PAPERS 3 TRAD setembro 2013, portug- ¦ûes

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    PAPERS N 3

    Lista dos membros do

    Comit de Ao da

    Escola Una

    Paola Bolgiani

    Gustavo Dessal

    Florencia Fernandez

    Coria Shanahan

    Mercedes Iglesias

    Ram Mandil

    Laure Naveau

    (coordenadora)

    Silvia Salman

    Responsvel pela

    edio:

    Marta Davidovich

    EDITORIAL

    Laure Naveau

    Este nmero 3 dos PAPERS, que aparecepela primeira vez inicialmente em francs,nos convida a uma amarrao singularentre o corpo, o olhar absoluto, aqueimadura do sonho e a lei de um real,este, no entanto, sem lei.

    O texto de Monica Frebres-Cordero deEspinel, Acontecimento de corpo, retoma

    com grande nfase o real do encontroentre lalnguae o corpo, o corpo vivo noqual se aloja o gozo pelo efeito dosignificante. Monica extrai asconsequncias desse acontecimentofundador, apoiada no ltimo curso de

    Jacques-Alain Miller O Ser e o Um: aquelasem que a existncia se conjuga com aescrita, com a letra, fora do sentido. Joyce, aqui, com toda razo, o convidadoescolhido.

    Sob o ttulo O sonho e o real, PierreNaveau, por sua vez, entra diretamenteno tema candente concernente questo:Do qu (o filho) queima? seno dopeso dos pecados do pai. Trata-se doque, eventualmente, pode despertar osujeito. Ele, assim, presta homenagem aoque Lacan chamou de realidade faltosa(la ralit manque) aqui, uma frase, ou,mais exatamente, o inacessvel do queno se pode dizer, ou seja, o prprio real,indizvel. Uma nica letra, nos diz Pierre,separa o sonho do trauma. Deixo a vocsdescobri-la no final de seu belo texto.

    Maria Laura Tkach d testemunho deuma delicada fineza clnica, ao ilustrar suaapresentao sobre Um real que faz a lei, nosculo XXI. Sua reflexo um convite atomar distncia em relao a umaconcepo demasiado imaginria daestrutura do sujeito e da experincia

    analtica, que se impuseram no seio deuma certa psicanlise. Lembrando que o

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    princpio fundamental do real da norelao sexual e suas consequnciasdecorrem de uma tica, ela indica em queconsiste, para um sujeito, uma sada

    vivvel da experincia analtica, que leve

    em conta esse resto no subjetivvel.Poderemos ler, no texto apaixonante de

    Vronique Voruz, a anlise de duasreferncias tratando da transformao doestatuto do real, transformao nomeadade desordem por J.-A. Miller. NoSeminrio 17, Lacan formaliza o efeito dodiscurso da cincia sobre nosso meioambiente, menos organizado pelo sentidosexual e mais pela verdade formal.

    Vronique rel O Outro que no existe e seuscomits de tica, no qual ric Laurent e

    Jacques-Alain Miller acrescentam tesede Lacan a da desmaterializao do real.Hoje, so os cdigos e os algoritmos queorganizam esse real desmaterializado,desordenado, incorporando toda varivelconhecida dos comportamentos humanose inumanos em infinitos clculos deprobabilidades.

    Por fim, o texto de Gil Caroz, chegado

    com urgncia no final da semana passada,junta-se, aqui, aos quatro precedentes,mas inaugura a ordem alfabticaescolhida. Ele prope tratar do real semlei que atinge aqueles que so, elesprprios, atingidos em seus corpos pelasguerras, assim como da relao com o atodaqueles que as decidem. Com estafrmula Uma hesitao posta em cena, Gil fazuma leitura dos acontecimentos atuais,tomando como bssola um vetor que

    Lacan delineia em seu ltimo Seminriopublicado: O desejo e sua interpretao. Oleitor poder apreciar a extremapertinncia dessa anlise.

    Eu lhes desejo uma leitura fecunda destaquarta edio dos PAPERS (numerados dezero a trs), no retorno das frias de veroque ser, creio eu, rica em acontecimentosem torno do tema de nosso prximoCongresso da AMP, o de Um real para o

    sculo XXI.

    Paris, segunda-feira, 9 de setembro, 12

    horas.

    Uma hesitao posta emcena

    Gil Caroz

    O presidente srio receber, sem dvida,um sms lhe anunciando a hora exata doataque americano. Este foi ocomentrio irnico de uma apresentadoratarimbada da televiso israelense. Com

    efeito, j estava decidido. Sabia-se tudoantecipadamente: as datas, os alvos queseriam atacados, as foras que seriamdistribudas, sua localizao O fatorsurpresa, caro a toda estratgia, foi

    eliminado. Qualquer nota falsa esobretudo qualquer risco para osatacantes deveriam ser reduzidos a zero.Essa dmarche est muito distante dafrmula de Churchill do comeo na

    Segunda Guerra Mundial: I have nothing tooffer but blood, toil, tears and sweat (Notenho nada a oferecer, seno sangue,trabalho, lgrimas e suor).

    As hesitaes atormentadas dos decisoresdiante do real com o qual soconfrontados nos foram expostas comuma transparncia perfeita. Essaexposio da hesitao no coisacomum. Outrora, para partir para aguerra, era preciso tropas conduzidas porum chefe que dizia Sigam-me sempiscar incessantemente os olhos (adistinguir da frmula leading from behind(liderando de trs), forjada pelaadministrao Obama por ocasio doataque Lbia de Kadhafi). As hesitaese inibies subjetivas do lder ficavam soba barra. Aqui, os vaivns dos que tomamas decises so comunicados ao grandepblico, tal como se se tratasse de umanegociao com os sindicatos sobre osalrio mnimo. Isso no deixa de ter

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    ligao com o fato de que os soldadosque manipularo as armas sofisticadaspostas em jogo nesse ataque trabalharopor trs dos computadores como osempregados de uma sociedade high-tech,

    pois no se cessa de repetir: no boots on theground(no vai haver botas no cho).

