154
OS ANARQUISTAS JULGAM MARX Alexandre Skirda Rudolf Rocker Daniel Guérin Michel Ragon Maurice Joyeux Gaston Leval Jean Barrué Eric Vilain Seleção e Tradução Plínio Augusto Coêlho

Os Anarquistas Julgam Marx

Embed Size (px)

Citation preview

Page 1: Os Anarquistas Julgam Marx

OS ANARQUISTAS

JULGAM MARX

Alexandre SkirdaRudolf RockerDaniel GuérinMichel Ragon

Maurice JoyeuxGaston LevalJean BarruéEric Vilain

Seleção e Tradução

Plínio Augusto Coêlho

Page 2: Os Anarquistas Julgam Marx
Page 3: Os Anarquistas Julgam Marx

SUMÁRIO

KARL MARX, A TÊNIA DO SOCIALISMO!

Maurice Joyeux13

GÊNESE E SIGNIFICAÇÃO DO MARXISMO

Alexandre Skirda29

MARX E A SOCIAL-DEMOCRACIA

Daniel Guérin

49

o JOVEM MARX E OS PATINHOS FEIOS

Jean Barrué57

MARX ERA REALMENTE MARXISTA

Michel Ragon

79

MARX E O ANARQUISMO

Rudolf Rocker

85

BAKUNIN

E O ESTADO MARXISTA

Gaston Leval

107

A QUESTÃO ECONÔMICA

Eric Vilain135

Page 4: Os Anarquistas Julgam Marx
Page 5: Os Anarquistas Julgam Marx

No Estado popular do Sr. Marx, dizem, não haverá classeprivilegiada. Todos serão iguais, não só do ponto de vista jurídicoe político como também do ponto de vista econômico. Pelo menosassim no-lo prometem, embora eu duvide muito de que, da ma-neira como é encarado e pela via que se quer seguir, se possamanter a promessa. Então, já não haverá mais nenhuma classe,mas um governo e, reparem bem, um governo excessivamentecomplicado, que não se contentará em governar e administrar asmassas politicamente, como o fazem hoje todos os governos, mastambém as administrará economicamente, concentrando em suasmãos a produção e a justa repartição das riquezas, a cultura daterra, o estabelecimento e o desenvolvimento das fábricas, a orga-nização e a direção do comércio, enfim, a aplicação do caPital naprodução pelo único banqueiro, o Estado. Tudo isto exigirá umaimensa ciência e muitas cabeças transbordantes de cérebro nestegoverno. Será o reino da inteligência científica, o mais aristo-crático, o mais despótico, o mais arrogante e o mais desprezívelde todos os regimes. Haverá uma nova classe, uma nova hierar-quia de savants reais e fictícios, e o mundo se dividirá em umaminoria dominando em nome da ciência, e uma imensa maioriaignorante. E então, cuidado com a massa dos ignorantes!

Tal regime não deixará de provocar seríssimos desconten-tamentos nesta massa, e, para contê-la, o governo iluminador eemancipado r do Sr. Marx necessitará de uma força armada nãomenos séria. *

MIKHAIL BAKUNIN

* "Lettre aux compagnons du Jura", in Archives Bakounine, Leiden,1965, t. III, p. 204.

Page 6: Os Anarquistas Julgam Marx
Page 7: Os Anarquistas Julgam Marx

NOTA DO EDITOR

Os anarquistas franceses - como escreve Roland Bosde-veix no Editorial do nQ 33 da revista LA RUE - acharam que"era imperativo que, ao modo dos anarquistas, fosse lembradoum certo número de verdades ou, pelo menos, evidências"sobre o personagem Marx e seus discípulos.

Os textos de Oaniel Guérin, Michel Ragon, Maurice[oyeux, [ean Barrué e Eric Vilain foram extraídos do númeroespecial, Marx: No Future!, nQ 33 da Revista Cultural e Literáriade Expressão Anarquista LA RUE, publicada em 1983 peloGrupo Libertário Louise Michel, da Federação Anarquista daFrança. Esse número especial foi lançado no momento em queos marxistas de todo o mundo comemoravam o centenário damorte de Karl Marx.

O texto de Alexandre Skirda foi-nos entregue pelo pró-prio autor, enquanto os de RudolfRocker e Gaston Leval foramextraídos da brochura publicada por Les Editions de l'Entr'aide(edição do Grupo Sacco e Vanzetti da Federação Anarquistada França) em 1983, tendo por título: "Marx, le ténia du 50-

cialisme".

Page 8: Os Anarquistas Julgam Marx
Page 9: Os Anarquistas Julgam Marx

OS ANARQUISTAS

JULGAM MARX

Page 10: Os Anarquistas Julgam Marx
Page 11: Os Anarquistas Julgam Marx

KARL MARX,A TÊNIA DO SOCIALISMOJ1

Maurice Joyeux

Há cem anos desaparecia Marx. As sociedades comu-nistas vão comemorar o evento tocando címbalo, mais osten-sivamente na Rússia e nas democracias populares, e com menosfausto por parte dos partidos comunistas ocidentais onde setem mais dificuldade de fazer coincidir as profecias do "GrandeSachem'". com os imperativos impostos pela evolução econô-mica e social da humanidade. Entre os cidadãos que rejeitaramo marxismo, falar-se-á dele com esta ignorância e este despre-endimento inevitáveis, com os quais se fala dos personagensque representaram um papel, mas que o tempo atenua semapagar completamente.

Fora de uma obra ideológica discutível, e pelo lugar queele ocupa na história, Marx merece algo mais que os propósitosditirâmbicos de uns ou a indiferença de outros. Seu destino,simultaneamente complexo e apaixonante, desposa sua época.Ele nasceu no início de um século que vai parir uma trans-formação prodigiosa da economia que tornará o lugar outroraocupado pela filosofia na preocupação intelectual dos homens,e em um tempo em que as mutações se realizam numa cadên-cia desconhecida desde as origens. Pertencerá a um grupo deideólogos que, assim como ele, tomaram consciência do futuroque espera a sociedade, acompanhando-a intelectualmentedurante a primeira parte de sua existência. O destino desses

Page 12: Os Anarquistas Julgam Marx

14 OS ANARQUISTAS JULGAM MARX

homens, com imenso desejo de compreender, conhecer, expli-car e, enfim, pensar a evolução que se delineava, será o de daruma forma primeira ao que se pode chamar, no sentido maisamplo do termo, o socialismo. Eles reivindicarão o termo emvoz alta, antes que suas diferentes contribuições pessoais con-duzam as elites a singularizá-Ias por uma fórmula particular queatesta melhor seus propósitos. Essa fórmula delimitará suasconquistas teóricas e sublinhará suas ambições particulares.

Eles são, aliás, e Marx mais do que os outros, os herdeirosde Ricardo, economista inglês, que para definir o percurso dalivre-troca na economia capitalista em seu começo, estudarácom minúcia os elementos da produção, da distribuição e de-terminará a parte respectiva do salário e do lucro. Entre esseshomens que vão tomar um caminho paralelo ao de Marx, algunsnomes: Saint-Simon, Fourier, Pecqueux, Cabet, Considérant,Proudhon, Engels, Bakunin, Kropotikin, Louis Blanc, Blanquie tantos outros ainda que reivindicarão cada um deles umsocialismo à sua maneira. Entretanto, é incontestável que éKarl Marx quem fará a penetração mais espetacular no tempo,como também é ele quem suportará melhor o passar do tempo,por razões que não são todas devidas ao talento ou à evoluçãoeconômica, mas igualmente aos avatares que determinam ocaminho seguido por este sistema capitalista por ele conde-nado e que conseguirá superar suas contradições. Dentre oshomens que foram simultaneamente seus contemporâneos eseus adversários, só Pierre- [oseph Proudhon terá um destinocomparável ao seu. E hoje, servindo-se do que resta atual desuas obras, é ainda, é sempre Marx e Proudhon que se lançamà frente das escolas socialistas que se afrontam.

* * *

Page 13: Os Anarquistas Julgam Marx

KARL MARX, A TÊNIA DO SOCIALISMO 15

É bem conhecido que no início dos anos 1840 o projetodos jovens hegelianos alemães, agrupados em torno de KarlMarx, e que se chamam Grün, Ewwerbeck, Weitling, Rüge ealguns outros, sonha com uma "Santa Aliança" intelectualcom os socialistas franceses, a fim de operar uma síntese entrea filosofia francesa e a filosofia alemã. Projeto difícil, pois osocialismo francês naquele momento encontra-se fragmentadoe, Proudhon à parte, veicula o mal cheiro do jacobinismo saídodas grandes horas da Revolução Francesa de 1789. Mas o prin-cipal obstáculo a este internacionalismo em desenvolvimentoserá a confusão ideológica que tem por fonte a obra de Hegel,mal lida ou mal digerida. O jornal que devia ser o suporte destaaliança, Os Anais Franco-Alemães, só terá um número. Entre-tanto, "o cartaz" poderia ter sido sensacional se se acrescen-tasse aos nomes já citados os de Engels e de Bakunin. Todosesses homens reunidos durante um curto instante em Parispara um grande trabalho, reprimidos em seguida pelo rei bur-guês Luis-Felipe, inquieto por esta invasão intelectual, vão sedispersar pela Europa e, durante esses quatro anos (1844-1848)que precedem os espasmos revolucionários que vão agitar asvelhas autocracias européias, provocam o aprofundamento dasdiferenças que os opõem, esboçando o que será mais tarde omapa ideológico do socialismo pelo mundo.

Entre o humanismo ateu de Feuerbach, o deísmo de LouisBlanc, o jacobinismo centralizador de Marx, e o economicismoigualitário de Proudhon, a margem de acordo é muito peque-na. Mas os jovens hegelianos alemães não se considerarão ven-cidos, e Marx, depois Grün, tentarão converter Proudhon àdialética de Hegel. Proudhon, que não fala alemão, não leuHegel. O que lhe dizem seus amigos alemães sobre o assuntoirá inflamar sua imaginação a tal ponto que o levará a criar suaprópria dialética: a "dialética serial", que ele proclamará bemsuperior àquela do filósofo alemão, e cuja demonstração assen-

Page 14: Os Anarquistas Julgam Marx

I16 OS ANARQUISTAS JULGAM MARX

tará sobre as antinomias, quer dizer, sobre as contradições nasquais vai procurar o equilíbrio numa obra espessa e confusa:Sistema das Contradições Econômicas, mais conhecida sob otítulo Filosofia da Miséria. Afirmou-se que foi por causa desselivro que ocorreu a ruptura entre esses dois homens, e é ver-dade que Miséria da Filosofia, onde Marx, com uma vivacidadeincontestável, percorre a obra de Proudhon, permanecerá osímbolo dessa ruptura; apesar desta já ter sido consumada, elafoi o fruto das querelas que agitavam os jovens hegelianosalemães. Até então Marx tinha se adaptado às diferenças entreseu socialismo e o de Proudhon, e tinha inclusive tomado adefesa deste último em seu livro A Sagrada Família. Natural-mente, estas diferenças tinham sido por ele sublinhadas, masele não perdia a esperança de conduzir Proudhon ao terrenopuramente econômico, que será mais tarde o do materialismohistórico e dialético. O homem é ambicioso, seu caráter é in-tratável e, assim, tentará envolver Proudhon nas querelas queopõem os socialistas alemães. Proudhon recusa-se a se deixararrastar por querelas que não lhe concernem, e será a ruptura.

Conhecemos as duas cartas que delineiam perfeitamenteo caráter diferente dos dois homens. A carta de Marx onde, emum post-scriptum, vomita sua bílis sobre Grün, e a resposta deProudhon, cheia de dignidade, pedindo a seu correspondenteque mantenha as "discussões necessárias sobre o plano dasidéias". Esta correspondência é interessante pois situa Marxcom exatidão em suas relações com os socialistas de seu tempo.É exemplar para nós anarquistas, pois retrata a parte do homemno funcionamento intelectual que resulta na criação teórica.Quando toma conhecimento de Miséria da Filosofia, que é umacrítica de sua obra Filosofia da Miséria, Proudhon fará estasimples reflexão: "Marx diz a mesma coisa que eu; o que ele mecensura é o fato de tê-Ia dito antes dele", o que é discutível.Ele acrescentará: "Marx é a tênia do socialismo".

Page 15: Os Anarquistas Julgam Marx

KARL MARX, A TÊNIA DO SOCIALISMO 17

Esta atitude de Marx diante dos homens que aparecerãocomo seus adversários jamais será desmentida, e um poucomais tarde, quando expulso da França e refugiado em Bruxelas,vai outra vez espalhar calúnias, desta vez contra Bakunin. Ser-vindo-se de uma confidência que George Sand ter-lhe-ia feito,vai acusar o revolucionário russo de ser um agente do czar.Esta, obviamente, o desmentirá, e estamos de posse de suacarta a Bakunin em que ela se indigna por tais procedimentos.,O que pensam vocês que fez Marx? Desculpou-se? Apenastomou conhecimento do desmentido e tentou justificar-se,mostrando a necessidade de proteger o movimento revolu-cionário das ações da polícia dos governos capitalistas. O pro-cedimento é indecente e parte da clássica idéia: caluniem,caluniem, alguma coisa disso permanecerá! Esta atitude o dei-xará durante anos à margem do socialismo francês, e apenas osblanquistas, quando tiverem aderido à Internacional, fornecer-lhe-ão um público flutuante. Proudhon eliminará Marx e suaobra - que por sinal só entrará na França muito mais tarde -de suas preocupações. Mas se Proudhon e os socialistas fran-ceses ignoram Marx, este, por sua vez, não os ignorará e con-sagrar-lhes-á um certo número de artigos que, reunidos maistarde, formam um volume: A Luta de Classes na França, quenão deixará de ser interessante, e no qual ele critica seve-ramente o Banco do Povo de Proudhon. É, nesta ocasião, queele fala pela primeira vez "de um socialismo pequeno-burguêscom o projeto de associar o assalariado e o capital". Propósitosevidentemente injuriosos que serão propagados contra os anar-quistas até nossos dias pelos asnos que pastam com dificuldadena prosa do mestre. Seu livro, Crítica da Economia, é uma res-posta ao projeto de crédito gratuito exposto por Proudhon emIdées Générales sur la Révolution. Entretanto, os homens terãode escolher entre estas duas idéias abruptas: é o meio que mo-difica o homem como quer o materialismo histórico de Marx,

Page 16: Os Anarquistas Julgam Marx

18 OS ANARQUISTAS JULGAM MARX

ou é o homem que modifica as circunstâncias como procla-mava Proudhon? Na realidade, a verdade é diferente dos argu-mentos que esses homens apaixonados se lançam no rosto. Ohomem modifica o meio que o agita e inscreve-se no meio queguia seus procedimentos. Mas o que dá ao materialismo dia-lético um aspecto tão superficial quanto o da redenção é o fatode ser impossível delimitar exatamente a parte do homem e domeio, e o instante em que um e outro intervêm, o que tornairrisória esta caminhada inelutável traçada pelos evangelhospolíticos ou religiosos e deixa ao homem, "independente deDeus ou de Marx", o cuidado e a responsabilidade de traçar seucaminho a qualquer momento que seja!

N aquela época, contudo, a influência de Proudhon au-menta, e em sua correspondência com Engels, Marx se preci-pitará sobre sua caneta para caluniar uma última vez seuadversário que, diz ele, é "uma contradição viva". Todavia, nãoconsegue acabar com Proudhon, pois o reencontrará, ou me-lhor, reencontrará sua influência no seio da Primeira Interna-cional, antes de se chocar com outro anarquista, Mikhail Ba-kunin! Convém ainda ressaltar que durante todo esse primeiroperíodo, o rancor e a vaidade do personagem vão se chocarcom outros representantes do socialismo alemão que tentarásubjugar com a cumplicidade de Engels.

* * *

É justamente na volumosa correspondência que mantémcom Engels que Marx revela melhor sua verdadeira persona-lidade. Os revolucionários daquela época, que não dispunhamde nossos meios modernos de informação, mantiveram umacorrespondência volumosa. Esta prosa epistolar, que tem avantagem de nos fazer penetrar nos "segredos de alcovas" polí-ticas, nas quais estes senhores lavam sua roupa suja em família,

Page 17: Os Anarquistas Julgam Marx

KARL MARX, A TÊNIA DO SOCIALISMO 19

nem sempre é apetitosa. Aliás, adivinha-se, pelo estilo dessa"Correspondência", dessas "Anotações", desses "Bilhetes" que,por falso pudor, pretende-se conservar para si, mas que na rea-lidade são escritos para serem publicados "depois", quando, nafalta do juízo de Deus, soará o dos homens. É nessas correspon-dências "confidenciais" que as opiniões se manifestam, que oscaracteres se delineiam, que os ódios aparecem com maiorclareza. Nesse campo, a correspondência entre Marx e Engels,sobre Proudhon, Bakunin e alguns outros, é edificante.

Naquela época, novamente em relação a Bakunin, a ca-lúnia percorre a Europa. Acusam-no de ter escapado da Sibériacom a cumplicidade da polícia do czar. Foi em Londres, em1866, que Fess Press publicou um artigo criticando o revo-lucionário russo. Marx sempre se defendeu de ter sido o ins-pirador deste artigo, mas ele escrevia nesse jornal, cujo editor,Urquhart, era um de seus amigos, e no qual, um outro amigo,Ewwerbeck, colaborava. Estamos diante de uma tática queMarx aplicará durante os primeiros anos da Internacional eque consiste em se servir de outros para tecer as sujas calúniascontra o adversário. E é desde a criação da Internacional que abílis do personagem vai derramar-se com toda a cólera. Baku-nin não escapará disto, mas, após uma destas hipocrisias, nasquais ele é mestre, Marx reconcilia-se com seu adversário doqual espera se servir - seguindo um louvável hábito - contraMazzini.

A Internacional nasceu em Londres de diversos encon-tros entre trabalhadores franceses e ingleses, e chegou-se adizer que "esta criança nascida em Londres tinha sido geradanas oficinas parisienses". No meeting, assim como na primeirasessão, Marx assistiu apenas como espectador. Foi mais tardeque, encarregado de esmerilar um texto da seção parisienseapresentado por Tolain, e que se tornará a Mensagem Inaugural,penetrou e incrustou-se na seção da organização. No início se

Page 18: Os Anarquistas Julgam Marx

20 OS ANARQUISTAS JULGAM MARX

resguardou de representar um papel público. Marx é homemda sombra. É interpondo alguém que ele vai se esforçar parabarrar os "senhores proudhonianos". Para estes trabalhos desolapamento ele se servirá de vários personagens, dentre osquais o mais conhecido é Eccarius, que será seu fantoche.Todavia, foi durante o Congresso de Basiléia que a ruptura, queamadurecia sob as cinzas já há algum tempo, foi consumada.

* * *

o Congresso de Basiléia, em 1869, foi o mais importantecongresso da Internacional, e os problemas evocados há centoe vinte anos, ainda são atuais. Os temas que dominaram asdiscussões no congresso foram a coletivização das terras e aherança. Marx, que se tornou "secretário correspondente paraas seções alemães" e que foi na realidade "permanente", con-seguiu afastar os democratas, os mazzinianos, os trade-unio-nistas, os proudhonianos, mas teve de deparar-se com umaoutra oposição dominada pela seção francesa: "os comunistaslivres" animados por Eugene Varlin, cujas opiniões estão bempróximas das de Bakunin. Durante as discussões, dois aspectosdo coletivismo se afrontam: o aspecto federalista das seçõeslatinas, italianas, espanholas e francesas, e o aspecto centrali-zador dos partidários de Marx. Na realidade, esboça-se, emBasiléia, o confronto entre o socialismo comunalista e o socia-lismo de Estado; entre a primazia da economia e a política. Noque toca à coletivização das terras, Bakunin e seus amigosvencem a parada; ao contrário, no que se refere à herança, osresultados permanecerão indefinidos. Marx, que segundo seuhábito, encontra-se ausente, porém representado pelo inevi-tável Eccarius, vai marcar um ponto importante. O ConselhoGeral ao qual ele pertence e o qual domina, reforçará seuspoderes graças a Bakunin que prepara o chicote com que seu

Page 19: Os Anarquistas Julgam Marx

KARL MARX, A TÊNIA DO SOCIALISMO 21

adversário o chicoteará mais tarde. O revolucionário, em se-guida, reconhecerá ter-se enganado profundamente.

Bakunin, naquela época, ainda teve de defender-se con-tra as calúnias do clã que rodeava Marx. Homens como Bork-heim, Bedel, Liebknecht deram continuidade à ação em seujornal Zukunft. Forçado a explicar-se diante de um júri de honra,Liebknecht foi condenado, o que não impediu Hess de publi-car em Le Réveil que Bakunin, à frente de um partido russo,teria tentado, em Basiléia, impor seu pan-eslavismo para resul-tar em uma greve social que permitiria aos bárbaros do Norterejuvenescer a civilização moderna. Bakunin responderá commuita franqueza, e Herzen o censurará por não ter atacadoMarx diretamente ao invés de seus lacaios.

Essas querelas em torno do Congresso de Basiléia vãoprovocar reações anti-sernitas lamentáveis e polêmicas em queos problemas pessoais têm tanta importância quanto as oposi-ções ideológicas. Mas é quando eclode a guerra franco-alemãque a duplicidade de Marx torna-se evidente. Conhece-se a .mensagem dos trabalhadores franceses aos trabalhadores ale-mães para se oporem à guerra. Varlin escreve:

Irmãos alemães, em nome da paz, não escutem asvozes estipendiadas ou servis que procuram vos enganarsobre o verdadeiro espírito da França. Permaneçam sur-dos às provocações insensatas pois a guerra seria paranós uma guerra fratricida. Permaneçam calmos comopode fazê-lo, sem comprometer sua dignidade, um grandepOVO,forte e corajoso. Nossas divisões nada mais fariamque conduzir às duas margens do Reno o triunfo com-pleto do despotismo.

É certo que Marx, em nome do Conselho Geral da Inter-nacional, faz publicar um texto que conclama à solidariedadeentre os operários franceses e alemães, onde se lê esta frase

Page 20: Os Anarquistas Julgam Marx

22 OS ANARQUISTAS JULGAM MARX

ambígua: "A guerra do lado alemão deve permanecer umaguerra defensiva". Todavia, o verdadeiro pensamento do perso-nagem diante desta guerra é sua correspondência com Engelsque nos faz conhecê-lo. Eis uma amostra dessa prosa:

Os franceses precisam de uma surra. Se os prussia-nos forem vitoriosos, a centralização do poder de Estadoserá útil à centralização da classe operária alemã. A pre-ponderância transferiria, além do mais, da França paraa Alemanha, o centro de gravidade do movimento ope-rário europeu. Basta comparar o movimento de 1866 atéhoje, nos dois países, para ver que a classe operária ale-mã é superior à classe francesa no plano da teoria e daorganização. A preponderância, no teatro do mundo, daclasse operária alemã sobre a francesa, significaria simul-taneamente a preponderância de "nossa" teoria sobre ade Proudhon.

A preponderância sobre Proudhon, eis qual é a preocupa-ção do personagem enquanto a guerra devasta. Estas frasessoam como o prelúdio a outras frases pronunciadas por Lenin,em seguida por Stalin, nas quais a vida humana conta muitopouco diante da ambição desmedida destas grandes feras dapolítica. Um certo número de internacionalistas franceses, nãoquerendo ficar à margem, acusará Marx e seu bando de es-tarem a serviço de Bismarck; e quando se engaja neste terrenonenhum absurdo é negligenciado; acusar-se-à Bismarck de terpago a Marx 25.000 francos. Mas não se compreenderia muitobem o absurdo aonde levam estas "grandes cabeças" em delíriose não se lesse esta carta de Engels a Marx.

Minha confiança na força militar cresce a cada dia.Fomos nós que ganhamos a primeira batalha séria. Seriaabsurdo fazer do antibismarckisrno nosso princípio dire-

Page 21: Os Anarquistas Julgam Marx

KARL MARX, A T~NIA DO SOCIALISMO 23

tor. Bismarck, como em 1866, trabalha para nós, a seumodo ...

Mas para conhecer bem o cinismo do personagem, nãohesito em lembrar estas linhas de Marx e Engels:

Esses indivíduos (os parisienses) que suportaramBadinguet durante vinte anos; que há seis meses nãopuderam impedir que ele recebesse seis milhões de votoscontra um milhão e meio ... Essas pessoas pretendemagora, porque a vitória alemã presenteou-lhes uma repú-blica (e qual?), que os alemães deixem imediatamente osolo sagrado da França, caso contrário, guerra total... Éa velha presunção! Espero que essas pessoas readquiramo bom senso, passada a primeira exaltação, caso con-trário, será bem difícil continuar as relações internacio-nais com eles.

* * *

A guerra fragmentou a organização operária francesa, e aComuna será o último sobressalto para reconstruir um movi-mento revolucionário importante. Marx vê no evento a possi-bilidade de destruir a influência proudhoniana e eliminar Ba-kunin. Ele escreve a Engels: "Este russo, está claro, quer se tor-nar o ditador do movimento operário europeu. Que ele tomecuidado, caso contrário será oficialmente excomungado". E elevai se esforçar para fazê-lo: serve-se de sua posição na Interna-cional para denunciar como heréticos os partidários do revo-lucionário russo. Não perde de vista, contudo, a influência deProudhon sobre o movimento operário francês, e quando dainsurreição parisiense que resulta na proclamação da primeiraRepública, condenará os internacionalistas que se recusam aassociar-se ao boicote da insurreição pela burguesia liberal; ele

Page 22: Os Anarquistas Julgam Marx

24 OS ANARQUISTAS JULGAM MARX

se encontrará em oposição a Eugêne Varlin e seus amigos, bemcomo aos blanquistas mais ou menos influenciados por ele. Emparticular, ele condenará a tomada de posição de Bakunindurante a insurreição de Lyon. É verdade que Marx escreveusobre a Com una de Paris seu melhor texto, A Guerra Civil naFrança, mas não se pode esquecer que, temendo rever a predo-minância do socialismo francês na Internacional, tinha feitoanteriormente todos os seus esforços para desencorajar a insur-reição e ordenar o socialismo francês à sombra dos liberais quetinham tomado o poder.

A guerra e a Comuna vão delimitar claramente as corren-tes de opinião no que resta da Internacional. A organização sefraciona. As seções latinas escolhem a corrente federalista; asseções anglo-saxãs, a corrente centralista. Os internacionalis-tas suíços constituem duas federações rivais, e se a seção belgaconserva sua unidade, é igualmente estremecida pelos despe-daçamentos da Internacional. O fim está próximo; ocorre nocongresso organizado em Haia, em 1872, e do qual Marx par-ticipa pela primeira vez. Marx espera eliminar Bakunin ser-vindo-se do caso Netchaiev. Este não serviu, mas ele tem umoutro de reserva: é o famoso caso da tradução em russo do livrode Marx, O CaPital, empreendida por Bakunin. Esta tradução,pela qual Bakunin tinha recebido um adiantamento, nunca foiterminada, talvez pela influência de Netchaiev que achava queo revolucionário russo devia consagrar-se por inteiro à propa-ganda.

E esta máquina de guerra que foi o Congresso de Haia,montado por Marx para eliminar ideologicamente Bakunin eseus amigos, vai terminar por uma última farsa que anunciouo fim da Primeira Internacional, conquanto tenha continuadoa arrastar-se antes de ir morrer nos Estados Unidos, longe deseu centro de gravidade, como se Marx, o homem que a ma-tou, não tivesse podido visualizar seu desaparecimento banal.

Page 23: Os Anarquistas Julgam Marx

KARL MARX, A TÊNIA DO SOCIALISMO 25

o Congresso de Haia foi um congresso truncado; a maiorparte dos partidários de Marx estava munida de mandatoscontestados e contestáveis. Nesta manipulação aparece o ca-ráter do personagem. Todos os meios são bons para eliminar oadversário. Enquanto a minoria é representativa das federa-ções constituídas, a maioria marxista é sobretudo compostapelos membros do Conselho Geral, devotos de Marx. Bakuninserá expulso por malversação e James Guillaume por pertencerà Aliança.

* * *

Eu quis, neste texto, retratar o caráter de Marx e res-tringir-me ao comportamento do personagem, deixando delado as oposições doutrinárias que meus colegas examinam emprofundidade nos diferentes textos deste número consagradoa Marx e à ideologia marxista. Os fatos que eu apresento sãoconhecidos por um certo número de eruditos, mas cuidado-samente "esquecidos" pelos ideólogos marxistas e ignoradospelo grande público. Quis trazê-los à luz por diferentes razões.Inicialmente porque o personagem é fascinante, e sua vontadede predominância sobre o movimento socialista internacionalé extraordinária. O desaparecimento de Proudhon, inicial-mente, e de Bakunin, em seguida, não saciaram sua sede depoder, e com seu compadre Engels, buscou novos adversáriosem seu próprio partido, o Partido Social-democrata alemão, etratou-os com os mesmos métodos. Mas existe uma outra razãoque me leva a dissecar o comportamento de Marx. Como todosos fundadores de escolas, ele trouxe não apenas idéias aos agru-pamentos que influenciava como também uma estratégia, umatática, um comportamento que influencia seu círculo. E asocial-democracia alemã, imbuída daquilo que consideravacomo sendo a superioridade ideológica do mestre, foi carco-

Page 24: Os Anarquistas Julgam Marx

26 OS ANARQUISTAS JULGAM MARX

mida por um nacionalismo que, mais tarde, fê-Ia opor-se a[aurês e apoiar o imperialismo de Guilherme Il, como Marxhavia apoiado Bismarck em seus esforços para impor a hege-monia alemã. O comportamento de Marx, assim como o dosoutros socialistas alemães, consistia em unir estreitamente aspretensões nacionais àquelas, nacional e internacional, de seusocialismo.

Foi a partir do comportamento de Marx - para o qual ofim justifica qualquer meio, e menos a partir da ideologia queele afastou cada vez que foi necessário - que Lenin construiusua teoria revolucionária das minorias agentes. Apesar do quepuderam dizer os "puristas" do marxismo, a teoria dos "doispassos adiante, um passo atrás" assim como a da "economiacapitalista", prelúdio indispensável à socialização, são real-mente uma herança deixada por Marx ao comunismo.

É verdade que as evoluções econômicas, o sucesso aomenos parcial da classe dirigente a sobrepor-se às suas contra-dições, a melhora das condições de existência das massas nosistema capitalista, a tomada de consciência do terceiro e doquarto mundo de sua exploração, não apenas por suas classesdirigentes como também pelas nações dirigentes, apresentamos problemas de modo diferente daquele exposto por Marx, enão apenas por ele. Pode-se pensar com justa razão que a ideo-logia socialista, nascida no século passado, tinha singular ne-cessidade de ser desempoeirada. Se nas diferentes escolas dosocialismo de hoje continua-se a saudar educadamente os mes-tres de outrora, e a louvar suas virtudes, "traem-se" os mestressem nenhum complexo, só conservando de seu ensinamentoas palavras cuja potência de evocação permanece intacta, pala-vras e métodos de dominação que não pertencem exclusiva-mente ao socialismo, mas que foram o apanágio de todos osautoritários desde a Gênese.

Page 25: Os Anarquistas Julgam Marx

KARL MARX, A TÊNIA DO SOCIALISMO 27

Marx foi a tênia do socialismo, ensina-nos Proudhon. Éverdade! Entre Maquiavel e Lenin, sem nos determos nos ou-tros, Marx é o traço de união que religa entre eles os despo-tismos intelectuais das palavras, para limpar suas vilanias.

Notas:

1 Este texto foi publicado em francês em 1983, na revista cultural anar-quista LA RUE, nº 33,2 Sachem: palavra iroquesa. Significa velho, ancião com a função deconselheiro e chefe entre as tribos indígenas do Canadá e do norte dosEstados Unidos,

Page 26: Os Anarquistas Julgam Marx
Page 27: Os Anarquistas Julgam Marx

GÊNESE E SIGNIFICAÇÃO

DO MARXISMO

Alexandre Skirda

A classe letrada em seu conjunto sempre constituiu oassentamento espiritual do poder dominante; seus membrossempre foram, simultaneamente, os bobos zelosos, os responsá-veis dedicados e os plumitivos servis dos poderosos de cadamomento. A propósito da potência das idéias, lembremos afórmula de Bacon: Saber é poder. A concepção de uma elitedominante ligada ao saber não é nova, ela se perde na noitedos tempos com as sociedades de tipo esotérico e religioso. Aconcepção de uma elite ligada ao desenvolvimento industrial,ao contrário, remonta às próprias fontes do socialismo doséculo XIX, mais exatamente a Saint-Simon, pai fundador dosocialismo industrial. Querendo reagir contra a era destruidoradas guerras napoleônicas, assim como contra o uussez-iaixe,laissez-passer da economia liberal, representada sobretudo porAdam Smith, Saint-Simon propôs substituir a guerra, motornegativo dos conflitos sociais, que entroniza a força, "ingre-diente que tudo corrompe, e produz a miséria pela imorali-dade", por uma nova atividade repousando sobre a indústria,fator de evolução pacífica rumo ao bem-estar geral da socie-dade. Para ele, a direção sucede ao comando, a hierarquia nãose estabelece mais segundo o nascimento, mas exclusivamenteem virtude da capacidade de produzir melhor, e do critério deutilidade social por lei, pois "a ordem social deve ter hoje por

Page 28: Os Anarquistas Julgam Marx

30 OS ANARQUISTAS JULGAM MARX

objetivo único, direto e permanente a ação do homem sobreas coisas'".

