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O limiar dos afectos: algumas considerações sobre nomeação e a constituição social de pessoas 1 João de Pina-Cabral Instituto de Ciências Sociais Universidade de Lisboa Abril 2005 VERSÃO PRELIMINAR PARA LEITURA Por favor não citar. 1 Este texto, escrito a pedido de Chiara Pussetti, foi apresentado pela primeira vez como Aula Inaugural do Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social da UNICAMP (Universidade de Campinas), São Paulo Brasil em Abril 2005.

Pina Cabral - O Limiar Dos Afetos

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O limiar dos afectos:

algumas considerações sobre nomeação e

a constituição social de pessoas1

João de Pina-Cabral

Instituto de Ciências Sociais

Universidade de Lisboa

Abril 2005

VERSÃO PRELIMINAR PARA LEITURA

Por favor não citar.

1 Este texto, escrito a pedido de Chiara Pussetti, foi apresentado pela primeira vez

como Aula Inaugural do Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social da

UNICAMP (Universidade de Campinas), São Paulo Brasil em Abril 2005.

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(…) nomear também é acção, uma vez que falar é uma espécie

de acção, com relação a certas coisas.

( Platão 2001: 151)

Este ensaio debruçar-se-á sobre alguns aspectos do processo de

atribuição de nomes a crianças, recorrendo a exemplos

recolhidos em contextos urbanos lusófonos no Brasil e em

Portugal.2 Aqui, como em tantos outros contextos socioculturais,

a atribuição de um nome envolve uma dinâmica relacional de

fortes implicações para os que, assim, passam a estar

“próximos” à criança ou a ser “relacionados” com ela, como se

diria em inglês. Desta forma, a nomeação é um momento

charneira na consolidação dos laços afectivos entre parentes que

se prolongarão mesmo para além das vidas das pessoas

envolvidas – através do que tenho chamado “identidades

continuadas” (cf. Pina Cabral 1991:171-2 e 2003: 122 e seg.s).

Os nomes funcionam como marcas de relações afectivas e, por

conseguinte, como sinalizadores emocionais. Como todos

sabemos, o nosso próprio nome tem potencialidades evocativas

fortíssimas.

Nomear é, assim, um passo central na constituição social

da pessoa – um dos principais meios de integração entre a 2 O artigo constitui um primeiro esforço interpretativo no âmbito do projecto

“Nomes e Cores: complexidade identitária e nomeação pessoal na Bahia”, sedeado

no Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa e no CEBRAP, São Paulo,

desenvolvido por mim próprio, Susana de Matos Viegas, Ana Lúcia Pastore

Schritzmeyer e Omar Ribeiro Thomaz.

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reprodução social e a reprodução humana. Por reprodução

social, refiro-me ao processo pelo qual novas pessoas (agentes e

sujeitos sociais – egos e selves) são constituídas ou removidas;

por reprodução humana refiro-me ao processo pelo qual as

pessoas físicas nascem ou morrem. É bem verdade que, como

muitos antropólogos têm enfatizado, entre estes dois processos

não há uma conexão necessária nem universalmente uniforme.

Contudo, em todos os contextos socioculturais duráveis que têm

sido estudados por antropólogos ou por historiadores sempre

existiram processos explícitos de integração entre estes dois

aspectos.

O momento culturalista e a sua superação

A finalidade principal do presente exercício é contribuir para os

debates que têm vindo a ocorrer no âmbito da antropologia tanto

por relação à temática das emoções como da família e

parentesco. Ao associar as duas temáticas em torno à questão

da nomeação, pretendo devolver centralidade à problemática da

acção social na antropologia, já que, na nossa disciplina, as

últimas duas décadas têm sido marcadas pela hegemonia de

posições de raiz culturalista que enfatizam a centralidade do

“discurso” e a incomensurabilidade da diferenciação cultural. A

saudável preocupação com evitar a “essencialização” da vida

sociocultural foi levada tão longe, que se abandonou pura e

simplesmente a procura de formas de discurso científico que

pretendam superar, pelo menos parcialmente, a diferenciação

cultural.

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Os nossos colegas têm tanto medo de que alguma sombra

de etnocentrismo se infiltre nas descrições que fazem da vida

social, que preferem fechar-se numa atitude de cepticismo

epistemológico. Fogem do abismo à frente caindo no abismo

atrás. O temor de lidar com categorias impuras (cf. Latour

1994) é tal que preferem abdicar da tarefa comparativa. Não

percebem assim que, quando se limitam à descrição cultural

fechada sobre si mesma, não estão mais do que a essencializar

essa cultura e que uma cultura, se é um campo de poder, como

eles tão frequentemente enfatizam, nunca poderá descrever-se a

si mesma. No seu texto clássico sobre lutas de galos, Clifford

Geertz afirmava que o “princípio condutor” do antropólogo

deveria ser que “as sociedades, tal como as vidas, contêm as

suas próprias interpretações.” (1979: 223) E é bem verdade, só

que não é toda a verdade: o equívoco implícito nesta afirmação é

o pressuposto de que há um stock fechado de interpretações

para cada vida e para cada cultura.

A “redução discursiva” que silenciosamente veio a ocupar o

lugar de tropo dominante na antropologia dos últimos vinte anos

é uma disposição profundamente enganadora, porque ela só adia

o problema epistemológico, não o supera, como alguns colegas

acharam que poderia vir a acontecer. 3 A Crítica ao Estudo do

Parentesco de David Schneider, publicada em 1984, é hoje

considerada como o texto mais influente na área de estudos da

3 Reproduzo aqui a nota de rodapé de Marilyn Strathern sobre esta questão: “the

dominant theme of modern writing is epistemological (how do we know knowledge)

by contrast with […] the ontological stance of postmodern writing (what kinds of

worlds are there?). Ontological here carries the connotation not of grounding but of

being.” (Strathern 1992: 217, n13) A esperança de superação imediata da condição

moderna que se vivia no início dos anos 90, não parece hoje tão evidente.

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família e do parentesco pelos comentadores mais abalizados (cf.