    Constata-se o esforo de inscrever essecombate no quadro de uma lei.Primeiramente, buscando um consensointernacional. Em seguida, diante doisolamento dos Estados Unidos, opresidente Obama busca partilhar aresponsabilidade de sua deciso com osmembros do Congresso. Por outro lado,declara-se que essa guerra ser punitivadevido a um crime de guerra, como se setratasse da execuo de uma deciso detribunal. Essa distino entre uma guerrade direito e uma guerra criminosa

    vlida, sem dvida, com a condio de seconvir que, para aqueles atingidos pelasguerras, seja qual for o discurso quecircunscreva os combates, trata-se de umreal sem lei. Freud j havia constatado aligao entre a guerra e o direito, mas eleno aderia distino ingnua entre obem e o mal. Ele considerava, antes, quetanto o direito como a guerra somanifestaes de violncias pulsionais.1

    Ningum acredita que uma Guerra emque tudo calculado e perfeitamentedosado seja verdadeiramente possvel.Sobretudo no contexto srio. Mesmoadvertidos de que esse ataque deveracontecer ou no, mais vale dar razo aum representante do poder srio quedizia: Quando se comea uma guerraassim, se conhece o ponto de partida,mas nada se sabe sobre o ponto dechegada. O ato no pode ser fundadosobre um saber sem falha quanto sconsequncias. Muito ao contrrio, eleimplica um certo salto num vazio desaber. Nesse caso, flagrante que aausncia de ato corre o risco de ter

    1

    Freud S., Pourquoi la guerre ? (1933),Rsultats,ides problmes (II), Paris, PUF, 1992, pp. 203-215.

    consequncias ainda mais pesadas que oato. O que amplifica as dificuldades dosdecisores.

    Esses acontecimentos que se anunciamentre hesitao e inibio, de um lado, erisco de um desencadeamentoincontrolado, do outro, merecem umesforo de leitura. Tentemos nosdebruar sobre isso a partir de um vetorque Lacan delineia no Seminrio: Odesejo e sua interpretao.2 Esse vetorparte do mito de dipo e passa pelo deHamlet, o homem que no conseguia sedecidir.

    De dipo a Hamlet

    O grande homem que o obsessivo seimagina ser est altura de suaidentificao com o grande criminoso,que est nos fundamentos reais de suaexistncia, para seu horror. O crime aliest, desde o comeo, em cujo real eleemerge como ser falante. Com efeito, ofato de Lacan dizer que o real sem leinos convida a considerar que o crime sealoja nele. Os mitos escolhidos pela

    psicanlise para pr em cena aemergncia da lei, mostram que estanasce sempre sobre um fundo de crime.Desde que um organismo vertido nafala, o real de sua existncia se traduz emculpa e sua expiao se torna um projetode vida, cuja ferramenta a castrao.

    O dipo o paradigma do movimentodialtico entre o crime e seu tratamentopela castrao. O heri ingnuo no

    momento do crime. Ele no sabe que ocomete. Em seguida, uma vez que tomaconhecimento de seu ato culpvel, elepaga sua dvida em libra de carne:castrao. A via se abre, ento, para odesejo que se transmite de uma gerao outra. As coisas se complicam quandoesse simples processo no seguido aop da letra. o caso Hamlet. O pai assassinado na flor de seus pecados.

    2 LACAN J., Le Sminaire Livre VI, Le dsir et soninterprtation, Paris, Editions de la Martinire, Le champFreudien, Paris 2013, captulos de 13 a 19.

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    Ele no tem a oportunidade de pagar suadvida de castrao antes de morrer. ofilho que, portanto, herda essa dvida. Noponto de partida, a castrao est ausenteassim como o inconsciente uma vez que

    o criminoso, sua vtima e Hamlet estoperfeitamente a par do que aconteceu nomomento do crime, de modo um tantosemelhante ao tudo saber sobre a guerraanunciada na Sria. Para reintroduzir acastrao, o sujeito deve atingir o faloencarnado que escapou do castigo e cujonome Claudius. Mas justamente essaausncia de castrao, remetida a Hamletem espelho por esse personagem, que ope em pane de desejo. O sujeito evitar

    pagar essa dvida at o momento em quea castrao o atingir vinda do exterior,como retorno no real do que foi rejeitadodo simblico. Assim, o preo a pagar aumentado, pois Hamlet assumir seudever no umbral de sua prpria morteque provoca, de passagem, a de sua me ea de seu amigo Larcio.

    A lgica feminina e o incalculvel

    A intriga no pode se resumir a essa

    dialtica entre o crime e a castrao. Adimenso do incalculvel que evocamosencontra-se mais alm da medida flica.Lacan indica um elemento essencial quedevemos levar em conta na pea Hamlet: :o gozo feminino que se encarna na figurada me. Esta traz uma dimenso do crimeque no se submete castrao.Esperamos muito do feminino, uma vezque, depois do dipo, ele passa frentedo viril. Consideramos que, num mundo

    abandonado pelo pai, a lgica femininaconstitui a nova bssola, pois, indiferente rivalidade flica e sensvel dimensodo um por um, essa lgica melhorsituada para encontrar apaziguamentossinthomticos num mundo que seassemelhar cada vez mais a um agregadode sozinhos(tout-seuls). Mas o avesso dessabssola feminina uma figura caprichosado real, um supereu feroz e sem limiteque no se submete de modo algum

    regulao flica. Pensemos na rainhaEsther que, no se contentando com o

    massacre de alguns milhares de inimigosde seu povo, pede ao rei Assuero pararecomear no dia seguinte. Demanda queo rei, a um s tempo siderado e fascinadopor sua rainha, executa sem tardar.

    nesse plo que encontramos adimenso do incalculvel. A rivalidadeflica e a castrao no desempenham,aqui, nenhum papel de regulao. Arazo, o clculo, a avaliao no tmacesso aos motivos desse crime. Trata-sede uma voltade de horror sob a formapulsional, que se mantm como tal, cujascoordenadas encontramos na teoria docapricho de Jacques-Alain Miller3. Nummundo que perde a bssola do pai, diantede nossos olhos, essa dimenso deverser bem mais levada em conta todos osdias.

