade inovadora, palco de igualdade e festa da troca

Impossível

Estes vitrais reproduzem "a

história do judeu e da hóstia",também chamada "milagre de

Billettes", célebre na Idade

Média. Uma burguesa parisiense

havia entregue ao judeu Jônatas

uma hóstia consagrada que ele

profana. Jônatas foi então presoe queimado vivo.

Aqui, as duas primeiras cenas,

que representam a burguesa e o

judeu negociando no mercado.Os judeus na cidade são

frequentemente ligados àmoeda. Vitral proveniente da

igreja de Santo Elói de Rouen,século XVI. Rouen, Museu

Regional de Antiguidades.

36 POR AMOR ÀS CIDADES

não falar, nesse momento, do dinheiro, da moeda.O fato fundamental é que se tem muito mais ne-cessidade de dinheiro na cidade do que no campo.Primeiro, porque muito raramente o camponês élevado a comprar coisas para as quais precisa demoeda. De outro modo, as somas, os valores emquestão são muito menores do que na cidade, ondeos gastos, muitas vezes ostentatórios, quer se tratede casas, aluguéis, alimentação, vestuário, exigemmais uso de dinheiro. Em suma, a cidade suscitaaqueles que, a partir do século XIV, serão chama-dos de banqueiros, isto é, pessoas que faziam en-tão operações muito simples, em lugares muito sim-ples, com frequência em espaços exteriores, sobrebancas ("banqueiro" vem daí). Sua atividade es-sencial é o câmbio: estamos numa sociedade emque a grande multiplicidade de moedas dificulta aeconomia. É aí que vemos aparecer o papel dosjudeus. Porque eles se tornaram os especialistasnão do câmbio (são cambistas bastante modestos),mas do empréstimo. Empréstimo a juros e emprés-timo para consumo. Eles são quase que os únicosque podem dispor de somas sobre as quais cobramum juro, e pelas quais tomam garantias que benefi-ciam fortemente o credor - louças, vestuário, teci-dos, coisas da vida cotidiana. Aquele que toma em-prestado dos judeus se despoja e alimenta um ódioterrível em relação a isso. Contudo, esse ressenti-mento é consequência da organização da econo-mia e da sociedade. Progressivamente, os judeus

A cidade inovadora, palco de igualdade e festa da troca

L POR AMOR ÀS CIDADES

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A cidade inovadora, palco de igualdade e festa da troca

foram expulsos de todos os ofícios. No século XIII,eles são excluídos da posse da terra, mesmo comocamponeses servos de um senhor; deixam entãoos campos.

E também não são bem-vindos na cidade? Pode-se lembrar queem Estrasburgo há o sino que toca, de manhã, para permitir-lhesa entrada na cidade e, à tarde, para ordenar-lhes que saiam.

Trata-se de uma instituição relativamente tardia. Ahostilidade com relação aos judeus aparece no fimdo século XI. Os movimentos antijudeus generali-zam-se a partir do século XIV e, no fim da IdadeMédia, restarão apenas duas soluções para os ju-deus. Uma é pura e simplesmente a expulsão: nãohá mais judeus no reino da França a partir do fimdo século XIV, Charles VI expulsa-os a todos, se-guindo o exemplo ainda mais precoce da Inglater-ra, desde o início do século XTV. A outra solução,particularmente na Itália, na Europa central e noleste europeu, é o gueto.

Os judeus, desse modo enfraquecidos, podem permanecer comoos únicos credores?

Eles não circulam mais a não ser como credores.As Escrituras predeterminam igualmente essa se-paração dos papéis: o Antigo Testamento proíbe -aos judeus, inicialmente, e, depois, isso foi retoma-do pelos cristãos - que se empreste a juros a seuirmão. Portanto, os judeus não praticam o emprés-timo entre eles, mas o praticam em relação aoscristãos, não há nenhuma restrição que pese a esserespeito. Da mesma forma, durante muito tempo,

A cidade inovadora, palco de igualdade e festa da troca

páginas precedentes.

À esquerda.

A cidade é o reino daconstrução: as casas dos

poderosos e ricos dão provas

disso, entre os monumentos

urbanos.Ambrogio Lorenzetti, fffefs du

bon gouvernement dans Ia ville,

1337-1339 (detalhe: arquitetura

e construção de uma casa).

Siena, Palácio Público.

À direita.Exagera-se a verticalidade

na cidade contemporânea;

as técnicas de construção

sofreram uma revolução.

Mas o homem, o trabalhador

urbano, está sempre ali,

correndo risco de vida.

Fotografia, Estados Unidos,

1934.

Página seguinte.

O século XVI desenvolve ainda a

monumentalidade urbana. Nas

cidades portuárias, a atividade

comercial continua central, entre

economia e religião, entre omoinho de vento e a capela.

A porta de Palma de Maiorca.

Nissart, Retable de Saint Georges(detalhe), século XVI. Palma deMaiorca, Museu da Catedral.

os cristãos não obtêm esse tipo de empréstimo ajuros a não ser com os judeus. Pouco a pouco oscristãos, em particular os mercadores, também setornarão credores. Num estudo de Georges Espinas,datado de 1933, e consagrado a um grande merca-dor de Douai, Jehan Boimbroke, vemos de quemodo ele, ao mesmo tempo credor e empregador,domina e explora toda uma série de dependentes,de trabalhadores e trabalhadoras. Para não ser umdesocupado, é preciso obter o trabalho junto a umempregador. Este exige que o operário ou a operá-ria alugue uma moradia da qual ele é proprietárioe, quando ele quer, aumenta o aluguel, sem regu-lamentação: esta existe para os clérigos, para osmestres e para os estudantes, mas não existe emfavor dos trabalhadores. Os empregadores aumen-tam o aluguel ainda que os operários não possammais pagá-lo. Fortalecidos por esse sistema infer-nal, os primeiros não põem os segundos na rua,mas diminuem a remuneração de seu trabalho eacabam por fazê-los trabalhar sem pagamento, sim-plesmente oferecendo-lhes um teto. Isto explica porque os operários são, então, obrigados a trabalharno paralelo, o que não significa trabalhar clandes-tinamente por causa da ausência de regulamenta-ção. Isto vale ainda mais para as mulheres. Na Ida-de Média, há duas grandes "indústrias", se é que sepode chamar assim essas duas grandes atividades,a construção e a tecelagem. A construção é um mun-do à parte que recruta mais frequentemente porcanteiros de obras e que se organiza de tal modoque daí têm origem as lojas maçónicas. O ramo

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São Martinho, que desconfiavadas cidades, é aqui integrado nahistória urbana. O santo acabade cortar seu manto para darmetade dele a um pobre.Iluminura extraída das Heuresd'Étienne Chevalier, por JeanFouquet, cerca de 1452-1460(manuscrito 71). Paris, Museu doLouvre, Coleção dos Desenhos.

têxtil é 3. anarquia. Aí, os empregadores podemobrigar as mulheres a trabalhar apenas para man-ter sua miserável casa. Para o restante, que se pros-tituam! Paremos por aí: estas são as páginas maisvergonhosas da história da burguesia europeia, ain-da que no século XIX...

Nunca se imagina suficientemente o quanto as trocas, na IdadeMédia, eram feitas, muito mais do que hoje, pelas vias fluviais.As cidades geralmente eram portos.

Basta um pequeno curso de água, um atracadourode madeira. É espantoso encontrar no coração dasterras uma denominação portuária numa cidadecomo Clermont-Ferrand, cuja belíssima igreja ro-mana do século XII se chama Notre-Dame-du-Port,porque era a igreja do bairro portuário, isto é, dastrocas. Um rei como São Luís parte de Paris para amaioria dos seus locais de residência e retorna aParis por barco. Um pesquisador definiu as cida-des medievais como pequenas Venezas, com seusriachos-canais.

Precisamente em Paris, por que a praça atual do Hôtel-de-Ville, àmargem do Sena, se chamava, na Idade Média, Place de Greve?

