ONG Oralidade e Cultura Escrita Cap05

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  • 8/7/2019 ONG Oralidade e Cultura Escrita Cap05

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    5IMPRESSAO, ESPA~O E FECHAMENTO

    A audicao cede a oisaoEmbora este livro se ocupe principalmente da cultura oral e das

    mudancas no pensamento e na expressao introduzidas pela escrita, eledeve fazer breves consideracoes sobre a impressao, pois esta tanto reforc;;:aquanto transforma os efeitos da escrita sobre 0pensamento e a expressao.Uma vez que 0desvio da fala para a escnta constrtui essencialmente urndesvio do universo sonoro para 0 espaco visual, aqui os efeitos dairnpressao no uso do espac;;:ovisual podem constituir 0foco de atencaocentral, embora nao 0unico. Esse foco revela nao apenas a relacao entrea impressao e a escrita, mas tambern a relacao da impressao com aoralidade ainda residual na escrita e na cultura tipografica inicial . Alemdisso, embora todos os efeitos da impressao nao se reduzam a seus efeitossobre 0usa do espaco visual, muitos dos outros efeitos decididamente serelacionam a esse usa de varias maneiras.

    Emurn trabalho deste a1cance, nao ha nem mesmo como enumerartodos os efeitos da impressao. Ate mesmo uma leitura superficial dos doisvolumes de Elizabeth Eisenstein, Theprinting press as an agent of change

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    [Aprensa tipografica como agente de mudanca] (1979), torna extrema-~ente ..evidente como os efeitos especfficos da impressao tern sidod:verslflcados e imensos. Eisenstein explica em detalhes como a impres-sao fez da Renascens;a italiana uma Renascens;a europeia permanenteco~n~la i~~lementou a Reforma protestante e reorientou a pratic~reltg~osa catoltca, como afetou 0desenvolvimento do capitalismo moder-no, }~plementou a exploras;ao europeia do planeta, mudou a vhlaernfanllha e a politica, difundiu 0conhecimento como nunca antes tornoua.Acul~ra escrita universal urn objetivo serio, permitiu a asce~sao dasciencias modernas e or outro lado alterou a vida social e intelectual.Em ~e Gute~berg galaxy [A galaxia de Gutenberg] (962) e Un er-standing media [Entendendo a midia] (964), Marshall McLuhan chamoua atencao par~Am~itos dos modos mais sutis pelos quais a impressaoa~etou a c~nsclencla, como George Steiner tambern fez em Language andSilence [Linguagem e silencio] (1967) e como tentei fazer em outros~rabalho_s(Ong 1958b; 1967b; 1971; 1977). Esses efeitos mais sutis ci aunpressao sobre a consciencia, mais do que os efeitos sociais imediata-mente observaveis, sao nossa preocupas;ao aqui.

    Durante milha:~s de anos, os seres humanos vern imprimindod~senh::s em superficies gravadas de diferentes maneiras, e desde 0seculo VII ou VIII, chineses, coreanos e ja oneses im rimem textosverbais, in~cialmente em ocos e rna eira gravados em r e (Carter19.5 ..po~es~u.FoIHimentQ crucial na historia global da impressao~Ol a mven ao da lill ressa de caracteres alfabeti raficos nau ~ A escrita alfabetica fragmentara a palavra em

    equI~alentes espaciais de unidades fonologicas (em principio, embora asletras nunca resultassem em indicadores totalmente fonologicos). Mas asle~das na escrita nao existem anteriormente ao texto em - q u e -ocorrem. Com 0 caractere tipogr:ifico nao e assim. As palavras saocompostas de uni ti os) ue reexistem como unidades ~spa~a~ras q~e ira~ constituir. A impressao sugere que as pa avras ' saocoisas, mUlto~IS do que a eScrita jamais fizera.

    .. Co~o 0alfabeto, a impressao de caracteres tipograficos alfabeticosfoi. mventada uma so vez (Ong 1967b, e referencias la citadas). 6schineses tinham ti os mo . - 1b ..----vels, mas nao 0 a a eto, apenas caracteresba~lcamente pictogr:if~os. Ante~ meados de 1 00, os coreanos e ostu~co~r tinham tanto 0a1abeto quanta 0tipo movel, porem ~osmove~~eparados, e, sim, palavras inteiras. A

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    impressao de caracteres tipograficos a1abe . ual cada letra era ;grava em uma ara a de metal, assinalou uma ruptura pSicqlo-gica de primeira ordem. Ela embutiu profundamente a propria palavra noprocesso de manufatura e tf:i'ilsfurmou-a em uma especie de produto. A 'primeira linha de montagem, uma tecnica de manufatura que, em umaserie de etapas fixas, produz objetos complexos identicos compostos departes substituiveis, nao era do tipo que produz fogoes, sapatos ou armas,mas de urn tipo que produzia 0 livro impresso. E~revolucao industrial aplicou a outra manufatura as tecnicas de substituicaode p~com que os impressores haviam trabalhado durante 30 0 anos.Apesar das afirmas;oes de muitos semiologos estruturalistas, foi a impres-sao, e nao a escrita, que realmente reificou a oalayra e, com ela, aativi noetica (Ong 1958b, pp. 306-318).

    A audicao, mais do que a visa~mjt:l4lfa a,Qtigonoetico d;rn;;.neira s ificativa, ate mesmo muito de ois ue a escritestivesse profundamente interiorizada. A cultura manuscrita no Ociden-te permaneceu sempre marginalmente oral. Ambrosio de Milao captouo esprrito anterior em seu comentario sabre Lucas (iv. 5): "A visao emuitas vezes enganadora, a audicao serve como garantia." No Ocidente,durante a Renascens;a, a oracao foi a mais ensinada de todas asproducoes verbais e permaneceu implicitamente 0paradigma basico detodo discurso, tanto escrito quanta oral. 0 material escrito era subsidia- \rio da audicao de maneiras que nos parecem hoje estranhas. A escritaserviaeni geral para recidar 0conhecimento, embebendo-o novamenteno mundo oral, como nos debates universitarios medievais, na leiturade textos Iiterarios e de outros textos para grupos (Crosby 1936; Ahern1981; Nelson 1976-1977) e na leitura em voz alta ate mesmo quando seestava lendo para si proprio. Pelo menos ate 0seculo XII na Inglaterra,a verificacao de calculos financeiros escritos ainda era feita auricular-mente, fazendo-se com que fossem lidos em voz alta. Clanchy (1979,pp. 215, 183) descreve a pratica e chama a atencao para 0fato de queela ainda esta inscrita em nosso vocabulario: ainda hoje falamos de"auditoria", isto e, de "ouvir" livros de contabilidade, ernbora 0que urncontador realmente faca atualmente seja urn exame visual. Anteriormen-te, os povos residualmente orais podiam entender melhor ate mesmoos mimeros ouvindo, e nao olhando.

