Pierre Lévy - A Inteligência Coletiva

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LVY, P. A inteligncia coletiva: por uma antropologia do ciberespao. 3a edio. So Paulo: Edies Loyola, 2000. Dinmica das cidades inteligentes. Manifesto por uma poltica molecularpginas 59-82

DINMICA DAS CIDADES INTELIGENTES MANIFESTO POR UMA POLTICA MOLECULAR Como governar em situao de desterritorializao acelerada? A inveno de novos modos de regulao poltica surge como uma das tarefas que se impem com urgncia humanidade. Moralmente desejvel quando caminha no sentido de um aprofundamento da democracia, essa inveno envolve a sade pblica ao condicionar a resoluo dos problemas graves e complexos de nosso tempo. Desenvolvemos aqui a hiptese "utpica" de uma democracia direta acompanhada por computador - ou de uma gora virtual -, mais capaz de nos fazer atravessar as guas turbulentas da mutao antropolgica do que os sistemas representativos atuais.

TCNICA E POLTICA As infra-estruturas de comunicao e as tecnologias intelectuais sempre mantiveram estreitas relaes com as formas de organizao econmicas e polticas. Lembremos a esse respeito alguns exemplos bem conhecidos. O nascimento da escrita est ligado aos primeiros Estados burocrticos de hierarquia piramidal e s primeiras formas de administrao econmica centralizadas (imposto, gesto de grandes domnios agrcolas etc.). O surgimento do alfabeto na Grcia antiga contemporneo ao aparecimento da moeda, da cidade antiga e, sobretudo, da inveno da democracia: tendo a prtica da leitura

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se difundido, todos podiam tomar conhecimento das leis e discuti-las. A imprensa tomou possvel uma ampla difuso de livros e a existncia de jornais, base da opinio pblica. Sem ela, as democracias modernas no teriam nascido. Alm disso, a imprensa representa a primeira indstria de massa, e o desenvolvimento tecnocientfico por ela promovido foi um dos motores da Revoluo Industrial A mdia audiovisual do sculo XX (rdio, televiso, discos, filmes) participou de surgimento de uma sociedade do espetculo, que transformou as regras do jogo tanto na cidade como no mercado (publicidade). A slida interao entre as tcnicas de comunicao e as estruturas de governo viu-se confirmada por vrios eventos polticos recentes. Bem adaptados mdia unidirecional, centralizadora e territorializada, os regimes autoritrios tiveram dificuldade em resistir s redes telefnicas, aos satlites de televiso, ao fax, fotocopiadoras, a todos os instrumentos que estimulam uma comunicao descentralizada, transversal e nohierarquizada. Os meios de comunicao d massa contemporneos, ao difundir em larga escala todo tipo de idias representaes, pem em questo os estilos de organizao rgidos e as cultun1 fechadas ou tradicionais. A despeito de inevitveis reaes e ardores arcaizantes eles demonstraram seu imenso poder critico. Mas, se propagam emoes irradiam imagens e dissolvem com eficincia esses redutos culturalmente isolados, os meios de comunicao de massa pouco ajudam os povos a elabore coletivamente solues para seus problemas e a pensar em conjunto. Depois de nossas sociedades experimentarem os poderes crticos e desterritorializantes da mdia clssica, por que no experimentariam as capacidades de aprendizado cooperativo, de urdidura e reconstituio do lao social de que dispem c dispositivos de comunicao para a inteligncia coletiva? As inovaes tcnicas abrem novos campos de possibilidades que os atores sociais negligenciam ou apreendem sem qualquer predeterminao mecnica. Um vasto campo poltico e cultural, quase virgem, abre-se para ns. Poderamos viver um desses momentos extremamente raros em que uma civilizao inventa a prpria, deliberadamente. Mas essa abertura talvez no dure muito. Antes de nos engajar s cegas em vias irreversveis, urge imaginar, experimentar e promover no novo espao de comunicao, estruturas de organizao e estilos de deciso orientados para um aprofundamento da democracia. O i poder se tomar um meio de explorao dos problemas, de discusso pluralista, de evidncia e processos complexos, de tomada de deciso coletiva e de avaliao de resultados o mais prximo possvel das comunidades escolhidas.

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A INADAPTAO CONTEMPORNEOS

DO

GOVERNO

AOS

PROBLEMAS

POLTICOS

As formas de governo atualmente em uso estabilizaram-se numa poca em que as mudanas tcnicas, econmicas e sociais eram bem menos rpidas que hoje. Os grandes problemas polticos do mundo contemporneo referem-se ao desarmamento, aos equilbrios ecolgicos, s mutaes da economia e do trabalho, ao desenvolvimento dos pases do hemisfrio sul, educao, misria, manuteno do lao social etc. Ningum possui soluo simples e definitiva para resolv-los. Uma abordagem sria dessas questes exige provavelmente a mobilizao de uma grande variedade de competncias e o tratamento contnuo de enormes fluxos de informao. Alm disso, os problemas em questo esto todos, em maior ou menor medida, interconectados em um espao mundializado. Enfim, sua resoluo exige negociaes entre atores muito numerosos, de porte, cultura e interesses a curto prazo heterogneos 1. Praticamente nenhum sistema de governo contemporneo foi concebido de modo a responder a tais exigncias. Os procedimentos de deciso e avaliao hoje em uso foram propostos para um mundo relativamente estvel e em uma ecologia da comunicao simples. Ora, a informao hoje torrencial ou ocenica. O hiato entre o carter diluviano dos fluxos de mensagens e os modos tradicionais de deciso e orientao faz-se cada vez mais evidente2. Os sistemas de governo ainda utilizam majoritariamente tcnicas de comunicao molares. A administrao recorre com mais freqncia gesto clssica - lenta e rgida - por meio da escrita esttica. De modo geral, s se serve da informtica com o objetivo de racionalizar e acelerar o funcionamento burocrtico, raramente com o objetivo de experimentar formas de organizao ou de tratamento da informao inovadoras, descentralizadas, mais flexveis e interativas. Quanto aos polticos, seu espao de comunicao e de pensamento encontra-se totalmente polarizado pelos meios de comunicao de massa: jornais, rdio e televiso. Entretanto, para responder acelerao da mudana, um uso macio das tcnicas digitais de simulao, de acesso informao em tempo real e de comunicao interativa pode se revelar muito til, entre as mos de todos os cidados. Como tratar 1 Sobre essas questes de estrutura de governo e de aptido para governar, ver o relatrio do Clube de Roma assinado por Alexander KING e Benrand SCRNEIDER, Questions de survie Paris, CalmmanLvy, 1991 (Ttulo original: The first global revolucion). Em especial as pp. 162-183. 2 A transformao da esfera tecnocomunicativa, a impossibilidade de dominar seu ambiente e de tomar decises a seu respeito pelas vias habituais diante da enchente informacional, assim como as diversas patologias sociais ligadas a essa nova situao, foram muito bem analisadas por Franco BERARDI. Ver, desse autor, Mutacione cyberpunk Gnova, Costa & Nolan, 1994; Come si curi il nazy, Roma, Castelvecchi, 1993; e, de Franco BERARDI e Franco BOLLEU, Por uma deriva felice, Milo, Mltipla, 1993. 61