Voltamos ao tema da troca sem regulamentação. APlace de Greve é o lugar em que se reúnem, todasas manhãs, os trabalhadores que não fazem partede uma corporação, que não têm emprego fixo.Temos a imagem de uma Idade Média e de umaépoca moderna - é verdade, aliás, que ela é um

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A cidade inovadora, palco de igualdade e festa da troca

pouco mais verdadeira para a época moderna doque para a Idade Média - que seriam totalmenteenquadradas por corporações, mas a maior partedos trabalhadores é constituída de operários nãoorganizados, sem defesas, vulneráveis, que chegamde manhã para oferecer seu trabalho para o dia todo.A essas pessoas precarizadas, como diríamos hoje,resta a revolta - esta é bastante rara, mas haverárevoltas urbanas muito importantes no século XIV,espalhadas pela cristandade, em Florença, em Pa-ris -, ou então o recurso de provocar tumultos, os"taquehans" do francês antigo, e verdadeiras gre-ves. Temos a narrativa do que se passa no fim doséculo XII, em Colónia, a respeito de um religiosoque se tornara servente de pedreiro por devoção.Ele trabalhava gratuitamente com os outros serven-tes como forma de penitência e de piedade. Desen-cadeia-se uma greve desses trabalhadores da qualele não participa porque, de certo modo, é um falsooperário. O resultado? Os grevistas o lançam no Reno.Disso nasceu uma lenda segundo a qual dois anjoso tiraram do Reno; ressuscitado, o homem tornou-se santo. Trata-se de um episódio interessante quemostra as realidades do mercado de mão-de-obra. Éao mesmo tempo o movimento demográfico e a eco-nomia que criam, a partir do século XIII, mas sobre-tudo a partir do século XIV, esse novo tipo de po-pulação urbana que são os marginais, para os quaisé extremamente frágil o limite entre pobreza, misé-ria e crime, mais ainda para as mulheres, que sedebatem entre a miséria e a prostituição.

A cidade inovadora, palco de igualdade e festa da troca

Atualmente mal se consegue distinguir entre os trabalhadorespermanentes, isto é, aqueles que têm um trabalho no início doano e que nele permanecem até o fim do ano, e aqueles que têmapenas contratos com duração determinada.Para os assalariados dos séculos XIII e XIV, seria possívelestabelecer a proporção entre uns e outros? Hoje se chega, naAlemanha, a uma taxa de 50% e, na França, a uma taxa deapenas 60% a 70% de trabalhadores permanentes.

Penso que a proporção é mais baixa ainda numacidade como Paris, no século XIII ou no XIV; diriaque o número de permanentes deve ser de 30% eque o restante se dispersa num mercado quase dia-rista: os mais afortunados podem conseguir con-tratos por semana. Vemos hoje, aliás, na ação socialdos trabalhadores, os esforços para eliminar essemesmo risco de precarização.

Isso que o senhor diz incide sobre nosso debate contemporâneosobre o trabalho que, dizem, seria um valor de estabilidadereconhecida há décadas, mesmo séculos. O historiador agravaessas afirmações de um modo incisivo.

Pode-se divisar uma evolução, uma trajetória danoção de trabalho, do valor ligado ao trabalho e,simplificando as coisas, dizer que na alta Idade Mé-dia o trabalho é uma atividade e um valor menos-prezados. Por quê? Trata-se sobretudo de trabalho

; rural e, segundo uma tradição que o cristianismoapenas reforça com relação à Antiguidade, o campo-nês é menosprezado. Na Antiguidade, ele é o gros-seiro, o rústico, em oposição ao homem da cidade.

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A cidade inovadora, palco de igualdade e festa da troca A cidade inovadora, palco de igualdade e festa da troca

O camponês não tem sorte com o cristianismo: comoele é quase que o último a se deixar cristianizar, elese torna para os cristãos, que geralmente moram nascidades, o pagão por excelência, e o termo pagão,paganus, quer dizer também camponês (paysari).Essa identificação camponês-pagão não se faz parareforçar o prestígio do trabalhador por excelênciaque é o camponês, encarnação do homem conde-nado ao trabalho pelo pecado original. Uma valo-rização do trabalho vai ocorrer lentamente nosmonastérios. A partir do século IX, a difusão, emtoda a cristandade, da regra de São Bento, que in-siste muito na importância do trabalho manual, re-presenta um acontecimento muito importante paraa história do Ocidente. O monge, ele próprio tra-balhando, valoriza-o, considerando o trabalho umaforma de penitência e de oração.Mas, seja qual for o status depreciado de numero-sos trabalhadores que evocamos, a grande valori-zação do trabalho se dá na cidade. Esta é uma dasfunções históricas fundamentais da cidade: nela sãovistos os resultados criadores e produtivos do tra-balho. Todos esses curtidores, ferreiros, padeiros...são pessoas que produzem coisas úteis, boas e, àsvezes, belas, e tudo isso se faz pelo trabalho, àvista de todo mundo. Inversamente, a ociosidade édepreciada: o preguiçoso não tem lugar na cidade.Some-se a isso que, a partir do momento em quese desenvolve um movimento escolar num certonúmero de grandes cidades, o fato de ensinar eaprender contribui para a valorização do trabalho.

O martírio de uma santa

transforma-se numa cena de

teatro religioso urbano. Pode-se

aí reconstituir uma representaçãodo Mystère de Sainte Apolline,

até nos menores detalhes da

encenação, com o cenário

simultâneo dos palcos

coordenando atores, músicos ecantores entre o "Ceú" e o"'nferno".

Martírio de Santa Apolônia.

"uminura extraída das Heuresd'Étienne Chevalier, por JeanF°uquet, cerca de 1452-1460

(manuscrito 71). Chantilly, MuseuConde.

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A cidade inovadora, palco de igualdade e festa da troca

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Enfim, no plano religioso e espiritual, é nas gran-des igrejas das cidades, nas catedrais, como a ca-tedral de Chartres, que se opõem na escultura -mas numa oposição de igualdade - a vida ativa ea vida contemplativa. A vida ativa, a dos trabalha-dores - Santa Marta, Santo Elói, o ferreiro... -, émostrada como tendo um valor religioso. Marta éelevada à altura de Maria. Será preciso esperar ocrescimento dos vagabundos, dos desempregados,dos miseráveis, para que haja novamente um ques-tionamento sobre o valor do trabalho. Vivemosainda nessa hesitação, entre a valorização e a con-denação do trabalho. Todo o debate do fim doséculo XX em torno da diminuição do tempo detrabalho é muito equivocada do ponto de vistaideológico, aí se encontram, indestrinçáveis, tan-to a valorização dos trabalhadores quanto a de-preciação do trabalho.

Sob a História, com H maiúsculo, existem as histórias; sob asventuras ou desventuras, existem narrativas individuais e, sob otrabalho, há o tráfico. A economia da cidade é também umaeconomia subterrânea muito difícil de medir. A cidade d'As mile uma noites é também a cidade do tráfico. A vida dos portos éa vida ilegal.

O tráfico económico que você evoca, na Idade Mé-dia e sob o Antigo Regime, é essencialmente o con-trabando. Ele é feito de preferência fora das cida-des, nas montanhas, nas estradas, nos litorais. Dado

POR AMOR ÀS CIDADES

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que a mercadoria entra na cidade, nos tempos anti-gos, não tendo sido ela objeto de falsificaçãopelos pesos e moedas, há poucas possibilidadesde tráfico. O trabalho clandestino não faz parte dasociedade nem da organização da cidade antiga. Ogrande recurso, na cidade, para o pobre ou para oesperto, é a mendicância e o roubo, que é punidocom severidade. Alguém que se dá bem é alguémque sabe roubar. A cidade fervilha de ladrões...A respeito da mendicância urbana, nossa menta-lidade evoluiu completamente: eis um ponto emque sopra o espírito de continuidade. Até a crisedo século XIV, o pleno emprego predomina, maisou menos, na cidade medieval; e se o pobre deverecorrer à mendicância, esta é, se não louvada,ao menos reconhecida. Na Igreja, as novas or-dens do século XIII, dominicanos e franciscanos,denominam a si mesmas ordens mendicantes. Omendicante é quase que desejado na cidade, elepermite ao burguês trabalhar pela sua salvaçãooferecendo esmolas. Hoje nos submetemos a umsistema totalmente distinto. Nas cidades medie-vais, se os conselhos de cidade tivessem tomadoresoluções proibindo a mendicância, teriam sidocompletamente incompreendidos e, provavel-mente, teriam suscitado rebeliões. A mendicân-cia tinha, com efeito, um duplo mérito: de umíado, coloca em evidência a miséria do homem,e, de outro, para aqueles que se acham do ladobom da roda da Fortuna, ela dá a oportunidadede trabalhar por sua salvação mediante a esmola,

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A cidade inovadora, palco de igualdade e festa da troca

Páginas precedentes.No fim da Idade Média, ocomércio torna-se um ofício depessoas importantes da cidade,profissionais que sabem medir,contar, classificar.Mercadores. Escola Lombarda,século XV (manuscrito latino DeSphera, n.209). Modena,Biblioteca Municipal.

que persiste, e até se desenvolve, como a formade caridade que é, de longe, a mais recomendável.Praticamente se ia à procura dos pobres, fazendo-os migrar para a cidade para oferecer ao burguês apossibilidade de fazer a caridade.