Por via de conseqüência, o novo poder deve dividir-se emum poder espiritual, exclusivamente "confiado aos artistas, sá-bios e aos artesãos, únicos possuidores das capacidades posi-tivas que são os elementos da ação administrativa útil";' e emum poder temporal, exercido pelos diretores de indústria, "ver-dadeiros chefes do povo, visto que são eles que o comandamem seus trabalhos diários":'. Esses novos responsáveis devemsubstituir os antigos privilegiados - os nobres, os padres, osmilitares e os juristas - para constituir uma nova classe diri-gente, da qual o útil papel esteja em acordo com os progressosdos conhecimentos e da organização humana.

Os discípulos saint-simonianos vão disseminar, ampliar oensinamento do mestre e participar, entre outras coisas, dodesenvolvimento do capitalismo industrial. As "terras, ofi-cinas, capitais etc., só podem ser empregados com o maioraproveitamento possível para a produção, sob uma condição,a de serem confiados às mãos exploradoras mais hábeis, ou emoutros termos, às capacidades industriais"."

É possível compreender melhor a que ponto o ideal dossaint-simonianos pôde influenciar o conteúdo do socialismopela seguinte passagem:

Transportemo-nos para um mundo novo. Lá nãosão mais os proprietários, os capitalistas isolados, estran-geiros por seus hábitos aos trabalhos industriais, queregulam a escolha das empresas e o destino dos trabalha-dores. Uma instituição social é investida destas funções,tal mal exercidas atualmente; ela é depositária de todosos instrumentos da produção; ela preside a toda explo-ração material; assim, ela se encontra situada no planode visão de conjunto que permite observar simultanea-

Page 29: Os Anarquistas Julgam Marx

GÊNESE E SIGNIFICAÇÃO DO MARXISMO 31

mente as partes da oficina industrial; através de suasramificações ela está em contato com todas as locali-dades, com todos os tipos de indústria, com todos ostrabalhadores; ela pode inteirar-se das necessidades ge-rais e das necessidades individuais, levar os braços e osinstrumentos lá onde a necessidade se faz sentir, em umapalavra, dirigir a produção, colocá-Ia em harmonia como consumo, e confiar os instrumentos de trabalho aosindustriais mais dignos, pois ela se esforça constante-mente para reconhecer suas capacidades, e está na me-lhor posição para desenvolvê-Ias.

(...) Em uma palavra, a indústria está organizada,tudo se encaixa, tudo está previsto: a divisão do trabalhoé aperfeiçoada, a combinação dos esforços toma-se cadadia mais fortes.

Aqueles que "regulam a escolha das empresas e o destinodos trabalhadores" são "homens gerais, cuja função é marcar acada um o lugar que lhe é mais propício ocupar, para si mesmoe para os outros'"'. Esses "chefes competentes" possuem "capa-cidades superiores, situadas a um plano de visão geral, libera-das dos entraves da especialidade". Essa capacidade será fun-ção unicamente do mérito pessoal, e será um "novo direito depropriedade transmissível, mas só como se transmite o saber'".

Bazard e Enfantin, os dois principais discípulos e propa-gadores das idéias saint-simonianas, acreditam na "desigual-dade natural dos homens", e a consideram até mesmo como a"condição indispensável da ordem social"; é assim que elespreconizavam "Que no futuro cada um seja aproveitado se-gundo sua capacidade, e retribuído segundo suas obras"," fór-mula que se tornará a pedra de toque do socialismo ulterior.

Esse último sempre se banhou no sonho irradiante deeliminar o "pauperismo", o reino da necessidade, a subjugaçãoàs tarefas materiais. Isso foi, e ainda é, a razão essencial de seu

Page 30: Os Anarquistas Julgam Marx

I32 OS ANARQUISTAS JULGAM MARX

sucesso. Essa desalienação econômica, total segundo os pre-ceitos socialistas, deve operar-se, evidentemente, pelo desvioda mediação dos representantes "autorizados" da "classe maisnumerosa e mais pobre", segundo a fórmula consagrada deSaint-Simon para designar o proletariado.

Essa noção de produtivismo industrial é plenamente en-contrada em Marx e influenciou de maneira de terminante suaconcepção do "socialismo científico". É importante precisar oque significa "marxismo" na época da crítica de Makhaiski. Otermo dizia respeito ao ensinamento fornecido pelas obras deMarx publicadas ainda em vida, assim como à sua experiênciade militante no seio das organizações alemães, em 1848-1850,em seguida no quadro da Primeira Internacional. Foi isto queconstituiu o corpo da doutrina, e que ainda permanece paranumerosos "marxistas". A partir daí, certos textos inéditos deMarx foram revelados, descobrindo um pensamento diferente,amiúde contraditório com o aspecto até então admitido." To-:davia, é lamentável que esse aspecto "marxiano", apresentadocomo sendo mais próximo da verdadeira personalidade deMarx, tenha sido revelado por escritos ou rascunhos que oautor não tinha julgado útil tornar públicos naquele momento,mas que teriam sem dúvida modificado um pouco o dogmaoficial. Essa circunstância limita em muito o alcance desta obrapóstuma, que, de qualquer modo, só poderia constituir um tipode "testamento oficioso".

É preciso também constatar a dificuldade de atribuir aMarx a paternidade da nebulosa dos "marxismos" que nele seapoiavam no passado ou que continuam a fazê-lo ainda hoje.'?

Se o marxismo foi amiúde transformado em discurso des-conectado do real, isto só se tornou possível pelo seu caráterescatológico que fez dele uma verdadeira religião secular comseu cortejo inevitável de fanatismos e heresias. Esse aspecto,somado às suas contradições internas, permitiu a seus diversos

Page 31: Os Anarquistas Julgam Marx

GÊNESE E SIGNIFICAÇÃO DO MARXISMO 33

herdeiros de lá encontrar simultaneamente sua fonte comume as razões de seus ódios mútuos.

Nesta acepção, o marxismo foi e ainda é um raro momentohistórico excepcionalmente estagnante. Marx podia muitobem retomar por sua conta a metáfora de Heine: "Minha infe-licidade foi ter semeado dragões e colhido apenas pulgas".

No que concerne ao próprio Marx, a ambigüidade de suarelação com o "marxismo" - suas análises não eram simpleshipóteses de trabalho, um "fio condutor", ou ainda verdadeseternas e leis históricas imutáveis? - parece-nos refletir aprópria ambigüidade de seu tempo.

Se é que se possa ou queira defini-lo neste âmbito, tendoem vista as inúmeras influências que ele sofreu de outros pen-sadores socialistas, deve estar em estreita relação com os socia-listas do século XIX, considerados globalmente, "utópicos" e"científicos" confundidos. 11

De qualquer forma, o marxismo repousava, na época deMakhaiski, sobre as seguintes linhas de força, expostas de ma-neira sucinta:

- ele propunha um fim último, a sociedade comunista,como solução à alienação econômica do homem, fonte de to-das as desigualdades sociais.

- as razões históricas deste fim eram fornecidas pela fa-lência inelutável da sociedade capitalista em controlar o de-senvolvimento crescente das forças produtivas, transformandoas relações sociais de produção.

- o proletariado era a única classe capaz de bem conduzireste desenvolvimento; era ele que estava investido da missãoemancipadora de toda a sociedade.

- os meios indicados eram os de ajudar este desenvol-vimento até que o capitalismo fosse vítima de suas contradi-

Page 32: Os Anarquistas Julgam Marx

34 OS ANARQUISTAS JULGAM MARX

ções, e educar politicamente a classe chamada a lhe suceder,pela conquista da democracia, de início, e, em seguida, pelaconquista do poder político.

Isto exposto, todo o problema consistia em saber se oproletariado tinha a capacidade de assumir sozinho sua im-portante missão histórica. Poderia ele também, por seus pró-prios meios, educar-se ao contato da produção capitalista, ad-quirir uma maturidade suficiente para, no momento oportuno,apoderar-se do leme e exercer sua hegemonia, sua dominaçãode classe?

Marx já chamava a atenção para o papel dos comunistas,a "parte mais resoluta dos partido operários", "a parcela queestá sempre à frente" e que, sobretudo, "do ponto de vistateórico", tem a vantagem "sobre o resto da massa proletária decompreender as condições, a marcha e os resultados gerais domovimento operário'l". Além do mais, segundo Marx, uma"parte importante da burguesia passa ao proletariado, e emparticular aqueles dentre os ideólogos burgueses que se eleva-ram à inteligência teórica do movimento geral da história"!'.O proletariado estava bem reforçado em sua delicada missão.

Nessas condições, o marxismo aparecia não apenas comodefesa e ilustração do modo de produção capitalista, mastambém como uma ideologia inovadora, inserindo-se harmo-niosamente no desenvolvimento da sociedade burguesa, antesde colocar-se como sua herdeira à sucessão, pois a sociedadeburguesa estava prometida aos tormentos de uma agonia quese aproximava.

O "reforço" à causa proletária, contemplado por Marx,esteve longe de ser unânime em sua época; por exemplo, nomomento do Congresso de Genebra da Primeira Internacional(3-8 de setembro de 1866), a delegação francesa, compostaentre outros por Malon, Varlin e Fribourg, propôs excluir da

Page 33: Os Anarquistas Julgam Marx

GÊNESE E SIGNIFICAÇÃO DO MARXISMO 35

Internacional os "operários do pensamento" e limitar aos tra-balhadores manuais a qualidade de proletários, a fim de evitaro perigo que podia existir em deixar invadir a associação porambiciosos, homens de partido que gostariam de fazer dela uminstrumento para seu próprio objetivo, estranho ao da asso-ciação. Os delegados alemães protestaram, declarando queseria um tipo de "condenação da ciência", como se o operárionão fosse dela digno ou não soubesse apreciá-Ia.

A proposta francesa foi enfim rejeitada; os franceses fize-ram então outra proposta, pedindo ao menos que a faculdadede ser elegível para a delegação, no congresso da AssociaçãoInternacional do Trabalhadores (AIT), fosse reservada aosoperários, ainda por medo que homens pertencentes às pro-fissões liberais ou mesmo capitalistas fizessem prevalecer, noscongressos, idéias contrárias aos interesses da classe operária.

Tolain considerou adversários todos os membros das clas-ses privilegiadas, detentores do capital ou de diplomas. 14

Pouco depois do Congresso de Haia, em 1872, o comitêromanche de Genebra, em uma carta ao conselho federal bri-tânico, atacou violentamente o antigo conselho geral de Lon-dres, e foi ainda "mais longe que os jurassianos", segundo Marx(carta a Sorge, de 27 de setembro de 1873), exigindo a exclu-são dos "pretensos trabalhadores do pensamento" da AlT.

Lembremos também que o lema da AIT foi "a emancipa-ção dos trabalhadores será a obra dos próprios' trabalhadores".

O comportamento de Makhaiski assume assim todo o seurelevo, em completa continuidade com essa tendência "ma-nuelliste" 15• Além do mais, e sobretudo, ele teve de familiarizar-se quando de sua estada siberiana com os escritos de Bakunin;suas críticas do marxismo e da social-democracia apeiam-sesem nenhuma dúvida sobre aquelas deste último. Por essa ra-zão, é conveniente aqui demorarmos um pouco para lembrar asubstância das críticas bakuninianas.

Page 34: Os Anarquistas Julgam Marx

36 OS ANARQUISTAS JULGAM MARX

Bakunin interessa- se principalmente pelas concepçõespolíticas de Marx; quer saber essencialmente qual o objetivoda conquista do poder político, estabelecido como "grandetarefa das classes trabalhadoras", "grande dever do proleta-riado?" e o princípio de constituição do proletariado comoclasse dominante provocando a centralização, segundo Baku-nin, de todos os meios de produção nas mãos do Estado, con-trolado de fato por uma minoria "savante"17.

No Estado popular do Sr. Marx, dizem, não haveráclasse privilegiada. Todos serão iguais, não só do pontode vista jurídico e político como também do ponto devista econômico. Pelo menos assim no-Io prometem,embora eu duvide muito de que, da maneira como éencarado e pela via que se quer seguir, se possa mantera promessa. Então, já não haverá mais nenhuma classe,mas um governo e, reparem bem, um governo excessiva-mente complicado, que não se contentará em governare administrar as massas politicamente, como o fazemhoje todos os governos, mas também as administraráeconomicamente, concentrando em suas mãos a pro-dução e a justa repartição das riquezas, a cultura daterra, o estabelecimento e o desenvolvimento das fá-bricas, a organização e a direção do comércio, enfim, aaplicação do capital na produção pelo único banqueiro,o Estado. Tudo isto exigirá uma imensa ciência e muitascabeças transbordantes de cérebro neste governo. Seráo reino da inteligência científica, o mais aristocrático,o mais despótico, o mais arrogante e o mais desprezívelde todos os regimes. Haverá uma nova classe, uma novahierarquia de savants reais e fictícios, e o mundo se divi-dirá em uma minoria dominando em nome da ciência, euma imensa maioria ignorante. E então, cuidado com amassa dos ignorantes!

Page 35: Os Anarquistas Julgam Marx

GÊNESE E SIGNIFICAÇÃO DO MARXISMO 37

Tal regime não deixará de provocar seríssimos des-contentamentos nesta massa, e, para contê-Ia, o go-verno iluminador e emancipador do Sr. Marx necessi-tará de uma força armada não menos séria".

Essa visão premonitória não é somente expressa em umapassagem isolada dos textos bakuninianos, ela constitui a pedraangular das posições antiestatistas do revolucionário russo,expostas com acuidade em sua obra fundamental, Etatisme etAnarchie:

Atualmente, um Estado digno deste nome, um Es-tado forte, só pode ter uma base segura: a centralizaçãomilitar e burocrática. Entre a monarquia e a repúblicamais democrática, há apenas uma diferença notável: soba primeira, o pessoal burocrático oprime e sufoca o povo,em nome do rei, para maior proveito das classes poprie-tárias e privilegiadas, assim como em seu próprio inte-resse; sob a república, ela oprime e esmaga o povo damesma maneira para os mesmos bolsos e mesmas classes,todavia, em nome da vontade do povo. Sob a república,a pseudo-nação, o país legal, pretensamente represen-tado pelo Estado, sufoca e continuará a sufocar o povovivo e real. Mas o povo não terá a vida mais fácil quandoa vara que o espancará se chamar popular.

(00') Assim, nenhum Estado, por mais democráticasque possam ser suas formas, e mesmo a república políticamais vermelha, popular unicamente no sentido destamentira conhecida sob o nome de representação dopovo, está em medida de dar a ele aquilo de que ne-cessita, quer dizer, a livre organização de seus própriosinteresses, de baixo para cima, sem nenhuma imisção,tutela ou coerção de cima, porque todo Estado, mesmoo mais republicano e o mais democrático, mesmo pseudo-popular como o Estado imaginado pelo Sr. Marx, nada

Page 36: Os Anarquistas Julgam Marx

38 OS ANARQUISTAS JULGAM MARX

mais é, em sua essência, que o governo das massas decima para baixo por uma minoria savante, e por isso mes-mo privilegiada, compreendendo, na aparência, os ver-dadeiros interesses do povo, melhor do que o própriopOVOI9.

À luz da experiência histórica pode-se compreender ajusteza desta análise do Estado, mesmo "operário", o mais ver-melho que seja, dominado por uma "minoria savante" compre-endendo melhor, segundo parece, os "verdadeiros interesses dopovo, melhor do que o próprio povo".

O mais interessante é que desde pouco foi possível tomarconhecimento dos manuscristos de Marx dizendo respeito auma passagem importante de Estatismo e Anarquia. Sabe-seque Marx manifestava o maior interesse pela Rússia, que eletinha até mesmo aprendido o russo para melhor se documentar.Estas notas foram escritas por volta de 1874-1875, após o fa-moso cisma no seio da Primeira Internacional.

É preciso também dizer que Marx era pouco amável emrelação a Bakunin naquela época, chegando, talvez, a exageraralguns de seus pontos de vista, a menos que seu caráter ambí-guo e contraditório não fosse revelador de um certo "mar-. "Xl.Sffl.O •

À pergunta de Bakunin:

Se o proletariado tornar-se a classe dominante, aquem, perguntar-se-à, ele dominará? Significa que res-tará ainda uma classe submetida a esta nova classe rei-nante, a este novo Estador".

Marx responde:

Isto significa que, enquanto existirem outras clas-ses, e especialmente a classe capitalista, enquanto o PIO-

Page 37: Os Anarquistas Julgam Marx

GÊNESE E SIGNIFICAÇÃO DO MARXISMO 39

letariado combatê-Ia (pois com sua chegada ao poder,seus inimigos e a antiga organização da sociedade aindanão terão desaparecido), medidas de violência e conse-qüentemente medidas de governo devem ser emprega-das; se ainda resta uma classe e se as condições econô-micas sobre as quais repousam a luta de classes e a exis-tência das classes ainda não desapareceram, elas devemser eliminadas ou transformadas pela violência, e o pro-cesso de transformação deve ser acelerado pela vio-lência".

Quais eram estas "medidas de violência, de governo" pen-sadas por Marx? Qual era esta violência que devia eliminar outransformar as "condições econômicas" e acelerar o processode transformação?

Seu discurso é ponderado por uma concepção radical darevolução social que deve

ligar-se a certas condições históricas do desenvolvi-mento econômico que são suas premissas. Ela só é pos-sível Iá onde a produção capitalista está relacionada aum proletariado industrial que tem pelo menos um lugarconsiderável na massa do povo.

Ele reafirma ainda, criticando Bakunin, que são as con-dições econômicas e não a "vontade" que estão na base dessarevolução social. Isto vai de encontro e até mesmo desqualificaa concepção leninista da tomada do poder e de sua conserva-ção, qualquer que seja a situação econômica, desde que sejarealização do partido "proletário".

Bakunin continua:

Quem diz Estado, diz necessariamente dominaçãoe, em conseqüencia, escravidão. Um Estado sem escra-

Page 38: Os Anarquistas Julgam Marx

40 OS ANARQUISTAS JULGAM MARX

vidão, declarada ou mascarada, é inconcebível, eis porque somos inimigos do Estado.

O que significa: o proletariado organizado comoclasse dominante? Quer dizer que este estará por inteirona direção dos negócios públicos?

o comentário de Marx é edíficante:

Um sindicato é composto unicamente pelo comitêexecutivo? É possível que toda a divisão do trabalho sejaabolida em uma fábrica, e com ela as diversas funçõesque dela decorrem? E, segundo o esquema "de baixopara cima" de Bakunin, é possível que tudo esteja situa-do "em cima"? Neste caso não existe mais nada em baixo.

Percebeu-se desde então que não só o "comitê executivode um sindicato", ou com maior razão, de um partido "prole-tário", podia representar todos os seus membros, decidindo emseu lugar sobre tudo e para tudo, como podia também encar-nar-se em um único membro "eminente", constituindo por sisó o "cimo", a "base" não decidindo mais nada.

É surpreendente constatar esta cegueira de Marx em rela-ção ao papel privilegiado que representaria uma minoria, buro-crática e socialista, no seio do Estado. Ela é mais manifestaainda em relação ao trecho de Bakunin sobre

o governo da imensa maioria das massas populares poruma minoria privilegiada. Mas esta minoria, dizem osmarxistas, compor-se-á de operários. Antigos operários,é certo, mas, desde que se tornem governantes ou re-presentantes do povo cessarão de ser operários e colo-car-se-ão a olhar o mundo proletário de cima do Estado;não representarão mais o povo, mas a eles próprios esuas pretensões a governá-lo. Quem duvida disto nãoconhece a natureza humana.

Page 39: Os Anarquistas Julgam Marx

GÊNESE E SIGNIFICAÇÃO DO MARXISMO 41

Esses eleitos serão, ao contrário, socialistas con-victos e além do mais savantsZZ•

Marx retorque-lhe com uma gozação: os operários cessa-rão de ser operários "da mesma maneira que um fabricante dehoje cessa de ser capitalista porque se torna vereador!"

Ainda a respeito do mesmo trecho ele diz:

Se o Sr. Bakunin tivesse conhecimento da posiçãode um gerente em uma fábrica cooperativa operária,todos seus delírios senhoriais iriam ao diabo! Se ele ti-vesse a oportunidade de se perguntar: que forma podemtomar as funções de administração sobre a base desteEstado operário visto que o apraz chamá-lo assim?

Quando Bakunin tacha a direção governamental dossavants de a mais "pesada, vexatória e a mais desprezível quepossa existir", Marx anota: "Que delírio!" Percebe-se que elepersiste em ser "ruim de ouvido" e recusa admitir a mínimapossibilidade de degenerescência burocrática e ditatorial porparte dos responsáveis "proletários" ou "socialistas", ou maisainda, por parte de uma minoria falando em seu nome e queocuparia funções políticas em organismos de Estado ou coope-rativas operárias. A corrupção pelo poder parece-lhe uma alu-cinação, um "delírio senhorial", surpreendente.

Ele prossegue seu monólogo de surdo quando Bakunininterroga-se sobre o caráter eventualmente passageiro desta"direção governamental dos savants": "Não, meu caro! A domi-nação de classe dos operários sobre as camadas rebeldes dovelho mundo deve durar enquanto os fundamentos econô-micos da existência das classes não forem destruídos." Istodeixa a porta aberta a todas as interpretações abusivas e man-tém o equívoco sobre a natureza desta "dominação de classe".Além do mais, ele termina seu comentário por uma palavra das

Page 40: Os Anarquistas Julgam Marx

42 OS ANARQUISTAS JULGAM MARX

mais ambíguas: "besteira", em relação à "livre organização dasmassas operárias de baixo para cima" de Bakunin.

Esta atitude "marxista" suscita as maiores dúvidas sobre anatureza de classe da ditadura do "proletariado", sobre suaduração assim como sobre a eventualidade de um aniquila-mento ulterior do Estado "operário".

Não se pode negar a última vontade de Marx em por fimà condição proletária, mas é lícito perguntarmos se não ficouprisioneiro de seu par antagônico capitalistas-operários, semchegar a vislumbrar uma terceira força social que utilizaria suaideologia por sua própria conta. Talvez ainda Marx tenha sim-plesmente assimilado muito bem o messianismo dos socialistasutópicos que o precederam: que o papel dirigente "daquelesque sabem" - o que Bakunin chama a "inteligência científica"(pensando no próprio Marx) - é óbvio para ele: só aquelesque são capazes de compreender o socialismo científico podemter a "competência" de conduzir o proletariado e a humani-dade inteira pela via do comunismo. Assim como o Estado, seupapel dominante só está condenado a "desaparecer" em umfuturo indeterminado, quando forem abolidas as diferençasentre o trabalho intelectual e o trabalho manual. Pode-se com-preender então por que Marx se recusa a dar receitas paraassegurar a subsistência no futuro.

Bakunin forneceu a "substanciosa essência" da crítica deMarx, e é mais que provável que Makhaiski tenha se referidoimplicitamente a ela. É também muito provável que ele tenhatomado conhecimento da crítica de Kropotkin, contida emparticular em La Conquête du Pain (1892):

Para salvar este sistema (o assalariado), os deten-tores atuais do capital estariam prestes a fazer certasconcessões: dividir, por exemplo, uma parte dos lucroscom os trabalhadores, ou ainda estabelecer uma escala

Page 41: Os Anarquistas Julgam Marx

GÊNESE E S[GN[F[CAÇÃO DO MARX[SMO 43

dos salários que obrigue a aumentá-los no momento emque o ganho se eleva: enfim, eles consentiriam certossacrifícios desde que lhes deixassem sempre o direito degerir a indústria e sacar os lucros.

O coletivismo (marxismo), como se sabe, traz aesse regime modificações importantes, mas nem por issodeixa de manter o assalariado. Somente o Estado, querdizer, o governo representativo, nacional ou comunal,substitui o patrão. São os representantes da nação ou dacomuna e seus delegados, seus funcionários que se tor-nam gerentes da indústria. São eles também que se re-servam o direito de empregar, no interesse de todos, amais-valia da produção. Além disso, estabelece-se nestesistema uma distinção muito sutil, mas de conseqüên-cias enormes entre o trabalho do operário e o do homemque fez uma aprendizagem prévia: o trabalho do ope-rário, aos olhos do coletivista (marxista) não passa deum trabalho simples; enquanto o artesão, o engenheiro,o homem de ciência etc., fazem o que Marx chama deum trabalho complexo, e têm o direito a um salário maiselevado. Mas todos são "assalariados do Estado", todos"funcionários", dizia-se ultimamente para dourar apílula.

Kropotkin lembrava, em seguida, uma verdade, elemen-tar é certo, mas infelizmente de grande atualidade.

Pois bem, °maior serviço que a próxima revoluçãopoderá conceder à humanidade será o de criar uma si-tuação na qual todo o sistema de salariado torne-se im-possível, inaplicável, e onde se imporá como única solu-ção aceitável, o comunismo, negação do salariado-'.

Vemos assim que a crítica de Makhaiski não era comple-tamente nova; todavia, teve o mérito de aprofundá-la no ter-

Page 42: Os Anarquistas Julgam Marx

44 OS ANARQUISTAS JULGAM MARX

reno de excelência de Marx: a economia. Aliás, alguns marxis-tas daquela época, e não dos pequenos, tentaram vedar algu-mas brechas do edifício magistral; a contribuição exposta porRosa Luxemburgo em Acumulação do Capital, parece-nos, se-gundo este ponto de vista, a mais interessante, sobretudoquando ela sai do combate e pergunta-se sobre a realização damais-valia acumulável fora do par assalariados-capitalistas.Evidentemente, sua audácia pára aí, e sua "terceira via" a con-duz apenas aos setores não capitalistas do mercado mundial eà descoberta da estratégia imperialista do capitalismo.

Muita tinta foi gasta desde aquela época sem contudofazer realmente progredir a resolução do problema. Era precisoentão retomar ao ponto de partida e tudo reconsiderar. Emrelação a isso, lembremos que a análise que Marx faz da dife-rença de remuneração entre o trabalho simples-manual e otrabalho complexo-intelectual faz parte do patrimônio comumdo socialismo do século XIX. Com efeito, a medida do trabalhomédio, útil, necessário, agradável, qualificado ou não, inferiorou superior, foi uma constante preocupação para Owen, Fou-rier, Rodbertus e outros pensadores daquele tempo. Os crité-rios qualitativos e quantitativos de medida foram muito va-riados. Percebeu-se desde então que o terreno era muito escor-regadio, que se poderia rapidamente deslizar do "direito aotrabalho" de Louis Blanc, ao salário por peças produzidas tay-lorista, ou à versão caricatural deste último, o famoso stakha-novismo stalinista. Tudo isto se situando aos antípodas dadesalienação econômica do operário.

A definição dada por Marx ao valor da força de trabalho,que "tem apenas o valor dos meios de subsistência necessárioàquele que a emprega'?", permitia justificar as remuneraçõeshierarquizadas e dar crédito à tese de Makhaiski. A fórmulasaint-simoniana, que sempre serviu de leitmotiv aos socialistas"científicos": ''A cada um segundo suas capacidades, a cada um

Page 43: Os Anarquistas Julgam Marx

GÊNESE E SIGNIFICAÇÃO DO MARXISMO 45

segundo suas obras", também encoraja todas as interpretaçõese pode legitimar as desigualdades mais gritantes".

O conjunto da questão faz parte da complexa "querela deMarx", da qual Maximilien Rubel enumerou os pontos liti-giosos:

L

"1 - A teoria do valor-trabalho.2 - O conceito de tempo de trabalho socialmente necessário.3 - A redução do trabalho complexo ao trabalho simples e

médio.4 - O caráter histórico das categorias econômicas.5 - O "fetichismo" da mercadoria e do dinheiro.6 - A reificação do homem.7 - A determinação dos meios de circulação monetária pelo

preço das mercadorias.8 - A teoria da mais-valia?".

Makhaiski trouxe uma contribuição determinante a essaquerela, contribuição infelizmente por muito tempo desco-nhecida. Mas o essencial já não é insistir sobre as interpre-tações bizantinas de concepções econômicas errôneas, ultra-passadas ou controvertidas. Hoje, pouco importa, no fundo,que Marx tenha se enganado: ele não é o único em questão. Overdadeiro interesse da contribuição makhaiskiana é que eladiz respeito à definição e à finalidade do socialismo, no quadrode uma sociedade industrial ou em via de industrialização. Osocialismo seria a ideologia que melhor representa os interessesde uma nova classe dominante e ascendente: "os capitalistasdo saber".

Page 44: Os Anarquistas Julgam Marx

46 OS ANARQUISTAS JULGAM MARX

Notas:

1 Saint-Simon et Enfantin, Oeuvres completes, Paris, 1863, t. XX, p. 18l.

2 Ibid.

3 Ibid., t. XXIII, p. 83.

4 Doctrine de Saint-Simon. Exposition, premíêre année, 1828-1829, Paris,1831, p. 92.

5 Ibid., pp. 193-194.

6 Ibid., p. 209.

7 Ibid., p. 247.

8Ibid., (Carta ao Sr. Presidente da Câmara dos Deputados, por Bazard eEnfantin), p. 5.

9 Citemos entre outros: Os Manuscritos de 1844, A Ideologia Alemã, co-nhecidos somente a partir de 1932, a "Carta à Vera Zassoulitch", texto erascunhos etc. Surpresas podem ainda ser reservadas ao leitor francês naocasião da publicação integral da correspondência entre Marx e Engelsou de outros inéditos em posse do IlHS de Amsterdã (nos arquivos dasocial-democracia alemã).

10 Temos sob os olhos as numerosas variedades sectárias que se desenvol-veram particularmente com o leninismo, este "blanquismo ao molho tár-taro" segundo o gracejo de Charles Pappoport em 1918 (antes dele pró-prio se leníno-tartarizar). O exemplo mais espetacular é o do avatarsangrento de Stalin, que fez um grande estrago do "homem, o capitalmais precioso".

11 Para uma abordagem compreensível de Marx, dirigir-se aos escritos deL. Laurat (Otto Machl, 1898-1977) LeMarxisme en faillite?, Paris, 1939;Le Manifeste communiste de 1848 et le Monde d'aujourd'hui, Paris, 1948,assim como às outras obras e artigos publicados, em particular, no Con-trat Social (1957-1968) e na Revue Socialiste. Isto para a análise da con-tribuição "marxista".

Para um conhecimento mais íntimo e "marxien", consultar as ediçõeselaboradas por Maximilien Rubel (op. cit.) , assim como do mesmo autor:Karl Marx, Essai de biographie intellectuelle, Paris, Ríviêre, 2ª ed., 1971, eMarx, critique du Marxisme, Paris, Payot, 1974.

Page 45: Os Anarquistas Julgam Marx

GÊNESE E SIGNIFICAÇÃO DO MARXISMO 47

12 Manifeste du parti communiste, in Karl Marx, Oeuvres, Economie, op.Cito T I, p. 174.

IJ Ibid., p. 171.

14 La Premiere Internationale, coletânea de documentos publicados sob adireção de J. Freymond, Genebra, 1962, t. lI, pp. 68 e 373.

15 O autor utiliza este neologismo referindo-se ao trabalho manual.

16 Adresse inaugurale de l'AIT, redigida por Marx. Cf. Karl Marx, Oeuvres,Economie, op. Cit., r.L, p. 467 e estatutos, ibid., p. 472.17 Savant, em francês, significa douto, erudito, intelectual, homem deciência etc. Optamos por manter o termo em francês, por ser mais abran-gente e corresponder à idéia de Bakunin quando o emprega. (N. do T)

18 "Lettre aux Compagnons du Jura", in Archives Bakounine, Leiden,1965, t. IlI, p. 204.