enormes massas de dados concernentes a problemas interligados em situao de

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mobilidade? Provavelmente adotando estruturas de organizao que favoream uma verdadeira socializao das resolues de problemas, em vez de seu tratamento por instncias isoladas, com risco de rapidamente se tomarem concorrentes, serem engolfadas, superadas e expulsas da disputa. O tratamento cooperativo e paralelo das dificuldades requer a concepo de ferramentas de filtragem inteligente dos dados, navegao em meio informao, simulao de sistemas complexos, comunicao transversal e observao recproca das pessoas e grupos em funo de suas atividades e de seus saberes. Pode-se supor que certas tcnicas de construo interativa e de visualizao de espaos de significao emergentes permitiriam caminhar nesse sentido. O uso generalizado dessas "goras virtuais" melhoraria sensivelmente a elaborao das questes, a negociao e a tomada de deciso em coletivos heterogneos e dispersos. A mobilizao das competncias sociais uma exigncia indissociavelmente tcnica e poltica. A democracia s progredir explorando da melhor forma as ferramentas de comunicao contemporneas. De modo simtrico, o aprofundamento da democracia no sentido da inteligncia coletiva constituiria uma finalidade ao mesmo tempo til e (acreditamos ns) capaz de suscitar entusiasmo entre os administradores do ciberespao. O uso socialmente mais rico da informtica comunicacional consiste, sem dvida, em fornecer aos grupos humanos os meios de reunir suas foras mentais para constituir coletivos inteligentes e dar vida a uma democracia em tempo real. A GORA VIRTUAL SERIA RESERVADA ELITE? Uma possvel objeo a essa proposio tecnopoltica poderia ser que as ferramentas de navegao seriam demasiado caras e difceis de manejar. A gora eletrnica seria um luxo elitista reservado a pessoas ricas e educadas. Esse argumento no nos parece vlido. Quanto ao custo, tal sistema poderia basear-se em infra-estruturas materiais existentes, sem nem sequer apelar s famosas fibras pticas das "infovias". Os desenvolvimentos necessrios para a melhoria dos sistemas de compactao e descompactao dos dados, para a concepo dos softwares de comunicao, navegao, simulao e visualizao seriam mnimos em relao s somas absorvidas em certas despesas militares ou na construo de escritrios ociosos. Nenhum investimento especial seria necessrio para o desenvolvimento dos terminais. Seriam empregados os micro-computadores multimdia disponveis no mercado. Quanto s barreiras do uso, os instrumentos digitais contemporneos so cada vez mais fceis de manejar. Uma parcela cada vez maior da populao utiliza computadores em seu trabalho e sabe manejar um ou dois softwares. As dificuldades de aprendizado parecem quase inexistentes para

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as jovens geraes. (De maneira geral, o que hoje parece fico cientfica aos que tm mais de quarenta anos pode muito bem ser trivial daqui a trinta anos.) Lembremos que s se trata de aprender a utilizar os instrumentos digitais de comunicao, e no de constru-los ou program-los. A ttulo de comparao recordemos que o sufrgio universal supe a alfabetizao dos cidados. Ora, a prtica da leitura se adquire com grande esforo, em trs ou quatro anos (ou mais) de trabalho assduo, em instituies especializadas e bem caras para a coletividade (as escolas), s quais certas pessoas infelizmente no tm acesso em alguns pases. Ser esta uma razo para recusar o sufrgio universal, sob pretexto de que seria reservado a uma elite prospera e alfabetizada? Pelo contrrio, o sufrgio universal e o acesso educao so geralmente considerados direitas. A capacidade mnima para navegar no ciberespao se adquirir provavelmente em tempo muito menor que o necessrio para aprender a ler e, como a alfabetizao ser associada a muitos outros benefcios sociais, econmicos e culturais alm de acesso cidadania. O telefone e a televiso fazem parte, hoje, do equipamento normal dos lares nos pases industrializados, mesmo entre as pessoas mais modestas. A televiso o terminal de um dispositivo de comunicao que funciona segundo o esquema em estrela um/todos. A mensagem parte de um centro nico para atingir um periferia numerosa de receptores separados entre si. J o telefone o terminal de um dispositivo de comunicao estruturado pelo esquema em raie um/um. O contatos so interativos, mas somente dois usurios (ou um pequeno nmero d pessoas) podem se comunicar ao mesmo tempo. No absurdo conceber que daqui a alguns anos, todos os lares possam igualmente estar equipados d terminais (os cibergates3) de um dispositivo de comunicao segundo um esquema em espao todos/todos. Os cidados poderiam participar de uma administrao sociotcnica de um novo tipo, permitindo a grandes coletividades comunicar-se entre si em tempo real. O ciberespao cooperativo deve ser concebido como um verdadeiro servio pblico. Essa gora virtual facilitaria a navegao e a orientao no conhecimento, promoveria trocas de saberes, acolheria a construo coletiva do sentido, proporcionaria visualizao dinmica das situaes coletivas, permitiria enfim, a avaliao por mltiplos critrios, em tempo real, de uma enorme quantidade de proposies, informaes e processos em andamento. O ciberespao poderia tomar-se o lugar de uma nova forma de democracia direta em grande escala.

3 Ou pontas de redes digitais de comunicao interativa 64

DEMOCRACIA REPRESENTATIVA E DEMOCRAOA DIRETA No podemos nos basear na experincia histrica ou na tradio para reagir a problemas jamais vistos. A filosofia poltica ainda no foi capaz, evidentemente de recensear e discutir a democracia direta em tempo real no ciberespao, pois sua possibilidade tcnica apresenta-se apenas a partir de meados dos anos 80. A democracia ateniense reunia alguns milhares de cidados que se encontravam e discutiam juntos em um lugar pblico, ao qual podiam encaminhar-se a p. Por ocasio do nascimento das democracias modernas, milhes de cidados se dispersavam em extensos territrios. Foi, na poca, praticamente impossvel manter uma democracia direta em grande escala. A democracia representativa pode se considerada uma soluo tcnica a dificuldades de coordenao. Mas, uma vez que melhores solues tcnicas so apresentadas, no h motivo algum para no explor-las a srio. Os regimes pluralistas e parlamentares clssicos so com certeza preferveis a ditaduras, e o sufrgio universal superior ao sufrgio censitrio. Nem por isso se devem fetichizar procedimentos sociotcnicos especficos. O ideal da democracia no a eleio de representantes, mas a maior participao do povo na vida da cidade. O voto clssico apenas um meio. Por que no conceber outros, com base no uso de tecnologias contemporneas que permitiriam uma participao dos cidados qualitativamente superior que confere a contagem de cdulas depositadas nas umas? Hoje, de fato, alm das atividades associativas, a participao efetiva dos cidados na vida da cidade assume essencialmente a forma do voto. Quando o eleitor d sua adeso a um programa, a um porta-voz ou a um partido, ele acrescenta uma pequena massa sobre o prato de uma balana, ou um minsculo diferencial c fora a uma proposio. O voto envolve o cidado em um processo de regulao social molar, no qual seus atos possuem apenas efeitos quantitativos. Os indivduos que depositaram na cabine votos idnticos so praticamente intercambiveis, mesmo que deparem com problemas bem distintos e que seus argumentos e posies se distribuam segundo mil nuanas. As identidades polticas se reduzem ao fato de pertencerem a algumas categorias simples, ou mesmo binrias. As pesquisas de opinio funcionam, por alto, segundo os mesmos princpios: o entrevistado deve responder isoladamente "sim" ou "no" questes simplistas postas por outros, e suas respostas s tm efeito estatstico. Alm de o modo de expresso permitido pelo voto ser extremamente grosseira ele descontnuo e possibilita pouca iniciativa por parte dos cidados: as eleies importantes s ocorrem a cada quatro ou cinco anos. J um dispositivo de democracia direta em tempo real, no ciberespao, permitiria cada um contribuir de maneira contnua para a elaborao e o aperfeioamento