Carsten 2004). Na introdução a esse livro, o mestre americano

insiste que as suas posições não correspondem às que

caracterizavam Leach, Needham e os seus discípulos, quando

estes declararam em 1971 o fim do paradigma clássico da teoria

do parentesco (cf. Needham 1971). Passadas que estão estas

duas décadas, vale a pena atermo-nos à explicação que

Schneider dá para as diferenças que julga existirem entre as

duas posições.

A posição de Needham é que, não existindo uma

“coisa” unitária a que [o conceito de] parentesco se

refira, não pode haver por maioria de razão uma

teoria sobre o parentesco, pois não pode haver uma

teoria legítima sobre uma “coisa” que não existe. […]

Esta posição depende obviamente da premissa de que

existem “coisas” objectivas independentemente de

[apart from] um observador ou da relação do

observador com elas e que a sua existência e natureza

podem ser objectivamente descritas. (1984: vii)

Para ele, não é possível aceitar a solução wittgensteiniana

proposta por Needham. Este último sustentava que existe

realmente em todas as sociedades um género de disposições

relativas à atribuição de direitos e sua transmissão

intergeracional que poderíamos caracterizar vagamente como

parentesco. A diversidade entre estas disposições seria tal,

porém – e o conceito resultante de tal forma vago –, que não

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permitiria a constituição de um campo teórico independente, do

tipo que se tinha pensado que o parentesco poderia constituir.

O parentesco, então, não passaria de mais um tipo de

constituição de significado como tantos outros que caracterizam

a vida sociocultural e estaria intimamente ligado a todos os

outros.

Esta solução, sustenta Schneider, só transfere o peso

analítico da categoria de “parentesco” para a de “geração”

(1984: viii). Mas tal não é assim, pois Needham poderia

simplesmente responder que o que se passa com o “parentesco”

também se passa com “geração”. O problema de Schneider é a

dificuldade que tem em aceitar a noção de que os conceitos que

usa não sejam epistemologicamente puros. Para preservar essa

pureza, prefere abdicar da existência de uma qualquer forma de

objectividade, caindo no idealismo. Para ele, portanto, e nas

suas palavras, “‘o parentesco’ como uma coisa, como um objecto

de estudo, na melhor das hipóteses, só era possível num sentido

muito restritivo, e então provavelmente só nas culturas

Ocidentais, tal como a dos Estados Unidos.” (1980: 119) Mais

tarde, Mary Bouquet e Marilyn Strathern viriam até a sustentar

o mesmo argumento (Strathern 1992 e Bouquet 1993). 4 Para

estes autores, pois, tudo o que pode ser dito sobre uma cultura é

o que ela diz sobre si própria. O problema com esta solução é

que, recusando-se a naturalizar o parentesco, acaba por

naturalizar as “culturas”, o que, como tem sido apontado por

vários autores (cf. Kuper 1999), não é nada menos problemático.

4 Aliás, Marilyn Strathern, no prefácio ao seu influente livro After Nature, escreve:

“David Schneider é o pai antropológico desse livro já que é com as suas ideias sobre

parentesco e contra elas que o livro foi escrito.” (1992: xviii)

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Schneider abriu toda uma corrente analítico-interpretativa

que se expandiu para outras áreas da antropologia e que parece

ainda não se ter esgotado, como bem o mostram as obras

recentes de autores como George Marcus (cf. Marcus and

Mascarenhas 2005). Este tipo de postura epistemológica

acabou por se difundir na disciplina, encontrando-se mesmo em

autores que dão centralidade à questão do “poder”. Um bom

exemplo é a obra Language and the Politics of Emotion,

publicada em 1990 nos Estados Unidos por Lila Abu-Lughod e

Catherine Lutz e que foi altamente responsável pela emergência

de um interesse antropológico no estudo das emoções.

Aí as organizadoras argumentam que “a aproximação

analítica mais produtiva ao estudo transcultural da emoção é a

atenção aos discursos sobre emoção e aos discursos emocionais

vistos como práticas sociais dentro de contextos etnográficos

diversificados.” (1990:1) A razão para tal, afirmam as autoras, é

a necessidade de fugir à “essencialização” das emoções e usam

como exemplo negativo autores que, segundo elas, terão

“tratado as emoções como ‘coisas’ com as quais os sistemas

sociais devem ‘lidar’ num sentido funcional.” (1990: 2-3) Mais

uma vez reencontramos a confusão epistemológica que leva

estes autores a não verem soluções intermédias entre, por um

lado, a essencialização funcionalista de fenómenos culturais e,

por outro, a “redução discursiva”. Mais uma vez nas suas

palavras, “Se o significado da emocionalidade diverge

transculturalmente e as aplicações à prática sócio-

organizacional são variáveis, então quaisquer certezas sobre

universais são derrubadas.” (1990: 5)

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Posta a questão desta forma radical, poderá parecer que

não há, de facto, outra resposta. Contudo, a forma como a

questão está posta presume já uma posição culturalista do tipo

schneideriano. Que quer dizer “quaisquer certezas”? Quer isto

dizer que abdicamos da possibilidade de encontrar toda e

qualquer semelhança entre os comportamentos humanos em

diferentes culturas? Se assim é, então as autoras não estão

autorizadas a identificar o próprio conceito de “emoção” e qual

seria, pois, o sentido da sua frase? Sem uma qualquer

referência a “coisas”, explícita ou não, a comunicação não é

possível.

Voltemos à frase das autoras. Que querem elas dizer por

“universais”? A possibilidade de pensarmos o conceito nos

termos em que o usavam os autores evolucionistas do início do

século XX ou no sentido funcionalista que Gluckman usava

quando procurava “leis sociais”, não se levanta mais hoje.

Acontece que, desde os meados dos anos 80, os antropólogos

deixaram de debater a questão. Não possuímos, pois, termos

para apreciar em que medida é que podemos ou não falar na

existência de uma “condição humana” universal. Será, pois, que

deixamos de ter termos para debater a nossa comum

humanidade?

Nas palavras de Janet Carsten, “Dir-se-ia por vezes que,

depois de Schneider, os antropólogos deixaram de ter outra

alternativa senão simplesmente documentar de que forma é que,

numa cultura particular, a procriação, o casamento e a morte

são entendidas de forma muito diferente […]. Se é por aí que

nos leva a viragem culturalista [culturalist turn], então penso

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que acaba por ser insatisfatória.” (2004: 187) Há que concordar

com a autora, mas parece-me que não podemos ficar por aí, já

que a questão não é só a de saber para onde vamos, mas

também a de saber o que fazer com o passado. Como

poderemos nós voltar a ler todos os esforços comparativos

realizados antes da “viragem culturalista”? A recuperação do

legado antropológico faz parte do projecto de reconstituição

analítica que urge empreender.