E o migrante, precisamente, como ele é visto?

O estrangeiro, durante muito tempo, é recebido,antes, com interesse, curiosidade e honra, do quecomo objeto de repulsa e desprezo. Sobretudo oestrangeiro que traz uma nova maneira de bordar,uma nova técnica de ourivesaria e que a cidadeadota, ainda mais quando essa técnica pode trans-formar a habilidade de um indivíduo numa produ-ção em série.

Mas o migrante pobre e desprovido?

Ele deve, no conjunto, sentir-se um pouco menospobre na cidade do que no campo, como o cam-ponês da África que prefere amontoar-se nasBrazzavilles negras. Como este, ele não retorna àsua aldeia, quaisquer que sejam as humilhaçõessofridas na cidade. O camponês urbanizado queretorna ao campo é algo que se vê muito pouco.

Ainda assim, o joão-ninguém devia ser mal recebido, maisainda quando vinha do mar e não da terra.

De fato, Nápoles, Veneza, Génova, Marselha, Lon-dres, Anvers,-Bruges - que é um porto nessa épo-ca -, Lúbeck, o grande porto alemão, Riga, o grande

A cidade inovadora, palco de igualdade e festa da troca

54 POR AMOR AS CIDADES k

porto báltico, olham com desconfiança a popula-ção periódica e selvagem dos marinheiros, que épreciso controlar. Temos uma coletânea de mode-los de sermões, escritos por volta de 1230-1240 porum pregador célebre na época, Jacques de Vitry,

indicando que, segundo as diferentes profissões,as pessoas estavam mais sujeitas a cometer tal outal pecado. Os marujos não eram poupados: a ima-gem que nos é dada nessa coletânea é a de ummundo selvagem, exterior à sociedade cristã. A talponto que, quando São Luís embarca para a cruza-da e vê a horda dos marujos, ele se assusta. Ele osinterroga, percebe que não rezam, não vão nuncaà missa; aliás, nos navios, como poderiam fazê-lo?Ele havia tomado suas precauções: outorga que seconstrua um altar com sacrário. Obriga os mari-nheiros a seguir a missa, o que muito lhes desagra-da. Esses marinheiros são, então, mostrados comopessoas sem eira nem beira, o que é um grandeerro nas épocas antigas. Uma das virtudes das pes-soas das cidades é, durante muito tempo, ter umlugar. O citadino é alguém que talvez parta em pe-regrinação, mas que, normalmente, tem um lugar:frequentemente ele tem uma casa, ao passo que ocamponês pode perder sua terra. Já vimos que mes-mo os trabalhadores e as trabalhadoras mais pobresdesdobram-se para ter um teto. Os marinheiros, porsua vez, não têm teto nem moralidade: a represen-tação positiva que deles fazem hoje as cidades debeira-mar, quando de seus festivais de veleiros evelhas equipagens, é relativamente recente.

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A cidade inovadora, palco de igualdade e festa da troca A cidade inovadora, palco de igualdade e festa da troca

Ainda que seja excluída esta ou aquela categoria marginalizada,os judeus de que f alávamos antes e os marinheiros, isso nãoimpede a constituição, na cidade, de uma opinião pública.

Não há opinião pública no campo, mas, a meu ver,há uma que se constitui na cidade desde o séculoXIII. Em Florença ou em Paris, mesmo que sejapara comentar sobre o Arno, o Sena ou o céu, todoum povo fala, se comunica, comenta. Veja a agita-ção provocada pela chegada de um ilustre perso-nagem. A esse respeito, estamos bem informadossobre a viagem feita a Paris por Henrique III da

/\s universidades urbanas que

lecionam teologia constituem

o mais alto grau de ensino.O mestre é entronizado

na cátedra como um soberano.

Iluminura extraída de Posti/les

surte Pentateuque, de Nicolas

de Lyre, século XIV(manuscrito 129, f .32 r.). Troyes,

Biblioteca Municipal.

POR AMOR ÀS CIDADES

Inglaterra, porque um cronista inglês, Matthew Pa-ris, narrou detalhadamente essa visita. Henrique IIIadora passear por Paris. É um rei que todo mundohostiliza na Inglaterra, tanto a arraia-miúda das al-deias quanto os barões. Ele fica feliz por encon-trar-se num lugar onde lhe fazem festa por ser umestrangeiro - volto ao fato de que, na época, quasenão existe xenofobia. Pelo contrário, faz-se festaao estrangeiro real que vem a Paris. Henrique III,radiante, impressiona-se com todas as pontes quesão construídas com as casas, o que parece não terexistido em Londres, nessa época. Ele acha issomuito surpreendente e belo e, verdadeiramente,toma aquilo que hoje chamaríamos de banhos decivilização. E, mais uma vez, ele se impressiona depoder fazê-lo sem ser hostilizado, e sob aclama-ções. Uma grande recepção é organizada pelos es-tudantes ingleses na universidade, que não contacom instalações próprias mas utiliza aquelas ondeé acolhida. A festa dura um dia e uma noite, e delase comenta!

Enfim, falamos de festas! Vai-se à cidade também em razão desuas festas.

O teatro havia começado a renascer timidamentenas igrejas e nos monastérios, onde não apenaseram encenadas peças litúrgicas, mas algumas ve-zes até mesmo comédias latinas. No século XII, oJeu de 1'Antéchríst, as comédias de Terêncio, emlatim, eram encenadas nos monastérios. No séculoXIII, isto se finda. O que vai sustentar o grande

POR AMOR ÀS CIDADES 57

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impulso do teatro, em particular com as famosasPaixões, que são encenadas diante das catedrais,é a grande praça das cidades, lugar do renascimen-to do teatro, de fato um verdadeiro nascimento. Aesse respeito, Arras é uma cidade que se distin-gue, uma cidade de burguesia poderosa, uma ci-dade de mercadores, uma cidade de fabricantesde tecidos que promove as mais interessantes cria-ções teatrais. Foi ali que se apresentou, em 1280,o J eu de lafeuillée, de Adam de Ia Halle: um deseus temas fundamentais é a ameaça que a cultu-ra camponesa faz pesar sobre a cidade e sobre acultura urbana. Vêem-se fadas, camponeses quede algum modo vêm invadir, perturbar, corrom-per a cidade. É um apelo à população urbana paradefender a cultura que ela criou contra o assaltoda rusticidade.

Se se trabalha muito, em contrapartida pode-se desfrutarnumerosos feriados e dias festivos como o carnaval que, apesarda desconfiança e da vigilância suscitadas pela noite, grávidade todos os perigos, seja a agressão dos vadios ou a do diabo,podem se prolongar em noites incomuns.

Sim, as festas, essencialmente religiosas, têm umadupla função: de regozijo (e de glorificação deDeus e de seus santos) e de repouso. Aqui, aindauma vez, aparece a inovação. Novas festas sãocriadas, especialmente urbanas; a mais importan-te e que tem grande e rápido sucesso é a festa deCorpus Chrísti, festa da eucaristia, nascida na ci-

dade de Liège, dando lugar a magníficas procis-sões, criando novos trajetos e novas formas ceri-moniais. O carnaval, que era na alta Idade Médiauma festa rústica, camponesa, com forte conotaçãopagã, invade a cidade, urbaniza-se, e aí se intro-duz uma contestação ideológica. O carnaval trans-forma-se em algo que se opõe à quaresma, com-bate a mentalidade penitenciai e ascética da reli-gião cristã, faz triunfar o riso, que volta a ser, comona Antiguidade, algo próprio do homem, contra opranto, expressão da contrição e do arrependi-mento que devem caracterizar o homem pecador.

E a inovação linguística pode ser medida? Para a França dosséculos XIX e XX, graças aos atlas linguísticos regionais, pode-sever como se difundem as palavras da cidade, como se exerce ainfluência de Paris na região parisiense. Poderíamos, já para aIdade Média, perceber algo?