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dos problemas comuns, para a abertura de novas questes, para a formulao de argumentos, para enunciar e adotar posies independentes umas das outras sobre grande variedade de temas. Os cidados desenhariam juntos uma paisagem poltica qualitativamente to variada quanto quisessem, sem ficar limitados de sada por grandes separaes molares entre partidos. A identidade poltica dos cidados seria definida por sua contribuio construo de uma paisagem poltica perpetuamente em movimento, e pelo apoio que dariam a determinado: problemas (que eles julgam prioritrios), a determinadas posies (s quais eles aderem), a determinados argumentos (que eles retomam por conta prpria). Com isso, cada um teria uma identidade e um papel poltico absolutamente singulares e diferentes dos de outro cidado, conservando a possibilidade de concordar com os que, sobre este ou aquele assunto, em determinado momento, possuem posies prximas ou complementares. claro, todas as precaues seriam tomadas para proteger o anonimato das identidades polticas. No se participaria mais da vida da cidade "fazendo nmero", acrescentando peso a um partido ou conferindo legitimidade superior a um porta-voz, mas criando diversidade, animando o pensamento coletivo, contribuindo para a elaborao e a resoluo dos problemas comuns. CONSTITUIO DE SUJEITOS COLETIVOS DE ENUNCIAO Dar a uma coletividade o meio de proferir um discurso plural, sem passar por representantes, o que est em jogo, do ponto de vista tecnopoltico, na democracia do ciberespao. Essa fala coletiva poderia, por exemplo, apresentar-se como uma imagem complexa ou um espao dinmico, um mapa mvel das prticas e idias do grupo. Cada um poderia se situar em um mundo virtual pai cujo enriquecimento e modelagem todos contribuiriam por meio de seus atos d comunicao. Coletivo no necessariamente sinnimo de macio e uniforme. O desenvolvimento do ciberespao nos fornece a ocasio para experimentar modos c organizao e de regulao coletivos exaltando a multiplicidade e a variedade. O problema da constituio de sujeitos coletivos de enunciao um dos mais rduos da filosofia e das prticas polticas. Em que condies se pode justificadamente dizer "ns"? E o que esse "ns" pode enunciar legitimamente enquanto coletivo, sem usurpao ou reduo de variedade? O que se perde ao dizer "ns"? Quando os participantes de uma manifestao gritam as mesmas palavras de ordem, sem dvida constituem um agenciamento coletivo de enunciao. Mas pagam por essa possibilidade um preo no-desprezvel: as proposies comuns so pouco numerosas e bem simples, mascaram as divergncias e no integram as

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diferenas que singularizam as pessoas. Alm disso, a palavra de ordem em geral preexiste manifestao. raro que cada um dos participantes tenha contribudo para sua negociao ou seu surgimento. A manifestao, como o voto, s possibilita aos indivduos construir para si uma subjetividade poltica pela pertena a uma categoria ("os que retomam as mesmas palavras de ordem", ou "os que se reconhecem em tal partido" etc.). Quando todos os membros de um coletivo formulam (ou assim se supe) as mesmas proposies, o agenciamento de enunciao coletiva encontra-se no estgio da monodia ou do unssono. Os "ns" pobres enunciam proposies montonas. Pois h vrias maneiras de dizer "ns". Certas formas de organizao possibilitam aos indivduos inscrever-se de maneira diferenciada em um enunciado final complexo: livros ou artigos com diversos autores, filmes seguidos de crditos em que a contribuio de cada um mencionada, peas de teatro, jornais etc. No domnio poltico, o equivalente sem um texto de lei discutido, modificado, emendado e adotado por uma assemblia. Mas, nesse caso, o enunciado d a ler um produto final pronto e no a dinmica aberta da composio das vozes e da negociao das mensagens. Alm disso, esse tipo de agenciamento de enunciao em geral dominado por um autor, um diretor, um redator principal, um "regente" qualquer. Aqui, o dispositivo e enunciao j se encontra no estgio da polifonia. No entanto, essa sinfonia ainda no est suficientemente viva, plural e indeterminada. uma harmonia preestabelecida por um ponto de origem no passado, fixada por um ponto de parada durante o desenvolvimento, ou dirigida de cima por um "ponto de transcendncia" que orienta o processo. Ora, para ser completamente livre, a fala do coletivo deveria estar ligada sua respirao, deveria brotar incessantemente inventarse em tempo real. O ciberespao poderia abrigar agenciamentos de enunciao produtores de sintomas polticos vivos que permitiriam aos coletivos humanos inventar exprimir de modo contnuo enunciados complexos, abrir o leque de singularidades e das divergncias, sem por isso inscrever-se em formas fixadas de antemo. A democracia em tempo real visa a constituio do "ns" mais rico cujo modelo musical poderia ser o coral polifnico improvisado. Para os indivduos, exerccio especialmente delicado, pois cada um chamado ao mesmo tempo a: 1) escutar os outros coralistas; 2) cantar de modo diferenciado; 3) encontrar uma coexistncia harmnica entre sua prpria voz e a dos outros, ou seja, melhorar efeito de conjunto. E necessrio, portanto, resistir aos trs "maus atrativos" que incitam os indivduos a cobrir a voz de seus vizinhos, cantando demasiado forte, a calar-se ou a cantar em unssono. Nessa tica da sinfonia o leitor ter percebido as regras da conversao civilizada, da polidez ou do sawir vivre - o que consiste

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em no gritar, em ouvir os outros, em no repetir o que eles acabam de dizer, em responder-lhes, em tentar ser pertinente e interessante, levando em conta estgio da conversa. A democracia direta no ciberespao poria em ao uma civilidade acompanhada por computador. Essa nova democracia poderia assumir forma de um grande jogo coletivo, no qual ganhariam (mas sempre provisoriamente) os mais cooperativos, os mais urbanos, os melhores produtos de variedade consonante ... e no os mais hbeis em assumir o poder, em sufocar a voz dos outros ou em captar as massas annimas em categorias molares. As capacidades de clculo, de visualizao sinttica e de comunicao imediata prprias do ciberespao so indispensveis ao funcionamento em grande escala de dispositivo de sinfonia ou de polifonia poltica. A constituio do grupo s no escapa jamais necessidade de uma mediao. Nossa hiptese simplesmente de que essa mediao poderia ser imanente, em vez transcendente. Do lado da transcendncia, os mediadores so deuses, mitos, hierarquias, representantes. Do lado da imanncia, uma ferramenta eletrnica cumpre o papel de mediadora entre o grupo e ela, ferramenta sustentada por milhares de mos, que produz e reproduz continuamente um textoimagem variado, um cinemapa observado por milhares de olhos, estruturado pelos debates, em andamento e pelo envolvimento dos cidados. O papel da gora virtual no o de decidir no lugar das pessoas (nenhuma relao com os grotescos projetos "mquinas de governar"), mas o de contribuir para produzir o agenciamento coletivo de enunciao, animado por pessoas vivas. O mediador tcnico calcula e recalcula em tempo real o discurso-paisagem do grupo, de modo a deforma menos possvel a singularidade dos enunciados individuais. At hoje, a maioria dos mediadores dos grupos foram humanos, cuja funo transformava em super-homens, em quase deuses (reis, chefes de Estado ou governo, vedetes da mdia), ou ainda em sub-homens, vtimas expiatrias, inimigos polarizando a violncia latente na sociedade. Haver uma fatalidade antropolgica da heteronomia, da transcendncia, da divinizao ou perseguio? Novas possibilidades tcnicas, combinadas a progressos de ordem organizacional e jurdica, poderiam, se no fazer desaparecer para sempre transcendncia e a heteronomia, pelo menos conferir-lhes o status de arcasmo se lamentar, o qual, com certeza, os leitores hoje atribuem aos sacrifcio humanos, escravido, pirataria, tortura, ao apartheid, economia totalmente planificada ou aos regimes ditatoriais. O que atualmente julgamos brbaro j considerado em outra poca e cm outros lugares, de acordo com o caso, prticas "normais" impostas pela natureza humana ou mesmo desejveis. Mediao tcnicojurdicas imanentes a servio da enunciao coletiva talvez tornem obsoletas certas antropologias muito apressadas em concluir pela eterna

