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A PAZ QUE NASCEDE UMA
NOVA JUSTIÇA
2012-2013UM ANO DE IMPLANTAÇÃO DA JUSTIÇA RESTAURATIVA
COMO POLÍTICA DE PACIFICAÇÃO SOCIAL EM CAXIAS DO SUL
APA
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DEUM
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V AJ U
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ESTADO DO RIO GRANDE DO SUL
PODER JUDICIÁRIO
Impressão:
Coordenação: Reportagem: Projeto gráfico: Revisão ortográfica:Leoberto Brancher Caroline Pierosan Tati Rivoire Fátima De BastianiI I I
A PAZ QUE NASCE DE UMA NOVA JUSTIÇA
2012-2013
UM ANO DE IMPLANTAÇÃO DA JUSTIÇA RESTAURATIVACOMO POLÍTICA DE PACIFICAÇÃO SOCIAL EM CAXIAS DO SUL
Sumário
Lentes restaurativas: um novo foco sobre os confl itos e os crimesO que é a Justiça Restaurativa e por que ela é tão transformadora?Entenda as principais diferenças entre a JR e o processo penal tradicional
A paz que nasce de uma nova JustiçaModelo Restaurativo de Justiça inspira política pública pioneira em Caxias do Sul
Um lugar para buscar justiça na comunidade Núcleo de JR tem por objetivo difundir as práticas restaurativas na solução de confl itos com a participação das famílias, amigos e comunidades
Central Judicial: Laboratório e Centro de DifusãoCasos judicializados têm oportunidade de encontrar um novo desfecho com as práticas restaurativas
Justiça que se aprende na infância Conviver pacifi camente, vivenciar valores positivos e aprender a relacionar-se com o diferente é o caminho para uma vida de paz
Justiça como poder da comunidadePromover a Cultura da Paz em meio à comunidade da Zona Norte – região conhecida pelo contexto violento – é o desafi o da Central Comunitária
Voluntariado pulsa no coração da JR em Caxias do SulAjudar a criar um mundo de paz e um planeta mais seguro é apenas uma fração do orgulho que um voluntário sente ao doar seu tempo para uma causa em que acredita
Desmistifi cando os Círculos de Construção de PazUm processo que parece ser demorado mas que é, na verdade, mais econômico e rápido que o tradicional e na maioria dos casos promove resultados estáveis
Kay Pranis avalia processo de implantação de JR em Caxias do SulReferência mundial em Círculos de Construção de Paz mostra-se impressionada com a amplitude da utilização das práticas restaurativas na cidade
Fundação Caxias aproxima sociedade civil da JREntidade quer conscientizar empresários de que a promoção da Cultura de Paz é, também, responsabilidade do setor. Fundação pretende manter gestão fi nanceira do Núcleo de JR
UCS planeja pesquisa e ensino de Justiça RestaurativaEm 2014 devem ser desenvolvidos cursos de extensão e pesquisa científi ca, com o intuito de produzir publicações internacionais sobre a experiência pioneira da JR como Política Pública em Caxias do Sul
Município assume a JR como Política Pública de Pacifi cação SocialPrefeito e Secretário de Segurança reafi rmam a importância de uma Lei Municipal para que a Justiça Restaurativa se torne prática permanente na cidade e asseguram suporte ao projeto
Judiciário gaúcho institucionaliza e expande a JR como alternativa de solução de confl itosArtigo de Leoberto Brancher, Juiz de Direito
ANEXO – RELATÓRIO DE MONITORAMENTOA INTRODUÇÃO DA JUSTIÇA RESTAURATIVA EM CAXIAS DO SUL
Ana Caroline Montezano Gonsales Jardim
7
1111
27 27
3131
3939
4747
5353
6161
6767
7373
7777
8181
8585
8989
Cidades de Paz
As páginas a seguir contam a história da criação de uma política pública baseada
nos princípios e nas práticas da Justiça Restaurativa na cidade de Caxias do Sul,
Rio Grande do Sul.
A construção é uma confl uência de várias contribuições e várias histórias.
Recapitulando nossas origens, vamos contar um pouco sobre o início da Justiça
Restaurativa no Rio Grande do Sul e, por via refl exa, no Brasil. Entremeamos
relatos de casos com noções sobre esse novo modelo de Justiça, ao lado de
defi nições estratégicas do programa local. Enfi m, contamos sobre o passado e
o presente para anunciar nossos sonhos de futuro. Porque é disso que se trata:
um empreendimento dedicado a tornar um sonho em realidade. Por isso não
disfarçamos nossa intenção de contagiar. Ao contrário, essa publicação é um
convite à solidariedade. Para sonhar junto.
Apesar de tudo, nosso relato é pé no chão. E, assim é também, principalmente,
uma história de desafi os.
A aliança institucional que lidera a proposta por si só já representa um desafi o, ao
unir pela primeira vez Poder Judiciário, Prefeitura Municipal, Universidade e uma
Fundação privada em torno de um horizonte tão incomum quanto promissor: o de
promover a Justiça como Poder da Comunidade.
Vistas assim, as histórias que compõem a história objeto desse relato são fruto do
esforço de uma pequena multidão de pessoas que podem parecer anônimas, mas são
elas que verdadeiramente assinam e iluminam cada linha dessa trajetória.
Por fi m, como nos une o propósito universal de promover a paz, é nosso desejo
que nossa cidade não caminhe só, mas esteja unida a um conjunto cada vez maior
de Cidades de Paz e de Cidadãos pela Paz, formando um autêntico movimento
da cidadania democrática em que o direito à palavra e o poder de coesionamento
social se exerce de baixo para cima e de dentro para fora, com o objetivo de
RESTAURAR A JUSTIÇA E A PAZ no nosso País.
Alceu Barbosa VelhoPrefeito Municipal de Caxias do Sul
Leoberto BrancherJuiz Coordenador do CEJUSC
Isidoro ZorziReitor da UCS
Paulo PolettoPresidente da Fundação Caxias
7
Lentes restaurativas: um novo foco sobre os confl itos e os crimes
O que é a Justiça Restaurativa e por que ela é tão transformadora? Entenda as principais diferenças entre
a JR e o processo penal tradicional
8Caxias da Paz
A Justiça Restaurativa (JR) é uma nova forma de lidar com a questão
dos confl itos e dos crimes, centrada mais nas pessoas e nos relacionamentos
do que nas questões jurídicas. Antes que discutir questões legais, culpados
e punições, a JR promove intervenções focadas na reparação dos danos, no
atendimento das necessidades da vítima, na corresponsabilização do ofensor,
sua família e pessoas do seu relacionamento, tudo visando à recomposição do
tecido social rompido pela infração e o fortalecimento das comunidades.
O professor Howard Zehr, com sua obra “Trocando as Lentes – Um novo
foco sobre o crime e a justiça”, é considerado um dos principais mentores
da teoria restaurativa no mundo. Para ele, a grande diferença entre a Justiça
Restaurativa e a tradicional está na abordagem. A justiça tradicional trabalha
com três perguntas básicas: que lei foi infringida? Quem infringiu? Que
castigo merece? É punitiva e gira em torno de questões legais. A Justiça
Restaurativa se preocupa com questões como: Quem sofreu o dano?
O que essa pessoa precisa para que esse dano seja reparado? Quem tem a
responsabilidade por melhorar a situação? É reintegrativa e se preocupa com
as pessoas e com os relacionamentos.
As deliberações dos envolvidos num encontro estruturado e orientado por
um facilitador podem servir como alternativa ou complemento às soluções
do sistema de justiça formal. O diálogo a respeito do problema pode servir
de apoio aos participantes, auxiliar na solução, evitar a propagação de
confl itos, reduzir a reincidência e contribuir para o coesionamento da vida
comunitária.
A JR propõe que os ofensores devem entender as consequências de seu
comportamento. Além disso, devem assumir a responsabilidade de corrigir a
situação na medida do possível, tanto concreta como simbolicamente. Zehr
afi rma que a verdadeira responsabilidade consiste em olhar de frente para os
atos praticados, signifi ca estimular o ofensor a compreender o impacto de
seu comportamento, os danos que causou – e instá-lo a adotar medidas para
corrigir tudo o que for possível.
Moldadas sob a alta exigência do acertamento de relações feridas por fatos
graves, como crimes, as práticas da Justiça Restaurativa têm se mostrado
efi cientes na pacifi cação da mais ampla gama de confl itos: brigas em família,
maus comportamentos escolares, desentendimentos nos locais de trabalho,
confronto entre presos e até disputas por terras.
Para o Professor Zehr, o sistema
tradicional de Justiça penal
difi cilmente estimula o ofensor a
compreender as consequências
de seus atos ou desenvolver em-
patia em relação à vítima. Pelo
contrário, exige que o ofensor
defenda os próprios interesses.
De acordo com Zehr, no sistema
tradicional o réu é desestimulado
a reconhecer sua responsabilidade
e tem poucas oportunidades de
agir de modo responsável concre-
tamente. Zehr afi rma que o senso
de alienação social só aumenta
ao passar pelo processo penal e
pela experiência prisional.
9Justiça Restaurativa
Satisfação da vítima: fortalecer a posição das vítimas, em consideração às suas necessidades,
visando à superação da experiência traumática e buscando formas pelas quais o ofensor reconheça
o impacto de suas ações e, tanto quanto possível, repare os danos causados.
Redução da reincidência: proporcionar que o ofensor compreenda o efeito de seu comportamento,
o desvalor da sua conduta e se abstenha de repeti-los, oferecendo-lhe a oportunidade de ouvir a
vítima, que poderá manifestar seus sentimentos e apresentar seus pleitos por reparação.
Coesão comunitária: prevenir a escalada de um confl ito de menor potencial ofensivo para eventos
de maior gravidade, restaurar o senso de corresponsabilização e de pertencimento a uma “co-
munidade” na qual os ofensores reparam o dano feito diretamente ao indivíduo ou à vizinhança,
permitindo que haja reintegração e a volta à normalidade.
Redução dos gastos públicos: otimizar as verbas públicas despendidas com segurança, mediante a
simplifi cação e, quando apropriado, até mesmo a dispensa dos procedimentos formais em casos que
possam ser resolvidos no âmbito comunitário.
Círculos Restaurativos
Os encontros restaurativos são organizados em formato de círculo, e para ele
são convidadas as pessoas envolvidas ou afetadas, ou que possam ajudar na
solução do problema – infratores, vítimas, seus familiares e comunidades.
Habitualmente excluídos dos processos de Justiça, ou quando muito apenas
ouvidos como meio de prova judicial, no processo restaurativo eles são
chamados a expressar seus pontos de vista, sentimentos e necessidades e,
principalmente, propor soluções para corrigir as coisas.
Os principais objetivos da Justiça
Restaurativa incluem a RESPON-
SABILIZAÇÃO DO OFENSOR, com
apoio da sua família, amigos e
pessoas da sua comunidade, ob-
jetivando restaurar relaciona-
mentos e consertar as coisas.
A REPARAÇÃO DOS DANOS, direta
ou indiretamente, visa a atender
às NECESSIDADES DA VÍTIMA, e
dos demais atingidos pela vio-
lação. E um acordo ou plano de
comportamentos futuros costuma
ser elaborado a fi m de fortalecer
vínculos afetivos e laços sociais,
promovendo o COESIONAMENTO
DA COMUNIDADE.
Resultados Restaurativos
JUSTIÇA RETRIBUTIVA JUSTIÇA RESTAURATIVA
Culpa
Perseguição
Imposição
Castigo
Coerção
Responsabilidade
Encontro
Diálogo
Reparação do Dano
Coesão
10Caxias da Paz
Justiça Restaurativa é um processo
através do qual todas as partes
envolvidas em um ato que causou
ofensa reúnem-se para decidir
coletivamente como lidar com as
circunstâncias decorrentes desse ato
e suas implicações para o futuro.
Tony Marshall
JR em Caxias do Sul
A equipe do Núcleo de Justiça Restaurativa de Caxias do Sul acredita que
o congestionamento e a demora dos processos judiciais, tão criticados
pela sociedade, podem ser amenizados com o trabalho baseado na Justiça
Restaurativa. “Situações que levam a inúmeros boletins de ocorrência e
processos podem acabar com muito mais agilidade através dos Círculos de
Construção de Paz”, defende Katiane Boschetti da Silveira, coordenadora da
Central de Práticas Restaurativas da Infância e da Juventude. Para ilustrar, ela
cita que, em um único caso resolvido de forma restaurativa, a família atendida
já estivera envolvida em nada menos do que 15 processos judiciais, direta ou
indiretamente relacionados à situação de desorganização familiar que vivia.
A Justiça Restaurativa propõe olhar as consequências da infração e reparar o
dano, com a participação dos envolvidos, trazendo a vítima para um papel
central. “Ninguém é capaz de assumir responsabilidade por algo que não
percebe. Nada é mais veemente do que a voz de uma vítima dizendo, cara
a cara com seu ofensor, o quanto a infração lhe prejudicou”, afi rma Paulo
Moratelli, coordenador da Central Judicial de Pacifi cação Restaurativa.
Leoberto Brancher – Juiz da Vara da Infância e da Juventude, coordenador
do Centro Judiciário de Solução de Confl itos e Cidadania de Caxias do Sul
(CEJUSC) – considera que o sistema institucional de Justiça Tradicional não
é senão refl exo de um padrão cultural, historicamente pautado pela crença na
legitimidade do emprego da violência como instrumento compensatório das
injustiças e na efi cácia pedagógica das estratégias punitivas.
De acordo com o magistrado, vivemos um momento decisivo em Caxias
do Sul. Para ele, a promoção da Cultura da Paz como política pública é
uma construção histórica, um modelo novo, um avanço que se deve a uma
compreensão e um compromisso político diferenciado por parte do Município.
“Caxias está iniciando uma aplicação incomum de Justiça Restaurativa como
política pública municipal, dando base para um amplo movimento social
de promoção da paz. É uma aposta ousada e que merece inspirar iniciativas
semelhantes em outras cidades do País”, convida o Juiz.
11
A paz que nasce deuma nova Justiça
Modelo Restaurativo de Justiça inspira política pública pioneira em Caxias do Sul
12Caxias da Paz
A missão da Justiça é promover a
pacifi cação social. Seja no âmbito
judicial, na escola, na família ou
na comunidade, temos feito isso
usando certos mecanismos que
se repetem. Culpa, perseguição e
castigo são respostas automáticas,
fazem parte da nossa cultura. Mas
precisamos reconhecer que não
vamos promover a paz repetindo
estratégias que trazem hostilidade,
vingança e violência incorporadas
no seu DNA. Precisamos parar e
refl etir antes de continuar agindo
assim. A cada vez que fi zermos
isso, estaremos dando uma chance
verdadeira para a construção da paz.
Leoberto Brancher,Juiz de Direito
Faltava um corrimão
Um homem beberrão e violento, uma mulher sozinha, três fi lhos reféns da perturbação familiar.
Um novo registro policial, e agora uma medida baseada na Lei Maria da Penha afasta o marido do
lar. Um ano depois a mulher, em depressão profunda, acabou internada numa clínica psiquiátrica.
Em razão disso as crianças foram recolhidas a uma instituição de abrigo, e o caso foi remetido para um
procedimento restaurativo pelo Juizado da Infância. Durante sete meses foram realizados vários Círculos
Restaurativos envolvendo a mãe, pai, avós, tios e profi ssionais das redes sociais. Desde o princípio a
mulher deixou claro que não queria que o marido fosse afastado da família. Apenas queria que ele
não bebesse, fi zesse um tratamento e tomasse os remédios para evitar os comportamentos violentos.
Revelações como essa, ou que o alcoolismo e a violência se repetiam na família ao longo das gerações,
foram trazidas ao longo de diálogos e refl exões intensos, e antecederam os acordos. No percurso, os
avós assumiram as crianças temporariamente, tirando-as do abrigo. O casal se reconciliou, o homem
parou de beber, dedicou-se ao tratamento, reorganizaram as fi nanças da família e concluíram as reformas
do sobrado ainda em construção para receberem os fi lhos de volta. Construir um corrimão para proteger
as crianças na escadaria da casa era o último item do acordo, que foi cumprido à risca. Em audiência,
chorando, o homem desabafou ao Juiz: “se a gente tivesse a chance de conversar desse jeito desde
o começo, não precisaríamos passar tudo isso que a gente passou, esse sofrimento todo”. De fato, os
encontros restaurativos foram o corrimão que faltava para as pessoas subirem esse degrau da construção
da paz em família. (Facilitadores: Alceu Valim de Lima e Fátima De Bastiani)
Quase mil pessoas cumprem pena de privação de liberdade hoje em Caxias do
Sul. Um levantamento da Secretaria Municipal de Segurança Pública e Proteção
Social realizado em outubro de 2013 apontou que 472 apenados (entre homens e
mulheres) estão cumprindo pena no regime fechado e 495 no regime semiaberto.
De janeiro a agosto de 2013, 1.243 mulheres vítimas de violência doméstica
procuraram a ajuda da Coordenadoria da Mulher. Em média, 50 adolescentes
infratores cumprem medida socioeducativa no CASE. Mais de 120 crianças estão
acolhidas em instituições de abrigo.
Hoje, o Brasil é o quarto país com o maior número de presos do mundo, atrás de Estados Unidos,
China e Rússia. O Núcleo de Estudos da Violência da Universidade de São Paulo (NEV) divulgou,
em dezembro de 2012, um relatório sobre a situação dos direitos humanos no País na década de
2001-2010. Neste período a população carcerária brasileira cresceu 112%. Segundo o documento,
embora o crescimento da população carcerária tenha sido uma tendência mundial nas últimas déca-
das, o ritmo apresentado pelo Brasil foi “frenético e assustador”. O País registrou um aumento de
233 mil pessoas, no ano 2001, para 496 mil em 2010. As penitenciárias continuam superlotadas.
De acordo com o relatório, “o sistema prisional brasileiro continuou a ser, na década de 2000, um
setor público dramaticamente atravessado por severas violações de direitos humanos”.
13Paz Restaurativa
Nosso sistema de controle social tem custos vultosos. Recursos existem. Falta
saber gastar. Veja-se o exemplo do Sistema Socioeducativo, que atende a menores
infratores em privação da liberdade. Para manter presos uma média de 900
adolescentes, ao longo do ano 2012, o Governo do Estado do Rio Grande do Sul
gastou com a FASE (ex-FEBEM) – somando pagamentos de dívidas trabalhistas –
um total superior a 120 milhões de reais. Isso signifi ca uma média próxima a
R$ 133 mil por interno por ano, ou cerca de R$ 11 mil por adolescente a cada mês.
Isso, sem contar os custos com a Brigada Militar, Polícia Civil, Poder Judiciário,
Ministério Público, Defensoria Pública, investidos no processamento de cada caso.
O Caso do Corrimão ilustra que, por melhor intencionadas, intervenções
preponderantemente repressivas e institucionalizantes podem trazer repercussões
desastrosas. Os dados acima indicam centenas de pessoas segregadas, distantes
de suas famílias e amigos e, na sua maior parte, principalmente dissociados de si
próprios, alheios às consequências dos seus atos.
Na raiz de tudo, emoções perturbadas e confl itos mal resolvidos. Confl itos que
podem estar na infância maltratada, na juventude mal acompanhada, na falta ou
fragilidade dos pais, na falta da oportunidade de pertencer a uma família e a uma
comunidade, na falta de cuidados.
A constatação desta realidade motivou profi ssionais caxienses da Justiça, da
Segurança e das áreas afi ns a buscar outra forma de lidar com o crime e o confl ito,
seja como forma de prevenção, seja como forma de resposta, visto que as soluções
punitivas tradicionais, incluindo o aparato institucional que as cerca, mostram dar
sinais de esgotamento.
Aprendemos com Marshall
Rosenberg que “todo ato de
violência é a expressão trágica de
uma necessidade não atendida”.
A toda hora nos deparamos com
pedidos legítimos manifestados
sob a forma de exigências
violentas, necessidades legítimas
reclamadas de forma agressiva.
Manifestações que começam
como pedidos de ajuda – até
para que sejam contidos –, mas
que, não encontrando um entorno
continente, se convertem em atos
de violência. E como respondemos
com mais violência, o resultado é
segregação, isolamento, descone-
xão, medo e insegurança, tanto
para infratores quanto para víti-
mas, suas famílias e membros da
sociedade direta ou indiretamente
afetados por tais eventos.
Leoberto Brancher,Juiz de Direito
Tiro separa famíliasO que teria sido apenas uma brincadeira virou estampido, sangue e tragédia. Fascinado por um
revólver que lhe caiu nas mãos, o adolescente encostou o cano da arma no rosto do amigo e
desafi ou: “E agora...?” A arma disparou. A bala atravessou o rosto do colega e se alojou próximo à
mandíbula, de onde não pôde ser retirada. As lembranças trazem mais do que dores de cabeça para
a vítima: doem no coração dos jovens e das suas famílias. Embora vizinhos, ninguém se falou mais.
Judicialmente responsabilizado pela tentativa de homicídio culposo, o ofensor cumpriu medida em
liberdade. Incentivado por sua orientadora a refl etir sobre as consequências do seu ato, aceitou ouvir
o relato de quem teve que senti-las na carne. O caso foi então encaminhado para a Central Judicial
de Pacifi cação Restaurativa. Relutante, mas incentivado pela família, a vítima também se dispôs ao
encontro. Um Círculo de Construção de Paz foi realizado com a presença dos jovens e suas famílias.
14Caxias da Paz
Num ambiente seguro e protegido, a família do ofensor contou que se afastara porque tinha medo
de retaliação e sentia vergonha da tragédia causada por seu fi lho. A família da vítima disse que, em
meio à dor e à raiva, muitas vezes chegou a duvidar que o tiro tivesse sido acidental. O jovem baleado
pôde expressar o peso de suportar uma dor quase permanente: as fi sgadas da bala ainda metida em sua
cabeça. Essas revelações reabriram os canais, promoveram empatia, restauraram os laços de amizade
e a compreensão de que o evento fora acidental. Um perante o outro, ambos os jovens admitiram que
naquela época faziam coisas arriscadas e reconheceram que o acidente fez parte de um modo de vida
que haviam modifi cado desde então. Ao término de algumas horas de encontro os jovens e suas famílias
se abraçaram, aliviados. A bala nunca pôde ser removida. Mas a muralha de rancor e desconfi ança entre
as famílias não existe mais. (Facilitadores: Franciele Lenzi e Paulo Moratelli)
Fatos violentos como esse acontecem quase que diariamente em Caxias do Sul, mas
desfechos incomuns como o relatado acima também passaram a fazer parte da rotina
da cidade, a partir de novembro de 2012, quando teve início a implantação de uma
política pública fundamentada na Justiça Restaurativa.
Confl itos, disputas e até mesmo crimes que costumeiramente aportam na esfera
judicial têm sido solucionados de forma pacífi ca através de práticas baseadas em
estratégias de diálogo. Encontros que permitem a expressão de sentimentos e o
reconhecimento de necessidades têm dado base à restauração dos relacionamentos e
dos laços sociais rompidos por incidentes como este.
O trabalho faz parte de um movimento que vem se espalhando no mundo há
não mais de 40 anos e entrou na trajetória da Justiça gaúcha em 2005. Em 2013
as práticas restaurativas também foram incluídas na política judiciária nacional de
solução de confl itos, promovida desde 2010 pelo Conselho Nacional de Justiça
(CNJ) – a princípio com ênfase em métodos de conciliação e de mediação – através
da criação de Centros Judiciários de Solução de Confl itos e Cidadania (CEJUSC),
nas principais cidades brasileiras.
Em Caxias do Sul, esses avanços estão sendo alavancados pela união entre o Poder
Judiciário, a Prefeitura de Caxias do Sul, a Universidade de Caxias do Sul e a Fundação
Caxias, de forma que a pacifi cação social na cidade se tornou marcada pelo diferencial
da interinstitucionalidade e pela adoção, como base fi losófi ca e metodológica, dos
princípios e das práticas da Justiça Restaurativa.
Sob orientação técnica do Poder Judiciário, através do CEJUSC, e execução da
Prefeitura de Caxias do Sul, através da Secretaria Municipal de Segurança Pública e
Proteção Social, a iniciativa tornou-se ofi cial no dia 1º de novembro de 2012, em ato
político que sacramentou a parceria entre as instituições envolvidas. Acompanhe um
pouco de como começou essa história.