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    As culturas manuscritas permaneceram em eral oral-auricularesate mesmo n;;ec;:;perac;:ao e material preservado em textos.~-critos nao eram faceis de ler segundo Qadroes tipograficos posteriores, eo que os leitores encontravam em manuscrltos te .am a confiar pelomenos e certo modo a mem6ria. Localizar novamente urn material emurn manuscrito nem semQre era facil. A memorizacao era encorajada e~facilitada tambern pelo fato de que, em culturas manuscritas altamente

    Iorais_, a verbalizacao que se encontrava ate mesmo em textos escritoscoriservava a padronizacao mnemonica que levava a recordas;ao imediata.Alerrldisso, os leitores comumente vocalizavam, liam lentamente em vozalta ou s o tt o vo ce mesmo quando sozinhos, e isso tarnbem auxiliava a fixaro material na mem6ria.

    IMuito depois do desenvolvimento da impressao, 0processamento

    auditivo continuou durante algum tempo a dominar 0 te?},toyisivel,impresso, embora ele fosse finalmente desgastado pela impressao. Apredominancia da audicao pode _ser vista de modo notavel em coisascomo as primeiras paginas de rosto impressas, que muitas vezes nosparecern extremamente erraticas em sua desatencao as unidades visuais.As paginas de rosto do seculo XVI, em sua grande maioria, comumentedividem ate mesmo palavras capitais, incluindo 0nome do autor, comhifens, apresentando a primeira parte de uma palavra em uma linha emtipo grande e a ultima parte em tipo menor, como na edicao de The bokenamed the gouernour [0 liuro cbamado 0Gouernadoti, de sir ThomasElyot, publicado em Londres por Thomas Berthelet em 1534 (figura 1;verSteinberg 1974, p. 154). Palavras sem importancia podem ser vistas emcaracteres enormes: na pagina de rosto mostrada aqui, 0 "the" inicial e,de longe, a palavra mais proeminente. 0 resultado e muitas vezesesteticamente agradavel como objeto visual, mas destr6i nosso sentidoatual de textualidade. No entanto, essa pratica, e nao a nossa, constitui aoriginal, da qual a presente se desviou. Nossas atitudese que mudaram,e de uma forma que deve ser explicada. Por que 0procedimento original,presumivelmente mais "natural", parece errado? Porque sentimos aspalavras impressas diante de n6s como unidades visuais (nao obstante asvocalizemos pelo menos na imaginacao quando lemos). Evidentemente,ao processar 0 texto em busca de sentido, 0 seculo XVI estava seconcentrando menos na visao da palavra e mais em seu som, diferente-mente do que fazemos. Todo texto envolve a visao e 0som. Mas sentimosa leitura como uma atividade visual que fornece pistas sonoras, ao passo

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    ._- .

    THEBOKE

    Figura 1

    que a epoca inicial da Impressao ainda a senti~ _como urn proces_:oacustico, meramente posto em movimento pela visao. Se n~s percebes-semos como leitores que ouvem palavras, que diferenca fana se 0textovisivel permanecesse em sua condicao visualmente estetica? Devemoslembrar que os manuscritos anteriores a Impressao comumente grafavamas palavras juntas ou mantinham espacos minimos entre elas.

    Final~ente contudo a im ressao subs" rolon ada re 0-minancia da au ~c;:aono mundo do ensame a ex ~essao . elopredominio da visao, que se iniciara com a .escrita, _~~ n~Odla2.edeseriVOiver apenas com 0aQoio da escrita. A Impr~sltua a~ p~lavr~sno e~Q de maneira muito majs inexoravel do que a escnta J3r~2!.sfizera. A escrita move as palayras do mundo do som para urn mundo doesrac;:ovisu;i, mas a impressao encerra as palavras pmpma Qosis;ao nesseespaco. 0 controle da posis:ao e_!ll.dona jmpressao. "com~or" 0c~racterel~almente(a forma original de composicao tipografica consiste em

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    po~icionar manualmente caracteres tipograficos pre-formados, que, de-P~l~ -. usados, sao cuidadosamente reposicionados, redistribufdos parautilizacan futura em seus proprios compartimentos (letras maiusculas ou"caixa alta" nos compartimentos superiores e letras minusculas ou "caixabaixa" nos compartimentos inferiores). A composicao no linotipo consiste~m. u.sar ~ma maquina para posicionar as matrizes separadas em linhasmdlvlduals de modo que uma linha de tipo pode ser moldada com basenas matrizes adequadamente posicionadas. A composi~ao em urn termi-nal ~e. computador ou processador de textos posiciona os padroese~etromcos (letras) previamente programados no computador. A impres-sao. com caractere "a quente" Cisto e, com caractere gravado _ 0 maisantl~o dos processos, ainda amplamente usado) requer 0 encerramentod~ tipo em uma posicao absolutamente rfgida na caixa, encerrando acaixa fi~memente em uma prensa, afixando e apertando a forma na prensae presslonando a forma do tipo fortemente na superffcie do papel emcontato com a mesa de prensa.