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necessidade de mediaes divinas, ou demasiado humanas para dar forma unidade de um grupo. Quem pode pretender afirmar com certeza que as vtimas dos deuses, os poderes transcendentes, a heteronomia em geral sejam a via obrigatria para a soldagem dos coletivos?4 E qual , a propsito, o efeito auto-realizador de profecias que se apresentam como constataes? DINMICA DA CIDADE INTELIGENTE O coletivo inteligente a nova figura da cidade democrtica. Habitada por esse ideal, a "poltica molecular", liberta da influncia dos poderes territoriais, suspende por um momento a ao das redes desterritorializadas da economia mundial para permitir a ao, no interior do vazio assim conquistado, e processos rizomticos, das dobras e redobras da inteligncia coletiva. No se trata aqui de formular um programa, de dar um "contedo" democracia em tempo real, mas apenas de indicar uma maneira de fazer, de esboar algumas regras do novo jogo. Em especial, gostaramos de evitar que a inteligncia coletiva cristalize sobre um objetivo, ou reifique-se sobre um ou outro de seus a internos, sobre determinada fase de sua dinmica, quando o essencial o movimento autnomo, o processo criador. A cidade inteligente tem por finalidade seu prprio crescimento, sua densificao, sua extenso, seu retorno sobre si mesma e sua abertura ao mundo. Numa perspectiva poltica, as grandes fases da dinmica da inteligncia coletiva so a escuta, a expresso, a deciso avaliao, a organizao, a conexo e a viso, cada uma delas remetendo a to as outras. Entremos no crculo e comecemos pela escuta. A cidade inteligente se entrega no s a uma escuta de seu ambiente, mas tambm a uma escuta de si e de variedade interna. Como j tivemos ocasio de salientar, dispositivos comunicao ps-miditicos podem restituir a diversidade que surge das prticas efetivas. A escuta consiste em fazer emergir, em tomar visvel ou audvel a mirade de idias, argumentos, fatos, avaliaes, invenes, relaes constituem o social real, a massa do social, em sua mais profunda obscuridade projetos, competncias especficas, modos originais de relao ou

4 Pensamos especialmente na Critique de la raison politique, de Rgis DEBRAY (paris, Gallimard, 1981), cujas concepes o poltico foram recentemente retomadas em, manifestes midialogiques, Paris, Gallimard, 1994. Ver tambm, do mesmo autor Vie et mort de le image, Paris, Gallimard, 1992; L'Etat sductair, Paris, Gallimard, 1993, e Cours de mdialogie gnerale, Paris, Galli 1991. A tese da necessria heteronomia do corpo poltico debilita bastante o empreendimento "midiolgico" desse autor que no seria a heteronomia, como outros aspectos do funcionamento coletivo, dependente do estado das tcnicas prticas de comunicao? Por que subtrair a alternativa heteronomia/autonomia ao campo da midiologia? A vontade de fundar uma antropologia sobre um pomo estvel subtrado ao devir tcnico e linguageiro que a marca do humano, tem sem dvida uma vida dura. 69

contratualizao, experimentos organizacionais etc. Em situao de mobilidade, as lnguas oficiais ou as grades fixas s alcanam confuso, ocultao e desorientao. Aumentar para si a transparncia do social (e no a transparncia do indivduo ao poder) supe que se autorizem as singularidades que o povoam a exprimir-se em sua prpria linguagem, a inventar suas autodescries e seus projetos, sem impor-lhes cdigo a priori. Alm disso, a escuta plena implica uma fase de retomada, de retomo ou de ricochete, supe um dilogo ou um multlogo. Longe de realizar-se por uma instncia transcendente, ou de se limitar a um reconhecimento passivo das diferenas, a escuta um processo imanente ao coletivo, circularidade criadora. Ento, informar ao coletivo que ele foi ouvido por cada um dar-lhe os meios de compreender-se, ou melhor, entender-se5. No estamos distantes do nascimento do lao social: entender-se ... Os dispositivos de escuta do coletivo so para a democracia em tempo real o que o microscpio de tunelamento para as nanotecnologias. No existe ao fina sem percepo molecular. E por isso que preferimos falar de escuta molecular dos coletivos como processo emergente, em vez de "comunicao" ou de "informao", que tm conotao de mdias molares. O termo escuta prefervel a comunicao porque evoca o ato de cavar um oco, mais do que o preenchimento de um canal, pois indica a ateno s solicitaes e s propostas mais do que ao oferecimento de informao e justaposio de discursos. A escuta inverte o movimento miditico. Recupera o murmrio do coletivo, em vez de dar a palavra aos representantes. Que a mdia continue a anunciar catstrofes e a difundir imagens das pessoas do poder. A democracia em tempo real se apia em um dispositivo ps-miditico, uma rede de comunicao molecular sobre as prticas positivas, os recursos, os projetos, os saberes e as idias. A partir dessa escuta contnua, os indivduos e grupos que animam a cidade inteligente podem exprimir os problemas que lhes parecem mais importantes para a vida coletiva, tomar posio sobre esses problemas e formular argumentos em apoio a suas posies. Desse modo, reiteramos que a identidade poltica efetiva de um indivduo no se marca mais pelo fato de ele pertencer a uma categoria, mas por uma distribuio singular e provisria no espao aberto dos problemas, das posies e dos argumentos, espao que cada um contribui para formar e reformar em tempo real. Maiorias e minorias devem doravante ser declinadas no plural, pois no se referem mais a um programa de governo molar, mas a problemas emergentes e, em maior ou menor medida, persistentes. As maiorias s se

5 Jogo de palavras entre comprendre (compreender) e entendre (compreender, entender, mas tambm ouvir). o autor joga com os trs sentidos desta ltima palavra (N. do T.). 70

formam sobre questes especficas, a partir de verdadeiras elaboraes coletivas. As minorias tm a possibilidade de experimentar suas concepes, uma vez que seus projetos no colocam em xeque o funcionamento da democracia em tempo real, pois permitem a explorao de solues alternativas aos problemas da cidade. Dinmica da cidade inteligente