15Paz Restaurativa
2004-2013 Primeiros passos da JR no Brasil e sua chegada a Caxias
A temática da Justiça Restaurativa apareceu pela primeira vez em Caxias do Sul
em agosto de 2004, no Curso de Formação de Lideranças em Cultura de Paz,
promovido pela Biblioteca dos Direitos da Criança da UCS, em parceria com a
Associação Palas Athena de São Paulo. No curso, o Juiz paulista Egberto Penido
introduziu conceitos da Comunicação Não Violenta (CNV). Na mesma época,
em 13 de agosto de 2004, também estava sendo fundado o Núcleo de Justiça
Restaurativa da Escola da Magistratura em Porto Alegre.
A política pública de pacifi cação social que começa a ser construída em Caxias do Sul tem as marcas
da interinstitucionalidade e vale-se da teoria e das práticas da Justiça Restaurativa, objetivando
evitar o agravamento de relações confl itivas e uma resposta mais efi caz às transgressões da lei.
2005Fórum Social Mundial
Ainda em novembro de 2004, Dominic Barter, inglês radicado no Rio de Janeiro,
consultor e representante no Brasil da Rede CNV, palestrou no Teatro da UCS, em
Caxias do Sul. Ele veio ao Rio Grande do Sul preparar a participação de Marshall
Rosenberg, criador da CNV, no Fórum Social Mundial que seria sediado em Porto
Alegre em janeiro de 2005. Essa edição do Fórum Social Mundial representou um
marco de convergência entre a Cultura de Paz, a Comunicação Não Violenta, a
Justiça Restaurativa e a Justiça Brasileira.
Com a colaboração da AJURIS e da Palas Athena, várias ofi cinas foram realizadas
durante o Fórum sobre esses temas, com as presenças internacionais de Marshall
Rosenberg e Dominic Barter, da CNV, de Guillermo Kerber, do Conselho Mundial
de Igrejas, e de David Adams, consultor da UNESCO, criador e articulador da
Década da Cultura de Paz, que reuniu vários detentores do Prêmio Nobel da Paz,
numa campanha mundial entre 2000 e 2010.
Durante o Fórum também ocorreram as tratativas com a equipe do Ministério
da Justiça para dar início aos projetos-piloto. A metodologia da CNV seria então
16Caxias da Paz
A CNV é estruturada sobre quatro elementos: observar sem julgar, identifi car e expressar as necessidades
(do outro e minhas), nomear os sentimentos envolvidos (da outra pessoa e meus) e formular pedidos
claros e possíveis. A CNV enfatiza a importância de determinar ações com base em valores comuns e
aponta uma continuidade entre as esferas intrapessoal, interpessoal e social, além de providenciar formas
práticas de intervir. A aplicação da CNV pode dar-se em todas as relações e interações em que se pressupõe
que haverá diferenças e confl itos.
COMUNICAÇÃO NÃO VIOLENTA
2005Nasce a Justiça para o Século 21
A introdução ofi cial da Justiça Restaurativa no Brasil aconteceu a partir de
2005, através do projeto “Promovendo Práticas Restaurativas no Sistema
de Justiça Brasileiro”, iniciativa da Secretaria da Reforma do Judiciário do
Ministério da Justiça em colaboração com o Programa das Nações Unidas para
o Desenvolvimento – PNUD. Foram criados três projetos-piloto em Porto
Alegre (RS), Brasília (DF) e em São Caetano do Sul (SP). Em Porto Alegre
tomou forma o Projeto Justiça para o Século 21, um articulado de ações
interinstitucionais liderados pela Associação dos Juízes do Rio Grande
do Sul (AJURIS) com o objetivo de difundir a Justiça Restaurativa na
pacifi cação de confl itos e violências envolvendo crianças, adolescentes e seu
entorno familiar e comunitário.
As práticas restaurativas, até então baseadas na CNV e sob orientação de
Dominic Barter, foram aos poucos se incorporando à rotina do Juizado da
Infância e da Juventude da Capital, monitoradas por um programa de pesquisa
e avaliação da Faculdade de Serviço Social da PUCRS. Estudos autodidatas
evoluíram e deram lugar a um amplo processo de formações, a cargo da Escola
da Magistratura. Esses cursos atraíram público e foram levados a vários outros
Estados brasileiros. O programa tornou-se referência nacional na implantação
adotada como base das formações dos pilotos de Porto Alegre e São Caetano do Sul,
enraizando a introdução da Justiça Restaurativa no Brasil.
17Paz Restaurativa
da Justiça Restaurativa. Entre 2005 e 2011, 11.793 pessoas haviam
participado de atividades de sensibilização e formação promovidas pelo
Justiça 21. A experiência de Caxias do Sul foi originada a partir dessa fonte.
Junho de 2010 A Justiça Restaurativa sobe a SerraEm 2010 a Secretaria Municipal de Segurança Pública e Proteção Social de Caxias
do Sul resolveu adotar a Justiça Restaurativa como estratégia de prevenção da
violência no Município. Em 18 de junho daquele ano, realizou-se um Ceminário
na UCS, no qual foram apresentadas várias experiências com a JR em Porto Alegre,
e foi celebrado um protocolo de intenções entre a AJURIS, a Prefeitura de Caxias
do Sul e diversas instituições locais. O objetivo era unir esforços para começar a
aplicação da Justiça Restaurativa na cidade, a partir da sua afi liação ao Projeto Justiça
para o Século 21.
Sensibilização, formação de lideranças, formação de facilitadores, consultoria de
implantação, supervisão de práticas: o roteiro do Justiça 21 para implantação
da Justiça Restaurativa foi seguido em Caxias. Entre junho e julho de 2010, 70
líderes da rede socioassistencial foram apresentados aos conceitos básicos da Justiça
Restaurativa. Dos 70 participantes, 20 foram inscritos no curso de facilitadores,
segundo a metodologia da Comunicação Não Violenta (CNV), que se realizou
ainda em julho de 2010. E desde então as atividades de formação não pararam.
Agosto de 2010 Acadêmicos canadenses trazemlições de Justiça ancestralEm agosto de 2010, cerca de 400 pessoas participaram de outro grande evento
na UCS. O encontro marcou a presença de professores do Centro de Justiça
Restaurativa do Departamento de Criminologia da Simon Fraser University
(SFU), de Vancouver, Canadá, Brenda Morrison e Elisabeth Eliot, acompanhados
pelo professor brasileiro João Salm, também docente da SFU e articulador da
parceria. Mais do que conhecimentos de ponta no cenário acadêmico restaurativo
internacional, essas contribuições assinalaram um primeiro e decisivo contato de
Caxias do Sul com uma das principais vertentes metodológicas do movimento
restaurativo no mundo: os Círculos de Construção de Paz, derivados das tradições
indígenas daquele país.
18Caxias da Paz
Outubro – Novembro de 2010 Formações com Kay Pranis introduzem os Círculos de Construção de Paz no BrasilOs meses de outubro e novembro de 2010 assinalam o início de uma
nova etapa no movimento restaurativo brasileiro, com a introdução da
metodologia dos Círculos de Construção de Paz. Uma mudança que
também passou por Caxias. Em viagem articulada pelo Projeto Justiça 21
e patrocinada pela UNESCO, com recursos do Criança Esperança, Kay
Pranis esteve pela primeira vez no Brasil para uma série de capacitações
que ocorreram em São Luís do Maranhão, São Paulo, Rio de Janeiro, Porto
Alegre e Caxias do Sul.
Aqui, sob patrocínio da Prefeitura Municipal através do Conselho
Municipal dos Direitos da Criança (COMDICA), foram formados os
primeiros 25 facilitadores, na sua maioria servidores municipais. Kay
também palestrou para um grande público na Universidade de Caxias
do Sul sobre o tema Processos Circulares: Ferramenta para Intervenção e
Prevenção no Trabalho com Jovens.
Após a capacitação, os novos facilitadores passaram a aplicar a metodologia,
informalmente, nos seus espaços de atuação profi ssional. Desde então, o
grupo – que também recebera formação em CNV – optou pelos Círculos de
Construção de Paz como sua principal ferramenta nas práticas restaurativas,
passando a manter reuniões quinzenais sistemáticas – que perduraram até
o fi nal de 2012 – com o objetivo de dividir experiências e aprofundar seus
conhecimentos sobre os Círculos. Estava fundado o movimento restaurativo
em Caxias do Sul.
Outubro de 2012 Novos facilitadores formadosEm setembro de 2012, desta vez em turma aberta organizada pela Escola da
AJURIS, Kay Pranis formou um segundo grupo de facilitadores em Caxias.
Além de pessoas da região (Caxias e Bento Gonçalves) participaram alunos
também de outros Estados (Cascavel – PR, e Belém – PA). Nessa segunda
19Paz Restaurativa
visita a Caxias, Kay Pranis também formou um grupo de multiplicadores.
Desde então Caxias conta com 6 profi ssionais aptos a formarem novos
facilitadores, que também integram o corpo docente dos cursos da
Escola da Magistratura da AJURIS. No dia 18 de outubro de 2012, Kay
também palestrou em evento aberto, realizado no auditório do Ministério
Público de Caxias do Sul. Essas atividades serviram como preparação
para o III Simpósio Internacional de Justiça Restaurativa – Abordagens
Transdisciplinares, que ocorreu no dia 1o de novembro de 2012 em Caxias,
no bloco J da Universidade de Caxias do Sul.
Novembro de 2012 3o Simpósio Internacional de Justiça Restaurativa
O III Simpósio Internacional de Justiça Restaurativa foi realizado na
Universidade de Caxias do Sul no dia 1º de novembro de 2012, como parte
de um circuito nacional que incluiu Porto Alegre, São Paulo e Belém do
Pará. A participação de representantes do movimento restaurativo canadense
e norte-americano foi promovida em âmbito nacional em parceria entre a
AJURIS, Associação Palas Athena, Terre des Hommes e o Consulado do
Canadá, com apoio da Secretaria Estadual da Justiça do Rio Grande do Sul.
Aqui no Estado, também foram parceiros o Tribunal de Justiça, o Ministério
Público e as Prefeituras de Porto Alegre e de Caxias do Sul.
Autoridades em Justiça Restaurativa como Barry Stuart, Carolyn Boyes
Watson, Catherine Bargen, Sayra Pinto e João Salm, palestraram no Simpósio.
A proposta foi de aproximar os países para trocar experiências e aprofundar
a compreensão da Justiça Restaurativa e a difusão da Cultura da Paz junto a
profi ssionais das áreas de justiça e políticas sociais como Juízes, promotores,
Defensores Públicos, advogados, assistentes sociais, educadores, guardas
municipais, policiais civis e militares, psicólogos, professores e estudantes.
No evento foi assinado o convênio entre a Prefeitura e a Fundação Caxias, e
anunciada a criação de um Núcleo de Justiça Restaurativa e de três Centrais
de Pacifi cação Restaurativa na cidade – passo decisivo e concreto na
materialização da Justiça Restaurativa como política pública em Caxias.
O convênio para instalar as Centrais foi fi rmado entre Prefeitura e
Fundação Caxias, sob o testemunho de representantes do Consulado do
Quatrocentas pessoas participam
do III Simpósio Internacional de
Justiça Restaurativa realizado
na UCS, quando é anunciada
a criação de um Núcleo e três
Centrais de Pacifi cação. A Justiça
Restaurativa começa a ser es-
truturada como política pública
na cidade.
20Caxias da Paz
Dezembro de 2012 Seminário de Planejamento Estratégico define rumos da futura política
Representantes das instituições envolvidas na execução do projeto –
Judiciário, Prefeitura, UCS e Fundação Caxias – e das equipes que viriam
a integrar as Centrais de Pacifi cação Restaurativa participaram de um
seminário de planejamento estratégico no dia 16 de dezembro de 2012.
O encontro, realizado de forma participativa pelo método ZOPP, foi
facilitado pelo assessor da Secretaria de Governança Urbana da Prefeitura
de Porto Alegre, Carlos Simões Filho. Objetivos, linhas de ação e
resultados a serem alcançados fi caram defi nidos desde então.
Objetivo Geral (2016) Consolidação Conquistar perante a sociedade o reconhecimento da Justiça Restaurativa como uma metodologia efetiva de resolução de confl itos e promoção da paz.
Implementar a Justiça Restaurativa como política pública no Município de Caxias do Sul.
JR é uma política pública de pacifi cação social.
JR é uma articulação intersetorial.
Investimentos para a JR assegurados.
JR conecta instituições, serviços e comunidades.
Capacitação continuada e rede de facilitadores ampliada e fortalecida.
Difusão e mobilização promovida.
Objetivo Específi co (2013) Implementação
Eixo 1 – Política Pública
Eixo 2 – Intersetorialidade
Eixo 3 – Investimento
Eixo 4 – Integração
Eixo 5 – Facilitadores
Eixo 6 – Comunicação
Canadá, do Tribunal de Justiça do RS, da Universidade de Caxias do Sul e
das diversas Secretarias Municipais envolvidas. O investimento inicial da
Administração Municipal para a realização do projeto foi de R$ 267 mil.
O então Prefeito José Ivo Sartori afi rmou na ocasião que a Administração
Municipal acreditava no processo de conversa, diálogo e restauração –
respaldado pela presença de Alceu Barbosa Velho, novo Prefeito eleito, na
ocasião representando a Assembleia Legislativa do Estado.
21
Fevereiro de 2013 Grupo de Estudos e de Autossupervisão de Práticas
Desde 26 de fevereiro de 2013 e ao longo de todo o ano, o Núcleo de Justiça
Restaurativa de Caxias do Sul promoveu encontros quinzenais para estudos e
autossupervisão das práticas restaurativas. Participam profi ssionais, estudantes e
pessoas da comunidade.
Com participação média de 25 pessoas, o grupo tem por objetivo difundir
o conhecimento teórico e prático sobre Justiça Restaurativa e Círculos de
Construção de Paz, promover a integração e estimular o voluntariado das pessoas
interessadas no tema.
O roteiro dos encontros seguiu a leitura do Livro Reuniões de Justiça Restaurativa,
de Ted Wachtel, Terry O`Connell e Ben Wachtel, que apresenta os conceitos
fundamentais da Justiça Restaurativa mesclados a uma narrativa da introdução
nos Estados Unidos do modelo das conferências restaurativas australianas, por
iniciativa do Instituto Internacional de Práticas Restaurativas.
Maio de 2013Protocolo estabelece atendimento restaurativo para atos infracionais de menor potencial ofensivo
Secretaria Municipal de Segurança Pública e Proteção Social, Juizado da
Infância e Juventude, Promotoria da Infância e Juventude, Defensoria da
Infância e Juventude, Brigada Militar, Polícia Civil e Guarda Municipal
reunidas na Direção do Fórum de Caxias do Sul no dia 23 de maio de
2013 celebram protocolo operacional prevendo esforços integrados para
promover atendimento restaurativo a crianças e adolescentes envolvidos
em conflitos e atos infracionais de menor potencial ofensivo, através
da Central de Práticas Restaurativas da Infância e da Juventude. O pacto
permite colocar em prática as disposições da Lei n. 12.594/2012 – SINASE.
Paz Restaurativa
22Caxias da Paz
Julho de 2013 Jornada Municipal de Pacificação Restaurativa consagra repercussão nacional do projeto
O dia 12 de julho de 2013 já teria sido um momento marcante na trajetória
da Justiça Restaurativa em Caxias do Sul pela formatura da terceira turma
de facilitadores formados pela Professora Kay Pranis na cidade, com o
destaque de tratar-se da primeira formação em Justiça Restaurativa oferecida
ofi cialmente pelo Tribunal de Justiça gaúcho – uma iniciativa que benefi ciou
também as Comarcas de Porto Alegre e de Pelotas e representou um marco
na institucionalização da Justiça Restaurativa no âmbito do Poder Judiciário.
Representativa desse momento, a 1ª Jornada Municipal de Pacifi cação
Restaurativa reuniu na cidade importantes autoridades e parceiros por
ocasião da assinatura do Convênio entre a Prefeitura Municipal e o Tribunal
de Justiça, ofi cializando a parceria com o Poder Judiciário para implantação
do Núcleo e Centrais de Pacifi cação.
Além do representante da Secretaria Nacional de Direitos Humanos,
Cláudio Vieira da Silva, e de uma delegação da ONG Terre des Hommes,
que promove Justiça Restaurativa nas regiões Norte e Nordeste do Brasil,
liderada por Anselmo de Lima, o encontro foi prestigiado pelo Presidente do
Tribunal de Justiça, Desembargador Marcelo Bandeira Pereira, pelo 1º Vice-
-Presidente do Tribunal, Desembargador Guinther Spode, pelo Corregedor-
-Geral da Justiça do Estado, Desembargador Orlando Heemann Júnior,
e pelo Corregedor Nacional de Justiça em exercício, o Conselheiro do
Conselho Nacional de Justiça e Desembargador Federal Guilherme Calmon
Nogueira da Gama.
Na ocasião, o Desembargador Guilherme Calmon parabenizou todos os
envolvidos pela coragem de investir na construção de uma justiça autêntica
para o século XXI. “É preciso alterar o olhar no âmbito das lesões e
A nova lei estabelece que práticas restaurativas, o atendimento às
necessidades das vítimas e a autocomposição de conflitos devem ser
usados preferencialmente, de forma a dispensar a intervenção judicial e a
imposição de medidas aos adolescentes infratores.
Revista da Paz23
dos confl itos. É preciso criar a ideia de corrigir os erros para que haja a
reconstrução da sociedade”, ressaltou. O Presidente do Tribunal de Justiça,
Marcelo Bandeira Pereira, destacou a sensibilidade do Prefeito Alceu
para fazer com que o convênio fosse fi rmado. “Esta iniciativa é louvável
e não podíamos deixar de nos fazer presentes”. Conforme o Prefeito, o
projeto foi encarado com muita determinação e seriedade. Alceu destacou
a preocupação da Administração Municipal em cuidar das pessoas.
“Nossa cidade é pujante economicamente, mas é preciso também haver
solidariedade. E esta iniciativa tem tudo para dar certo, pois promove a paz
acima de tudo” afi rmou.
Na solenidade foi apresentada à Comunidade caxiense a equipe de 19
pessoas que já vinham atuando diretamente junto ao Núcleo e às Centrais
de Pacifi cação, e também foram diplomados os 25 novos facilitadores
formados pela Professora Kay Pranis.
Núcleo de Justiça Restaurativa e Central Judicial de Pacifi cação Restaurativa
Central de Pacifi cação Restaurativa da Rede da Infância e da Juventude
Central Comunitária de Pacifi cação Restaurativa – Zona Norte
5 de novembro de 2012
5 de junho de 2013
19 de julho de 2013
Cronograma de início das atividades
Agosto de 2013 Conselho Gestor: pacificar a cidade é compromisso de todos
Concluída a instalação do Núcleo e das Centrais, em agosto de 2013 também
foi ofi cializada a instalação de um Conselho Gestor da Política de Pacifi cação
Restaurativa, que deverá servir como espaço de articulação e compartilhamento
de informações, sendo integrado por representantes dos diversos segmentos
institucionais envolvidos no programa de pacifi cação restaurativa. O Conselho
Gestor é integrado pela Secretaria Municipal de Segurança Pública e Proteção
Social, pelo Centro Judiciário de Resolução de Confl itos e Cidadania, pela
Fundação Caxias do Sul e pela Universidade de Caxias do Sul. Também
possuem assento no órgão, segundo o projeto original, a Fundação de
Assistência Social do Município, o Ministério Público e a Defensoria Pública.
Na elaboração do seu regimento interno, o Conselho Gestor já cogita a
Paz Restaurativa
24Caxias da Paz
Julho – Outubro de 2013 Curso de Pacificação Social reúne 350 servidores e lideranças comunitárias
Ao longo do segundo semestre de 2013, a Secretaria Municipal de Segurança
Pública e Proteção Social e a Guarda Municipal promoveram o Curso de Gestão
de Processos de Pacifi cação Social, parte do projeto Gestão Local da Violência e
Criminalidade, por meio de um convênio entre o Governo Federal e o Município.
Os alunos, integrantes de políticas públicas que atuam em interface com a
segurança e em organizações da sociedade civil, foram divididos em cinco turmas
considerando a proximidade geográfi ca entre as regiões administrativas, a fi m de
promover a aproximação das instituições.
Trezentas e cinquenta pessoas participaram da formação, que teve uma carga horária
total de 140 horas – das quais foram dedicadas 10 horas para uma introdução
aos conceitos da Justiça Restaurativa, ministradas pelo Prof. Afonso Armando
Konzen, coordenador do Núcleo de Justiça Restaurativa da Escola da AJURIS.
Durante outras 20 horas do curso, os alunos conheceram a metodologia das Práticas
Circulares para Construção da Paz, com as formadoras Fátima De Bastiani e Lenice
Pons Pereira, que contaram com o apoio de voluntários e integrantes da equipe do
Núcleo de Justiça Restaurativa de Caxias do Sul. O curso teve ainda 10 horas-aula
dedicadas à mediação de confl itos, ministradas por Eliana Giusto e Ronaldo Karnal.
ampliação de seus componentes para incluir outras instituições como Secretaria
Municipal de Educação, Secretaria Municipal de Saúde, 4ª Coordenadoria
Regional de Educação, Brigada Militar e Polícia Civil.
O Conselho Gestor decidiu também pela criação de uma Coordenação
Executiva, integrada pelas quatro instituições que ancoram o projeto –
Secretaria Municipal de Segurança Pública e Proteção Social, CEJUSC/Poder
Judiciário, Universidade de Caxias do Sul/Faculdade de Direito e Fundação
Caxias do Sul, responsável pela implementação das decisões do Conselho e
para concentrar as atividades num nível mais operacional. Além de gerenciar
o processo de implantação e as atividades do Núcleo e das três Centrais de
Pacifi cação, o Conselho Gestor vem se dedicando a elaborar o projeto de Lei
Municipal para instituir e regulamentar a aplicação da Justiça Restaurativa
como política pública permanente em Caxias do Sul.
25Paz Restaurativa
Novembro de 2013 Primeiro ano do projeto foi concluído com formação inspirada no modelo das conferências australianas
O encerramento do primeiro ano de atividades do projeto foi marcado pela
formação de três novas turmas de facilitadores restaurativos, a cargo dos
Professores Jean Schmitz e Keila Carvalho. Belga radicado no Peru, Jean é o
representante para a América Latina do Instituto Internacional de Práticas
Restaurativas, do norte-americano Ted Wachtel – um dos mais proeminentes
difusores da Justiça Restaurativa naquele País, que adota metodologias
adaptadas a partir do modelo australiano de conferências de Justiça
Restaurativa – desenvolvida pelo policial Terry O’Connel e conhecida como
“Modelo Wagga Wagga”.
A formação intensiva de 40 horas-aula objetivou ampliar as opções
metodológicas das práticas restaurativas aplicadas em Caxias do Sul. Um grupo de 30
dos facilitadores já atuantes junto às Centrais foi habilitado para a aplicação
de abordagens rápidas e objetivas de Justiça Restaurativa, principalmente em
confl itos de menor complexidade.
Uma versão compacta da formação com 20 horas-aula foi proporcionada para
outros 60 alunos, divididos em duas turmas, na sua maioria guardas municipais
e policiais militares. O objetivo da formação foi integrar as forças policiais para
que possam imprimir uma condução restaurativa desde o início do atendimento
das ocorrências, ou mesmo facilitar o encaminhamento de soluções restaurativas
para confl itos sem expressão criminal ou de menor potencial ofensivo.
26Caxias da Paz
27
Um lugar para buscar justiçana comunidade
Núcleo de JR tem por objetivo difundir as práticas restaurativas na solução de
confl itos com a participação das famílias, amigos e comunidades
28Caxias da Paz
O Núcleo de Justiça Restaurativa de Caxias do Sul é resultado de
uma articulação interinstitucional entre o Poder Executivo Municipal
(representado pela Secretaria Municipal de Segurança Pública e Proteção
Social), o Poder Judiciário (representado pelo Centro Judiciário de Solução
de Confl itos e Cidadania – CEJUSC), a Academia (representada pela
Universidade de Caxias do Sul, através da Faculdade de Direito) e da
sociedade civil (representada pela Fundação Caxias).
O objetivo do Núcleo é desenvolver uma política pública de pacifi cação
social através de um conjunto de ações desencadeadas pelos órgãos públicos
na prevenção e no controle da violência, notadamente os que atuam nas
áreas da Justiça, Segurança, Assistência, Educação e Saúde, em colaboração
com organizações da sociedade civil.
Segundo justifi cado no projeto que lhe deu origem, a intenção é “oferecer
reações sociais curativas, sistemáticas e continuadas para enfrentar situações
disruptivas mediante o reatamento dos laços sociais rompidos, promover o
coesionamento do tecido social e (re)construção do senso de pertencimento
e de comunidade, como forma de interrupção das espirais confl itivas,
objetivando prevenir e reverter as cadeias de propagação da violência”.