Nas páginas que se seguem, procurarei vias alternativas ao

culturalismo para interpretar processos de nomeação pessoal,

inspirando-me em vários filósofos contemporâneos que

apresentam propostas realistas de tipo minimalista (p.ex., Lynch

1998). Estou convencido, em particular, que a obra de Donald

Davidson (2001 e 2004) e o seu conceito de “interpretação

radical” nos abrem numerosos caminhos para ultrapassar o

impasse em que se encontra a antropologia contemporânea (cf.

Pina Cabral 2002/3). Seguindo uma pista deixada por Quine, o

autor recomenda-nos que abandonemos a procura de

identidades entre conceitos – tanto no referente a culturas como

a pessoas –, já que essas jamais serão encontradas. No entanto,

se a comunicação entre pessoas ocorre e se, na verdade, como

mostra a história da etnografia, é possível mediar uma grande

parte das diferenças de visão de mundo que caracterizam duas

culturas diferentes, então é porque uma parte considerável do

que partilhamos é comum.

“É bem provável que estejamos errados sobre muitas

coisas;” diz-nos Davidson, “mas a possibilidade de erro depende

da possibilidade de acesso a uma quantidade generosa de

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verdades; de facto, quanto mais numerosos os nossos erros, mais

teremos que ter acertado de forma a dar substância aos nossos

desencontros.” (2004: 5) O autor desilude-nos quanto à

possibilidade de perceber o comportamento linguístico fora dos

contextos em que estes surgem (as part of a larger entreprise).

Para que nós possamos fazer sentido do que nos dizem os outros

temos que, por um lado, acreditar que eles fazem sentido (a

disposição a que ele chama caridade interpretativa) e, por outro

lado, temos que partilhar um contexto interpretativo, uma

condição comum, um mundo comum (ao que ele chama

triangulação).

As “coisas”, para recorrer à expressão favorita de

Schneider, não estão para lá da linguagem, escondidas por ela,

como as vê o culturalismo, elas são condição sine qua non para a

possibilidade do discurso. Na frase lapidar de Davidson, “the

possibility of thought comes with company” (2001:88) – a

própria possibilidade do pensar só surge por virtude de

existirmos numa relação triádica em que um dos pólos somos

nós, o outro é a nossa companhia e o terceiro são “as coisas”.

Davidson sustenta esta posição sem abdicar de uma visão

holista sobre a natureza das crenças que subjazem ao

comportamento social (linguístico e outro). As crenças de uma

pessoa, tal como os vários elementos de uma cultura, dependem

umas das outras para adquirir significado. Superficialmente isto

significa que deixa de ser possível comparar o que está numa

mente, ou o que está numa cultura, com o que está noutra, pois

estas compõem todos diferenciados. O passo realmente

revolucionário de Davidson é afirmar que não devemos esperar

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identidades, já que a purificação das categorias é um sonho

destrutivo. Pelo contrário, devemos pôr o enfoque sobre

“semelhanças relevantes”, pois só assim podemos explicar tanto

(a) a possibilidade objectiva de nos interpretarmos uns aos

outros como (b) a possibilidade objectiva de realizar etnografia.

Assim, em vez de abandonarmos pura e simplesmente um

conceito como “emoção” ou “parentesco”, argumentando que a

sua origem no pensamento legal europeu lhes retiraria toda e

qualquer validade comparativa, devemos trabalhá-los no sentido

de os “des-etnocentrificar”, como dizia Julian Pitt-Rivers (in Pina

Cabral e Campbell 1992). Façamos, pois, o movimento contrário

ao de Schneider: procuremos identificar nos conceitos que a

antropologia tem vindo a elaborar como instrumentos

comparativos aquilo que eles têm de mais comum. A história de

um conceito deixaria, assim, de ser um empecilho à sua validade

analítica, mas seria antes um meio pelo qual esse conceito

poderia ser “des-etnocentrificado” – nunca totalmente, está

claro, mas sempre mais e mais.

Pessoa e convocação

Ora, a própria etimologia do conceito de pessoa abre todo um

campo de pistas relativas à questão da nomeação. Como insiste

Amélie Rorty no seu ensaio sobre o tema, “A nossa ideia de

pessoa deriva de duas fontes: uma é o teatro, as dramatis

personae do palco; a outra encontra as suas origens na lei. Um

actor assume uma máscara, literalmente per sonae, aquilo pelo

qual passa o som, os muitos papéis que encena. Os papéis de

uma pessoa e a sua posição na narrativa são funções das

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escolhas que o posicionam num sistema estrutural, em relação a

outros.” (1969: 309) Assim, a pessoa enquanto peça de um todo

social é uma entidade à qual pode ser atribuída voz, quer dizer,

um ser discursivamente auto-identificado que pode ser sujeito de

responsabilidade: “A ideia de uma pessoa é a ideia de um centro

unificado de escolha e acção, a unidade de responsabilidade

legal e teológica. Tendo escolhido, a pessoa age e, por

conseguinte, é sujeita a acção (actionable), responsável perante

a lei. É na ideia de acção que as fontes legais e teatrais do

conceito de pessoa se reúnem.” (ibid.)