    I A maioria dos leitores obviamente nao esta consciente de toda essalocomopo que produziu 0 texto impresso. Nao obstante da a~d~exto.iIfipresso, os leltores captam uma sensas:ao da pal;vra-no-espa~omulto dlfe~ente, da~ue~a comunicada pela escrita. as textos impressospar~em feltos a maguma, como ~ato sao. a controle quirogr:ifico do~spa~~ ~ende a ser ornamental, enfeitado, como na caligrafia. a controlsttp~~raflco, caracteristicamente, impressiona mais por sua nitidez e inevi-tabilidade. as linhas perfeitamente regulares, todas alinhadas a direita~ada coisa surgindo de modo visualmente uniforme e sem a ajuda delmhas-mestras ou bordas tracadas a regua, como muitas vezes ocorre em~anus.critos. Esse e urn mundo que insiste em fatos frios, nao humanos.E assim que as coisas sao" - a vinheta televisiva de Walter Cronkiteprovern do mundo da impressao, que subjaz a oralidade secundaria datelevisao (Ong 1971, pp. 284-303).

    )

    ' De urn modo g~ra1. os textos impressos sao muito majs &j~l

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    gordos", "ovelhas apascentadas" etc., sem quaisquer outras especifica-coes) e tambem do contexte lingulstico (normalmente, na enunciacaooral, os nomes nao existem "flutuando" livremente como em listas, massao encaixados em sentencas. raramente se ouve uma recitacao oral deuma mera cadeia de nomes - a menos que estejam sendo lidos a partirde uma lista escrita ou impressa). Nesse sentido, as listas como tais "naopossuem equivalente oral" (1977, pp. 86-87), embora obviamente aspalavras escritas individualmente soem ao ouvido interior para comunicarseus sentidos. Goody tambern chama a atencao para 0modo ad hoc,inicialmente desajeitado, como 0espaco era utilizado ao se fazer essaslistas, com divisores de palavras para separar itens de numeros, pautas,linhas cuneiformes e linhas alongadas. Alern de listas administrativas, elediscute igualmente listas de eventos, listas lexicais (as palavras saoarroladas em diversas ordens, muitas vezes hierarquicamente pelo signi-ficado - deuses, depois familias de deuses, em seguida servos dos deuses)e onornasticas egfpcias ou listas de nomes, que eram frequenternentememorizadas para recitacao oral. A cultura manuscrita ainda altamenteoral sentia que 0 ato de escrever series de coisas preparadas pararecordacao oral aperfeicoava, por si mesmo, 0intelecto. (Os educadoresno Ocidente, ate muito recentemente, tinham a mesma sensacao, assimcomo ainda hoje a maioria dos educadores em todo 0mundo.) A escritaesta aqui, novamente, a service da oralidade.

    Os exemplos de Goody mostram 0 processamento relativamentesofisticado do material verbalizado em culturas quirograficas, de modo atornar 0material mais imediatamente recuperavel por meio de sua organi-zacao espacial. As listas ordenam nomes de itens relacionados no mesmoespa~o fisico, visual. A impressao desenvolve urn uso muito mais sofisticadodo espaco para a organizacao visual e para uma recuperacao eficiente.

    Os indices constituem 0auge do desenvolvimento nesse as ecto. Osindices a a eticos mostram de modo im ressionante 0desprendimento daspal ras do discurso e seu encerramento no espa~o tipogra ico. Os manus-critos podem ser alfabeticamente indexados. Raramente 0sao (Daly 1967,pp. 81-90; Clanchy 1979, pp. 28-29,85). Uma vez que dois manuscritos deuma dada obra, ainda que copiados do mesmo ditado, quase nuncacorrespondem pagina por pagina, cada manuscrito de uma dada obranormalmente requereria urn Indice separado. A indexacao nao valia 0esforco. A recordacao auditiva por meio da memorizacao era mais econo-mica, embora nao fosse perfeita. Para a localizacao visual do material em

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    urn texto manuscrito, os signos pict6ricos eram muitas vezes preferidos aosindices alfabeticos. Urn signo favorito era 0"paragrafo", que originalmentesignificava a marca 9[ , e nao uma unidade do discurso. Os indices_alfabetic~socorriam, mas eram raros, muitas vezes toscos e comumente nao entencli-dos, mesmo na Europa do seculo XIII, quando por vezes urn indice feitopara urn manuscrito era anexado, sem nenhuma mudanca de pagina, aoutro manuscrito com uma paginacao diferente (Clanchy 1979, p. 144). Osindices parecem ter sido apreciados as vezes rnais por sua beleza e por seurnisterio do que por sua utilidade. Em 1286, urn compilador genoves podiase admirar com 0catalogo alfabetico que concebera, em virtude nao de suapropria facanha, mas da "graca de Deus operando em mim" (Daly 1967, p.73). A indexacao foi durante muito tempo apenas pela letra inicial - ou,antes, pelo primeiro som: por exemplo, em uma obra latina publicada em1506 em Roma, "Halyzones" e arrolada sob a letra a, uma vez que emitaliano e em latim, na forma como essas lfnguas sao faladas pelos italianos,a letra b nao e pronunciada (discutido em Ong 1977, pp. 169-172). Aqui,ate mesmo a recuperacao visual funciona auditivamente. 0 Specimenepitbetorum de Ioannes Ravisius Textor (Paris, 1518) coloca "Apolo" antesde todas as outras entradas sob a, porque Textor considera apropriado que,em uma obra ligada a poesia, 0deus da poesia deveria vir no alto da lista.Obviamente, ate mesmo em urn Indice alfabetico impresso, a recuperacaovisual nao foi prioritaria. 0 mundo personalizado oral ainda podia rejeitaro tratamento das palavras como coisas.

    o indice alfabetico e, na verdade urn CDlzamento entre culturasauditivas e;isuais. "Indice" e uma forma abreviada do original indexlo{(iFum ou index locornm communium, "indice de lugares" ou "in~cede~s-comuns". A ret6rica fornecera os varies loci ou "lugares" -cabe~hos, como os intitulariamos - sob os quais diferentes "argumen-tos" podiam ser encontrados, tais como causa, efeito, coisas relaciona~as,coisas dessemelhantes e assim por diante. Acompanhando esse equipa-mento textual formular, base ado na oralidade, 0indexador de 400 anosarras simplesmente anotou em que paginas do texto este ou aquele locusera explorado, la arrolando 0 locus e as paginas correspondentes noindex locorum. Os loci havia side originalmente considerados vagamentecomo "lugares" da mente onde as ideias eram armazenadas. No livroimpresso, esses indefinidos "lugares" psiquicos se tornaram localizadosde modo bastante fisico e visivel. Urn novo mundo noetico estava semoldando, espacialmente organizado.