Para isso, as ações do Núcleo são fundamentadas nos princípios e nas
práticas da Justiça Restaurativa, visando a promover a cultura de paz.
CEJUSCPrefeitura de Caxias do Sul
FundaçãoCaxias
Universidade de Caxias do Sul
Poder JudiciárioPoder Executivo
Sociedade civilAcademia
29Núcleo de Justiça Restaurativa
Além de promover a integração interinstitucional, o Núcleo de Justiça
Restaurativa de Caxias do Sul responde pela gestão administrativa,
formações, avaliações, difusão e supervisão técnica das práticas restaurativas.
O Núcleo é composto pela Central Judicial de Práticas Restaurativas
(Fórum), pela Central Comunitária de Práticas Restaurativas (Centro de
Referência de Assistência Social, CRAS Norte) e pela Central de Práticas
Restaurativas da Infância e da Juventude (Universidade de Caxias do Sul).
Um diferencial com relação aos projetos-piloto que introduziram a Justiça
Restaurativa no Brasil a partir de 2005 é que a iniciativa não se limita a testar a
aplicação das práticas restaurativas a casos isolados, mas envolve a implantação de
uma estrutura sustentada por investimentos públicos com o fi m de consolidar, de
maneira sistêmica, um conjunto de ações e serviços que objetivam difundir a cultura
de paz e incorporar as práticas restaurativas nos mais diversos âmbitos das políticas
públicas e espaços de convivência social e comunitária.
Tem-se observado que a maioria dos participantes dos processos de JR fi cam
satisfeitos com a experiência e com os resultados. As vítimas expressam que os
benefícios incluem: sentir-se escutado e reconhecido, receber respostas para dúvidas
pessoais, ter a experiência de uma sensação de segurança aumentada e, em alguns
casos, até receber restituição fi nanceira. Além disso, percebe-se que participar da
elaboração dos itens do plano de compromissos para o ofensor cumprir é muito
importante para algumas vítimas.
Central JUDICIALde Práticas
Restaurativas
Central COMUNITÁRIA
de Práticas Restaurativas
Central de Práticas Restaurativas da
INFÂNCIAe da JUVENTUDE
30Caxias da Paz
Cada Central tem um coordenador e uma equipe de facilitadores, alguns servidores
com dedicação exclusiva e voluntários que dedicam alguns turnos semanais para
a realização de Círculos. Os profi ssionais e voluntários que atuam nos Núcleos já
passaram por capacitação nos conceitos de Justiça Restaurativa e foram preparados
para serem facilitadores de Círculos de Construção de Paz.
A função do Núcleo e das três Centrais de Pacifi cação (que atualmente
envolvem um total de 13 profi ssionais, na maioria servidores designados
ou contratados pelo Município, junto a diversos outros que atuam como
voluntários) não é absorver a totalidade dos confl itos, mas promover a
difusão e o compartilhamento dessas competências sociais estratégicas para
que a cidade possa aprender a agir preventivamente, de forma a desarticular
as espirais confl itivas, estabilizar relacionamentos potencialmente
disruptivos e harmonizar ambientes de convivência social.
Espaços de convergência e referenciamento das contribuições institucionais, recursos humanos, materiais, acadêmicos e
demais esforços investidos no Projeto
Visa articular, mobilizar, capacitar, gerenciar e avaliaro processo de implantação e implementação
Braço executivo da Política Municipalde Pacifi cação Restaurativa
Composto de três Centrais de Pacifi caçãoe uma Assessoria Técnica
Revista da Paz3131
Casos judicializados têm oportunidade de encontrar um novo desfecho com as práticas
restaurativas
Central Judicial: Laboratórioe Centro de Difusão
32Caxias da Paz
A Central Judicial de Pacifi cação Restaurativa deu início às atividades
em 3 de novembro de 2012. Até o início de outubro de 2013, os Círculos de
Construção de Paz haviam sido aplicados em 164 casos, com a participação de
1.104 pessoas.
Essa Central é coordenada por Paulo Henrique Moratelli, psicólogo e servidor
da Fundação de Assistência Social (FAS). Moratelli atua também como
Facilitador, assim como a advogada e educadora social da FAS, Franciele Lenzi
Ferreira. Vanessa Campos colabora como agente administrativa.
Os Círculos promovidos pela Central buscam resolver os casos que antes
corriam apenas pelo processo judicial tradicional. A partir da realização do
Círculo de Construção de Paz é criado um Termo de Acordo, que precisa ser
cumprido pelas partes. Ao receber o documento, o Juiz do processo analisa
os termos e homologa ou não o acordo. “Tomamos muito cuidado para que
os acordos feitos nos Círculos estejam em conformidade com a Lei, sejam
exequíveis e equilibrados entre as partes”, explica Moratelli. Depois disso são
realizados pós-círculos para monitoramento dos acordos que foram fi rmados.
A cada pós-círculo o termo de acordo pode ou não ser modifi cado, de acordo
com a necessidade de cada caso.
Um exemplo de aplicação típica de Justiça Restaurativa realizada pela Central
Judicial de Pacifi cação Restaurativa pode ser compreendida no caso a seguir:
Atos infracionais, pequenos delitos,
disputas de vizinhança, confl itos
intrafamiliares e violação de
direitos de crianças são exemplos
do que tem sido resolvido através
de práticas restaurativas.
Juizado da Infância e da Juventude (Rotina) Infrações penais (Atos Infracionais) Círculos Restaurativos com vítimas, infratores e suas comunidades em casos de Atos Infracionais Círculos Familiares, sem vítima, foco na infração = pactuação dos PIAs = maior compreensão,
responsabilização, comportamento e coesionamento
Confl itos familiares (Jurisdição protetiva) Círculos Familiares focos situação confl itiva ou de risco motivadora da intervenção jurídico-protetiva
Juizado Especial Criminal, Vara da Violência Doméstica, Juizado Especial Cível, Varas Cíveis (Experimental)
Infrações Penais pequeno potencial ofensivo, confl itos familiares e/ou de proximidade
“Laboratório de Práticas & Centro de Formação em Serviço” Infrações Penais pequeno potencial ofensivo, confl itos familiares e/ou de proximidade
33Central da Paz Judicial
Ameaçados por dois rapazes armados de revólver, dois empregados de um restaurante não tiveram opção senão entregar o malote no qual transportavam 15 mil reais para serem depositados no banco. As investigações apontaram quatro infratores, três deles menores (dois já tinham trabalhado no restaurante, um deles ainda estava empregado no local). A vítima e todas as testemunhas haviam sido ouvidas e o processo estava pronto para julgamento. Pela gravidade, o fato justifi caria o Juizado da Infância e Juventude internar os três adolescentes no CASE. A vítima, porém, insistia na devolução do dinheiro. Tanto os jovens como suas famílias, bastante envergonhadas, se propunham a restituir o valor.
O processo foi suspenso e um Círculo com a presença da vítima resultou em acordo. Os jovens cumpririam as medidas de liberdade assistida e, a título de reparação dos danos, cada um devolveria R$ 3.750,00 à vítima. Foi combinado que os pagamentos seriam feitos com o próprio trabalho dos jovens. Por isso, durante meses, eles tiveram de comparecer pessoalmente para pagar suas prestações no mesmo restaurante que haviam assaltado. Os acordos foram cumpridos, a sentença nunca foi prolatada e foram poupadas três vagas no CASE. Os três jovens se reorganizaram e, até então, não se envolveram mais em delitos. Todos experimentaram um processo de responsabilização e amadurecimento cujos resultados provavelmente seriam muito diferentes caso tivessem fi cado um ou dois anos presos. Num contato recente com o facilitador, a vítima avaliou positivamente o resultado. Inclusive, lamentou não ter conseguido reaver a parte do dinheiro por parte do outro jovem envolvido que, por ser maior de idade, não teve seu caso encaminhado à Justiça Restaurativa. (Facilitadores: Alceu Valim de Lima e Fátima De Bastiani)
Justiça Restaurativa se consolida no Judiciário
O coordenador da Central explica que durante este ano de aplicação de
Círculos de Construção de Paz em processos judicializados a Central
ganhou muito espaço dentro do Judiciário. “Os Juízes começaram a
ver resultados positivos a partir dos Círculos e a encaminhar casos.
Foi também uma fase de consolidação da proposta entre a rede
socioassistencial”, comemora Moratelli.
A credibilidade do trabalho da Justiça Restaurativa cresce entre Juízes, Promotores, rede socioassistencial e comunidade
34Caxias da Paz
Integração com o Judiciário facilita trabalhoO contato direto com autoridades agiliza os procedimentos e dá segurança para casos de maior potencial ofensivo
O peso da culpaUm menino de 12 anos e seu irmão andavam de bicicleta por uma das ruas do bairro onde
moram com a família. Na mesma ocasião, um senhor idoso caminhava pela mesma via.
Ao colidirem as bicicletas, os irmãos perderam o controle dos veículos e um deles acabou
atropelando o idoso, com saúde bastante frágil, que veio a falecer no hospital algum
tempo depois. O garoto foi processado por homicídio culposo. O sentimento de culpa o
atormentava. Antes sempre um bom aluno, acabou reprovado. Vivia sobressaltado, com
medo da polícia. A mãe deixou de fazer compras no mercado do bairro, onde a filha da
vítima trabalhava. As famílias, que eram vizinhas há muitos anos, não se falavam mais.
Um Círculo com as duas famílias foi realizado pela Central Judicial. A filha do idoso contou
que enquanto o pai estava no hospital os médicos descobriram um fungo em seu pulmão.
Se o idoso não tivesse sido hospitalizado (por causa do acidente) provavelmente teria
transmitido a doença para outras pessoas. Ela também declarou no Círculo que perdoava
o menino pela morte do pai, e que, do seu ponto de vista, não existiam culpados nesta
situação. Ela pediu que o menino voltasse a frequentar a sua casa. Ao final do encontro,
a família do menino foi embora de carona com a filha do senhor. O processo foi arquivado
sem nenhuma sanção para o menino, que retomou seu bom desempenho escolar. Aliviadas,
as famílias voltaram a se relacionar. (Facilitadoras: Franciele Lenzi e Katiane B. da Silveira)
A partir das experiências concretas, um padrão de atendimento está sendo
desenvolvido. “Neste ano muito trabalho foi investido na elaboração e
construção de material próprio, e isso foi realizado à medida que os casos
eram tratados. A partir de agora, como isso já está superado, teremos mais
tranquilidade nos procedimentos”, afi rma o coordenador.
De acordo com Moratelli, um dos grandes desafi os é conseguir maior apoio
da rede socioassistencial. “Estamos no momento de conquista do coração
das pessoas envolvidas. Estamos mostrando que vale a pena sentar por
algumas horas para resolver cada caso desses, porque isso traz resolutividade
a situações complexas, que se arrastavam há anos”, explica.
35Central da Paz Judicial
A pedagoga Katiane Boschetti da Silveira afi rma que, se o caso não tivesse
sido encaminhado para um procedimento restaurativo, os detalhes da
história nunca teriam sido descobertos. “O fato de ele se sentir perdoado
e não culpado possibilitou que retomasse sua vida”, acredita Katiane, que
foi a facilitadora deste caso, encaminhado à Central Judicial de Pacifi cação
Restaurativa.
A Central Judicial de Pacifi cação Restaurativa funciona dentro do Fórum, o
que proporciona proximidade entre os facilitadores e o sistema judiciário.
O psicólogo e coordenador Paulo Moratelli explica que o fato de a Central
estar situada no prédio do Judiciário também favorece os atendimentos, já que
o ambiente oferece segurança e traz respeitabilidade para o processo. “É muito
mais fácil você convidar, chamar ou intimar as pessoas estando aqui dentro.
As pessoas começam a perceber que é uma coisa séria. Fica muito claro que, se
os acordos previstos no Círculo não se cumprirem, isso trará consequências”,
destaca o psicólogo.
De acordo com o Juiz Leoberto Brancher, além do pioneirismo em
instituir uma política pública restaurativa no âmbito municipal, no âmbito
judicial a introdução da JR está sendo conduzida de forma a constituir um
modelo organizacional apto a ser replicado noutras Comarcas. Isso porque
as práticas restaurativas estão sendo integradas aos serviços do Centro
Judiciário de Solução de Confl itos e Cidadania (CEJUSC) – órgão que está
sendo criado nas principais cidades brasileiras, a partir da Resolução n. 125/2009
do Conselho Nacional de Justiça (CNJ).
A arquitetura institucional que está sendo modelada em Caxias facilitará a
difusão da Justiça Restaurativa também em outras Comarcas, pois a experiência
caxiense parte da defi nição de um espaço institucional onde a JR pode ser
instalada no Poder Judiciário. Essa contribuição pode ser favorecida também
por oferecer alguns padrões de procedimentos, já testados, sistematizados e
prontos para serem multiplicados.
A inclusão das práticas restaurativas no menu de atendimento do CEJUSC,
aliás, é um modelo organizacional que vem sendo referendado pelo Tribunal
do Rio Grande do Sul, e sua difusão já começou, como é o caso de Pelotas,
onde a JR foi introduzida na Comarca via CEJUSC, e em Porto Alegre, onde
o Tribunal estuda um plano para que a Central de Práticas Restaurativas do
Juizado da Infância e da Juventude seja absorvida pelo CEJUSC do Foro da
Capital.
36Caxias da Paz
Metas da Central Judicial de Pacificação RestaurativaMoratelli afi rma que o desafi o dessa Central é conquistar mais espaço dentro
do Sistema Tradicional de Justiça. O apoio da comunidade também é fator
importante, já que os Círculos Restaurativos podem ser muito úteis para
resolver situações confl ituosas de uma forma mais criativa, com a participação
de todos os envolvidos. Além disso, o processo contribui para eliminar
despesas públicas. “Tratamos o caso de uma família em que nove irmãos
estavam institucionalmente acolhidos. Cada criança residente naquela Casa de
Acolhimento custava em média R$ 5 mil por mês para o Município. Por meio
dos Círculos, pudemos restituir essas crianças ao cuidado dos pais. Eliminamos
um gasto de aproximadamente R$ 45 mil reais mensais para a Administração
Pública, além de – e isso é o mais importante – proporcionar que elas voltassem
para sua família de origem”, explica o psicólogo.
Moratelli destaca também as vantagens do método quando se trata de casos
envolvendo adolescentes em confl ito com a lei, como no relato a seguir:
Círculo de Construção de Paz aplaca ameaças de morte entre adolescentes Um dos adolescentes que cumprem medida socioeducativa no CASE estava sendo ameaçado de
morte por outros três internos. Para evitar uma situação grave de confl ito que pudesse terminar
em morte, a transferência do menino estava sendo providenciada. Depois de conversar
com todos, o facilitador da Central Judicial de Pacificação Restaurativa concluiu que
cada um dos rivais do rapaz tinha um motivo diferente para querer a sua morte, mas
todos estavam dispostos a conversar para resolver a questão. Um Círculo de Construção
de Paz foi promovido com os quatro adolescentes e dois apoiadores. Os conflitos foram
resolvidos e todos permaneceram cumprindo sua medida na mesma unidade sem que
ocorresse alguma agressão entre eles. (Facilitador: Paulo Moratelli)
Para Moratelli, um jovem que consiga, depois de um encontro como
esse, ressignificar seus comportamentos, se responsabilizar por seus
37Central da Paz Judicial
atos, assumir o controle sobre si e a partir disso construir uma história
diferente, representa um ganho social imensurável. “O que isso representa
para a sociedade? É algo que não tem preço”, afirma o psicólogo. Ele
conclui que cada caso tratado pelo Círculo também representa um
benefício para toda a comunidade, já que uma situação particular bem
resolvida traz sensação de segurança para outras pessoas. “O que está se
construindo em Caxias é muito concreto, e a cidade carece muito de uma
cultura de paz”, alerta o psicólogo.
Crianças também ganham voz nos Círculos de Justiça Restaurativa Uma mãe drogadita, um pai violento e cinco crianças de uma mesma família afastadas
do lar e enviadas para uma Casa de Acolhimento Institucional. Um deles ainda bebê, e os
demais com 3, 7, 10 e 12 anos. Todas as provas já haviam sido produzidas e o processo
de perda do poder familiar estava pronto para o julgamento. Entretanto, as promessas
de regeneração dos pais, apoiados pela avó e uma tia, para reaverem os filhos, eram
convincentes. Um Círculo de Construção de Paz foi realizado com a família, e o resultado
parecia muito positivo. Tudo se encaminhava para a volta das crianças para casa, mas um
Círculo realizado apenas com as crianças, do qual apenas não participou o bebê, mudou
novamente o rumo do processo. Os pequenos revelaram em detalhes uma rotina de
opressão, agressões, maus-tratos, violência e negligência. Surpreendentemente, pediram
para não voltarem para casa. A Justiça ouviu, e as crianças foram afastadas dos pais
agressores. (Facilitadores: Miriam Baumgarten Rauber e Paulo Moratelli)
“Apelação Civil. Destituição do poder familiar. Depoimentos testemunhais não presenciados
pelos genitores. Ausência de prejuizo à defesa. Juntada dos relatórios resultantes dos Círculos
restaurativos. Ausência de ilegalidade. Instrumentos idôneos e aptos a colaborar com a formação
do convencimento do magistrado. Ativismo judicial. Situação fl agrante vulnerabilidade. Mãe usuária
de drogas. Genitor que castigava imoderadamente os fi lhos. Ausência de alteração no quadro
vivenciado. Art. 1.638, I, II e III, do Código Civil. Art. 22 do ECA – A ausência de ilegalidade na
juntada aos autos dos Relatórios provenientes dos “Círculos Restaurativos” realizados, porquanto
são documentos idôneos produzidos com o fi to único de dar ao julgador mais subsídios, com
lastro científi co, para a formação de sua convicção quanto ao destino dos irmãos. Ativismo judicial
pertinente e inovador”. (Apelação Cível N. 70054290002, Oitava Câmara Cível, Tribunal de Justiça
do RS, Relator: Ricardo Moreira Lins Pastl, Julgado em 15-08-2013)
Caxias da Paz38
A maioria dos casos atendidos pela Central Judicial são oriundos do Juizado
da Infância e da Juventude. Essa Central, porém, está apta a atender casos
encaminhados pelas diversas áreas jurisdicionais, o que vem permitindo
oferecer as práticas restaurativas como parte do menu de soluções
autocompositivas que pode ser acessado através do CEJUSC.
Foi esse o caso da disputa civil relatada a seguir, em que um Círculo
Restaurativo foi intercalado entre sessões de mediação:
Vizinhos, inimigos e irmãosEram irmão e irmã, mas há muito não se falavam. As brigas pelas terras da família
tinham se agravado ao ponto de se transformarem em agressões e ameaças de morte.
Sob a forma de um processo em andamento numa Vara Cível, o conflito foi encaminhado
para mediação. Identificada a questão de fundo afetivo preponderante sobre o conteúdo
patrimonial, a mediação foi suspensa com apoio dos advogados, e abriu-se espaço
para a realização de um Círculo de Construção de Paz. Durante o Círculo, mágoas e
ressentimentos tomaram o lugar da discussão da herança. Frente a frente, auxiliados
por um facilitador experiente, irmão e irmã, acompanhados por seus cônjuges, puderam
desabafar anos e anos de rancores acumulados. Analisaram a origem dos conflitos e
propuseram soluções para as desavenças. Terminado o Círculo, irmão e irmã saíram
conversando lado a lado e entraram juntos no elevador, coisa até então inconcebível
entre eles. Ao retornarem à sessão de mediação com os advogados, com as emoções
harmonizadas, a divisão de terras transcorreu tranquilamente. Até uma indenização por
prejuízos e danos morais decorrentes de uma agressão entre eles foi acertada. Os irmãos
chegaram a um acordo, e o processo foi finalizado pacificamente. Através do Círculo, a
família, antes inimiga, encontrou paz. (Facilitadores: Franciele Lenzi e Paulo Moratelli)
Revista da Paz39
Conviver pacifi camente, vivenciar valores positivos e aprender a
relacionar-se com o diferente é o caminho para uma vida de paz
39
Justiça que se aprende na infância
40Caxias da Paz
A Central de Práticas Restaurativas da Infância e da Juventude foi
inaugurada no dia 5 de junho de 2013. Até o fi nal de outubro de 2013,
haviam sido realizados um total de 120 encontros restaurativos, relativos ao
atendimento de 27 casos de confl itos (incidentes relativos a fatos concretos,
que implicaram um total de 88 encontros incluindo pré-círculos, círculos e
pós-círculos), e outros 32 encontros de sensibilização e/ou de prevenção de
confl itos. Esses encontros envolveram um total de 749 pessoas.
Briga de meninas vira inimizade de gente grandeAs duas adolescentes de 14 anos eram colegas do oitavo ano do ensino fundamental
quando brigaram na saída do colégio, resultando em uma delas com lesões corporais.
Somente um ano depois, o caso entrou em pauta na Vara da Infância e da Juventude.
Mesmo passado tanto tempo, o conflito não perdera sua atualidade. Pior, evoluíra para uma
desavença entre as famílias. Novos boletins de ocorrência foram registrados, desta vez por
ameaças. O caso foi encaminhado para um procedimento restaurativo. Com a participação
das duas famílias, o encontro em forma de Círculo de Construção de Paz mostrou que o
conflito entre as meninas vinha de longa data. Desde o quinto ano do Ensino Fundamental
elas discutiam frequentemente. Uma delas viera de outra cidade, tinha hábitos interioranos
e seu modo de vestir era motivo de chacota. A colega a chamava de “pano de chão”, e
ela revidava chamando-a de “patricinha”. Já haviam sido chamadas muitas vezes para as
tradicionais reuniões de aconselhamento, inclusive envolvendo familiares, mas o conflito não
se resolvia. As desavenças evoluíram para as agressões relatadas. Uma das meninas trocou
de escola depois do fato. Mas havia outras crianças das mesmas famílias que permaneciam
no colégio, e o conflito se desdobrava entre elas. E foi além da escola, tensionando a
vida das famílias na comunidade. Embora vizinhos, evitavam frequentar os mesmos
lugares. Encontros ocasionais entre familiares, adultos, crianças e adolescentes faziam
aflorar a hostilidade, com ameaças e até a iminência de agressões. O Círculo permitiu não
somente às garotas, mas também aos familiares, desabafarem o mal-estar gerado pela
rivalidade. As meninas reconheceram terem sentimentos em comum. Embora constassem
no processo como ofensora e vítima, ambas admitiram ter praticado agressões. Frente a
frente com a realidade e lado a lado com suas famílias, as duas perceberam a dimensão das
consequências de seus atos. Sentiram-se responsáveis e arrependidas pela grande confusão
em que tinham envolvido os familiares. Decidiram então pedir desculpas recíprocas, e aos
seus familiares, e dar um fi m às provocações. O processo foi arquivado, e as famílias voltaram a
conviver pacifi camente. (Facilitadoras: Franciele Lenzi e Katiane B. da Silveira)
41
Casos como este agora podem ter dispensadas as tramitações na polícia,
Ministério Público, Juizado da Infância e da Juventude, pois já podem ser
resolvidos preventivamente na Central de Práticas Restaurativas da Infância e
da Juventude. A Central atende casos de confl ito entre crianças e adolescentes
e seu entorno familiar e comunitário, com o intuito de prevenir que evoluam
negativamente e, até mesmo, que se transformem em processos judiciais.
O espaço ocupado pela Central da Infância e da Juventude é cedido pela
Faculdade de Direito da Universidade de Caxias do Sul.
A equipe da Central é composta pela pedagoga Katiane Boschetti da
Silveira, que atua como coordenadora e facilitadora, pela assistente social
Marí Ângela Stallivieri e pela professora de letras e bacharel em Direito
Rachel Marques, que atuam como facilitadoras. Henrique Simionato, aluno
de Direito da UCS, colabora como secretário. Diversos voluntários auxiliam
na realização dos Círculos. Katiane, Marí Ângela e Henrique trabalham em
turno integral. Rachel trabalha meio turno.
A Central atende casos encaminhados sobretudo por Escolas, mas também
pode receber encaminhamentos da Guarda Municipal, Brigada Militar,
Delegacia de Proteção à Criança e ao Adolescente, Conselho Tutelar,
Centros de Referência em Assistência Social (CRAS e CREAS), Ministério
Público, Defensoria Pública, Casas de Acolhimento, Centros Educativos,
comunidade. Depois que o atendimento é solicitado, a Central tem o prazo
de 90 dias para concluir o procedimento restaurativo.
O propósito da Central é acelerar
o atendimento a confl itos e
infrações de menor potencial
ofensivo envolvendo crianças e
adolescentes, como forma de
estabilizar a convivência familiar
e comunitária e de evitar a
abertura de processos judiciais.