A história ocidental do conceito, portanto, ajuda-nos a

compreender a relação que ele pode ter com a perspectiva da

acção social. Contudo, há que enfatizar que, desde 1938,

quando Marcel Mauss leu a sua famosa Huxley Memorial

Lecture no Royal Anthropological Institute de Londres (2003), ou

os anos 60, quando Fortes falava sobre o conceito tallensi de

pessoa em Paris (1961), já passou muita água por baixo da

ponte. Mais recentemente, Maurice Bloch (1988) e Janet

Carsten5 insistiram sobre o facto de que a concepção

dumontiana do conceito que o radica numa história jurídica

ocidental (Dumont 1985) – e que, por conseguinte, enfatiza a

diferenciação entre visões “ocidentais” e “não-ocidentais” do

termo – é potencialmente enganadora. Se estudarmos

5 Janet Carsten realizou na Escócia um estudo de pessoas que, tendo sido adoptados na infância, procuraram em adultos os seus

genitores. Segundo ela: “a história da procura por estes adoptados dos seus parentes de nascimento [… revela] quão profundamente o

parentesco é intrínseco à condição de pessoa. Sem o conhecimento de uma mãe de nascimento, e em menor grau de um pai de nascimento, o

sentido de self destas pessoas era aparentemente parcial e fracturado. Isto sugere uma noção de pessoa na qual o parentesco não é

simplesmente adicionado à individualidade demarcada (bounded individuality), mas na qual as relações de parentesco são vistas como intrínsecas

ao self.” (2004: 106-7)

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etnograficamente as utilizações do conceito de pessoa nas

sociedades europeias – nomeadamente por relação à

constituição da pessoa familiar, vide Pina Cabral 2003: 119-142

– seremos levados a verificar que a polarização entre uma

pessoa individual ocidental e uma pessoa relacional não-

ocidental é patentemente exagerada e enganadora.

A etimologia per sonae deverá alertar-nos para o facto de o

conceito de pessoa implicar chamar e ser chamado – a ideia de

“apelo”, que tem tão fortes ressonâncias legais. Trata-se

essencialmente da ideia de que, convocando e sendo sujeito a

convocação, eu sou reconhecido como actor no todo social. Sou,

pois, chamado a agir e decidir no interior da socialidade através

do meu nome, já que, se quiser abstrair-me das

responsabilidades dessa pertença, sou obrigado a assumir o

anonimato; isto é, tenho que recusar o uso do meu nome.

Dito isto, porém, urge enfatizar que, entre a minha

capacidade de convocar e a minha aptidão a ser convocado por

meio de um nome, não há uma absoluta correspondência nem

formal nem temporal: por outras palavras, pode-se ser pessoa

sem ter nome ou sem ter um só nome e pode-se convocar

alguém que ainda não é capaz de agir como pessoa

(nomeadamente em termos linguísticos). Para ser mais

explícito, no primeiro caso, teríamos as situações de anonimato

ou de pseudónimo e, no segundo, a situação mais comum em que

é dado um nome a uma criança, por vezes antes mesmo dessa

criança nascer ou até de ter sido concebida.

Se já existe um nome para a criança, mesmo antes dela

existir fisicamente, é porque o processo da sua existência social

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está já em movimento. Este é o caso, por norma, nas culturas de

raiz ibérica: quando um casal contrai o matrimónio e os

convidados lhe desejam felicidade e fertilidade, presume-se já

que os filhos que eles venham a ter transportarão no seu nome o

patronímico da mãe e o patronímico do pai, nessa ordem.

Muitas vezes até, em Portugal entre as camadas mais abastadas

(cf. Pedroso de Lima 2001), a lista de nomes familiares de entre

os quais os nomes próprios da criança serão escolhidos é

relativamente finita.

Já na Bahia, para dar outro exemplo, é comum o primeiro

filho varão receber exactamente o nome do pai ou do avô

paternos, sucedido de “Filho”, “Neto” ou “Júnior”. Nas

entrevistas que temos feito a jovens mães na Região de Tinharé,6

verificou-se que esta prática – que é formulada por elas através

da expressão “fazer homenagem” – é muito comum e

corresponde a um desejo explícito de interessar o suposto pai

biológico da criança pelo acto reprodutivo, promovendo assim a

paternidade social numa região e camada social onde esta não é

necessariamente a norma. O costume de atribuir a todos os

filhos nomes derivados que incluam a primeira sílaba ou a

primeira letra do nome do pai é concebido pelas entrevistadas

como uma variante da homonímia pai-filho.

Se considerarmos que a reprodução social é um acto

relacional, então ao tomar opções sobre a nomeação de uma

criança está-se a dar existência a uma pessoa social – está-se a

6 Trata-se da região onde estamos a estudar práticas de nomeação pessoal, situada a

sul do Recôncavo bahiano, incluindo o Arquipélado de Tinharé (Morro de São Paulo,

Boipeba e Cairú) assim como a zona costeira para o seu interior, nomeadamente as

prefeituras de Valença, Taperoá, Nilo Peçanha e Ituberá.

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realizar um acto de reprodução social através da apropriação de

uma instância de procriação. Este processo é relativamente

universal, se bem que a forma pela qual ocorre possa ser muito

diversificada. Como Pitt-Rivers sublinha no seu ensaio clássico

sobre parentesco e amizade (1973: 89-105, esp. 102), nos países

católicos do sul da Europa, quando era dado aos padrinhos a

opção de escolher o nome da criança, a reprodução social dessa

criança permitia a inclusão na rede de parentesco de pessoas

que lhe eram até aí externas.

O acto de assumir a filiação de uma criança corresponde a

uma alteração na posição relacional de quem o faz7 com

importantes implicações ao nível de obrigações e deveres, pelo

que está normalmente associado a fortes sentimentos de

afectividade. O tema tem, assim, uma longa história na

etnografia, já que raro terá sido o etnógrafo que não relatou que

o processo de constituição da pessoa é (a) temporalmente

diferido, (b) acompanha a atribuição de nomes (ou a sua

alteração sucessiva) e (c) é investido com consideráveis

implicações de natureza simbólica e emocional.

No trabalho que realizei sobre o Alto Minho rural, tornou-

se para mim muito patente que este processo de integração

entre procriação e constituição social de uma pessoa, e o

concomitante processo de atribuição de nome, não eram nem

instantâneos nem, sobretudo, isentos de emotividade.

Encontrei e descrevi todo um complexo de práticas, conceitos e

7 Vide o interessante argumento de Christian Geffray em Ni père ni mère (1990) em

que ele mostra que, entre os macua de Moçambique, os conceitos europeus de “pai”

e “mãe” não podem ser automaticamente aplicados para descrever os processos de

filiação – o que não significa que estes não ocorram.