Escuta molecular Viso emergente Democracia em tempo real Expresses Conexes

Decises Organizao Avaliaes

Uma vez tomadas e postas em prtica as decises, elas so avaliadas em tempo real pelo prprio coletivo, de acordo com mltiplos critrios. Os modos de avaliao constituem, de resto, objetos permanentes de debates e so por sua vez avaliados! A democracia em tempo real maximiza a responsabilidade de um cidado chamado alternadamente a tomar decises, a sofrer suas conseqncias e a julgar sua correo. A avaliao deve se efetuar na prpria evoluo do uso dos servios pblicos ou aplicao das leis. A extenso da democracia supe um progresso da responsabilidade. Ora, est claro que tornar visvel efeitos coletivos das decises individuais e comuns refora os sentimentos e as prticas da responsabilidade. Em virtude disso, o exerccio da cidadania forma um todo com a educao e a cidadania propriamente dita. O ato seguinte da inteligncia coletiva, o da organizao, consiste em distribuir funes e rgos na cidade, dividir tarefas, reagrupar foras e competncias. A organizao decorre de atos anteriores. De fato, a atribuio de papis e a destinao de recursos, para ser eficientes, ou seja, para dinamizar processos e no s reforar territrios, devem necessariamente estar mergulhadas em um ciclo

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constante de escuta, expresso, deciso e avaliao. Isolada dos atos anteriores, a organizao se reduz a separaes artificiais, a reagrupamentos formais, sem vida, a meras tomadas de poder. A poltica molecular resiste tentao de organizar de maneira separada. Mergulha as formas molares de organizao no ciclo da inteligncia coletiva. Nessa perspectiva, poderiam ser conservados o Estado e suas estruturas atuais de governo, sob a condio de redefinio de suas funes: tornar-se-iam guardies, garantidores, administradores e executantes da inteligncia coletiva. A organizao contribui para aumentar a visibilidade do social para si, pois toma as distines e a observao mais fceis. Em especial, a identificao clara dos centros de competncia e de recursos um fator importante de transparncia e de orientao para os cidados. Ao faz-lo, a organizao favorece as conexes e cooperaes transversais, o que contribui para seu prprio questionamento, para uma permanente desorganizao. Mera fase no ciclo da inteligncia coletiva, a organizao torna-se auto-organizao; ou, melhor, aparece como o momento organizador de uma auto-organizao global. De fato, no horizonte da cidade inteligente, a organizao no pode ser pensada sem seu complemento desorganizador: a conexo transversal. O impulso inicial das circulaes, a dobra, a redobra e o desdobramento de si em um espao de proximidades de sentido e das relaes humanas animam e percorrem permanentemente a democracia em tempo real. Mundos virtuais de significaes partilhadas poderiam favorecer todas as formas de conexes diagonais e de livre negociao, sem passar por representantes. De um ponto de vista externo, esse momento pode parecer o da desorganizao, o do apagamento simplesmente negativo das distines e fronteiras institudas. Mas esses contatos transversais no se fazem s cegas. As circulaes endgenas resultam. imediatamente dos atos de escuta, de expresso, de deciso e de avaliao. E somente porque as molculas sociais puderam notar reciprocamente sua singularidade - e porque os processos em curso tornaram-se visveis - que reagrupamentos imprevistos, desejos de colaborao, de deslocamentos e de troca podem vir tona. Os mapas da cidade so, desse modo, refeitos. As goras virtuais da democracia molecular ajudam as pessoas e os grupos a se reconhecer reciprocamente, a se encontrar, a negociar, a estabelecer contratos. A esse respeito, o desenvolvimento de instrumentos para orientao e referncia na complexidade poltica, social, institucional e jurdica parece-nos indispensvel, sob a condio de que se fundem sobre a escuta permanente das exigncias e prticas reais dos cidados. Um dos objetivos da democracia em tempo real instaurar o mercado mais transparente possvel de idias, argumentos, projetos, iniciativas, especialidades e recursos a fim de permitir que as conexes pertinentes se estabeleam o mais rpido possvel e ao mais baixo custo. Longe

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dos movimentos brownianos e das misturas aleatrias, a cidade inteligente favorece em seu interior o direcionamento fino das reaes e processos moleculares. Valoriza tanto quanto possvel as qualidades humanas que a fazem viver. O fervilhar dos processos moleculares no deve, no entanto, bloquear o surgimento de uma mo global. O termo viso no deve ser entendido aqui como imagem fixa do futuro, quadro prospectivo ou signo fascinante proveniente de outro lugar, mas como ato de ver, ecloso de uma viso coletiva, viso de si em devir. A viso procede dos atos anteriores: escuta, expresso, deciso, avaliao, organizao, conexo. A retroao permanente acaba desenhando uma dinmica. A viso no provm de cima, no fruto de um rgo separado da inteligncia coletiva. Emerge das interaes e dos contatos, forja-se nos projetos comuns, nas circulaes e encontros. A viso esse momento em que os processos moleculares esboam ou anunciam uma forma global, criam alguns grandes atratores. Entre os instrumentos dessa viso, as imagens virtuais da dinmica em ato do coletivo, fornecidas pelo ciberespao, tm um papel importante. Essas imagens so sintticas ou cartogrficas, mas tambm podem ser indefinidamente exploradas e desenvolvidas em um modo hipertextual. Ao mesmo tempo em que inscrevem as expresses dos indivduos no coletivo, permitem a cada um (indivduos, grupos, associaes, instituies, coletividades locais, empresas) integrar a viso comum do conjunto preparao de seu futuro. Convenientemente partilhada, a viso global reflete-se e fragmenta-se nos projetos e estratgias individuais, orienta ou polariza os processos moleculares. A viso unificante da diversidade s contribui para dinamizar a inteligncia coletiva se for imediatamente distribuda, retomada de maneira autnoma pelos atores sociais, constituindo as estratgias e prticas moleculares que, por sua vez, contribuem para modificar a imagem da dinmica coletiva. A viso a face emergente e global da escuta. A DEMOCRACIA EM TEMPO REAL A perspectiva da democracia em tempo real suscita imediatamente certo numero de questes que se devem especialmente unidade da cidade, continuidade ou constncia de sua poltica. No corremos o risco da perda de memria, das variaes errticas, dos movimentos incontrolados da massa? Poderamos ainda nos situar em uma perspectiva a longo prazo? Antes de abordar diretamente esses problemas, precisamos ter uma viso de conjunto sobre o tema capital da temporalidade poltica. Abordaremos sucessivamente duas questes. Em primeiro lugar, o que ocorre com o tempo real aplicado aos processos sociais em