    Leitura segundo a bssola flica

    Voltemos hesitao de Obama diantedo real da Sria. Obama um Hamlet ? primeira vista, sim. A encenao deHamlet sobre Claudius orando, tendodesembainhado sua espada para execut-

    lo a fim de saldar a dvida do pai, emseguida embainhando-a novamente parapostergar o ato, nos fazem pensar nosltimos ziguezagues de Obama.Dificilmente podemos nos desfazer daideia de que, aqui, estamos, diante de umaencenao involuntria da hesitao quedeve ser decifrada. Pois a pantomima queconsiste em declarar durante vrios diasque o ataque iminente, em insistir sobrea validade das provas de que Assad

    cometeu um crime de guerra e, emseguida, recuar diante do ato, no sersem consequncias. O direito e a leidependem de uma fora de dissuaso afim de poderem instaurar a paz. Essaideia, avanada por Freud, tambmconhecida pelos lderes contemporneos.

    A destituio da maior fora de dissuasoameaar a paz no mundo.

    Leitura alternativa

    3 MILLER J.-A., Thorie du Caprice, Quarto, n 71, aot2000.

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    Podemos enumerar um grande nmerode razes que explicam esse recuo: opresidente americano se sentiucompletamente abandonado por seusaliados, sobretudo depois da oposio do

    parlamento ingls participao britnicanos ataques contra a Sria. A operao deque se trata muito arriscada: no sepode prever as reaes da Sria e do Ir.Ser que eles atacaro Israel, Turquia ou

    Jordnia? Etc.

    Todas essas consideraes so por certovlidas, mas podemos tambm decifrar aencenao de Obama, inconsciente ouno, como uma declarao, umamensagem, uma enunciao que diz: Opai inconsistente, ele deps as armas,seus mtodos so obsoletos, no se devemais contar com ele. Torna-se urgenteencontrar outros meios de regulao dogozo. Segundo essa leitura, trata-se deuma interpretao do real do sculo XXI.No fim das contas, essa mensagemconverge com os acontecimentos daprimavera rabe que exilou, assassinou,julgou os que ocuparam os lugares desenhor mais ou menos dspota atdezembro de 2010. Desde ento, omundo posto cada vez mais emdesordem. As tentativas de restaurar o paifracassam e sossobram, elas tambm, na

    violncia. O incalculvel passa frente docalculvel. A antiga bssola se quebrou, preciso encontrar uma nova. Isso urge.

    O incalculvel, o gozo desenfreado cujomotivo no balizamos, respondem, comoformulamos mais acima, pela lgica

    feminina. Mas a psicanlise nos ensina abuscar a soluo no interior do problemae no fora dele. Em outras palavras, naprpria lgica feminina, responsvel peladesordem, que devemos buscar a portade sada dos impasses atuais. Nessesentido, Obama no um Hamlet, masuma Sherazade. Fazer recuar o gozo dedestruio por meio da fala, eis suaestratgia. Ele, assim, se deu alguns diaspara tentar uma troca de falas antes de

    passar ao. Primeira tentativa, nosprximos dias em So-Petersburgo, por

    ocasio da reunio de cpula do G20,quando ele ter a oportunidade de falarcom Putin, sustentculo maior dodspota srio, assim como com outroschefes de Estado, e encontrar, talvez, o

    consenso que lhe permitir uma operaomais eficaz. A segunda se inscreve naspreparaes da reunio do Congresso em9 de setembro, antes do voto sobre ainterveno americana na Sria. Ao fimdesse prazo suplementar, Obama estarmuito provavelmente coagido a assumirseu ultimato e a atacar o regimecriminoso. Mas, no ritmo do sculo XXI,uma dezena de dias uma eternidade. Omundo talvez no seja o mesmo em 9 de

    setembro, o que abrir perspectivas maiseficazes do que aquela que ele podepropor atualmente. No momento em queescrevo estas linhas, a sequncia est nazona do insabido, mas, no momento del-las, o leitor conhecer, sem dvida, asequncia dos acontecimentos.

    4 de setembro de 2013

    Acontecimento de corpo

    Mnica Febres-Cordero

    de Espinel

    Lacan utiliza a seguinte expresso naconferncia Joyce o sintoma: Deixemos o sintoma no que ele : umevento corporal, ligado a que: a gente otem, a gente tem ares de, a gente areja a

    partir do a gente o tem4Jacques-AlainMiller retoma a expresso e diz que coisasacontecem no corpo, coisas imprevistasque lhe escapam5. So acontecimentosque desnaturam o corpo e deixam rastros,acontecimentos dicursivos que odesordenam. Duas vertentes, ento, seperfilam: a do significante e a do corpo

    4 LACAN J., Outros escritos, Rio de Janeiro, J.Z.E.,2003, p. 5655 MILLER, J.-A., Biologia lacaniana eacontecimento de corpo , em Opo lacaniana - RevistaBrasileira Internacional de Psicanlise, n. 41, So Paulo, Ed.Eolia, 2004,p. 51.

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    que, pelo efeito da primeira, perde seunatural. Os rastros do acontecimentofazem sintoma para o sujeito, caso esteos decifre.

    O corpo de que se trata no o corpoimaginrio, que o da forma e do estdiodo espelho. Tambm no o dosimblico. o corpo vivo no qual o gozose aloja pelo efeito do significante. Lacano teoriza a partir do Seminrio 20, comsua elaborao sobre o gozo, o real elalngua. O significante no tem apenasefeitos de significao, mas afeta o corpoe, pela predominncia concedida ao gozoe ao real, o sintoma no mais umaquesto de verdade. Os efeitos de gozodo significante so afetos e o sujeito emquesto no mais o sujeito da lgica,mas o do corpo, o ser falante.