Este não é um campo em que eu seja muito com-petente. O que parece é que, tratando-se justamentede uma cultura escrita, as inovações linguísticas sedão essencialmente nas cortes principescas. Assim,na corte de Flandres, na corte de Champagne. Emdefinitivo, o francês nasce na corte real e, de prefe-rência, na íle-de-France, mais do que em Paris. Osreis não estão continuamente em Paris e não é oambiente parisiense que cria o francês, e sim o am-

/ biente da corte real. Além disso, as linguagens nãosão, que eu saiba, linguagens típicas .de cidades,mas linguagens de regiões. Falar-se-á, por exem-

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A cidade inovadora, palco de igualdade e festa da troca

A festa e os jogos participam

da identidade urbana, que

procura se afirmar diante

da cultura camponesa.

Os jovens têm uma

função particular.

Mestre do cassone Adimari,

Jeu du "dvettíno", século XV.

Florença, Palácio Davanzati.

pio, o picara. Mas não falamos da linguagem"parisiense". Contudo, a língua da cidade vai trazerdois tipos de inovação muito importantes. De umlado, a linguagem dos artesãos, a linguagem dosmercadores, e, de outro, a linguagem sobre a qualBakhtin insistiu, a da praça pública. No campo, háo lavadouro, o "parlamento das mulheres" (LucienFebvre), há a forja, esse fórum interior dos homens.Na cidade, há a praça pública, o "tribunal dos fla-grantes delírios" em que circulam os contos, as can-ções e os provérbios pelos quais a Idade Média étão ávida.Em compensação, na cidade há um uso muito maiorda língua escrita que se aprende na escola e nasuniversidades. É na praça pública que a arte docomício faz também sua aprendizagem. No séculoXV, numa cidade como Metz, afixam-se chamadospara reuniões que se situam entre a manifestaçãoreligiosa e a manifestação política. Isso também tes-temunha a criatividade urbana.

Criatividade que não seria compreendida se não fossemencionado o papel das tão recentes universidades.

A universidade encontrou na cidade o húmus e asinstituições. Isto é, de um lado, os mestres e osestudantes, e, de outro, as formas corporativas, quelhe permitiram existir, funcionar e adquirir poder eprestígio. Uma universidade completa constituía-se de quatro faculdades, aquilo que conhecemosaté um passado recente: as artes, que chamaríamos

A cidade inovadora, palco de igualdade e festa da troca

60 POR AMOR ÀS CIDADES

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A cidade inovadora, palco de igualdade e festa da troca

de letras e ciências; a medicina; o direito, ou maisexatamente os dois direitos - civil e canónico -, e ateologia. Duas dessas quatro faculdades não impu-nham a seus membros nem o celibato nem a abs-

tenção do comércio. Eram o direito e a medicina:os juristas e os médicos podiam casar-se, constituiruma família e cobrar pelos seus serviços.

Os teólogos e os juristas eram os personagens im-portantes, mas os mais inovadores na história dasideias e na história social foram talvez os médi-

cos. Digo história social, e não história da saúde:esses médicos eram sábios que tratavam mais como livro do que com uma verdadeira ciência. Maspelas questões suscitadas pelo seu ensinamento,com respeito, por exemplo, ao corpo, ao cadáver, àsexualidade, eles trouxeram, conscientemente ounão, muitas inovações que não teriam conseguidomanifestar-se num ambiente monástico. Mas as uni-versidades continuam sendo pouco numerosas an-

tes do século XV, na França. Paris, teológica edominadora, Orléans, Toulouse, Caen criada pelosingleses, e, à margem, Montpellier.

Tem-se a impressão de que o senhor apresenta a relação entrecidade e universidade como tendo sido sempre o fruto de uma

dinâmica relativamente simples. Mas, afinal, as relações entre acidade e a universidade nunca f oram fáceis. Mesmo hoje,

quando se considera a universidade necessária para criar um"pólo de excelência" nas cidades e facilitar seu desenvolvimentoterciárío. Na Idade Média, a cidade procurava preferencialmente

POR AMOR ÀS CIDADES

A cidade inovadora, palco de igualdade e festa da troca

reduzir a autonomia da universidade, que, por seu lado,

queria preservar suas estruturas, suas nações, suas tribos, suasprovíncias e, depois, sobretudo, sua faculdade de julgar a simesma, de julgar seus resultados.

Uma universidade é, para uma cidade, um bomnegócio, primeiro porque fornece um mercado einquilinos para as casas: durante muito tempo, asuniversidades não têm seus próprios edifícios e,quando os tiverem, serão sobretudo destinados aoensino, embora já se desenvolva o sistema dos co-légios para bolsistas - o mais célebre, em Paris, éaquele fundado pelo amigo de São Luís, o cónegoRobert de Sorbon, a futura Sorbonne. Os universi-tários, os estudantes, mesmo aqueles que se dizempobres, dispõem, apesar de tudo, de um poder decompra. Há estudantes de origem camponesa, massão raros. A maior parte deles vem, com mais fre-quência, da pequena nobreza e representa, por-tanto, consumidores que interessam à cidade e aoambiente burguês. Mas, como órgão da Igreja, pro-tegido por ela, a universidade coloca restrições àliberdade urbana. Aí entra a taxação, por exemplo,a taxação dos alojamentos. Os burgueses vêem-seobrigados a alugar diversos alojamentos na cidadea um preço fixo, uma espécie de HLM [sistema dehabitações populares, de aluguéis moderados], mas

, normalmente de qualidade, e pelos quais os pro-prietários pensam que poderiam obter mais lucro.Uma das censuras feitas aos universitários pelosburgueses é que eles não enriqueciam o fisco ur-bano porque eram isentos de impostos. A sensa-

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A cidade inovadora, palco de igualdade e festa da troca

cão de prestígio trazido à cidade pela universidadesó será percebida lentamente, salvo em Bolonha,onde, desde o século XII, a cidade se orgulha deseus estudantes e de seus mestres vindos de mui-

tos lugares da cristandade. Os grandes professoresali são considerados "senhores das leis".

Sendo difíceis as relações entre universidades e cidades, as

universidades procuram, como as ordens religiosas, proteçõesdistantes, papado ou Estado, para evitar a tutela muito próximadas cidades. No fundo, tem-se um pouco a mesma situaçãohoje, quando as universidades, não estando dispostas a securvar aos desejos das coletividades locais, preferem ser ouempresas privadas, como nos Estados Unidos, ouestabelecimentos estatais, como é o caso na França, ou naInglaterra, em Oxford.

Na Itália, por exemplo, houve uma "comunalização",parcial ou total, das universidades que, particular-mente em Bolonha, assegurava uma remuneraçãoa seus quadros. Mas, no conjunto, os universitáriosnão tinham independência nem financeira nem ideo-lógica. Assim, qualquer que tenha sido seu papelna história da instrução e do pensamento, eles seachavam, apesar de tudo, fortemente limitados pelasua subordinação à Igreja e a uma sociedade muitocontrolada. Na Idade Média, para se subtrair à tute-la muito próxima das cidades, eles dispunham ape-nas da proteção do papado, aparentemente vanta-josa porque distante. O papel do príncipe só pode-rá definir-se muito mais tarde, com a laicização e aReforma.

A cidade inovadora, palco de igualdade e festa da troca

Por razões evidentes, os universitários perderamsua autonomia. Primeiro, por motivos ideológi-cos: a Igreja não podia tolerar o livre-pensamen-to, ela devia controlar absolutamente o ensino nasuniversidades. De outro modo, os mestres nãopodiam obter meios de viver a não ser através daIgreja: aquilo que organizaram no início, a collecta,

a "subscrição" junto aos estudantes, convinha ape-nas enquanto estes permanecessem pouco numero-sos; a partir do momento em que verdadeiramentese teve um ensino de massa nas universidades, es-ses jovens - mesmo aqueles que vinham de umafamília nobre - continuavam incapazes de poderpagar por seu ensino. Além disso, a cidade nãoestava disposta a pagar seus mestres, os quais deforma alguma dela derivavam: eles não eram lei-

gos, mas letrados.Isso não impede que tivesse curso um certo núme-ro de novidades, até mesmo pensamentos ousa-dos. As universidades resistiram às intervenções dospríncipes e das cidades. Pádua, por exemplo, até oséculo XVI, foi um centro de difusão das ideias deAverróis, que julgaríamos muito avançadas, próxi-mas do livre-pensamento. E, desde o século XIII,surgiu um slogan sobre o poder, afirmando que overdadeiro poder, aquele que os juristas chama-vam de potestas no direito romano, apresentavadoravante três aspectos: regnum, a realeza, o go-verno, isto que chamamos de poder público;sacerdotium, os padres, o clero e... studium, o sa-ber, isto é, a universidade. Se, em certos aspectos,

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A cidade inovadora, palco de igualdade e festa da troca

os universitários não conseguiram ser autónomos,conseguiram finalmente impor seu prestígio. Quan-do, no interior da Igreja, se realizavam os concíliosecuménicos, as universidades eram representadas.Nos grandes concílios que puseram fim aos cismasentre vários papas, que despedaçaram a Igreja nofim do século XIV e, em parte, puderam anunciar omundo moderno, isto é, os concílios de Constancee de Bale, o papel dos universitários foi crucial. Deoutro modo, a universidade havia adquirido na ci-dade e no Estado um poder de opinião. Se haviaconflitos internos na universidade, ela se reuniacomo corpo constituído, com o reitor à frente, paraexercer uma espécie de lobby sobre o poder públi-co, com chance de ser ouvida.