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atitudes associadas ao processo de liminaridade que

acompanhava a constituição da pessoa (1989: 130-143)

O surgimento de uma criança é um processo prolongado e

que engaja emocionalmente todos os que passam a estar

“relacionados” com essa criança e que, através dela, passam a

estar relacionados entre si. Poder-se-ia dizer que, num contexto

em que a manipulação biológica do processo é altamente

organizada, os tradicionais “perigos” e formas de simbolização

desse momento tivessem perdido a sua relevância. Pelo

contrário, porém, os etnógrafos que se têm interessado pela

questão observam que surge uma espécie de montagem

tecnológica em que os factores de liminaridade sócio-simbólica

são recriados. É que, tal como sempre, o processo está sujeito a

muitos dissabores e possíveis interrupções.

No seu estudo dos efeitos sociais do uso das tecnologias de

ultra-som para monitorizar a gravidez, realizado em Chicago,

Janelle Taylor mostra como o recurso a estas tecnologias envolve

a representação da gravidez como um estado frágil e sujeito a

riscos (1998). O efeito principal destes processos é puxar para

um momento anterior o surgimento da criança enquanto ser

socialmente reconhecido, levando a mãe e as suas relações a

reconhecerem e darem existência social à criança antes do

momento do nascimento.

Contudo, este processo não tem nada de claro nem de

definitivo. Pelo contrário, o reforço da existência pré-natal da

criança e a consolidação dos respectivos laços de afecto (que

ultrapassam em muito a relação com a mãe) potenciam os

perigos dessa criança (a) não ter condições para nascer (no caso

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de fetos malformados), (b) nascer prematuramente e, portanto,

correr risco de vida e (c) de ocorrerem graves complicações no

parto. Sobretudo, o teste atribui sexo à criança e inicia assim o

processo de genderização (cf. Pina Cabral 2003: 55-88),

espoletando a atribuição de nome. Os exemplos que apresento

de seguida mostram como esta alteração, que depende da

materialidade do facto de procriação, tem fortes implicações

para as relações afectivas. É nesse sentido que a atribuição de

nome corresponde a um “limiar dos afectos”.

Um hiato ontológico

O trecho que passo a ler é um extracto de uma mensagem

electrónica que me foi enviada pelo nosso colega Igor Machado,

da Universidade Estadual de São Carlos e que reproduzo com

sua licença e o respectivo agradecimento. Discutíamos o nome

Cassiel, que Igor e sua esposa deram ao seu primeiro filho.

Estas são as suas palavras:

Sabe que tive uma experiência muito marcante

quando Cassiel nasceu, que me levou a desejar

escrever algo algum dia e tem tudo a ver com a

pesquisa que vocês estão levando a cabo.

O Cassiel nasceu prematuro, no final do sexto

mês de gravidez. Do nosso ponto de vista, tudo bem,

ele já existia, ou já havia sido "fabricado socialmente"

entre nós (o casal, famílias e amigos). Todos

esperavam pelo Cassiel, como pessoa, independente

dele nascer antes ou depois da hora. Tanto que todos

Page 18: Pina Cabral - O Limiar Dos Afetos

diziam que ele tinha chegado antes da hora, mas era

sempre ELE, sabe?

O choque foi perceber que na UTI neonatal onde

ele ficou internado por 21 dias, o Cassiel não existia.

As etiquetas nos remédios e todos os artefatos que se

referiam aos cuidados do Cassiel tinham como "nome"

a expressão "RN Sofia Nikolaou" (RN é Recém-

nascido – seguido do nome da mãe). O Cassiel-para-

nós era um "RN Sofia" para o hospital, não tinha

existência legal e era apenas um apêndice da Sofia.

Obviamente isto se referia à liminaridade da UTI

neonatal, pois muitos RN não sobrevivem e, parece

que é como se os que falecem não tivessem chegado a

nascer, não recebem nem um nome. O mais

surpreendente para nós, que já o tínhamos por

Cassiel desde o começo da gravidez, foi ver que não

era uma lógica apenas burocrática. As enfermeiras,

técnicas e médicas que lá trabalhavam chamavam o

Cassiel de "RN Sofia". Na ficha que ficava acima da

incubadora, que trazia informações sobre o bebê NÃO

existia espaço para o nome dele, apenas para o da

mãe.

Com o passar do tempo dentro da UTI, à medida

que Cassiel ia se desenvolvendo, paulatinamente as

trabalhadoras começaram a chamá-lo de Cassiel,

como se a evidência da sobrevivência concedesse a

ele alguma pessoalidade. Por fim, depois de 15 dias

alguém escreveu na tal ficha, por cima dos dados, o

Page 19: Pina Cabral - O Limiar Dos Afetos

nome "Cassiel", de forma a ultrapassar a lógica

burocrática que continuou chamando-o de RN Sofia

até o fim da internação.

Cheguei à conclusão que a relação entre pessoa

e RN ali naquele lugar liminar era uma espécie de

relação com o peso da criança, era uma "lógica

substantiva". Ele nasceu com 1,5 kg e, quando atingiu

1,8 kg (mais ou menos), ganhou nome para as

trabalhadoras da UTI. Com 2 kg saiu, pronto para o

mundo (quem tem filho prematuro sabe a paranóia

que é a contagem do peso do filho nesses primeiros

dias: tudo na UTI gira em torno disso).

Pouco tempo depois de receber esta mensagem, tendo

ficado muito impressionado pelas observações de Igor, comentei

sobre elas a uma orientanda minha que tinha acabado de dar à

luz a uma criança prematura em Lisboa. A Catarina Fróis falou-

me longamente do sentimento de estranheza que constituía o

facto de ter sido obrigada, depois do parto, a voltar sem a

criança nos braços a uma casa que esperava já por ela. A

criança chama-se Francisca, nome que remete para uma das

avós do pai dela. O nome tinha sido atribuído logo após ter sido

realizado o teste de ultra-som que revelara o sexo do bebé.

Perante o desejo de Catarina de só vir a saber o sexo na altura

do nascimento, toda a família se revoltara, dizendo que “assim

não conseguimos dar personalidade à criança” e a mãe acabou

por ceder.