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geral, e no s ao tratamento da informao? Em segundo lugar, num plano mais diretamente poltico, o que significa exatamente tempo real na expresso "democracia em tempo real"? Vimos que as tecnologias moleculares so mais rpidas que as molares. Elas perseguem o tempo real, isto , reduzem a zero o atraso na obteno de resultados. Quais as diferenas entre o tempo real do clculo e da transmisso e o dos negcios humanos? A primeira diferena quantitativa. Quando se trata de comunidades, a noo de tempo real no tem a mesma escala que os tratamentos da informao. Uma simulao digital reage imediatamente alterao de uma varivel, um indivduo no transforma seus modelos mentais e seus esquemas de ao com tanta rapidez. Quanto aos grupos, eles aprendem ainda mais lentamente que os indivduos. A segunda diferena qualitativa. Para os seres humanos, encurtar as duraes no pode ser um objetivo em si. O exerccio das potncias do ser e o gozo das qualidades humanas integram um tempo que seria absurdo querer reduzir. Do ponto de vista da subjetividade, o problema no encurtar o tempo, mas enriquec-lo. Se a acelerao das operaes se traduz por um empobrecimento do tempo vivido, em termos de economia do humano trata-se antes de uma perda do que de um ganho. Combinando as diferenas qualitativa (subjetividade do tempo) e quantitativa, compreendemos por que a negociao e a aclimatao das novidades nos coletivos obedece a um ritmo "lento". A novidade desloca ou intervm cada vez mais em diversos hbitos, maneiras de agir, regulaes identitrias e equilbrios relacionais. O aprendizado coletivo demora tambm porque pe em jogo interaes e negociaes entre seres autnomos, capazes de dizer no, cada um dos quais situado no centro de um mundo. Menos inteligentes e menos livres que os homens, as molculas e bytes oferecem, em comparao, muito pouca "resistncia mudana". Deixam-se tratar mais facilmente em tempo real. A lentido e o ritmo caractersticos dos processos coletivos indicam a nobreza do humano. Para aprender, pensar, inovar e decidir em comum, preciso tempo. Para formar juzos em comum, para ajustar e elaborar linguagens, para formar comunidade, tambm preciso tempo. Antecipemo-nos um pouco para salientar desde j que, situada sob o signo da inteligncia coletiva, a democracia em tempo real ope-se absolutamente demagogia do direto e aos efeitos de massa imediatos. Devem-se distinguir duas temporalidades dos coletivos inteligentes: a de sua constituio e a de seu modo de ao, uma vez constitudos. A primeira temporalidade (ou temporalidade temporalizante) forosamente "lenta", e no pode se manifestar de imediato, em segundos. Se pressionada, ela se esquiva, justamente porque autnoma. Sem dvida, lanar mo do tempo real das tcnicas moleculares e das redes digitais,

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mas para melhor acompanhar um ritmo interior, subjetivo, secreto, plural e complicado, que no pode ser medido nem pelo re1gio nem pelo calendrio. Em contrapartida, o coletivo inteligente efetivamente mais "rpido" que os grupos humanos orgnicos ou molares. De fato, o que a inteligncia, essa capacidade de aprendizado e de inveno, seno a potncia de acelerar? Um inveno permite quase sempre ir mais rpido em direo a um objetivo. O homo sapiens faz surgir a cultura, que corre mais rapidamente que a evoluo biolgica. A tcnica, a linguagem, o pensamento em geral so aceleradores. por isso que o coletivo inteligente trabalha tanto quanto possvel suas velocidades de aprendizado, aumenta suas capacidades de reorganizao, reduz seus prazos de inovao, multiplica seu potencial inventivo. Um grupo mais inteligente tambm um grupo mais rpido. Mas ele s atingir essa velocidade cognitiva mobilizando - e portanto respeitando - as subjetividades autnomas que o compem, em vez de alinh-las em um tempo exterior. O tempo real da inteligncia coletiva s pode ser uma emergncia; ele sincroniza intensidades do pensamento, de aprendizado e de vida. Abordemos agora o ncleo do problema. A idia de uma democracia em tempo real no tem nada de paradoxal, uma vez que a democracia , por natureza, em tempo real. Em sua acepo mais comum, de fato, ela se contrape arbitrariedade do tirano, ou ao poder de uma minoria, e estabelece uma lei vlida para todos e decidida por todos (ou, pelo menos, pela maioria) - o que significa que o objetivo da democracia realizar e conservar a autonomia do grupo de cidados: a cidade d a si suas prprias leis. Ora, a autonomia, como hoje compreendemos, incompatvel com a resignao ao fato consumado. Supe uma aptido mudana, ao questionamento, ao aprendizado. O ser autnomo tem potncia para escapar de seu passado, recusa-se a ser estreitamente determinado. Soberano, pode modificar a lei instituda ou atribuir-se outra. Ora, a crer em Emmanuel Levinas, a transcendncia precisamente o que absolutamente passado, para sempre passado, e sobre o que no temos influncia alguma. Quando uma coletividade decide dar a si mesma leis ou formas de organizao diferentes das que seguiram seus antepassados, ela escapa ao peso da tradio e influncia de uma transcendncia, tendo em vista os interesses presentes ( comunidade ou porque ela se prope novos objetivos. Tal cidade se institui dessa forma, como autnoma. A democracia por excelncia o regime poltico do "presente para um futuro", por oposio a um presente fixo, dominado por um passado ou por uma transcendncia (heteronomia). A expresso "democracia em tempo real" , portanto, pleonstica, uma vez que a democracia visa por essncia a deciso coletiva no presente e a permanente reavaliao das leis. Mais uma vez, se hoje s recorremos deliberao e deciso do cidado de tempos

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em tempos, isso no decorre dos princpios da democracia. A delegao periodicamente renovada um paliativo, na impossibilidade de dar vida a uma inteligncia coletiva ininterrupta. Uma vez que as goras virtuais poderiam abrir espaos de comunicao, de negociao, de surgimento de uma fala coletiva e de deciso em tempo real, existem cada vez menos argumentos "tcnicos" para perpetuar o despotismo fragmentado que constitui a delegao. J somos capazes de responder aos temores concernentes ausncia de poltica a longo prazo e de continuidade em um regime de democracia em tempo real. Observemos, para comear, que so os governos efetivos, ou seja, os representantes eleitos, que se subordinam ao tempo curto e entrecortado da mdia. A ausncia de viso e de poltica a longo prazo provm da combinao entre representao (forma poltica molar) e televiso (dispositivo de comunicao molar). O sistema tal que os representantes s visam se reeleger, e utilizam para isso a mdia, que os submete sua instantaneidade, sua ausncia de memria e de projeto. A poltica-espetculo personaliza vergonhosamente as questes, fascina os cidados, atomiza-os, massifica-os, no lhes propicia influncia alguma sobre os assuntos da cidade. Deve-se distinguir muito claramente entre a democracia em tempo real, que poder se desenvolver no ciberespao e a poltica miditica, que se baseia no trptico infernal televiso/ pesquisas eleitorais/eleies. A democracia em tempo real no tem nada a ver com a emisso de televiso seguida do voto por Minitel. Inscreve-se, pelo contrrio, na construo lenta mas contnua de um debate coletivo e interativo, no qual cada um pode contribuir elaborando questes, refinando as posies, emitindo e ponderando argumentos, tomando e avaliando decises. Quem tender a inscrever-se em longo prazo? Os que decidem sobre seu futuro coletivo e o de seus filhos, ou os que precisam reeleger-se no ano seguinte? Quem exigir medidas a curto prazo? Grupos de interesse sem real poder de deciso, condenados a reivindicar, subtrados a toda avaliao? Ou minorias reunidas em tomo de um projeto que as mobiliza, que elas avaliam e tomam a seu cargo experimentar? Uma poltica descontnua nasce da relao infantil entre categorias irresponsveis que reivindicam para si mesmas sem preocupar-se com a coletividade, por um lado, e tomadores de deciso que s respondem a essas reivindicaes em funo de clculos eleitorais a curto prazo, por outro. A democracia em tempo real instaura, pelo contrrio, um tempo de deciso e de avaliao contnua, no qual um coletivo responsvel sabe que ser confrontado no futuro com os resultados de suas decises atuais. A inteligncia coletiva no tem relao alguma com a insensatez das massas. Os pnicos, entusiasmos coletivos etc. so fruto da propagao epidmica de afetos e