As cidades são forçadas a ouvir as opiniões, autorizadas, dauniversidade, mas sobretudo a ouvir sua vida, tonitruante.

É que os estudantes representam, na cidade, umcorpo estranho e frequentemente encarado comhostilidade. Curiosamente, talvez sejam eles, entreos imigrantes vindos para a cidade dos quais vocêfalava há pouco, os mais malquistos. Faz-se a elesa mesma censura que hoje se faz àqueles que vêmdas periferias: perturbam a vida dos bons burgue-ses, dos bons cidadãos.

Eles não estão organizados em famílias, eles são violentos,Sim, e fazem badernas, têm costumes que pertur-bam a paz das famílias. São portanto, em geral,

A cidade inovadora, palco de igualdade e festa da troca

malvistos. Na verdade, a atitude das cidades comrespeito aos universitários, e sobretudo os estudan-tes, é ambígua ou, antes, ambivalente. De um lado ascidades celebram suas universidades e seus universi-tários porque encontram nisso prestígio e mesmo lu-cros, mas, de outro, não se aplaca a hostilidadeque se experimenta a seu respeito. Os estudantesconstituem um mundo de jovens, e os jovens daIdade Média - talvez isto não tenha mudado tanto -são agitadores. Como se dizia nas abadias, eles tor-nam mais difíceis o consenso e o bom governo,que se buscava tão febrilmente tanto ontem comohoje. A inovação intelectual e social frequentementeandava de mãos dadas com a agitação, como emtodos os setores do viveiro urbano.

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A cidade emsegurança,

05 bens protegidose o bem comum

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A cidade em segurança, os bens protegidos e o bem comum

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l Os demónios tinham se

í apoderado do coração

• Pervertido dos habitantes daf cidade de Arezzo. São Francisco

i ex°rciza-os e expulsa-os paraln|aar uma reconquista religiosa

moral a partir da Igreja e desua ordem, estabelecidas diante

a massa urbana. É a apariçãoe "ma imagem inquietante

|da cidade.

Pott°, Lês diables expulsesreS0' Afresco> 1290-1295.IS. Basílica de São Francisco

|9reJa superior).

A cidade da Idade Média é um espaçofechado. A muralha a define. Penetra-senela por portas e nela se caminha por ruasinfernais que, felizmente, desembocam empraças paradisíacas. Ela é guarnecida detorres, torres das igrejas, das casas dos ricose da muralha que a cerca. Lugar de cobiça,a cidade aspira à segurança. Seus habitantesfecham suas casas à chave, cuidadosa-mente, e o roubo é severamente reprimido.A cidade, bela e rica, é tambémfonte de idea-lização: a de uma convivência harmoniosaentre as classes. A misericórdia e a caridadese impõem como deveres que se exercem nosasilos, essas casas de pobres. O citadino deveser melhor cristão que o camponês. Mas osdoentes, como os leprosos que não podemmais trabalhar, causam medo, e essas es-truturas de abrigo não demoram a tornar-se estruturas de aprisionamento, de exclu-são. As ordens mendicantes denunciam asdesigualdades provenientes dessa organiza-ção social urbana e desenvolvem um novoideal o bem comum. Mas elas não podemimpedir a multiplicação dos marginais nofim da Idade Média.

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A cidade em segurança, 05 bens protegidos e o bem comum

A necessidade de segurança é um valor comum na Idade Média?Sim, de certo modo e sob formas variadas, segun-do os lugares e a categoria social. Mesmo os ho-mens identificados com a violência, os nobres guer-reiros, procuram a segurança nas suas fortalezas. Apartir do ano 1000, a Igreja incentiva um movimen-to de paz, de não-violência, que responde sobretu-do à aspiração das massas camponesas submetidasà violência feudal. Mas a segurança é, sobretudo,uma obsessão urbana, muito consciente e muitoviva. A cidade é, com relação ao campo, à estradae ao mar, um pólo de atração de segurança.

A cidade em segurança, os bens protegidos e o bem comum

linas seguintes.squerda.ás de suas muralhas, a cidadeirmã pouco a pouco de uma:a de segurança encarregadaje\ar pela tranquilidade des habitantes e de controlar osquês externos. Muros enens armados velam pelaide.dade de Palma. Nissart,3Ò/e de Saint Georges- -:alhe), século XVI. Palma deorca, Museu da Catedral.

ireita.iversão do medo urbano:;, o medo do perigo está norior da cidade e algunsros urbanos vivem sob forteanciã.dal vigiando o bairro dolem, em Nova York.jgrafia, 1972.

... E que resulta em qual forma de policiamento?No século IV antes da era cristã, optando por umasolução curiosa, Atenas apelara a arqueiros citaspara garantir o policiamento na cidade, como nosEstados Unidos se apela a policiais negros. Parado-xalmente, confia-se o cuidado de fazer o policia-mento a pessoas em certa medida menosprezadas.Satisfaz-se àquilo que se considera uma necessidade,a segurança, mas, ao mesmo tempo, essa funçãonão parece muito honrosa: em Atenas, os citas sãobárbaros. E, além do mais, munidos de uma armaignóbil para os gregos: o arco. Uma arma da qual ocidadão não se serve. Acontece praticamente a mes-ma coisa na Idade Média. Será necessário esperarque certos grupos que se servem do arco obte-nham uma promoção social, e sobretudo sucessosmilitares, para que os arqueiros se tornem pessoasmais ou menos respeitadas. É o que aconteceu na

Inglaterra: os arqueiros são inicialmente galeses. Oraceltas bárbaros, galeses, irlandeses, essas pessoas nãosão veneradas. Mas são militarmente muito efica-zes, e as vitórias inglesas em particular, obtidas noscampos de batalha graças aos arqueiros, vão ins-titucionalizar esses guerreiros. Mas estamos nos dis-tanciando da cidade...

E todos estão de acordo quanto àquilo que se deve defender?Sim, com exceção dos marginais. Mesmo os po-bres parecem ter uma preocupação quanto à segu-rança, ao menos para as pessoas.

Uma mesma hierarquia de crimes era estabelecida para todos? Épreciso defender essencialmente duas coisas: as pessoas e os bens.

O que se combate, condena e julga severamentesão, de um lado, a morte, os ferimentos e as agres-sões, mesmo que não resultem em morte, e, de ou-tro, o roubo. O roubo era severamente reprimido naIdade Média, e particularmente nas cidades. Era umcrime considerado muito mais grave e muito maisduramente punido do que o é na nossa época.

Hoje, estaríamos quase que mais preocupados com asincivilidades, os desentendimentos quotidianos aparentementesem gravidade, as pequenas agressões, os pequenos atritos que

não constituem importantes atentados à legalidade mas queestabelecem um clima de tensão.

O que é notável na Idade Média, e que reencontra-remos mais tarde, existindo ainda em nosso Códi-go Penal, é a defesa do domicílio, e sobretudo do

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MOR ÀS CIDADES POR AMOR ÀS CIDADES 75

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A cidade em segurança, os bens protegidos e o bem comum

ifres e livros contábeis são

itrumentos de trabalho desses

nqueiros italianos que

atiçam o empréstimo na Idade;dia.

na no interior de um banco,

ninura extraída do Traité dês;f viés, fim do século XIV

anuscrito Add. 27695, f.8).

idres. Biblioteca Britânica.

domicílio urbano. Existem ainda muitas casas de ma-deira, mas a casa tende a ser de pedra. Ela é o lugaronde se identifica uma família, ao passo que as ca-sas camponesas não são absolutamente guardadaspelos mesmos sentimentos e os mesmos materiais.Arrombar uma casa, adentrá-la para roubar, e prin-cipalmente uma casa fechada, é algo grave. Tantoque na cidade os burgueses e os citadinos se tran-cam cuidadosamente à chave.