Page 20: Pina Cabral - O Limiar Dos Afetos

Na altura que Catarina falava comigo, a Francisca estava já

fora de perigo, mas continuava no hospital e os pais, quando a

iam visitar diariamente, sentiam-se perturbados pelo facto de, no

hospital, terem se identificar como os pais, não da Francisca,

mas do “bebé Fróis”. Esta forma de nomeação perturbava-os,

pois se, por um lado, retirava à Francisca a sua qualidade de

pessoa autónoma com género determinado – qualidade que ela

já tinha desde que o teste de ultra-som tinha identificado o seu

sexo; por outro lado, nem sequer se referia a ela pelo

patronímico do pai. Ora, como se sabe, nos sistemas lusófonos,

em princípio, presume-se que a criança é preferencialmente

identificada por esse sobrenome, apesar de receber também o

patronímico da mãe. Como enfatiza Igor Machado, o que estava

em causa era o recurso a um meio simbólico de negar a

existência autónoma do feto.

No seu ensaio sobre a categoria de pessoa entre os

Tallensi, Meyer Fortes insiste no facto de que a constituição de

uma pessoa é um processo prolongado que pode até não chegar

ao seu fim, dependendo de toda uma série de outros factores.

Na sua famosa expressão, o nascimento só assegura “um

quantum mínimo de pessoalidade” (1987: 26). Nos casos

lusófonos acima apresentados, porém, como já vimos, a partir do

momento em que o teste pré-natal tinha assegurado o género da

criança e a sua adequação, tinha-se tornado possível atribuir-lhe

um nome e a criança passara a existir – era um “ELE” para a

família, como enfatiza Igor recorrendo a maiúsculas.

Nos ambientes urbanos contemporâneos de nomeação

lusófona, aliás, a noção implícita é que, a partir do momento em

Page 21: Pina Cabral - O Limiar Dos Afetos

que existe, a criança tem todos os direitos e todas as relações e

toda a unicidade que lhe incumbem como pessoa. Um feto ao

qual foi dado um nome existe, é uma pessoa – é preciso,

portanto, começar a dar-lhe “personalidade”, na expressão dos

parentes de Francisca. A implicação do uso desta expressão é

que lhe são atribuídas as características emocionais de uma

pessoa; “os traços de personalidade”, essas características que a

distinguem de outras pessoas. O pressuposto é que não há duas

pessoas iguais e que ser pessoa é ser diferente.

Subjacente a este complexo conceptual está toda uma

história cultural. De facto, o catolicismo ibérico é o pano de

fundo sobre o qual ocorrem estes dois processos, apesar de

ambas as famílias não serem religiosas. A noção de alma e a sua

associação à atribuição de um “nome de pia” – o que os ingleses

chamam Christian name e nós agora dizemos “nome próprio” –

não pode passar desapercebida. A alma não surge aos pedaços,

ela é criada integralmente e a ambiguidade da existência da

alma é uma das grandes fontes de conflitualidade teológica e

política não só no passado do Cristianismo, como hoje – e

precisamente por relação às técnicas de reprodução assistida.

Não importa aqui abordar a complexa história teológica do

Limbo – esse local místico onde estariam sedeadas as almas que,

não tendo cometido pecado mortal, estão afastadas da presença

de Deus, por não haverem sido remidas do pecado original pelo

baptismo.8 Bastará lembrar que o problema da ambiguidade 8 Importa, ainda, sublinhar quão distante dos importantíssimos debates

contemporâneos sobre reprodução assistida, aborto e eutanásia está a origem da

questão na concepção judaico-cristã da alma. Os comentadores antropológicos, pelo

menos, tendem a remeter a questão exclusivamente para o “individualismo

ocidental” e a sua relação com o conceito de Natureza – que, por sua vez, a remete

Page 22: Pina Cabral - O Limiar Dos Afetos

decorrente da constituição da pessoa ser um processo diferido

nem é novo nem foi jamais menos contraditório do que é nos

dias que passam. Ora o que estes dois casos nos exemplificam é

justamente a necessidade de lidar com a contradição entre, por

um lado, a concepção de que a formação da pessoa é integral,

sendo moralmente errado negar a seja quem for a integralidade

da sua pessoalidade/personalidade e, por outro, o facto do

processo ser temporalmente diferido, ser revertível e estar

sujeito a um escalonamento.

Há dois aspectos que forçam os intervenientes nestes dois

exemplos a confrontarem-se com essa contradição – que, como

enfatizam, foi emocionalmente um desafio para ambas as

famílias. O primeiro é o facto da criança que o teste de gravidez

revelou, à qual o teste de ultra-som deu género, que

consequentemente recebeu nome como membro de uma família,

que tem até já um espaço seu, na medida em que, tratando-se de

famílias de classe média, o espaço doméstico é preparado para a

recepção da criança … em suma, essa criança não é formada de

repente: a sua personalidade é criada aos pedaços e, na verdade,

o momento central para que esta se consolide está ainda longe

no futuro. A observação não-sistemática sugere que, para

muitas famílias, o passo central será mesmo o momento em que

a criança comece a falar e a responder ao seu nome.9

historicamente, como bem explicitam as obras de Schneider (1980, 1984) e

Strathern (1992) para a hegemonia intelectual anglo-americana (norte americana e

inglesa, respectivamente) – deixando de lado a problemática da alma no cristianismo

europeu, que remeteria, sem dúvida, para centralidades “ocidentais” anteriores.9 Esta questão do que poderíamos chamar patamares de pessoalidade começa, aliás,

ainda antes do teste de ultra-som e tem importantes implicações para os debates

médico-deontológicos e teológicos que se têm desenvolvido em torno a este tema.

Page 23: Pina Cabral - O Limiar Dos Afetos

O segundo factor que contribui para tornar esta

contradição sobressaliente é a evidência material de que este

acto de procriação pode não vingar. Tratar-se-á, então, de uma

“morte” ou não? Para aprofundar a questão teríamos que nos

afastar muito dos temas do presente ensaio. Bastará, pois, aqui,

verificar que o aparelho médico, plenamente consciente de que a

contradição poderá ter efeitos emocionais, morais, legais e até

relacionais (nomeadamente ao nível do futuro das relações

conjugais), tenta proteger-se a si mesmo e à família da plena

força da tempestade de emoções que a contradição implica.