    Em 1975, quando Lacan pronuncia suaconferncia sobre o sintoma, emGenebra, o conceito de lalngua j faziaparte de seu edifcio conceitual. Eleevocava, assim, o encontro dosignificante com o corpo: noencontro dessas palavras com seu corpo

    que alguma coisa se delineia . Trata-se,aqui, do selo, da marca que se inscreveem lalngua, decisiva naquilo que serepetir nos sintomas. A linguagem e suaestrutura passam para um segundo plano,h uma elucubrao sobre lalngua e, emsua aquisio pelo sujeito, so deixadosalguns detritos com os quais ele jogar .Pedaos de real, desfeitos, aos quais virose adicionar os encontros futuros.6

    O acontecimento fundador a incidnciade lalngua sobre o corpo e uma anliseconduzir a encontrar este ponto de gozooriginal que ser o gozo Um. Diz Miller: o gozo fundamentalmente Um, ou seja,ele prescinde do Outro 7. Todo gozo

    6 LACAN J., Confrence Genve sur lesymptme , Bloc-notes de la psychanalyse, n 5, 1985, p.5-23.7 MILLER J.-A., A Orientao lcaniana Aexperincia do real no tratamento analtico , ensinopronunciado no quadro do Departamento de Psicanlise daUniversidade de Paris VIII, lio de 7 de abril de 1999,indito.

    material gozo Um, gozo do corpoprprio. Na conferncia que apresenta otema do IX Congresso da AMP, J.-A.Miller indica como a dimenso do realdecorre desse encontro de lalngua com o

    corpo. Ao mesmo tempo, alguma coisafica fora do sentido, portanto, mais almde todo deciframento. ...O choqueinicial do corpo com lalngua queconstitui um real sem lei, sem regralgica. A lgica se introduz somentedepois 8. O real fica fora e no se deixacapturar. O acontecimento de corpo sesitua no registro do real, ali onde nopodemos captar um gozo que no localizado pelo significante., uma

    satisfao fora do sentido 9

    . Trata-se doque se escreve para alm do inconscientee de suas formaes, que soelucubraes de saber sobre o real numesforo de sentido.

    Os primeiros encontros de lalngua como corpo so contingentes e deixamrastros: so os S1 isolados em umaanlise. a partir deles que a repetio seinstala sob a bandeira do necessrio.

    Trata-se da fico neurtica, afantasmtica de cada um e o real restacomo um naco, um pedao separado dosaber ficcional.

    Em sua lio de 23 de maro de 2011,Miller precisa dois estatutos dosignificante que retomam os pontos queacabo de evocar e desenvolve suasconsequncias. O primeiro correspondeao significante que se situa do lado daletra. Ele se l e prevalece sobre a

    significao. O segundo aquele dosignificante indexado fala. O primeiroestatuto se reporta linguagem, eleimplica a relao significante-significado eo referente, que fugidio. Para apsicanlise, trata-se da vertente do ser talcomo portado pela linguagem: umpare-ser(par-tre), un ser ao lado . A existncia,

    8 MILLER J.-A., O real no sculo XXI.Apresentao do tema do IX Congresso da AMP , emOpo lacaniana, n. 63, junho de 2012, p. 17.9 SALMAN S., El cuerpo en la experiencia delanlisis, Colofn 33, Boletn de la Federacin Internacionalde Bibliotecas de la Orientacin Lacaniana

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    pelo contrrio, dada pela escrita que aalcana e a constitui. O Um da existnciase suporta de um efeito de escritura,diferente do efeito de significao,prprio linguagem e ao ser falante10.

    Assim, em uma anlise, o escritoprevalece sob a forma do que se l noque se ouve. Trata-se do escrito primrioque Miller grafa I (Um em maiscula),seguido de O, crculo que evoca oconjunto vazio, a falta. Uma notao daausncia que se inscreve em par com ainscrio significante, dimenso do real.O Um do significante o da linguagem, oS1 que, ao se introduzir no mundo, odecompe. Podemos isol-lo a partir do

    H o Um, ele diferente da substnciagozante que visa o corpo como o que se goza . O corpo que se goza se situano nvel da existncia.

    A linguagem que se imprime no corpointroduz uma perturbao, uma irrupode gozo que no se adiciona na repetio,uma adio . um gozo fora dosentido numa relao com o significanteUm e no com o saber. Isso nos conduzao real que est no nvel em que aexistncia se conjuga com a escrita, forado sentido 11. O corpo assim marcado o do acontecimento de corpo e a marcano o significante em sua remisso aooutro, mas letra fora do sentido.

    Letter(letra), litter(lixo)

    Em sua conferncia na Sorbone sobreJoyce, em 16 de junho de 1975, Lacanfala do escritor como desabonado do

    inconsciente , e diz que O sintoma emJoyce um sintoma que no lhesconcerneem nada. o sintoma enquanto no hnenhuma chance de que ele se prenda aalguma coisa do inconsciente de vocs

    12.

    10 MILLER J.-A., a Orientao lacanianaO Ser eo Um, 2010-2011, indito.11 Ibidem.12 Lacan J., o Seminrio, livro 23: o sinthoma, Rio de Janeiro,J.Z.E., 2007, p. 161.

    O sintoma o que condiciona lalnguaque Joyce eleva ao estatuto da linguagem sem torn-lo com isso analisvel 13. Naliteratura de Joyce, Lacan apreende oequvoco entre letter(letra) e litter (lixo) e

    diz: A letra dejeto.14

    Com efeito, atenso entre lalngua e linguagem, entre oreal e o sentido sempre interpretvel, localizavel entre duas obras de Joyce:Retrato do artista quando jovem e FinnegansWake. Em Retrato, Joyce interroga oenigma como se este fosse submetido aoque ele chama de mar da linguagem, emum trabalho gozador (jouissif) sobrelalngua que o habita.15 O Retrato dtetemunho de uma vocao para o

    deciframento por meio das mais belasmetforas, ao passo que em FinnegansWake, como Lacan o enfatiza, umarelao com as palavras se impe a ele e oconduz a decomp-las, torc-las atdissolver a linguagem. como se, entreessas duas obras, se realizasse o passo dosentido [pas du sens], mltiplo, rico etransbordante, rumo ao sem sentido [non-sens] que elas encobrem. Em Retrato, Joyceo antecipa: Meu olhar passava de uma

    palavra outra.surpreso de ver que aspalavras estavam esvaziadas tosilenciosamente de sentidoenquanto eucaminhava por entre montes delinguagem morta . Em Finnegans, no hmais efeitos literrios e o que se perfila,ao contrrio, a letra, na qual se verificao sem sentido quando o som dosignificante, por fim, se dissipa.