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    I Nesse novo mundo, 0l ivro assemelhava-se menos a uma elocu~aoe mais a uma coisa. A cultura manuscrjtaconservara urn sentimento dolivro mais como uma especie de elocuSeiltimento do livro como uma especie de coisa ou objeto. Muitas vezes,nos manuscritos medievais ocidentais, em vez de uma pagina de rosto, 0texto podia ser introduzido por uma observacao dirigida ao leitor,exatamente como uma conversacao podia cornecar com uma observacaode uma pessoa a outra: "Hie habes, car issime lector, librum quem scr ipsetquidam de ... " (Aqui esta, carisslmo leitor, urn livro que fulano escreveusobre ...). A heranca oral esta operando aqui, pois, embora as culturasorais obviamente possuam meios de se referir a historias ou outrasreci tacoes tradieionais (as historias das Guerras de Troia, as historias deMwindo e assim por diante), ti tulos semelhantes a rotulos como esses naofuncionam muito bern em culturas orais: Homero dificilmente teriacornecado uma reci ta~ao de episodios da lliada anunciando "Alliadd'.

    Il

    Livros, conteudos e rotulos

    ) Uma vez bern interiorizada a im ercebido maisc~o uma especle e 0 leto que "continha" informas;:ao cientifica, ficcionalou outra do que como, anteriormente, uma elocu~ao registrada (Ong 1958b,p. 313). Cada livro individual em uma edicao impressa era fisicamentesemelhante a outro, urn objeto identico, diferentemente dos livros manus-critos, mesmo quando estes apresentavam 0mesmo texto. Agora, com aimpressao, duas copias de uma dada obra nao apenas diziam a mesmacoisa, eram duplicatas umas das outras, como objetos. Essa situacaofavoreceu 0usa de rotulos, e 0l ivro impresso, sendo urn objeto marcadocom letras, naturalmente tomou urn rotulo marcado da mesma forma, apagina de rosto (nova com a irnpressao - Steinberg 1974, pp. 145-148). Aomesmo tempo, a tendencia iconografica ainda era forte, como se ve nas

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    paginas de rosto estampadas al tamente emblemat icas que persi stiram ate1660, .cheias de figuras alegoricas e outros desenhos nao-verbais.

    Superficie signifieativaIvins (1953, p. 31) chamou a atencao para 0 fato de que, embora a

    arte de irnprimir desenhos em diferentes superficies entalhadas fosseconhecida ha seculos, apenas depois do desenvolvimento dos caracterestipograficos moveis em meados de 1400 usaram-se sistematicamente asimpressoes para veicular informacoes. Desenhos tecnicos feitos a mao,como mostrou Ivins (1953, pp. 14-16, 40-45), logo degeneraram emmanuscritos, porque ate mesmo os artistas habilidosos nao entendiam ailustracao que estavam copiando, a menos que fossem supervisionados porurn perito no campo a que as ilustracoes se referiam. Do contrario, urn ramode trevo branco copiado por uma sucessao de artis tas que desconheciam 0trevo branco real poderia terrninar parecendo urn aspargo. As impressoespoderiam ter solucionado 0problema em uma cultura manuscrita, uma vezque a impressao fora praticada durante seculos para finalidades decorativas.Entalhar urn bloco de impressao de treva branco exato teria sido facilmenteexequivel mui to antes da invencao da impressao com caracteres tipografi-cos e teria fornecido exatamente 0necessario, uma "afirrnacao visualreproduzivel com precisao". Porem, a producao manuscrita nao era naturala essa manufatura. Os manuscritos eram produzidos caligraficamente, e naocom partes preexistentes. 0 texto verbal era reproduzido com partespreexistentes, assim como a impressao. Uma prensa podia impr irnir uma"afirmacao visual reproduzivel com precisao" com tanta facil idade quantouma forma const ruida com tipo.

    Uma consequencia da nova afirrnacao visual reproduzivel foi aciencia moderna. A observacao exata nao comeca com a ciencia moderna,Durante seculos, ela foi fundamental para a sobrevivencia entre, porexemplo, cacadores e artesaos de muitos tipos. 0que e distintivo da cienciamoderna e a conjuncao de observacao exata e expressao exata: descricoes,expressas com precisao de objetos e processos complexos cuidadosamenteobservados. A disponibil idade de irnpressoes cuidadosamente realizadas,tecnicas (inicialmente, xilogravuras e, depois, gravuras em metal detalhadasde modo ainda mais preciso), implementou essas descricoes expressas comprecisao, As impressoes tecnicas e a verbal izacao tecnica reforcaram-se eaperfeicoaram-se mutuamente. 0mundo noetico hipervisualizado resultan-

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    te era ~bsolutamente novo. Os escritores ant igos e medievais sao simples-mente incapazes de produzir descricoes expressas com precisao de objetoscomplexos, proximas as descricoes que surgem apos a impressao e, naverdade, alcancam a maturidade principalmente na era rornantica isto e aera da Revolucao Industrial. A verbalizacao oral e residualm~nte o~aldirigem sua atencao para a acao, nao para 0aspecto visual de objetos, cenasou pessoas (Fritschi 1981, pp. 65-66; cf. Havelock 1963, pp. 61-96). 0tratadode ~i:r6vio sobre arquitetura e reconhecidamente vago. Os tipos dee~at1dao a que a longa tradicao retorica visava nao eram de urn tipovisual-vocal, Eisenstein 0979, p. 64) sugere como e dificil hoje imaginarculturas mais antigas nas quais poucas pessoas tivessem visto algum iliauma imagem fisicamente exata de qualquer coisa.

    o~vo mundo noetico aberto pela afirma

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    curiosidade - urn fato que, por isso mesmo, torna necessario explicar atendencia a produzi-la.