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representaes entre massas de indivduos isolados. As pessoas que compem uma multido presa de pnico ou de entusiasmo no pensam juntas. Comunicam-se, mas no sentido mnimo de conduo passiva e imediata de mensagens simples sentimentos violentos e comportamentos reflexos. O efeito global das aes individuais escapa absolutamente aos indivduos que compem a multido. Gostariam que acreditssemos que a passagem por uma transcendncia (hierarquia, autoridade, representantes, tradies etc.) o nico meio de tornar o coletivo menos errtico que uma multido atomizada. Mas isso falso. rgos tcnico-organizacionais podem tomar visvel a todos a dinmica coletiva, permitindo a cada um se situar em seu interior, modific-la e avali-la com conhecimento de causa. Os coletivos inteligentes se contrapem ponto a ponto incoerncia e imediatez brutal dos movimentos de massa, sem por isso canalizar a comunidade em uma estrutura rgida. Hoje, duas temporalidades molares e uniformizantes enfrentam-se na poltica. De um lado, a temporalidade da poltica-espetculo, despedaada, sem memria, sem projeto, incoerente. De outro, a temporalidade dos Estados e das burocracias, terrivelmente lenta, conservadora, apegada continuidade imvel da gesto dos territrios, governada pela restaurao do passado. O rudo e a monotonia. contra esse duplo obstculo, a democracia em tempo real esfora-se em seguir e respeitar os mltiplos fios das temporalidades moleculares das pessoas, das diversas comunidades heterogneas que se entrecruzam, problemas que possuem seus ritmos prprios. Na instabilidade geral, ela tenta fazer esses ritmos entrarem em ressonncia, pr em harmonia provisria os acentos e as cadncias. Exprime um tempo plural e subjetivo. Voltamos a encontrar o tema da improvisao sinfnica: as vozes encadeiam-se, respondem-se, do a ouvir uma improvvel sinfonia. O TOTALITARISMO DIANTE DA ECONOMIA DAS QUALIDADES HUMANAS Mas novamente, e a despeito de todos os argumentos, surgem suspeitas: essa democracia em tempo real no seria a mscara de uma nova forma de totalitarismo? Se nos entendermos sobre o sentido das palavras, ela no tem nada de totalitarismo. Orwell enunciou de modo maravilhoso a frmula do totalitarismo: Big Brother is watching you. A poltica miditica simplesmente inverte a frmula do totalitarismo: em vez de organizar a vigilncia constante dos indivduos pelo partido- Estado do ditador, ela fixa os olhos de cada um sobre as estrelas polticas. Todos olham para os mesmos: o presidente, os ministros, os jornalistas, os "miditicos". S se v a eles, s se fala deles. Ora, a democracia em tempo real organiza no a viso de um poder sobre a sociedade e as pessoas

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(totalitarismo), no o espetculo do poder (regime miditico), mas a comunicao da comunidade consigo mesma, o conhecimento de si do coletivo. Ao faz-lo, ela suprime a justificao do poder. Pois precisamente quando o coletivo no conhece a si mesmo, no controla sua prpria dinmica e no consegue produzi enunciados complexos que um poder "necessrio". Para se manter, esse pode procura incessantemente impedir o surgimento de uma inteligncia coletiva que levaria a comunidade a prescindir dele. De qualquer modo, a idia de uma engenharia do lao social e de uma valorizao tima das qualidades humanas no introduziria certa forma de "razo instrumental" (Habermas) em uma esfera poltica na qual esse tipo de clculo, de nacionalidade no fariam sentido? A inteligncia coletiva e suas goras virtual no representam o triunfo sutil, mas tanto mais irreversvel da "tcnica (Heidegger)? Toda idia de um progresso poltico e moral da humanidade no deriva de uma filosofia das luzes h muito refutada, de um modernismo unificado r superado, e no termina sempre, de resto, pondo-se a servio de um imperialismo qualquer (ps-modernismo, pensiere debole, senso comum etc.) Expulsa pela porta, a suspeita de totalitarismo volta pela janela, de tal modo que difcil hoje emitir uma proposio poltica que no seja nem cinicamente "realista", nem desencantada, nem catastrofista. Examinemos com mais ateno. A democracia em tempo real ao mesmo tempo um caso particular e coroamento da economia das qualidades humanas. Ela participa efetivamente d um objetivo de valorizao e otimizao das qualidades de cada um. Levando em conta o detalhe subjetivo de cada mnada, de cada alma individual, um coletivo inteligente, semelhante ao Deus de Leibniz, calcula o melhor dos mundos possveis. Segundo o autor da Teodicia, o Grande Calculador respeitava o livre arbtrio das pessoas, uma vez que s intervinha na origem, pela escolha global d um mundo, sem imiscuir-se nas cadeias de causas e efeitos. J a economia de qualidades humanas no contm mais instncia transcendente, mesmo infinitamente respeitadora das liberdades. uma monadologia sem Deus. Nela ningum possui o poder. Ningum detm o conhecimento absoluto do todo o clculo do melhor afetado por uma incerteza inelutvel, o que excelente. Dado que no possumos um conhecimento perfeito da totalidade e impossvel prever o futuro, o clculo no planeja o melhor definitivamente, mas prossegue continuamente em uma srie indefinida de aproximaes, seguindo-se em tempo real chegada de novas informaes e mudana de situaes. Em virtude da diversidade de mundos humanos, o clculo do melhor no pode alinharse sobre um "bem" unidimensional, molar, macio e transcendente. Um mesmo bem para todos e para todos os instantes (mesmo que fosse de natureza

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comercial), bloqueando o surgimento de novas formas da potncia, no se trataria mais de bem. O clculo seguir uma multiplicidade aberta de diferentes critrios; e como existem vrios mundos existiro vrios clculos. Logo, o objeto, a tcnica, a competncia, o projeto, o gosto, a idia, a unidade de sentido, o ato, afetados de tal valor, em tal comunidade, em tal contexto, em tal lugar, em dado momento, assumiro outros valores em outros espaos e em outros tempos. preciso imaginar uma pluralidade de clculos do melhor em variao permanente no interior de mundos justapostos, em vez do clculo definitivo de um universo. Eis a maior diferena entre a monadologia de Leibniz e a economia das qualidades humanas: esta no admite calculador exterior, um grande computador que determine o melhor para todos. Longe de ser centralizado, seu clculo est distribudo por toda parte. Na verdade, existem pelo menos tantos calculadores elementares quanto mnadas: os calculadores so as prprias pessoas. Sabemos que a vontade de impor "o melhor dos mundos" pode ser o pretexto das piores ditaduras. Mas, no caso, o horror no decorre da busca do melhor, da preocupao com a otimizao, mas do carter forado, definitivo, exterior de uma soluo molar, macia, vlida para todos, e portanto fatalmente inadequada para cada um. Restringindo as liberdades, o "totalitarismo" destri igualmente as potncias de ser. A imposio de um mundo perfeito s caracteriza, alis, um "totalitarismo" terico ou, a rigor, a tecnocracia, pois os "totalitarismos" reais, histricos, como o fascismo, o nazismo, o stalinismo, o maoismo, distinguiram-se menos por sua busca do melhor para todos do que pela invaso da vida social pela problemtica do poder, pelas prticas reeditadas sem limite de dominao, sujeio pela louca proliferao, nos menores recnditos do campo social, das cadeias de dependncia, de obedincia e de submisso. Que a poltica, a arte, a cincia, a lngua, a produo e a troca, que quase tudo o que vincula s esteja estruturado, polarizado de cima a baixo de hierarquias e pirmides por toda parte reproduzidas com obstinao fractal, ao longo de redes indefinidamente ramificadas, pela busca e conservao do poder, eis o que caracteriza efetivamente as chamadas sociedades "totalitrias". E eis por que essas sociedades acabaram esterilizando toda vida econmica, artstica e intelectual, eis por que se entregaram de modo descontrolado a massacres de massa e genocdios. E eis por que, ainda, elas s conseguem, mais cedo ou mais tarde, arruinar-se no que diz respeito a uma economia das qualidades humanas, isto , destruir-se a si prprias. Quando as prticas mafiosas do grupo no poder destroem a civilidade, a retirada do partido dominante s deixa atrs de si a proliferao do banditismo e da desordem. A nica via para a democracia passa por um longo aprendizado do coletivo do direito, da autonomia, da reciprocidade e da responsabilidade.