19 Ibid., 1967, t. IV, pp. 219-220.

20 Ibid., pp. 346-347.21 Estas notas de Marx foram publicadas pela primeira vez por Riazanovem Letopissi Marksisma, 11, 1926. Elas foram retomadas em francês emuma pequena brochura, Contrre l'Anarchie, em 1935, sendo em seguidapublicada em uma recente coletânea de artigos de Marx, Engels e Lenin,reunidos sob o título Sur l'anarchisme et l'anarcho-syndicalisme, Moscou,1973, que utilizamos aqui. Estas anotações, traduzidas do alemão, figu-ram nas páginas 162-169 da coletânea.

22 Ucenyj, em russo, significa erudito, savant, cientista, e designa todoindivíduo possuindo uma formação superior ou uma grande cultura. Estetermo corresponde ao "mundo culto, instruído" do qual fala Makhaiski.

23 Piotr Kropotkin, La Conquête du Pain, Paris, Stock, 1932, pp. 73-74.

24 Karl Marx, Oeuvres, Economie, op. citoTI, p. 719.

25 Este princípio está atualmente reduzido no regime "socialista" lenino-stalinista à simples sanção: "Aquele que não trabalha não come!", o quepermite por sinal escalonar os salários de 1 a 150 por exemplo, entre aservente percebendo o salário-mínimo (60 rublos) e o membro da Aca-demia de Ciências, com o salário de 5.000 rublos, dispondo além dosalário, de um carro com motorista, uma datcha e outras vantagens.

26 Karl Marx, op. cit., t. I, pp. 1.651-1.652.

Page 46: Os Anarquistas Julgam Marx
Page 47: Os Anarquistas Julgam Marx

MARX

E A SOCIAL~DEMOCRACIA

Daniel Guérin

irrF,

o assunto que me foi destinado é complexo. Por um lado,porque Marx é um personagem contraditório e circunstancial,e por outro, porque sua relação com a social-democracia émultiforme e ela pode, grosso modo, comportar três aspectos:1º - atitude em relação aos partidos da democracia burguesa;2º - atitude em relação ao Estado; 3º - relação entre dirigismoautoritário e as massas.

1Q - Atitude em relação aos partidosda democracia burguesa.

Há em Marx, devido à sua natureza e ao mesmo tempo àscircunstâncias, uma tendência ao reformismo e uma tendênciaao sectarismo revolucionário. Daí as variações de sua atitudeem relação aos partidos da democracia burguesa.

Durante os primeiros meses da revolução européia de1848, Marx opta deliberadamente pela democracia burguesa.Ele se afronta, em Colônia, com os partidários do Dr. AndreasGotschalk, censurando a Associação Operária deste último deseparar o proletariado do movimento democrático, e assimisolá-lo completamente. Ele funda, em conseqüência, umaorganização rival, a Associação Democrática, e lança-a em~.

Page 48: Os Anarquistas Julgam Marx

50 OS ANARQUISTAS JULGAM MARX

!

campanha eleitoral para a eleição ao parlamento de Frankfurt,sustentando a candidatura de um homem de esquerda incon-sistente.

Em 1Q de junho de 1848, com seu amigo Engels, empre-ende a publicação de um jornal cotidiano, Neue RheinischeZeitung (Nova Gazeta Renana) que traz em grande subtítulo:Órgão da Democracia. Marx e seus amigos, que se diziam comu-nistas na véspera, batizam-se: "Nós, democratas". Reivindicama realização da revolução burguesa do 1789 alemão. Elesselam uma frente única com a burguesia, enquanto ela repre-sentar um papel "revolucionário". Nenhuma palavra é pro-nunciada sobre o antagonismo entre democracia proletária edemocracia pequeno-burguesa. Deixam morrer de fato suaLiga dos Comunistas.

No exemplar de 22 de janeiro de 1849 do jornal, Marxsustenta uma tese que será defendida posteriormente pelosmencheviques russos: "A revolução deve ser inicialmente umarevolução para a burguesia. A revolução do proletariado só épossível após a economia capitalista ter criado as condições(desta revolução)".

Gotschalk indigna-se e, antecipando-se ao bolchevismo,escreve, em 25 de fevereiro de 1849, em seu órgão Freiheit,Arbeit (Liberdade, Trabalho): "Deveríamos, a fim de escapar aoinferno da Idade Média, nos precipitar voluntariamente nopurgatório de um poder capitalista decrépito?"

Mas as críticas de Gotschalk começam a provocar a refle-xão nos proletários que tinham seguido Marx, e o fervorosodemocrata acaba por convir que a burguesia alemã fracassouvergonhosamente em sua tarefa e que dali em diante a revolu-ção só podia se fazer contra ela. Em abril de 1849, Marx sesepara dos democratas e reata com a Liga dos Comunistas queacabara de renascer de suas cinzas. Os democratas tinham,aliás, se afastado espontaneamente de Marx após as belas e

Page 49: Os Anarquistas Julgam Marx

MARX E A SOCIAL-DEMOCRACIA 51

corajosas correspondências de Engels sobre a insurreição ope-rária de junho de 1848 em Paris.

Após uma breve estada em Paris, de onde logo é expulso,Marx instala-se na Inglaterra, em 24 de agosto de 1849. EmLondres, passa de um extremo a outro, contacta e alia-se aosexilados blanquistas; funda com eles a Sociedade Universal dosComunistas Revolucionários; redige com Engels, que por suavez deu uma grande guinada, uma Mensagem datada de marçode 1850, sob forma de circular, que se tornará um texto sagradopara os leninistas e trotskistas russos. Renegando sua táticaoportunista de 1848-1849, acreditando erroneamente na imi-nência de uma revolução social, os dois amigos proclamam anecessidade de manter a revolução em permanência até oaperfeiçoamento do comunismo e a necessidade de submeteras classes privilegiadas a uma ditadura do proletariado.

Mas este ardente arrebatamento só durará o espaço deuma manhã, e Marx-Engels deixam de lado, em pouco tempo,a Sociedade Universal dos Comunistas Revolucionários assimcomo a Liga dos Comunistas. E, tendo a revolução européia de1848 definitivamente fracassado, Marx confia a seu correspon-dente F. Freiligrath, sua "convicção de ser mais útil à classeoperária através de trabalhos teóricos do que por uma partici-pação nas associações que já não mais correspondem aos tem-pos atuais" (Carta de 29 de fevereiro de 1860).

Marx se fechará na sala de leitura do Museu Britânico, deonde sairá, em 1867, o tomo I de O Capital. Ele não assistiráaté 1871 a nenhum congresso da Primeira Internacional, en-viando de Londres, contudo, sucessivas Mensagens.

Na Alemanha, os dissidentes da Associação Geral dosTrabalhadores Alemães, fundada em 1863 por Ferdinand Las-salle, constituíram-se em Partido Operário Social-Democratae elaboraram um primeiro programa no Congresso de Eisenach(Agosto de 1869). Apoiando-se em Marx, retomaram todavia

Page 50: Os Anarquistas Julgam Marx

52 OS ANARQUISTAS JULGAM MARX

uma palavra de ordem lassalliana: "O estabelecimento do Es-tado popular livre" (Volkstaat). Os fundadores, Wilhelm Lieb-knecht e August Bebel deram este mesmo slogan por título aojornal que eles criaram, no mesmo ano, em Leipzig.

Marx e Engels estavam tão lisonjeados por terem, enfim,na Alemanha, um partido de massa em suas mãos, que acaba,ram demonstrando uma incômoda indulgência ao deixar pas-sar sem protestar esta expressão de Estado popular. O anar-quista Mikhail Bakunin não cessou de denunciar e zombardesta concessão ao reformismo lassalliano. Ele o censurava porfazer crer que era pela via parlamentar que o Estado burguêsseria transformado em "Estado popular", quer dizer, em "umgoverno do povo por intermédio de um pequeno número derepresentantes eleitos" e por tentar seduzir os partidos da de-mocracia burguesa pelo emprego do adjetivo "popular".

Sob o chicote desta crítica, Marx- Engels tiveram de con-vir, mas reservadamente, que haviam cometido uma besteiraao dar liberdade de ação a seus discípulos, os social-democra-tas. Em suas notas marginais de 1873 ao livro de Bakunin,Etatisme et Anarchie, Marx observou que a "idéia fixa do Estadopopular de Liebknecht" era uma "inépcia". Dois anos maistarde, em março de 1875, Engels arriscou, se a escrever aBebel: "Os anarquistas já nos incomodaram o suficiente com oEstado popular. É um absurdo falar de um livre Estado po-pular". Entretanto, a fusão operada em 1875, no Congresso deGotha, entre partidários de Liebknecht e herdeiros de Lassalle,esteve longe de dar satisfação a Marx-Engels. Tiveram de en-golir sapos. Concessões que, em reservado, julgavam "vergo-nhosas", eram feitas aos lassallianos. Se a infeliz expressão Es-ta do popular (Volkstaat) desapareceria enfim do título do jor-nal unificado, dali em diante intitulado Vorwarts! (Avante!),ela era substituída no programa por "Estado Livre" que, aogosto de Marx-Engels, não era melhor.

Page 51: Os Anarquistas Julgam Marx

MARX E A SOCIAL-DEMOCRACIA 53

Engels, sobrevivendo a Marx, permaneceu o único guar-dião da doutrina. Pouco antes de desaparecer, em 1895, foipressionado pela facção parlamentar social-democrata a redigirum texto para salvar o partido de um "desvio anarquista" amea-çador. Com efeito, a esquerda social-democrata, animada porjovens militantes (os Junge) tentavam impedir o partido dedegenerar em um sentido puramente parlamentar. O velhohomem cedeu às pressões escrevendo um prefácio para a re-edição da brochura de Marx sobre As Lutas de Classe na França(1848-1850).

Este prefácio de Engels era muito controvertido. Para osstalinistas franceses que o reeditaram com a brochura de Marxde 1936, ele não seria uma renegação do passado revolucio-nário de seu autor. Quando muito, o Vorwarts, e em seguida arevista Die Neue Zeit de Kautsky teriam praticado cortes la-mentáveis. Em compensação, Rosa Luxemburgo, em seu Dis-curso Sobre o Programa, em 29 de dezembro de 1918, no con-gresso constitutivo do Partido Comunista Alemão (Spartakus-bund) , chamou este prefácio de "documento clássico e lapidardas aberrações das quais vivia a social-democracia alemã, oumelhor, das quais ela morreu". É verdade que Engels acentuaem seu texto as virtudes da cédula de voto e o caráter umpouco ultrapassado das barricadas. Todavia, creio que Engelsestava muito familiarizado com o pensamento de Marx para sepermitir suavizá-lo.

2º - Atitude em relação ao Estado.

Serei muito mais breve sobre este ponto. Sem dúvida,Marx protesta contra o estatismo de Lassalle e de seu própriosprotegidos, os social-democratas alemães. Mas ainda não eli-minou em si mesmo o vírus do Estado em sua totalidade. O

Page 52: Os Anarquistas Julgam Marx

54 OS ANARQUISTAS JULGAM MARX

Manifesto Comunista fala de "centralizar nas mãos do Estadotodos os instrumentos de produção". Não é exatamente eli-minar o Estado quando se diz: "O proletariado organizadocomo classe dirigente". Perífrase pouco convincente, pois, alhu-res, Engels sublinha, com justa razão, a incompatibilidade entreEstado e liberdade. Além do mais, o prosseguimento, calcadosobre Louis Blanc, enumera como medidas a serem tomadas, acentralização nas mãos do Estado, do crédito e de todos osmeios de transporte. Mesma ambigüidade nas Cláusulas Mar-ginais ao Programa do Partido Operário Alemão de 1875 ondeMarx faz as seguintes perguntas: "Qual transformação sofreráo Estado em uma sociedade comunista? Quais funções sociaisanálogas às funções atuais do Estado se manterão?" Interro-gação que é acompanhada por uma pirueta: "Esta questão sópode ser respondida pela ciência". Acompanha também umaproposição inquietante: "Entre a sociedade capitalista e a so-ciedade comunista, situa-se o período de transformação re-volucionária da primeira à segunda. A que corresponde umperíodo de transição política em que o Estado nada mais po-deria ser do que a ditadura revolucionária do proletariado". Aeliminação do Estado é adiada ao dia de São Nunca. Nenhumaduração é determinada para este período transitório. Já esta-mos em pleno leninismo.

Engels diz em sua carta a Bebel no mesmo ano de 1875:"O Estado é apenas uma organização PROVISÓRIA". Umprovisório que pode durar indefinidamente!

3Q- Relação entre dirigismo autoritário e as massas.

Aqui ainda Marx não é muito claro, a menos que o sejaem excesso. O Manifesto Comunista declara que os comunistas"não têm interesses separados daqueles do proletariado em sua

Page 53: Os Anarquistas Julgam Marx

MARX E A SOCIAL-DEMOCRACIA 55

totalidade". Segue, entretanto, uma restrição que nos deixapreocupados: "Eles possuem sobre o resto da massa proletáriaa vantagem de compreender as condições, a marcha e os resul-tados gerais do movimento proletário". Por outro lado, é pres-tada homenagem àqueles dentre os "ideólogos burgueses que,por muito trabalho, elevaram-se à inteligência teórica do con-junto do movimento histórico".

Assim, o próprio Marx sente-se lisonjeado de antemãopelo trabalho extenuante de rato de biblioteca ao qual ele seentrega no Museu Britânico. Aqui estamos em pleno kauts-kismo (do nome do teórico da social-democracia alemã). É"inteiramente falso", pretenderá o douto Karl Kautsky, "que aconsciência socialista seja o resultado necessário, direto da lutade classes proletária. O socialismo e a luta de classes não dãoorigem um ao outro. Surgem de premissas diferentes. A cons-ciência socialista surge da ciência. O portador da ciência não éo proletariado, são os intelectuais burgueses. Foi por eles que osocialismo foi 'comunicado' aos proletários (estes indigentes,do porta-cédulas e do espírito). A consciência socialista é umelemento trazido de fora para a luta de classes do proletariadoe não algo que surge espontaneamente". Em outros termos,tornamo-nos mais revolucionários nos livros do que na vida.

Essa monstruosidade já é embrionária em Marx. Ela seráretomada e amplificada por Lenin. Sim, o marxismo originalcontém uma certa dose de social-democracia.

Page 54: Os Anarquistas Julgam Marx
Page 55: Os Anarquistas Julgam Marx

o JOVEM MARX

E OS PATINHOS FEIOS

Jean Barrué

Um século após a morte de Marx, os "marxistas" contam-se aos milhões no mundo. A bem da verdade, raros são os queo lêem, e ainda mais raros os que tentam compreendê-lo, amaioria dos pretensos discípulos reduz o ensinamento do Mes-tre a um catecismo infantil e a algumas fórmulas caricaturais.Pouco importa! O socialismo científico e o método marxistasão os únicos guias infalíveis capazes de nos dirigir "no sentidoda história"! Pode-se aplicar a Marx o que Montesquieu diziado Papa: "É um velho ídolo que se incensa por hábito".

Por que razão, na ocasião de um aniversário, dar umaaparência de vida a uma múmia dessecada? Há um século quetudo é dito a favor ou contra Marx: elogios exagerados assimcomo críticas implacáveis. Todos esses debates talvez tenhaminteressado aos especialistas da marxologia, mas não tocaramnem mesmo de perto no rebanho de ovelhas dos crentes in-condicionais. Assim, deixando de lado as discussões teóricas eas sábias análises, lirnitar-rne-ei, nas páginas que se seguem, aexpor o pensamento de Marx sobre os povos ou agrupamentosétnicos que, na agitação da Europa em 1848, tentavam liber-tar-se da opressão dos grandes impérios centralizados e auto-ritários. Assunto pouco importante mas que - como se verá- conserva um alcance geral, sem ser desprovido de atua-lidade.

Page 56: Os Anarquistas Julgam Marx

58 OS ANARQUISTAS JULGAM MARX

Tracemos inicialmente em grandes pincelada um quadrodo meio, da época e dos atores. A década que precedeu 1848foi marcada na Alemanha, assim como na França, por umaintensa atividade intelectual: literária e filosófica. Durante esseperíodo, Proudhon, Cabet, Louis Blanc publicaram na Françaalgumas de suas obras-mestras; a filosofia alemã toma sob ainfluência de Feuerbach um novo desenvolvimento; inúmerosestudantes e jovens universitários se separam da filosofia deHegel (morto em 1831) do qual denunciam o caráter conser-vador e reacionário. Esses jovens hegelianos, ou hegelianos deesquerda, estarão à frente do combate contra o absolutismo dorei da Prússia, contra a censura e as perseguições policiais, epropagarão as idéias liberais que florescerão nos meios da pe-quena burguesia. Os escritores, os poetas: Heine, Laube, Her-wegh lutam também pela liberdade; Stirner lança o desafio doÚnico a todas as pressões políticas, sociais e religiosas, e é tam-bém nestes meios - onde se sente eclodir um mundo novo-que os jovens Bakunin, Marx e Engels vão publicar seus pri-meiros escritos e entrar na vida militante.

Sob um regime de censura e de polícia, era bem mais difí-cil manter jornais e revistas não-conformistas cujo conteúdoliberal- julgado revolucionário - servia de pretextos a mul-tas, perseguições, suspensões e interdições. Um publicista li-beral, conquistado pelas idéias dos jovens hegelianos, já nãotão jovem (nasceu em 1802), Arnold Rüge, tentou a aventuracom os Anais de Halle publicados de janeiro a junho de 184l.Após sua interdição, Rüge instalou-se em Dresden e publicouem Leipzig Os Anais Alemães, de julho de 1841 a janeiro de1843. Foi nesta revista que apareceu o primeiro escrito deBakunin: A Reação na Alemanha (outubro de 1842). Este textonão foi estranho à interdição dos Anais três meses depois!

Mas um novo jornal tinha sido fundado em Colônia porrepresentantes da burguesia liberal local, alguns escritores de

Page 57: Os Anarquistas Julgam Marx

o JOVEM MARX E OS PATINHOS FEIOS 59

idéias avançadas aos quais se juntaram os jovens hegelianos; AGazeta Renana (Rheinische Zeitung) apareceria de 1Q de janeirode 1842 a 31 de março de 1843. Seu redator-chefe, Rutenberg,abriu as colunas de seu jornal aos jovens hegelianos: de marçoa outubro de 1842, Stirner publicou vinte e cinco artigos, den-tre os quais O Falso PrincíPio de Nossa Educação que constitui,com O Único e sua Propriedade, o melhor da obra de Stirner.Em abril de 1842, Rutenberg introduziu na equipe de redaçãoum amigo conhecido em Berlim: um certo doutor Karl Marx,um jovem lobo que ardia em querer se lançar na política mili-tante ... Estava bem decidido a representar os primeiros papéis.

Nascido em Trier, em 1818, o jovem Marx seguira os cur-sos da Universidade de Bonn, em seguida os de Berlim, a partirde 1836. Freqüentou o Doktorklub que reunia estudantes eprofessores universitários liberais e hegelianos de esquerda, eligou-se ao doutor Rutenberg e Bruno Bauer. Doutorando-seem filosofia em 1841, separou-se desta facção mais "radical" doDoktorklub que, após a expulsão de Bauer, fundou o Círculo dosHomens Livres; conflito de idéias que devia conduzir a umaáspera polêmica contra Stirner e Bauer, mas também oposiçãode princípio à descompostura, à turbulência, ao caráter violen-tamente "contestador" dos homens livres. Desde sua chegadaà redação de Rheinische Zeitung, Marx compreendeu muito rá-pido que o jornal só podia sobreviver e escapar às perseguiçõesse eliminasse a colaboração dos agitadores do jovem hegelia-nismo. Em outubro de 1842, eliminou friamente Rutenberg,primeira vítima dos procedimentos indecentes dos quais Marxse serviria posteriormente em relação a seus "amigos". Marx,na véspera ainda desconhecido, agora redator-chefe de umjornal: que ascensão! Três meses depois, por causa da inserçãode um projeto de lei do rei da Prússia concernente ao divórcioe acompanhado de comentários desrespeitosos, a Gazeta Re-nana foi fechada. Segundo a ortodoxia marxista, este jornal,

Page 58: Os Anarquistas Julgam Marx

60 OS ANARQUISTAS JULGAM MARX

sob a firme direção de Marx, teria soçobrado - bandeira aovento - vítima de sua ligação indefectível com a democracia.Não exageremos: as verdadeiras razões de sua proibição foramseu ateísmo declarado e o caráter irreligioso de seus artigos,sobretudo daqueles que apareceram sob a direção de Ruten-berg.

* * *

Marx levará por quase cinco anos a vida errante e difícilde um emigrado político. Todavia, dois eventos vão marcar suavida privada. Dois eventos felizes para Marx: seu casamentocom Jenny von Westphalen, após sete anos de noivado, e seuencontro com Friedrich Engels, o amigo fiel que, até o fim,estará associado aos trabalhos, às lutas e às esperanças. Primeiraetapa: Paris, onde entra em relação com os emigrados políticosalemães e os socialistas franceses, Heine, Borne e Proudhon.Publica em 1844, em colaboração com Rüge, o primeiro e úniconúmero dos Anais Franco-Alemães, onde figura sua Crítica daFilosofia do Direito de Hegel. Expulso da França, Marx se fixa,em 1845, em Bruxelas, e lá, com Engels, tornará precisa suadoutrina filosófica e histórica e, diz ele, acertará suas contascom a sua consciência filosófica de outrora. As Teses sobreFeuerbach e o volumoso panfleto A Ideologia Alemã constituemos fundamentos definitivos do marxismo filosófico. Em feve-reiro de 1845, Marx manda editar em Frankfurt A SagradaFamília, um virulento panfleto contra os irmãos Bauer, con-tendo um grande elogio às obras de Proudhon sobre a proprie-dade. Em 1847, Marx e Engels visitam Londres, onde entramem contato com a Associação operária dos emigrados alemães,que fazem aderir à Liga dos Comunistas que Marx acabara defundar, e cuja influência é bem fraca. Foi na intenção destaLiga que Marx redigiu o Manifesto Comunista, publicado em

Page 59: Os Anarquistas Julgam Marx

o JOVEM MARX E OS PATINHOS FEIOS 61

fevereiro de 1848, e que passou desapercebido. É expulso daBélgica em março de 1848, passa por Paris onde a Revoluçãode fevereiro fez triunfar a república e vai a Colônia com Engelsno início de abril. A Europa encontrava-se então em plenaefervescência. Enquanto os povos eslavos e as minorias étni-cas, oprimidos pelos impérios russo e austríaco, se revoltam, emViena a agitação obriga o velho Metternich - o homem daSanta Aliança - a abdicar; em Berlim, a insurreição exige dorei da Prússia garantias constitucionais. Os liberais de todas asAlemanhas exigem a eleição de um parlamento que seria aexpressão de uma Alemanha unificada e democrática; e em 18de maio abrir-se-á a primeira sessão, em Frankfurt, da Assem-bléia Nacional Alemã ... muito efêrnera! Para Marx, ainda jo-vem, cheio de entusiasmo - e de ilusões - esta revolução demarço é apenas o prelúdio de uma revolução mais vasta que"mudará" o mundo, pois Marx detém uma doutrina científica,infalível, que prediz com certeza a evolução econômica e histó-rica da sociedade. É chegada a hora de passar à ação: pensar eescrever, impor suas idéias, mostrar que os eventos aconteceminelutavelmente no sentido que ele previu - o sentido dahistória! Só falta a Marx uma tribuna, um jornal que será suaobra, sua propriedade. Em menos de dois meses Marx terá oinstrumento em suas mãos.

* * *

O título escolhido para o diário é a Nova Gazeta Renana- Neue Rheinische Zeitung - que trazia a recordação da gazetade 1842. Segue-se a busca de correspondentes e acionistas,tentativa infrutífera de agrupar os operários nas seções da Ligados Comunistas, objetivo limitado à educação democrática dasmassas e à luta contra a reação, daí o subtítulo do jornal: "órgãoda democracia". Esse trabalho foi realizado a todo vapor pelo

Page 60: Os Anarquistas Julgam Marx

62 OS ANARQUISTAS JULGAM MARX

tandem Marx-Engels; e o primeiro número saiu em 1Q de junhode 1848. A Nova Gazeta Renana viveria um ano, aparecendo oúltimo número, 301, em 19 de maio de 1849. O redator-chefe,Marx, era assistido por uma equipe de seis redatores, dentre osquais Engels. Na realidade Marx e Engels controlavam o jor-nal, e todos os artigos - inclusive os artigos não assinados -foram redigidos pelo "coletivo" Marx-Engels sem que se possaprecisar qual dos dois é o responsável por este ou aquele pará-grafo. Em relação a isso, Engels deveria, bem mais tarde (cartaa Schlünter em 15 de maio de 1895), escrever: "Naquela época,é absolutamente impossível distinguir o que é de Marx e o queé meu". Todos os artigos de Marx-Engels estão, entre outraspublicações, integralmente reproduzidos nos tomos V e VI dasobras de Marx-Engels publicadas aos cuidados do Institutomarxista-leninista do comitê central do S.E.o. (partido comu-nista da República Democrática Alemã) e editadas por Dietz,Berlim, 1969. É a partir desse texto alemão que foram tradu-zidas as passagens citadas neste texto.

* * *

Durante esses anos de 1848 e 1849, as questões interna-cionais estavam no centro das preocupações, e particular-mente as reivindicações e as revoltas das minorias e dos povosoprimidos aqui e ali na Europa pelos Estados absolutistas. ANova Gazeta Renana posicionou-se. É surpreendente verificaros julgamentos que este "órgão da democracia" fez dos povosem questão.

Antes do aparecimento da Nova Gazeta Renana, "o casodos ducados" provocara grande emoção na Alemanha liberale democrática. Os ducados de Schleswig e Holstein, incorpo-rados ao reino da Dinamarca, eram povoados por uma grandeparte de alemães que suportavam muito mala domínio dina-

Page 61: Os Anarquistas Julgam Marx

o JOVEM MARX E OS PATINHOS FEIOS 63

marquês e que, ao anúncio da "revolução de março", revolta-ram-se, reclamaram sua incorporação à Alemanha, constituí-ram um governo provisório e entraram em conflito armadocom as tropas dinamarquesas. Os democratas alemães cuspiramfogo, anunciaram uma guerra de libertação, enviaram volun-tários, e o rei da Prússia foi - contra sua vontade - encarre-gado de ir defender "a honra e os interesses da Alemanha" àfrente de seu exército. O rei da Prússia, soldado da revolução!Isto se transformava em farsa. A guerra declarada em 14 deabril de 1848 foi conduzida com tal apatia que, ao começar, jáestava perdida. O rei da Prússia, diante das ameaças de inter-venção da Rússia e da Inglaterra, começou desde junho asnegociações com o intuito de preparar um armistício, assinadoem definitivo no fim de agosto de 1848. Em 16 de setembro de1848, o parlamento de Frankfurt deveria aceitar, após umarecusa prévia, as condições de armistício pouco favoráveis àAlemanha, reduzindo a nada as esperanças dos revoltados deSchleswig. Por fim, uma lamentável aventura; e compreende-se o amargor de Marx escrevendo em um artigo de 22 de julhode 1848: "Eis os frutos de uma guerra de três meses contra umpequeno povo e um milhão e meio de habitantes!"

Ao invés de denunciar os verdadeiros opressores: o rei eo governo da Dinamarca, Marx vai amarrar no pelourinho o"pequeno povo" dinamarquês e com eles todos os povos escan-dinavos. Em nome de uma responsabilidade coletiva, de umaculpabilidade coletiva - encontram-se lá velhos conheci-mentos - Marx condena os povos que, a seus olhos, são com-postos de Unterrnenschen (para falar como Hitler) e devem poisdesaparecer em nome do progresso e da civilização. Lê-se emum artigo de 10 de setembro de 1848:

Os dinamarqueses são um povo que depende total-mente da Alemanha em todos os campos: comercial,

Page 62: Os Anarquistas Julgam Marx

r

64 OS ANARQUISTAS JULGAM MARX

industrial, político, literário. É sabido que a capital realda Dinamarca não é Copenhague mas Hamburgo, e quea Dinamarca tira da Alemanha todas as suas fontes lite-rárias, tanto quanto as materiais; enfim, que a literaturadinamarquesa nada mais é que uma copia grosseira -exceção feita a Holberg - da literatura alemã (...) Leiamas polêmicas às quais se entregam as nações escandi-navas desde que o escandinavismo nasceu. O escandi-navismo, é o entusiasmo por esta raça brutal e imundados piratas nórdicos, por estas profundezas da alma quenão podem exprimir seu pensamento e seus sentimentosexaltados em palavras, só em atos: brutalidade para comas mulheres, embriaguez permanente, furor de vândaloalternando com acessos de sentimentalismo lacríme-jante (...) Não se pode negar que os dinamarqueses sãoum povo semicivilizado. Infelizes dinamarqueses! Usandodo mesmo direito que os franceses quando se apodera-ram de Flandres, da Lorena e da Alsácia ou quando seapoderarem cedo ou tarde da Bélgica; a Alemanha seapoderará do Schleswig: com o direito da civilizaçãocontra a barbárie, do progresso contra o imobilismo, eainda que os tratados estejam a favor da Dinamarca, -o que é ainda duvidoso - este direito valeria mais quetodos os tratados, pois é o direito da evolução histórica.

É pelo menos singular ver um "órgão da democracia" fazerapologia da Real-Politk. Os argumentos de Marx são aquelesque, posteriormente, justificarão todos os imperialismos, todosos colonialismos: o desprezo aos povos julgados inferiores ouselvagens, as cruzadas da civilização contra a barbárie, o des-prezo aos tratados, à glorificação do Faustrecht, o direito deesmagar os povos que se interpõem ao progresso e entravam amarcha da história, esta história da qual Marx definiu o sen-tido. Bismarck, Hitler, Stalin e todos os chefes de Estado que

Page 63: Os Anarquistas Julgam Marx

o JOVEM MARX E OS PATINHOS FEIOS 65

se apóiam no marxismo-leninisrno falaram e agiram segundoestes princípios execráveis -.

Ao fim desse artigo, Marx e Engels estão atormentadospor este furor guerreiro que sempre permitiu aos incitadores dojornalismo e da literatura passar por heróis ... sem descalçarsuas pantufas. Marx faz votos pela grande guerra revolucio-nária que fará triunfar a revolução alemã (Ó pobre pequenarevolução de março!) e esmagará os impérios contra-revolu-cionários. Sem levar em consideração a real situação da Ale-manha - das Alemanhas - na Europa, Marx sonha com umaepopéia militar, no estilo dos soldados do ano II, que traria aliberdade na ponta das baionetas. Escutemo-lo vaticinar:

A guerra que nós sustentamos em Schleswig-Hols-tein é uma verdadeira guerra revolucionária. E quem,desde o início, posicionou-se do lado da Dinamarca? Astrês potências contra-revolucionárias da Europa: a Rús-sia, a Inglaterra e o governo prussiano (...) São as trêspotências que mais têm a temer a revolução alemã e aunidade alemã que seria sua primeira conseqüência: aPrússia porque cessaria de existir, a Inglaterra porqueperderia o mercado alemão, e a Rússia porque a demo-cracia progrediria para além do Vístula até o Duna e oDnieper. Estas três potências conspiraram contra oSchleswig-Holstein, contra a Alemanha e contra a revo-lução. A guerra que poderia sair agora das decisões daAssembléia de Frankfurt seria uma guerra da Alemanhacontra a Prússia, a Inglaterra e a Rússia. E, justamente,tal guerra é necessária para despertar o movimento ale-mão; uma guerra contra as três potências da contra-revolução, uma guerra na qual os prussianos se engaja-riam realmente, uma guerra que tornaria indispensávela aliança com a Polônia, que libertaria a Itália e seriaprecisamente dirigida contra os antigos aliados contra-

I

I~

I!

Page 64: Os Anarquistas Julgam Marx

66 OS ANARQUISTAS JULGAM MARX

revolucionários da Alemanha no período 1792-1815,uma guerra que colocaria "a pátria em perigo" e por issomesmo a salvaria, fazendo a vitória da Alemanha de-pender da vitória da democracia.

Retenhamos destes argumentos delirantes um preciosoensinamento: para tirar de seu torpor o movimento democrá-tico e revolucionário, nada melhor que uma boa guerra euro-péia ... uma guerra progressista naturalmente!

Observar-se-à que entre as 372 notas explicativas e co-mentários dos editores do Instituto marxista-leninista, não hánenhuma para justificar ou lamentar as tomadas de posição deMarx que figuram nos textos supracitados. Quem cala con-sente ...