    Hartman (1981, p. 35) propos uma conexao entre a poesia concretae a continua logomaquia do texto, de Jacques Derrida. A ligacao ecertamente real e merece uma atencao maior. A poesia concreta joga coma ~da palavra encerrada no espa~o por oposi~ao a palavra so~oral, que nunca pode ser encerrada no espaco (todo texto e pretexto),isto e, ela joga com as Iimitacoes absolutas da textualidade que, parado-xalmente, revelam as limitacoes construidas da palavra falada tambern. Eesse 0 territorio de Derrida, embora ele se mova nele a sua propriamaneira. A I?oesia concreta nao e produto da escrita, mas da impressao,como se viu. A ~esconstru~ntes atada a tipografia do que, comoela muitas vezes arece . ar, meramente a escrita. -

    Efeitos mais difusos

    Podemos arrolar indefinidamente efeitos adicionais, mais ou me-nos diretos, que a impressao teve sobre a economia noetica ou sobre a"mentalidade" do Ocidente. A impressao finalmente tirou a antiga arte daretorica (fundada na oralidade) do centro da educacao acadernica. Elaestimulou e tornou possivel em grande escala a quantificacao do conhe-cimento, tanto pelo uso da analise matematica quanto pelo uso dediagramas e tabelas. A impressao diminuiu or fim, 0 atrativo daiconografia no tratamento do conhecimento, a despeito 0 fato de que asepocas 1ll1C1a1Sda 1m res sao tenham osto em circula 3.0 ilustra oesiconogra icas e urn modo nunca visto antes. As imagens iconograficassao afins aos personagens "fortes" ou ti icos do discurs e es - 0aSSOClaas a retorica e as artes da memoria de que 0 tratamento oral docoftllecimento necessita (Yates 1966).

    A impressao produziu dicionarios exaustivos e alimentou 0 desejode legislar sobre a "correcao" da linguagem. Esse desejo em grande partenasceu de uma percepcao da linguagem baseada no estudo do latimculto. As linguas cultas textualizam a ideia de linguagem, fazendo-aparecer estar radicada em algo escrito. 0 texto impresso, nao 0 escrito, eo texto em sua forma mais plena, paradigrnatica.

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    A impress3.o estabeleceu 0 clima em que nasceram os dicionarios. fDesde suas origens no seculo XVIII ate poucas decadas arras, os diciona-rios de Ingles tomaram como norma para a lingua apenas 0 usa deescritores que produziram textos para impressao (e nao exatamentetodos). 0 usa de todos os outros, se ele se desvia desse usa tipografico,foi considerado "corrompido". 0Webster's Third New InternationalDictionary (1961) foi a primeira grande obra lexicografica a rompernitidamente com essa velha convencao tipografica e citar como fontespara 0 usa pessoas que nao escreveram para imprimir - e, obviamente,muitas pessoas, formadas na velha ideologia, imediatamente expressararnpor escrito ser essa impressionante realizacao lexicografica (Dykema1963) uma traicao a lingua "verdadeira" ou "pura".

    A impressao constitui tambem urn fator importante da percep~ao dapnvacidade"] pessoal ue m s ciedade moderna. Ela roduziu livrosmenores e mais port:lteis do ~Je as que eram comuns na cultura manuscrita,pniparando psicolo icamente 0 cenario para a leitura solitaria em urn cantotrariqui 0 e eventualmente para uma leitura completamente silenciosa. Nacultura manuscrita e, portanto, na cultura inicial da impressao, a leituratendera a ser uma atividade social, uma pessoa lendo para outras em urngrupo.Thmo sugeriu Steiner (1967, p. 383), a leitura pnvada requer urn lar-espacoso 0 bastante para proporcionar urn isolamento individual e tranqui-10. (Os professores de criancas de areas pobres, hoje, possuem umaconsciencia aguda de que, muitas vezes, 0 maior motivo para urn desern-penho mediocre e que nao ha nenhum lugar em uma casa cheia de genteonde urn menino ou uma menina possam estudar com proveito.)

    A.impressao criou uma nova percep~ao da propriedade privadadas palavras. As pessoas em uma cultura oral primaria podem nutriralgum senso de direito de propriedade sobre urn poema, mas essapercep~ao e rara e geralmente enfraguecida pela partilha comum deconhecimento, formulas e temas dos quais todos se servem. Com a escrita,o ressentimento contra 0 plagio come~a a se desenvolver. 0antigo poetalatinoMarcial (i.53.9) usa a palavra plagiarius, "torturador", "saqueador","opressor", para alguern que se apropria do escrito de urn outro. Porem,nao existe nenhuma palavra latina especial com 0 significado exclusivo Ide "plagiador" ou "plagio". A tradi}ao oral do lugar-comum ainda eraforte. Exatamente na epoca inicial da impressao, contudo, frequentemen-

    'tese obtinha urn decreto real ou privilegium, que proibia a reim ressaode urn l~ par ontros que nao 0 e 1tor origina . .&cha~ynson firmqu

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    um tal privilegium em 1518, obtido de Henrique VIII. Em 1557. foiformada em Londres a Stationer's Company. para vigiar os direitos deautores e editores tipogrMicos, e, por volta do seculo XVIII, as modernasleis de direitos autorais estavam tomando forma or toda a Eur~aOcidental. A tipografia tornou a palavra um bem material. 0 velho mun 0comunal oral fragmentara-se em propr iedades l ivres privadamente reivin-dic"aCJas.0 im ulso da consciencia humana para um maior individualismofoi em servido pela impressao. VI entemente, as palavras nao eramexatamente propriedades privadas . EtaS; inda constituiam propriedadecompartilhadas ate certo ponto. Os livros im ressos re etiram uns osou os, de bom ou mau gra o. No come~o da era eletronica, Joyceenfrentou as angustias da influencia de modo direto e em Ulisses eFinnegan's wake tentou repetir todo mundo de proposito.

    A impressao, ao retirar as palavras do mundo do som no qual haviamprimeiramente 0 num interdimbio humano ativo e ao bani-lasdefinitivamente para a superficie visual, e, por outro a 0, ao explorar 0espaco visual para 0 tratamento do conhecimento, encorajou os sereshumanos a julgar seus proprios recursos interiores, conSClentes ou tncons-cientes, como cada vez mais semelhantes a coisas, impessoais e religiosa-mente neutros. A impressao encora'ou a mente a entender ue seus bensestavam confma os em alguma especie de espas;o mental inerte.