Um protocolo entre a Secretaria
Municipal de Segurança Pública
e Proteção Social, o Juizado,
a Promotoria, a Defensoria, a
Polícia Civil, a Brigada Militar e a
Guarda Municipal possibilita que
infrações de menor relevância
sejam resolvidas mediante
práticas restaurativas. A intenção
é proporcionar soluções mais
rápidas, econômicas e efetivas
do que as oferecidas pelas vias
tradicionais.
Demandas dos serviços municipais que atendemà clientela infantojuvenil
Confl itos envolvendo crianças, adolescentes e seus entornos familiares, comunitários e dos serviços de atendimento
Difusão dos métodos circulares na rede especializada de Assistência, Educação e Saúde
Escolas, Centros Educativos, Instituições de Abrigo, CRASs e CREAS, Guarda Municipal, Conselhos Tutelares
Situações confl itivas de natureza não infracional envolvendo crianças e adolescentes usuários do Sistema
Infrações de menor potencial ofensivo, abordagem diversória Situações confl itivas intrafamiliares Situações confl itivas entre as famílias e servidores de atendimento Procedimento semelhante ao da Central Judicial
Aplicações em circunstâncias não confl ituais Círculos de Construção de Senso de Comunidade (coesionamento familiar, comunitário e
institucional) Círculos de Diálogos, de Planejamento, de Cura, de Refl exão, etc.
“Centro de Difusão da JR para a Rede da Infância e Juventude”
Central da Paz - Infância e Juventude
42Caxias da Paz
“O trabalho de prevenção é a
nossa principal meta. Acreditamos
que é mais fácil armar os jovens
com valores, ferramentas que
vão ajudá--los quando surgirem
os confl itos, do que intervir
depois que a situação já virou
um grande problema ou, até,
um caso de agressão. Resolver o
confl ito de alguém é promover o
bem de todos. Os membros de
uma comunidade estão sempre
interligados. Qualquer situação boa
ou ruim tem um alcance muito
abrangente; o mal ou bem de um
atinge a todos”.
Katiane Boschetti da Silveira,pedagoga e coordenadora da Centralde Práticas Restaurativas da Infância
e da Juventude
Vivenciando valores positivos
Experiência de resolução não violenta de conflitos desde a infância é o melhor caminho para prevenir incidentes violentos, harmonizar trajetórias de vida e evitar a multiplicação de processos judiciais
A verdade jogada pela janelaA avó reclamava que não conseguia mais lidar com ele. Queria livrar-se do “demônio”
(como ela o chamava). O neto não lhe dava mais sossego. Na falta de outro familiar
que o recebesse, o destino do menino seria o acolhimento institucional. Antes, porém,
o Ministério Público encaminhou o caso para a Central de Práticas Restaurativas da
Infância e da Juventude. No Círculo de Construção de Paz, o garoto revelou a raiz
da sua perturbação. Segundo lhe contara a avó paterna, pela qual fora criado desde
bebê, ele não teria sido apenas abandonado pela mãe, mas com apenas 11 meses
de vida, fora por ela jogado para fora da janela de um carro em movimento. De fato,
nessa ocasião a família se envolvera em um acidente de trânsito, quando o pai do
menino dirigia embriagado. O veículo capotou. O casal e a criança se feriram e foram
hospitalizados. Ainda no hospital, as famílias se desentenderam. O bebê teve alta antes
dos genitores e a avó paterna o assumiu. Desde então não permitiu que a mãe visse
o filho. Quinze anos se passaram sem que mãe e filho se falassem. No Círculo, a mãe
revelou ter mentido à polícia para proteger o companheiro das consequências legais do
crime de dirigir embriagado. Não era verdade que tivesse jogado o menino pela janela
do carro. O menino perdoou a mãe e reatou os laços com ela. Hoje, eles moram juntos.
O menino frequenta a escola e estabilizou seu comportamento. Mantém um ótimo
relacionamento com a mãe e o padrasto. O garoto voltou a ser tranquilo na escola e
mantém-se em dia com os estudos. No encontro de pós-círculo, disse estar se sentindo
muito feliz. O “demônio” é hoje um adolescente normal e tranquilo. (Facilitadoras:
Katiane B. da Silveira, Marí Ângela Stallivieri e Rachel Ivanir Marques)
A Central está organizada para atuar de duas formas: “proativa” (ou
preventiva) e “reativa”. O trabalho preventivo da Central consiste
em difundir os princípios restaurativos e promover a prática de
43
Círculos de Construção de Paz junto às escolas e serviços de proteção
à infância e juventude, como forma de estimular a empatia entre
crianças, adolescentes, famílias, cuidadores e educadores, dando-lhes a
oportunidade de aprender a lidar com o confl ito por meio do diálogo.
Para refi nar as estratégias visando a desenvolver ambientes restaurativos,
um projeto-piloto vem sendo realizado com seis escolas da comunidade
da região leste de Caxias do Sul. Nas escolas selecionadas, são
promovidos Círculos com professores, alunos e pais. “Nós pressupomos
que uma criança ou adolescente morador desses bairros, frequenta
alguma destas escolas. Focar o trabalho nas instituições de ensino é uma
estratégia para atingir toda a comunidade”, explica Katiane.
A ideia é que cada comunidade se aproprie do conhecimento e das
habilidades restaurativas, aplicando-os a princípio como ferramenta
cotidiana de fortalecimento de vínculos e de harmonização da
convivência, até ir adquirindo maior autonomia na solução de confl itos
de maior complexidade. O trabalho visa não apenas a evitar que as
situações de confl ito gerem processos judiciais, mas, principalmente,
a fortalecer as comunidades. “Não atendemos casos que já viraram
processos judiciais, embora muitos deles sejam gravíssimos. Lidamos
com situações de tráfi co de drogas, violência física e verbal, abuso
emocional, negligência e vulnerabilidade social”, relata a coordenadora.
Além da implantação experimental junto às seis escolas-piloto, a Central
de Práticas Restaurativas da Infância e da Juventude, que trabalha com
toda a rede municipal de atendimento à criança e ao adolescente, atende
também por solicitação de outras escolas e serviços da rede de proteção.
A intervenção nesses casos é reativa, quando já existe uma situação de
confl ito instaurada. Os facilitadores da Central promovem Círculos
com os envolvidos para propor que a violência seja evitada e que as
desavenças sejam resolvidas de forma objetiva e consistente. “Nosso alvo
é fazer com que as pessoas conversem. Quando se promove o diálogo,
os problemas são minimizados. Como a sociedade está toda interligada,
prevenimos que outras pessoas tornem-se vítimas de violência”, explica Katiane.
De acordo com ela, a rede de atendimento socioassistencial de Caxias tem
se mostrado muito participativa. “Caxias tem uma rede forte. Quando
as pessoas estão no Círculo, elas sentem que não estão trabalhando
sozinhas, e isso motiva todos a agirem em conjunto para ajudar uma
família”, comemora Katiane.
Central da Paz - Infância e Juventude
44Caxias da Paz
Desafios da Central de Práticas Restaurativas da Infância e da Juventude
Padronização dos atendimentos, intercâmbio com a academia, divulgação do trabalho na comunidade e formação de novos líderes são as metas da Central
A Central de Práticas Restaurativas da Infância e da Juventude tem como
propósito concluir o padrão do fl uxo de atendimento dos serviços, defi nir o
protocolo operacional das ações para os atos infracionais de menor potencial
ofensivo e buscar mais interação com o meio acadêmico. Como a Central
está localizada dentro da Universidade de Caxias do Sul, o desejo da equipe
é desenvolver um intercâmbio sólido com os alunos da UCS, do curso de
Direito e de outras áreas do conhecimento. “Um Círculo de Construção
de Paz é um ato pedagógico e social. Desejamos mostrar aos estudantes de
vários cursos esta nova forma de promover Justiça”, explica Katiane.
De acordo com a avaliação da coordenadora, a atuação de mais pessoas
como facilitadoras de Círculos de Construção de Paz é necessária. Para ela,
a ocorrência de casos de confl ito em ambiente escolar em Caxias do Sul
é muito grande. “Nós ainda não divulgamos muito para a cidade o nosso
trabalho e já estamos com uma demanda altíssima. Existe muita violência
e uma grande difi culdade de relacionamento entre as pessoas... o diálogo
está faltando muito no ambiente escolar e principalmente nas famílias”,
constata. Ela acredita que principalmente líderes de comunidade podem
ser facilitadores. “O essencial é ter perfi l para trabalhar com pessoas, ser
interessado e ter a vontade de ajudar”, afi rma.
Katiane defende a realização de um trabalho comunitário de construção
da cultura de paz para transformar a metodologia dos Círculos em uma
metodologia pedagógica. “Queremos que as pessoas aprendam a aplicar os
Círculos, que isso se torne uma prática dentro das casas, nas escolas, entre
amigos”, desafi a.
45Central da Paz - Infância e Juventude
A Convenção da ONU sobre os Direitos da Criança, artigo 40, item 3, letra “b”, preconiza que
crianças e adolescentes envolvidos na prática de infrações penais sejam atendidos prefe-
rencialmente sem recurso ao processo judicial, assegurando-se a eles o pleno respeito dos
direitos humanos e as garantias previstas em lei.
A Lei Federal n. 12.594/2012, no seu artigo 35, inciso II, estabelece o princípio da “ex-
cepcionalidade da intervenção judicial e da imposição de medidas, favorecendo-se meios de
autocomposicão de conflitos”.
A Lei Federal n. 12.594/2012, no seu artigo 35, inciso III, estabelece o princípio da
“prioridade a práticas ou medidas que sejam restaurativas e, sempre que possível, atendam
às necessidades das vítimas”.
O Centro Judiciário de Solução de Conflitos e Cidadania (CEJUSC – ao qual está vinculada
em Caxias a Central de Práticas Restaurativas da Infância e da Juventude) está autorizado a
aplicar as práticas da Justiça Restaurativa pela Emenda n. 01 à Resolução n. 125/2010 do
Conselho Nacional de Justiça – CNJ.
Fundamentos dos Procedimentos Restaurativos Extrajudiciais
47
Promover a Cultura da Paz em meio à comunidade da Zona Norte – região
conhecida pelo contexto violento – é o desafi o da Central Comunitária
Justiça como poderda comunidade
48Caxias da Paz
A Central Comunitária de Práticas Restaurativas foi inaugurada no dia
19 de julho de 2013 e funciona no Centro de Referência em Assistência Social –
CRAS Norte (Rua das Fruteiras, Bairro Santo Antônio). A Central atua em
parceria com a Rede de Proteção Social (UBS, escolas, ONGs e AMOB) e com
as lideranças dos bairros Santa Fé, Vila Ipê, Belo Horizonte, Canyon, Portal
da Maestra, Pedancino, Santo Antônio e Parque Oásis, que compõem a Zona
Norte de Caxias do Sul, onde estima-se que vivam cerca de 59 mil pessoas.
Entre julho e outubro de 2013, a Central promoveu um total de 45 encontros
restaurativos, relativos ao atendimento de 13 casos de confl itos (incidentes
relativos a fatos concretos, que se desdobraram em 23 encontros de pré-círculo,
círculo e pós-círculo), e outros 22 encontros de sensibilização e/ou de prevenção
de confl itos. Esses encontros envolveram um total de 178 pessoas.
Herança imerecidaUm homem morreu e deixou a esposa de 29 anos sozinha para criar duas filhas, de oito
e dez anos. A mulher decidiu cobrar a herança que acreditava merecer: a casa onde o
sogro morava. O senhor de 76 anos não tinha para onde ir. Assim começou a discórdia
que separou as duas netas do avô. A mulher insistia que tinha direito à casa, e o idoso
afirmava que não tinha condições de deixar o lar. Dois anos depois da morte do filho, ele
acabou perdendo também a esposa. A partir disso, longe das netas e sem a companheira,
o idoso passou a viver uma situação de grande sofrimento. A nora insistia que não abriria
mão do que era seu. O conflito foi levado à equipe da Central Comunitária de Práticas
Restaurativas, que propôs a realização de Círculos de Construção de Paz com a família.
Durante a realização dos Círculos, descobriu-se que a casa onde o idoso habitava não
lhe pertencia totalmente. A posse do imóvel era dividida entre ele e outros três irmãos.
Depois de compreender que, afinal, não tinha direito ao bem, e que, mesmo que tivesse,
receberia apenas uma pequena parte, a nora desistiu da briga. Avô e netas puderam voltar
a conviver. Os Círculos de Construção de Paz possibilitaram que os laços da família fossem
restabelecidos. (Facilitadora: Susana Córdova Duarte)
Essa é apenas uma das situações de confl ito que a Central Comunitária de
Práticas Restaurativas tem ajudado a pacifi car. “Estar inserido na comunidade
é muito positivo. Estamos ao alcance de pessoas que muitas vezes deixam de
buscar ajuda porque não têm como ir até o Centro da cidade”, explica Susana
Córdova Duarte, tecnóloga em gestão pública e coordenadora da Central.
49Central da Paz Comunitária - Zona Norte
Além dela, o Guarda Municipal e acadêmico de matemática Cristiano Marcos
Vitali e a professora especialista em Educação Física Marien Regina Andreazza
atuam como facilitadores. A assistente social Denise de Souza Cavalheiro Lain
presta orientação técnica. A estudante de Psicologia Gabriela de Quadros
Pirocca colabora como técnica administrativa, e Alceu Valim de Lima atua
como facilitador de forma voluntária.
O objetivo da Central Comunitária de Práticas Restaurativas é, por meio da
Justiça Restaurativa e dos Processos Circulares, contribuir com a comunidade
residente na Zona Norte de Caxias do Sul para a construção, promoção
e difusão da Cultura de Paz. A Central promove a solução de confl itos
envolvendo crianças e adolescentes, suas famílias e amigos. Também administra
desavenças entre vizinhos, problemas de relacionamento no atendimento
a idosos e situações conflitivas entre usuários e serviços de atendimento.
Os Círculos de Construção de Paz realizados pela Central buscam restabelecer
a convivência pacífi ca, restaurar relacionamentos fragilizados pela violência e
fortalecer vínculos entre as pessoas.
Realidade de Carência SocialA maioria dos moradores dos bairros da Zona Norte é formada por pessoas que vêm do interior para tentar trabalhar em Caxias, mas, sem qualificação, não encontram empregos formais
De acordo com a coordenadora da Central, o maior problema da
comunidade é a falta de acesso à informação. “As pessoas desconhecem seus
direitos, e aqueles que elas conhecem não sabem onde buscar”, lamenta
Susana. Ela explica que o perfi l da maioria dos moradores destes bairros
é de pessoas que vêm da zona rural ou de cidades menores para tentar
trabalhar em Caxias. “Eles chegam sem qualifi cação profi ssional, não
encontram empregos no mercado formal de trabalho e se estabelecem nas
regiões periféricas, à margem da sociedade”, explica. “As pessoas acabam
dependendo de programas do governo para sobreviver. O custo de vida em
Caxias é muito alto, difícil de manter... aí nasce a violência: da carência
fi nanceira e da falta de informação”, explica Susana. “Na maioria dos casos,
a violência familiar começa quando um pai que tem dois, três fi lhos para
50Caxias da Paz
EstratégiaAs primeiras ações da Central foram atividades de sensibilização da comunidade para tornar o trabalho conhecido entre as organizações não governamentais e os serviços de saúde da região
Infiltração rompe amizadeUma infi ltração no apartamento de uma senhora gerou uma grande intriga em um
condomínio. Um grupo de vizinhos procurou a Central Comunitária de Práticas Restaurativas,
aconselhados por um conhecido que já havia participado dos Círculos de Construção de
Paz. O grupo estava relutante, mas pelo desejo de resolver a situação concordou em participar
dos pré- círculos. Desta forma, se descobriu de onde vinha a água que causava a infi ltração.
A moradora do local de origem da umidade se responsabilizou em chamar um técnico para
avaliar a situação, mas declarou estar muito triste com os vizinhos. Não entendia por que não
a tinham procurado para conversar antes e por que a vizinha de baixo lhe tratava tão mal nos
últimos seis meses. Ela pediu um tempo para pensar se conseguiria conversar com a outra,
já que estava muito magoada. Um Círculo com a participação de todos ainda não ocorreu,
embora não tenha sido possível a restauração imediata do relacionamento entre as vizinhas,
a solução para a infi ltração foi alcançada ainda no pré-círculo, o que serviu para minimizar o
confl ito. (Facilitadores: Cristiano Vitali e Marien Andreazza)
“A nossa expectativa é que esse Círculo ocorra e o resultado seja positivo.
As pessoas se ofendem muito por pouco e criam mágoas profundas. Neste
criar não consegue emprego e também faz uso de substâncias psicoativas.
Ele, que deveria ser o provedor, não pode manter a família. Essas crianças
choram, querem alimento, roupas... aí o pai bate no fi lho, e tudo começa”,
conta a coordenadora.
Susana acredita que as crianças que sofrem violência em casa têm a
tendência a se envolverem com drogas, roubos e furtos... “Começa na
carência da criança que apanhou, que sofreu violência e que vai reproduzir
isso”, lamenta.
51Central da Paz Comunitária - Zona Norte
DesafioPalavras que destroemUma mulher procurou a Central Comunitária de Práticas Restaurativas para buscar ajuda:
segundo ela, o marido a agride frequentemente com palavras de desprezo. Ele lhe diz
diariamente que ela é burra, que não sabe ler nem escrever e que sem ele não conseguiria
sobreviver... A vítima tomou conhecimento da metodologia dos Círculos de Construção de
Paz e procurou ser ajudada. Até outubro de 2013, dois pré-círculos com ela e um com o
esposo haviam sido realizados. O trabalho tem o objetivo de fortalecer a mulher para que
ela seja capaz de falar diretamente para o marido como se sente. Embora ela não queira
o divórcio, não gostaria mais de conviver com a rotina de desmotivação. Por sua vez, o
marido acha que não há nada de errado no que diz. Os Círculos realizados com ele tem o
objetivo de fazê-lo avaliar as próprias atitudes e, a partir da análise de sua história de vida,
incentivá-lo a compreender por que age assim. O Círculo com a participação de ambos está
marcado. A esperança da equipe da Central é que ela consiga, frente a frente com o marido,
falar o que está sentindo e que, a partir disso, mulher e companheiro consigam, juntos,
identificar seus sentimentos e necessidades. Desta forma, a Central acredita que juntos, o
casal poderá ressignificar e restabelecer os vínculos fragilizados para construir um futuro sem
violência verbal e psicológica. (Facilitadora: Marien Andreazza)
“O caminho é esse: o diálogo e o fortalecimento dos laços familiares”,
afi rma Susana. O objetivo da Central Comunitária de Práticas Restaurativas
para o próximo ano é aumentar o número de atendimentos. “Queremos
divulgar essa alternativa para além da Zona Norte e ver cada vez mais
adeptos dessa metodologia”, visualiza. A esperança da coordenadora é de
que, a partir disso, os jovens se envolvam menos com a criminalidade.
caso, queriam dar início a um processo judicial por causa de uma coisa tão
simples de resolver”, avalia Susana. Por essas e outras situações comuns que
podem facilmente encontrar um desfecho positivo, se forem tratadas nos
Círculos, as primeiras ações da Central foram desenvolver atividades de
sensibilização na comunidade. O objetivo foi tornar o trabalho conhecido
entre as organizações governamentais e não governamentais e os serviços de
saúde da região. “Explicamos a metodologia, a proposta e mostramos que os
confl itos podem ser resolvidos de forma não violenta. As pessoas não precisam
concordar uma com a outra, mas podem manter o respeito”, propõe Susana.
Caxias da Paz52
Entretanto, o crescimento trará consigo o desafio de administrar o
aumento da demanda de trabalho. “Nossa equipe parece grande, mas
ninguém é dedicado integralmente, então esperamos que mais voluntários
se envolvam com o trabalho da JR. Eles serão sempre muito bem-vindos!”,
convida a coordenadora.
Critério territorial Amplo espectro de situações confl itivas Perfi l de usuários aberto (adultos, crianças e adolescentes) Alternativa à criminalização de confl itos Resolução na própria comunidade Redirecionamento de ocorrências policiais (relações familiares, vizinha, proximidade) Encaminhamentos espontâneos (partes, lideranças, profi ssionais do território)
Aplicações em situações confl itivas Confl itos envolvendo crianças, adolescentes e seus entornos familiares e comunitários Confl itos de vizinhança Confl itos de violências intrafamiliares Confl itos relacionados ao atendimento familiar a idosos Situações confl itivas entre usuários e serviços de atendimento
Aplicações em circunstâncias não confl itivas Círculos de Construção de Senso de Comunidade Círculos de Diálogo, de Planejamento, de Refl exão e outras aplicações circulares Foco no coesionamento familiar, comunitário e institucional
“Piloto de Justiça Comunitária”
53
Voluntariado pulsa no coraçãoda JR em Caxias do Sul
Ajudar a criar um mundo de paz e um planeta mais seguro é apenas uma fração do orgulho que um voluntário sente ao doar seu tempo para uma
causa em que acredita
54Caxias da Paz
O movimento da Justiça Restaurativa em Caxias do Sul deve-se
muito ao compromisso de pessoas que participaram de capacitações e se
engajaram voluntariamente para levar a Cultura da Paz à comunidade
caxiense. O voluntariado não é uma qualidade que distingue apenas aqueles
que se dedicam à Justiça Restaurativa de forma não remunerada. Também
são inúmeros os profi ssionais de vários setores das políticas públicas de
Caxias do Sul que, mesmo atuando em seus horários de trabalho, o fazem de
maneira engajada e imprimem nisso o caráter de compromisso pessoal que
caracteriza o voluntariado.
A busca pessoal e o desejo de contribuir para que essa nova forma de lidar
com confl itos alcance um número cada vez maior de pessoas é o que motiva
os voluntários a se engajarem e servirem como facilitadores na mediação
de confl itos. “Percebi que era uma maneira de ajudar as pessoas de uma
forma que eu jamais tinha conseguido alcançar em outros trabalhos como
voluntária”, conta Fátima De Bastiani.
Hoje coordenadora do Núcleo de Justiça Restaurativa, Fátima teve o
primeiro contato com a proposta dos Círculos em agosto de 2010, quando
foi contratada para traduzir as palestras das canadenses Brenda Morrison
e Liz Eliott em Caxias do Sul. Em outubro daquele ano, Fátima também
traduziu dois treinamentos ministrados pela americana Kay Pranis, em Porto
Alegre e Caxias do Sul, por ocasião da sua primeira vinda ao Brasil.
O encantamento surgiu quando Fátima ainda se preparava para as traduções.
“Li materiais na internet, li o livro ‘Trocando as lentes’, do Howard Zehr, e
os polígrafos do programa Justiça para o Século 21, além de assistir a vídeos
da Kay Pranis sobre seu trabalho com Círculos de Construção de Paz”, relata
Fátima. Ela conta que, após as duas semanas acompanhando Kay Pranis,
se ofereceu para atuar como voluntária junto aos facilitadores formados
em Caxias. Durante este período, Fátima impactou-se com a Justiça
Restaurativa e com a metodologia dos Círculos de Construção de Paz. “Foi a
simplicidade de Kay que me cativou. Ela transmite muita confi ança sobre o
que fala e a sua proposta faz diferença na vida das pessoas”, afi rma. Mudança
que Fátima observa hoje em cada caso submetido à prática dos Círculos de
Construção de Paz.
A coordenadora do Núcleo afi rma que não seria possível, nem mesmo
pretendido, contratar e remunerar todos os facilitadores capacitados em
55Teia da Paz
Caxias do Sul (75 pessoas participaram das 3 formações para facilitadores
ministradas por Kay Pranis, 90% delas de Caxias), mas que a atuação dos
voluntários é tão importante quanto a dos profi ssionais que hoje dedicam tempo
integral ao desenvolvimento da JR em Caxias e são remunerados para isso.
A oportunidade de dedicar-se e sentir-se útil na promoção da paz estimula
Alceu Wanderlei Valim de Lima, bancário que se aposentou como gerente
da Caixa Econômica Federal. “Me considero um irmão mais velho, faço
parte da história, da origem do processo de implantação da JR em Caxias do
Sul. Encaro com muita responsabilidade as atividades de apoiar e orientar
os facilitadores que iniciaram essa caminhada depois de mim”, garante.