* * *

A revolução de fevereiro em Paris, as insurreições de Ber-lim e Viena na primavera de 1848 fizeram nascer a esperançade uma liberação para breve não só entre os poloneses comotambém no seio de todas as nacionalidades eslavas mantidassob o jugo dos Habsburgos, entre os magiares que queriam seseparar do império. Resumamos brevemente os eventos que,durante dois anos, estremeceram a Europa central e que tive-ram por conclusão o esmagamento dos movimentos democrá-ticos e revolucionários e a vitória de todas as forças reacio-nárias: em maio de 1848, ao congresso eslavo de Praga seguiu-se uma insurreição tcheca que, após vários dias de batalhas derua, foi esmagada pelas tropas austríacas de Vindischgratz;movimento revolucionário em Viena reprimido pelo exércitoaustríaco com a queda dos croatas de Tellatchik, em 30 deoutubro de 1848; em maio e junho de 1849, o rei da Prússialivra-se do parlamento de Frankfurt e o antigo regime é resta-

Page 65: Os Anarquistas Julgam Marx

o JOVEM MARX E OS PATINHOS FEIOS 67

belecido; ao mesmo tempo, insurreição em Dresden contra orei de Saxe cujas tropas reais impuseram-se após dez dias decombate: em abril de 1849, os húngaros proclamam a destitui-ção dos Habsburgos e constituem com Kossuth um governoprovisório e empunham as armas. Em agosto, o exército aus-tríaco, reforçado pelas tropas enviadas pela Rússia, esmaga arevolução magiar..

O congresso eslavo de Praga reunia poloneses, tchecos,morávios, eslovacos, ruthenos, croatas, sérvios ... e um russo:Bakunin. Todas estas nacionalidades, línguas e religiões dife-rentes estavam de acordo, em princípio, contra a opressãoalemã, magiar ou russa, o que não impedia o tcheco Palacki,que tinha convocado o congresso, de estar prestes a se enten-der com os Habsburgos sobre uma Áustria onde a predomi-nância tcheca teria substituído a predominância alemã, o quenão ia impedir os croatas de se juntarem às tropas austríacascontra a Viena revoltada e contra os magiares! Criar uma fede-ração dos povos eslavos, uma federação democrática era, em1848, um empreendimento irrealizável. A posição tomada porBakunin no congresso, desenvolvida posteriormente em seuApelo aos Eslavos (editado em novembro de 1848, em alemão,e posteriormente em tcheco, polonês e francês), e que ele sem-pre defendeu, de 1845 a 1873, era sem dúvida utópica poréma única razoável: uma união dos povos eslavos fundada sobre aliberdade e a igualdade absolutas, afastando toda hegemoniarussa e todo sistema federalista sob direção russa, e aliando aidéia da revolução social à liberação dos eslavos. OuçamosBakunin:

Nesse congresso, combati com uma paixão desme-dida o partido pan-eslavista, quer dizer, o do protetoradode São Petersburgo, e nele proclamei à viva voz a des-truição do império de todas as Rússias. É verdade que

Page 66: Os Anarquistas Julgam Marx

68 OS ANARQUISTAS JULGAM MARX

proclamei igualmente a necessidade da destruição doimpério da Áustria e do reino da Prússia, e eis por queos patriotas alemães constitucionais e democratas nuncaquiseram me perdoar.

A partir do anúncio do esmagamento da insurreição dePraga, Marx e Engels publicaram um artigo em Nova GazetaRenana sob o título A Insurreição de Praga (em 18 de junho de1848). Eles estigmatizam energicamente a repressão sangrentaexercida pelo exército austríaco e denunciam a responsabili-dade da Alemanha onde uma semi-revoluçâo não trouxe ne-nhuma mudança profunda e permitiu os massacres de Posen ede Praga. Toda "coexistência pacífica" entre alemães e tchecostornou-se impossível, os tchecos serão obrigados a se aliar aosrussos, daí esta conclusão inesperada:

Qualquer que seja o resultado da insurreição, umaguerra de aniquilamento dos alemães contra os tchecosé a única solução possível (... ) A Alemanha em revo-lução deveria ter se libertado de todo seu passado preci-samente no que concerne aos povos vizinhos. E o que feza Alemanha em revolução? Ela ratificou integralmentepela intervenção de sua soldadesca a antiga opressão daItália, da Polônia e da Boêmia. E os alemães pedem queos tchecos hipotequem-lhes confiança! (... ) O que émais lamentável é o destino dos bravos tchecos. Ven-cedores ou vencidos, é certa sua ruína. Após quatroséculos de opressão alemã, seguida pela batalha de ruaem Praga, eles se lançaram nos braços dos russos. Nestegrande combate entre a Europa ocidental e a Europaoriental que talvez comece em algumas semanas, umdestino infeliz conduz os tchecos para o lado dos russos,ao lado do despotismo, contra a revolução. A revoluçãovencerá e os tchecos serão os primeiros que serão esma-gados por ela.

Page 67: Os Anarquistas Julgam Marx

o JOVEM MARX E OS PATINHOS FEIOS 69

Marx, tomado uma vez mais pelo delírio profético, predizem algumas semanas uma guerra européia que asseguraria avitória da revolução. Qual revolução? Marx acaba de denun-ciar o vazio da pretensa revolução alemã! Quanto aos tchecos,seu destino é prontamente decidido. Os "bravos tchecos" vãose juntar aos "infelizes dinamarqueses" no lixo da história.Nestes confrontos gigantescos entre reação e revolução, nãohá piedade ... para os patinhos feios!

* * *

Em 13 de janeiro de 1849, Marx e Engels consagram umlongo artigo à "luta dos magiares" e saúdam o heroísmo destepequeno povo de 4 milhões e meio de habitantes que se le-vanta "contra toda a Áustria e 16 milhões de eslavos fana-tizados", e cujo chefe, Kossuth, é simultaneamente "o Dantone o Carnot da nação húngara". Todo o artigo tende a mostrarque, no império austríaco, só os alemães e os magiares exer-ceram uma missão civiliza dor a e representam o progresso:

Resumamos: na Áustria, os alemães e os magiares,em 1848 - como há mil anos, por sinal- tomaram ainiciativa de caminhar no sentido da história. Eles re-presentam a revolução. Os eslavos dos sul, há mil anosa reboque dos alemães e dos magiares, só reclamaram,em 1848, sua autonomia nacional para esmagar a revo-lução alemã e magiar. Eles representam a contra-revo-

lução.

E Marx, uma vez mais, vai condenar à destruição todosestes pequenos povos que tentam entravar a marcha irresis-tível da história:

Page 68: Os Anarquistas Julgam Marx

70 OS ANARQUISTAS JULGAM MARX

Não há um país na Europa que não abrigue emalgum recanto, um ou vários restos de pOVOS,resíduos develhas populações que foram repelidas e subjugadas pelanação que se tornou mais tarde o fator da evolução his-tórica. Estes restos de nações impiedosamente esma-gadas - como diz Hegel - pela marcha da história,estes detritos de povos são e permanecerão até seu totalaniquilamento e sua desnacionalização, os sustentáculosfanáticos da contra-revolução: toda sua existência jánão é um desafio à grande revolução histórica? Tais sãona Escócia os gaélicos, na França os bretões, na Espanhaos bascos, e na Áustria os eslavos do sul, pan-eslavístasque nada mais são do que detrito de povos resultando deuma revolução extremamente confusa.

Não nos surpreenderemos mais com a conclusão do artigoque é uma apologia do genocídio em nome da responsabilidadecoletiva dos povos:

A próxima guerra mundial fará desaparecer da su-perfície do globo as classes e as dinastias reacionárias,bem como a totalidade dos povos reacionários. E seráum progresso.

Em 15 de fevereiro de 1849 aparece sob o título O pan-eslavismo democrático, um longo artigo que foi diversas vezescitado ou parcialmente traduzido em razão da violência anti-eslava de certas passagens. O artigo é - segundo parece -uma crítica virulenta ao Apelo aos Eslavos de Bakunin. Críticade idéias e não críticas pessoais, pois "Bakunin é meu amigo", dizMarx. Singular amizade quando lembramos que pouco depoisdo Congresso de Praga, o jornal de Marx fazia o eco dos "rumo-res" segundo os quais Bakunin era um agente czarista. GeorgeSand estaria de posse de documentos "comprometedores".

Page 69: Os Anarquistas Julgam Marx

o JOVEM MARX E OS PATINHOS FEIOS 71

Esta calúnia foi desmentida energicamente por George Sandna Nova Gazeta Renana. O incidente foi declarado encerrado,mas Bakunin suportou por muito tempo as conseqüências destacalúnia. Marx critica sobretudo as idéias que ele imputa -com uma má fé evidente - a Bakunin. Marx leu o Apelo aosEslavos e sabe muito bem que Bakunin combate o pan-esla-vismo, doutrina do imperialismo e da autocracia russa, e que afederação eslava, da qual Bakunin traça as grandes linhas,repousa sobre a destruição dos grandes impérios, inclusive oimpério russo. Mas o artigo de 18 de fevereiro é sobretudoocasião para Marx manifestar seu ódio antieslavo e conclamarà morte os patinhos feios da história.

Marx começa por ridicularizar os grandes princípios nosquais se inspira o Apelo aos Eslavos (o que se chamará maistarde, os guindastes metafísicos), a fraternidade entre os povose o respeito das fronteiras entre Estados soberanos segundo avontade de seus povos:

Justiça, humanidade, liberdade, igualdade, frater-nidade, independência: nada mais encontramos no ma-nifesto pan-eslavista além destas categorias mais oumenos morais que, é certo, soam bem, mas não têm ne-nhum sentido no campo histórico e político (... ) Os Es-tados Unidos e o México são dois povos soberanos, duasrepúblicas. Como é possível que entre estas duas repú-blicas que, segundo a lei moral, deveriam estar unidaspor elos fraternos e federais, tenha eclodido uma guerrapor causa do Texas, e que a vontade soberana do povoamericano tenha empurrado uma centena de milhasmais adiante as fronteiras naturais em razão das neces-sidades geográficas, comerciais e estratégicas? Bakunincensura os americanos por fazerem uma guerra de con-quista que é seguramente um golpe duro na teoria fun-dada na justiça e na humanidade, mas que é conduzida

Page 70: Os Anarquistas Julgam Marx

72 OS ANARQUISTAS JULGAM MARX

unicamente no interesse da humanidade. É uma infeli-cidade se a rica Califórnia foi arrancada dos mexicanospreguiçosos que não sabiam o que fazer com ela? Se osenérgicos yankees, graças à exploração das minas de ourodaquela região, aumentam as vias de comunicação, con-centram sobre a costa do Pacífico em alguns anos umapopulação densa e um comércio em expansão, criamgrandes cidades, abrem linhas marítimas, estabelecemuma via férrea de New York a San Francisco, abrem pelaprimeira vez o oceano Pacífico à civilização e pela ter-ceira vez na história dão uma nova orientação ao comér-cio mundial? A independência de alguns californianosou texanos espanhóis pode sofrer com isso, a justiça eoutros princípios morais podem ser feridos: isto contadiante de tais realidades que são o domínio da históriauniversal?

Inútil acrescentar um comentário a esta entusiasta justifi-cativa das conquistas coloniais que trazem aos indígenas pregui-çosos as benfeitorias da civilização. Trabalho forçado, pilhagemdos recursos naturais, exploração reforçada do gado humano,massacres de povos "atrasados": isto conta?, pergunta Marx.

Mas a parte essencial do artigo é dirigida contra os povoseslavos, contra essas minorias étnicas às quais Marx-Engelsrecusam categoricamente o direito à existência:

Exceto os poloneses, os russos, e talvez os eslavosda Turquia, nenhum povo eslavo tem futuro pela simplesrazão de que faltam a todos os outros eslavos as condi-ções mais elementares - históricas, geográficas, políti-cas e industriais - da independência e da vitalidade.

Segue uma longa exposição das razões que relegam aonada os tchecos, os eslovenos, os croatas e todos aqueles que

Page 71: Os Anarquistas Julgam Marx

o JOVEM MARX E OS PATINHOS FEIOS 73

constituem obstáculo à hegemonia dos alemães e dos magiares;entre estas razões, "a necessidade de um centralismo políticopor causa do progresso da indústria, do comércio e das comu-nicações". E eis a conclusão da Segunda parte do artigo -publicado em 16 de fevereiro - onde o jovem Marx faz apolo-gia do genocídio em nome do "terrorismo revolucionário";

ÀS frases sentimentais que aqui nos oferecem,em nome das nações contra-revolucionárias, nós res-pondemos: o ódio dos russos foi - e ainda é - a paixãorevolucionária por excelência dos alemães, com a doscroatas e dos tchecos desde a revolução; juntamentecom os poloneses e magiares, nós salvaremos a revo-lução por um terrorismo decidido em relação a essespovos eslavos. Sabemos agora onde se encontram osinimigos da revolução: na Rússia e nas regiões eslavas daÁustria; e não são frases ou indicações sobre um vagofuturo democrático desses países que nos desviarão detratar como inimigos nossos inimigos (... ) Sim, guerrasem piedade, guerra até a morte contra o racismo eslavotraidor da revolução, guerra de extermínio e terrorismoimplacável, não no interesse da Alemanha, mas no in-teresse da revolução.

Duvido que estes dois longos artigos tenham causadoalguns embaraços aos editores do Instituto marxista-leninista.Apesar de todo o respeito devido à infalibilidade de Marx e aessa Nova Gazeta Renana que Lenin qualificou de "melhor einsuperável órgão do proletariado revolucionário", era difícilnão reagir a certas afirmações de Marx. No prefácio do tomoVI das "obras", o Instituto silencia quanto ao apelo aos geno-cídios e ao terrorismo implacável, assim como à justificativa doimperialismo yankee, e limita-se a assinalar "o ponto de vistaerrôneo de Marx sobre o papel histórico de alguns povos esla-

Page 72: Os Anarquistas Julgam Marx

74 OS ANARQUISTAS JULGAM MARX

vos". Erros excusáveis pois em 1848-1849 a pesquisa marxistasobre as questões nacionais ainda estava em seu início! Desdelá, os povos eslavos que faziam parte da Áustria mostraram"que eram bastante fortes para conquistar a liberdade e a inde-pendência, constituir seus próprios Estados e constituir o so-cialismo". O comentário do Instituto ser reduz à glorificaçãodo futuro grandioso das repúblicas ditas socialistas.

* * *

Não deixemos a Nova Gazeta Renana sem citar a conclu-são do último artigo de Marx-Engels no último número de seujornal (19 de maio de 1849). Viu-se que Marx evoca sem des-prezar uma grande guerra européia com, no final, o triunfo darevolução (qual?). Marx, homem muito pacífico, desdobra-seem propósitos incendiários, leva à boca a clarineta e está prontoa lançar a palavra de ordem: armemo-nos e ... partam! O textoa seguir foi escrito em maio de 1849, e quando se pensa nasituação política na França, na Alemanha e na Europa naqueladata, pergunta-se se é uma obra de um imbecil ou de um ilu-minado:

A revolução em Paris, que ela resulte das eleiçõesou da fraternização do exército com o partido revolu-cionário, é iminente. Enquanto na Alemanha do sul seconstitui o núcleo de um exército revolucionário queimpede a Prússia de tomar parte ativa da campanhacontra a Hungria, a França está a ponto de participarenergicamente da luta. Isto se decidirá em algumas se-manas, talvez em alguns dias, e os exércitos revolucio-nários, francês, polonês-rnagiar e alemão celebrarão sobos muros de Berlim, sobre o campo de batalha, a festa desua confraternização.

Page 73: Os Anarquistas Julgam Marx

o JOVEM MARX E OS PATINHOS FEIOS 75

Após a publicação deste "sonho de uma noite de maio"pelo doutor Karl Marx, era realmente tempo de cessar a NovaGazeta Renana.

* * *

Poder-se-ia acreditar que os textos citados - mesmo ne-gligenciando a violência premeditada de certas expressões -nada mais são que um acidente, uma "mácula" na obra deMarx. Eles são, ao contrário, o reflexo fiel de um pensamentoamadurecido durante os anos de 1844-1848, definitivamentefixado, e que não deveria sofrer no futuro nenhuma mudançaessencial. Em 1848, Marx estava em plena posse de sua dou-trina: ele definia sua posição na Sagrada Família (1844) comoum "humanismo realista", e foi mais tarde, apenas, que os desa-jeitados discípulos falaram de materialismo histórico, de mate-rialismo dialético e, enfim, de "marxismo", o que é uma ridículaevidência! Filosofia, concepção da história, visão da evoluçãodo mundo, todo esse sistema conduzia necessariamente a umfim previsto a priori - profetizado - pelo próprio Marx!

Georges Gurvitch em sua obra Dialética e Sociologia criti-cou a dialética de Marx por ser ascendente e apologética. Dia-lética ascendente: é a marcha irresistível rumo a uma socie-dade onde o sonho se tornará realidade, onde as tensões sociaisdesaparecerão para sempre, onde a "humanidade enfim desa-lienada de todas as suas servidões estará reconciliada consigomesma". Dialética apologética: é a apologia da fase final docomunismo, da sociedade sem classes e sem pressão onde rei-nará uma harmonia perfeita. "É", diz Gurvitch, "a apologia dofim da história", e conclui nestes termos:

A dialética realista de Marx termina pela anun-ciação profética da salvação e do fim da história. Creio

Page 74: Os Anarquistas Julgam Marx

76 OS ANARQUISTAS JULGAM MARX

não ser necessário insistir no fato de que a dialética as-cendente e apologética de Marx, apesar de todo o rea-lismo exibido durante a caminhada, só serve enfim paraprovar o que já tinha sido admitido de antemão: que oideal terrestre edificado pelo proletariado não tardará arealizar-se.

A evolução histórica segue pois um caminho implacávele irreversível. A história tem um sentido e o sentido da históriaé o sentido fixado a priori por Marx. Compreende-se então queos fatos sejam interpretados no sentido imposto por Marx.Compreende-se então que os fatos sejam interpretados nosentido imposto por Marx e que as guerras e as revoluçõessejam as etapas necessárias rumo ao fim grandioso profetizadopor Marx. Tudo aquilo que favorece a evolução histórica é bome será qualificado de "revolucionário"; tudo aquilo que entravaesta evolução é mau e conseqüentemente "contra-revolucio-nário". Este procedimento simplista de discriminação deveriaposteriormente conhecer um grande sucesso: guerras justas einjustas, bombas limpas e sujas, "puros" massacradores e "im-puros" massacrados ...

A atitude de Marx em relação aos eslavos do sul, ao tche-cos, aos dinamarqueses ou aos mexicanos é a conseqüêncialógica de uma doutrina que subordina tudo a um fim gran-dioso: a apoteose final justifica os meios! Todos estes pequenospovos, estes retardatários, estes patinhos feios da história são,em razão de sua economia atrasada e de seu imobilismo, entra-ves ao progresso das técnicas, ao desenvolvimento das naçõesindustrializadas que são o motor da história, que representamuma civilização progressista, e que são, portanto, a revolução.A vitória da revolução torna necessária - e por sinal fatal -a eliminação implacável de todos este povos contra-revolucio-nários; "De todos estes povos em sua totalidade", faz questão

Page 75: Os Anarquistas Julgam Marx

o JOVEM MARX E OS PATINHOS FEIOS 77

de precisar Marx. Neste confronto gigantesco entre o passadoretrógrado e o futuro grandioso, podemos nos preocupar comas categorias morais caducas: justiça, liberdade, direito dospovos? Elas são irrisórias diante dos milagres da técnica, dasrealizações da indústria e do comércio, de todo o progresso quecaminha no sentido da história!

Não devemos nos surpreender se Marx - conquantodenunciando as malfeitorias e os crimes do capitalismo e doimperialismo - reconhece e até mesmo glorifica seu papelrevolucionário. Cada vez que a humanidade passou de ummodo de produção para outro - de início antigo, em seguidafeudal, enfim capitalista - há um progresso, progresso no sen-tido da história. O modo de produção capitalista, a grandeindústria, são a última etapa antes da criação de um mundonovo. Várias passagens do Manifesto Comunista e de A Ideo-logia Alemã ressaltam "o papel eminentemente revolucionáriorepresentado na história pela burguesia". Fiel à lógica de seusistema, Marx justificará a guerra empreendida pelos yankeescontra os preguiçosos mexicanos, assim como renderá home-nagem ao papel civilizador e progressista dos ingleses na Índia.Um artigo de Marx publicado em 1853 no New York Tribuneafirma que "a Inglaterra ao realizar uma revolução fundamen-tal no estado social da Ásia, foi, quaisquer que sejam seus cri-mes, o instrumento inconsciente da história". Daí esta con-clusão: "A era histórica burguesa deve criar a base material deum mundo novo. A indústria e o comércio burgueses criam ascondições materiais da mesma maneira que as revoluções geo-lógicas criaram a fisionomia do globo terrestre".

* * *

O ensinamento que um anarquista pode extrair da lem-brança desse passado longínquo é a perigosa loucura de querer

Page 76: Os Anarquistas Julgam Marx

78 OS ANARQUISTAS JULGAM MARX

prender a humanidade numa jaula de ferro de um sistema pré-estabelecido e impor-lhe a autoridade de uma teoria assentadano sonho delirante de um pensador persuadido de sua infali-bilidade. Marx não foi um homem de ação, ele nunca pôs emprática o genocídio e o esmagamento dos países "atrasados".Ele não cometeu "crimes contra a humanidade", foi apenas seuinstigador, e outros souberam se aproveitar desse ensinamento- e às vezes desnaturando-o e caricaturizando-o - e deramao humanismo realista de Marx sua forma moderna.

Page 77: Os Anarquistas Julgam Marx

MARX

ERA REALMENTE MARXISTA

Michel Ragon

A biografia de Marx, assim como a de todos os santos,durante muito tempo, foi edificante. Quando em 1959 publi-quei um pequeno livro sobre Marx, tentando restituir a verda-deira biografia do personagem', a surpresa foi tal que se chegoua pensar que se tratava de uma piada de mau gosto, e o livro,nunca citado em qualquer bibliografia de Marx, desapareceurapidamente das livrarias. É preciso dizer que ele chegavamuito cedo. Toda uma intelligentsia, toda uma juventude acre-ditava então se liberar da igreja católica, jogando-se de pésjuntos em uma outra igreja, tão obscurantista, tão limitada.Desde então, e ainda que timidamente, Marx foi dessacra-lizado. Duas obras ajudaram neste questionamento: a de Fran-çoise P. Lévy, Karl Marx, histoire d'un bourgeois allemand2 e apublicação de Les filles de Marx, Lettres inédites3•

Por que nos interessarmos pela biografia de Marx? Sim-plesmente porque este personagem contém todos os traços domarxismo. Esta vida, com seus ódios, seu sectarismo, a liqui-dação das pessoas incômodas prefigura o reinado sangrento deseus discípulos. Em toda sua vida Marx mostrou um gosto des-comunal pelo poder, gosto este que lhe fez liquidar não apenasseus adversários, como também seus discípulos muito célebresque podiam fazer-lhe sombra. Que ele tenha entrado em cho-que com Proudhon e Bakunin podemos compreender; suas

Page 78: Os Anarquistas Julgam Marx

80 OS ANARQUISTAS JULGAM MARX

teorias não eram conciliáveis. Mas Marx adora os golpes baixose maneja a calúnia com virtuosismo. Ele não procura demons-trar que as teorias de Bakunin são falsas, acusa-o de ser umescroque e - enquanto este está na prisão - levar uma vidade libertinagem na Sibéria com anuência doczar. Sobre os 17membros do primeiro Partido Comunista, em 1847, Marx exer-ce seus expurgos que serão a vergonha do marxismo. Kriege,que emigrou para a América, e lá ganha muito prestígio pormeio de sua propaganda, é expulso como "comunista emotivo".Em seguida é a vez do operário Weitling, depois Moses Hess,que revelou aos jovens burgueses, Marx e Engels, o socialismofrancês e que será o introdutor de Marx em Paris junto a Prou-dhon. Quando seu discípulo Lassalle se tornar célebre na Ale-manha, Marx o detestará, assim como desprezará Liebknecht,primeiro deputado marxista, que ele trata em sua correspon-dência de "vaca" e "bruto".

Os ataques, o terrorismo verbal que serão retomados portodos os procuradores dos processos de Moscou ou de Praga,são manejados por Marx com brio. Ele não aceita nenhumacontradição, insulta seus adversários, e as calúnias são aindamais eficazes por serem enormes. Este judeu, cujo pai se con-verteu ao protestantismo, mostrará sempre um anti-sernitismovisceral. Zomba de Moses Hess chamando-o de "rabino comu-nista", trata Lassalle de "judeu gorduroso", "judeu tagarela" e atémesmo de "judeu negro".

Nacionalista alemão, Marx detesta a França (por ser opaís de Proudhon e porque naquele momento o socialismo é,antes de tudo, Proudhon); detesta a Rússia (por ser o país deBakunin. "A partir do momento que um russo se infiltra em algumlugar o inferno se manifesta violentamente", escreve).

O gosto desmedido pelo poder, as calúnias, os insultos, osexpurgos, o terrorismo verbal, o anti-sernitismo, o nacionalis-mo, como se vê, seja o que for que ele tenha dito ao fim de sua

\.

Page 79: Os Anarquistas Julgam Marx

,I

I

MARX ERA REALMENTE MARXISTA 81

vida, Marx era de fato marxista. Há um outro traço de seucaráter que prefigura também a sociedade marxista: é sua refe-rência a uma ordem moral burguesa. Não apenas a filha da ba-ronesa de Westfália, por ele desposada, levará em seu exílio naFrança, e depois na Inglaterra, a empregada que é propriedadeda família desde a idade de 8 anos, como também, Marx, comobom burguês, a engravidará e jamais reconhecerá seu bastardoque se tomará operário. Ao contrário, suas três filhas serãoeducadas como demoiselles, e suas virtudes por ele controladas.Quando um primeiro pretendente se apresenta, o socialistafrancês Paul Lafargue, que pedirá Laura em casamento, Marxse inquietará com a solvabilidade do futuro genro. Mas Lafar-gue, como a maior parte dos jovens revolucionários de seutempo, possuía bens. Tranqüilizado, Marx inquieta-se entãocom a ausência de dote de Laura. Causa espanto este mercan-tilismo matrimonial burguês entre sogro e genro que, ambos,sonham com a abolição da propriedade privada.

Conduzo o leitor ao livro Les fales de Marx, Lettres inéditesonde ele verá o curioso destino dessas três filhas que devotarãosempre a seu pai uma profunda admiração e ligação, mas queterão um curioso gosto por esses franceses, os quais seu paidetestava. Laura e [enny desposarão dois militantes socialistasfranceses: Lafargue e Longuet, dos quais Marx se servirá paraintroduzir o marxismo na França. A terceira, Eleanor, sentiráuma paixão pelo anarquista communard naquele momentorefugiado em Londres, Lissagaray, a quem Marx, é óbvio, farátudo para destruir. Curioso destino dessas três filhas de Marx,dentre as quais duas, Laura e Eleanor, se matarão.

Toda a vida de Marx ilustra a célebre teoria de seus cíni-cos discípulos: o fim justifica os meios.

A estas reflexões sobre a vida de Marx, e na ocasião docentenário de sua morte, adicionemos alguns comentários sobrea obra.

Page 80: Os Anarquistas Julgam Marx

82 OS ANARQUISTAS JULGAM MARX

As obras mais populares são quase todas obras de sínteseque catalisam todo o pensamento disperso de um século. Asobras verdadeiramente originais são, ao contrário e fatalmente,marginais.

O marxismo não escapou desta regra pois Marx fez em OCapital uma síntese de todo o pensamento socialista e revolu-cionário de seu tempo. Tomou a idéia de luta de classes deBlanqui (que por sua vez o havia tomado de Babeuf), a fórmulada "ditadura do proletariado" do mesmo Blanqui, a visão deum exército de trabalhadores dirigidos pelos homens de ciên-cia de Saint-Simon, e sua célebre "mais-valia" sai diretamentedo famoso "erro de conta" de Proudhon.

Uma vez feita esta compilação, Marx teve a genial astúcia(uma genialidade de marketing intelectual) de enfraquecer seusinspiradores travestindo-os com o epíteto "utopistas". E se osocialismo de Fourier e o de Proudhon se tornassem, por umahábil manobra, utópicos, Marx, ao contrário, certificaria que oque diferencia seu socialismo dos socialismos anteriores é queo seu era científico. Em pleno apogeu do cientificismo indus-trial do século XIX, o slogan não podia deixar de encontrarouvidos atentos. Durante os setenta primeiros anos do séculoXX, encontrava-se ainda quem acreditasse na ciência como seacreditava antes em Deus.

A crise econômica mundial, dobrada por uma crise ética,e até mesmo filosófica, tornou-nos um pouco céticos sobre asvirtudes da ciência, panacéia da felicidade universal. A ciênciaé como o dinheiro, uma e outro não trazem felicidade aindaque às vezes possam contribuir de modo singular para isso.Simultaneamente, o "socialismo científico" levou chumbo nasasas. Por que científico? Em quê? Quem diz ciência diz verifica-ção experimental. A verificação experimental do "socialismocientífico" na u.R.S.S., e em todos os outros países que nele seapóiam, resulta em tal constatação de fiasco que a impostura

Page 81: Os Anarquistas Julgam Marx

MARX ERA REALMENTE MARXISTA 83

do termo "socialismo científico" aplicado ao marxismo perfuraos olhos.

Marx não previu a revolução de 1~48 (que será na Françauma vitória de Proudhon, de Bakunin e de Blanqui), nem aComuna (que ele tentará recuperar). Marx acreditava que associedades mais industrializadas seriam aquelas que fariam porprimeiro a revolução. Ora, não foram a Alemanha, a Ingla-terra, os Estados Unidos que se tornaram marxistas, mas simpaíses subdesenvolvidos como a Rússia e a China (os rarospaíses industrializados que desde então entraram na órbitamarxista, como a Tchecoslováquia, só o fizeram pela anexaçãomilitar). Marx acreditava que a miséria não cessaria de crescerà medida que a indústria se desenvolvesse. Ao contrário, a vidados operários melhorou muito mais nos países capitalistas doque nos países comunistas, o que é o cúmulo da contradição.Marx acreditava que as guerras traziam a revolução. Se estaprofecia foi verdadeira para a Rússia, foi falsa em muitos outroslugares onde as guerras trouxeram, ao contrário, um reforço doexército e conseqüentemente dos movimentos conservadores.Mas o mesmo não aconteceu na Rússia a partir da SegundaGuerra Mundial?

O marxismo não é mais científico do que o proudhonismoou o fourierismo. Mas, ao contrário de Marx, Fourier e Prou-dhon jamais visaram à verdade científica. E é por essa razão queseu pensamento permanece vivo e aberto para o futuro. A filo-sofia, bem como a política, a poética, não pode ser científicapela simples razão de que é outra sua natureza. Poder-se-ia dizerque uma das enfermidades da ciência é o fato de se fechar sobresi mesma, sobre suas certezas, enquanto que a filosofia, a polí-tica, a poética são antes de mais nada aberturas, aberturas sobretodos os possíveis e até mesmo e sobretudo sobre o impossível.

Marx acorrentou o pensamento socialista, ele que diziadesejar oferecer um método e não uma receita. O marxismo

Page 82: Os Anarquistas Julgam Marx

84 OS ANARQUISTAS JULGAM MARX

poderia ter sido um instrumento eficaz na medida em quetivesse sido tomado como uma utopia desalienante. Ao invés,fez-se dele um sacramento. Tornou-se um molho intelectualdestinado a acompanhar todos os pratos.

O marxismo morrerá com a sociedade industrial e comer-cial que o fez nascer e da qual é a expressão analítica, assimcomo morreram o saint-simonismo e o positivismo. Não sãoesses os três avatares da sociedade burguesa do século XIX? Omito cientificista dirigido para a produção acelerada, que vaidos politécnicos saint-simonianos aos tecnocratas marxistas,resultou na criação de duas formas de sociedades que se dizemantagonistas e se fundam, realmente, sobre os mesmos crité-rios. São elas: sociedades capitalistas e sociedades marxistas.

Notas:

1 Michel Ragon: Karl Marx, La Table Ronde, 1959.

2 Françoise P. Lévy: Karl Marx, histoire d'un bourgeois allemand, Grasset,1976.

3 Les filles de Marx, Lettres inédites, introdução de Michelle Perrot, AlbinMichel,1979.

Page 83: Os Anarquistas Julgam Marx

MARXE O ANARQUISMO

Rudolf Rocker

Há alguns anos, pouco após a morte de Friedrich Engels,Edouard Bernstein, um dos mais ilustres membros da comuni-dade marxista, surpreendeu seus amigos com algumas desco-bertas notáveis. Bernstein manifestou publicamente suas dúvi-das quanto à exatidão da interpretação materialista da história,da teoria marxista da mais-valia e da concentração do capital;chegou até mesmo a atacar o método dialético, concluindoque não era possível falar de um socialismo crítico. Homemprudente, Bernstein guardou para si suas descobertas até amorte do velho Engels e, somente então, tornou-as públicas,para o grande desespero dos sacerdotes marxistas. Mas, mesmoesta prudência não pôde salvá-lo, pois atacaram-no por todosos lados. Kaustky escreveu um livro contra o herético, e opobre Bernstein viu-se obrigado a declarar no Congresso deHanovre que ele estava em estado de pecado mortal e que sesubmetia à decisão da maioria científica.