    Impressdo efecbamento. Intertextualidade

    I obra analitico-m",6fica au dentffica.Antes da impressao, a propria escrita favorecia uma sensa ao defechamento noetico. Ao ISOar 0 pef?samento em uma superfkie escrita,separada de qualquer interlocutor, produzindo uma enunciacao, nessesentido, autonomo e indiferente a ataques, a escrita apresenta a enuncia-Icao e 0 pensamento como livres de tuda 0 mais, de algum modoaiitO-encerrados, completos. A impressao, do mesmo modo, situa a

    )

    enunciacao e 0pensamento livres de tudo 0mais, porem vai ainda maislonge na sugestao de auto-encerramento. A im ressa encerra ensa-mento em nu lares de copias de uma obra com exatamente 0 mesmo

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    a

    aspecto visual e a mesma consistencia fisica. A correspondencia verbal de Jcopias da mesma impressao pode ser verificada sem nenhum recurso aosom, mas simplesmente pela visao: urn verificador Hinman ira sobreporpaginas correspondentes de duas copias de urn texto e assinalar variacoespara 0examinador com uma luz intermitente.

    o texto impresso deve representar as palavras de urn autor de forma "definitiva ou "f im ressao e satisfatoria somente com uma !cone usaa.Urna vez fechada, lacrada, uma forma de caracteres tipogra icos, ~ou feita uma chapa litografica e a folha impressa, 0texto nao comporta t ; i " ,muda~asuras, insen;:oes) tao prontamente quanto os textos escritos. "l1~Ao contrario, os manuscri tos, com seus escolios ou comentarios marginais c{ If(que muitas vezes foram introduzidos no texto em co ias subse uentes), ~ "-dialogavarn om 0~undo exterior a suas proprias fronteiras. Permaneciam J/~ Amais p~os do toma-Ia-m-ca da expressao oral. Os leitores de manus- ' < f ~ ' 7critos estao menos fechados ao autor, menos aU1lentes, do que os leitores 1,dos "escritos destinados a impressa9. A sensacao de fechamento ou decompretlide imposta pela impressao e por vezes fIagrantemente fisica. Aspaginas de um jornal sao normalmente cheias - certos tipos de materialimpresso sao chamados de "tapa-buracos" -, exatamente como suas linhassao normalmente todas justihcadas Osto e, todas exatamente da mesmalargura). A impressao e singularmente intolerante em relacao a incompletu-de fisica. Ela pode dar a impressao, sem que 0que ira e sutilmente, mas deurn modo muito real, de que 0material do qual 0texto trata e analogamentecompleto ou coerente em si mesmo.

    ,A impressao contribui para formas art ist icas verbais mais est reita-/mente fechadas, especialmente na narrativa. Ate a impressao, 0unico fiode -fiIst6rla longa linearmente tracado era 0 do drama, que, desde aAntiguidade, fora controlado pela escri ta. As tragedias de Euripedes eramtextos compostos por escrito e entao memorizados palavra por palavrapara ser apresentados oralmente. Com a impressao, 0 enredo cerrado e Itransportado para a narrativa longa, no romance a partir da epoca de JaneAusten, e alcanp seu auge nas hist6rias de detetive. Essas formas seraodiscut idas no proximo capitulo.

    Na teo ria literaria, a impressao da origem, finalmente, ao Formalis- )mo e a Nova Critica, cOIDsua profunda convic~ao de que cada obra dearte verbal esta encerrada em urn mundo proprio, urn "kone verbal','.Sigriihcativamente, um Icone e algo visto - nao ouvido. A cultura manus-

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    crita sentia que as obras de arte verbais estavam em contato mais estreitocom 0mundo oral e nunca fazia uma distincao muito convincente entrepoesia e ret6rica. Falaremos mais sobre 0Formalismo e a Nova Criticatambem no pr6ximo capitulo.

    A impressao igualmente da ori em a moderna questao da intertex-tualidade, que e urn conceito tao fund~s drculos fenomeno Ogl-cos e criticos atualmente (Hawkes 1977, . 144. . ertextualidaderefe~e-se a urn lugar-comum terario e psicol6gico: urn texto nao pode sercriado com base na experiencia vivida. Urn romancista escreve urn romanceporque esse tipo de organizac;;aotextual da experiencia the e familiar.

    A cultura manuscrita tomou como certa a textualidade. Ainda atadaa tradicao comum do mundo oral, ela deliberadamente criou textos deoutros textos, tomando-os emprestado, adaptando-os, partilhando asf6rmulas e os temas comuns, originalmente orais, nao obstante oselaborasse em formas literarias novas, impossiveis antes da escrita. Acultura impressa, por sua vez, possui urn arcabouco mental diferente. Elat~ber uma obra como "fechada", separada das outras obras,u~a unidade em si mesma. A ~a impressa deu origem as nocoesromanticas de "ongmahaade" e "criatividade", que separaram mais aindal i i l l : i obra individual das outras obras, vendo suas";;rigens ;Seus signih-cados como independentes da influencia exterior, ao menos de urn ponto~ vis~jdeal -Quando, nas ultirnas decadas, surgiram doutrinas da

    1mtertextualidade ara se contrapor a estetica isolacionista de uma culturar mantica impressa, elas se tornaram uma especie de choque. Erarn aindama1s perturbadoras pelo fato de que os escritores modernos, angustian-temente conscientes da hist6ria literaria e da intertextualidade defacto desuas pr6prias obras, preocupam-se com 0fato de que possam nao estarproduzindo nada de realmente novo ou aifer~nte, que possam eStarinteiramente sob a "influenCla" de textos alheios. A oqra de H>ltoJd Bloom,The anxiety of influence [A angust~uenc 1 73) trata dessaangustia 0escritor mo erno. Nas culturas manuscritas, poucas dessasangustias acerca da influencia - se e que existiam - atormentavam osescritores,e nas culturas orais nao havia raticamente nenhuma.1 A impressao cria uma sensacao de fechamento nao apenas nasobras Iiterarias, mas tambern nas obras filos6ficas e cientfficas. Com aimpressao, surgiram 0 catecismo- e 0 "manual", menos discursivos emenos argumentativos do que a maioria das apresentacoes anteriores de

