150

O terceiro instruído

Embed Size (px)

Citation preview

Page 1: O terceiro instruído
Page 2: O terceiro instruído

MICHEL SERRES

INSTITUTO

PIAGET

o TERCEIRO ,-

INSTRUIDO

Page 3: O terceiro instruído

Para Anne-Marie, Emmanuelle e Stephanie

Page 4: O terceiro instruído

Philomuthos, philosophos pos. PhilosuPh(J.\~ philumuthos pas.

INSTITUTO DE PSICOf. r ('1/\ - PFRGS !:;II P! f (", Y lJlL,b J ~ L"··..:,,ij'-~

ARIsr077iIE'i

Page 5: O terceiro instruído

LAICIDADE

Rc..;gressado de uma viagem de in'pec.v'ao em terrenos lunare:.;, Arlequim, imperador, uparece em cena para dar uma conferihlcia de imprensa. Que maravilhas p6de ver uo atravessar lugares fao exfraorciiniirios? 0 pilblico e,<'pera dele grandes novidades.

- Naa, nao - come«u por responder as questdes que the colucam - , em focia a parle (udo e como aqui, [udo e identico ao que uulgarmente se pode ver 11<) gioho ferriiqueo. Excepto a temperatura, a imensiduo e a heleza.

Desiludidas, as pessoas presentes nau acreditam nu que oltuem, alias, com foda a certezu estao em desacordo/ Entao, nau p6de uhservar mesmo nuda durante a sua viagem? A principia ca/ada:.;, estupefactas, come((am depots a murmurar, enquanto Arleqllim repete sahiamente a sua lifao: l1ao exisle nada de novo soh 0 Sol nem na Lua. A palaura do rei Salomao precede a do poderoso salelite. Nada mals a elizer. pols, mals nenhum comenlarlo a /azer.

Real ou imperial, quem delem 0 poder nan encol1tra, de/acto, no (!.\pafo, senao obedtencia it Slla /orfa, Oll .'·;eja it Slla lei: 0 poder nao se desloca. H quando 0 faz, auanr;;a atraue .... · de lima passadeira verme/ha. R ussim a ru­zao, soh os sellS passos, apenas descobre a Slla regra.

Altivo, Ar/eqllim ohserva os espectadores com um de,..,prezo e lima arro­giincia ridfcll/os. No meio da sala, que se torna ruic/osa, /evanta-se alguem que lo{!,o eSlende a mao na direcfao do manto de Arlequim.

- £n.' - grita essa pessoa -,fll que dizes que em loda a parle ludo e como aqui, qlleres lambem /azer-JlOS acreditar Clue () leu manto Ii s6fi!ito de uma pe",'a, tanto it /rente como alras?

11

Page 6: O terceiro instruído

Sllrpreendido por essa interuenfao, 0 Pl/hlico ja nao sahe se deve manter­-se calado au desatar a rir, porque na verdade a vesfimenta do rei anuncia o contrario do que ele pretende. Mescla composlta de cores, aos retalho,\ its tiras ou em farrapos, de varios tamanhos, por entre milformas e cores vari­adas, de epocas diferentes e proveniencias diversas, mal alinhavados, justa­postos sem harmonia, sem aten~ao nos pormenores, distrihufdos ao sahor das circunstancias e a medida das necessidades, acidentes e contingencias, nao parece ser antes uma e"pecie de mapa-mundo, urn roteiro das viagens do comediante, como uma mala cheia de eliquetas! Entao, nada e nunca como aqui, nenhuma pefr·a se assemelha a qualquer outra, nenhuma provin­cia poderia comparar-se a esta ou aquela e todas as culturas d((erem. Mas 0

manto portulano des mente 0 que 0 rei da Lua pretende dizer. Portanto, vejam com os uossos pr6prios olhos essa paisagem zehrada, lis­

trada, ondulada, en/eaada, pesarosa, justigada, lacunar, ocelada, maliza­da, dilacerada, feila de n6s e laros, com gorros efranjasjd pu[dos, por toda a parte inesperada, miseravel, gloriosa, magn(/i·ca ate cortar a re,\pira~:ao e jazer hater 0 cora~ao.

Poderosa e calma, a palaura reina, monotona, e vitri/ica 0 espa(.o; soher­ba de miseria, a vestimenta, improuavel, q(usca. Q imperador ridfeulo, que se comporta como um hoho, enuolve-se num mapa do mundo de multiplicidades mal ligadas. Verbo puro e Simples, manto comp6sito e mal ajustado, reluzente, helD como uma coisa: que escolher?

- E"itas vestido como 0 roteiro das tua.s viagens! - pergunta ainda a mesma pessoa de modo per/ida.

Toda a gente rio Q rei sente-se atingido e perturhadu.

Arlequim depressa adivinhou qual a saida para 0 ridiculo da sua situa­f.:ao: nao mais llsar aquele manto que 0 desautoriza. Leuanta-se, hesitante, olha surpreendido os andrajos que veste, depois, com um ar lastimoso, ohser­va 0 pl/hUco, volta depois a olhar 0 sell manto, como se se sentisse envergo­nhado. As pes,mas riem-se, um pouco estllpidamente. HIe ganha tempo, e.\pe­ra um pouco mais. Porjim, 0 Imperador da.Llla decide-se.