Alceu atua como facilitador, apoiador, incentivador e divulgador voluntário
da Justiça Restaurativa em Caxias do Sul. Chamado para ajudar colegas
ou por solicitação de pessoas em confl ito, ele desenvolve atividades nas
Centrais, escolas, instituições e comunidades. Há muitos anos já atuava no
Juizado de Pequenas Causas, onde era o conciliador mais antigo. Foi em
2010, no curso de formação ministrado por Kay Pranis em Caxias do Sul,
que conheceu a Justiça Restaurativa. Desde então, mudou o foco do seu
voluntariado. “Encontrei uma metodologia muito mais efi ciente do que a
conciliação e tudo o mais que eu conhecia até então. Acredito que a Justiça
Restaurativa é uma ferramenta adequada em todas as relações humanas,
desde o confl ito mais difícil até os momentos sublimes de confraternização
e celebração”, explica.
Hoje, além de facilitar Círculos no CASE – unidade onde adolescentes cumprem
medidas privativas da liberdade – e nas três Centrais de Práticas Restaurativas,
Alceu tem apoiado iniciativas de Círculos de Construção de Paz na Comunidade
de Santo Homo Bom e na Penitenciária do Apanhador. O voluntário também já
facilitou Círculos em escolas de Garibáldi e Flores da Cunha.
Consciente da importância do trabalho voluntário, Juceli Rita Cemin
Negretto – que é pedagoga, especializada em Supervisão Escolar e pós-
-graduada em Psicopedagogia – atua como facilitadora voluntária da
Central de Práticas Restaurativas da Infância e da Juventude. Ela também
realiza Círculos de Construção de Paz com as mulheres que cumprem pena
em regime fechado na Penitenciária Industrial de Caxias do Sul.
A pedagoga também participou do curso com Kay Pranis em 2010.
Após a formação, Juceli começou a fazer Círculos nas Escolas da Rede
Estadual, envolvendo alunos, professores e pais, direção das Escolas
e pessoas da comunidade. Ela começou esse trabalho enquanto ainda
56Caxias da Paz
atuava na 4ª Coordenadoria Regional de Educação, mas continuou a
realizá-lo depois de aposentada. Para Juceli, um dos casos de Círculo
mais comoventes aconteceu em uma escola da região.
“Uma funcionária estava proibida de frequentar a cozinha da Escola. Ela fora acusada de
abrir a válvula do gás para incriminar uma colega. O fato tinha ocorrido há 12 anos, mas a
proibição se mantinha. Desde aquela época ela nunca mais tinha entrado na cozinha. Tudo
estava registrado em ata. Um Círculo de Construção de Paz foi realizado com a equipe daquele
colégio. Foi um Círculo com muitos desafi os e desfechos, mas no fi nal tivemos um bom
resultado. Hoje a funcionária tem acesso à cozinha, apenas com restrições iguais às de todos os
demais funcionários”, relata Juceli. (Facilitadores: Alceu Valim de Lima e Juceli Rita Negretto)
Por detrás da história, o Círculo facilitado por Juceli, com a colaboração de Alceu,
revelou um poço com 12 anos de mágoas acumuladas. Há 12 anos a merendeira
fora trocada de função e colocada para cuidar das crianças no pátio da escola. Pouco
tempo depois, um vazamento de gás na cozinha alvoroçou todo o colégio. Suspeita
de sabotagem e mesmo sem ter sido formalmente julgada, a ex-merendeira acabou
condenada a 12 anos de ressentimentos e estigmatização. Presumida culpada, a
situação gerou sentimentos de exclusão e muita raiva contra a colega que passou a
trabalhar na cozinha da escola, local em que ela nunca mais pôde entrar, sequer para
aquecer sua refeição. Sentimentos que persistiam e infectavam o ambiente escolar,
até serem tratados por meio de uma prática restaurativa.
A coordenadora pedagógica da Escola Estadual de Ensino Fundamental Dante
Marcucci, Glaci Maria Harz Durante, também atua como facilitadora voluntária
da Central de Práticas Restaurativas da Infância e da Juventude desde que se
aposentou de um dos seus dois cargos de professora da rede pública. Ela considera
que as práticas restaurativas são ferramentas importantes para a resolução de
confl itos em escolas. “A suspensão de alunos, assim como a transferência de escola,
não resolve o problema, e muitas vezes os adolescentes deixam de frequentar as
aulas”, lamenta. A coordenadora promove Círculos de Construção de Paz no
colégio onde trabalha. “Diariamente sou procurada por alunos para resolver
pequenos confl itos que poderiam gerar problemas graves, caso não fossem
resolvidos”, conta. Durante este ano, Glaci realizou diversos Círculos com turmas
de alunos, normalmente com a presença de um professor.
Glaci acredita que as práticas restaurativas também podem ser efi cientes para
combater a evasão escolar. “Hoje, o Conselho Tutelar não dá conta dos casos de
57Teia da Paz
alunos que estão fora da escola. Se tivermos condições de fazer Círculos com
esses estudantes, com o aval do Conselho Tutelar, muitas crianças que estão
nas ruas certamente serão resgatadas”, propõe. “Se quisermos encontrar uma
maneira de resolver nossos confl itos, precisamos aprender a lidar com nossas
emoções e possibilitar a transformação das pessoas envolvidas”, defende Glaci.
O primeiro contato de Glaci com a Justiça Restaurativa foi em 2004,
quando participou do Curso de Lideranças em Cultura de Paz, realizado na
Universidade de Caxias do Sul. “O tema de um dos encontros, ministrado
pelo Juiz Egberto de Almeida Penido, foi: Rumo a uma Justiça Restauradora”,
lembra. Glaci também participou dos Seminários de Valores Humanos,
promovidos pela Biblioteca dos Direitos da Criança da UCS e do primeiro
curso de formação em Justiça Restaurativa ministrado por Kay Pranis em Caxias
do Sul em 2010.
A professora conta que uma das experiências mais signifi cativas que teve ao
aplicar as concepções da Justiça Restaurativa foi o encontro que promoveu para
resolver o confl ito entre duas meninas acolhidas institucionalmente, que eram
colegas na escola:
“Uma das alunas jogou uma cadeira na outra. As duas saíram correndo da sala, uma chorando
e a outra gritando, querendo brigar. Antes que chegassem à direção, levei-as para minha sala.
Solicitei que se acalmassem. Pedi licença para que eu pudesse terminar um trabalho (pretexto)
enquanto comecei a falar sobre outros assuntos. Perguntei como estavam se sentindo. A aluna ‘A’
começou a manifestar seu desejo de voltar a morar com a avó, onde ela havia passado o fi m de
semana. Na sequência, a aluna ‘B’ também falou do seu desejo de voltar para casa e cuidar do
bebê da irmã. Percebi uma ligação entre os dois casos: aluna ‘A’ estava sendo cuidada, nos fi nais
de semana, pela avó idosa e um dia ela poderia cuidar da avó, enquanto a aluna ‘B’ queria sair
do abrigo para ajudar a irmã a cuidar de um sobrinho e assim a irmã poderia trabalhar fora de
casa. Depois de alguns minutos as duas começaram a conversar. Aproveitei e perguntei sobre o
ocorrido e, se a aluna ‘B’ estava machucada. Ela mostrou a perna e disse: ‘só está um pouco
vermelho’. A aluna ‘A’ pediu desculpas e disse estar muita nervosa. As duas perceberam que
tinham as mesmas necessidades e desejos e criou-se uma empatia entre ambas”, relata Glaci.
(Facilitadora: Glaci Harz Durante)
A professora conta que as meninas continuaram colegas e convivem
muito bem. Ela acredita que, embora não tenha realizado formalmente
um Círculo, já que a dinâmica da vida escolar nem sempre possibilita ou
58Caxias da Paz
Um exemplo de como as concepções restaurativas e os Círculos de paz podem se tornar uma
ferramenta comunitária vem sendo dado pelo Padre Renato Ariotti, da Paróquia Santa Catarina.
Desde que se aproximou do Juizado para acompanhar a situação dos quatro adolescentes
que colocaram fogo no papeleiro Carlos Miguel, morto em 23 de setembro de 2012, o Padre
Renato se tornou de certa forma um representante da vítima, de quem inclusive adotou os dois
cachorros e ainda guarda o carrinho de coletar papelão.
Um Círculo para que os quatro adolescentes possam ouvir do Padre Renato o relato do
sofrimento que causaram para a vítima ainda não foi possível, porque os adolescentes não se
mostraram maduros o suficiente. Mas desde 27 de abril de 2013, a comunidade da paróquia
realiza mensalmente Círculos de Paz, facilitados pelo voluntariado de Alceu Lima e Paulo
Moratelli. Os encontros, que seguem a metodologia dos Círculos de Diálogo e Construção
do Senso de Comunidade, promovem reflexões sobre o que pode ser feito para garantir a
segurança e a paz na comunidade e também têm servido informalmente como espaço de escuta
de pessoas vitimizadas – como a mãe de um jovem morto por um bonde na Avenida Júlio de
Castilhos, na madrugada do feriado de 1º de maio de 2013.
As histórias de Fátima, Alceu, Glaci, Juceli, que integram a lista dos primeiros
facilitadores formados pela Justiça Restaurativa em Caxias, ilustram a dedicação
de vários outros facilitadores voluntários que contribuem, junto às Centrais e nos
seus próprios ambientes profi ssionais ou comunitários, para que o trabalho do
Núcleo de Justiça Restaurativa de Caxias do Sul se fortaleça e se consolide. Todos
Representada por um novelo de linha formando o símbolo do infi nito, a identidade visual do projeto convoca para uma tecitura social também infi nita.
faz necessário que se proceda assim, sua intervenção seguiu os princípios
restaurativos. Esta habilidade vai sendo incorporada conforme se utiliza
das práticas estruturadas e se mostra útil também para soluções informais.
Um diálogo restaurativo aplicado naquele momento evitou a suspensão das
alunas das aulas e a vinda dos educadores dos Abrigos, como normalmente
acontece nesses casos. “Certamente a aluna ‘A’ perderia o direito de passar
o fi m de semana com a avó, o que a deixaria ainda mais revoltada”, explica
Glaci.
59Teia da Paz
Para o Juiz Leoberto Brancher, profi ssionalização e voluntariado são atuações complementares.
“O pessoal remunerado forma a base, eles asseguram a sustentabilidade do trabalho. Mas eles
atuam por convicção, são ‘voluntários em serviço’. Antes de serem escolhidos, eles já estavam
engajados. De certa forma, também são voluntários. Voluntários e pessoal remunerado atuam
lado a lado, o que reforça o senso de compromisso de todos. Por isso esse movimento nunca vai
perder a vitalidade, não vai virar uma burocracia. Por isso sonhamos com um futuro que passa
pelo voluntariado. As três Centrais já criadas, ou quantas mais pudéssemos criar, jamais poderiam
absorver todos os confl itos da cidade. As Centrais devem servir como inspiração, para fazer e
mostrar que é possível resolver de outra maneira, para contar os casos e partilhar refl exões sobre
como podemos fazer melhor. As Centrais integram o Núcleo, que tem a missão de formar novos
facilitadores. Precisamos formar voluntários para levar as práticas restaurativas não só para os
presídios, para as unidades da FASE, para os abrigos, mas para todas as escolas, as unidades
básicas de saúde, centros comunitários, igrejas, pastorais, fábricas... Precisamos mobilizar legiões
de voluntários para construir uma Cidade da Paz. Mesmo profi ssionais atuando no próprio local
de trabalho, quem se escolher para a tarefa, será bem-vindo como voluntário. Precisamos que as
técnicas do diálogo restaurativo estejam ao alcance das pessoas nos lugares onde elas convivem, se
encontram e, por isso, entram em confl ito. Confl ito faz parte. Como ouvi numa palestra, o confl ito
não é o problema. O problema é não ter saídas. E os voluntários são as pessoas que facilitarão essa
saída”, defende Brancher.
os facilitadores da última turma capacitada na cidade, formada com recursos do
Tribunal de Justiça em 2013, assumiram o compromisso de prestarem 300 horas de
voluntariado junto ao projeto.
Não é apenas como facilitadores de Círculos de Construção de Paz que os voluntários
podem se dedicar à pacifi cação da cidade. Exemplo disso é o grupo de profi ssionais
que vêm atuando voluntariamente em outras frentes, como a informatização de
uma guia de registro, que formará um banco de dados onde serão armazenadas
todas as informações sobre os casos trabalhados pelos Círculos de Construção de
Paz promovidos nas Centrais ou em qualquer outro local. A implantação de uma
comunidade virtual para multiplicar formações e possibilitar a supervisão das práticas
também está sendo viabilizada por profi ssionais voluntários da área.
Caxias da Paz60
61
Desmistifi cando os Círculos de Construção de Paz
Um processo que parece ser demorado mas que é, na verdade, mais econômico e rápido que o
tradicional e na maioria dos casos promoveresultados estáveis
62Caxias da Paz
Considerada por alguns uma fi losofi a, a Justiça Restaurativa já chegou a ser
defi nida como “uma prática à busca de uma teoria” – mostrando que a grande
vocação das ideias restaurativas é a de serem colocadas em prática. As práticas
restaurativas podem seguir diferentes metodologias, como a mediação vítima-
-ofensor, as conferências neozelandesas e australianas, as reuniões restaurativas norte-
-americanas, ou os Círculos de comunicação não violenta.
Os Círculos de Construção de Paz são o método restaurativo até aqui utilizado pelas
Centrais do Núcleo de Justiça Restaurativa de Caxias do Sul. A metodologia é uma
das mais difundidas no mundo e foi desenvolvida a partir do fi nal dos anos 70 pelo
Juiz canadense Barry Stuart, quando jurisdicionava territórios indígenas cujos povos
mostravam resistência em participar dos processos da justiça tradicional.
Stuart partiu então das práticas de justiça adotadas nas tradições desses povos,
modernizando-as e adaptando-as à aplicação judicial através do que inicialmente
denominava de “Círculos de Prolação de Sentença”. Nesses procedimentos, os
processos seguiam o percurso normal até o julgamento, mas ao fi nal o juiz, promotor
e advogado se reuniam num Círculo com a participação do ofensor, da vítima, suas
famílias e comunidade, para decidirem juntos qual seria o conteúdo da condenação.
Essa experiência originou os Círculos de Construção de Paz como atualmente são
praticados.
Um Círculo de Construção de Paz é uma “roda” formada por pessoas que
buscam, por meio do diálogo, alcançar um determinado propósito (compreensão,
restabelecimento, sentenciamento, apoio, construção de senso comunitário,
resolução de confl itos, reintegração ou celebração). De acordo com Kay Pranis,
precursora na aplicação desta prática restaurativa nos Estados Unidos, o formato
espacial do Círculo (os participantes se sentam em cadeiras dispostas em roda, sem
mesa no centro) simboliza liderança partilhada, igualdade, conexão e inclusão.
Também promove foco, responsabilidade e participação de todos.
A conversa entre o grupo é conduzida por um facilitador, que tem a função de
propor o debate. O facilitador não deve agir como professor ou impor uma solução
ou proposta. A ideia é que a solução, decisão, medida ou acordo, surja a partir da
contribuição de cada participante do Círculo. Para Kay, em um Círculo chega-se
à sabedoria por meio das histórias pessoais. Ali, a experiência vivida é mais valiosa
do que conselhos. “Círculos são uma forma de estabelecer uma conexão profunda
entre as pessoas, explorar as diferenças ao invés de exterminá-las e ofertar a todos
igual e voluntária oportunidade de participar, falar e ser ouvido pelos demais sem
interrupção”, explica Kay.
O objetivo dos Círculos é propor
uma nova forma de pensar os
confl itos, além de solucionar casos
que correm risco de enfrentar uma
longa fila de espera nos fóruns
para concluir seus trâmites,
alcançar resultados incertos e
nem sempre satisfatórios. A pro-
posta parte da certeza de que é
preciso resolver as desavenças por
intermédio da responsabilização
dos ofensores e da valorização dos
sentimentos da vítima.
63Círculos de Paz
Os Círculos usam cinco elementos estruturais para criar um espaço seguro onde as
pessoas se ligam às outras de modo positivo, mesmo em circunstâncias de confl ito,
dano ou difi culdades. Esses elementos incluem: cerimônia, orientações, o objeto da
palavra, coordenação/facilitação e decisões consensuais. O objeto da palavra passa de
mão em mão, de pessoa para pessoa, dando a volta na roda. O detentor do objeto
tem a oportunidade de falar enquanto os demais escutam sem pensar numa resposta,
ou pode decidir oferecer um período de silêncio. “O objeto da palavra desacelera o
ritmo da conversa e estimula interações refl etidas e cuidadosas entre os participantes.
Em virtude de somente uma pessoa poder falar de cada vez e de o objeto de fala se
mover sucessivamente por todas as pessoas, duas pessoas que estejam em desacordo
não podem entrar numa altercação durante o momento da raiva”, explica Kay.
No Brasil os Círculos já vêm sendo identifi cados como ferramentas de suma
importância para as práticas restaurativas, com aplicabilidade em inúmeras áreas,
por promoverem o encontro de seres humanos em sua essência e na mais profunda
expressão da verdade.
Na Central Judicial de Pacifi cação Restaurativa, casos envolvendo crimes, disputas e
confl itos judicializados são tratados em Círculos. Para o psicólogo Paulo Moratelli,
coordenador da Central, embora seja um procedimento sofi sticado, se comparado
com as audiências judiciais ou mesmo as reuniões de rotina dos serviços da
rede socioassistencial, é preciso colocar em perspectiva que um processo judicial
demora muito mais do que um processo circular, já que precisa seguir o passo a
passo previsto no Código de Processo Penal. “O Círculo envolve um atendimento
pessoal demorado, mas no curso do tempo, ele alcança uma solução muito mais
rapidamente. Às vezes em um único Círculo você resolve e pronto, enquanto um
processo pode demorar anos”.
Ele destaca ainda que alguns processos judiciais encaminhados para a Central são
casos que estão envolvidos com a rede socioassistencial há 10 anos, sem solução.
“As pessoas perceberam que investir algumas horas em um Círculo não é uma
perda, mas sim um ganho”, compara. Moratelli afi rma que hoje a própria rede
socioassistencial de Caxias do Sul tem solicitado a realização de Círculos.
Kay Pranis defende que os Círculos
podem ajudar adultos e jovens
a se relacionarem superando os
confl itos com base no diálogo e
na construção de relacionamentos
para promover a solução dos
problemas. O processo envolve
todas as partes afetadas no intuito
de pacifi car alguma situação de
desavença, e segue um roteiro
estruturado que assegura a
autoexpressão e facilita a aproxi-
mação das pessoas, gerando um
ambiente seguro e protegido onde
é possível abordar e propor solução
para as questões mais difíceis.
Pré-Círculos
O pré-círculo é um encontro separado entre facilitador e cada uma das partes (que
podem estar acompanhadas de seus familiares ou outras pessoas que as apoiam)
envolvidas para conhecer seu ponto de vista e sua disposição frente ao confl ito, a
64Caxias da Paz
Empatia facilita AcordoPara Paulo Moratelli, os processos restaurativos funcionam especialmente quando
existe alguma relação entre vítima e ofensor que justifi que restabelecer algum
vínculo. Cada caso é único. “Praticamente em todos eles podemos usar o Círculo.
A questão é para onde direcionar os esforços. E já sabemos que a resposta melhor
para os Círculos é onde há uma relação continuada”, explica Moratelli. O psicólogo
garante que o foco é relacional. “Esse é o grande ponto em que podemos intervir.
“Percebo que, em todos os casos,
os Círculos conseguem trazer à luz
uma forte expressão de sentimen-
tos e sensações que normalmente
são contidas. O grupo permite
uma construção de espaço seguro
e de confi ança que consegue ser
continente para a expressão do
afeto, seja doloroso ou amoroso.
Embora a expressividade de afeto
seja profunda e intensa, os Círculos
também criam uma síntese indivi-
dual e única para cada indivíduo
que consegue ancorar-se em uma
síntese mais ampla e coletiva
produzindo Integração e Unidade.
Os eixos da Razão/Emoção/
Sensação/Intuição são utilizados e
despertados, abrindo recursos dinâ-
micos nos indivíduos participantes,
promovendo um amadurecimento
individual e das relações. Tenho 29
anos de profi ssão e posso garantir
que poucos instrumentos conse-
guem gerar resultados curativos e
efi cazes para tantas situações tão
diferentes”.Denise Maria Tartarotti Postay,
psicóloga, voluntária do projeto
fi m de avaliar se valerá a pena colocá-la frente a frente com a outra parte. Katiane
Boschetti da Silveira, coordenadora da Central de Práticas Restaurativas da Infância
e da Juventude, percebe que muitas pessoas têm difi culdade em compreender que
preparar o Círculo demanda tempo. “Às vezes é necessário realizar vários pré-
-círculos, antes de promover um Círculo com todos os envolvidos”, explica.
Em algumas situações, depois do pré-círculo, chega-se à conclusão de que ainda não
é o momento de reunir aquele grupo de pessoas, que algo mais precisa ser feito antes
disso, ou até que a reunião geral não será necessária. “Por exemplo, uma briga
entre adolescentes com soqueiras. Os pais já estavam se ameaçando. Eu precisava
estar segura de que no espaço do Círculo não iria acontecer nada. Nos pré-
-círculos outras pessoas envolvidas foram indicadas, por fi m precisei fazer sete
pré-círculos. Para ter qualidade, esse trabalho demanda tempo de preparação”,
explica Katiane. “Para você sentar em um Círculo e fazer com que as pessoas
se abram é preciso criar um relacionamento, criar valores, estabelecer limites...
depois se fala do problema”, descreve.
Paulo Moratelli, coordenador da Central Judicial de Pacifi cação Restaurativa
concorda que o pré-círculo é sempre importante para avaliar interesses,
disponibilidade e segurança do procedimento e se o encontro vai ser produtivo.
“Uma das coisas que aprendemos é que não devemos pular etapas. Isso
comprometeria todo o processo. Muitos casos terão uma condução melhor
e serão mais resolutivos se as pessoas tiverem tempo para absorver o que
aconteceu. Assim elas terão mais clareza do que estão fazendo no Círculo”,
justifi ca Moratelli. O psicólogo defende que o que pode parecer uma demora
no atendimento é na verdade uma medida de precaução para fazer com que o
Círculo seja mais rico e mais efetivo.
Kay Pranis afi rma que, embora tome tempo para construir relacionamentos no
Círculo, no fi nal, esta aparente perda de tempo poderá render maior efi ciência, pois
a saúde dos relacionamentos é a base para criar soluções efi cazes e sustentáveis.
65Círculos de Paz
“O que me envolveu desde o
início foi perceber que era muito
resolutivo. Muitas vezes envolver
as mesmas pessoas da rede em
reuniões não resolve as coisas
por um motivo ou por outro.
Eu percebi que no Círculo essas
mesmas coisas se resolviam, muito
por causa do objeto da palavra que
permite que todos falem, equilibra
as vozes. Como as perguntas tam-
bém são dirigidas e objetivas, as
resoluções são combinadas, e não
impostas. No Círculo restaurativo,
além de obter informações, as pes-
soas podem conversar sobre seus
sentimentos e tudo que passaram
e estão passando. Eu sei que isso
será muito mais efi caz, efi ciente e
efetivo para essas pessoas do que
apenas conversar”.
Paulo Moratelli,psicólogo, coordenador da CentralJudicial de Pacifi cação Restaurativa
A Justiça Restaurativa vem da Justiça Criminal e propõe dar atenção à vítima. Se a
vítima tiver a ganhar com o Círculo, tendemos a realizá-lo”, avalia o psicólogo.
Katiane Boschetti, coordenadora da Central de Práticas Restaurativas da Infância e
da Juventude relata que busca encontrar o que as pessoas têm em comum. “Tento
criar empatia. Quando se conhece outro ser não se quer mais feri-lo. O resultado
é permanente”, afi rma. “Todo processo envolve signifi cado e pertencimento.
Se as pessoas não se sentem parte, a coisa não funciona. Por isso o Círculo funciona,
todo mundo ajuda a controlar o grupo. A decisão tomada é fruto da participação de
todos”, completa Moratelli.
Para Kay Pranis, no cerne dos Círculos está a importância de reconhecer o impacto
de nosso comportamento sobre os outros, bem como a interconexão de nossos
destinos. “O mal praticado contra um é um mal para todos. O dano de um é um
dano para todos. O bem praticado a um é um bem para todos”, afi rma. Kay explica
que o Círculo é um espaço distinto porque convida seus integrantes a entrarem em
contato com o valor de estarem profundamente ligados entre si. O Círculo incentiva
as pessoas a deixarem cair as máscaras e defesas que normalmente usam para criar
uma distância em relação aos outros.