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    urn determinado tema academico, Os catecismos e os manuais apresen-tavam "fates" ou seus equivalentes: afirmacoes categ6ricas, mernorizaveis,que diziam sem maiores rodeios e de modo abrangente como se ordena-yam as materias em urn dado campo. Ao contrario, as afirmacoesmemorizaveis das culturas orais e das culturas manuscritas residualmenteorais tendiam a ser de tipo proverbial, apresentando nao tanto "fates"quanta reflexoes, muitas vezes de urn tipo gnornico, convidando a outrasreflexoes em virtude dos paradoxos envolvidos.

    Peter Ramus (1515-1572) criou os paradigmas do genero manual:manual para virtualmente todos os assuntos de arte (dialetica ou logica,ret6rica, gramatica, aritmetica etc.), que adotavam definicoes e divisoesFriasque levavam a outras tantas definicoes e mais divisoes, ate que cadauma das ultimas partes do assunto tivesse sido dissecada e ordenada. Urnmanual ramista sobre urn deterrninado tema nao reconhecia nenhumaconexao com qualquer coisa que the Fosse exterior. Nem mesmo apare-ciam quaisquer dificuldades ou "adversaries". Uma materia curricular ou"arte", quando apresentada adequadamente, segundo 0metodo ramista,nao envolvia quaisquer dificuldades (assim sustentavam os rarnistas): sese definisse e dividisse da maneira apropriada, tudo na arte ficava claroe a pr6pria arte estava completa e independente. Ramus relegara asdificuldades e as refutacoes de adversaries a "conferencias" (scholae)separadas sobre dialetica, ret6rica, gramatica, aritmetica e tudo a mais.Essas conferencias ficavam fora da "arte" encerrada em si. Alern disso, emcada urn dos manuais rarnistas, 0material podia ser apresentado emesquemas ou mapas dicotornizados e impressos que mostravam exata-mente como a material era organizado espacialmente, em si mesmo e namente. Cada arte era, em si mesma, inteiramente separada de qualqueroutra, como casas com espacos abertos intercalados sao separadas umasdas outras, embora as artes estivessem misturadas quando em "usa" - istoe, ao compor uma deterrninada passagem do discurso, usava-se simulta-neamente 16gica, gramatica, ret6rica e talvez outras artes tambem (Ong1958b, pp.30-31, 225-269, 280).

    Urn correlato para a sensacao de fechamento alimentada pelaimpressao era 0 ponto de vista fixo, que, como apontou Marshall (McLuhan (1962, pp~i26-127, 135-136), surgiu com a impressao. ~ponto de vista fixo, era possivel manter urn tom fixo atraves de toda uma Icontposicao longa em prosa. 0ponto de v1sta f'lXo e 0 tom fixomostraram, em urn aspecto, uma maior distancia entre 0escritor e a leitor

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    e, e~ outro, urn ~laior entendimento tacito. 0 escritor podia seguir seucaml~o se~ malo~es preocupacoes (rnaior distancia, ausenciade preo-cupas;a~). Na? havla necessidade de fazer de tudo uma satira merupeta,uma. ~stura de difer:ntes p~ntos ~e vista e inflexoes para difereri!esse?slbl~ldades. 0 escntor podIa conflar que 0lei tor iria se ajustar (rnaiorentendimento). Nesse momento, nasceu 0" ublico leitor" - uma clientelaconsideravel d . . mente do autor, mas

    ~_::_:...::=::.....:=:.:.:::::;.~~~~~u;;,_l:..L>l.I.ia!..!.!m~aisou menos estabeleci os.

    P6s-tipografia: Eletr6nica

    A.tr~nsf.?rmas:ao eletronica da expressao verbal tanto aprofundoua e~pa~laltzas;a~da palavra iniciada pela escrita e intensificada pelaimpressao quanto trouxe a consciencia a uma nova era de otalidadesecundaria, Embora a relacao integral entre a palavra eletronicamente~rocess~da e a polaridade oral idade-cultura escrita, da qual se ocupa esteItvr~, seja urn assunto vasto demais para ser tratado de maneira completaaqui, alguns pontos precis am ser esclarecidos.

    Nao obstante 0que algumas vezes se diz, os dispositivos eletroni -cos nao estao eliminando os l ivros impressos, mas, na verdade, produzin-~o-os cada vez mais. As entrevistas gravadas eletronicamente produzem~vros e artigos "falados" aos milhares, livros e artigos que nunca foramimpressos antes que a gravacao se tornasse possivel . Assim, 0novo meioreforca 0velho, mas evidentemente 0 transforma, porque al imenta urnestilo novo, conscientemente informal, uma vez que os povos tipograficoscreemque 0intercarnbjr, oral deve ser informal (os povos orais acreditamque ele deve normalmente ser formal - Ong 1971, pp. 82-91). Alern disso,como se ,observ.ou. anteriormente, a composicao em terminais de compu-tador esta substi tuindo as formas mais antigas de composicao tipografica,de modo que logo virtualmente toda impressao sera feita de urn modoou de outro com a ajuda de equipamento eletronico. E, e claro informa-coes de todo tipo, obtidas e/ou processadas eletronicamente abremcaminho na impressao para a expansao do produto tipografico. Finalrnen-te, 0pr~_~ento e a espacializas;ao subsequentes da palavra, iniciadosp_e~ita e .le~ados a uma nova ordem de intensidade pela impres~o,sa~ amda malS mtensificados pelo computador, que aumenta a entrega

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    da palavra ao espasro e ao movimento (eletronico) local e otimiza asequencialidade anaHtica ao torna-la virtualmente instantanea.