Com tudo isto, Bernstein nada tinha revelado de novo.As razões que ele opunha aos fundamentos da doutrina mar-xista já existiam na época em que ele próprio continuava aindaa se fazer o apóstolo fiel da igreja marxista. Estes argumentostinham sido tomados aqui e ali na literatura anarquista, e oúnico fato importante era que um social-democrata, dentre osmais conhecidos, neles se apoiava pela primeira vez. Ninguém

Page 84: Os Anarquistas Julgam Marx

86 OS ANARQU!STAS JULGAM MARX

negará que a crítica de Bernstein havia produzido uma forteimpressão no campo marxista: ele tinha estremecido os funda-mentos mais importantes da economia metafísica de Karl Marxe não é surpreendente que os respeitáveis representantes domarxismo ortodoxo tenham sido tocados por isto.

Tudo isto não seria muito grave se não houvesse um outroinconveniente bem pior. Há quase um século os marxistas nãocessam de pregar que Marx e Engels foram os inventores dosocialismo dito científico; uma distinção artificial criou-se entreos socialistas ditos utópicos e o socialismo científico dos mar-xistas, diferença que existe somente na imaginação destes últi-mos. Nos países germânicos, a literatura socialista foi monopo-lizada pelas teorias marxistas, e todo social-democrata consi-dera-as como puros produtos, absolutamente originais, dasdescobertas científicas de Marx e Engels.

Mas este sonho também se dissipou: as pesquisas histó-ricas modernas estabeleceram de forma incontestável que osocialismo científico nada mais era que uma conseqüência dosvelhos socialismos inglês e francês, e que Marx e Engels conhe-ceram com perfeição a arte de vestir a roupa dos outros. Apósas revoluções de 1848, começou na Europa uma reação terrí-vel: a Santa Aliança voltou a estender suas malhas em todosos países com a intenção de sufocar o pensamento socialistaque produzia uma literatura extremamente rica em paísescomo a França, a Bélgica, a Inglaterra, a Alemanha, a Espanhae a Itália. Essa literatura caiu quase totalmente no esqueci-mento durante esse período de obscurantismo que começou apartir de 1848. Muitas obras dentre as mais importantes foramdestruídas, e raros são os exemplares que encontraram refúgiona tranqüilidade de algumas grandes bibliotecas públicas ouentre as particulares. Foi somente no fim do século XIX, iníciodo século XX, que essa literatura foi redescoberta e hoje esta-mos cheios de admiração diante das idéias fecundas que en-

Page 85: Os Anarquistas Julgam Marx

MARX E O ANARQUISMO 87

contramos nos velhos escritos das escolas posteriores a Fouriere a Saint-Simon, nas obras de Considérant, Demasi, Mey etantos outros.

Do mesmo modo, encontrou-se a origem do socialismodito científico. Nosso velho amigo W Tcherkesoff foi o primeiroa oferecer um conjunto de todos esses fatos; ele demonstrouque Marx e Engels não são os inventores das teorias que foramconsideradas durante muito tempo como seu patrimônio inte-lectual': chegou mesmo a provar que certos trabalhos marxis-tas dentre os mais famosos, como o Manifesto Comunista, porexemplo, nada mais eram, de fato, que traduções livres dofrancês, feitas por Marx e Engels. Tcherkesoff teve, por sinal, oprazer de ver suas afirmações relativas ao Manifesto Comunistareconhecidas por Avanti, órgão central da social-democraciaitaliana', após o autor ter tido a idéia de comparar o ManifestoComunista com o Manifesto da Democracia de Vicror Considé-rant, publicado cinco anos antes do opúsculo de Marx e Engels.

O Manifesto Comunista é considerado como uma das pri-meiras obras do socialismo científico, e o conteúdo deste traba-lho foi extraído dos escritos de um utopista, pois o marxismo in-clui Fourier entre os socialistas utópicos. Eis uma das ironiasmais cruéis que se possa imaginar, e isto não constitui segu-ramente uma recomendação favorável quanto ao valor cientí-fico do marxismo. Victor Considérant foi um dos primeirosescritores socialistas que Marx conheceu; já o menciona emuma época em que ele próprio ainda não era socialista. Em1842, o Algemeine Zeitung atacou o Rheinische Zeitung do qualMarx era o redator-chefe, censurando-o por simpatizar com ocomunismo. Marx respondeu, então, por um editorial' no qualdeclarava: "Obras como estas de Leroux, Considérant e prin-cipalmente o livro perspicaz de Proudhon, não podem ser criti-cados a partir de algumas observações superficiais; é precisoestudá-Ias com profundidade antes de querer fazer sua crítica".

Page 86: Os Anarquistas Julgam Marx

88 OS ANARQUISTAS JULGAM MARX

o Socialismo francês exerceu a maior influência sobre odesenvolvimento de Marx; mas de todos os escritores socia-listas da França, foi P.-J. Proudhon quem o marcou com maiorforça. É evidente que o livro de Proudhon Qu'est-ce que Iapropriété? incitou Marx a abraçar o socialismo. As observaçõescríticas de Proudhon sobre a economia nacional e as diversastendências socialistas fizeram descobrir, antes de Marx, umnovo mundo, e foi principalmente a teoria da mais-valia, de-senvolvida também pelo genial socialista francês, que causoua mais forte impressão sobre o espírito de Marx. A origem dadoutrina da mais-valia, essa grandiosa "descoberta científica"da qual se orgulham todos os nossos marxistas, dá-se nos escri-tos de Proudhon. Graças a este, Marx chega a conhecer essateoria, mais tarde por ele modificada, após o estudo dos socia-listas ingleses Bray e Thompson.

Marx chegou até mesmo a reconhecer publicamente agrande significação científica de Proudhon e, em um livro hojecompletamente desaparecido de circulação", qualificou a obrade Proudhon Qu'est-ce que Ia propriété? de "primeiro manifestocientífico do proletariado francês". Essa obra não foi mais edi-tada pelos marxistas, nem traduzida, apesar dos grandes esfor-ços dos representantes oficiais do marxismo para divulgar, emtodas as línguas, os escritos de seu mestre. Esse livro foi esque-cido, e sabe-se por que; sua reimpressão faria com que o mundodescobrisse o enorme contra-senso e a insignificância de tudoaquilo que Marx escreveu posteriormente sobre o eminenteteórico do anarquismo.

Marx não foi influenciado apenas pelas idéias econômicasde Proudhon; ele o foi igualmente pelas teorias anarquistas dogrande socialista francês, e em um de seus trabalhos daqueleperíodo, ele combate o Estado sob a mesma forma feita porProudhon.

Page 87: Os Anarquistas Julgam Marx

MARX E O ANARQUISMO 89

II

Todos aqueles que estudaram com atenção a evoluçãosocialista de Marx deverão reconhecer que a obra de ProudhonQu'est-ce que Ia propriété? foi aquela que o converteu ao socia-lismo. Os que não conhecem de perto os detalhes desta evolu-ção e os que não tiveram a curiosidade de ler os primeirostrabalhos socialistas de Marx e Engels acharão estranho e ina-creditável esta afirmação, pois em seus trabalhos posterioresMarx fala de Proudhon com ironia e desprezo. São precisa-mente esses escritos que a social-democracia publica de novoe reimprime constantemente.

É assim que toma corpo, pouco a pouco, a opinião se-gundo a qual Marx foi, desde o início, o adversário teórico deProudhon, e que jamais existiu entre os dois qualquer ponto decontato. É verdade que, quando se lê o que o primeiro escre-veu em relação ao segundo em Miséria da Filosofia, no Mani-festo Comunista e na necrologia que ele publicou no Sozial-demokrat de Berlim, logo após a morte de Proudhon, não épossível se ter outra opinião.

Em Miséria da Filosofia ele ataca Proudhon da pior ma-neira, usando todos os recursos para demonstrar que as idéiasdeste não têm valor e que não têm nenhuma importância, nemcomo socialistas, nem como crítica da economia política.

o Senhor Proudhon tem a infelicidade de ser com-preendido de uma maneira estranha; na França, tem odireito de ser um mau economista, pois o consideramum bom filósofo alemão; na Alemanha, ele pode ser ummau filósofo, visto que lá é considerado como o melhoreconomista francês. Na minha qualidade de alemão eeconomista, vejo-me na obrigação de protestar contraeste duplo erros.

Page 88: Os Anarquistas Julgam Marx

90 OS ANARQUISTAS JULGAM MARX

E Marx vai ainda mais longe: acusa Proudhon, sem apre-sentar nenhuma prova, de ter plagiado as idéias do economistainglês Bray. Escreve:

"Acreditamos ter encontrado, no livro de Bray'', a chavede todos os trabalhos passados, presentes e futuros do SenhorProudhon".

É interessante observar de que maneira Marx, que utili-zou tantas vezes as idéias dos outros e cujo Manifesto Comu-nista nada mais é, na realidade, que uma cópia do Manifesto daDemocracia de Victor Considérant, trata os outros de plagia-dores.

Prossigamos. No Manifesto Comunista, Marx retrata Prou-dhon como um representante burguês e conservador". E nanecrologia por ele escrita no Sozialdemokrat (1865), lemos asseguintes palavras:

"Em uma história da economia política, rigorosamentecientífica, esse livro", ele se refere a Qu'est-ce que Ia propriété?,"merecerá apenas ser mencionado. Tais obras representam nasciências exatamente o mesmo papel que na literatura de no-velas".

E no mesmo artigo de necrologia Marx reitera sua afirma-ção de que Proudhon não tem nenhum valor como econo-mista, opinião já pronunciada em Miséria da Filosofia.

É fácil compreender que tais asserções lançadas por Marxcontra Proudhon deveriam difundir a crença, melhor dizendo,a convicção, de que entre ele e o grande escritor francês nãoexistia o mínimo parentesco. N a Alemanha, Proudhon é quasetotalmente desconhecido. Entretanto, as edições alemães desuas obras, publicadas por volta de 1840, estavam há muitoesgotadas. O único livro que foi novamente publicado em ale-mão é Qu'est-ce que Iapropriété?, e mesmo essa edição foi difun-dida em um círculo restrito. Essa circunstância explica por queMarx conseguiu apagar as pegadas de sua primeira evolução

Page 89: Os Anarquistas Julgam Marx

MARX E O ANARQUISMO 91

socialista. Que sua opinião tenha sido bem diferente no início,já tivemos a ocasião de constatar mais acima. As conclusõesque se seguem corroborarão nossa afirmação.

Como redator-chefe do Rheinische Zeitung, um dos princi-pais jornais da democracia alemã, Marx chegou a conhecer osescritores socialistas mais importantes da França, enquanto elepróprio ainda não era socialista. Já mencionamos uma de suascitações na qual ele faz alusão a Victor Considérant, PierreLeroux e Proudhon, e não há nenhuma dúvida de que Con-sidérant, e especialmente Proudhon, foram os mestres que oconduziram ao socialismo. Qu'est-ce que Ia propriété? exerceu,com toda a certeza, a maior influência na maturação políticade Marx; assim, no período mencionado, ele qualificou o ge-nial Proudhon de "omais conseqüente e sagaz dos escritores socia-listas"8. Em 1843 o Rheinische Zeitung foi suprimido pela cen-sura prussiana; Marx partiu para o estrangeiro e, durante esteperíodo, prosseguiu sua evolução rumo ao socialismo. Estaevolução é facilmente constatada em suas cartas enviadas aoescritor Arnold Ruge, e melhor ainda, em seu livro A SagradaFamília escrito com Engels. O livro, editado em 1845, tinha porobjeto a contestação da nova tendência do pensador BrunoBauer9• Além das questões filosóficas, esta obra trata tambémde economia política e socialismo, e são precisamente essaspartes que nos interessam aqui.

De todos os trabalhos publicados por Marx e Engels, ASagrada Família é o único que não foi traduzido para outrosidiomas, e do qual os socialistas alemães não fizeram outraedição. É verdade que Franz Mehring, herdeiro literário deMarx e Engels, publicou, sob a responsabilidade do PartidoSocialista Alemão, A Sagrada Família com outros escritos cor-respondendo ao primeiro período da atividade socialista deseus autores, mas isto aconteceu sessenta anos após a primeiraedição, e, por outro lado, a reedição era destinada aos especia-

Page 90: Os Anarquistas Julgam Marx

92 OS ANARQUISTAS JULGAM MARX

listas, pois seu custo era excessivo para um trabalhador. Assim,Proudhon é conhecido na Alemanha de uma maneira tão limi-tada que pouquíssimos terão notado a profunda diferença exis-tente entre os primeiros julgamentos que Marx fez de Prou-dhon e aqueles que ele fará mais tarde.

Entretanto, esse livro demonstra claramente o processoevolutivo do socialismo em Marx e a forte influência que Prou-dhon exerceu sobre ele. Tudo aquilo que os marxistas atribuí-ram em seguida a seu mestre, Marx o reconhecia, em A Sa-grada Família, como sendo os méritos de Proudhon.

Vejamos o que ele diz sobre isso:

Todos os desenvolvimentos da economia políticasupõem a propriedade privada. Esta hipótese de base éconsiderada pela economia política como um fato iria-tacável; ela não a submete a nenhum exame e até mes-mo, para retomar a declaração ingênua de SayIO, faladela apenas acidentalmente. E eis que Proudhon sub-mete a propriedade privada, base da economia política,a um exame crítico, ao primeiro exame, tanto categóricoe impiedoso quanto científico. Aí está o grande pro-gresso científico que ele realizou, um progresso que re-voluciona a economia política e torna possível pela pri-meira vez uma verdadeira ciência da economia política.A obra de Proudhon Qu'est-ce que Ia propriété? é tãoimportante para a economia política moderna quanto aobra de Sieyês, Qu'est-ce que le Tiets-Etast , para a polí-tica moderna.

É interessante comparar estas palavras de Marx com aque-las escritas posteriormente em relação ao grande teórico anar-quista. Em A Sagrada Família ele diz que Qu'est-ce que la pro-priété? foi a primeira análise científica da propriedade privadae que ela deu a possibilidade de fazer da economia nacional

Page 91: Os Anarquistas Julgam Marx

MARX E O ANARQUISMO 93

uma verdadeira ciência; mas em sua necrologia publicada noSozialdemokrat, o mesmo Marx assegura que em uma históriarigorosamente científica da economia, essa obra apenas me-rece ser mencionada.

Qual é a causa de tal contradição? Eis uma questão queos representantes do socialismo dito científico ainda não escla-receram. Na realidade, só há uma resposta: Marx queria escon-der a fonte na qual tinha bebido. Todos aqueles que estudaramseriamente o problema e que não se sentem levados pelo fana-tismo partidário deverão reconhecer que esta explicação não éum capricho.

Vejamos ainda o que Marx constata quanto à importânciahistórica de Proudhon. Na página 52 do mesmo livro, lemos:

Proudhon não escreve somente em favor dos pro-letários, ele próprio é um proletário, um operário; suaobra é um manifesto científico do proletariado francês.

Aqui, como se vê, Marx exprime em termos precisos queProudhon é um teórico do socialismo proletário e que sua obraconstitui um manifesto científico do proletariado francês. Aocontrário, no Manifesto Comunista, ele afirma que Proudhonencarna o socialismo pequeno-burguês e conservador. Pode-seencontrar maior contradição? Em quem devemos crer, no Marxde A Sagrada Família ou no autor do Manifesto? E de ondeprovém esta divergência? É uma pergunta que fazemos de novo,e, evidentemente, a resposta é sempre a mesma; Marx queriadissimular ao mundo tudo o que ele devia a Proudhon e, paraele, todos os meios eram bons. Não pode haver outra explica-ção para esse fenômeno; os meios que Marx empregou maistarde em sua luta contra Bakunin provam que ele não eramuito delicado quanto à escolha desses meios!'.

Page 92: Os Anarquistas Julgam Marx

94 OS ANARQUISTAS JULGAM MARX

III

Os escritos políticos de Marx, naquele período, demons-tram que ele tinha sido influenciado até mesmo pelas idéiasanarquistas de Proudhon; por exemplo, o artigo que ele pu-blicou no Vorwerts de Paris.

O Vorwerts era um jornal que circulava na capital francesapor volta dos anos 1844-1845, sob a direção de Heinrich Berns-tein. No início, era somente de tendência liberal. Mais tarde,após o desaparecimento dos Anais Franco-Alemães, Bernsteinrelacionou-se com os antigos colaboradores dessa última publi-cação, conquistada à causa socialista. O Vorwerts converteu-se, então, em órgão oficial do socialismo, e inúmeros colabo-radores da revista de Arnold Ruge, tais como Bakunin, Marx,Engels, Heinrich Heine, Georg Herwegh etc., dele partici-param. No número 63 desse jornal (7 de agosto de 1844),Marx publicou um texto polêmico, "Notas Críticas em Relaçãoao Artigo: O Rei da Prússia e a Reforma Social". Nesse artigoele estuda a natureza do Estado e demonstra a incapacidadeabsoluta desse organismo para diminuir a miséria social e su-primir o pauperismo. As idéias que o autor desenvolve nesseartigo são idéias puramente anarquistas, e estão em perfeitaconcordância com os conceitos que Proudhon, Bakunin eoutros teóricos do anarquismo estabeleceram quanto a esseassunto. Os leitores poderão julgar a partir do texto seguinte,extraído do estudo de Marx:

Nenhum governo no mundo tomou, imediata-mente e sem acordo com as autoridades, medidas contrao pauperismo. O parlamento inglês até mesmo envioucomissários em todos os países da Europa a fim de tomarconhecimento dos diferentes remédios administrativoscontra o pauperismo. Mas da mesma forma que os Esta-

Page 93: Os Anarquistas Julgam Marx

MARX E O ANARQUISMO 95

dos estão ocupados com o pauperismo, eles permanece-ram nas medidas de administração e de benfeitoria ouabaixo disto.

Pode o Estado comportar-se de outra forma?O Estado jamais descobrirá no Estado e na orga-

nização da sociedade a razão dos males sociais. Lá ondehá partidos políticos, cada um encontra a razão de cadamal no fato de seu adversário ocupar seu lugar na dire-ção do Estado. Mesmo os políticos radicais e revolucio-nários encontram a razão não na essência (Wesen) doEstado, mas em uma forma determinada de Estado quequerem substituir por um outro.

Do ponto de vista político, o Estado e a organi-zação da sociedade não são duas coisas distintas. OEstado é a organização da sociedade. Na medida em queo Estado reconhece as anomalias sociais, ele procura suarazão, quer nas leis naturais que nenhuma potência hu-mana pode dobrar, quer na via privada que é indepen-dente do Estado, quer em uma inadaptação da adminis-tração que depende do Estado. É assim que a Inglaterraacredita que a miséria tem sua razão de ser na lei natu-ral, segundo a qual a população deve sempre ultrapassaros meios de subsistência. Por outro lado, ela explica opauperismo pela má vontade dos pobres, assim como orei da Prússia o explica pelo sentimento não-cristão dosricos, e a Convenção pela mentalidade contra-revolu-cionária dos proprietários. É por isto que a Inglaterrapune os pobres, o rei da Prússia exorta os ricos, e a Con-venção guilhotina os proprietários.

Enfim, todos os Estados procuram nas deficiênciasacidentais ou intencionais da administração, a causa, eem seguida, nas medidas administrativas, o remédiopara todos os seus males. Por quê? Precisamente porquea administração é a atividade organizadora do Estado.

Page 94: Os Anarquistas Julgam Marx

96 OS ANARQUISTAS JULGAM MARX

o Estado não pode suprimir a contradição entre adestinação e a boa vontade da administração por umlado, seus meios e suas possibilidades por outro, sem seauto-suprimir, visto que ele repousa sobre esta contradi-ção. Repousa sobre a contradição entre a vida pública ea vida privada, sobre a contradição entre o interessegeral e os interesses particulares. A administração devepois se limitar a uma atitude formal e negativa; pois láonde a vida civil e seu trabalho começam, cessa o poderda administração. Mais ainda, em relação às conseqüên-cias que decorrem da natureza não social desta vidacivil, desta propriedade privada, deste comércio, destaindústria, desta pilhagem recíproca das diferentes esfe-ras civis, em relação a estas conseqüências, é a impotên-cia que é a lei natural da administração. Esta divisãolevada ao extremo, esta baixeza, esta escravidão da so-ciedade civil constituem o fundamento sobre o qual re-pousa o Estado moderno, assim como a sociedade civilda escravidão constituía o fundamento natural sobre oqual repousava o Estado antigo. A existência do Estadoe a existência da escravidão antiga -- francas oposiçõesclássicas -- não estavam mais bem soldadas uma à outrado que o Estado moderno ao mundo moderno do tráficosórdido, hipócritas oposições cristãs.

II

Esta interpretação essencialmente anarquista da naturezado Estado, que parece tão estranha quando se evocam as dou-trinas posteriores de Marx, é uma prova evidente da origemanarquista de sua primeira evolução socialista. O artigo men-cionado reflete os conceitos da crítica do Estado feita por Prou-dhon, crítica que encontrou sua primeira expressão em Qu'est-ce que la propriété? Essa obra imortal exerceu a influência maisdecisiva na evolução do comunismo alemão, apesar de ele terse esforçado por todos os seus meios -- e eles não foram dosmais nobres -- para negar as primeiras fases de sua evolução

r---------------------------------------------------------------- _

Page 95: Os Anarquistas Julgam Marx

MARX E O ANARQUISMO 97

de socialista. Naturalmente os marxistas apoiaram seu mestrequanto a isso e, assim, pouco a pouco, desenvolveu-se umafalsa interpretação histórica quanto ao caráter das primeirasrelações entre Marx e Proudhon.

Na Alemanha, principalmente, visto que este último erapraticamente desconhecido, as mais estranhas afirmações pu-deram circular. Mas, quanto mais se conhecem as obras impor-tantes da velha literatura socialista, mais se constata tudo oque o socialismo dito científico deve a esses utopistas por muitotempo esquecidos por causa da propaganda gigantesca que feza escola marxista, assim como por outras razões que contri-buíram a relegar à sombra a literatura socialista do primeiroperíodo. E um dos mestres mais importantes de Marx, aqueleque fundamentou as bases de toda sua evolução posterior, foiprecisamente Proudhon, o anarquista tão caluniado e tão malcompreendido pelos socialistas legalistas.

IV

Em 20 de julho de 1870 Karl Marx escreveu a FriedrichEngels:

Os franceses precisam de uma surra. Se os prussia-nos forem vitoriosos, a centralização dos poderes doEstado será útil à centralização da classe operária alemã.A preponderância alemã, além do mais, transportará ocentro de gravidade do movimento europeu da Françapara a Alemanha; e basta comparar o movimento nosdois países, de 1866 até o presente, para ver que a classeoperária alemã é superior à francesa, tanto do ponto devista da teoria quanto da organização. A preponderân-cia, no palco do mundo, do proletariado alemão sobre oproletariado francês seria ao mesmo tempo a preponde-rância de nossa teoria sobre a de Proudhon.

Page 96: Os Anarquistas Julgam Marx

98 OS ANARQUISTAS JULGAM MARX

Marx tinha razão: o triunfo da Alemanha sobre a Françatraçou uma nova via na história do movimento operário eu-ropeu.

O socialismo revolucionário e liberal dos países latinos foiafastado, deixando o campo livre aos teóricos esta tis tas e anti-anarquistas do marxismo. A evolução deste socialismo vivo ecriador viu-se contrariado pelo novo dogmatismo de ferro quedizia possuir um conhecimento total da realidade social, quan-do, na verdade, nada mais era que um conjunto de fraseologiae sofismas fatalistas, e o resultado foi a morte de todo verda-deiro pensamento socialista.

Com as idéias, mudaram também os métodos de luta domovimento socialista. Ao invés dos grupos revolucionários,assegurando a propaganda e a organização das lutas econô-micas - nas quais os internacionalistas tinham visto o germeda sociedade futura e os órgãos aptos à socialização dos meiosde produção e de trocas -, começou a era dos partidos socia-listas e da representação parlamentar do proletariado. Pouco apouco, esqueceu-se a velha educação socialista que conduziaos operários à conquista da terra e das fábricas, colocando emseu lugar a nova disciplina de partido que considera a con-quista do poder político com seu ideal supremo.

Mikhail Bakunin, o grande adversário de Marx, julgoucom clarividência a mudança de situação e, amargurado, pre-disse que com o triunfo da Alemanha e a queda da Comunade Paris, começava um novo capítulo na história da Europa.Fisicamente esgotado e já perto da morte, escreveu, em 11 denovembro de 1874, estas importantes palavras a Ogarev:

o bismarckismo - que se torna militarismo, re-gime policial e monopólio finan~eiro fundidos em umsistema íntitulando-se Novo Estado - está quase triun-fando em todos os lugares. Mas talvez em dez ou quinze

Page 97: Os Anarquistas Julgam Marx

MARX E O ANARQUISMO 99

anos a evolução imprevista da espécie humana iluminenovamente os caminhos da vitória.

Bakunin enganou-se nesta ocasião, sem desconfiar de queseria preciso meio século, assim como uma terrível catástrofemundial, para que o bismarckismo fosse destruído.

v

Assim como o triunfo da Alemanha em 1871 e a quedada Comuna de Paris foram os signos do desaparecimento davelha Internacional, assim também a grande guerra de 1914 foio ponto de partida da bancarrota do socialismo político.

E aqui se produz um elemento singular, verdadeiramentegrotesco, cuja explicação se dá por uma falta total de conhe-cimento quanto à história do velho movimento socialista. Bol-cheviques, independentes, comunistas etc., não se privaram deacusar a velha social-democracia de traição vergonhosa dosprincípios do marxismo. Eles a acusam também de ter sufocadoo movimento socialista no pântano do parlamentarismo bur-guês, de ter mal interpretado a atitude de Marx e de Engelssobre o Estado etc ...

O diretor espiritual dos bolcheviques, Lenin, tentou fun-damentar sua acusação sobre sólidas bases em sua célebre obraO Estado e a Revolução que é, segundo alguns discípulos, averdadeira e pura interpretação do marxismo. Empregandouma coleção de citações perfeitamente arranjadas, Lenin tentademonstrar que os fundadores do socialismo científico foramsempre inimigos declarados da democracia e do lodaçal parla-mentares, e que todas suas aspirações tendiam ao desapare-cimento do Estado.

Não se deve esquecer que Lenin fez recentemente estadescoberta quando seu partido, contra toda esperança, encon-

Page 98: Os Anarquistas Julgam Marx

100 OS ANARQUISTAS JULGAM MARX

trou-se em minoria após as eleições para a Assembléia Cons-tituinte. Até então os bolcheviques tinham participado daseleições, ao lado dos outros partidos, e prestavam bastanteatenção para não entrar em conflito com os princípios da de-mocracia. Nas últimas eleições da Constituinte de 1918, nelatomaram parte com um programa grandioso, mas ao ver que,apesar de tudo, permaneciam minoritários, declararam a guerraà democracia e provocaram a dissolução da Assembléia Cons-tituinte. Lenin publicou, então, O Estado e a Revolução comojustificativa pessoal.

VI

A tarefa de Lenin não era simples: por um lado, ele se viaobrigado a fazer concessões às tendências antiestatais dos anar-quistas, e por outro, a demonstrar que sua atitude não era deforma alguma anarquista, mas sim, exclusivamente marxista.A conseqüência inevitável de tudo isto é que sua obra estácheia de erros e desafia toda lógica sensata. Um exemplo pro-vará esta afirmação: Lenin, querendo ressaltar o máximo possí-vel uma suposta tendência antiestatal de Marx, cita o célebreparágrafo da Guerra Civil na França, onde Marx dá sua apro-vação à Comuna por ter começado banindo o Estado parasi-tário. Mas Lenin não se dá o trabalho de lembrar que Marx sevia obrigado por estas palavras, - que estão em contradiçãoaberta com toda sua atitude anterior - a fazer uma concessãoaos partidários de Bakunin, com os quais ele mantinha entãouma luta muito aguçada.

Mesmo Franz Mehring - do qual não se pode suspeitarde simpatizar com os socialistas majoritários - teve de reconhe-cer esta contradição em seu último livro Karl Marx, onde diz:"Apesar de todo o aspecto autêntico dos detalhes desta obra,não há nenhuma dúvida de que o pensamento aqui expresso,

Page 99: Os Anarquistas Julgam Marx

MARX E O ANARQUISMO 101

contradiz todas as opiniões que Marx e Engels proclamavamdesde o Manifesto Comunista, um quarto de século antes".

Bakunin estava certo ao dizer:

o efeito da Comuna foi tão formidável que os pró-prios marxistas, cujas idéias tinham sido derrubadas poresta insurreição, viram-se obrigados a baixar a cabeçapara ela. Fizeram mais ainda: ao contrário da mais sim-ples lógica e de seus verdadeiros sentimentos, procla-maram que seu programa e seu objetivo eram os da Co-muna. Foi um travestimento realmente cômico, masforçado. Eles tiveram de fazê-lo sob pena de seremultrapassados e abandonados por todos, tão forte tinhasido a paixão por esta revolução. (Carta ao jornal LaLiberté de Bruxelas, em 5 de outubro de 1872).

VII

Lenin esquece ainda algo que é de importância capitalpara o nosso assunto. Ei-lo: foram precisamente Marx e Engelsque tentaram obrigar as organizações da velha Internacional adesenvolver uma ação parlamentar, fazendo-se assim os res-ponsáveis diretos pelo atolamento coletivo do movimento ope-rário socialista no parlamentarismo burguês. A Internacionalfoi a primeira tentativa para unir os trabalhadores organizadosde todos os países em uma grande União, cuja aspiração finalseria a liberação econômica dos trabalhadores. Diferenciando-se as idéias e os métodos das diversas seções, tornava-se deimportância capital estabelecer pontos de contato para a obraem comum e reconhecer a ampla autonomia e a autoridadeindependente das mesmas. Enquanto assim ocorreu, a Interna-cional cresceu com força e desenvolveu-se em todos os países.Mas tudo mudou por completo a partir do momento em que

Page 100: Os Anarquistas Julgam Marx

102 OS ANARQUISTAS JULGAM MARX

Marx e Engels obstinaram-se em pressionar as diferentes fede-rações rumo à ação parlamentar. Isto ocorreu pela primeira vezna infeliz conferência de Londres, em 1871, onde eles tenta-ram fazer aprovar uma resolução que terminava pelas seguintespalavras:

(... ) considerando que contra o poder coletivo dasclasses proprietárias o proletariado só pode agir comoclasse se se constituir em partido político distinto eoposto a todos os antigos partidos formados pelas classesproprietárias; que esta constituição do proletariado empartido político é indispensável para assegurar o triunfoda revolução social e de seu objetivo supremo, a aboli-ção das classes; que a coalizão das forças operárias jáobtida pelas lutas econômicas deve também servir dealavanca nas mãos desta classe em sua luta contra opoder político de seus exploradores.

A conferência lembra aos membros da Internacio-nal que, no estado militar da classe operária, seu movi-mento econômico e sua ação política estão indissolu-velmente ligados. (Resolução ns 9 da Conferência deLondres, 17-23 de setembro de 1871).

Que uma única seção ou federação da Internacional ado-tasse tal resolução era bem possível, pois somente seus adeptoseram obrigados a aplicá-ia; mas que o Conselho Executivo aimpusesse a todos os membros da Internacional, e sobretudotratando-se de um tema que, não tendo sido apresentado noCongresso Geral, constituía um procedimento arbitrário, emcontradição total com o espírito da Internacional, provocandoprotestos enérgicos de todos os elementos individualistas erevolucionários.

O Congresso vergonhoso de Haia, em 1872, concluiu aobra empreendida por Marx e Engels a fim de transformar a

Page 101: Os Anarquistas Julgam Marx

MARX E O ANARQUlSMO 103

Internacional em uma máquina de eleições, incluindo paraeste fim uma cláusula que obrigava as diferentes seções a lu-tarem pela conquista do poder político. Marx e Engels foram,pois, responsáveis pela divisão da Internacional, com todas assuas conseqüências funestas para o movimento operário, eforam eles que, pela ação política, provocaram o atolamento ea degenerescência do Socialismo.