Assim, tanto no Brasil como em Portugal, a solução

adoptada é a de negar a existência autónoma ao feto associando-

o por meio de tecnónimos à mãe – “recém-nascido de fulana”,

“bebé tal”. A solução, porém, é ela mesma um factor de

potencialização da contradição – já que, confrontados com ela,

os membros da família, que estavam já plenamente envolvidos

na tarefa de constituição de personalidade, são obrigados a

efectuar uma suspensão do processo. Por muito que o queiram

evitar, o deferimento do processo de constituição de pessoa

impõe-se-lhes. Os efeitos emocionais deste hiato ontológico que

recai sobre o seu filho não serão, porventura, tão devastadores

quanto seriam os resultantes da morte; mas são, sem dúvida,

dolorosos. Nestes dois casos, felizmente, o sofrimento deste

Telma Salem, no seu valioso artigo sobre o estatuto do embrião e a noção de pessoa,

demonstra por relação ao debate em torno aos embriões extracorporais ou “pré-

implantados”, que o primeiro patamar surge aos 14 dias de fecundação, quando

essa “potencial pessoa” ou “pré-embrião” desenvolve a chamada “linha primitiva” –

isto é, o ordenamento celular que virá mais tarde a dar azo à espinha dorsal (Salem

1997: 81).

Page 24: Pina Cabral - O Limiar Dos Afetos

limiar dos afectos, “a paranoia” como diz Igor, foi superado pela

sobrevivência física da Francisca e do Cassiel.

Uso a expressão “devastador” avisadamente, porque

estamos a falar de um processo emocional com efeitos imediatos

sobre a arquitectura destas famílias. O possível colapso do acto

de procriação levaria à ruína do acto de reprodução social – da

criação de parentesco que lhe estava associada. O efeito sobre

as relações afectivas é duplo, pois uma criança não só está

relacionada com pessoas como cria laços entre pessoas através

da afinidade.

Assim, não é de surpreender que muitas mães peçam para

continuar a ignorar o sexo da criança depois dos testes de ultra-

som, como Catarina foi inicialmente tentada a fazer. A

responsabilidade de transportar durante toda a gravidez um ser

plenamente criado pode revelar-se excessivamente onerosa,

sobretudo porque as implicações familiares associadas ao sexo

do feto podem ser graves.10 Uma mãe bahiana por nós

entrevistada, 11 proibiu ao médico que divulgasse o sexo da

criança como forma de reduzir a ansiedade ligada ao fortíssimo

desejo que sentia de que a sua terceira criança fosse do sexo

feminino. O seu marido tinha acabado de ter uma filha de uma

relação extra-conjugal e tinha reconhecido a paternidade dessa

criança desculpando-se com o desejo de ter uma filha, já que

10 A relação de contemporaneidade entre revelação do sexo, constituição de

pessoalidade e nomeação tem fortes implicações para a discussão sobre a relação

entre género e pessoalidade que se tem vindo a desenvolver em torno ao

pensamento de Marilyn Strathern, que esperamos poder vir a estudar

posteriormente.11 Funrural, Valença, BA, Janeiro 2005, entrevistadora Ulla Romeo – a quem tomo

aqui ocasião para agradecer o seu notável empenho e eficiência.

Page 25: Pina Cabral - O Limiar Dos Afetos

eles só tinham dois filhos. Curiosamente, apesar do conflito

público em que estava envolvida com a mãe da criança (e que

tinha até dado azo a um caso de polícia), a nossa entrevistada

aceitava a criança como sua parente e quando a entrevistadora

pediu que lhe mostrasse a fotografia dos seus filhos, apresentou

automaticamente três fotos, incluindo a da filha adulterina do

marido. Assim, se não queria saber o sexo do nascituro era, nas

suas palavras, por causa da “expectativa” – o que outros

chamariam stress, “paranóia”.

O que resulta evidente destes exemplos é que as práticas

discursivas destas três pessoas dependem profundamente tanto

de parâmetros de efectivação material como de contextos de

relacionamento social que ultrapassam em muito as

performances comunicativas da emoção. O sexo da criança, o

peso da criança, o nome do pai, a existência de relações de

parentesco de origem adulterina – tudo isto são factores

constituintes das emoções. Abu-Lughod e Lutz propunham que

deveríamos “ver a emoção como uma prática discursiva” (1990:

10), que deveríamos “trabalhar para soltar a emoção da

psicobiologia.” (1990: 12) Quinze anos depois, parece evidente

que tal ideal nunca será atingido e que nem sequer é desejável.

Reduzir a emoção desta mulher a um discurso – o seu medo,

nunca totalmente explicitado e só perceptível nas entrelinhas, de

que o feto fosse masculino – seria como reduzir o pensamento à

linguagem ou os conceitos às palavras. Os dois tipos de

fenómenos estão indissoluvelmente associados mas não serão

nunca a mesma coisa.

Page 26: Pina Cabral - O Limiar Dos Afetos

Mais que isso, porém, a “redução discursiva” esquece a

forma como a materialidade é parte constituinte das relações

sociais. Igor Machado afirma com um misto de ironia e revolta,

“Cheguei à conclusão que a relação entre pessoa e RN ali

naquele lugar liminar era uma espécie de relação com o peso da

criança, era uma ‘lógica substantiva’.” A objectividade dos laços

afectivos, tanto quanto a objectividade das pessoas físicas não

são externas às emoções. Não há uma fronteira clara entre, por

um lado, a materialidade da pessoa e das suas relações afectivas

e, por outro, as emoções que sente.

O que está em causa, na verdade, é uma versão do

processo de interpretação que Donald Davidson identifica como

fundando tanto a linguagem como o próprio pensamento. Este

envolve uma triangulação entre eu próprio, o outro e um mundo

comum que funciona como contexto referencial e sem o qual

nenhuma interpretação seria possível. Os laços de afecto (tanto

quanto as emoções que eles convocam) não existem fora de uma

condição social. Por isso, a existência de laços de afecto implica

a partilha de um mundo comum pelos que os possuem, implica

que sabem que partilham um mundo comum e implica que

pensam sobre ele de formas bastante semelhantes (2001:121).