Estamos seguros disso, a casa é bem trancada?Ah, sim!

E em que se vê isto? Nos molhos de chave representados naspinturas, nos retratos?

Nas chaves que foram encontradas e nas fechadu-ras que, quando se trata de casas ricas, podem sercoisas extraordinárias: o museu da Fechadura, emParis, é um museu apaixonante. Durante muito tem-po, mesmo entre as pessoas ricas, poderosas, entreos senhores, encontra-se pouca mobília, geralmen-te uma mesa, cadeiras sem espaldas e o móvel es-sencial: o cofre. É nele que são guardadas a louça,as vestimentas etc., e eles são providos de chavesnotáveis.

Eram os boatos que traziam notícias de roubos, de assaltos, decrimes... O sentimento de insegurança devia muito a eles.

Sem dúvida alguma. Se os citadinos da Idade Média,à noite, fecham as portas e, às vezes, põem corren-tes, é porque temem bandos rurais ou bandos de

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POR AMOR ÀS CIDADES

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A cidade em segurança, 05 bens protegidos e o bem comum

vagabundos sobre os quais se diz que, de temposem tempos, atacam as cidades. Em geral, não sãoataques propriamente militares, organizados; simples-mente grupos de várias dezenas de pessoas entramna cidade, pilham e saqueiam. Na Itália, particular-mente, formam-se bandos urbanos, partidos que nãosão políticos (mesmo que os guelfos, partidários dopapa, e os gibelinos, partidários do imperador, apre-sentem uma organização que deles se aproxima),mas, antes, quadrilhas armadas, clãs que combatementre si muitas vezes, e muito violentamente. É mui-to difícil para a cidade estabelecer um policiamentosobre esses bandos. Tanto mais que, com frequên-cia, é um desses bandos que detém o poder. Conse-qiientemente, se ele faz reinar a segurança, o fazem seu único proveito. Houve, em certos momen-tos, sobretudo na Itália, fenómenos que lembramum pouco isso que se vê nos westerns, em que oxerife e aqueles que detêm o poder político se re-velam muitas vezes impotentes ou cúmplices.

Hoje, quando a polícia percebe que uma gangue de bairrodecidiu enfrentar uma outra, a rixa pode ser evitada antes queocorra. As forças de segurança, na Idade Média, podiamantecipar-se, pela prevenção e informação?

Sim, verdadeiros espiões das cidades mantinham-se informados na região, e nos ofícios, sobre osriscos que poderiam surgir. De outro modo, como,contrariamente àquilo que se acreditou durante mui-to tempo, o período medieval conheceu intensosdeslocamentos e no qual a comunicação era muito

OR AMOR ÀS CIDADES

A cidade em segurança, os bens protegidos e o bem comum

ativa, estava-se em geral bem informado sobre ris-cos de violência, mesmo que os boatos muitas ve-zes os ampliassem. Em 1251, quando São Luís estáno Oriente, na cruzada, bandos denominadospastorinhos - precisamente porque são compostospor jovens do campo - dirigem-se a Paris: eles pas-saram por Orléans, onde praticaram violências; co-nhecem-se mais ou menos seus avanços, sabe-seonde eles se encontram e tenta-se tomar medidasde segurança.

Tenta-se hoje organizar nas periferias - Martine Aubryfaz issoem Lille, sob o nome de Lilíadas - campeonatos de futebol entrebandos de jovens para canalizar suas energias; isto se pareceum pouco com o que havia em Veneza, quando um bairroenfrentava outro, nas justas, nos canais?

Talvez isso tivesse em parte essa função, mas nãoestamos informados sobre esse estado de espírito.Esses combates, que são em parte jogos, em partecombates sérios, regulam fenómenos de competi-ção entre bairros. Como hoje acontece entre timesde futebol. Trata-se, antes, de uma liberação, doque violência propriamente dita.

O hilotismojá existia. Em algumas cidades francesas, aliás, eleainda se mantém de uma forma quase medieval: a confrariados cavaleiros, em Roubaix, os agentes de bairro da dinastiaAlduy, em Perpignan.

Cada ofício devia fornecer regularmente um con-tingente para a vigilância noturna, devia participardessa defesa e da segurança da cidade.

POR AMOR ÀS CIDADES 79

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A cidade em segurança, os bens protegidos e o bem comumA cidade em segurança, os bens protegidos e o bem comum

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Enquanto São Luís está preso

no Egito, bandos de jovenscamponeses marcham em

direção a Paris com o objetivode libertá-lo. O movimentodegenera e os pastorinhos sãoexterminados em 1251: elesrepresentam tudo aquiloque é estranho à cidadee que a ameaça: a rusticidade,

o nomadismo, a desordemfanática.A cruzada dos pastorinhos.Iluminura extraída de /.e //Vre cfesfaiz Monseigneur Saint Louis,século XVI. Paris, BibliotecaNacional da França.

O debate contemporâneo apresenta três soluções: executa-se umpoliciamento próprio, por pequenos grupos de habitantes, deco-propríetários, de condóminos? Ou, então, confia-se opoliciamento à municipalidade? Ou, ainda, a um órgão doEstado que defende valores mais universais?

Parece-me que a autodefesa tem maior incidênciana Idade Média, não deixando de existir para tan-to os corpos constituídos no nível do reino e dacidade.

A questão d,os transportes não se coloca como hoje. A questãoda polícia, sim. Por quais outros caminhos se constrói a ideiade serviço do público- não digo-, serviço público.

Pela ideia de misericórdia e de caridade. Um deverimpõe-se a todos os cristãos e talvez mais particular-mente aos citadinos, os quais vivem numa comuni-dade onde não faltam oportunidades de afirmar quetodos os homens são irmãos. Desenvolve-se a cons-trução de bôtels-Dieu ou de asilos; temos uma ideiatambém um pouco falsa em relação a isso, reduzi-mos em geral os hôtels-Dieu a hospitais. Não, trata-se de casas para pobres. Na Idade Média, o limiteentre doença e pobreza é muito fluido: como nãoexiste nenhuma seguridade social e, na cidade, nãofuncionam, salvo exceção, as solidariedades familia-res que existem no campo, quem fica doente torna-se desempregado, torna-se pobre, e, a partir desse

Comento, revela-se a caridade. É uma caridade con-junta da Igreja e da cidade: os asilos são frequen-temente construídos pelas municipalidades com odinheiro da cidade, mesmo quando é a Igreja quelhes assegura o funcionamento.

OR AMOR ÀS CIDADESPOR AMOR ÀS CIDADES 81

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A cidade em segurança, os bens protegidos e o bem comum

Alguns asilos serão muito reputados pela impres-são de devoção que produzem, como aquele cria-do por São Luís em 1260 para os cegos, o hospitalde Quinze-Vingts, cuja capacidade de abrigo (tre-zentos doentes) impressiona os contemporâneos.

Contudo, a passagem do gesto de amor, individual, ao gesto deassistência, delegado, organizado, é plena de consequências.Pouco apouco as estruturas de albergaria, tornando-se maispoderosas, transformam-se em estruturas de aprisionamento.

De início, na Idade Média, não se sabe curar osdoentes e, portanto, liberá-los. Não há médicos bas-tantes e com conhecimentos suficientes, não háequipamentos. Dois tipos de tratamentos fundamen-tais são desde logo realizados em quase todos oscasos: de um lado, praticar a sangria, e, de outro,examinar as urinas. O exame das urinas, e o diag-nóstico que dele resulta, mesmo vindo de pessoasque haviam adquirido alguma formação, é, segun-do nossos critérios, um ato de charlatanismo. Masisso é considerado, na Idade Média, um ato cientí-fico: o médico que examina as urinas é quase tãosábio quanto o astrólogo que lê o futuro nas estre-las. Assim, pela falta de conhecimentos suficientesdo ponto de vista médico, não se sabe curar. Ficardoente é um desastre para o homem, a mulher oua criança, e quase que inevitavelmente esse doentese torna pobre e dependente, quando escapa àmorte. O desemprego propriamente dito quase não

R AMOR ÀS CIDADES

A cidade em segurança, os bens protegidos e o bem comum

páginas seguintes.

O desenvolvimento dos hospitais,

instituições que tratam e

acolhem os pobres, dissimula aausência de solidariedades

familiais na cidade.Originalmente animados por um

espírito de caridade, muitos se

tornarão lugares de isolamento,

como os leprosários. Constata-se

a presença ostentatória dos

grandes burgueses que

financiam a instituição.