    Traduo para o francs: Federico Ossola

    O sonho e o real

    Pierre Naveau

    O sonho Pai, no vs que estou queimando?tem um lugar parte. Esse sonho,contado por um paciente, evocado por

    13 Lacan J., ibid., p. 163.14 Lacan J., ibid., p. 162.15Lacan diz de Joyce, falando do Retrato Ele tamm crque h um book of himself. Que ideia essa, fazer de si umlivro! (Lacan J., ibid., p.68.)

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    Freud no comeo do ltimo captulo desua Traumdeutung.Quando Lacan aborda o sonho emquesto, no terceiro captulo do Seminrio11, ele indica, imediatamente, que ele gira

    em torno do lao que une um pai aocadver de seu filho morto16. Depois dehaver velado seu filho, o pai adormece esonha. Seu filho, no sonho, lhe diz: Pai,no vs que estou queimando? Ora, umincndio irrompeu no quarto onderepousava o corpo de seu filho. Eleestava queimando na realidade, diz Lacan,e isto tem sua importncia: no real.O que choca que, de sada, Lacanformula a pergunta: Do que ele

    queima? Sua resposta surpreende: dopeso dos pecados do pai 17. A esserespeito, Lacan se refere a Shakespeare ea Kierkegaard que, com efeito, enfatizamos pecados do pai. Primeiro, Shakespeare.O fantasma (fantme) de seu paiassassinado aparece para Hamlet com asseguintes palavras: Eu sou o esprito de teu

    pai18. Ele lhe revela, ento, ter sido seuirmo, Claudius, que o envenenou e que,assim, ele foi ceifado em plena florao de(seu) pecado. Depois, Kierkegaard.Kierkegaard, em O conceito de angstia,afirma que a culpa entrou no mundo pelo

    vis do pecado e que o pecado hereditrio. O filho herda do pai,precisamente, o pecado19. Em Hamlet,assim como em O conceito de angstia, opecado como tal est implicado pelo fato

    de a sexualidade ser posta em jogo noapenas para que se efetue a passagem deuma gerao outra, mas tambm paraque, ali, haja gozo. No insisto sobre esseponto.

    16 Lacan J., O seminrio, livro 11: o squatro conceitosfundamentais da psicanlise, Rio de Janeiro, J.,Z., E., 1985,p. 41.17Ibid., p. 41.18 Shakespeare, Hamlet, Tragdies, tome I, CollectionBouquins, Robert Laffont, Paris, 1995, p. 902 et p. 906.19 Kierkegaard S., Le concept dangoisse, uvres compltes,tome 7, ditions de lOrante, Paris, 1973, p. 122.

    Freud, em uma nota de p de pgina,aproxima, com justa razo, o Vater, siehstdu denn nicht, dass ich verbrenne ? (Pai, no

    vs que estou queimando?) e o SiehstVater, du den Erlknig nicht ? (Pai, no vso Rei dos Elfos?)20 do poema de Goethe

    Erlknig, no qual trata-se igualmente daligao que une um pai e seu filho morto.Lacan retoma o sonho Pai, no vs que estouqueimando? no quinto captulo doSeminrio11.

    O que que desperta pai? , se interrogaele. Para Freud, o claro do incndio.Para Lacan, foi o barulho feito pelo crio

    que, ao cair, ateou fogo nos lenis dacama. O sonho Pai, no vs que estouqueimando? realiza, segundo Freud, odesejo de um pai de ver e ouvir, pelomenos ainda uma vez, seu filho vivo.Este no lhe diz alguma coisa que mostraque ele est vivo? Desse ponto de vista, osonho, diz Lacan, no apenas umafantasia preenchendo uma aspirao 21.Ele no concorda com Freud. A esserespeito, ele observa que h uma quase-

    identidade entre o que acontece nosonho e o que se passa na realidade. Eleformula assim sua objeo: A est umacoisa que parece pouco adequada paraconfirmar a tese de Freud [...] que osonho uma realizao de desejo22

    A partir da, Lacan insiste: o que despertao pai? Ele ento enfatiza uma outrarealidade 23 diferente daquela quecorresponde ao que acontece na realidade

    o acidente do incndio. Essa outra

    realidade, precisa Lacan, assim descritapor Freud: A criana est perto de suacama, pega (o pai) pelo brao e lhemurmura num tom de repreenso: Pai,no vs que estou queimando?.24 Aoutra realidade qual, por isso mesmo,ele alude, a que Lacan designa nosseguintes termos: a realidade faltosa

    20 Cf. bragamusician.blospot.com.br21Lacan J., O Seminrio, livro 11: os quatro conceitos

    fundamentais da psicanlise, op. cit., p. 63.22Ibid., p. 62.23Ibid., p. 62.24Ibid., p. 41.

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    que causou a morte da criana 25. Osonho, diz Lacan, uma homenagem aessa realidade faltosa 26. O encontroentre o pai e o filho no acontece e noacontecer. Esta a causa da febre que

    faz o corpo da criana queimar. A crianamorta, pegando seu pai pelo brao - viso atroz , nota Lacan , designa,indica ele, um mais alm que se fazouvir no sonho 27.O que esse mais alm? O mais alm deque fala Lacan mostra alguma coisaimpossvel para um ser conscienterepresentar. Somente num sonho podeacontecer esse encontro impossvel entreum pai e seu filho morto, ali onde a perda

    experimentada pelo pai s pode sersentida como terrivelmente cruel 28.Um tal encontro, de fato, indizvel:primeiro, ningum pode dizer o que sejaa morte de um filho para um pai 29.Segundo, o pai de que se trataria porocasio de um impossvel encontro comoesse seria, caso existisse, o pai comopai 30. Ora, acrescenta Lacan, nenhumser consciente 31 pode ser um tal pai. Emoutras palavras, ningum sabe o que o

    pai enquanto pai . Um pai desse tipo spode ser inconsciente.Por essa razo, afirma Lacan, o quedesperta o pai-que-sonha muitosimplesmente esta frase que, diz ele, ,ela prpria, uma tocha 32 e que, porconseguinte, traz, nela mesma, o fogo:Pai, no vs que estou queimando? O filhoqueima pela frase da qual ele , no sonho,o inacessvel sujeito da enunciao, uma

    vez que a morte lhe arrebatou a fala para

    sempre. Assim, essa frase diz o que nopode ser dito o prprio real. O que sefaz ouvir no mais alm, de que fala Lacan,, portanto, esse real de um impossvel,de um indizvel, de um inacessvel, emsuma de um destino singular que