    Ao mesmo tempo, com 0telefone, 0radio, a televisao e djferentestipos de registro sonoro, atecnologia eletronica JevoJl-nos 3 era da"or:if(dade secundaria". Essa ~~ ..s! .ralidade tern semelhans;as notaveiscom a antiga em sua mistica participatoria, em seu favorecimento de urnsentidO---~al, em sua concentrasrao no momento presente e atemesmo em seu usa de formulas (Ong 1971, pp. 284-303; 1977, pp. 16-49,305-341). Mas ela consti tui fundamentalmente uma oralidade mais delibe-rada e autoconsciente, baseada permanentemente no usa da escrita e daimpresSao, que sao essenciais para a manufatura e a operas;ao doequipamento, assim como para seu uso._ . -

    A oralidade secundaria e extraordinariamente semelhante a prima-ria, e ao mesmo tempo notavelmente diferente dela. Como a oralidadeprimaria, a secunda ria gerou urn forte sentimento de grupo, pois ouvir aspalavras faladas transforma os ouvintes em urn grupo, urn verctadeiropublico, exatamente como a Ieltura de textos escritos ou im ressos ostra~a individuos, faz com que e es se voltem para dentro de si.Pofem, a oralidade secundaria da sentido a grupos incomensuravelmentemais amp los do que os da cultura oral primaria - a "aldeia global" deMcLuhan. Alern disso, antes da escrita, os povos orais tinham urn espiritode~o, porque nenhuma alternativa viavel se apresentara. Em nossaepoca de oralidade secundaria, temos urn espirito de grupo de modoautocOnsciente e programatico. 0 individuo sente que ele, como indivi-duo, deve ser socialmente perceptivo. A diferenca dos membros de umacultura oral primaria, voltados para 0 exterior orque sao poucas asoportunidades para que se voltem para dentro de si, somos vo ta os parao exterior porgue nos voltamos para nosso interior. De modo semelhante,onde aoralidade rimaria romove a espontaneidade porque a reflexaoanalitica efetuada ela escri ta nao esta isporuve, a oralidade secundaria (prorriove a espontaneidade porque, mediante a ref lexao ana it ica, decidi -mos que a espontaneidade e benefica, Planejamos cuidadosamentenossOs acontecimentos para estarmos seguros de que sejarn inteiramenteespontaneos.

    o contraste entre a oratoria no passado e no mundo de hojeilumina consideravelmente 0que existe entre a oralidade primaria e asecundaria, 0 radio e a televisao produziram personalidades politicas

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    importantes na qualidade de oradores de um publico mais vasto do quejamais fora possfvel antes dos produtos da eletronica moderna. Assim, decerto modo, a oralidade conquistou seu direito mais do que ate entao.Porern, nao era essa a antiga oralidade. A orat6ria no velho esrilo nascidada oralidade primaria, desapareceu para sempre. Nos debates Lincoln-DoUglas de 1858, os guerreiros - pois isso e 0que eles eram, clara everdadeiramente - defrontaram-se muitas vezes ao ar livre, durante 0verao escaldante de Illinois, diante de um publico extremamente partici-pativo de ate 12 ou 15 mil pessoas (em Ottawa e Freeport, Illinois,respectivamente - Sparks 1908, pp. 137-138, 189-190), cada um delesfalando por uma hora e meia. 0 primeiro orador dispos de uma hora, 0segundo, de uma hora e meia, e 0primeiro novamente de meia hora dereplica - e tudo isso sem equipamento de amplificacao. A oralidadeprimaria se fez sentir no estilo agregativo, redundante, cuidadosamenteritmado, altamente agonistico e no intenso intercambio entre orador epublico. Os debatedores estavam roucos e fisicamente exaustos aotermino de cada peleja. Os debates presidenciais na televisao atualmenteestao completamente fora desse mundo oral mais antigo. 0 publico estaausente, invisivel, inaudivel. Os candidatos estao ocultos em pequenascabines, fazem apresentacoes breves e se envolvem em dialogos incisivosuns com os outros, nos quais qualquer aresta e deliberadamente aparada.A midia eletronica nao tolera uma exibicao de antagonismo aberto. Naoobstante sua aparencia civilizada de espontaneidade, essa midia e total-mente dominada por um sentimento de fechamento que e herdeiro daimpressao: uma exibicao de hostilidade poderia romper 0fechamento, 0controle rigoroso. Os candidatos se conformam a psicologia da midia. Arnansidao elegante e letrada e excessiva. Apenas pessoas muito maisvelhas atualmente podem se lembrar de como a orat6ria era quando aindamantinha um contato vivo com suas raizes orais primarias. As outrastalvez oucarn mais orat6ria, ou pelo menos mais discursos, de personali-dades publicas importantes do que as pessoas ouviram comumente umseculo arras. Porern, 0que elas ouvem lhes dara uma ideia muito palidada velha orat6ria, que recua da era pre-eletronica ate dois milenios arrase muito mais alem, ou do estilo de vida oral e das estruturas depensamento orais de que nasceu essa orat6ria.

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    6MEMORIAORAL,ENREDO E CARACTERIZAc;;:AO

    A primazia do enredoA mudanca da oralidade para a cultura escrita inscreve-se em

    muitos generos da arte verbal - lirica, narrativa, discurso descr.itiVo,orat6ria (puramente oral, desde a orat6ria quirograficamente or.ga~z~daate a apresentas;ao publica no estilo da televisao), teatro, obras filosoficase cientificas, historiografia e biografia, para citar apenas alguns. Desses,o genero mais estudado na mudans;a oralidade-cultura e~crita foi anaITatlva~~onveniente aqui examinar alguns estudos feitos sobre an~a propor alguns insights mais recentes proporcionados. p~losestudos oralidade-cultura escrita. A narrativa podemos, para os obJetlvospresentes, incorporar 0teatro, que, embora apresente a ~o sern lingua-gerilrlarrativa, mesmo assirn possui um enredo.

    Obviamente, outros acontecimentos na sociedade, alem da mudan-ca oralidade-cultura escrita, ajudam a determinar 0 desenvolvimento danarrativa atraves dos tempos - mudancas na organizacao politica, aeon-tecimentos religiosos, intercambios culturais e muitos outros, incluin.doacontecimentos nos outros generos verbais. Esse tratamento da narratrva

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