Domenico Di Bartolo, Lês soins

aux blessés donnés à l'hôpital

Santa Maria delia Scala à Sienne.

Afresco, 1443. Siena, Hospital

Santa Maria delia Scala,

Sala dos Peregrinos.

aparece antes do século XIV. É somente nessa épo-ca que ele se torna o resultado não apenas dadoença, mas também de uma crise, mas como nãose percebem os mecanismos económicos, pensa-se que se trata de uma atitude, uma recusa detrabalhar e, portanto, um perigo. Os não trabalha-dores de repente provocam medo. Assim, cadavez mais, constroem-se esses edifícios equívocosque, de certo modo, são obras de caridade, mas,ao mesmo tempo, lugares de aprisionamento, deexclusão. O mais espetacular é a proliferação dascasas para leprosos. Tanto mais que isso coincidecom a ideia de contágio que se reencontrará noséculo XVIII, e que já surgiu no século XIII, o quepode ser visto particularmente no modo pelo quala cúria romana, o papa, os cardeais e seu círculoevitam as cidades, especialmente Roma, em épo-ca de malária. Com a peste negra, a partir demeados do século XIV, o medo do contágio torna-se então um pânico. Acredita-se também que alepra é contagiosa e os leprosos são isolados emleprosários que se denominam "maladreríes" - jáque o termo "ladre", em francês antigo, quer di-zer doença (maladiè). Esses leprosários são pos-tos sob a proteção de Maria Madalena; o bairroonde são construídos, frequentemente na peri-feria, chama-se o bairro de Madalena. É o casode Lille, onde o nome subsiste, e de Paris: lem-bra-se da paróquia de Madalena, que se tornou

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POR AMOR ÀS CIDADES 83

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A cidade em segurança, os bens protegidos e o bem comum

defesa, o assédio e a conquistas cidades têm um importantepaço na história militar,reconquista de Tortosa em48. Iluminura extraída dosntiques de Sainte Mane, debnso X, o Sábio, de Castela,:ulo XIII. Madri, Biblioteca dojnastério do Escoriai.

No fundo, poderíamos aliar a história do desemprego a umaepidemiologia. É também quando o desemprego aparece comouma doença contagiosa que ele começa a inquietar.

E uma lição dos estudos do grande historiador po-lonês Bronislaw Geremek.

O senhor descreve desse modo as casas dos doentes, mas, e ascasas dos pobres, aquelas que aparecem pela primeira vez nascidades mais industrializadas, como Bruges, na Planares, ouFlorença, na Itália?

São sempre asilos. Não existem, propriamente fa-lando, casas dos pobres. Elas apareceram somentedepois da mutação das ideias relativas ao trabalho.Serão, no século XVII, as workhouses inglesas ondeos pobres vão trabalhar. O que manifesta uma for-ma de desprezo por essa atividade, que se torna amais baixa quando é manual: esses trabalhadorespobres são condenados ao mesmo tempo que sãoexplorados pela indústria nascente. Este é tambémum dos capítulos mais negros da história social daEuropa e da história das cidades, mas posterior àIdade Média.

Criticava-se, evidentemente, o rei por querer se mostrarem vezde procurar aliviar de fato a miséria.

Sim, como se faz hoje. São Luís, no século XIII,empreende verdadeiras viagens de caridade atra-vés do domínio real, na Normandia, na íle-de-France, em Berry, na Champagne, verdadeiras via-gens organizadas cujo fim é mostrar o rei ocupadocom obras de misericórdia. Essa caridade real éexercida em dois lugares essenciais: nos hôtels-Dieu

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A cidade em segurança, os bens protegidos e o bem comum

e nas cidades onde estes estão situados. Mas ele seutilizava do palco da estrada, onde era visto avan-çando solenemente, e do cenário da cidade parasignificar um certo tipo de sociabilidade, de rela-ção entre os cidadãos, entre as categorias sociais,entre os poderosos e os pobres.

E ele utilizava para obter esse efeito as ordens mendicantes,como hoje os governos se apoiam sobre os médicoshumanitários. A este propósito, o senhor não acha que existe nomovimento ou, antes, na vocação humanitária algo como anostalgia, o lamento das ordens mendicantes?

Não tinha pensado nisso, mas não é impossível: asobras de misericórdia foram um ponto essencialdo apostolado das ordens mendicantes; os própriosreligiosos dessas ordens, e os fiéis que os escuta-vam e seguiam seus conselhos, deviam praticá-lascomo algo fundamental para sua salvação. Semprehouve caridade na sociedade cristã desde que ocristianismo se difundiu. Mas um sistema de cari-dade, de obras de misericórdia, só aparece a partirdo século XIII, com as ordens mendicantes para asquais a cidade é o teatro. Parece imperativo ali-mentar aqueles que têm fome, vestir os que estãonus, abrigar os que não têm casa. Vou levar maisadiante sua observação, muito justa; se há movi-mentos, instituições, que se podem ainda mais pre-cisamente comparar aos nossos movimentos hu-manitários de hoje, estes são as ordens terceirasdas ordens mendicantes: franciscanos, dominicanose, particularmente na Itália, servitas e trinitários. É

A cidade em segurança, os bens protegidos e o bem comum

o desenvolvimento de uma espécie de terceiro-mun-do que viu nascer esses movimentos e comoveu ossoberanos, que se acreditaram obrigados a sustentá-los. Não há nada a não ser a visita às prisões, muitomais sistemática na Idade Média, que encontre umequivalente hoje. E ainda assim...Os trinitários consagram-se à redenção dos prisio-neiros transformados em escravos pelos muçulma-nos. Mas, nas cidades cristãs, sobretudo na baciamediterrânea, os citadinos também tinham comoserviçais escravos não-cristãos comprados em mer-cados especiais. Infelizmente, os estudos que exis-tem sobre as prisões da Idade Média são limitadosaos casos raros daquelas que conservaram arqui-vos. O país onde mais as encontramos é a Inglater-ra, porque os arquivos, frequentemente bem con-servados, das instituições judiciárias mais precocese mais desenvolvidas que em outros lugares infor-mam sobre os problemas ligados à prisão. A Ingla-terra foi também um dos países em que a adminis-tração utilizou mais cedo a escrita.

De tudo isso que o senhor diz, sobressai a ideia de que o citadinotem muito mais responsabilidade cristã do que o camponês; queek se acredita um cristão melhor; que, no fundo, se se mora nacidade, é porque se crê em Deus de um modo diferente, ou melhor.

Sim. Você sabe, o menosprezo ao camponês é gran-de no mundo medieval e, conseqúentemente, nãose exige tanto dele, porque se acredita que sejapouco responsável e pouco capaz. O que dele sequer é que dê ao senhor e à Igreja aquilo que lhes

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A cidade em segurança, os bens protegidos e o bem comum

deve, isto é, o dízimo, as rendas, e que não sejaum criminoso, mas não se pede quase nada mais.Imagina-se que seus costumes são abomináveis enão se o concebe colaborando de verdade para omelhoramento de uma sociedade cristã.Conservamos um texto extraordinário que data dosanos de 1260. O grande teólogo e pregador domini-cano alemão, Alberto, o Grande, que ensinou emColónia e em Paris, um homem típico da cristanda-de em suma, prega em Augsburgo, na Baviera, umasérie de sermões durante uma semana, organiza-dos em torno de um único tema, a cidade. Elesconstituem um elogio da cidade, mas, ao mesmotempo, fornecem uma definição daquilo que deveser o ideal urbano. Alberto, o Grande, parte deuma frase de Cícero que já havia sido retomadapor Santo Agostinho, e que mostra mais um idealdo que uma realidade: "Uma cidade não é consti-tuída de pedras, mas de homens, de cidadãos".Note-se que é um dominicano que diz isso. Insistoem pensar e dizer que há uma Idade Média antesdas ordens mendicantes e uma Idade Média de-pois dessas ordens. Ora, as ordens mendicantessão as cidades! Elas é que primeiro desenvolvemuma verdadeira imagem daquilo que deve ser acidade, imagem de paz, de justiça, de segurança.Aquilo que não são sempre as ruelas sombrias, es-treitas, sujas. Alberto, o Grande, compara as ruelasao inferno, porém elas desembocam em praças quesão o paraíso. O paraíso do claustro monástico foitransportado para o paraíso das praças urbanas.Uma imagem na qual, num primeiro momento, fun-