    25Ibid., p. 62.26Ibid., p. 6327Ibid., p. 62.28Ibid., p. 63.29

    Ibid

    ., p. 63.30Ibid., p. 63.31Ibid., p. 63.32Ibid., p. 64.

    conduziu uma criana a ser arrancada deseu pai.

    A fantasia, a que a interpretao de Freud reduzida por Lacan, , assim a tela quedissimula 33 o trauma do encontro

    faltoso.Lacan, ento, surpreende ao dizer que altima palavra da histria o termo queFreud encontrou para designar o queescapa representao o Trieb34. H,aqui, um enigma. Talvez, aqui, possamosdar a um tal enigma seu alcanceressaltando que, na lngua alem, adiferena entre Traum, o sonho, eTrauma, deve-se to somente a uma letra

    a letra a, aquela que, precisamente,

    denomina, na lgebra de Lacan, o objetoque a pulso contorna.

    No sculo XXI, um real

    que faz a lei

    Maria Laura Tkach

    Em sua apresentao do tema do IX

    Congresso da AMP, O real no sculoXXI, Jacques-Alain Miller nos convida acontinuar o trabalho comeado emrelao ao tema do VIII Congresso, ouseja, interrogar nossa prtica e suascondies de lao social, a partir do mal-estar da civilizao do sculo XXI.

    Parece evidente a todos que, pelo menosassim para ns graas a Freud que oesclareceu, at o sculo XX com

    modalidades diversas segundo osdiferentes contextos histricos, polticose culturais , esse mal-estar era o efeitode uma lgica de lao social fundadasobre o Nome-do-Pai, para diz-lo comLacan. Sobre o Nome-do Pai comoponto de referncia especfico, pedraangular, pilastra de um tal lao, assimcomo do prprio sujeito.

    33Ibid., p. 64.34Ibid., p. 64.

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    O que significava isso, no que dizrespeito ao trabalho que cada um deverealizar em relao ao real o impossvelde enunciar - que o concerne? Comalgumas diferenas, de um modo ou de

    outro, isso implica no fato de que, para setornar sujeito e se orientar para umaidentificao sexual, cada um possapassar atravs do Pai e utiliz-lo comoum instrumento.

    Sabemos que esse instrumento serevelou, a cada vez, defeituoso e que apsicanlise foi o discurso que melhorsoube recolher os restos de cada um,cados dessa mquina desfalecida.

    Freud introduziu o mito de dipo comoa trama de relaes inconscientes sobre aqual se funda a estrutura subjetiva,individualizando no complexo de dipoum momento estrutural e estruturante decada um.

    O real dos sintomas incita os sujeitos a seenderearem a Freud, que notifica o fatode que eles lhe falam de papai e mame e do sexual. Assim, na elaborao de sua

    prtica clnica, para dar conta do real como qual ela o confronta, Freud forja omodelo do aparelho psquico queconhecemos a partir da primeira e dasegunda tpicas, o complexo de dipo eo complexo de castrao, no qual o paitem a funo de agente.

    A clnica freudiana, como tambm aquelaque diversas geraes de analistasconheceram depois dele, at dez anos

    atrs, era uma clnica da qual se deduzque o saber, entendido como um querersaber , tinha uma funo fundamentalpara esses analisantes. Alm disso,tratava-se de um querer saber enganchado a um simblico e a umimaginrio compostos, em sua maioria,de elementos ligados ao romance familiar.

    Esses sujeitos tentavam dizer o indizveldo real da no relao sexual com a ajudados significantes e das imagens ligadas sua histria pessoal, fortemente marcadapelas experincias do contexto familiar,

    tomado tambm no sentido de cadeiasgeracionais.

    Com a introduo da teoria dosignificante, do primado da linguagem e,consequentemente, do simblico, Lacanpermitiu a seus alunos, assim como aoutros, poder compreender os elementossimblicos j presentes na teoriafreudiana, tornando-os mais operativos.Isso permitiu igualmente distanciar-se deuma concepo demasiado imaginria daestrutura do sujeito e da experinciaanaltica, uma concepo que se impuserano seio de uma certa psicanlise.

    Ao inventar a psicanlise, Freud ofereceu

    ao mundo um discurso novo. Com seusaportes tericos e epistemolgicos, Lacannos deu a possibilidade de, na clnica,fazer a diferena entre os elementossimblicos e os imaginrios sabendoque ambos so enganadores e orientarnossa prtica em direo ao ncleo doreal.

    Esse real o da no relao, aquele parao qual no existe, na estrutura, um saber

    sobre a sexualidade. Mas como se declinaesse real nos sujeitos contemporneos,para quem o Ideal paterno est ausente?Um real que era o mesmo para os sujeitosque viviam na poca do Pai, mas quedispunham dos significantes paraenganch-lo.

    M. um jovem de vinte e um anos aquem atendo h um ano. Ele foi seconsultar com um analista pelo fato de

    seu local de trabalho ter se tornadoinvivel para ele. Ele quase nunca faloude sua histria familiar, nem de seus pais,exceto nas raras ocasies em que tenteilhe fazer algumas perguntas. Emcontrapartida, muitas vezes elemencionou a existncia de um irmo mais

    velho, com quem ele diz ter uma relaoparticularmente problemtica, na qualpredominam a imagem especular e aagressividade. Pude constatar que a nica

    vez em que M. deixou-se levar falando deseu pai, qualificando sua maneira de lidar

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    com seus filhos como desvalorizante esempre crtica, ele utilizou, na sequncia,de maneira mais intensa, tons de voz epalavras que revelavam uma forteagressividade para com seus atuais

    colegas de trabalho. Entre estes, asmulheres se tornavam para ele, por vezes,realmente insuportveis.