Conclusão

Se tentarmos olhar para os exemplos acima apresentados

através desta noção de triangulação é fácil perceber que os

referentes materiais que contextualizam o processo de

integração entre a constituição de pessoas sociais e a procriação

são da mais variadíssima ordem. Noutro contexto tive já

Page 27: Pina Cabral - O Limiar Dos Afetos

ocasião para notar que a própria materialidade do corpo da

criança é interpretada à luz de toda uma tessitura de

“parecenças” que constituem o corpo da criança como um

“corpo familiar” (Pina Cabral 2003: 153 e seg.s). A evidência

dessas parecenças é, por um lado intersubjectivamente

constituída e, por outro, assenta sobre parecenças físicas

identificáveis até por um observador desinteressado.

A co-substancialidade constituída tanto

paradigmaticamente pela partilha de substâncias alimentares

em contextos domésticos como sintagmaticamente pela

intimidade de contacto físico é um outro destes factores de

materialidade. O espaço físico doméstico e a sua apropriação

comum, tanto quanto as relações legais de parentesco e os

meios de sua objectificação – documentos, heranças, direitos,

etc. –, tudo isto são factores de contextualização material dos

laços de afecto.

O nome pessoal, na sua materialidade, funciona como um

agente coagulante da larga maioria destes processos de

objectificação dos laços de afecto. O nome identifica e distingue

a pessoa ao mesmo tempo que a situa num tecido de relações

familiares, demarcando o acesso a direitos e o assumir de

obrigações. O processo de consolidação física da criança e a

atribuição de nome que geralmente o acompanha conformam,

pois, um limiar de afectos, com todas as implicações emocionais

que tal tem para os que estão relacionados com a criança.

Antes de concluir gostava de explicitar algumas das

implicações mais gerais do género de argumento que tenho

vindo a desenvolver. Na sua obra After Nature de 1992, Marilyn

Page 28: Pina Cabral - O Limiar Dos Afetos

Strathern examina as implicações que as novas técnicas de

reprodução assistida podem ter para a teoria antropológica. O

seu argumento é que a centralidade da polaridade

Natureza/Cultura foi minada definitivamente pelo facto da

intervenção biológica sobre os processos que eram

anteriormente considerados naturais lhes ter retirado a sua

imutabilidade e, portanto, a capacidade de funcionarem como

termos fixos de referência.

O resultado deste processo não foi o desaparecimento da

Natureza, diz-nos a autora. Pelo contrário, esta tornou-se mais e

mais visível, nomeadamente através da sua manipulação no

apelo ao consumo. O que se teria definitivamente alterado é “a

concepção de pessoas como indivíduos e da sociedade como uma

visão relacional de pessoas.” Mas, continua a autora, se a

Natureza não desapareceu, a sua “função radicadora”

(grounding function) sim desapareceu. A Natureza deixou de

funcionar como “um modelo ou analogia para a própria ideia de

contexto.” (1992: 195) A conclusão que tira é que, e cito, “o

conhecimento (por assim dizer) deixará de procurar o seu

próprio fundamento, pois os seus contextos deixarão de ser

significantes.” (1992: 197)

Esta identificação entre o mundo comum material e a

“natureza” é, na verdade, como bem demonstra Strathern, um

desenvolvimento intelectual que acompanha a hegemonia global

anglo-americana dos últimos três séculos. A questão que temos

de levantar, porém, é se essa identificação e o individualismo

teórico que a ela está estreitamente associado são (a)

características das formas de viver do quotidiano informal do

Page 29: Pina Cabral - O Limiar Dos Afetos

próprio mundo anglo-americano, por contraste com as teorias

políticas, económicas e morais das suas elites, ou se (b) esse

“nós” antropológico – que continua a ser tão omnipresente – se

aplica, de facto, aos que não somos nem nunca viremos a ser

membros da intelligentzia anglo-americana.

As implicações nacionalistas da identificação entre teoria

antropológica e cultural “americana” ou “inglesa” (trata-se,

aliás, de uma das principais diferenças entre as formulações de

Schneider e Strathern) deveria alertar-nos logo para algo que só

“nos” pode preocupar – a “nós”, insisto, que não somos membros

das referidas elites intelectuais: a questão da identity politics

subjacente silenciosamente a todo este debate.

Marilyn Strathern inicia o seu livro dizendo: “Este é um

exercício sobre a imaginação cultural – com respeito tanto ao

nosso tema principal (o parentesco inglês) como à disciplina que

constitui a minha tecnologia potenciadora (a antropologia

social). Na linha do idioma personificante de ambos, eu quero

demonstrar a forma pela qual as ideias se comportam.” (1991:

xvii) Talvez eu próprio não tivesse sido alertado para os

problemas de uma política da identidade implícitos nesta

formulação – há que reconhecer – se não fosse o facto de, um

ano após After Nature, ter saído um livro de Mary Bouquet sobre

parentesco inglês(1993), onde se fundamenta este argumento

por referência a uma suposta incapacidade dos alunos

universitários portugueses de aprender a teoria antropológica do

parentesco – apreciação que me deixou perplexo, mais tarde

corroborada por Marilyn Strathern na sua Aula Inaugural para a

Cátedra de Antropologia Social de Cambridge. Sendo eu

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também “português”, levantar-se-á a possibilidade de eu próprio

não ter percebido o essencial do que li de Radcliffe-Brown ou

Fortes?

Penso que é importante, neste momento, dissociarmo-nos

das conclusões de Marilyn Strathern tanto nesta matéria como

sobretudo na sustentação de que a questão epistemológica

perdeu a sua relevância nos dias que passam. Não só me parece

um pouco apressada essa fé na pós-modernidade, como

resultando de um desvio idealista no culturalismo que urge

rejeitar. A tecnologia pode bem ter alterado os termos em que

pensávamos a polaridade Natureza/Cultura, mas não alterou a

interdependência entre processos sociais e materiais nem a

complexidade da forma como cultura e materialidade se

integram. O conhecimento jamais deixará de procurar o seu

fundamento na materialidade, na medida em que não existe sem

esse fundamento.

Assim, pois, concluo que reduzir o estudo da emoção – e

em especial dos laços de afecto que fundam as nossas reacções

emocionais – a um estudo dos discursos da emoção é não

compreender que o etnógrafo, na sua materialidade, é co-

existente com os etnografados e que só através do mundo

comum que partilham é que ele pode dar sentido às observações

etnográficas que realiza.

Page 31: Pina Cabral - O Limiar Dos Afetos

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