Kay diz ainda que o Processo em Círculo se baseia num conceito simples: pelo fato
de todos desejarem ter um bom relacionamento com os outros, quando se cria
um espaço respeitoso e refl exivo, as pessoas conseguem encontrar um terreno em
comum, vencer a raiva, a dor e o medo, e por fi m chegar a uma condição em que o
cuidado mútuo é natural. No Círculo os integrantes partilham experiências pessoais
de alegria e dor, luta e conquista, vulnerabilidade e força, a fi m de compreender a
questão que se apresenta. “Quando alguém conta uma história, mobiliza as pessoas
à sua volta em muitos níveis: emocional, espiritual, físico e mental. Os ouvintes
absorvem as histórias de modo muito diferente do que se estivessem ouvindo
conselhos”, afi rma Kay.
Kay acredita que os Círculos utilizam o forte desejo de se estar ligado a outros de
uma forma positiva como plataforma para desenvolver relacionamentos. “Isso
possibilita às pessoas explorarem as questões de modo mais profundo, o que resulta
afi nal em soluções mais poderosas para problemas ou confl itos difíceis”, afi rma.
Para Paulo Moratelli, o Círculo proporciona a compreensão de que é impossível
ter total razão, ou conseguir que as coisas sejam 100% como se quer. “A forma
de resolução dos confl itos é o consenso. Isso é essencial para o Círculo. Quando
conseguimos mostrar para as pessoas que raramente se consegue ganhar tudo e que
às vezes devemos abrir mão de algo em nome de um bem maior... a paz passa a ser
possível”, explica Moratelli.
Caxias da Paz66
Círculos não fazem milagres
O coordenador da Central Judicial de Pacifi cação Restaurativa e a coordenadora
da Central de Práticas Restaurativas da Infância e da Juventude alertam para a
necessidade de compreender que o Círculo de Construção de Paz pode não ser
adequado para resolver certos tipos de problemas. “Não vamos dar conta de uma
criança que tem transtornos psicológicos, por exemplo. Podemos fortalecer e
organizar a família, mas é uma questão de saúde mental”, explica Katiane. Ela cita
também que casos que envolvem dependentes químicos não têm apresentado bons
resultados nos Círculos. “A drogadição vai muito além da vontade da pessoa em
mudar. Então essas duas questões (saúde mental e dependência química) é que não
estão ao nosso alcance. O Círculo não é uma varinha mágica”, explica a pedagoga.
Moratelli afi rma que, para conseguir resultados em uma situação de
dependência psíquica e física de drogas, é necessário mudar todo o entorno
social da pessoa. “Isso é um trabalho gigantesco, e sem isso não há solução.
Estamos refl etindo profundamente sobre isso, mas ainda não temos um caso
feliz para contar”, lamenta o psicólogo.
Outro grande desafi o para facilitadores e coordenadores são situações em que o
Círculo revela algum crime. “Temos que ter muito cuidado quando, por exemplo,
nos deparamos com uma situação de abuso sexual intrafamiliar. Não podemos
permitir que essas pessoas voltem a conviver. É preciso encaminhar a situação
para medidas protetivas judiciais”, afi rma Moratelli. Susana Córdova Duarte,
coordenadora da Central Comunitária de Práticas Restaurativas, compartilha
da convicção do psicólogo. “Não podemos nos omitir: se tivermos que passar
um caso para a rede, não podemos fugir a essa responsabilidade. Se o Círculo
revela uma situação de violência grave, temos o dever de comunicar à rede
socioassistencial”, afi rma Susana.
“Quando as pessoas partilham
histórias de dor e erros, e
deixam cair camadas protetoras
revelando-se como seres humanos
vulneráveis e batalhadores, nós
nos identifi camos mais com essas
pessoas. Fica muito mais difícil
manter distância daquele outro e
deixar de sentir a ligação existente
em função da humanidade comum
que nos une”. Kay Pranis
67
Kay Pranis avalia processode implantação de
JR em Caxias do Sul
Entrevista
Referência mundial em Círculos de Construção de Paz mostra-se impressionada com a amplitude da
utilização das práticas restaurativas na cidade
68Caxias da Paz
A entrevista concedida pela referência mundial em Círculos de Construção
de Paz, Kay Pranis, ao Núcleo de Justiça Restaurativa de Caxias do Sul* foi
realizada em novembro de 2013. De Washington D. C. (EUA), Kay avaliou o
processo de adoção da Justiça Restaurativa como política pública na cidade, falou
sobre sua compreensão a respeito do ser humano e do potencial da aplicação dos
Círculos de Construção de Paz como instrumento de pacifi cação social:
Núcleo: Faz um ano que o Núcleo de Justiça Restaurativa começou a operar aqui em
Caxias. Você veio várias vezes promover formações de facilitadores. Como você avalia a
evolução do que está sendo realizado aqui em Caxias do Sul?
Kay: Eu falo muito sobre o que está sendo feito em Caxias quando eu dou
treinamentos por aqui (EUA). Acho incrível que faça apenas três anos desde
a primeira vez que eu estive em Caxias do Sul para falar sobre Círculos de
Construção de Paz. É impressionante ver o desenvolvimento do projeto em
tão pouco tempo e constatar o número de pessoas envolvidas e engajadas em
realizar Círculos. Eu acho tudo isso maravilhoso. Acredito que será um modelo
para outras cidades, e isso inclui cidades norte-americanas – o que me deixa
muito animada!
Núcleo: Ao ouvir falar da Justiça Restaurativa pela primeira vez, algumas pessoas
resistem à ideia de que ela possa funcionar no Brasil. O argumento é que o tipo de
violência que enfrentamos aqui é muito pior do que, por exemplo, nos Estados Unidos,
ou na Nova Zelândia (países que têm aplicado a Justiça Restaurativa), então isso não
vai funcionar para o Brasil…
Kay: Quanto mais violenta for a situação, quanto mais complicados forem os
problemas é exatamente onde temos que promover uma mudança maior na
cultura de resolução de confl itos. O processo do Círculo é uma ferramenta para
criar transformação social. Então eu acho que o Brasil vai se benefi ciar mais
ainda do que os Estados Unidos e a Nova Zelândia, por exemplo. As expressões
de violência de vocês podem ser mais intensas que as que enfrentamos aqui; os
problemas podem se manifestar de formas diversas, mas a natureza humana é a
mesma. As possibilidades positivas fundamentais dos Círculos permanecem. Esse
tipo de processo tem sido usado por nações em circunstâncias mais violentas que
o Brasil, por exemplo em Serra Leoa, na África, onde as comunidades tiveram
que receber e reintegrar os garotos-soldados que haviam feito coisas horríveis.
69Entrevista
Existem também algumas semelhanças entre os Estados Unidos e o Brasil: ambos
lidam com uma história de escravidão e com a desigualdade econômica. Somos
dois países vibrantes e criativos. Se a Justiça Restaurativa tem produzido resultados
surpreendentes aqui e em Serra Leoa, isso signifi ca que o mesmo pode acontecer
em qualquer lugar do mundo, inclusive no Brasil.
Núcleo: Você afi rma que os Círculos podem ser aplicados em qualquer situação,
independente do nível de violência ou do crime que tenha sido cometido?
Kay: Sim. Não importa que a situação seja muito violenta. Isso pode signifi car
que o processo seja mais demorado. Quanto mais violenta a situação, mais
devagar e cautelosamente você precisa proceder, mas as ideias e propósitos
fundamentais não mudam.
Núcleo: Recentemente um profi ssional que trabalha com adolescentes infratores em
Caxias soube que o caso seria tratado por meio de práticas restaurativas e lamentou:
“que pena que tal adolescente foi encaminhado para procedimento restaurativo, porque
ele não tem solução”. Como engajar os servidores, ou passar-lhes segurança sobre os
métodos restaurativos?
Kay: As pessoas viveram a vida toda de outra forma e elas não mudam da noite
para o dia. O processo circular assume como princípio fundamental que todos
nós nascemos com o impulso de ter bons relacionamentos com os outros e que
todos nascemos com o conhecimento do que é necessário para que isso aconteça.
O que acontece é que, na verdade, as pessoas têm experiências de vida que as
desconectam desta visão. O nosso sistema atual nos ensina a acreditar que algumas
pessoas são ruins. Somos convencidos de inúmeras formas que precisamos ferir os
outros quando eles nos ferem. Se você tem pessoas céticas em meio à comunidade,
em primeiro lugar você não as julga. Você respeita que essa é a forma como
elas estão se sentindo naquele momento. A partir disso, você procura criar
oportunidades para que elas participem dos processos circulares. Ao participar
dos Círculos, descobrimos que a principal necessidade do ser humano é
pertencer de uma forma positiva a outro ser humano, então tentamos apelar a
isso. Então é nisso que focamos. No processo circular contam-se histórias: isso
humaniza a todos e essas classifi cações de bom ou mau acabam se dissipando,
porque a pessoa pode ter feito uma coisa ruim, mas aquilo não é tudo que ela é.
O Círculo proporciona a visão integral do ser humano. Temos que dar ao cético
a oportunidade de participar de um Círculo e ver como o processo funciona e
o que acontece. Não signifi ca tentar convencer. Quando as pessoas são forçadas
70Caxias da Paz
a fazer algo, não funciona; elas precisam voluntariamente experimentar alguma
coisa que contraponha a sua crença. Se elas acreditam que aquele jovem é muito
mau, você cria oportunidade para que vejam que o jovem já fez algo bom. Outro
ponto a ser considerado é que muitas pessoas em sua raiva e no seu julgamento
estão falando por si. Então é importante criar espaços onde funcionários do
sistema tenham a oportunidade de experimentar os Círculos para tratar de si, de
seus relacionamentos. É preciso proporcionar-lhes um lugar onde eles tenham
plena liberdade para falar, onde todos estejam escutando cuidadosamente o que
eles têm a dizer. Muitas pessoas em suas vidas e no seu trabalho sentem que nunca
são ouvidas. Precisamos criar essas oportunidades. Essas são algumas estratégias
para trabalhar no nível individual. É um processo que precisa ser promovido com
muito cuidado. Devemos pensar em como promover essa mudança e não apenas
dizer para as pessoas que elas estão erradas. O ideal é criar espaços para que as
pessoas experimentem mudanças em suas vidas…
Núcleo: Basicamente os Círculos são fundamentados na ideia de que as pessoas são boas?
Kay: Bem… os Círculos assumem que as pessoas têm o potencial para o bem
e para o mal. Não estamos tentando negar o mal e as coisas horríveis que as
pessoas fazem. Mas todos também têm o potencial para o bem. A pergunta é:
qual destes dois potenciais vamos alimentar? O que nós vamos fazer nas nossas
interações com os outros? O nosso contato com os demais nutre o potencial
positivo do ser humano ou o negativo? Com certeza as culturas modernas tendem
a nutrir o negativo. A competição, as formas com que retaliamos as coisas que
não gostamos, a desconexão, o egoísmo… Tem muito potencial negativo sendo
operado no nosso sistema… Nós podemos mudar isso. Nós podemos ser mais
intencionais ao incentivar o potencial positivo nas pessoas e essa é a proposta dos
Círculos. Ser intencional na procura do melhor nas pessoas e ajudá-las a encontrar
o melhor em si. As duas principais necessidades do ser humano são: signifi cado e
pertencimento. Os seres humanos farão qualquer coisa para tentarem se afi rmar
ou pertencer. Muitos dos comportamentos que causam dano são tentativas de
suprir a necessidade de pertencer e de ter signifi cado na vida. Eles sentem que não
têm lugar, que não têm voz para ninguém… e tentarão criar isso de uma forma
negativa se não tiverem a oportunidade de fazê-lo positivamente. O Círculos
promovem um senso positivo de signifi cado e pertencimento. Se promovermos
essas sensações de signifi cado e pertencimento de uma forma positiva, então
menos seres humanos se envolverão em comportamentos violentos e danosos para
os seus semelhantes.
71Entrevista
Núcleo: Este é um momento chave para o Núcleo de Justiça Restaurativa de Caxias do
Sul. Estamos estabelecendo processos, fi xando procedimentos, elaborando questionários
de avaliação… O que você sugere para mantermos um trabalho duradouro e efi caz em
Caxias do Sul e não cairmos na burocratização?
Kay: Algumas coisas são muito importantes para manter um projeto de longo
prazo. Antes de mais nada, o trabalho tem que ser fortemente fundamentado em
valores. Precisamos falar sobre os valores frequentemente. O formato do Círculo
e os procedimentos padrão não podem ser usados apenas para resolver problemas,
mas precisam ser usados para criar relacionamentos. Devemos incentivar que
eles aconteçam em todos os lugares: em meio à comunidade, entre as famílias,
vizinhos… Essa ideia de conversarmos de forma signifi cativa precisa tornar-se
uma norma em nossas vidas. Uma vez que isso se solidifi que como um padrão
de ação, você vai recorrer a esse tipo de conversa nas situações mais difíceis. Não
podemos fazer Círculos sempre que aconteça algo horrível. Se o processo for
utilizado em todos os tipos de contato e na construção de relacionamentos,
vamos aumentar nossa capacidade de conversar pacificamente, mesmo
envolvidos em uma circunstância terrível. Precisamos ter muitas conversas
sobre equilíbrio. O que é equilíbrio e como queremos nos posicionar no mundo.
Um outro aspecto que precisa ser observado é o enganjamento organizado do
cidadão comum. As pessoas precisam sentir-se responsáveis pela qualidade de
vida da sua comunidade. Cidadãos comuns precisam acreditar que eles podem
fazer a diferença e que eles têm a responsabilidade de se envolver. Temos que
“desprofi ssionalizar”. Temos que entender que essa transformação não é realizada
apenas pelo agente social ou pelos funcionários do sistema judiciário: é dever
de cada cidadão. As pessoas precisam trocar informações sobre como o seu
comportamento afeta os outros. É preciso estrutura no sistema formal, mas essa
estrutura deve estar sempre envolvendo pessoas da comunidade. Isso não é fácil.
Ninguém pode dizer o que funciona para uma comunidade na qual não está
inserido. Cada comunidade precisa descobrir por si.
* Entrevista e tradução livre: Caroline Pierosan
73
Fundação Caxias aproxima sociedade civil da JR
Entidade quer conscientizar empresários de que a promoção da Cultura de Paz é, também, responsabilidade do setor. Fundação pretende
manter gestão fi nanceira do Núcleo de JR
Sociedade Civil
74Caxias da Paz
O compromisso formal com a gestão fi nanceira do Núcleo de Justiça
Restaurativa de Caxias do Sul foi assumido pela Fundação Caxias do Sul
em novembro de 2012. Entretanto, a entidade esteve envolvida em todo
o processo de elaboração do projeto, que começou em 2010. O Vice-
-Presidente da Fundação, Samuel Avilla, então coordenador de Projetos
da Secretaria Municipal de Segurança Pública e Proteção Social, no período
2010-2012 participou da redação do Termo de Cooperação e posteriormente
do convênio entre a Fundação Caxias, AJURIS, Universidade e Prefeitura de
Caxias do Sul. “O Estado geralmente chega depois que o crime já aconteceu,
até por sua função legal. Como a Secretaria Municipal de Segurança Pública e
Proteção Social de Caxias trabalha fortemente a prevenção, achamos por bem
investir na Justiça Restaurativa”, explica Avilla.
A Fundação é considerada o braço social da Câmara de Indústria e
Comércio de Caxias do Sul e da Câmara de Dirigentes Lojistas da cidade.
“Eu entendo que o chamamento dos empresários é fundamental. Todo
mundo reclama da violência, mas deixam tudo para a Polícia, o Ministério
Público e a Justiça. Precisamos participar de forma ativa nessa questão, e
a Justiça Restaurativa possibilita isso, além de ser uma ótima estratégia de
prevenção à criminalidade. Apoiar essa ideia através da Fundação é uma
forma de trazer a classe empresarial para a discussão e aplicação do projeto”,
justifi ca Avilla.
Paulo Poletto, atual Presidente da Fundação Caxias, afi rma que a entidade se
destaca pela capacidade de articulação através de ações conjuntas com todos
os setores da sociedade. “Sabíamos que poderíamos ser úteis neste processo de
implantação da Justiça Restaurativa como política pública em Caxias do Sul”,
explica Poletto, que também integra o Conselho Gestor do Núcleo de JR.
A Fundação Caxias do Sul recebe a verba destinada pela Prefeitura
para o Núcleo de Justiça Restaurativa, administra os recursos e realiza o
pagamento dos funcionários envolvidos além de ter a responsabilidade
fi scal e trabalhista perante o governo. A decisão de desenvolver o trabalho
gratuito de gestão fi nanceira para o Núcleo foi tomada com o intuito de
conscientizar a classe empresarial de que promover uma Cultura de Paz na
cidade é, também, responsabilidade do setor. “Queremos mostrar que a
Paz é um bem comum e possível. Desejamos estimular que a convivência
pacífi ca comece nas famílias e comunidades. Isso vai refl etir lá nas empresas,
nos locais de trabalho”, argumenta Poletto.
“Se queremos equipes fortes e
produtivas, precisamos entender
que todos estão interligados,
dependem e precisam da paz em
seus lares, na comunidade. Isso
benefi cia toda a sociedade”.
Paulo Poletto,Presidente da Fundação Caxias do Sul
75Sociedade Civil
Poletto reassumiu a Fundação em junho de 2013, mas integra o grupo
desde o ano 2000. Para ele, o setor empresarial deve ser o primeiro a
pensar em segurança pública, porque os empresários sofrem diretamente
as consequências da insegurança em suas empresas. “Um funcionário que
é pai, e chega para trabalhar com situações de confl ito dentro de casa, com
um fi lho preso ou envolvido com o crime: qual o nível de produtividade
que essa pessoa vai ter?”, questiona.
O Presidente da Fundação acredita que, se a classe empresarial investir em
uma sociedade de paz, em melhorar a qualidade de vida das pessoas que
compõem a comunidade, vai sentir os refl exos positivos em suas empresas.
“Se queremos equipes fortes e produtivas, precisamos entender que
todos estão interligados, dependem e precisam da paz em seus lares e na
comunidade. Isso benefi cia toda a sociedade”, conclui.
“A Fundação Caxias do Sul tem
integrado o grupo que compõe a
Justiça Restaurativa com o intuito
de aproximar a classe empresarial
de nossa cidade de uma proposta
que vai além de discutir segurança
pública. Queremos auxiliar na
adoção da metodologia da
Justiça Restaurativa em Caxias
do Sul, buscando estratégias
de prevenção, de modo que as
soluções cheguem antes do crime
e/ou do delito”.
Paulo Poletto, Presidente da Fundação Caxias do Sul
Continuidade na GestãoA Fundação Caxias do Sul foi fundada em 1969 e se autointitula o “braço
social dos empresários caxienses”. A Fundação tem como característica
o desenvolvimento de ações e Programas Socioassistenciais, Ambientais,
Educativos e de Inclusão Social.
Como entidade social sem fi ns lucrativos, com o objetivo de centralizar
o recolhimento e a distribuição de donativos às famílias necessitadas,
a Fundação Caxias ajuda na promoção da Justiça entre a comunidade
caxiense. “A missão da Fundação é promover a qualidade de vida em Caxias
do Sul. Acreditamos que não há qualidade de vida na segregação e na
punição desumana das cadeias e dos centros de detenção de menores. Toda
a desavença que separa as pessoas torna suas vidas piores”, explica Poletto.
“Reconciliação e convivência pacífi ca também fazem parte de uma vida com
qualidade”, pontua ele.
O Presidente da Fundação Caxias assegura que a entidade tem interesse em
permanecer vinculada ao Núcleo de Justiça Restaurativa de Caxias do Sul.
“Somos defensores dessa área e queremos continuar. Queremos permanecer
enquanto o projeto tenha vida”, projeta Poletto.
76Caxias da Paz
Academia
77
UCS planeja pesquisa e ensino de Justiça Restaurativa
Em 2014 devem ser desenvolvidos cursos de extensão e pesquisa científi ca, com o intuito de produzir publicações internacionais sobre a experiência pioneira da JR como
Política Pública em Caxias do Sul
78Caxias da Paz
A Universidade de Caxias do Sul sedia a Central de Práticas
Restaurativas da Infância e da Juventude. A ideia de ceder o espaço surgiu a
partir do envolvimento de alguns docentes com a JR. E não se trata apenas
de espaço físico, mas principalmente espaço institucional e acadêmico.
A primeira entusiasta do projeto foi a Professora Fernanda Schmidt, então
Diretora do Curso de Direito, que incentivou o projeto e apoiou a professora
Remi Soares, uma das primeiras a buscar conhecimento e capacitação na
matéria. Professora de Direito Internacional, Remi também é acadêmica do
curso de psicologia e foi a primeira coordenadora designada para gerenciar
o projeto junto à Faculdade. “Remi começou a participar dos Círculos de
Construção de Paz desde 2010, principalmente através de casos judicializados
atendidos pelo Posto do CEJUSC (Centro Judiciário de Solução de Confl itos
e Cidadania) que funciona na UCS. A partir daí, o corpo docente teve
conhecimento da fi losofi a e se envolveu com o movimento”, explica Cláudia
Hansel, professora de Direito da UCS e coordenadora do Posto do CEJUSC.
Em 2011, quando o projeto do Núcleo de Justiça Restaurativa de Caxias do
Sul começou a ser elaborado, a Universidade decidiu se envolver efetivamente
com a proposta cedendo o espaço físico e os recursos de infraestrutura hoje
utilizados pela Central de Práticas Restaurativas da Infância e da Juventude,
que funciona no prédio do Direito, junto ao Posto do CEJUSC.
A intenção da UCS é implementar cursos de extensão a partir do primeiro
semestre de 2014 e promover pesquisa científi ca sobre as práticas dos
Círculos de Construção de Paz. “Estamos elaborando um projeto de pesquisa
interdisciplinar que envolve professores do Direito, da Psicologia, da Biologia
e da Sociologia. Queremos diagnosticar os efeitos da prática dos Círculos
nas comunidades escolares e produzir publicações internacionais sobre a
experiência brasileira com JR”, explica Cláudia.
Outra meta da Universidade para o próximo ano é transmitir conhecimentos
sobre JR para os acadêmicos de Direito. “Precisamos desmistifi car a Justiça
Restaurativa para os alunos do Direito de Caxias do Sul. Muitos têm a ideia
errada de que estamos acabando com a sanção penal, e não é nada disso.
Queremos mudar esta concepção, mostrar a importância da prevenção à
violência e promover a Cultura da Paz. Sabemos que as medidas punitivas
não têm cumprido o propósito de restaurar as pessoas, então o Direito precisa
buscar um novo caminho”, conclui a coordenadora do Posto do CEJUSC.
79Academia
O Diretor do Curso de Direito da Universidade de Caxias do Sul, professor José
Carlos Monteiro, considera que a mediação de confl itos e a ótica restaurativa
são caminhos inevitáveis para a sociedade hoje. “A FIERGS assinou com a
CIC um convênio criando a mediação de confl itos entre indústrias, comércio e
empresas de serviços. Se até na área econômica isto já está acontecendo, é claro
que no âmbito social é imprescindível. Com a demora dos processos no sistema
judiciário, a sociedade toda caminha para a mediação”, explica Monteiro.
Ele salienta que a Universidade, além de abrigar uma das Centrais, também
participa ativamente da iniciativa integrando a Comissão Executiva do
Conselho Gestor. “Vamos promover os cursos de extensão, no futuro
pretendemos colocar uma disciplina eletiva de JR no curso de Direito e
planejar uma pós-graduação nesta área. Também queremos oferecer estágios
em JR na Central Restaurativa da UCS para os alunos do Direito”, afi rma o
Diretor.
Monteiro avalia que até então a repercussão social da implantação da Central
de Práticas Restaurativas da Infância e da Juventude na UCS é muito positiva.
“Eu percebo que a população se sente segura em saber que temos essa
iniciativa na Universidade de Caxias do Sul”, comemora o Diretor.
De acordo com o Vice-Reitor da UCS, José Carlos Köche, é importante
que a Central funcione junto à Universidade. “A negociação e a cultura do
diálogo deverão sempre sobrepor-se à cultura do confl ito. Produzir a paz
em vez da pena é ganho para todos”, explicou. Köche destacou ainda que,
apoiando a Central, a UCS cumpre um dever para com a sociedade e para
com a academia, visto que a Central funciona como laboratório do Centro de
Ciências Jurídicas.
81
Município assume a JR como Política Pública de Pacifi cação Social
Prefeito e Secretário de Segurança reafirmam a importância de uma Lei Municipal para que a Justiça Restaurativa se torne prática permanente na cidade e
asseguram suporte ao projeto
Poder Executivo Municipal
82Caxias da Paz
Para a Administração Pública Municipal a avaliação do primeiro ano do
convênio entre Prefeitura de Caxias do Sul, UCS, Fundação Caxias e Judiciário
para sustentar o Núcleo de Justiça Restaurativa na cidade é positiva. “É um
projeto-piloto. Somos pioneiros no Brasil, não temos referência nacional para
compararmos o que vem sendo feito. Como estamos criando tudo novo,
precisamos de mais tempo para avaliar profundamente a atuação da Justiça
Restaurativa na sociedade caxiense, mas, até então, estamos satisfeitos e
entusiasmados”, afi rma Alceu Barbosa Velho, Prefeito de Caxias do Sul.