VIII

Quando eclodiu a revolução da Espanha em 1873, osmembros da Internacional - quase todos anarquistas -denunciaram as petições dos partidos burgueses e seguiram seupróprio caminho rumo à expropriação da terra e dos meios deprodução, com um espírito socialmente revolucionário. Grevesgerais e revoltas eclodiram em Alcoy, San Lucar de Barrameda,Cartagena e em outros lugares, sendo afogadas no sangue. Acidade portuária de Cartagena resistiu mais tempo, permane-cendo nas mãos dos revolucionários durante vários meses atésua queda sob o fogo dos navios de guerra prussianos e ingleses.Foi então que Engels atacou severamente, no Volkstaat, os ba-kuninianos espanhóis e os injuriou por não quererem se aliaraos republicanos. Assim também, O mesmo Engels teria criti-cado, se ainda fosse vivo, seus discípulos comunistas da Rússiae da Alemanha!

Após O célebre congresso de 1891, quando os dirigentesdos Junge foram excluídos do partido social-democrata, respon-dendo às mesmas acusações que Lenin lançava aos oportu-nistas e Kaustskystas, eles fundaram um partido com seu pró-prio órgão: Der Sozialist, em Berlim. No início, esse movimentofoi extremamente dogmático e apresentou idéias quase idên-ticas às do atual Partido Comunista. Se lermos por exemplo olivro de Teistler O Parlamentarismo e a Classe Operária, encon-

Page 102: Os Anarquistas Julgam Marx

104 OS ANARQUISTAS JULGAM MARX

traremos conceitos idênticos aos de O Estado e a Revolução deLenin. Da mesma maneira que os bolcheviques russos e osmembros do Partido Comunista Alemão, os socialistas inde-pendentes de então rejeitavam os princípios da democracia ese recusavam a participar dos parlamentos burgueses sobre asbases dos princípios reformistas do marxismo.

E o que falava Engels desses Junge que se compraziam,assim como os comunistas, em acusar os dirigentes do partidosocial-democrata de traição para com o marxismo? Em umacarta a Sorge, em outubro de 1891, o velho Engels faz os se-guintes comentários amáveis:

Os sujos berlinenses converteram-se em acusadosao invés de continuarem a se conduzir como acusadorese, tendo manipulado como pobres coitados, foram obri-gados a trabalhar fora do partido se quisessem fazer algo.É certo que há entre eles espiões da polícia e dos anar-quistas, disfarçados, que desejam trabalhar secretamenteentre nós. Com eles há uma quantidade de asnos, deestudantes enganados e de palhaços insolentes de todaqualidade. No total, são aproximadamente duzentaspessoas.

Estaríamos de fato curiosos para saber com quais adjetivossimpáticos Engels teria honrado nossos comunistas de hoje, quepensam ser os guardiões dos princípios marxistas.

Não é possível caracterizar os métodos da velha social-democracia. Sobre esse ponto, Lenin não diz sequer uma pa-lavra, e seus amigos alemães menos ainda. Os socialistas majo-ritários devem lembrar esse detalhe evocador para demonstrarque são eles os verdadeiros representantes do marxismo; qual-quer pessoa que conheça um pouco de história dar-lhes-árazão. O marxismo é responsável pela orientação da classeoperária no sentido da ação parlamentar, e também traçou o

Page 103: Os Anarquistas Julgam Marx

MARX E O ANARQUISMO 105

caminho da evolução ocorrida no Partido Social-DemocrataAlemão. Somente quando se tiver compreendido isto é que severá que a via da liberação social nos conduz para a terra felizdo anarquismo, passando bem acima do marxismo.

Notas:

1 W. Tcherkesoff, Pages d'histoire socialiste, Les Précurseurs de l'Inter-nationale.

2 Este artigo, intitulado Internacional manifesto della democrazia, foi publi-cado inicialmente em Avanti (nQ 1901, do ano de 1902).

3 Reinische Zeitung, nQ 289, 16 de outubro de 1842.

4 Trata-se de A Sagrada Família, escrita em 1843 e publicada em 1845.Marx consagra umas sessenta páginas elogiosas a Proudhon, além dedefendê-Ia dos ataques de Edgard Bauer.

5 Marx, Miséria da Filosofia. Introdução.

6 Bray, Labour's wrougs and Labour's remedy.

7 Marx - Engels, Das Kommunistische Manifest, p. 2I.

8 Rheinische Zeitung, 7 de janeiro de 1843.

9 Bruno Bauer, um dos participantes mais assíduos do clube berlinenseOs Livres, onde se podia encontrar as figuras mais representativas dolivre-pensamento alemão (primeira metade do século passado), assimcomo Feuerbach, autor de A Essência do Cristianismo, obra profunda-mente atéia, ou Max Stirner, autor de O Único e sua Propriedade. Opensamento autoritário de Karl Marx devia forçosamente se chocar comas idéias livres de Bruno Bauer, cuja obra Kritik mit Kirche und Siaai(Crítica da Igreja e do Estado) foi totalmente apreendida pelos domini-canos e queimada (primeira edição de 1843). A Segunda edição (Berna,1844) teve melhor destino, contrariamente a seu autor que foi conde-nado e encarcerado por suas idéias.

Page 104: Os Anarquistas Julgam Marx

106 OS ANARQUISTAS JULGAM MARX

\O ].-B. Say, economista francês daquela época, cujas obras completasforam traduzidas para o alemão por Max Stirner. A fobia de Marx pelopensamento anarquista francês ou pelo livre-pensamento alemão (umaparte de seu livro póstumo A Ideologia Alemã era destinado a minimizara importância de O Único e sua Propriedade de Stirner), voltava-se tam-bém contra o sociólogo Say, muito comentado naquela época por todosaqueles que criticavam a tirania do Estado e que tentavam livrar-se dela.

11 A ruptura de Marx com Proudhon repousa também sobre um fatosórdido. Em Paris, 1845-1846, Marx lutava contra a influência de KarlGrün sobre os alemães emigrados. Todos os meios eram bons e Marxescreveu a Proudhon apara colocá-lo em alerta contra este indivíduo"suspeito". Ao mesmo tempo, propunha a Proudhon ser seu correspon-dente na França; tentava recrutá-lo, Proudhon respondeu por uma longacarta de 17 de maio de 1845. Ele afasta duramente as acusações contraGrün e se recusa "após ter demolido todos os dogmatismos (... ) queadormecem o povo" (...) " não nos façamos os chefes de uma nova reli-gião, conquanto fosse a religião da lógica, a religião da razão (...). Sobesta condição entrarei com prazer na vossa associação, caso contrário,

... 1"nao.Concebe-se o efeito que pôde fazer esta carta sobre Marx ... A partir

deste momento, Proudhon estava condenado. Tornava-se "um arrivistada ciência que se pavoneia do que não é e do que não tem, (...) umpretensioso e um lisonjeador de si mesmo etc.!"

Page 105: Os Anarquistas Julgam Marx

BAKUNINE O ESTADO MARXISTA

Gaston Leval

AS BASES TEÓRICAS GERAIS

As relações entre as idéias de Marx e Bakunin são, namaioria das vezes, mal conhecidas, e isso é lamentável, pois oque colocou esses dois homens em oposição durante os anos1870-1876, reveste, atualmente, e para o próprio futuro dahumanidade, uma importância fundamental. Para uns, Baku-nin foi, em bloco, o adversário encarniçado das teorias mar-xistas, mas só vêem nele essa posição negativa e ignoram queela acompanhava-se de uma contrapartida positiva. Para osoutros, Bakunin aderia ao essencial da doutrina marxista, e sóuma questão de temperamento e meios táticos separava-o deseu adversário. Lembremos que ele foi o primeiro tradutor, emlíngua russa, do Manifesto Comunista e que, sob a intervençãode Netchaief - que desprezava completamente o marxismo- aceitou traduzir O Capital. Daí uma aparente concordânciapara quem quer, a qualquer custo, encontrá-Ia.

A verdade é muito mais complexa, e pretender resumirtudo em alguns parágrafos, ou em alguns exemplos citados,sem se deter ao tema para evitar um exame aprofundado, equi-vale a falsear tudo. Isso porque, nos pensadores-combatentes,obrigados a modificar suas conclusões diante dos fatos sucessi-vos e amiúde contraditórios, a interpretação de certas idéiaspode variar, porque a experiência prática ou a polêmica fazem

Page 106: Os Anarquistas Julgam Marx

108 OS ANARQUISTAS JULGAM MARX

aparecer novos elementos que obrigam a modificar concepçõesanteriores. Não é assim em todas as pesquisas e realizações daciência, em todas as atividades humanas?

Após ter estudado profundamente a filosofia alemã, como intuito de tornar-se professor de filosofia, I e ter-se impreg-nado de Kant, Schelling, Hegel, Feuerbach e outros filósofosalemães, Bakunin entrou em contato com o pensamento ma-terialista francês. Apaixonado pelo conhecimento, torna-se epermanece partidário entusiasta da ciência experimental daqual ele sempre recomendará o método, e sua aplicação à so-ciologia. O positivismo de Comte parece-lhe justo em sua me-todologia geral de estudo e pesquisa. Reagindo contra as con-cepções metafísicas dos pretensos "idealistas" que são, segundoele, os mais rasteiros materialistas, aplaude o materialismofilosófico, que resulta na concepção a mais idealista de fato, amais elevada moralmente da vida.

Desde 1844, ocupa-se com os problemas econômicos.Depois de ter conhecido Weitling na Suíça, conhecerá Prou-dhon e Marx em Paris; estudará [ean-Baptiste Say, Turgot,Bastiat e também todos os teóricos de tendência comunistaautoritária. Descobre o socialismo, do qual foi, na Alemanha,o primeiro porta-bandeira, e do qual será o fundador, comomovimento constituído, na Itália e na Espanha.

Tudo isso o leva ao estudo sistematicamente materialistade Marx, do qual ele reconhece, em vários momentos, o valorcientífico, preferindo seu método realista à filosofia demasiadoabstrata de Proudhon.

Não nos surpreende, portanto, que ele tenha traduzido,em Londres, em 1862, o Manifesto Comunista. Todavia, ele édemasiado inteligente, tem uma visão demasiado universal eamplamente humana da vida para deixar-se subjugar, por muitotempo, pela explicação dialética aplicada ao estudo dos fatoseconômicos - o que é, em definitivo, um modo de falsear esses

Page 107: Os Anarquistas Julgam Marx

BAKUNIN E O ESTADO MARXISTA 109

fatos. Já durante a tradução - porque precisa de dinheiro, enão por outro motivo - da primeira parte de O Capital, eleescreve a Herzen (carta de 4 de janeiro de 1870):

E, quanto a mim, sabias, meu velho, que trabalhona tradução da metafísica econômica de Marx, pela qualjá recebi um adiantamento de 300 rublos, e ainda terei600 a receber! Leio Proudhon e a Filosofia positiva deComte, e em meus raros momentos livres, escrevo meulivro sobre a supressão do Estado.

Como vemos, ele estava longe da adesão total ao mar-xismo, ao socialismo dito "científico", e ao espírito marxista.

Mais tarde, à medida que a polêmica se desenvolverá,Bakunin acumulará as objeções. Ele prestará, naquela oportu-nidade, homenagem ao Capital, mas essa homenagem não serácega:

o Sr. Karl Marx é um abismo de ciência estatísticae econômica. Sua obra sobre o capital, conquanto seja,infelizmente, carregada de fórmulas e sutilezas metafí-sicas, que a tornam inabordável para a grande maioriados leitores, é, no mais alto nível, uma obra positiva, ourealista, no sentido em que não admite, em absoluto,outra lógica senão a lógica dos fatos. (Leme à un Fran-çais, p. 63).

Todavia, quanto ao fato econômico, Bakunin, que, parasimplificar os argumentos, repete, às vezes, o esquema marxista- do qual o essencial remonta a Proudhon - da concen-tração do capital, da crescente pauperização do proletariado,da proletarização da burguesia etc., retifica, mesmo sem po-lêmica, as fórmulas passe-partout. A vida será sempre superiorà ciência, diz ele em algum momento, e observa em demasia,capta atentamente a vida para não ver que a ciência marxista

Page 108: Os Anarquistas Julgam Marx

110 OS ANARQUISTAS JULGAM MARX

não prevê toda uma série de fatos que se produzem sob seusolhos (por exemplo, o aburguesamento de certas camadas pro-letárias, que contradiz a pauperização do proletariado; a defi-nição heterodoxa da burguesia que para ele também é com-posta dos proprietários e dos patrões; o fato de a classe intelec-tual viver melhor do que os trabalhadores manuais; a classedos burocratas privilegiados do Estado que exploram as massasà sua maneira). No fundo, ele é mais científico, por observarmais livremente do que seu adversário.

Assim, surgem as diferenças. Igualmente as oposições.

No prefácio da Crítica da Economia Política, Marx resumiaseu pensamento doutrinal por essa fórmula-síntese: "O modode produção da vida material determina de uma maneira geralo processo social, político e intelectual da vida. Não é a cons-ciência do homem que determina seu modo social de existên-cia, mas seu modo social de existência que determina sua cons-ciência". E ele achava bom que assim fosse.

Depois, Engels, no Anti-Dürhing, afirma que "a organi-zação econômica da sociedade constitui sempre a base real queexplica, em última instância, toda a superestrutura das insti-tuições jurídicas e políticas, bem como as idéias religiosas,filosóficas e outras de cada período histórico".

Mas em seu escrito Sofismas históricos da Escola doutrináriados comunistas alemães, Bakunin logo superará essa interpre-tação estreita da história:

Três elementos, ou, se preferirem, três princípiosfundamentais constituem as condições essenciais detodo desenvolvimento humano, tanto individual quantocoletivo, na história: 1Q a animalidade humana; 2Q o pen-samento; 3º a revolta. À primeira corresponde precisa-mente a economia social e privada; à segunda, a ciência; àterceira, a liberdade."

Page 109: Os Anarquistas Julgam Marx

BAKUNIN E O ESTADO MARXISTA 111

Desenvolvendo alhures essas afirmações fundamentais,analisando a influência de todos os fatores que fazem a história,ele alargará o horizonte bem mais ainda.

Uma boa parte de sua crítica do marxismo, como doutrinae ciência social, encontra-se em sua Leme au journal La Liberté.O fragmento que apresentamos logo em seguida aponta aomesmo tempo o problema dos fatores determinantes da his-tória e do papel desempenhado pelo Estado em relação aoproblema econômico e das classes sociais. Bakunin ali discuteos objetivos da Internacional, por ele embasados essencial-mente na solidariedade econômica de todos os trabalhadoresde todos os países, e na completa liberdade das seções nacio-nais para escolher livremente seus meios de ação. Combatendoo desvio político-nacionalista que Marx e os seus acabam deimprimir nessa organização, ele escreve:

Mas Marx não quer evidentemente essa solidarie-dade porquanto se recusa a reconhecer essa liberdade.Para dar sustentação a essa recusa, ele tem uma teoriamuito especial que, por sinal, é apenas uma conseqüên-cia lógica de todo o seu sistema. O estado político decada país, diz Marx, é sempre o produto e a expressão fielda situação econômica; para mudar o primeiro, bastatransformar esta última. Todo o segredo das evoluçõeshistóricas, segundo o Sr. Marx, encontra-se aí. Ele nãoleva absolutamente em conta os outros elementos dahistória tais como a reação, no entanto evidente, dasinstituições políticas, jurídicas e religiosas sobre a situa-ção econômica. Ele diz: ''A miséria produz a escravidãopolítica, o Estado"; mas não permite inverter esta frasee dizer: ''A escravidão política, o Estado, produz, por suavez, e mantém a miséria como uma condição de suaexistência; de modo que, para destruir a miséria, é pre-ciso destruir o Estado". E, coisa estranha, ele, que proíbe

Page 110: Os Anarquistas Julgam Marx

112 OS ANARQU[STAS JULGAM MARX

seus adversários de responsabilizarem a escravidão polí-tica, o Estado, como uma causa atuaF da miséria, pres-creve a seus amigos e a seus discípulos da democraciasocialista na Alemanha para considerarem a conquistado poder e das liberdades políticas como a condiçãoprévia, absolutamente necessária, para a emancipaçãoeconômica.

I

Do Estado, causa de miséria de uma parte da populaçãoem proveito de uma outra, do Estado criador de classes, a Rús-sia nos dá uma demonstração definitiva. As afirmações deBakunin são verifícadas por toda a história da humanidadequando se quer estudá-Ia seriamente. Bakunin, que não seconsiderava um "abismo de ciência", sabia-o muito bem, e pre-via o futuro segundo as lições do passado. Em seguida, conti-nuava a desenvolver suas objeções teóricas, e dava ao mate-rialismo filosófico seu real valor, que tanto contrasta, por suaamplidão, com a concepção econômica estreita de seu adver-sário:

o Sr. Marx desconhece completamente um outroelemento muito importante no desenvolvimento his-tórico da humanidade: é o temperamento e o caráterparticular de cada raça e de cada povo, temperamento ecaráter que são naturalmente eles próprios os produtosde uma multidão de causas etnográficas, climatológicase econômicas, tanto quanto históricas, mas que, umavez dadas, exercem, mesmo fora e independentementedas condições econômicas de cada país, uma influênciaconsiderável sobre seus destinos, e inclusive sobre o de-senvolvimento de suas forças econômicas.

Entre esses elementos e esses traços, por assimdizer, naturais, há um cuja ação é completamente deci-siva na história particular de cada povo: a intensidadedo instinto de revolta, e, em conseqüência, de liberdade,

Page 111: Os Anarquistas Julgam Marx

BAKUNIN E O ESTADO MARXISTA 113

do qual é dotado, e que conservou. Esse instinto é umfato inteiramente primordial, animal: encontramo-loem diferentes graus em cada ser vivo, e a energia, a po-tência vital de cada um mede-se à sua intensidade. Nohomem, ao lado das necessidades econômicas que o im-pulsionam, ele toma-se o agente mais poderoso de todasas emancipações humanas. E como é um caso de tempe-ramento, não de cultura intelectual e moral, conquantoele solicite comumente uma e outra, ocorrem algumasvezes que povos civilizados só o possuam a um fracograu, seja porque ele se tenha esgotado em seus desen-volvimentos anteriores, seja porque a própria naturezade sua civilização os tenha depravado, seja enfim por-que, desde o início de sua história, eles tivessem sidomenos capazes do que os outros. (Oeuvres, p. 378).

As considerações que ele desenvolveu no ImPério cnuto-germânico, sobre a psicologia e a história da Alemanha e do povoalemão, sustenta esse pensamento último. De todo modo, éindiscutível que um povo, por natureza disciplinado ou resig-nado, será sempre mais suscetível de sofrer a estatização do queum povo pouco inclinado à disciplina passiva. Sem dúvida, nãoé um acaso que o marxismo estatal tenha triunfado de iníciona Alemanha, de onde irradiou sobre os outros países; tambémnão é um acaso que o totalitarismo absoluto tenha podidoimpor-se tão habilmente na Rússia; nem que o anarquismotenha tão intensamente se desenvolvido na Espanha. Só asrazões econômicas não explicam tudo, e a estrutura jurídica doEstado, as relações entre o cidadão e o governo na Inglaterra ena Rússia, nos Estados Unidos e no Japão, são igualmente deter-minados por esses fatores psicológicos, quaisquer que sejam ascausas longínquas, ou os agentes modificadores.

Falta-me espaço para expor tudo o que seria preciso dizersobre as diferenças fundamentais entre o pensamento teórico

Page 112: Os Anarquistas Julgam Marx

114 OS ANARQUISTAS JULGAM MARX

bakuniniano e o pensamento teórico marxista. Espero, con-tudo, ter dado elementos que nos ajudarão a compreender asdiferenças de apreciação teórica e prática quanto ao problemado Estado.

NATUREZA DO ESTADO

Bakunin é inimigo do Estado. Marx também, em teoria,ao menos. Todavia, Marx considera que o Estado proletário, ousocialista, pode agir a serviço do povo, enquanto seu adversárionão diferencia o Estado, dito proletário, do Estado monárquicoou republicano. Para ele, essencialmente, o Estado não podeter outro objetivo ou dar outros resultados senão a opressão ea exploração das massas populares, seja defendendo os proprie-tários, os patrões, os capitalistas, seja se tornando ele próprioproprietário, patrão, capitalista.

Mesmo quando ele serve os privilegiados, a grande razãode sua existência é antes de tudo ele mesmo, sua vontade dedurar, de estender seu poder político e econômico, o segundodependendo do primeiro, em detrimento, se necessário, da-queles que ele "protege".

Já encontramos esse pensamento subjacente na magníficacarta publicada em La Réforme, o jornal de Ledru-Rollin, em27 de janeiro de 1847. Nela Bakunin comentava o ucasse doczar que o despojava, assim como Golovin, outro russo, de seusbens, títulos e nacionalidade, e ordenava sua prisão e depor-tação perpétua à Sibéria se conseguissem prendê-lo.

Encontramos também a demonstração desse pensamentoem suas inúmeras análises da história da Rússia, da Alemanha,da França, da Itália, a propósito de Luís XI, Luís XlV, NapoleãoIlI, Lutero, Bismarck, da unidade italiana ou do despotismoczarista. Em Estatismo e Anarquia, do qual nós nos ocuparemosmais adiante, ele faz essa síntese do Estado russo:

Page 113: Os Anarquistas Julgam Marx

BAKUNIN E O ESTADO MARXISTA 115

o Estado russo é, poder-se-ia dizer, antes de tudoum Estado militar. Tudo é subordinado a ele no interesseúnico de um Estado opressor: o soberano, o Estado; eiso principal, todo o resto ~ ó povo, mesmo os interessesdas castas, a prosperidade da indústria, do comércio, edo que estamos habituados a chamar civilização - sãoapenas meios para alcançar esse objetivo. Sem um certograu de civilização, sem indústria e sem comércio, ne-nhum Estado, sobretudo um Estado moderno, podeexistir, porque a riqueza dita nacional está longe de sera da Nação, enquanto a riqueza das classes privilegiadasé uma força. Na Rússia, a riqueza nacional é de todoabsolvida pelo Estado, que, por sua vez, se transformanum pai, que sustenta uma imensa classe estatista com-posta de militares, civis e eclesiásticos. O roubo gene-ralizado e oficialmente organizado, a dilapidação do di-nheiro público e a espoliação do povo, esta é a expressãomais verdadeira da civilização estatista da Rússia. (Ed.argentina, pp. 186-187).

Sem negar que, nos países capitalistas, o Estado é umfator de sustentação da classe economicamente dominante, eao dizê-lo, inclusive bem amiúde, Bakunin não vê apenas esseaspecto da realidade histórica'. O único exemplo russo fazsurgir uma realidade muito mais profunda e mais complexa,geral também, que sempre se produziu e que, sob formas diver-sas, pode sempre se reproduzir. Longe de ser apenas a expressãopolítica das classes dominantes (tese marxista), o Estado é,portanto, por ele mesmo, constitui sua própria classe domi-nante; ele tem a sua moral, sua razão de ser, sua política porcausa de sua própria natureza. Tomemos ao acaso, das inú-meras páginas escritas concernentes a essas questões por Ba-kunin, a que se segue, extraída de sua obra Os Ursos de Berna eo Urso de São Petersburgo (T. II das Oeuvres, pp. 61-62):

Page 114: Os Anarquistas Julgam Marx

116 OS ANARQUISTAS JULGAM MARX

A moral, como se sabe, exerce apenas uma influên-cia demasiado fraca sobre a política interior dos Estados;não exerce nenhuma sobre sua política exterior. A leisuprema do Estado é a própria conservação do Estado,- e como todos os Estados, desde que existem sobre aterra, estão condenados a uma luta perpétua: luta con-tra suas próprias populações que eles oprimem e arruí-nam, luta contra todos os Estados estrangeiros, dos quaiscada um só é poderoso sob a condição de que o outroseja fraco; e como eles não podem conservar-se nessaluta senão aumentando a cada dia a sua força, tanto nointerior, contra seus próprios súditos, quanto no exterior,contra as potências vizinhas - disso resulta que a leisuprema do Estado é o aumento de sua força em detri-mento da liberdade interior e da justiça exterior.

Tal é, em sua franca realidade, a única moral, oúnico fim do Estado. Ele só adora o próprio Deus namedida em que ele é seu Deus exclusivo, a sanção de suaforça e do que denomina seu direito, quer dizer, seu di-reito de existir, e de ampliar-se sempre em detrimento detodos os outros Estados. Tudo o que serve a esse fim émeritório, legítimo, virtuoso. Tudo o que o prejudica écriminoso. A moral do Estado é, então, a inversão dajustiça humana, da moral humana.

Essa moral transcendente, extra-humana e, por issomesmo, anti-humana dos Estados, não é o fruto apenasda corrupção dos homens que desempenham suas fun-ções. Poder-se-ia dizer, de preferência, que a corrupçãodesses homens é a conseqüência natural, necessária dainstituição dos Estados. Essa moral nada mais é que odesenvolvimento do princípio fundamental do Estado, aexpressão inevitável de uma necessidade inerente aoEstado. O Estado não é outra coisa senão a negação dahumanidade; é uma coletividade restrita que quer tomar

Page 115: Os Anarquistas Julgam Marx

BA KUNIN E O ESTADO MARXISTA 117

O seu lugar e quer impor-se a ela como um fim supremoao qual tudo deve servir, tudo deve submeter-se.

ESTADO E SOCIALISMO

Essa oposição absoluta ao Estado, qualquer que seja, ex-plica por que Bakunin opõe-se ao comunismo. Foi, com efeito,após a sua morte, particularmente sob a influência dos interna-cionalistas bakuninianos italianos, Caffiero, Malatesta, AndreaCosta, Gambuzzi, Covelli e outros," que o comunismo anar-quista foi formulado. Até então, o comunismo aparecera sob oaspecto autoritário e estatal concebido por Platão, Campa-nella, Thomas Morus e outros precursores longínquos, depoispor Babeuf, Buonarroti, Louis Blanc, Pierre Leroux, EtienneCabet, os blanquistas - se é que se os pode ordená-los entreos comunistas - Weitling e seus amigos, e enfim Marx, Engelse seus discípulos. Proudhon opôs-lhe o mutualismo. Bakuninopunha-lhe o que ele chamava de coletivismo, e no Congressoda Internacional, celebrado em Berna, de 21 a 25 de setembrode 1868, ele declarava:

Que diferença, perguntaram-me, fazeis entre ocomunismo e o coletivismo? Estou realmente surpresoque o Sr. Chaudey não compreenda essa diferença, ele,o executor testamenteiro de Proudhon. Detesto o co-munismo porque ele é a negação da liberdade, e porquenada posso conceber de humano sem liberdade. Não souabsolutamente comunista porque o comunismo concen-tra e faz absorver todas as forças da sociedade no Estado,porque ele desemboca necessariamente na concentra-ção da propriedade nas mãos do Estado, enquanto euquero a abolição do Estado, a extirpação radical desseprincípio da autoridade e da tutela do Estado que, sob o

Page 116: Os Anarquistas Julgam Marx

118 OS ANARQUISTAS JULGAM MARX

pretexto de moralizar e de civilizar os homens, até estemomento os subjugou, oprimiu, explorou e depravou.Eu quero a organização da sociedade e da propriedadecoletiva ou social de baixo para cima, pela via da livreassociação, e não de cima para baixo, por meio de qual-quer autoridade que seja. Querendo a abolição do Es-tado, quero a abolição da propriedade individualmentehereditária, que é uma instituição do Estado, uma con-seqüência do princípio do Estado. Eis em que sentidosou coletivista, e de forma alguma comunista". (Citado porJames Guillaume, rlnternationale, Documents et Souoe-nirs, t. I, pp. 74-75).

A posição é clara. Ela é fundamental, antimarxista nãoapenas na recusa do comunismo autoritário, e da utilização doEstado como meio de emancipação popular, mas ainda na in-terpretação sociológica da história. Ver na propriedade "indivi-dualmente hereditária" uma criação do Estado é a inversãoabsoluta do esquema do economismo histórico marxista, cujasconseqüências teóricas e táticas são enormes. E isso prova, depassagem, que o que separava Bakunin de Marx não era tam-bém uma simples questão de tática.

Essa posição intransigente e conseqüente contra o socia-lismo ou o comunismo de Estado é afirmada com uma forçacrescente à medida que Marx e seus amigos enunciam seusmeios de realização. Porquanto "a lei suprema do Estado é aconservação do Estado", o transitório, nessa ordem de coisas,tenderá inevitavelmente a tornar-se definitivo, e Bakunin nãodenuncia apenas o erro tático, mas igualmente o futuro totali-tário e esclerosado que deve ser evitado:

A igualdade sem a liberdade é uma ficção insanacriada pelos bandalhos para enganar os parvos. A igual-dade sem a liberdade é o despotismo do Estado, e o Es-

Page 117: Os Anarquistas Julgam Marx

BAKUNIN E O ESTADO MARXISTA 119

tado despótico não poderia existir um único dia sem terao menos uma classe exploradora e privilegiada: a buro-cracia, força hereditária, como na Rússia e na China, oude fato como na Alemanha e entre nós. Nosso grande everdadeiro mestre de todos, Proudhon, disse em seu belolivro De Ia [ustice dans l'Église et dans Ia Révolution, que adesastrosa combinação que poderia formar-se seriaaquela que reuniria o socialismo com o absolutismo, astendências do povo rumo à emancipação econômica, eo bem-estar material com a ditadura e a concentraçãode todos os poderes políticos e sociais no Estado.

Que o futuro preserve-nos dos favores do despo-tismo; mas que ele também nos salve das conseqüênciasdesastrosas e embrutecedoras do socialismo autoritário,doutrinário ou de Estado. Sejamos socialistas' mas nuncanos tornemos povos-rebanhos. Não busquemos a jus-tiça, toda a justiça política, econômica e social senão navia da liberdade. Nada deve existir de vivo e humanofora da liberdade, e um socialismo que a rejeitasse de seuseio ou que não a aceitasse como único princípio criadore como base, levaria-nos direto à escravidão e à bestia-lidade.

Esse fragmento de carta, reproduzido por Max Nettlau emUfe af Bakaunine (t. I, p. 249), foi sem dúvida escrito a um dosinternacionalistas de Madri ou Barcelona que, sob a impulsãode Bakunin, criaram a seção espanhola da Internacional, seçãoque o congresso de Saint-Imier recomendava como modelo deorganização para o rápido desenvolvimento de suas federaçõesnacionais de ofícios. É, em todo o caso, a um outro interna-cionalista espanhol, Anselmo Lorenzo, grande e bela figura doanarquismo, que ele escrevia:

Inimigo convicto do Estado e de todas as institui-ções de Estado, tanto econômicas quanto políticas, jurí-

Page 118: Os Anarquistas Julgam Marx

120 OS ANARQUISTAS JULGAM MARX

dicas e religiosas do Estado, inimigo em geral de tudo oque, na linguagem da gente doutrinária, denomina-setutela benfazeja exercida sob qualquer forma que sejapelas minorias inteligentes e naturalmente desinteressadassobre as massas, convictos de que a emancipação econô-mica do proletariado, a grande liberdade, a liberdadereal dos indivíduos e das massas e a organização uni-versal da igualdade e da justiça humana, convictos deque a humanização do rebanho humano, em resumo, éincompatível com a existência do Estado ou de qualqueroutra forma de organização autoritária que seja, eu ins-tiguei, desde o ano de 1868, época de meu ingresso naInternacional, em Genebra, uma cruzada contra o pró-prio princípio da autoridade, e comecei a pregar publi-camente a abolição dos Estados, a abolição de todos osgovernos, de tudo o que chamamos dominação, tutelaou poder, inclusive, sem dúvida, a pretensa ditadurarevolucionária e provisória que os jacobinos da Interna-cional, discípulos ou não de Marx" recomendam-noscomo um meio de transição absolutamente necessário,segundo eles, para consolidar e organizar a vitória doproletariado. Eu sempre pensei, e penso mais do quenunca hoje, que essa ditadura, ressurreição mascaradado Estado, nunca poderá produzir outro efeito além deparalisar e matar a própria vitalidade e a força populares.

A luta é iniciada e desenvolve-se entre as federações doJura, a italiana e a espanhola - as únicas de fato organizadasda Internacional -, as correntes federalistas da brilhanteseção belga, aquelas, mais restritas, das seções francesa -todas clandestinas diante das perseguições e dos processosimpostos pela polícia e pela justiça de Napoleão III - e mar-xistas autoritárias, clandestinas ou mal-organizadas da Ingla-terra e da Alemanha. Luta que opõe as concepções teóricas aosmétodos de ação, o federalismo ao centralismo, a organização

Page 119: Os Anarquistas Julgam Marx

BAKUNIN E O ESTADO MARXISTA 121

livre de baixo para cima ao estatismo, a liberdade de iniciativalocal, regional, nacional, internacional ao poder ditatorial doConselho federal da Internacional sediado em Londres, e noqual Marx está entronizado, apoiado sem reservas por seuscompatriotas e correligionários israelitas. E Bakunin nuncaperde a oportunidade de precisar as diferenças de princípios etáticas e suas conseqüências longínquas e imediatas.