    M. diz, com grande lucidez, que completamente inapto para as relaesinterpessoais, enunciando, assim, o realda estrutura. O analista poderia lhe dizer: Voc tem razo! Voc j sabe o queoutros s conseguem cernir no final deuma longa anlise! Bem, voc pode irembora. E concluir assim o tratamento.

    Mas essa no a tica da psicanlise. Nosabemos, realmente mas podemoshipotetiz-lo -, os efeitos que uma talconcluso poderia ter sobre um sujeitocomo M. Ela poderia provocar, nele, umefeito de total fechamento.

    Nesse caso, o analista tenta se tornaralgum com quem M. pudesse conversare, assim, acompanh-lo, eventualmente, a

    fim de que ele pudesse cingir, em seudisurso, alguma coisa que lhe pudesse sertil para encontrar um semblante derelao com os outros.

    Graas a um trao localizado em seuchefe, que oscila entre o humor e a ironia

    um trao que ele imita transformando-onuma espcie de stira -, M. encontrou,por ora, um modo que lhe permitemelhor tolerar a ambiente de trabalho.

    Nesse pequeno mundo de trabalho, essechefe representa para M. um ponto dereferncia possvel, o nico que no setorna um semelhante entre ossemelhantes com os quais se pe em atoa lgica ou eu, ou voc .

    Atualmente, a stira o sinthoma quepermite a M. introduzir um artifcio quefaz funo de Nome-do-Pai, a fim decontrolar as imagens e as falas de todosesses outros demasiado reais para ele.

    Em nossa prtica, encontramos, comfrequncia, sujeitos que do testemunhode uma espcie de estrutura a cuaberto, ou de um real que, mesmo lhespropiciando sofrimento, no os impele a

    se interrogar sobre sua causa.O analista sabe, por ter passado pelaexperincia, no haver causa que d umsentido ao real que no tem sentido. Masele aprendeu igualmente, com a tica dapsicanlise, que uma sada possvel, vivelpara um sujeito, consiste em assumirsubjetivamente o real que lhe concerne.Sem esquecer, no entanto, que restasempre um resto no subjetivvel.

    Isso poder permitir a alguns localiz-lo,tomar dele alguma distncia e torn-looperativo no lao social.

    Outros, ao encontrarem um analista,podero chegar a construir para si umsinthoma com o qual enlaar o real, osimblico e o imaginrio, a fim de evitar,como no caso de M., que os dois ltimospasseiem sozinhos, deixando todo ocampo disponvel ao real para que este

    faa a lei.Traduo para o francs: Brigitte Laffay

    Ordenar o real: das leis

    da natureza aos cdigos

    e algoritmos

    Vronique VoruzEm O real no sculo XXI35, Jacques-AlainMiller abre a via de um mais alm para otema do ltimo Congresso da AMP, queera a transformao da ordem simblica.

    Ali, ele desenvolveu a hiptese de que astransformaes da ordem simblica tmum efeito sobre o prprio real e que,agora, somos confrontados com as

    35 Miller, J.-A., O real no sculo XXI, em Opo Lacaniana,n. 63, So Paulo, Ed. Eolia, junho de 2012, p. 11-19.

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    consequncias subjetivas de uma desordem no real .

    No h, claro, experincia anistrica darealidade; nossas realidades so os efeitosdos discursos que as produzem. Mas, queo prprio real esteja sujeito mudana ,eis uma tese que d o que pensar.

    De certa maneira, Lacan j havia tratadodo assunto no Seminrio 17. Em O avessoda psicanlise, ele inventa os quatrodiscursos para formalizar e interpretaruma mutao especfica de nossacivilizao: o discurso universitrio, sob aforma do discurso da cincia, est emcondies de se tornar o discurso do

    mestre, relegando ao segundo plano todasas verdades que no so a verdadeformal. No captulo XI desse Seminrio,Lacan acrescenta que essa mutaotransforma nosso prprio meio ambiente.O sentido sexual , o imaginrio dosentido sexual, est perdendo a

    velocidade, no que concerne ordenaoda experincia humana.36 Nosso meioambiente est, portanto, cada vez menosorganizado segundo os princpios macho

    e fmea, afirma Lacan.

    Vivemos, antes, num mundo ordenadopor uma ordem simblica divorciada dodesejo e que produz uma verdadeformal . O que a verdade formal? Paradiz-lo simplesmente: uma proposio

    verdadeira se, a cada aplicao de umamesma frmula, seguir-se o mesmoresultado. O mundo natural da cinciaenquanto conhecimento um saber

    obtido pela percepo d lugar aletosfera, ou ao mundo da cinciaenquanto verdade formal: na mdida emque a cincia se refere aenas a umaarticulao, que s se concebe pela ordemsignificante, que ela se constri comalguma coisa da qual antes no havia nada37 E, em vez dos objetos do corpo, asformas mais clssicas do objeto a, aaletosfera produz latusas, os objetos do

    36 Lacan J. , o Seminrio, livro 17 : avesso da psicanlise,captulo XI.37Ibid. 152.

    real da cincia. Essa dimenso de nossotempo foi recentemente explorada porocasio do Congresso da NLS, em

    Atenas, quando a expresso i-objetos foi inventada para fazer referncia s

    latusas da pocageekA outra referncia chave tratando damodificao do estatuto do real oSeminrio de ric Laurent e de Jacques-