O Prefeito afi rma que durante a atual gestão o governo tem intenção de
sustentar o Núcleo de Justiça Restaurativa continuamente. “Desde o primeiro
momento em que tive conhecimento dos princípios da Justiça Restaurativa,
ainda enquanto Deputado Estadual, planejei que, se um dia me tornasse
Prefeito de Caxias do Sul, eu traria essa proposta para a cidade”, conta. “Por
isso acredito que o projeto de lei que vem sendo elaborado pelas lideranças do
Núcleo de JR tem grande potencial de aprovação”, afi rma Barbosa Velho.
O Diretor-Geral da Secretaria Municipal de Segurança Pública e Proteção Social
e responsável pela gestão do Programa, José Francisco Barden da Rosa,
assegura a renovação do convênio e a continuidade do projeto em 2014.
O acordo executado em 2013 contou com subsídios de R$ 267 mil reais.
Além de fi nanciar o Núcleo e dispor de servidores para atuarem no programa,
a Secretaria Municipal de Segurança Pública e Proteção Social conta com apoio
de outros setores do Município, como a Secretaria Municipal da Educação e
Programa Municipal de Pacifi cação Restaurativa vem sendo denominado, na comunicação com a
comunidade local, “Caxias da Paz”
83Poder Executivo Municipal
a Fundação de Assistência Social (FAS), e Secretaria Municipal da Saúde, que
designaram profi ssionais do quadro de carreira para atuarem como facilitadores.
Ao fi nal do primeiro ano de atividades, são 13 as pessoas disponibilizadas pela
Prefeitura para atuar no programa, sendo 10 profi ssionais de nível superior e
3 administrativos, alguns do quadro de carreira e outros contratados, uns com
carga horária integral, outros parcial. Diretamente junto ao Núcleo e Centrais
atuam 2 profi ssionais na Coordenação do Núcleo, 2 facilitadores e 1 secretária na
Central Judicial, 3 facilitadores e 1 secretário na Central da Infância e da Juventude,
4 facilitadores e 1 secretária na Central Comunitária. Além desses, profi ssionais das
diversas secretarias e da FAS aplicam práticas restaurativas nos seus locais.
A expectativa é de que, em todas as áreas, os servidores apliquem cada vez mais
os princípios da JR em sua rotina de trabalho. “Estamos capacitando em Justiça
Restaurativa não apenas os nossos, mas também os servidores da Brigada Militar
que atuam no policiamento comunitário. Os 35 novos guardas municipais
que devem começar a atuar no próximo semestre também receberão formação
nesta fi losofi a”, explica o Coronel Roberto Louzada, Secretário Municipal de
Segurança e Proteção Social de Caxias do Sul. “Temos acompanhado com
muito entusiasmo as ações do Núcleo. Ainda não podemos medir a relação
direta dos efeitos das práticas, mas o número de homicídios, que é o principal
dado indicador da violência em uma cidade, caiu. No ano passado foram
registrados 137 crimes deste gênero. Em 2013, acreditamos que vamos terminar
o ano com menos de 100 homicídios em Caxias do Sul”, prevê Louzada.
O Secretário de Segurança também apoia a aprovação da Lei Municipal que
garantirá que a Justiça Restaurativa se torne prática permanente na cidade. “Eu
não vou estar aqui para sempre, o Prefeito também não, então precisamos, nesta
gestão, colaborar para que esta Lei seja criada e aprovada. Queremos deixar este
legado da Cultura da Paz para Caxias do Sul”, afi rma Louzada.
“A participação do Município no embate à violência e a busca de uma Cultura de Paz se faz,
também, por iniciativa arrojada e articulada, procurando novos modelos que funcionem e
produzam resultados alternativos para uma sociedade mais justa e compreensiva. A implantação
de Centrais de Justiça Restaurativa em Caxias do Sul em parceria com o Poder Judiciário é um
projeto de referência como política pública voltada à Pacificação e à Restauração de conflitos,
onde a harmonia, o diálogo e o equilíbrio criam oportunidades e acordos de convergência social.
Nosso comprometimento com o projeto através de um envolvimento objetivo e prático é a nossa
meta. Acreditamos nos princípios e práticas da Justiça Restaurativa e nos resultados para nossa
sociedade, os quais certamente teremos brevemente”. (Roberto Soares Louzada, Secretário
Municipal de Segurança Pública e Proteção Social)
Poder Judiciário
85
Judiciário gaúcho institucionaliza e expande a JR como alternativa
de solução de confl itos
Artigo de Leoberto Brancher, Juiz de Direito
86Caxias da Paz
A construção da Justiça Restaurativa no Rio Grande do Sul é fruto de
um processo histórico, que veio se consolidando na prática e de baixo para cima,
para pouco a pouco ganhar institucionalidade. Desde as primeiras experiências,
iniciadas em 2002 no Juizado da Infância e da Juventude de Porto Alegre, até 2012,
quando a Lei n. 12.594/2012 dispôs sobre a aplicação de medidas restaurativas no
atendimento a adolescentes em confl ito com a lei, ou 2013, quando o Conselho
Nacional de Justiça incluiu a Justiça Restaurativa na política nacional de solução de
confl itos, um longo caminho vem sendo trilhado.
Desde 2005 funcionava experimentalmente uma Central de Práticas Restaurativas
no Juizado da Infância e da Juventude da Capital. O serviço foi ofi cializado por
ato do Conselho da Magistratura em abril de 2010. No fi nal de 2011, avaliada e
aprovada a experiência da capital, a Corregedoria-Geral da Justiça passou a estudar
meios de difundir essas práticas para todo o Estado. Em 2012, a Justiça Restaurativa
foi incluída no Planejamento Estratégico do Tribunal de Justiça, por decisão do
Conselho de Administração. Ato contínuo, o NUPEMEC – Núcleo Permanente de
Métodos Consensuais de Solução de Confl itos aprovou a parceria com a Prefeitura
de Caxias do Sul para que se iniciasse uma nova experiência piloto de implantação
das práticas restaurativas, agora numa concepção ampliada – não mais restrita a um
serviço judiciário voltado à infância e juventude, mas, enquanto tal, abrangendo
todas as áreas de competência. E, mais do que como um serviço judicial, como uma
política pública interinstitucional da qual o Judiciário é mais um dos protagonistas.
Nesse processo foi decisivo não só o apoio institucional do Poder Judiciário, mas
também a contribuição efetiva da Associação dos Juízes do Rio Grande do Sul –
AJURIS, e da sua Escola Superior da Magistratura. Essa combinação de fatores
gerou resultados tão propícios que a introdução da Justiça Restaurativa no Judiciário
do Rio Grande do Sul muitas vezes se entrelaça e, às vezes, até se confunde com a
trajetória da proposta no Brasil.
Por certo muito desses resultados são devidos à responsabilidade social, ao senso de
compromisso institucional e à compreensão de que a novidade restaurativa é tão
promissora que merece ser amplamente socializada. Por isso os magistrados gaúchos
e suas instituições avançam agora na formulação de um modelo organizacional que
permita a expansão e a sustentabilidade das práticas restaurativas em todo o Estado.
Nesse sentido, parte-se do reconhecimento de que o Judiciário não pode mais
absorver e, menos ainda, esgotar em si toda a gama de confl ituosidade social – que
hoje reverte em imensos índices de litigiosidade, sendo o Rio Grande do Sul o
Estado com maior número de demandas judiciais “per capita”. A compreensão
87Poder Judiciário
de que a “função de justiça” não se confunde com a “instituição da justiça”, e
que portanto a missão de pacifi car confl itos pode e deve ser compartilhada entre
diferentes segmentos do Estado e da sociedade civil, é defi nição exemplar assumida
pelo Poder Executivo de Caxias do Sul e retratada neste relatório.
É preciso convir ainda que, se o Judiciário sozinho não haverá de exaurir a missão de
pacifi cação social, demandando para isso o concurso e o protagonismo integrado das
demais políticas públicas, tampouco apenas o Poder Público haverá de dar conta de
tamanha tarefa, por melhor que arregimentadas e articuladas as suas forças.
Necessário portanto que a sociedade civil, por seus mais diversos agrupamentos
associativos, e os cidadãos voluntários se engajem na tarefa de marcarem presença
na pacifi cação dos confl itos ali, onde e quando eles acontecem, em tempo real,
conferindo ao processo uma plasticidade criativa compatível com os desafi os da vida
tais quais eles se apresentam.
E uma inteligência ética e complexa assim não surge por lampejos, senão que se
constrói a partir da experiência vivida e da lição aprendida. Trata-se de uma nova
“ratio” que se constrói pela dedicação ao campo do conhecimento teórico e pela
instauração de comunidades de aprendizagem das práticas, criando oportunidades
para explorar e difundir não somente os novos conceitos, mas sobretudo as novas
competências operacionais relacionadas à facilitação dos confl itos.
Poder Judiciário, Poder Executivo, Sociedade Civil e Academia estão postos aí os
quatro pilares da arquitetura restaurativa sistêmica a que a experiência de Caxias do
Sul se propõe e se desafi a a testar.
POLÍT
ICA JU
DICIÁ
RIA
POLÍTICA MUNICIPAL
Caxias da Paz
Por outro lado, é nossa intenção declarada que possamos seguir um modelo
organizacional que possa ser acolhido e, quanto possível, até mesmo subsidiar
a replicação dessas práticas em todo o País, através da sua integração à política
nacional de solução de confl itos do Conselho Nacional de Justiça – CNJ.
Para isso é preciso ter em vista a Resolução n. 125/2010 do Conselho Nacional de
Justiça (CNJ), que formulou essa política nacional, originalmente com ênfase na
conciliação e mediação, aplicáveis a casos cíveis e de família. Com essa medida, o
CNJ determinou também a criação de Centros Judiciários de Solução de Confl itos
e Cidadania (CEJUSCs) em todas as comarcas, a começar pelas mais populosas.
Inicialmente denominados Centrais de Conciliação e Mediação, seguindo um
modelo que já existia em Porto Alegre desde 2008, os CEJUSCs chegaram às
principais cidades do interior gaúcho – Passo Fundo, Pelotas, Santa Maria e Caxias –
as quatro comarcas de entrância fi nal, em 2011. Em Caxias do Sul, o serviço foi
instalado ofi cialmente em julho de 2011.
Em janeiro de 2013, quando a Resolução do CNJ recebeu uma emenda que,
entre outros aprimoramentos, passou a prever também o uso da mediação penal e
outras práticas da Justiça Restaurativa nos casos judiciais ou extrajudiciais atendidos
pelos CEJUSCs, o Tribunal de Justiça gaúcho já se adiantava a passos largos
nesse caminho. O CEJUSC de Caxias do Sul, em parceria com o Município, a
Universidade de Caxias do Sul e a Fundação Caxias, seria o primeiro do Estado a
oferecer o atendimento mediante as práticas restaurativas.
Estava-se defi nindo aí um modelo organizacional a ser utilizado nas demais
comarcas, a exemplo do que passou a acontecer em Pelotas e, mais recentemente,
também em Porto Alegre, onde o Tribunal de Justiça estuda um plano para que
a Central de Práticas Restaurativas do Juizado da Infância e da Juventude seja
absorvida pelo CEJUSC do Foro da Capital.
Estão dadas aqui as primeiras pinceladas para o desenho de um organograma
tridimensional, idealmente apto a potencializar a atuação integrada e sinérgica de
três vetores de impulsionamento do movimento restaurativo, simultaneamente
como política pública e como movimento social. No eixo vertical, a política
nacional judiciária; no eixo horizontal, as políticas públicas atuantes no âmbito
municipal. E no eixo transversal, dando profundidade e perspectiva, os cidadãos que
se responsabilizam ativamente pela pacifi cação de cada cidade.
88
89
RELATÓRIO DE MONITORAMENTOA Introdução da Justiça Restaurativa
em Caxias do Sul
Ana Caroline Montezano Gonsales Jardim1
1 – Pesquisadora Responsável (Mestre em Serviço Social – PUCRS; professora da Universidade de Caxias do Sul e pesquisadora vinculada ao Grupo de Pesquisas em Ética de Direitos Humanos da PUCRS coordenado pela professora Beatriz Aguinsky).
Anexo
90Caxias da Paz
1. Apresentação No Município de Caxias de Sul2 (RS), a Justiça Restaurativa está sendo
desenvolvida a partir de um conjunto de iniciativas que envolvem o Poder
Público Municipal, o Poder Judiciário, a Universidade de Caxias do Sul
(UCS), a Fundação Caxias e a comunidade com o objetivo da pacifi cação de
confl itos e violências. Assim, construiu-se um projeto inicial, o qual está em
fase de implementação e é executado pelo Poder Público Municipal, através
da Secretaria Municipal de Segurança Pública e Proteção Social, em parceria
com a Fundação Caxias3.
O projeto é fruto de convênio entre o Poder Judiciário e a Prefeitura de Caxias
do Sul. Conforme Leoberto Brancher, Juiz responsável, “[...] o convênio trata-se
da primeira Política Pública de Pacifi cação Social fundada com princípios e
práticas de Justiça Restaurativa com colaboração do Poder Judiciário”.
A Segurança Pública, conforme o artigo 144 da Constituição Federal de
1988, é “[...] dever do Estado, direito e responsabilidade de todos, [e] é
exercida para a preservação da ordem pública e da incolumidade das pessoas
e do patrimônio” (BRASIL, 1988, s/p). Nesse sentido, as ações em Justiça
Restaurativa reforçam o papel desta, sobretudo no âmbito das ações locais,
objetivando garantir à população “[...] programas de acesso à justiça e a
mecanismos de resolução pacífi ca de confl itos” (GUINDANI, 2004, p. 82).
A interface entre Segurança Pública e Justiça Restaurativa corresponde a
“[...] um direito social à coletividade, favorecendo, como não poderia deixar
de sê-lo, uma maior participação da cidadania” (PAZINATO, 2012, p. 97).
Neste contexto, destaca-se o papel das atividades de monitoramento das
práticas de Justiça Restaurativa, as quais – no Município de Caxias do Sul –
fazem parte do projeto em seu escopo inicial e decorrem da aplicabilidade
do conhecimento socialmente produzido, especialmente no que se refere a
sua contribuição para a qualifi cação das ações.
A pesquisa com foco no monitoramento em Justiça Restaurativa está
respaldada pela ONU, uma vez que:
O Conselho Econômico e Social da ONU, ao defi nir “Princípios Básicos para Utilização de Programas de Justiça Restaurativa em
2 – O Município de Caxias do Sul, localizado na Região da Serra Gaúcha, conta atualmente com uma população de 435.564 habitantes, em uma área de 1.644,296 km2, possuindo uma densidade demográfi ca de 264,89 habitantes por km2. Fonte: Instituto Brasileiro de Geografi a e Estatística – IBGE.
3 – A Fundação Caxias do Sul “[...] é uma entidade social sem fi ns lucrativos, fundada em dezembro de 1969, por um grupo de empresários caxienses com o objetivo de centralizar o recolhimento e distribuição de donativos às famílias necessitadas, desenvolvendo assim a MISSÃO de Promover a Qualidade de Vida em Caxias do Sul. A partir deste trabalho passou a desenvolver Ações e Programas Socioassistenciais, Ambientais, Educativos e de Inclusão Social”. Fonte: <http://www.fundacaocaxias.org.br/institucional>.
91Anexo
Matéria Criminal”, encoraja os Estados-membros, em cooperação com a sociedade civil, a promoverem pesquisas e avaliações sobre programas de justiça restaurativa. A importância de pesquisas e avaliações na área, segundo a Resolução 2002/12, de 24.7.02, estaria relacionada à possibilidade de aquilatar-se em que medida os programas avaliados alcançam resultados restaurativos. (AGUINSKY et al., 2008, s/p)
Entretanto, é notório que no Brasil tal prática de monitoramento ainda
ocorre de modo incipiente: “[...] são recentes os estudos e avaliações sobre
esses programas” (AGUINSKY et al., 2008, s/p).
Tendo por base tais considerações, entende-se que o monitoramento implica
não apenas examinar o impacto dos resultados, mas, sobretudo, a partir de
sua feição longitudinal, acompanhar o processo que está em curso. Nesse
sentido, a abordagem desenvolvida privilegiou a observação participante e
o acompanhamento de todo o projeto, no período de novembro de 2012 a
outubro de 2013, propondo-se alcançar a processualidade da experiência.
Destarte, este documento tem por fi nalidade a apresentação de dados
compilados e analisados durante o período mencionado.
1.2 Apresentando a pesquisa
“[...] a realidade é uma construção social da qual o investigador participa”
(MARTINELLI, 1999, p. 35).
A proposta do monitoramento da Justiça Restaurativa em Caxias do Sul foi
projetada desde a construção do projeto, de modo que as ações referentes
a esta pesquisa passaram a ser executadas com a assinatura do convênio.
A participação da pesquisadora teve seu início na reunião de planejamento
geral do projeto (dezembro de 2012), na qual estavam presentes todos os
atores sociais envolvidos na sua construção e implementação.
O percurso da pesquisa4 objetivou acompanhar a experiência de
implementação, caracterizando-se por seu recorte longitudinal, consoante
as referências de Selltiz, Wrightsman e Cook (2004), considerando que o
projeto está em seu primeiro ano de execução.
4 – Registra-se que, na etapa de coleta de dados, inseriu-se na pesquisa a acadêmica do Curso de Serviço Social da UCS, Carla Graziela Brambatti Batista.
92Caxias da Paz
Orientando-se por uma abordagem sistemática e continuada na coleta de
informações, a pesquisa se caracterizou como uma abordagem qualitativa
do tipo intencional e exploratória5, utilizando, em algumas etapas,
dados quantitativos. Na fase exploratória, o levantamento consistiu na
identifi cação dos dados necessários à pesquisa (CRESWELL, 2010),
proporcionando levantamento quantitativo e interpretação qualitativa.
Sob o ponto de vista metodológico se salienta que os procedimentos
adotados conformam o que Minayo (1992) denomina de “prática exercida na
abordagem da realidade”. Neste percurso a pesquisa, do tipo monitoramento,
foi trabalhada a partir de sua fi nalidade, que consiste no acompanhamento da
implementação de uma política social, programa ou projeto.
Conforme plano de trabalho, construiu-se a seguinte delimitação de
pesquisa: estudo longitudinal sobre o processo de implementação da Justiça
Restaurativa no Município de Caxias do Sul, no período de novembro de
2012 a outubro de 2013. O objetivo foi estabelecido nos seguintes termos:
investigar quais as repercussões da aplicação de princípios e referenciais
teórico-metodológicos da Justiça Restaurativa no Município de Caxias do
Sul, com vistas a subsidiar o aprimoramento destas iniciativas enquanto
política pública de pacifi cação social.
1.2.1 Procedimentos metodológicos
Diferentes procedimentos metodológicos – conforme síntese apresentada no
QUADRO 1 – foram utilizados, agregando-se coleta de dados primários e
secundários. Os dados primários referem-se àqueles produzidos no percurso
da pesquisa e foram obtidos por meio da observação participante6 e do
diálogo refl exivo com os diferentes atores envolvidos.
Os dados secundários se relacionam com a pesquisa documental
de informações já existentes, a partir da sistematização e análise de
documentos, tais como os instrumentos de registros utilizados pelas equipes
que desenvolvem práticas nas instituições envolvidas. Assim, o conteúdo da
pesquisa documental foi composto por textos já produzidos e que serviram
de matéria-prima ao exercício de análise.
5 – Marconi e Lákatos (2003) referenciam a pesquisa do tipo intencional como sendo aquela em que o pesquisador se interessa pela opinião, ação e intenção que determinada realidade apresenta.
6 – A observação participante “[...] não é um simples olhar, mas destacar de um conjunto aquilo que é específi co, prestando atenção em suas características, abstrair de um contexto suas dimensões singulares” (PRATES, 2003, p. 08).
93Anexo
QUADRO 1 – Procedimentos metodológicos adotados durante o percurso da pesquisa
ATIVIDADE
Análise documental: sistematização e análise de informações documentais.
Observação participante (MINAYO, 1992; PRATES, 2003) no Núcleo e nas Centrais Restaurativas.
Fonte: a autora
OBJETIVO
Levantamento e sistematização dos instrumentos de registro e informação utilizados pelas equipes que desenvolvem práticas de Justiça Restaurativa nas instituições envolvidas.
Conhecer a rotina e os procedimentos que foram adotados pelo Núcleo e pelas Centrais Restaurativas.
PERÍODO
A atividade de análise documental teve início em agosto de 2013 (coleta de dados referentes ao período de novembro de 2012 a outubro de 2013).
Atividades desenvolvidas desde a assinatura do convênio até o mês de outubro de 2013.
A concepção contemporânea de Justiça Restaurativa está implicada em uma dimensão
ética, ou seja, em um posicionamento ético-político frente às manifestações de
confl itualidade e violência que perpassam a sociedade contemporânea. Tal concepção
apresenta distinções quanto ao modelo clássico que sustenta as chamadas práticas
tradicionais – e legitimadas pela sociedade – para se fazer justiça.
Pode-se afi rmar que
O que se concebe como Justiça Restaurativa moderna tem suas origens em uma ética, ou seja, em uma tomada de posição crítica e irresignada em relação à violência subjacente ao modelo retributivo, às falhas do modelo reabilitador próprios da justiça criminal convencional e à punição
que o sustenta. (AGUINSKY; JARDIM; et al., 2008, s/p)
De modo a materializar a perspectiva de uma tomada de posição crítica e
irresignada em relação à violência, a Justiça Restaurativa se baseia em valores que
estão orientados à compreensão das necessidades de todos os envolvidos em um
confl ito. Para tanto, em um espaço seguro, serão escutados vítimas e ofensores, bem
2. As ações em Justiça Restaurativa: aspectos de sua processualidade histórica
94Caxias da Paz
como a comunidade na qual se inserem, o que favorecerá a participação social e
responsabilização, como pressupostos para a redução da confl itualidade social.
Considerada como prática e movimento social, as origens da forma moderna da Justiça Restaurativa são localizáveis na década de 70, quando seus primeiros proponentes (John Braithwaite, Howard Zehr, Mark Umbreit, entre outros) defendiam uma alternativa para um sistema penal considerado excessivamente duro, que nem efetivamente vinha repercutindo na diminuição do crime nem satisfatoriamente reabilitava ofensores. A concepção contemporânea de JR foi sendo construída apostando no potencial transformativo de práticas de justiça capazes de promoverem ambientes seguros para que os envolvidos em situações de violências possam expressar suas necessidades, tendo por objetivo a pacifi cação de confl itos. Nesses encontros, através de um diálogo facilitado, são surtidas soluções criativas e específi cas, portadoras de responsabilidades partilhadas e de uma visão de futuro em relação à situação em concreto subjacente. (AGUINSKY; JARDIM; et al., 2008, s/p)
Em Caxias do Sul a metodologia adotada se fundamenta nos Círculos de
Construção de Paz, com inspiração nos ensinamentos de Kay Pranis. “A metodologia
dos Círculos de Construção de Paz mostrou-se de fácil apropriação e capaz de
produzir resultados concretos imediatos” (BRANCHER, 2011, p. 06).
Para Pranis: “O círculo é um processo de diálogo que trabalha
intencionalmente na criação de um espaço seguro para discutir problemas
muito difíceis e dolorosos, a fi m de melhorar os relacionamentos e resolver
diferenças” (2011, p. 09).
Através dessa metodologia, objetiva-se fomentar a restauração das relações
sociais e a reparação do dano causado, colaborando à diminuição da cultura
punitiva que caracteriza a sociedade contemporânea, e, ao mesmo tempo,
construir respostas efi cazes e efi cientes na resolução de confl itos. “[...] o círculo
não se destina a apontar culpados ou vítimas, [...] mas a percepção de que
nossas ações nos afetam e afetam aos outros, e que somos responsáveis por seus
efeitos”. (Justiça para o século 21, 2013, s/p)
De modo a visualizar as refl exões apresentadas, o QUADRO 2 demonstra a
síntese da trajetória da Justiça Restaurativa em um contexto global, bem como
em sua aplicabilidade na realidade brasileira.