OS DOIS MÉTODOS

Sou partidário convicto da igualdade econômica esocial, porque sei que fora dessa igualdade, a liberdade,a justiça, a dignidade humana, a moralidade e o bem-estar dos indivíduos bem como a prosperidade das na-ções nunca serão algo diferente de mentiras. Todavia,partidários, apesar de tudo, da liberdade, essa condiçãoprimeira da humanidade, penso que a igualdade deveestabelecer-se no mundo pela organização espontâneado trabalho e da propriedade coletiva das associações deprodutores livremente organizadas e federalizadas, nascomunas, não pela ação suprema e tutelar do Estado.

Esse é o ponto que divide principalmente os so-cialistas ou coletivizados revolucionários? dos comunis-tas autoritários, partidários da iniciativa absoluta doEstado. O objetivo deles é o mesmo; um e outro partidoquerem do mesmo modo a criação de uma nova ordemsocial fundada unicamente sobre a organização do tra-balho coletivo, inevitavelmente imposto a cada um e atodos pela própria força das coisas, em condições econô-micas iguais para todos, e sobre a apropriação coletivados instrumentos de trabalho.

Só os comunistas crêem que eles poderão chegar aisso pelo desenvolvimento e pela organização da força

Page 120: Os Anarquistas Julgam Marx

122 OS ANARQUISTAS JULGAM MARX

política das classes operárias e principalmente do pro-letariado das cidades, com a ajuda do radicalismo bur-guês, enquanto os socialistas revolucionários, inimigosde toda liga e de toda aliança equívocas, pensam, aocontrário, que eles não podem alcançar esse objetivosenão pelo desenvolvimento e pela organização da força,não política, mas social, e, por conseqüência, antipo-lírica das massas operárias tanto das cidades quanto doscampos, inclusive todos os homens de boa vontade dasclasses superiores que, rompendo com o seu passado,gostariam francamente de juntar-se a eles e aceitar inte-gralmente seu programa.

Disso resultam dois métodos diferentes. Os comu-nistas crêem dever organizar as forças operárias paraapoderar-se da força política dos Estados. Os socialistasrevolucionários organizam-se com vistas à destruição,ou, se preferirmos uma palavra mais educada, com vistasà liquidação dos Estados. Os comunistas são os partidá-rios do princípio e da prática da autoridade, os socialis-tas só confiam na liberdade. Uns e outros são igualmentepartidários da ciência que deve matar a superstição esubstituir a fé; os primeiros gostariam de impô-Ia; ossegundos esforçam-se para propagá-Ia, a fim de que osgrupos humanos convictos organizem-se e federem-seespontânea e livremente, de baixo para cima, por seu pró-prio movimento e de acordo com seus reais interesses,mas nunca segundo um plano traçado de antemão eimposto à massas ignorantes por algumas inteligênciassuperiores. (Preâmbulo para a segunda edição do ImpérioCnuto-Germânico, t. 1Il, pp. 250-252 das Obras).

Em todas essas páginas escritas como muitas outras, comfreqüência sem ordem, Bakunin continua a mostrar diferençase perigos. Assim, em sua longa Carta ao "La Liberté", jornalsocialista de Bruxelas que, com o Fragmento formando uma

Page 121: Os Anarquistas Julgam Marx

BAKUNIN E O ESTADO MARXISTA 123

continuação do ImPério Cnuto-Germânico é o escrito mais siste-mático sobre esse assunto, ele critica "a ilusão do Estado po-pular" (Volkstaat), perseguida pelos social-democratas e pelostrabalhadores alemães que os seguem; declara que a revoluçãovirá mais do sul da Europa e que o povo alemão a seguirá,eliminando "de uma só vez a dominação de seus tiranos e deseus pretensos emancipadores". E ele acrescenta:

o raciocínio do Sr. Marx desemboca em resultadosabsolutamente opostos. Levando em consideração ape-nas a questão econômica, ele diz que os países maisavançados e, por conseqüência, os mais capazes de fazeruma revolução social são aqueles nos quais a produçãocapitalista moderna alcançou seu mais elevado grau dedesenvolvimento. São eles que, à exclusão de todos osoutros, são os países civilizados, os únicos chamados ainiciar e a dirigir essa revolução. Essa revolução consis-tirá na expropriação quer sucessiva, quer violenta dosproprietários e dos capitalistas atuais, e na apropriaçãode todas as terras e de todo o capital pelo Estado que,para exercer sua grande missão econômica, bem comopolítica, deverá necessariamente ser muito poderoso emuito fortemente concentrado. O Estado administraráe dirigirá a cultura da terra por meio de seus engenheirosremunerados e comandando exércitos de trabalhadoresrurais, organizados e disciplinados para essa cultura. Aomesmo tempo, sobre a ruína de todos os bancos existen-tes, ele estabelecerá um banco único, comanditário detodo o trabalho e de todo o comércio internacional.s

Concebe-se que, no primeiro momento, um planode organização tão simples, ao menos na aparência, possaseduzir a imaginação de operários mais ávidos de justiçae igualdade que de liberdade, e que se iludem louca-mente quanto a um e outro poderem existir sem liber-

Page 122: Os Anarquistas Julgam Marx

124 OS ANARQU[STAS JULGAM MARX

dade, como se, para conquistar e consolidar a justiça e aigualdade, fosse possível repousar-se sobre outrem esobre governantes, sobretudo, alguns eleitos e contro-lados, segundo eles, pelo povo! Na realidade, seria parao proletariado um regime de caserna, em que a massauniforme dos trabalhadores e das trabalhadoras desper-taria, adormeceria, trabalharia e viveria ao som do tam-bor; para os hábeis e doutos, viveriam em privilégios degoverno; e os outros, atraídos pela imensidão das es-peculações dos bancos internacionais, restaria um vastocampo de negociatas lucrativas.

No interior será a escravidão, no exterior, a guerrasem trégua, a menos que todos os povos das raças "infe-riores", latina e eslava, uma fatigada da civilização bur-guesa, a outra ignorando grosso modo e desdenhando-apor instinto, não se resignem a sofrer o jugo de umanação essencialmente burguesa e de um Estado tantomais despótico porque se chamará Estado popular.

* * *

Um parêntese parece impor-se. É sobre a Alemanha e oEstado socialista alemão que Marx acreditava, então, após terprognosticado, em virtude do socialismo "científico" e da con-centração industrial, que a Inglaterra iniciaria o processo (em1882 ele admitirá no prefácio à edição russa do Manifesto Co-munista que poderia ser a Rússia), é na Alemanha que Marxvia agora realizar suas concepções. Realização que deveria ba-sear-se sobre um Estado forte, o qual assumiria a frente da In-ternacional e, por conseqüência inelutável, dominaria as ou-tras nações. Foi na Rússia que a revolução marxista produziu-se. Mas há uma semelhança surpreendente nessa dominaçãodas outras nações pela primeira "pátria socialista marxista";

Page 123: Os Anarquistas Julgam Marx

BAKUNIN E O ESTADO MARXISTA 125

isso decorre da concepção centralista do Estado-guia à qualMarx chegara.

CONTRADIÇÕES DA DITADURA

DO "PROLETARIADO"

Bakunin expõe de novo o problema em seu livro Estatismoe Anarquia, escrito em russo e para a Rússia, em 1873. Contra-riamente ao que foi afirmado, este livro não é superior a di-versos escritos que encontramos nas Oeuvres. Ele não tem umvalor teórico fundamental.

Ele foi traduzido do russo ao espanhol, e é à edição argen-tina que tomo emprestado a crítica do Estado "proletário" e daditadura da classe dominante do proletariado. Para Bakunin, arevolução social tendo triunfado, a classe proprietária - aris-tocracia rural, burguesia capitalista - deveria automatica-mente desaparecer. Acreditava igualmente que a necessidadeda dominação de uma classe por uma outra nunca poderiadesaparecer por intermédio do Estado.

Se, perguntamos, o proletariado converte-se emclasse dominante, quem ele dominará? Restará, então,um outro proletariado submetido a essa nova domina-ção, e a um outro Estado? É, por exemplo, o caso damassa camponesa que, como sabemos, não goza da be-nevolência dos marxistas e, encontrando-se em umnível de cultura inferior, será sem dúvida governada peloproletariado das cidades e das fábricas; ou, se conside-rarmos a questão do ponto de vista nacional, em relaçãoao proletariado alemão vencedor? os escravos cairão sobo jugo servil, semelhante àquele que esse proletariadosofre de sua burguesia.

Page 124: Os Anarquistas Julgam Marx

126 OS ANARQUISTAS JULGAM MARX

o que significa "o proletariado elevado à posiçãode classe dominante"? Seria o proletariado inteiro que secolocaria à frente do governo? Existem aproximada-mente quarenta milhões de alemães; é possível imaginaresses quarenta milhões membros do governo? O povointeiro governará e não haverá governados; mas, então,não haverá governo, não haverá escravos; enquantoque, se há Estado, haverá governados, haverá escravos.

Na teoria marxista esse dilema é facilmente resol-vido. Entende-se por governo do povo o governo por umpequeno número de representantes eleitos pelo povo. Osufrágio universal - o direito de todo o povo podervotar nos representantes do povo e dos gestores do Es-tado -, tal é a última palavra dos marxistas, bem comoa da minoria dominante, tanto mais perigosa porqueaparecerá como expressão da pretensa vontade popular.

Assim, de qualquer lado que se examine o proble-ma, chega-se sempre ao mesmo resultado: o governo daimensa maioria das massas do povo pela minoria privi-legiada. Mas, dizem-nos os marxistas, essa minoria serácomposta de trabalhadores. Sim, ex-trabalhadores talvez,mas tão logo eles se converterão em governantes ou emrepresentantes do povo, cessarão de ser trabalhadores econsiderarão o mundo dos trabalhadores do alto de suaposição estatal; a partir daí, não mais representarão opovo, mas eles mesmos, e suas pretensões de querer go-vernar o povo. Aquele que duvida disso nada conheceda natureza humana.

Mas esses eleitos serão ardentes convictos, e, alémdo mais, socialistas científicos. Essas palavras, "socialis-tas científicos", encontradas continuamente nas obras enos discursos dos lassalianos e dos marxistas, provamque o pretenso Estado popular será apenas uma admi-nistração assaz despótica das massas do povo por uma

Page 125: Os Anarquistas Julgam Marx

BAKUNIN E O ESTADO MARXISTA 127

nova aristocracia, muito pouco numerosa, de autênticose pseudo savants. O povo não é savant, e, por conse-qüência, ele será inteiramente isento das preocupaçõesgovernamentais e globalmente incluído no rebanho dosadministrados. Bela liberação!

Os marxistas vêem essa contradição, e reconhe-cendo que um governo de savants - o mais insupor-tável, o mais ultrajante e o mais desprezível de todos -seria, malgrado todas as formas democráticas, uma ver-dadeira ditadura, consolam-se dizendo que essa ditaduraseria provisória e de curta duração. Dizem que sua únicapreocupação e seu único objetivo são educar e formar opovo, tanto do ponto de vista econômico quanto polí-tico, a um nível tal que todo governo logo se tornarásupérfluo, e que o Estado, perdendo todo o caráter polí-tico, quer dizer, de dominação, transforrnar-se-á numaorganização das comunas absolutamente livre.

Estamos diante de uma flagrante contradição. Se oEstado fosse realmente popular, por que aboli-lo? E se ogoverno do povo é indispensável para a emancipaçãoreal do povo, como ousam denominá-lo popular?

Graças à polêmica que sustentamos com eles, nósos fizemos declarar que a liberdade ou a anarquia, istoé, a organização livre das massas trabalhadoras de baixopara cima, é o objetivo final do desenvolvimento social,e que todo Estado, sem excetuar o Estado popular, é umjugo que, de um lado, engendra o despotismo, do outro,a escravidão.

Eles declaram que tal ditadura do jugo estatal é ummeio transitório inevitável para alcançar a emancipaçãointegral do povo: a anarquia, ou a liberdade, é o obje-tivo; o Estado, ou a ditadura, o meio. Desse modo, paraemancipar as massas laboriosas, é preciso, de início, sub-jugá-Ias.

Page 126: Os Anarquistas Julgam Marx

128 OS ANARQUISTAS JULGAM MARX

A PRÁTICA DA DITADURA

Chegamos surpreendentemente à antecipação divinatóriado que se passou na Rússia, e em todos os países onde o Estadomarxista domina. O que seguirá foi retirado do Fragment for-mant une suite de l'EmPire knouto-germanique (p. 473 e seguin-tes, t. IV das Oeuvres). O primeiro parágrafo acrescenta, àsconsiderações gerais sobre a revolução social, o problema ime-diato da Internacional da qual Bakunin foi o teórico mais obs-tinado e mais profundo'? e, nos países latinos, o organizadormais ardente, o inspirador mais eficaz.

Não é inútil insistir sobre essa questão que mereceria umdesenvolvimento à parte. Vimos que a social-democracia alemã,organizada como partido político, empreendia a conquista doEstado pela luta parlamentar. Bakunin via, dramaticamente,que tal tática "mataria a Internacional" - o que acabou acon-tecendo - porque cada seção nacional, centrando-se sobre oEstado nacional, voltava as costas aos outros Estados nacionaise rompia sua solidariedade, sua unidade com as outras seções.Só havia partidos nacionais, recuados nas fronteiras de seusrespectivos países. A Internacional não era mais que umapalavra. No dia em que, por intermédio de uma maioria fictí-cia, Marx arrancou do Congresso de Haia (1872) a aprovaçãoda conquista dos poderes, as grandes possibilidades - nascidasdo surgimento dessa organização que, tendendo à universa-lidade do proletariado, devia negar os Estados - foram sacri-ficadas.

Não falta, nessa emancipação genial da realidade do Es-tado marxista futuro, sequer a moral do patriotismo tão sabia-mente explorada no país dos Sovietes, onde, para exaltar umsentimento primitivo e latente, os dirigentes ressuscitaram oshinos patrióticos da época czarista, incensando os nomes deKutonzof e outros grandes generais; anexam à glória do povo

I

Page 127: Os Anarquistas Julgam Marx

IIf

f

l~

i

BAKUNIN E O ESTADO MARXISTA 129

russo todas as descobertas do mundo. Bakunin certamente nãopecou por excesso de previsões. Ficou abaixo da verdade, poismesmo na organização do aparelho repressivo por ele anun-ciado com uma precisão estupeficante, ele não podia imaginar- ninguém podia - todos os meios de tortura e todos osprocedimentos que obrigam as próprias vítimas a se acusaremnos simulacros de justiça sem igual na história.

Para concluirmos, deixemos a palavra a Bakunin.

É da natureza do Estado romper a solidariedadehumana e negar, de algum modo, a humanidade. O Es-tado só pode conservar-se como tal, em sua integridadee em toda a sua força, se ele colocar-se como o objetivosupremo absoluto, ao menos para seus próprios cida-dãos, ou, para falar mais francamente, para seus própriossúditos, não podendo impor-se como tal aos súditos dosoutros Estados. Disso resulta inevitavelmente uma rup-tura com a moral humana enquanto universal, com arazão universal, pelo surgimento da moral do Estado, ede uma razão de Estado.

O princípio da moral política ou de Estado é muitosimples. Sendo o Estado o objetivo supremo, tudo o queé favorável ao desenvolvimento de seu poder é bom;tudo o que lhe é contrário, fosse a coisa mais humana domundo, é mau. Essa moral se chama patriotismo. A In-ternacional, conforme vimos, é a negação do patrio-tismo, e por conseqüência, a negação do Estado. SeMarx e seus amigos da democracia socialista alemã pu-dessem introduzir o princípio do Estado no nosso pro-grama, eles matariam a Internacional.

O Estado, para sua conservação, deve ser necessa-riamente poderoso no exterior; mas se ele o é no exte-rior, ele o será infalivelmente no interior. Todo Estado,tendo de deixar-se inspirar e dirigir por uma moral par-

IIrI

Page 128: Os Anarquistas Julgam Marx

130 OS ANARQUISTAS JULGAM MARX

ticular, conforme às condições particulares de sua exis-tência, por uma moral que é uma restrição, e por con-seqüência, a negação da moral humana e universal, de-verá zelar para que todos os seus súditos, em seus pen-samentos, e sobretudo em seus atos, inspirem-se domesmo modo nos princípios dessa moral patriótica ouparticular, ou que permaneçam surdos aos ensinamentosda moral pura ou universalmente humana.

Daí resulta a necessidade de uma censura do Esta-do; uma liberdade demasiado grande do pensamento edas opiniões sendo - como pensa o Sr. Marx, com mui-tas razões, por sinal, segundo o seu ponto de vista emi-nentemente político - incompatível com essa unanimi-dade de adesão exigida pela segurança do Estado. Quetal seja, na realidade, o pensamento do Sr. Marx, issonos está provado o suficiente pelas tentativas que ele fezpara introduzir, sob pretextos plausíveis, mascarando-a,a censura na Internacional.

Mas qualquer que seja a vigilância dessa censura,conquanto o Estado mantivesse com exclusividade emsuas mãos toda a educação e toda a instrução populares,como o quis Mazzini, e como hoje o quer o Sr. Marx, oEstado nunca poderá estar seguro de que pensamentosproibidos e perigosos não deslizem, de contrabando, naconsciência das populações que ele governa. O frutoproibido tem tantos atrativos para os homens, e o diaboda revolta, esse eterno inimigo do Estado, desperta comtanta facilidade nos corações quando eles não estão sufi-cientemente embrutecidos, que nem essa educação, nemessa instrução, nem mesmo essa censura garantem osuficiente a tranqüilidade do Estado. É-lhe ainda neces-sário uma polícia, agentes devotados que vigiam e diri-gem secretamente e sem que isso assim pareça, a cor-rente da opinião e das paixões populares. Vimos que opróprio Sr. Marx está de tal forma convicto dessa neces-

Page 129: Os Anarquistas Julgam Marx

BAKUNIN E O ESTADO MARXISTA 131

sidade que acreditou dever espalhar seus agentes secre-tos em todas as regiões da Internacional, e sobretudo naItália, na França e na Espanha.

Enfim, por mais perfeita que seja, do ponto de vistada conservação do Estado, a organização da educação eda instrução populares, da censura e da polícia, o Estadonão pode estar seguro de sua existência enquanto nãotiver - para defendê-lo de seus inimigos internos, do des-contentamento das populações - uma força armada. OEstado é o governo de cima para baixo de uma imensaquantidade de homens muito diferentes do ponto devista do grau de sua cultura, da natureza das regiões oudas localidades em que vivem, de sua posição, de suasocupações, de seus interesses e de suas aspirações, poruma minoria qualquer. Essa minoria, fosse ela eleita pelosufrágio universal e controlada em seus atos por insti-tuições populares, a menos que seja dotada de onisciên-cia, onipresença e da onipotência que os teólogos atri-buem ao seu Deus, é impossível que ela possa prever asnecessidades, ou satisfazer, com igual justiça, os inte-resses mais legítimos, mais imperativos de todo o mundo.Sempre haverá descontentes porque sempre haverá sa-crificados.

Bem vedes que, através de todas as frases e pro-messas democráticas e socialistas do programa do Sr.Marx, encontramos em seu Estado tudo o que constituia própria natureza despótica e brutal de todos os Esta-dos, qualquer que seja a forma de seu governo, e que, emfim de contas, o Estado popular tão recomendado peloSr. Marx e o Estado aristocrático-rnonárquico mantidocom tanta habilidade e força pelo Sr. de Bismarck, iden-tificam-se completamente pela natureza de seu objetivo,

Page 130: Os Anarquistas Julgam Marx

132 OS ANARQUISTAS JULGAM MARX

tanto interior quanto exterior. No exterior, é a mesmaexibição da força militar, quer dizer, a conquista; e nointerior, é o mesmo emprego desse força armada, últimoargumento de todos os poderes políticos ameaçados,contra as massas que, fatigadas de crer, esperar, resignar-se e obedecer sempre, revoltam-se.

* * *

Acrescentarei uma consideração final. Se Bakunin foiexato em suas críticas, ele também o foi no essencial da linhade conduta a seguir. O objetivo deste estudo não é fazer essaexposição. Todavia, afirmo que o pensamento construtivo deBakunin constitui sempre uma fonte extraordinária à qual te-mos muito a recorrer. O socialismo morre e o futuro do mundoestá em perigo porque não se deu atenção a ela. É voltando aessa fonte que a justiça social na liberdade será possível.

Notas:

I Os detratores sistemáticos de Bakunin, que se esforçam para negar seuvalor intelectual, poderão tentar ridicularizar o fato de dar importânciaa essa vocação primeira. Para eles, e em desprezo pelos fatos, Bakunin foiapenas um boêmio agitado. Contentar-me-ei em citar, a esse respeito, aopinião de Arnold Ruge, o célebre diretor do Deutsche Jahrbücher, queconheceu todos os revolucionários de sua época: "Não basta dizer queBakunin tinha uma instrução alemã; ele era capaz de repreender filoso-ficamente os próprios filósofos e políticos alemães, e de pressagiar ofuturo que eles evocavam, em conhecimento de causa ou apesar deles".

Por outro lado, Bakunin, oficial de artilharia com menos de dezoitoanos, abandonou o exército para estudar filosofia. Ora, depois de ter sidoentregue à Rússia pela Áustria-Hungria, o chefe da polícia secreta vi-

Page 131: Os Anarquistas Julgam Marx

BAKUNIN E O ESTADO MARXISTA 133

sitou-o na fortaleza de Petropavlovsk. E eis o que ele disse ao ministrode Saxe em Petrogrado: "No presente, Bakunin encontra-se aqui, pois ogoverno austríaco o extraditou; eu mesmo o interroguei. É lamentávelpara este homem! Dificilmente encontraríamos no exército russo umoficial de artilharia que fosse tão capaz quanto ele". Bakunin abandonouo exército aos vinte anos.

2 Quer dizer, exercendo uma ação (N. do A.)

3 Encontra-se até mesmo, no que acabamos de reproduzir, a tese doEstado fomentando a riqueza das classes dominantes para dela tirarproveito.

4 Desde 1874, James Guillaume tinha, em sua magnífica brochura Idéessur l'Organisatian Saciale, antecipado a solução comunista, federalista elivre. Mas transitoriamente, ele admitia o coletivismo, até que a abun-dância dos bens permitisse o livre consumo.

5 Em geral, Bakunin chamou-se socialista, ou socialista revolucionário.Ele quase sempre empregou a palavra anarquia em seu sentido negativo,ou viu na anarquia o único período de destruição revolucionária. Foiexcepcionalmente - talvez sobre a insistência de homens como JulesGuesde, Paul Brousse, Benoit Malon, que na época antiautoritária, ar-dentes, reivindicavam a anarquia como fórmula de ideal social - queele tomou essa palavra num sentido positivo.

6 Os blanquistas estavam nesse momento de acordo com Marx, que osutilizou contra Bakunin, e depois se livrou deles.

7 Não apenas Bakunin, mas toda a tendência da qual ele era o teórico eo animador, era coletivista. Todavia, parece que as concepções bakuni-nianas não foram integralmente compreendidas por aqueles que maistarde criaram o princípio comunista libertário, e creio agora que o cole-tivismo de Bakunin, não de seus discípulos, é a solução jurídica a maisválida de todas aquelas apresentadas pela tendência socialista antiesta-tista.

8 O essencial desses objetivos figurava no programa da social-democra-cia alemã.

9 Poderíamos hoje dizer o proletariado russo em relação aos países saté-lites, despojados de uma parte de sua produção em proveito do povo -ou da classe dominante - russo.

Page 132: Os Anarquistas Julgam Marx

134 OS ANARQUISTAS JULGAM MARX

IO A Internacional era constituída por organizações operárias profissio-nais e por federações de ofícios, razão pela qual o surgimento de partidospolíticos que se tornavam predominantes era um desvio fundamental.Sobre essa primeira constituição, e sobre os objetivos enunciados, parti-cularmente no Preâmbulo, Bakunin escreveu inúmeros estudos e artigosque fazem dele o maior teórico do que mais tarde será denominado"sindicalismo revolucionário". Sorel, Pouget, Lagardelle, Leone, Labriolaetc. apenas o parafrasearam.

Page 133: Os Anarquistas Julgam Marx

A QUESTÃO ECONÔMICA

Eric Vilain

INTRODUÇÃO

Engels declarou em 1890 que Marx e ele próprio tinhamsido obrigados a insistir na gestão da análise econômica porquenaquele tempo era uma nova ótica e era necessário ressaltareste "princípio essencial'".

O estudo crítico da análise econômica marxista develevar em consideração esta declaração, verificando se ela temfundamento, ao invés de se deter nos preconceitos que existemno movimento libertário sobre esta questão.

Trata-se menos de demonstrar que, a priori, todas as pro-posições do marxismo são falsas do que tentar determinar emque o método de análise marxista constitui, ainda que par-cialmente, um instrumento utilizável para os militantes revo-1ucionários.

Tentativas foram feitas, no passado, para efetuar uma "sín-tese" entre marxismo e anarquismo. Estas tentativas estavamdestinadas ao fracasso.

Trata-se, aqui, sobretudo, de desmistificar o marxismocomo "doutrina científica" aos olhos dos libertários e demons-trar que nem tudo deve ser rejeitado só porque o que faz opo-sição irredutível entre marxismo e anarquismo (proibindo qual-quer síntese) é perfeitamente delimitado e observável, e que,para todo o resto, há muitas proposições que são bem assimilá-veis pelo anarquismo, seja simplesmente porque elas já esta-

Page 134: Os Anarquistas Julgam Marx

136 OS ANARQUISTAS JULGAM MARX

vam presentes no pensamento de nosso movimento antes deMarx exprimi-los ou reforrnulá-los, da mesma maneira que alei da relatividade ou a teoria dos quantas (que não foramformuladas por anarquistas como todos sabem).

É próprio de um pensamento vivo poder integrar ou rejei-tar - de modo razoável- novas idéias. O pensamento mortorejeita toda idéia que não surja de autores patenteados, e acabapor girar em círculo.

Nas filigranas do presente estudo encontrar-se-á a se-guinte interrogação: aqueles que recusam o marxismo pelasmás razões aceitam o anarquismo pelas boas?

I. Mas o que é o materialismo dialético?

No Anti-Dühring Engels diz em substância:- A história é a história das lutas de classes. As classes

sociais em conflito são o produto das relações de produção ede trocas.

- A estrutura econômica da sociedade constitui o funda-mento real pelo qual se pode explicar a superestrutura dasinstituições jurídicas, políticas, as ideologias religiosas e filo-sóficas.

- Resulta daí que as causas últimas das mutações sociaisdevem ser procuradas não no cérebro dos homens, em suacompreensão de verdades eternas, mas nas mutações da pro-dução e das trocas.

- Mas, ainda assim, os meios de supressão das inconve-niências do sistema existem de modo mais ou menos desen-volvido nas relações de produção em mutação. Estes meiosdevem ser descobertos nos fatos materiais da produção.

1Q O MaterialismoO conceito de matéria no século XVIII está ligado ao de

Page 135: Os Anarquistas Julgam Marx

A QUESTÁO ECONÔMICA 137

"sensação". A matéria é a causa da sensação. Na sensação ohomem é passivo, ele recebe as impressões do mundo exterior.Segundo Marx, o materialismo do passado concebe a realidadesob a forma de um objeto ou de uma intuição, não como umaatividade sensitiva humana. Em Teses sobre Feuerbach, Marxdeclara que o grau mais elevado atingido pelo materialismointuitivo, que não concebe a sensibilidade como atividadeprática, é a intuição dos indivíduos singulares na sociedadeburguesa.

Para Marx, a matéria deve ser pensada como um mecanis-mo, uma matéria-prima que possibilita agir.

Os antigos gregos pensavam que o conhecimento era oresultado de uma contemplação passiva. Marx sustenta quenós somos sempre ativos. Alteramos constantemente o quepercebemos. Um objeto não é reconhecido pela recepção deuma impressão passiva. Só podemos conhecê-Io se agirmossobre ele. Assim, a substância de toda verdade é prática. Vistoque alteramos o objeto agindo sobre ele, a verdade cessa de serestática e torna-se qualquer coisa que muda e que se desen-volve continuamente".

Engels tinha uma concepção muito mais "redutora" sobrea natureza da matéria e sobre o caráter pragmático da verdadeque o aproxima do materialismo ortodoxo. Em uma introduçãode 1892 de Socialisme Utopique, Socialisme Scientifique, a partereservada à ação está reduzida ao papel convencional de con-trole científico: "Demonstra-se o pudim comendo-o". Nestaintrodução de 1892 não há sinal da doutrina segundo a qualos objetos sensíveis sejam em grande parte o produto de nossaatividade. Mas não há nenhuma indicação de que Engelstenha consciência de estar em desacordo com Marx.

Aplicado à economia, à história e às ciências sociais emgeral, o materialismo implica que, na base de todas as açõeshumanas, se encontrem causalidades que têm suas raízes nos

Page 136: Os Anarquistas Julgam Marx

138 OS ANARQUISTAS JULGAM MARX

fatos reais - materiais - da sociedade, no caso presente,principalmente nos fatos econômicos, e não nas idéias, nasconvicções ou até mesmo na vontade dos homens: "Não é aconsciência que determina a vida, é a vida que determina aconsciência" (A Ideologia Alemã) .

A partir de tal concepção chega-se rapidamente à idéiado determinismo na história, idéia segundo a qual as ações dosgrupos sociais estão inscritas em uma ordem fixada de antemãopor leis, as quais não é possível evitar. Marx afagará esta idéiadurante um certo tempo, como Proudhon, mas não a manterá.

Na realidade, o materialismo não implica determinismo.É verdade que em O CaPital o sujeito social está um poucodissolvido para fazer aparecer este sujeito anônimo e impessoalque é o capital. Mas em suas obras históricas, onde empregaum outro método de abordagem - justamente o método dia-lético - Marx mostrará que as razões que fazem agir a classesocial em certos períodos não derivam necessariamente dasrelações econômicas e do papel que elas assumem nas relaçõesde produção.

É Bukharin que, mais tarde, em 1921, "interpretará" Marxao afirmar que existe uma relação de determinação necessáriaentre o nível de desenvolvimento das forças produtivas e onível da luta de classes (Teoria do materialismo histórico). Se oque Bukharin diz fosse verdade, levando-se em conta o nívelde desenvolvimento das forças produtivas na Rússia, seria pre-ciso concluir que o proletariado russo em 1917 não se revoltouou que não ocorreu uma revolução proletária ...

Realmente, Marx evita reduzir a totalidade social às suascontradições econômicas'. Pensamos, como Pierre Ansart, queo "reconhecimento da pluralidade das determinações não é,em Marx, uma concessão à complexidade de experiência, massim, seu método explícito em suas análises empíricas" (Marx etl'Anarchisme) .

Page 137: Os Anarquistas Julgam Marx

A QUESTÃO ECONÔMICA 139

2º A dialética na históriaPara Marx, a realidade última é a matéria. Ele pensa que

o mundo se desenvolve de acordo com uma lei lógica, o que oleva a pensar que o resultado de um conflito social, de umamutação, só possa ser a instauração de um sistema mais evo-luído. É nisso que seu materialismo é dialético, porque compre-ende os fenômenos sociais não de um ponto de vista estático,mas em sua evolução, em seu movimento contraditório.

As contradições da sociedade, resolvendo-se por umasucessão de sínteses que constituem progressos históricos emrelação às situações anteriores, e o proletariado sendo a últimaclasse social da história cuja emancipação corresponderá àemancipação de toda a humanidade, resulta em que chegaráum momento em que não haverá mais antagonismos, evolu-ção, síntese, história.

É somente em uma nova ordem das coisas, onde não ha-verá mais classes, inexistindo conseqüentemente antagonis-mos de classes, que as evoluções sociais cessarão de ser revo-luções políticas. Até lá, às vésperas de cada remanejamentogeral da sociedade, a última palavra da ciência social será sem-pre: "o combate ou a morte; a luta sanguinária ou o nada. Éassim que a questão é invencivelmente apresentada" (GeorgeSand, citado por Marx em Miséria da Filosofia).