A cidade em segurança, os bens protegidos e o bem comum

ciona o esquema ideal das obras de misericórdiaque os citadinos devem cumprir. Depois, num se-gundo momento, realça-se uma teoria da cidadecomo no ensinamento de Alberto, o Grande, a ci-dade recupera também o ideal antigo do bem co-mum, mas o adapta às novas condições. O mundofeudal é uma pirâmide que tem, embaixo, o cam-ponês, no alto, os senhores, e, no topo, o rei (poiseste também faz parte do sistema feudal). A cida-de, ou mais exatamente as pessoas que a encarnam,isto é, os burgueses, aqueles que têm o direito deburguesia, é uma sociedade de iguais e isso é umarevolução. Também é justo falar de revoluçãocomunal, a despeito das reservas que provoca hojeessa expressão entre os historiadores. A sociedade"burguesa" é, ela também, vivamente desigual: osgrandes contra os pequenos (os miúdos), os ricoscontra os pobres, mas o modelo teórico burguêsinicial é aquele dos homens iguais no direito. Ascidades são, portanto, uma revolução, porque, comojá se disse, sua aparência torna os homens livres eiguais, mesmo que a realidade, com frequência,permaneça longe do ideal.Conseguiremos hoje reencontrar um tal ideal decomunidade urbana fraternal? A cidade medievalmais reformou do que na verdade reprimiu. À suamaneira, ela foi um primeiro ensaio para realizar o

t ideal "Liberdade, Igualdade, Fraternidade", mas foipreparada no modelo feudal da desigualdade,antidemocrático. A feudalidade diligentemente re-cuperou a cidade, que contudo conservou um cer-to caráter de quisto no tecido feudal.

POR AMOR ÀS CIDADES POR AMOR ÀS CIDADES 91

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Sistema integradode Bibttotecas/UFES

O ooder nacidade

o ideal do bomgoverno

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O poder na cidade, o ideal do bom governo

Nascido da força e das aspirações dosmercadores e dos artesãos pela liberda-de económica e pela liberdade pura esimples, o movimento comunal - queprenuncia nossas municipalidades- ar-ranca o poder aos senhores e consagraos burgueses. É na cidade que se passada família ampliada à família nuclear,mas os grandes burgueses concebem umgoverno à imagem de seus clãs familia-res. O "bom governo" tende a imitar omodelo do príncipe justo, num espaçomais restrito no qual se podem diversi-ficaras experiências políticas, com a ex-ceção da heresia. A cidade respeita aIgreja e com frequência se coloca a seuserviço. A injustiça, mais do que acorrupção, ao contrário de boje, gera aindignação dos pobres e dos reforma-dores. As revoltas urbanas insurgem-secontra a tendência despótica do prín-cipe, coletor de impostos, e contra a do-minação de algumas famílias que rom-pem o primitivo contrato comunal deigualdade.

Um_bispo santo, protetor

da cidade de Perúgia, segura

a iqnagem da cidade em suas

mãos. Os bispos santosdesempenham um papel

de protetor das cidades muito

tempo depois de terem deixadode dominá-las.

Meo de Siena. La we///e

c/té moyenâgeuse de Pérouse

(detalhe), século XIV. Perúgia,Galeria Nacional da Úmbria.

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O poder na cidade, o ideal do bom governo

A cidade misericordiosa com que sonham as ordens mendicantesdo século XIII, antes dos humanitários e ecologistas do século XX,nasceu, apesar de tudo, de um choque violento que, certo ouerrado, chamamos ainda de movimento comunal.

A violência da "revolução comunal" é uma res-posta à violência feudal. Como lembrei, a cidadeé inicialmente governada segundo um sistema queperpetua aquele da Antiguidade tardia e da altaIdade Média, acrescentando-se a isso o sistemafeudal que se constitui desde o ano 1000, aproxi-madamente. Há um senhor na cidade, e esse se-nhor, com frequência, é o bispo, que, desde adissolução do Império Romano, entre os séculosIV e VI, dispõe do poder, das riquezas e do pres-tígio. Depois da queda do Império, ofuscadas asgrandes cidades, os bispos se instalam nas cida-des tão logo estas adquiram uma certa importân-cia. Em nossos dias ainda se vê, na Itália por exem-plo, essa rede de bispos presentes nas pequenascidades, ainda mais que as dioceses retomaram asfronteiras das divisões administrativas do ImpérioRomano. Depois, quando aparece a feudalidade,um senhor vem a dominar cada região. Quer seestabeleça ou não, ele constrói, na cidade, umcastelo, que aliás é mais um local de poder mili-tar, de controle, do que de residência. Alguns cas-telos de condes urbanos podem ser muito pode-rosos. Penso particularmente em Gand, que faziaparte do reino da França na Idade Média, onde ocastelo dos condes de Flandres é ainda hoje im-pressionante. Em seguida, produz-se o movimen-

0 poder na cidade, o ideal do bom governo

to de emancipação das cidades: o impulso é dadono fim do século XI, mas o século essencial é oXII. Os medievalistas de hoje não gostam mais dedominá-lo de "movimento comunal". "Comunal",como "feudal" são adjetivos ambíguos: uma parteimportante dos territórios não eram feudos, e sãoos juristas da época moderna que criaram a pala-vra e a ideia de feudalidade. O mesmo ocorrecom o movimento comunal: a expressão é devidaa historiadores e juristas do século XIX e aos ro-mânticos, porque quiseram ver nisso uma evolu-ção quase democrática. Não foram todas as cida-des que obtiveram um estatuto jurídico de comuna,uma "carta comunal".É verdade que muitas vezes a passagem para umgoverno exercido pelos burgueses, porque é de-les que se trata, fez-se de modo violento. Temosuma narrativa célebre da emancipação da cidadede Laon, no norte da França, no início do séculoXII. É uma enorme rebelião, uma revolta dirigidacontra o bispo que é o senhor da cidade. A narrativamostra o bispo fugindo dos rebelados, entrandono pátio de um prédio da cidade, escondendo-sedentro de um barril; ele é descoberto, arrastado

-para a rua, assassinado, cortam-lhe o dedo quelevava o anel, tomado como símbolo não de suafunção religiosa, mas de seu poder temporal, eseu corpo é transportado pela cidade exibindo-seo dedo com o anel. Outras vezes, as coisas sefazem de modo mais pacífico. Os burgueses, emtodo caso, arrancam ao senhor da cidade, primeira-

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O poder na cidade, o ideal do bom governo O poder na cidade, o ideal do bom governo

Ia Tle-de-France, o poder dosrimeiros capelos apóia-se em

dades importantes como Laon.

sus habitantes libertar-se-ão

a tutela do bispo no curso

3 uma violenta revolta no

>culo XII. O pintor representou

cidade "feudal" entre

; fortalezas: montes e torres,

jgo Capelo faz que o bispo

iselin lhe passe as chaves

i cidade de Laon. Ele depõe

último carolíngio.

iminura extraída

is Chroniques de Saint Denis,

Jean Fouquet, século XV.

ris, Biblioteca Nacional

França.

mente, privilégios, depois, uma carta, isto é, umtexto dando-lhes jurisdição sobre a cidade. Quemsão essas pessoas e como se organizam? São osnovos poderosos, os novos ricos da cidade. Osque se põem mais em evidência são os comercian-tes. O chamado movimento dito comunal está es-treitamente ligado à renovação do comércio. Emparticular do comércio que tem grande raio deação, aquele que se pratica entre a Europa doNorte e a do Sul, entre a Itália e as Flandres, porexemplo, ou na Alemanha; às vezes mais longe,no Mediterrâneo, até o mundo muçulmano. Istoposto, tende-se hoje a matizar a tese do grandehistoriador belga Henri Pirenne, que privilegiavapor demais o papel pioneiro dos mercadores. In-siste-se agora na importância dos artesãos, isto é,das pessoas que também são ligadas a trocas eco-nómicas, mas num círculo mais restrito: a cidade,sua periferia, da qual já falamos, sua região. Omovimento, portanto, reúne um certo número depessoas diversas que, tendo arrancado o poderaos senhores, conservam-no coletivamente e for-mam um grupo que toma o nome de burgueses,podendo também estes virem desses burgos, es-ses subúrbios que representam as novas formasde moradia e de organização da cidade.A denominação "comuna" surge quando existe aoutorga, pelo senhor, de uma carta de liberdades ede privilégios: ela consagra o reconhecimento deuma forma inédita de organização coletiva.

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