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As "luzes" to criticadas, o projeto de um progresso moral da humanidade no contribuem muito para o estabelecimento dos chamados regimes "totalitrios". Gangues polticas inescrupulosas conseguiram arrastar as massas, justificaram (muitas vezes at aos prprios olhos) suas represses, suas exaes, suas loucuras destrutivas por meio de teorias nacionalistas, racistas, imperialistas, religiosas, socialistas, marxistas ou outras mais ... Sem dvida, essas teorias, religies, grandes imagens fabricantes de identidades possuem sua importncia, mas, de tanto examinar em nome de qu os crimes "totalitrios" foram cometidos, parecemos esquecer de quais crimes se trata, e de como foram perpetrados. O mnimo que se pode dizer que as prticas efetivas difundidas por esses regimes no respondem exatamente aos ideais de um progresso moral da humanidade. Prticas unilaterais de dominao, de imposio ou de saque; asfixia da criatividade, nivelamento das diferenas, uso de fora bruta; desprezo, humilhao, classificao como subumano; desvalorizao geral, desperdcio e destruio das potncias de ser e das qualidades humanas. Sim! Somos a favor do progresso. Alimentamos as perigosas utopias da reciprocidade, da troca, da escuta, do respeito, do reconhecimento do aprendizado mtuo, da negociao entre sujeitos autnomos e da valorizao de todas as qualidades humanas. E consideramos, alm disso, que tal progresso, que no de resto garantido por lei histrica alguma, depende de equipamentos culturais de ordem tcnica, lingstica, conceitual, jurdica, poltica etc.: as boas vontades individuais no bastam. O sufrgio universal, por exemplo, melhor que o sufrgio censitrio; a liberdade de comrcio prefervel s alfndegas em cada ponte; livros impressos, computadores pessoais e telefones abrem, de fato, certas possibilidades de comunicao ou de aprendizado impossveis de atingir sem eles. Para continuar nessa linha de argumentao, o ciberespao abre hoje imensas perspectivas de um aprofundamento das prticas democrticas. Mas saberemos apreender essas novas possibilidades? Que no se identifique mais toda idia de um progresso social, moral ou intelectual da humanidade a perigosas utopias que levam diretamente ao "totalitarismo"! Ou a denncia das utopias mascara um puro e simples conservadorismo, ou sua crtica consegue desmontar os mecanismos destrutores da transcendncia e do poder. PODER E POTNCIA suspeita de totalitarismo contrape-se uma crtica simtrica, que v n~ dissoluo do poder um grave risco de enfraquecimento para os grupos humanos que se entregarem democracia em tempo real. Vivemos uma poca de instabilidade e de competio internacional exacerbada, tanto no plano

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econmico como no militar. Em tais condies, a transparncia para si do social a liberdade de assumir iniciativas e experimentar novos modos de regulao que se deixa s minorias e a distribuio molecular da deciso e da avaliao podem parecer fatores de fragilidade. Mas, na verdade, os ganhadores de hoje so aqueles mais bem-sucedidos em mobilizar e coordenar os saberes, as inteligncias, as imaginaes e as vontades Quanto mais circular a informao, mais rapidamente as decises so avaliadas mais desenvolvida a capacidade de iniciativa, inovao e reorganizao acelerada, e mais competitivos so as empresas, os exrcitos, as regies, os pases as zonas geopolticas 6. Ora, o poder, em geral, no possui afinidade alguma com os funcionamentos em tempo real, as reorganizaes permanentes e as avaliaes transparentes. Ele quer usualmente perenizar vantagens, preservar o adquirido manter situaes, tomar opacos os circuitos atitudes bem perigosas em um perodo de desterritorializao rpida e em grande escala. Pelo fato de ser um: educao para a inteligncia coletiva, por ser capaz de mobilizar, valorizar empregar ao mximo todas as qualidades humanas, a democracia em tempo real c o regime poltico mais apropriado para conferir a eficcia e a potncia caractersticas do sculo XXI. A potncia toma possvel, o poder bloqueia. A potncia libera, o poder submete A potncia acumula energia, o poder a dilapida. As tecnologias da informao c da coordenao se aperfeioaram o suficiente para que as vantagens conferidas : uma comunidade por uma estrutura de autoridade forte no compensem mais e desperdcio de recursos humanos e o bloqueio da inteligncia coletiva inerente: ao exerccio do poder. Para se tomar potente, um grupo humano deve doravante desinvestir as hierarquias, no grupo e fora dele. Etimologicamente, a democracia designa o "poder do povo". Ora, esse regime poltico o menos ruim, no porque confere o poder a uma maioria considerada em massa, mas medida que mobiliza um pensamento coletivo para o governe da cidade. No preferido pelo fato de estabelecer a dominao de uma maioria sobre uma minoria, mas por limitar o poder dos governantes e por institui recursos contra o arbtrio. Ser ela a constituio predileta por conferir poder ao representantes? No por isso, mas apenas quando substitui as regulamentaes particulares, os privilgios e os monoplios por mecanismos gerais de regulao Somos democratas porque esse regime limita o poder ao mnimo necessrio par. fazer respeitar o direito.

6 Ver especialmente Alvin TOFFLER, Lf5 TDM7UX pamiz, Paris, Fayard, 1991; e

Alvin e Heidi TOFFLER, Gueneet CD'1t'regume, Paris, Fayard, 1994. 81

Herdamos dos gregos uma tipologia poltica que permite responder questo quem detm o poder na cidade? Mas j no se trata de dar o poder ao povo, a sem representantes, nem a quem quer que seja. Hoje, o problema poltico j no tomar o poder, mas aumentar as potncias do povo ou de quaisquer grupos humanos. O poder faz perder. Passaramos, portanto, do ideal da democracia (de grego demos, povo, e kratein, comandar) ao da demodinmica (do grego dynamis fora, potncia). A demodinmica invoca uma poltica molecular. Ela surge de ciclo da escuta, da expresso, da avaliao, da organizao, das conexes transversais e da viso emergente. Suscita a regulao em tempo real, e aprendizado coletivo contnuo, a valorizao tima das qualidades humanas e a exaltao das singularidades. A demodinmica no se refere a um povo soberano reificado, fetichizado, plantado em um territrio, identificado pelo solo ou pele sangue, mas a um povo em potncia, perpetuamente em vias de se conhecer e de se fazer, em gestao, um povo do futuro.

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