Proudhon, na mesma ordem de idéias, dizia que existiam"contradições antagônicas", irredutíveis, no seio do capitalis-mo, e contradições "não antagônicas" no socialismo, mas quesempre haveria contradições sem o que não haveria mais so-ciedade".

O pensamento de Marx e de Engels estava marcado pelootimismo filosófico do século XIX. Mas não é só um problemateórico. Os comunistas sempre afirmam que os conflitos entrecomunismo e capitalismo, apesar das vitórias parciais do se-gundo, devem necessariamente levar à instauração do cornu-

Page 138: Os Anarquistas Julgam Marx

140 OS ANARQUISTAS JULGAM MARX

nismo. Mas por falta de uma visão verdadeiramente científicada história, eles não vêem que podemos também chegar a umaregressão histórica.

A noção de síntese que resulta em um progresso históricopor várias vezes foi negada pela história. Para citar apenas oexemplo de Roma, a decadência do império e as invasões bár-baras que a acompanharam não resultaram em um modo deprodução mais evoluído.

Pode-se, entretanto, encontrar no próprio Marx, senãouma refutação, pelo menos elementos de refutação às inter-pretações cristalizadas de suas idéias. Com efeito, se no prefá-cio de Introdução à Crítica da Economia Política ele diz: "Nuncauma sociedade expira antes do desenvolvimento de todas asforças produtivas que ela é capaz de conter", e acrescenta emseguida: " ... Nunca relações superiores de produção posicio-riam-se antes que as condições materiais de sua existênciatenham surgido no próprio seio da velha sociedade".

Significa claramente que relações de produção superioresnão aparecem sistematicamente em conseqüência do declíniode uma sociedade moribunda. Marx simplesmente não teveocasião ou necessidade de tratar do problema das sociedadesdeclinantes sem "posteridade". Entretanto, se é inexato im-putar a Marx uma estreiteza de visão que não é sua, é precisoreconhecer que para justificar as nuanças que se pode emitirconcernentes às interpretações dominantes do marxismo, épreciso "solicitar" os textos. Desmentido pelo passado, o "oti-mismo histórico" de Marx, no que se refere às evoluções fu-turas da história, é o da burguesia européia de seu tempo, nomomento em que se abria o mercado mundial. Este "otimismohistórico", que explode no Manifesto Comunista, terá mais im-pacto do que as poucas reservas que se pode encontrar naIntrodução à Crítica da Economia Política, em A Ideologia Alemãou alhures".

Page 139: Os Anarquistas Julgam Marx

A QUESTÃO ECONÓMICA 141

As críticas de Bakunin permanecem pois, perfeitamentejustificadas, em particular naquele trecho em que ele dá aomesmo tempo uma magistral demonstração de dialética mate-rialista:

o estado político de cada país (...) é sempre o pro-duto e a expressão fiel de sua situação econômica; paramudar o primeiro é preciso somente transformar estaúltima. Todo o segredo das evoluções históricas, se-gundo o Sr. Marx, está aí. Ele não leva em conta ne-nhum outro elemento da história, tais como a reação, noentanto evidente, das instituições políticas, jurídicas ereligiosas sobre a situação econômica. Ele diz: A misériaproduz a escravidão política: o Estado. Mas ele nãopermite inverter esta frase e dizer: A escravidão polí-tica, o Estado, reproduz por sua vez e mantém a mi-séria como uma condição de sua existência ...

Aplicado a si próprio, o materialismo dialético é um mé-todo de investigação e de interpretação dos fenômenos sociaisligados aos progressos e às transformações do pensamentocientífico do início do século XIX, à aceleração das evoluçõessociais e históricas e às mutações econômicas e políticas.

O materialismo dialético é o produto de seu tempo, é oresultado de uma evolução histórica na qual inúmeros pen-sadores prepararam o terreno desde o século XVIII. Numaépoca em que as mutações nas condições materiais de vidaeram tão perceptíveis, era difícil conceber que não se constituium método de análise tomando por ponto de partida a dinâ-mica da evolução. Eis por que é tão absurdo dizer que se Marxtivesse vindo ao mundo dois séculos mais cedo, isto teria evi-tado inúmeras infelicidades para a humanidade", ou imaginarque se Marx não tivesse nascido, a dialética materialista nãoteria existido.

Page 140: Os Anarquistas Julgam Marx

142 OS ANARQUISTAS JULGAM MARX

11.Os acasos de um método

Evocamos os dois postulados sobre os quais repousa todoo edifício marxista. Nós nos interessaremos pelo método deinvestigação empregado por Marx, mas anteriormente faremosum desvio por Proudhon.

Em uma obra datada de 1850, Le Systeme des Contradíc-tions Economiques, Proudhon desenvolve um certo número deidéias que seguirão seu caminho:

- É impossível identificar as contradições econômicascom as contradições lógicas. As relações inerentes à realidadeeconômica são identificáveis com as relações racionais da ló-gica.

Há conformidade dos fenômenos econômicos com as leisdo pensamento. Resulta daí que o capitalismo é um conjuntointeligível do qual se pode desvelar a estrutura interna a fim decompreender sua verdadeira natureza.

É difícil compreender hoje o verdadeiro alcance destesdois postulados. Eles constituem uma verdadeira revolução nopensamento da época. Mas Proudhon emitirá um outro postu-lado metodológico que terá um destino curioso.

- Pode-se tratar do sistema capitalista como de uma tota-lidade estruturada, sem consideração de seu passado e de suahistória; será então conveniente estudar o encadeamento dasevoluções históricas, não segundo sua história, mas como umtodo sistemático: ... "Nós não fazemos uma história segundo aordem do tempo, mas segundo a sucessão das idéias".

O estudo do sistema sócio-econômico impõe recorrer aum novo método. Na realidade, estudando a "sociedade eco-nômica", termo que designa não as relações econômicas masas relações sociais, Proudhon fará, na realidade, a análise dosistema das contradições sociais. Pode-se com justa razão con-siderar Proudhon como o fundador da sociologia moderna.

Page 141: Os Anarquistas Julgam Marx

A QUESTÃO ECONÔMICA 143

Marx censura ao Systême des Contradictions Economiquespor abandonar o único método possível, o estudo do movi-mento histórico das relações de produção. Ora, trata-se paraProudhon de um propósito deliberado. Ele quer mostrar que ascategorias da economia estão em relação de contradição, dei-xando na indefinição sua dimensão histórica, sua evolução,para só levar em consideração suas relações em sua contem-poraneidade.

As relações de produção não são categorias imutáveis.Um lembrete poderá ser feito na exposição em relação à ques-tão da evolução particular de uma categoria, mas sem modi-ficar o plano de conjunto.

Proudhon chega à conclusão de que, para a clareza daexposição, seria necessário criar um conceito de "capitalismopuro", quer dizer, todas as características reunidas consti-tuiriam um modelo ideal, adequado e límpido - o que nuncase encontra na realidade - a fim de colocar em evidência osmecanismos de seu funcionamento. Ele vai então analisar osistema não do ponto de vista da sucessão histórica, mas dasucessão das categorias lógicas que o constituem, pois "na prá-tica, todas estas coisas são inseparáveis e simultâneas".

Entretanto, o projeto de extrair a lógica da economia polí-tica não leva a substituir pelo real uma logomaquia abstrata. Éverdade que nem todas as fórmulas de Proudhon são claras,algumas análises são deficientes, algumas proposições são desa-jeitadas e, isoladas de seu contexto (exercício no qual Marx eramestre), elas sugerem uma leitura idealista da realidade social.Mas é das contradições reais do capitalismo de seu tempo deque trata Proudhon.

Às censuras de idealismo formuladas por Marx, ele poderesponder com razão: "Eu disse alguma vez que os princípiosnão são a representação intelectual mas sim a causa geradorados fatos?"

Page 142: Os Anarquistas Julgam Marx

144 OS ANARQUISTAS JULGAM MARX

É verdade que uma ambigüidade de Le Sysrême des Con-tradictions Economiques reside no fato de Proudhon procurar,por um lado, revelar os mecanismos do capitalismo, por outro,descobrir os processos, no seio do sistema, que anunciam asformas de uma sociedade desalienada. Não que estes processospossam ser criados arbitrariamente, o que é próprio dos socia-listas utópicos que ignoram as realidades econômicas e fundama nova sociedade sobre bons sentimentos ou ideais.

"O erro do socialismo foi, até aqui, o de perpetuar o delí-rio religioso lançando-se em um futuro fantástico ao invés decompreender a realidade que o esmaga" (Le Sysrêrne des Con-tradictions Economiques, t. I).

A abordagem proudhoniana da sociedade capitalista émuito menos econômica que sociológica. Sob a aparência daeconomia ele estuda a realidade da relação social. Se a fórmulasimplificadora, "a propriedade é o roubo", atropela as análisescomplexas sobre a formação do capital, não é somente umanoção polêmica, ela designa sobretudo a relação real entreduas classes antagônicas.

Marx retomará o projeto proudhoniano de repensar so-cialmente as contradições da economia política. Evocará os"trabalhos tão profundos de Proudhon". O Premier Mémoire deProudhon aparecer-lhe-à como um manifesto revolucionáriodo proletariado, mas também como um exame "absoluto aomesmo tempo que científico" da economia política. (A SagradaFamília).

"Proudhon pôs fim, de uma vez por todas, a esta incons-ciência. Ele levou a sério a aparência humana das relaçõeseconômicas, e a opôs claramente à sua realidade não humana(Ibid)."

Proudhon havia mostrado o caráter conflitual e contra-ditório das relações sociais no seio do capitalismo. Sua for-mação hegeliana levava Marx a pensar dialeticamente e a des-

Page 143: Os Anarquistas Julgam Marx

A QUESTÃO ECONÔMICA 145

~I

ii

cobrir a dinâmica nas contradições. A obra de Proudhon for-necia uma crítica concreta da dialética especulativa pois ascontradições analisadas inscrevem-se na prática social, na rea-lidade da sociedade burguesa.

Entretanto, existiam divergências entre os dois homens,bem observadas por Proudhon, das quais Marx não tinha cons-ciência. Marx não dá atenção aos trechos de Proudhon sobrea anarquia. Uma crítica comum do "comunismo vulgar" im-pede Marx de ver os trechos onde Proudhon expõe sua críticada "comunidade" e anuncia sua teoria da "associação econô-mica", noções que, por evoluções sucessivas, acabarão por secolocar em termos de partido ou sindicato.

Estas oposições doutrinárias devem provocar a rupturaem 1846 e suscitar a redação de Miséria da Filosofia em respostaaLe Systême des Contradictions Economiques.

Como inicialmente Marx havia negligenciado as oposi-ções que o separavam de Proudhon, negligenciará desta vez ospontos que o aproximavam dele. "Estes extremos contradi-tórios", diz Pierre Ansart em Marx et l'Anarchisme, "só sãointeligíveis se se faz aparecer, para além das fórmulas da polê-mica, um conjunto de teorias comuns no seio das quais asdivergências serão particularmente agudas".

É interessante confrontar Le Systême des ContradictionsEconomiques não com a obra que lhe responde, Miséria da Filo-sofia mas com O Capital. O livro de Proudhon aparece desdeentão como um momento importante na evolução do pensa-mento de Marx, ocasião de uma formulação metodológica,descoberta de uma tentativa que fornecerá um modelo à reda-ção de O Capital.

Em Miséria da Filosofia, Marx censura Proudhon pelo aban-dono da análise histórica e sua escolha por uma sucessão abs-trata dizendo respeito ao domínio da razão pura. SegundoMarx, a alternativa coloca-se em termos de método histórico

Page 144: Os Anarquistas Julgam Marx

146 OS ANARQUISTAS JULGAM MARX

ou de logomaquia. Proudhon abre uma outra via, a da análiseestrutural das contradições encaradas em seu funcionamentoreal, o método indutivo-dedutivo, que Kropotkin qualifica, emLa Science Moderne et l'Anarchie, de "único método cientí-fico"?

É precisamente este método que Marx retomará em OCapital, eliminando as ambigüidades do vocabulário proudho-niano. Ele renunciará a tudo que tinha declarado em A Ideo-logia Alemã e em Miséria da Filosofia, para substituir a análisedialética pelo modelo proudhoniano. Se não é em nível doconteúdo das análises que os dois autores se opõem fundamen-talmente, é difícil negar que O Capital, excluindo as indigna-ções morais e as reflexões filosóficas próprias a Proudhon, opõea uma metodologia freqüentemente aproximativa, o rigor deanálise. Os principais conceitos expostos por Proudhon em LeSysteme des Contradictions Economiques serão objeto de umareflexão crítica que conduzirão a novas análises que Proudhonnão havia observado. A distinção operada em O Capital entretrabalho e força de trabalho constitui uma contribuição essen-cial de Marx. O mesmo ocorre quanto à avaliação do trabalhoe tempo de trabalho e o cálculo do lucro em termos de apro-priação do sobre-trabalho.

Proudhon e Marx, enfim, não dão a mesma importânciaaos conflitos inerentes ao capitalismo. Para Proudhon, as lutaseconômicas tais como as greves, reconhecidas como o "únicomeio" de defesa dos operários, são mais ações de desespero doque lutas eficazes adaptadas às necessidades. Cessando seutrabalho, os operários delegam a seus empregadores o cuidadode resolver as dificuldades. O aumento dos salários, além domais, intervém em um sistema cujas leis inerentes anulam seusefeitos. As lutas econômicas não participam da dinâmica dosistema. É perda de tempo esperar uma transformação da con-dição operária.

Page 145: Os Anarquistas Julgam Marx

A QUESTÃO ECONÓMICA 147

Marx considerava que as lutas econômicas, se não podemmodificar sensivelmente o sistema, intervêm em dois pontosimportantes que Proudhon não tinha visto: a fixação da jor-nada de trabalho e a manutenção do salário ao preço normal.

III. A respeito de algumas aberrações

Marx emprega, de fato, sucessivamente, diversos métodoscomplementares mas diferenciados. O Capital é essencialmenteanalítico e estuda a relação social entre o detentor dos meiosde produção e o proletário, cindindo a sociedade em duas clas-ses rivais. Seus trabalhos históricos consideram uma situaçãoa um momento dado, estudando a relação das forças presentese fazendo aparecer diversas classes sociais das quais algumasrepresentam um papel político maior se bem que elas prati-camente não aparecem na crítica econômica.

Porque a infra-estrutura econômica não é única a deter-minar a ação dos grupos sociais; porque as ilusões, as crenças,os medos representam um papel é que o método analítico,válido em nível econômico, dá lugar ao método dialético, queapreende os atores sociais em sua especificidade.

A verdadeira dialética marxista é talvez aquela que uneesses dois métodos de investigação, um analisando o sistemacapitalista em seus mecanismos, o outro descrevendo os atoresda história real na abundância de suas determinações, e queconsidera estas determinações em seu movimento.

Se tivéssemos atingido um conhecimento científico daevolução das ciências sociais, se o marxismo fosse uma ciênciaexata, não seriam mais as classes sociais que seriam os atoresda história, mas os chefes políticos detentores desta ciência, oque Althusser explica dizendo que a prática dos dirigentesmarxistas "não é mais espontânea, mas organizada sobre a baseda teoria científica do materialismo histórico" (Pour Marx,

Page 146: Os Anarquistas Julgam Marx

148 OS ANARQUISTAS JULGAM MARX

Althusser). Um dirigente marxista é, em certo aspecto, umcondensado de materialismo histórico.

Quando Lukacs, em História e Consciência de Classe, ex-plica que o materialismo histórico é "o mais importante meiode luta" do proletariado, que "a classe operária recebe sua armamais afiada das mãos da verdadeira ciência", ele se junta aosidealistas mais patenteados dos séculos XVIII e XIX, expondocomo postulado que é a consciência que determina a vida enão a vida que determina a consciência, invertendo assim ostermos de Marx ("Não é a consciência que determina a vida, éa vida que determina a consciência" (A Ideologia Alemã, K.Marx).

Inúmeros outros, marxistas ou não, viram o paradoxo queconsiste, para o criador da dialética materialista, em empregaro método indutivo em sua principal obra, O Capital.

Preobrajenski, o teórico da N.E.P., no primeiro capítulode sua obra A Nova Economia, declara: "Não é evidente quedevamos estudar nossa economia deixando-nos guiar pelo mé-todo marxista?" O autor parece desencorajado pelas diferen-ças de aplicação (grifo nosso) do "método da dialética ma-terialista devido à matéria concreta do estudo":

"A fim de compreender a lei dialética fundamental dodesenvolvimento da economia capitalista e de seu equilíbrioem geral, é preciso em primeiro lugar elevar-se acima de todosos fenômenos do capitalismo concreto que impedem de com-preender esta forma e seu movimento sob o aspecto maisduro." (grifo nosso)

Para compreender as leis do capitalismo, diz Preobrajenski,é preciso construir um "conceito de capitalismo puro", e é"precisamente o que faz Marx em O Capital".

Mas esta utilização da abstração não é "a diferença maiscaracterística" entre o que Preobrajenski chama "o métodosociológico universal" de Marx e o método de sua economia

Page 147: Os Anarquistas Julgam Marx

A QUESTÃO ECONÔMICA 149

política. Com efeito, na análise de certas particularidades deste"capitalismo puro", Marx é levado a empregar um método"analítico-abstrato". Após uma tentativa de justificação umpouco confusa deste método, Preobrajenski contorna a di-ficuldade batizando-a: "Método dialético analítico abstrato".

Lukács desde 1922 deplorava o mau hábito de "consi-derar a dialética em Marx como uma vantagem estilística su-perficial.;". Em uma passagem do posfácio da edição alemã deO Capital, suprimido posteriormente na edição francesa, Marxvitupera os "imitadores rabugentos, pretensiosos e medíocresque ocupam atualmente posições de destaque na Alemanhaculta" e que maltratam Hegel. Para pregar-lhes uma peça,declara: "Também declarei-me abertamente discípulo destegrande pensador e, no capítulo sobre a teoria do valor, chegueiaté mesmo a flertar aqui e ali com seu estilo particular". Tendoos hegelianismos quase totalmente desaparecido da ediçãofrancesa, Engels foi a Marx reclamar, assinalando-lhe o "pe-dantismo da lógica formal" da tradução francesa.

J. A. Schumpeter, um crítico de Marx, não marxista, reco-nhece, ainda que o autor de O CaPital tenha sido neo-hege-liano, que seria "cometer um erro e não fazer justiça ao valorcientífico de Marx" fazer deste elemento filosófico (a dialéticahegeliana) "a chave principal de seu sistema". Marx, diz Schum-peter, "conservou seu amor de juventude toda a sua vida. Elese comprazia em certas analogias formais que se pode constatarentre sua argumentação e a de Hegel. Adorava confessar seuhegelianismo e usar a fraseologia hegeliana. Em nenhum lugarMarx traiu a ciência positiva em favor da metafísica" (Schum-peter, Capitalismo, Socialismo e Democracia).

Rosdolsky, militante marxista ucraniano contemporâneoda revolução russa, tem muita dificuldade para demonstrar quemuitas "categorias decisivas continuamente empregadas vêmdiretamente da lógica de Hegel". Ele cita uma Carta sobre o

Page 148: Os Anarquistas Julgam Marx

150 OS ANARQUISTAS JULGAM MARX

capital de Marx onde este se alegra por ter bem conduzido seusdesenvolvimentos sobre a teoria do lucro, e onde conclui:''Alguma coisa prestou-me um serviço, by mere accident euhavia refolheado a Lógica de Hegel, sem observar o alcancereal desta observação" (by mere accident: por acaso).

Rosdolsky analisando detalhadamente o Rascunho de OCapital, interessa-se pelas razões que levaram Marx a modificarinúmeras vezes o plano e o método de elaboração da obra, edeclara:

"Se em O Capital a influência de Hegel parece se mani-festar à primeira vista, apenas em algumas notas, o Rascunhodeve ser caracterizado em sua totalidade como uma referênciaa Hegel e à Lógica deste último tão radical quanto seja aquitambém a queda materialista de Hegel" (Rosdolsky, Génêse duCapital).

Significa dizer que Marx pretendia empregar o métododialético quando começou a redigir O Capital, mas na versãofinal não há mais nenhum sinal. Marx derruba Hegel e Ros-dolsky derruba Marx. Mas Rosdolskv permanece muito vagosobre as razões e o alcance da modificação no método de expo-sição.

O próprio Marx explicou-se no prefácio da primeira edi-ção de O Capital:

''A análise das formas econômicas não pode ser ajudadapelo microscópio ou pelos reagentes fornecidos pela química;a abstração é a única força que possa servir-lhe de instrumento".

No posfácio da segunda edição alemã, parece vexatórioque um professor de economia política, N. L Sieber, tenhapodido declarar que "o método de Marx e o de toda escolainglesa é o método dedutivo, cujas vantagens e inconveniên-cias são comuns aos maiores teóricos da economia política".

Marx tinha a ambição de elevar a ciência da sociedade aonível de uma ciência da natureza. Ele declara no posfácio ci-

Page 149: Os Anarquistas Julgam Marx

A QUESTÃO ECONÔMICA 151

tado que "o físico, para compreender os comportamentos danatureza, ou estuda os fenômenos quando eles se apresentamsob a forma mais acentuada e a menos obscurecida por influ-ências perturbadoras, ou experimenta em condições que asse-guram tanto quanto possível a regularidade de sua marcha". Osegundo método não sendo possível, Marx vai revelar "o atode formação, a geração destas categorias, leis, idéias, pensa-mentos" tal como ele censurava Proudhon por fazê-Ia:

"À força de abstrair de cada questão todos os pretensosacidentes, animados ou inanimados, homens ou coisas, temosrazão em dizer que em última abstração chega-se a ter comosubstância as categorias lógicas".

É assim que se exprime Marx em 1850 contra Le Sysrêrnedes Contradictions Economiques. Vinte anos mais tarde ele reto-mará o mesmo gênero de argumentos para justificar O Capital.

CONCLUSÃO

Neste texto, não nos interessou fazer, ponto por ponto,uma análise crítica das principais teses de Marx em matéria deeconomia. Pareceu-nos mais importante ir mais ao fundo doproblema e evocar as questões de método pois um método deanálise pode permanecer bom, mesmo que seus resultadossejam levados a ser ultrapassados um dia. Gostaríamos tambémde fazer justiça a Proudhon por todas as asneiras que foramditas em seu nome.

O método marxista de análise foi mistificado tanto pelosmarxistas, que fizeram dele uma panacéia, quanto por umcerto número de anarquistas que tudo rejeitaram em bloco,fazendo assim economia de uma verdadeira crítica.

Poder-se-á objetar, entretanto, que se aceitarmos certasproposições do marxismo, somos obrigados a tudo aceitar, pois

Page 150: Os Anarquistas Julgam Marx

152 OS ANARQUISTAS JULGAM MARX

é uma teoria coerente cujos elementos se sustentam e não sãodissociáveis.

Ora, O Capital não chega a nenhuma conclusão em ma-téria de estratégia política, modo de organização, programa;atesta simplesmente o fracasso de todas as tentativas da bur-guesia de restaurar o sistema e de vedar as brechas.

Fora disso, pode-se fazer o marxismo dizer aproximada-mente o que se quer. Pode-se até mesmo ser anarquista e sereferir a Marx, sob a condição de selecionar seus textos. É oque alguns quiseram fazer, às vezes de modo quase convin-cente.

O ponto de partida de toda a obra de Marx é que o motorda história é a luta de classes. Enquanto militantes, a luta declasses é para nós uma coisa real, palpável e podemos racio-cinar como Engels: a demonstração da luta de classes é que nósa ressentimos. Mas sobre o plano do princípio filosófico, po-demos dizer que ela é o motor da história? Tal afirmação ésimplesmente inverificável de forma científica: é uma hipótesede trabalho, entre outras.

Há outras, ou pelo menos uma. Kropotkin partiu da idéiade que o motor da história não é a luta das classes, mas sim atendência dos homens de se solidarizar para sobreviver.

Seu sistema constitui um conjunto coerente, descreven-do exatamente a mesma história que Marx, em contraponto.As duas concepções são como o negativo e o positivo da mes-ma foto: elas representam a mesma imagem.

A história da humanidade é a história da criação, pelasmassas, dos modos e das instituições que permitem a sobrevi-vência e a vida em sociedade, organizando-se em tudo aquiloque pede um esforço combinado.

Este esforço criador é contrariado por uma minoria quetenta apropriar-se do poder, do saber, da superstição. Esta cate-goria de indivíduos está repleta de contradições internas. "Em

Page 151: Os Anarquistas Julgam Marx

A QUEST ÃO ECONÔMICA 153

certos períodos eles se combatiam uns aos outros" mas "aca-bavam sempre, com o tempo, por se entender" para poder"dominar as massas, mantê-Ias na obediência, governá-Ias efazê-Ias trabalhar para eles".

Mas as instituições que se constituíram com um objetivoconstrutivo, inicialmente, evoluíram, acabando por se petri-ficar. Elas perdiam seu sentido primitivo, caíam sob o domíniode uma minoria ambiciosa e acabavam por se tornar um impe-dimento ao desenvolvimento ulterior da sociedade" (La Scien-ce Moderne et l'Anarchie). Assim, produziam-se mutações -ou revoluções - que Kropotkin descreve de modo magistralem sua obra sobre a Revolução Francesa:

"Uma revolução, é a rápida derrubada, em poucos anos,das instituições que tinham precisado de séculos para se enrai-zar no solo e que pareciam tão estáveis, tão imutáveis, que osreformadores mais fogosos apenas ousavam atacá-Ias em seusescritos ..."

É, diz Kropotkin, a rápida decomposição de tudo que faziaa essência da vida social, religiosa, política, econômica da na-ção. É a eclosão de novas concepções sobre as relações entreos homens que estremeceram o mundo e "dão ao séculoseguinte sua palavra de ordem, seus problemas, sua ciência,suas linhas de desenvolvimento econômico, político e moral"(Ibid) .

"Para chegar a um resultado desta importância (...) nãobasta que um movimento das idéias se produza nas classesinstruídas, qualquer que seja a profundeza; não basta tambémque se produzam revoltas no seio do povo, quaisquer que sejamseu número e sua extensão. É preciso que a ação revolucio-nária, vinda do povo, coincida com o movimento do pensa-mento revolucionário, vindo das classes instruídas" (Ibid).

Poder-se-ia analisar a vontade de Kropotkin de fazer daanarquia uma concepção do universo com base em uma inter-

Page 152: Os Anarquistas Julgam Marx

154 OS ANARQUISTAS JULGAM MARX

pretação mecânica dos fenômenos. Ele se junta nisso à maiorparte dos pensadores do século XIX e sua visão científica douniverso.

Apesar de sua recusa pelo método dialético", vê-se, peloque precede, que o próprio Kropotkin, em suas obras histó-ricas, demonstra uma percepção claramente materialista e dia-lética da história, que seria interessante estudar mais a fundo.É que, simplesmente, um pesquisador, um savant não tem umaescolha indefinida de métodos para atingir seus fins. QueMarx, em tal circunstância, tenha empregado o método indu-tivo, e Kropotkin em tal outra, o método dialético, não é umacaso nem uma coincidência. Mas o método em si mesmo nãoprevê nada do resultado obtido. Se o emprego de um métodoruim resulta raramente em resultados justos, não basta em-pregar o bom método para garantir o resultado. É o erro idea-lista que cometeram numerosos marxistas considerando o ma-terialismo histórico como uma arma infalível. É o uso que sefaz de uma arma que lhe confere sua eficácia.

O objetivo deste estudo é o de restituir em um terrenomais seguro, e inclusive mais são, as relações do anarquismo ede Marx, no que se refere à análise econômica. Que se queiraou não, que satisfaça ou não, os elementos metodológicos in-troduzidos por toda uma corrente de pensamento no séculoXIX, no qual Proudhon tomou parte e do qual Marx se fez aexpressão mais clara, são uma conquista que não é possívelafastar hoje. Isto é tão verdadeiro que mesmo os capitalistas eos governos mais reacionários, na França, sabem utilizar commuita vantagem antigos militantes marxistas que se tornaramexecutivos, sociólogos, psicólogos etc.

Privado de sua aura mágica e de seu caráter encantatório,o marxismo volta a ser o que não deveria ter deixado de ser:um método de análise da sociedade, por um lado, e por outro,uma estratégia política, uma teoria da organização. As ques-

Page 153: Os Anarquistas Julgam Marx

A QUESTÃO ECONÓMICA 155

tões de estratégia e de organização, sobretudo, mereceriam serdesenvolvidos para que a análise crítica do marxismo seja com-pleta, para que a amplitude das divergências apareçam cla-ramente.

É preciso, entretanto, tomar cuidado para não nos juntar-mos a estes antimarxistas para quem "o trabalho, como formade uma relação de exploração a um grau qualquer, não é maispara eles a matriz essencial da estrutura social" (Le NouveauLéviathan, Naville). O que Proudhon já exprimia quando dizia:''A unidade constitutiva da sociedade é a oficina" (Sysrêrne desContradictions Economiques)

Notas:

1 "Marx e eu próprio, parcialmente, devemos assumir a responsabilidadepelo fato de, às vezes, os jovens darem maior peso do que se deve dar aolado econômico. Diante de nossos adversários, foi-nos necessário ressal-tar o princípio essencial por eles negado e então nós nem sempre achá-vamos o tempo, o lugar e a ocasião para dar seus lugares aos outrosfatores que participam da ação". (Engels, Carta a [oseph Bloch, 21-09-1890).

2 Toda teoria sócio-política tem como base uma teoria do conhecimento,quer dizer, o processo pelo qual o cogito sucede aos homens. O assuntoé importante. Trata-se nem mais nem menos, para cada pensador, dedemonstrar que a humanidade atingirá naturalmente um nível de cons-ciência que confirmará suas opiniões. Pierre Ansart em Marx et l'Anar-chisme estuda a teoria do conhecimento de Proudhon. O mesmo tra-balho ainda está por ser feito para Bakunin e demonstraria o extraor-dinário vigor e atualidade do pensamento deste autor.

3 Uma carta desapaixonada de Marx demonstra que ele observava umapossibilidade de autonomização do Estado em relação à infra-estruturaeconômica: ''A esfera particular a quem, em conseqüência da divisão dotrabalho, cabe a administração dos interesses públicos, adquiriu uma

Page 154: Os Anarquistas Julgam Marx

156 OS ANARQUISTAS JULGAM MARX

independência anormal que foi levada mais longe na burocracia mo-derna" (A Ideologia Alemã). Assim, não há concordância sistemáticaentre a realidade sócio-econômica das classes e sua atitude política ouideológica: as condições econômicas não determinam necessariamenteas atitudes políticas: "Na França, o pequeno-burguês faz o que normal-mente deveria fazer o burguês industrial; o operário faz o que normal-mente seria a tarefa do pequeno-burguês, e a tarefa do operário, quem arealiza? - Ninguém". (As Lutas de Classe na França).

4 Mao, antigo anarquista (segundo dizem) "inovará" o marxismo introdu-zindo a noção de "contradição no seio do povo" (não antagônico) e decontradição entre o povo e a classe dominante. (Mao, De la contradiction,cap. 6, Oeuvres Choisies, Pequim, 1966, tomo 1).

S Escrita em 1846, A Ideologia Alemã não foi publicada e permaneceudesconhecida durante muito tempo. O desconhecimento desta obramuito importante contribuiu par forjar a interpretação do pensamentode Marx meio-darwinista, meio positivista, que devemos principalmentea Kautsky e a Plekhanov.

6 Lembro-me de ter lido este argumento em uma introdução de Sacia-lisme utopique, socialisme scientifique, mas não me lembro se é o próprioEngels que o diz. Lapso ou não, é em todo o caso um absurdo no planodo materialismo histórico.

7 Kropotkin: "Nenhuma das descobertas do século XIX - em mecânica,astronomia, física, química, biologia, psicologia, antropologia - foi feitapelo método dialético. Todas foram feitas pelo método indutivo, o únicométodo científico.

S O ponto de vista de Kropotkin sobre Marx, suas teorias, seu método,revela um conjunto disparate de julgamentos clarividentes e de errosgrosseiros que mostram que não compreendia o que lia. Assim, ele crêrefutar a teoria da concentração do capital afirmando que "o númerodaqueles que vivem às expensas do trabalho de outrem é sempre maisconsiderável (arrendador, intermediários). (La Conquéte du Pain).Os "arrendadores, intermediários" são tudo que quisermos menos

detentores de capital, ou em outros termos, detentores de meios de pro-dução. No que se refere à questão da concentração do capital e suas"refutações", conferir uma carta aberta da Alliance Syndicaliste a Gas-ton Leval, que nos tinha pedido um artigo que não publicou, emboratenha "refutado" em seu jornal, recusando-nos o direito de resposta.