95Anexo
QUADRO 2 – Origens da Justiça Restaurativa: marcos legais e intencionais
ANO/LOCALIZAÇÃO
1970/EUA
1976/Canadá/Noruega
1980/Austrália
1982/Reino Unido
1988/Nova Zelândia
1989/Nova Zelândia
1994/EUA
1999/mundo
2001/Europa
2002/ONU
2005/Brasil
2007/Porto Alegre – Brasil
2010/Caxias do Sul – Brasil
2012/Caxias do Sul – Brasil
Fonte: a autora.
PRINCIPAIS ATIVIDADES
O Instituto para Mediação e Resolução de Conflito (IMCR) usou 53 mediadores comunitários e recebeu 1.657 indicações em 10 meses.
Criado o Centro de JR Comunitária de Victoria (Canadá). No mesmo período, na Europa, verifica-se mediação de conflitos sobre propriedade.
Estabelecidos três Centros de Justiça Comunitária experimentais, em Nova Gales do Sul.
Primeiro serviço de mediação comunitária do Reino Unido.
Mediação vítima-agressor por oficiais da condicional da Nova Zelândia.
Promulgada a “Lei sobre Crianças, Jovens e suas Famílias”, incorporando a Justiça Restaurativa na Justiça Penal Juvenil.
Pesquisa Nacional localizou 123 programas de mediação vítima-infrator no País.
Conferências de grupo familiar de bem-estar e projetos-piloto de justiça em curso na Austrália, Nova Zelândia, Estados Unidos, Grã-Bretanha, África do Sul.
Decisão-quadro do Conselho da União Europeia sobre a participação das vítimas nos processos penais para implementação de lei nos Estados.
Resoluções do Conselho Econômico e Social da ONU. Definição de conceitos relativos à JR, balizamento e uso de programas no mundo.
Ministério da Justiça e PNUD patrocinam três projetos de JR em Porto Alegre, São Caetano do Sul e Brasília. Início do Projeto Justiça 21.
Em três anos de implementação do Projeto Justiça para o Século 21, registram-se 2.583 participantes em 380 procedimentos restaurativos realizados no Juizado da Infância e da Juventude. Outras 5.906 pessoas participaram de atividades de formação promovidas pelo Projeto.
Assinatura de protocolo – Município de Caxias de Sul, AJURIS e instituições Caxienses para iniciar a difusão da Justiça Restaurativa em Caxias do Sul, segundo diretrizes do Projeto Justiça 21.
Implementação do Projeto Justiça Restaurativa, por meio de convênio entre a Fundação Caxias e a Prefeitura de Caxias do Sul.
96Caxias da Paz
2.1 Princípios e valores que orientam a Justiça Restaurativa
O conceito mais difundido de Justiça Restaurativa foi desenvolvido por
Marshal e Roche (2004), que a consideram como um processo que une os
grupos afetados por um incidente ofensivo para, coletivamente, decidirem
como lidar com suas consequências e com suas implicações para o futuro.
Referente à realidade Brasileira, como visto no QUADRO 2, no ano
2005 o Ministério da Justiça e o PNUD patrocinaram três projetos de
Justiça Restaurativa (em Porto Alegre, São Caetano do Sul e Brasília). Tais
iniciativas foram fomentadas pela:
[...] procura por amparo às vítimas e ao atendimento de suas necessidades, dando-lhe um papel ativo na condução das negociações em torno do confl ito. De outro lado, buscava não apenas a responsabilização do causador do dano, valendo-se de recursos outros à punição e à sua estigmatização, mas também, pelo encontro que se dá entre um envolvido e outro no confl ito, dar ocasião para o confronto de todas as questões que, a ver de cada qual, o determinaram e para o encaminhamento de possibilidades de sua
superação ou transfi guração (REZENDE, 2005, s/p).
O encontro proporcionado pela metodologia restaurativa se constitui
por três momentos distintos e complementares, pois suas práticas se
desenvolvem a partir de um conjunto de ações que compõe o que se pode
chamar de procedimentos restaurativos (etapas de intervenção): pré-círculo,
círculo e pós-círculo.
Mesmo antes da assinatura do convênio que implementou as práticas
restaurativas em Caxias do Sul, várias ações foram realizadas pelas instâncias
envolvidas. De modo a proporcionar visibilidade a este conjunto de atividades,
apresenta-se o QUADRO 3, o qual registra uma síntese que permite que se
perceba o envolvimento e os esforços intencionais da comunidade e dos Poderes
Públicos para sua materialização.
3. A Justiça Restaurativa em Caxias do Sul
97Anexo
ATIVIDADE
2010: O Início da difusão da JR em Caxias do Sul ocorreu por meio de protocolo fi rmado entre a Prefeitura de Caxias do Sul, a AJURIS e a Justiça para o Século 21, o qual foi assinado no dia 18-06-2010.
2011
2012
2013
QUADRO 3 – Principais atividades realizadas antes e depois da assinatura do convênio 2010-2013
PERÍODO
Fonte: Sistematizado a partir de informações do Núcleo de Práticas Restaurativas de Caxias do Sul.
Junho
Junho
Junho
Agosto
Outubro
Durante todo o ano
Seminário de lançamento do termo de cooperação entre os atores envolvidos.
Curso de iniciação em Justiça Restaurativa para 70 pessoas.
Curso de práticas em comunicação não violenta para 20 pessoas.
Seminário de justiça restaurativa com a participação das canadenses Liz Elliot e Brenda Morrison.
Capacitação com Kay Pranis para 25 pessoas.
Encontros quinzenais – casos encaminhados pelo JIJ, práticas. avulsas.
Encontros quinzenais – casos encaminhados pelo JIJ, práticas avulsas.
Capacitação com Kay Pranis para 20 pessoas.
Kay Pranis capacita grupo de 10 multiplicadores para formação de facilitadores em Círculos de Construção de Paz.
Simpósio internacional de Justiça Restaurativa na Universidade de Caxias do Sul.
Assinatura do convênio entre o Poder Judiciário, Prefeitura de Caxias do Sul e a Fundação Caxias.
Início ofi cial do projeto.
Instalação do Núcleo de Práticas Restaurativas e da Central Judicial de Pacifi cação Restaurativa, ambos com sede no Fórum.
Durante todo o ano
Outubro
Outubro
Novembro
Novembro
Novembro
Novembro
Junho
Julho
Julho
Instalação da Central de Pacifi cação Restaurativa da Infância e Juventude com sede na UCS.
Instalação da Central Comunitária de Pacifi cação Restaurativa com sede no CRAS Zona Norte.
Assinatura do convênio do Município de Caxias do Sul com o Poder Judiciário.
98Caxias da Paz
3.1 O Núcleo de Práticas Restaurativas e as Centrais Restaurativas em Caxias do Sul
O projeto, em sua operacionalização, conta com um Núcleo de Práticas
Restaurativas, o qual agrega três Centrais de Práticas Restaurativas: a Central Judicial
de Pacifi cação Restaurativa; a Central de Pacifi cação Restaurativa da Infância e
Juventude; e a Central Comunitária de Pacifi cação Restaurativa.
NÚCLEO DE PRÁTICAS RESTAURATIVASSede: Fórum
Composição: 1 coordenadora; 1 representante da Secretaria Municipal de Segurança Pública e Proteção Social.
CENTRAL INAUGURAÇÃO APLICAÇÕES
QUADRO 4 – Organograma funcional da Justiça Restaurativa em Caxias do Sul
Central de Pacifi cação Restaurativa da Infância e JuventudeSede: UCS
Junho de 2013 1 coordenadora (com carga horária de 40h semanais), 1 facilitadora (com carga horária de 40h semanais), 1 facilitadora
Infrações Penais (atos infracionais)
Confl itos Familiares – Jurisdição Protetiva
Juizado Especial Criminal
Juizado Especial Cível 2ª Vara Criminal (Lei
Maria da Penha) Varas Criminais Varas de Família Demandas espontâneas
1 coordenador e 1 facilitadora (ambos com carga horária de 33h semanais de trabalho), 1 agente administrativa que também atende ao núcleo (com carga horária de 40h semanais) e 4 facilitadoras que atuaram junto à Central Judicial, desde setembro a novembro de 2013, vinculadas à Fundação de Assistência Social, com uma carga horária de 10h semanais e em período de estágio para que posteriormente possam atuar em seus locais de trabalho.
RECURSOS HUMANOS
Central Judicial de Pacifi cação Restaurativa Sede: Fórum
Anterior ao início ofi cial do projeto, pois já estavam sendo realizados procedimentos restaurativos com processos judicializados.
Situações conflitivas de natureza não infracional envolvendo crianças e adolescentes
99Anexo
Fonte: Sistematizado a partir de informações do Núcleo de Práticas Restaurativas de Caxias do Sul.
A partir do QUADRO 4, percebe-se que a atuação restaurativa abrange os
mais diversos tipos de confl itos, desde aqueles já com processo judicial, até
situações que se caracterizam por sua dimensão preventiva, conformando uma
cultura de pacifi cação.
Esta amplitude está em consonância com os preceitos de Llewellyn e Howse,
na medida em que estes permitem compreender a Justiça Restaurativa
como não apenas vinculada ao âmbito do crime, mas também em confl itos
e disputas extrajudiciais, dentre os quais situações que dizem respeito
às violências nas escolas, à administração de confl itos organizacionais e
coorporativos, aos confl itos de vizinhança, nas comunidades e nas famílias
(LLEWELLYN; HOWSE, 1998).
Central Comunitária de Pacifi cação RestaurativaSede: CRAS Zona Norte
Julho de 2013 1 coordenadora (com carga horária de 30h semanais), 1 facilitador (com carga horária de 40h semanais), 2 facilitadoras (com carga horária de 10h semanais), 1 facilitadora (com carga horária de 20h semanais) e 1 secretária (com carga horária de 40h semanais).
(com carga horária de 20h semanais) e 1 secretário (com carga horária de 40h semanais).
Situações confl itivas eventualmente relacionadas a infrações de menor potencial ofensivo
Situações confl itivas familiares
Situações confl itivas entre as famílias e serviços de atendimento
Situações confl itivas no ambiente escolar: implementação de cultura de paz
Confl itos envolvendo crianças, adolescentes e adultos em seus entornos familiares
Confl itos de vizinhança Confl itos e violências
intrafamiliares Confl itos relacionados
ao atendimento familiar a idosos
Situações confl itivas entre usuários e serviços de atendimento
100Caxias da Paz
3.2 Casos atendidos e procedimentos realizados sob o referencial da Justiça Restaurativa em Caxias do Sul
O contexto quantitativo das ações desenvolvidas neste primeiro ano do
projeto foi desmembrado em categorias distintas, de modo a compreender
os níveis de abrangência daquilo que chamamos de procedimento
restaurativo. Este é composto por encontros restaurativos, os quais são
momentos distintos e complementares: pré-círculo (encontro preparatório
anterior ao círculo), círculo (encontro reunindo todos os sujeitos
envolvidos) e pós-círculo (encontro de acompanhamento).
Quando aqui se fala em práticas restaurativas, entendem-se estas como
quaisquer encontros onde tenham sido aplicados princípios metodológicos
advindos do referencial restaurativo.
Os casos atendidos são as situações-problema em sua unidade complexa e
relacional de sujeitos em confl ito. Uma vez que as práticas restaurativas em
Caxias do Sul abarcam não apenas situações envolvendo confl ito, adotamos
a categorização diferencial entre encontros restaurativos (situações que
envolvem resolução de confl itos e/ou tomada de decisões), que acontecem
nas três Centrais, e encontros restaurativos não confl itivos (círculos de
sensibilização e prevenção), os quais fazem parte do escopo das Centrais da
Infância e Juventude e Comunitária.
Cabe ainda destacar que as práticas restaurativas, quando aplicadas a
situações onde exista um confl ito, demandam a realização do procedimento
restaurativo completo (mesmo que nem todos os casos completem a
tríade pré-círculo/círculo/pós-círculo); já os encontros de sensibilização
e prevenção podem prescindir dos encontros preparatórios e/ou de
acompanhamento.
O QUADRO 5 apresenta estes dados em conjunto e por Central,
agregando o número de sujeitos envolvidos.
101Anexo
NÚCLEO DE JUSTIÇA RESTAURATIVA
CATEGORIAS Central Judicial de Pacifi cação Restaurativa Sede: Fórum
Central de Pacifi cação Restaurativa da Infância e Juventude Sede: UCS
Central Comunitária de Pacifi cação RestaurativaSede: CRAS Zona Norte
QUADRO 5 – Número total de casos, procedimentos e sujeitos envolvidos: novembro de 2012 a outubro de 2013
TOTAL
Fonte: Sistematizado a partir de informações das Centrais Restaurativas de Caxias do Sul.
Casos atendidos e procedimentos envolvendo sujeitos em confl ito
Encontros restaurativos (pré--círculo, círculo e pós--círculo) envolvendo situações de confl ito
Encontros restaurativos não confl itivos envolvendo Círculos de sensibilização e prevenção
Total de práticas restaurativas realizadas em cada Central
Sujeitos envolvidos nas práticas restaurativas realizadas em cada Central
131
321
0
321
1.235
27
88
32
120
749
13
23
22
45
178
171
432
54
486
2.162
102Caxias da Paz
3.2.1 A Central Judicial de Pacificação Restaurativa
A Central Judicial de Pacifi cação Restaurativa registrou um total de
131 casos atendidos no período, com a realização de 321 encontros
restaurativos, todos estes envolvendo situações confl itivas. Estes alcançaram
um público de 1.235 pessoas.
Os casos atendidos nesta Central, dada sua configuração Judicial,
demonstram preponderância de vínculo com processos forenses. No entanto, já
se pode inferir um reconhecimento, por parte da comunidade, na Justiça
Restaurativa como forma preventiva, uma vez que é signifi cante o número
de casos que não se atrelavam a processos judiciais e se caracterizaram como
meio de prevenção à judicialização do confl ito, ainda que na esfera judicial.
GRÁFICO 1 – Procedimentos instaurados na Central Judicial de Práticas Restaurativas – novembro de 2012 a outubro de 2013
Fonte: Sistematizado a partir de informações da Central Judicial de Pacifi cação Restaurativa.
Detalhando-se os encontros realizados (GRÁFICO 2), percebe-se um maior
número de pré-círculos. Tal se justifi ca porque este se caracteriza como
uma espécie de etapa preparatória para a realização do Círculo; um mesmo
caso, então, demanda a realização de mais de um pré-círculo para que todos
os envolvidos possam se apropriar da proposta restaurativa, antes de sua
operacionalização por meio do Círculo.
Com processo judicialSem processo judicial
117
14
131
103Anexo
Nesta Central, a qual se vincula prioritariamente à pacifi cação de situações
confl itivas, em 24 casos foi realizado o procedimento restaurativo completo,
envolvendo os três tipos de encontros restaurativos.
Quanto aos casos vinculados a processos judiciais, identifi cou-se a preponderância
de origem no Juizado da Infância e Juventude (GRÁFICO 3). Tal área temática
também predominou nos casos com origem extrajudicial, somando 11 dos 14
atendidos; estas situações abarcaram tanto medidas protetivas de direitos, quanto
medidas socioeducativas nos casos que envolvem atos infracionais.
GRÁFICO 2 – Número de encontros realizados na Central Judicial de Pacificação Restaurativa – novembro de 2012 a outubro de 2013
GRÁFICO 03 – Natureza dos casos atendidos (com processo judicial) na Central Judicial de Pacificação Restaurativa –
novembro de 2012 a outubro de 2013
Fonte: Sistematizado a partir de informações da Central Judicial de Pacifi cação Restaurativa.
Fonte: Sistematizado a partir de informações da Central Judicial de Pacifi cação Restaurativa.
250200150100
500
209
88
24
Pré-círculo Pós-círculo N: 321Círculo
100908070605040302010
0
95
7 2 1 1JIJ JECRIM 2a Vara
Criminal3a VaraCível
6a VaraCível
2a Vara de Família N: 117
11
104Caxias da Paz
3.2.2 A Central de Pacificação Restaurativa da Infância e Juventude
A Central de Pacifi cação Restaurativa da Infância e Juventude foi inaugurada
em junho de 2013 e atendeu, no período da pesquisa, 27 casos confl itivos, os
quais geraram a realização de 88 encontros restaurativos, entre pré-círculos,
círculos e pós-círculos. Ademais, foram realizados 32 encontros restaurativos
que não envolveram situações confl itivas, os quais se caracterizaram por sua
natureza de sensibilização e prevenção. Com isso, alcançou-se um número de
749 sujeitos.
Em relação aos 27 casos atendidos, estes foram encaminhados por diferentes
instâncias, desde o Ministério Público, o Juizado da Infância e Juventude, a
Polícia Comunitária, até as próprias escolas e as instituições que compõem a
rede socioassistencial.
O total de práticas restaurativas que foram operacionalizadas por esta Central,
somando-se tanto os casos confl itivos quanto os encontros de sensibilização
e prevenção, envolveu naturezas distintas, pois entre estas práticas têm-se
situações vinculadas a processos judiciais e situações não os envolvendo.
Entretanto, a maior parte das práticas realizadas nesta Central, não estão
vinculadas a processos judiciais.
Do mesmo modo que na Central Judicial de Práticas Restaurativas, nos casos
atendidos, verifi ca-se a incidência de um número maior de pré-círculos, uma
vez que este procedimento é essencial para as etapas posteriores e se confi gura
pela preparação necessária de todos os envolvidos.
Os encontros realizados por esta Central, denominados de Círculos de
sensibilização, funcionaram como uma demonstração prática, através de uma
apresentação vivencial, onde foram enfocados tópicos como: o que é justiça
restaurativa, como funciona, seus objetivos e fi nalidades. Para tal os facilitadores
realizam um roteiro, onde procuram exemplifi car – mesmo a partir de temáticas
mais amplas – como são realizados os pré-círculos, círculos e pós-círculos.
Tais encontros foram realizados nas denominadas “escolas-piloto” as quais fazem
parte do entorno da UCS, são escolas Municipais de Ensino Fundamental
(Alfredo Belizário Peteffi , Jardelino Ramos, Atiliano Pinguelo, Mário Quintana
e Caldas Júnior) e ainda, a Escola Estadual Professor Apolinário dos Santos.
Além das escolas, foram operacionalizados encontros em entidades da rede
socioassistencial, as quais atendem crianças e adolescentes e compõem a rede de
proteção à infância e juventude em Caxias do Sul.
105Anexo
Os referenciais da Justiça Restaurativa foram aplicados em situações-
-problemas vivenciadas pela comunidade escolar; nestes Círculos, conforme
relato da coordenadora da Central, Katiane Boschetti da Silveira: “[...]
buscou-se como público os professores e equipe diretiva das escolas, visando
estabelecer o fl uxograma de atuação”.
Com isso, objetivou-se construir mecanismos diferenciados para se lidar com as
situações confl itivas, cujo resultado residiu na introdução de uma cultura de paz.
3.2.3 A Central Comunitária de Pacificação Restaurativa
A Central Comunitária de Pacifi cação Restaurativa foi inaugurada em julho
de 2013 e, no período, atendeu 13 casos envolvendo situações confl itivas, os
quais demandaram 23 encontros restaurativos entre pré-círculos, círculos e
pós-círculos. Ainda, aconteceram 22 encontros restaurativos não confl itivos
de sensibilização e prevenção. Assim, as práticas restaurativas atingiram um
público de 178 pessoas.
Nesta Central, também devido à sua natureza, as situações atendidas não
possuem processo judicial; são situações de confl itos extrajudiciais e Círculos
de sensibilização nos serviços que compõem a rede socioassistencial de
Caxias do Sul. Entre as instituições onde foram realizados procedimentos
restaurativos e Círculos de sensibilização, bem como aquelas que
encaminharam casos, destacam-se: Centro de Referência em Assistência
Social (CRAS Norte); Associação Centro de Promoção do Menor Santa Fé
(ACPMEN); Centro Assistencial e de Promoção Joana D’Arc; Associação
Criança Feliz; Núcleo de Capacitação Canyon; Unidade Básica de Saúde
Vila Ipê; Unidade Básica de Saúde Santa Fé; Unidade Básica de Saúde Belo
Horizonte; Guarda Municipal de Caxias do Sul; Serviço de Assistência
Jurídica (SAJU).
Referente aos procedimentos realizados por esta Central percebe-se que o
maior número foi de Círculos. Tal diferença – em relação às demais – ocorreu
pela realização dos Círculos de sensibilização, os quais não requerem pré-
círculo e, tampouco, produzem pós-círculo. A estratégia adotada pela CPR
potencializa que instituições e profi ssionais tanto conheçam as perspectivas da
Justiça Restaurativa, como as insiram nos seus horizontes de enfrentamento da
confl itualidade.
106Caxias da Paz
3.3 As percepções das pessoas que participaram dos procedimentos restaurativosDe modo a nos aproximarmos da experiência vivida durante a participação
nos procedimentos restaurativos, buscou-se, por meio da análise das
informações registradas pelos facilitadores em seus relatórios, alcançar
as percepções de pessoas que passaram pelos procedimentos. Para tanto,
construiu-se o quadro a seguir, utilizando-se os valores que orientam a
Justiça Restaurativa como categorias analíticas.
NÚCLEO DE JUSTIÇA RESTAURATIVA
“[...] o genitor começou sua fala agradecendo todo o apoio que vem recebendo e expressou a diferença que isso fez em sua vida”.
“[...] ao fi nal do Círculo, o casal se emociona e agradece pela sinceridade, relatam estar se sentido melhor por terem conseguido expressar seus sentimentos, pois a audiência seria um espaço mais formal e de curto tempo”.
“[...] eu ainda preciso de um tempo”.
“[...] eu tava nervoso e descontei no professor”.
“[...] hoje eu me sinto bem, minha mãe gosta de mim e eu gosto de morar com minha mãe”.
“[...] Pode se concluir que os acordos fi rmados em Círculo foram cumpridos tanto pela genitora, quanto por sua família”.
“[...] sozinha eu não ia conseguir, eu ia desistir do meu fi lho, estou mais presente”.
“[...] eu sentia que tinha culpa, mas estou aliviado, tirando um peso”.
“[...] me sinto muito melhor ao fi nal do Círculo, pois consegui dizer ‘coisas’ que nunca havia falado”.
“[...] o Círculo tem me dado forças que eu não tinha”.
“[...] a partir deste encontro vou passar pela família e olhar no olho, que era uma coisa que eu não conseguia fazer. Tô deixando aqui um grande peso”.
QUADRO 6 – Percepções e sentimentos expressos durantea realização dos procedimentos restaurativos
Fonte: Sistematização das autoras a partir de informações do Núcleo de Práticas Restaurativas de Caxias do Sul.
Respeito
Participação
Honestidade
Humildade
Interconexão
Responsabilidade
Esperança
Empoderamento
107Anexo
A partir das sistematizações contidas no quadro apresentado, é perceptível
que os valores que orientam as práticas restaurativas fazem parte dos
procedimentos e são manifestados em falas e registros daqueles que estão
participando destas ações.
A partir dos dados apresentados, pode-se perceber que, em seu primeiro ano
de execução, o projeto consolida resultados signifi cativos, seja em dimensões
quantitativas, como de resultados concretos e simbólicos numa transformação
paradigmática em face da confl itualidade e violência. Se expressivo o número
de sujeitos envolvidos – 2.162 pessoas tiveram contato com os procedimentos
restaurativos – este, para além de um dado objetivo, certamente tem
repercussões em diferentes âmbitos da sociabilidade no município.
Também ao se constatar a diversifi cação das formas de aplicação da Justiça
Restaurativa em Caxias do Sul, percebe-se que o projeto vem alcançando a
multidimensionalidade da confl itualidade social. Assim, pode-se inferir que a
introdução de tais práticas possui um potencial de transformação, à medida que
isto afeta não apenas aqueles que participaram de algum procedimento, mas as
suas relações como um todo.
Uma das contribuições fundamentais até o momento, tem sido o
desenvolvimento de práticas de justiça e práticas institucionais e sociais baseadas
em relações horizontais, nas quais as vozes daqueles diretamente envolvidos em
um confl ito e em situações de violências são consideradas e valorizadas, não os
excluindo do que lhes é tão caro: participar de decisões que se referem às suas
próprias vidas.
Com isso, afi rma-se que o projeto apresentou abrangência em sua
aplicabilidade, e as ações desencadeadas deram início a construção de uma
cultura de paz no município de Caxias do Sul.
4. Considerações Preliminares
108Caxias da Paz
AGUINSKY, Beatriz Gershenson; JARDIM, Ana Caroline Montezano Gonsales. Et al. Introdução de práticas
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2012-2013UM ANO DE IMPLANTAÇÃO DA JUSTIÇA RESTAURATIVA
COMO POLÍTICA DE PACIFICAÇÃO SOCIAL EM CAXIAS DO SUL
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ESTADO DO RIO GRANDE DO SUL
PODER JUDICIÁRIO
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