    Alain Miller, O Outro que no existe e seuscomits de tica.38 Nesse curso, Laurent eMiller falam da desmaterializao do realproduzida pelo discurso da cincia. Comocompreender essa desmaterializao?Primeiro, especificando a inexistncia doOutro39 como sendo a dissoluo do laoentre S e s. Portanto, se a cinciadesmaterializa o real, isso no se datacando o prprio real, mas destruindo aconexo entre S e s, o que dissolve afico de uma ordem natural. ConformeMiller o formula nesse curso, a cinciacomeou a dissolver a fico do real aponto de a questo O que o real? s terrespostas contraditrias, inconsistentes,em todos os casos, incertas (lio de20/11/1996). Podemos correlacionaressa interpretao com o que Milleracrescenta em sua apresentao doCongresso da AMP de 2014, a saber: aagitao retrica do significante no dizerhumano se ver enquadrada por umatrama de significantes fixos como osastros Para diz-lo de outro modo, a

    vida humana, agitada, foi outroraenquadrada pelas leis da natureza, elasmesmas ancoradas em significantes fixos.Mas capitalismo e cincia secombinaram para fazer desaparecer anatureza e o que resta do desvanecimentoda natureza o que chamamos de real,quer dizer, um resto, desordenado porestrutura.

    Como o sculo XXI faz face a esse realdesordenado, divorciado da natureza, um

    38 Laurent E. and Miller J.-A., O Outro que no existe eseus comits de tica , a Orientao lacaniana, (1996-7),indito.39 Desenvolvido por ric Laurent em Psychosis, or RadicalBelief in the Symptom, Hurly-Burlyn8, October 2012.

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    real que resiste fixo cientfica?Substituindo as leis naturais por cdigosque, se no inscrevem o real emlinguagem cientfica, se no pretendemdecifrar um saber suposto no realcomo

    acreditam faz-lo alguns cientistasquando, por exemplo, escrevem umasequncia ADN -, tentam guiar oscomportamentos humanos analisando eorganizando quintilhes de data-bytesrecolhidos por intermdio da Internet,dos Smartphones, dos cartes de crditoe de fidelidade, dos hbitos de consumo,das redes sociais online, etc. O Big Data,como chamado, analisado pelosquants (uma profisso relativamente

    nova: analistas quantitativos) que seservem de algoritmos sempre maiscomplexos40, cujas funes so triplas: 1)predizer os comportamentos humanos eno humanos a partir de clculos deprobabilidades; 2) influenciar oscomportamentos humanos orientando asatividades em funo das escolhaspassadas e das preferncias supostas(sugestes de shopping online, sugestesde contato via Facebook e LinkedIn,

    encontros nos sites de encontros online,recrutamento de funcionrios ou seleode estudantes); 3) realizar tarefas que oshumanos realizavam tradicionalmente,porm de modo mais rpido, mais eficaz,com uma margem de erro reduzida ounula (trading sobre os mercadosfinanceiros, diagnsticos mdicos, leiturade documentos jurdicos, dirigir carro41,escrita de artigos de imprensa quaseconcomitantes com o acontecimento,

    programao de rdio baseada nasescolhas da audincia, etc.)42.

    40 Os algoritmos so conjuntos de instrues visando aproduzir uma reao ou um comportamento sobre a basedos dados disponveis.41 Prottipos do carro Google, conduzidos por algoritmosque recolhem toda uma srie de dados sobre o meioambiente (circulao, rede de estradas, poluio) e,consequentemente, instruem o carro, esto atualmentesendo testados em Silicone Valley. O nico acidente queum carro Google teve foi quando estava sendo conduzidopor um humano.42 Sobre o crescimento rpido da utilizao de algoritmosem todos os domnios da vida humana ver Steiner C.,

    Automate This: How Algorithms Came to Rule Our World,Penguin(2013).

    Recentemente, os algoritmos se tornaramde notoriedade pblica, pois produziramum crash financeiro em Wall Street,devido a um disfuncionamento (6 demaio de 2010). Do mesmo modo, as

    revelaes de Edward Snowdenmostraram que algoritmos de vigilnciaeram utilizados de maneira rotineira pelosservios secretos, como a NSA americanaou o GCHQ ingls, para analisar ascomunicaes eletrnicas de todomundo, a partir de palavras-chave ou decombinaes de palavras. No momento,a reao da maioria das pessoas emrelao aos algoritmos oscila entreutilidade e ameaa.43 No h julgamento

    quanto sua existncia, a nica questoconcerne sua utilizao.

    Os cdigos e os algoritmos substituem asleis, naturais e humanas, na ordenao doreal. Eles provm da cincia, mas nooperam como fixo do real. Eles criamuma ordem que s se apia muito poucosobre o sentido. Eles se servem deprobabilidades extradas de anlises dedados exaustivos e so reativos aos

    acontecimentos imprevistos: elestransformam toda evoluo inesperadaem uma varivel a mais. Um algoritmoimperfeito justo um algoritmo ao qualfalta uma varivel. Ele nunca inconsistente, mas sempre incompleto. Osbots, como so chamados os gigantescoscomputadores que tratam do Big Data,analisam inclusive a linguagem humanaem nossos e-mails e conversaestelefnicas, a fim de repartir os humanos

    em categorias (lderes/seguidores, tiposde personalidade, etc.).

    Estamos, sem dvida alguma, assistindo aemergncia de uma nova modalidade quepenetra todos os domnios. Ela procedepor virtualizao do real, embora deixe oreal real intacto. Talvez seja por issoque a dimenso do traumatismo retornecom tanta fora. A quadragsima terceira

    43Assim como o sustenta Chris Steiner em sua confernciaTED, http://www.youtube.com/watch?v=H_aLU-NOdHM

    http://www.youtube.com/watch?v=H_aLU-NOdHMhttp://www.youtube.com/watch?v=H_aLU-NOdHMhttp://www.youtube.com/watch?v=H_aLU-NOdHMhttp://www.youtube.com/watch?v=H_aLU-NOdHM
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    Jornada da ECF, em novembro, situadasob a gide desse significante, nospermitir explorar esse tema.

    Poderiamos dizer que um dos nomes

    desse real real natureza -o que no sem ironia -, que retorna como desordemprimeira no discurso sobre a mudanaclimtica sob a forma de catstrofesnaturais?

    Traduo: Vera Avellar Ribeiro