Arlequim de"pe-se e, depois de algumas caretas e contorseJes desajeitadas, acaha por deixar cair aus pes 0 sell manto esjarrapado.

E aparece entao uma olltra vesfimenta que enuer{{a, por dehaixo do manto, tamhem.ia esjarrapada. Espanfada, a sala desata ainda a rir-se. Portanto, e precisu recome~:ar, dado que a segunda vestimenta, parecida com o manto, se compde de 110vas pe~-as e de velhosjarrapos. it imposs[vel descre­ver a segunda tlinica sem repetir, como 11ltma litania, que Ii listrada, zehrada, c011,\'felada ..

Arlequim contilZua, pois, a despir-se. Qutro manfo/ilrta-cores, uma nova tllnica com gafr)es, depois uma e"pecie de veu estriado, tlldo assim aparece sllcessiuamente, e ainda umas meias sarapintadas ... A sala desata a rir as

12

Page 7: O terceiro instruído

garp,albada . .", cada uez mais estllpe/acta, mus Arlec}ltim lillllell mais acaha de se despir, atras de uma pe<;a aparece olltra, que se pensa ser a antepenllitima: e.~larrapada, comp6sita, aos peda<;os ... Arlequim traz COllsi­go uma camada espessa de mantos de arlequim.

Indejinidamente, 0 nu reeua soh 0 que se esconde e 0 vivo soh ajip,ura ou a expressao ainda carregadas de andrajas. Decerto, 0 primeiro manto deixa ver a justaposi<;ilO de pe<;as, mas a multiplicidade, 0 cruzamento das suees­siuas camadas tamhem 0 reuelam e dissimulam. Como uma cehola ou alca­ch(?lra, Ariequim nao para de relirar tadas essas eamadas e 0 pllhlico nao deixa de .'ie rir.

De slthito, urn siiencio: uma eerta grauidade e.~palha-se pela sala, muito a serio, descohre-se que a/inal 0 rei vai nu. Hrguido atras dele, 0 llilima pano aeaha de cairo

E\panto/ Tatuado, 0 Imperador da Lua exihe umu pele matizada, que e muito mais do que a pele do pr6prio corpo, que no seu todo quase se asseme­Iba a uma impressilO d(f!,ital. Como uma tape~'aria, a tatllagem, estriada, salpicada, listrada, adamascada, ondulada, impede que se possa olhar, tal como as roupas ou us mantos espalhados pelo chao.

iv[as caia 0 llitimo veu e 0 segredo se desvendara, pur mais complicado que seja 0 eor~junto das barrreiras que 0 protegiam. H a pr6pria pele de Arlequim desmente a unidade pretendida por a~""Sim dizer, dado que tamhem ela e urn manto de arlequim.

A sala quer ainda rir-se, rnasja nau cansegue: sera mesmo necessario que () homem se desp(?je, por entre assohios e gra<;olas, para se pedir a alglUJm Clue se maltrate a si mesmo(

A sala ficou depois em sileneio, quase se podia ouvir llma mosca. Arle­quim nao e imperador, mesmo ridfeulo, Arlequim nih) e Arlequim, mllittplo e diversu, ondulante e plural, a nao ser quando se veste e se,despe: nomeado, educado para se proteger, c/(fende-se e eseonde-se, multlplieada e indefini­damente. De um modo hrutal, todos os espectadores aeabam por perceher inteiramente esse misterio.

His aqui, puiS, eomo ele se sente despajado e entreglle sem ck:/esa a Slia intui,cio. Arlequim e hermalrodita, corpo desdohrado de homem e mit/her. HI', cilndalo na sala, que se ve ahalada ate as lagrimas. 0 andn5giJ1o nil c01?/illzde os generos sem qlie pussa repetir us limite,~~ lugares ou marp,ens em que se detem e cume~'am os sexos: 0 homem perdido numajemea, a mulher eOl?/imdida com urn macho. Eis como ele au ela se mostram: como um mOllstro.

Jl1onstro? E~linge, hesta e rapariga; centallro, mucho e cavalo, licorne, quimera, corpo comp6situ e misto; onde e como ohseruar 0 lugar de liga~'ao Ol/ de aeasalamento, 0 slilco em que esse la~'o sejaz ou se corta, a cicatriz em que se abrem os lahios, a direita e a esquerda, () alto eo haixo, mas tam hem o al~jo e a hesfa, 0 vencedor orgulhoso, modesto ou vingador e a humi/de Oll

Page 8: O terceiro instruído

f "

repugnante uttima, () inerle e () vivo, () miserauel e 0 riqu[ssimo, 0 vulgar eshipido e () dotc/o varrido, 0 genio e () imhecil, 0 senhor e 0 eseravo, () imperador e () palhuc;:o. MOl1Stro, decerto, mWi normal. Que expressiio disfin­guir up,ora para conhecer 0 lugar de jUl1y-ao?

Arlequim-rlermafrodita serue-se das duas maos, nao e inteiramente amhi­des/ro mas canh% a:~"'.sumid(), como se pade ver bern, p6de ver-.'·;e como era habit me.\-mo com a esquerda quando se despia e atirava as roupas para ambos 0.\' fados. Alguns encanlos infantis misturados com as rugas pr6prias dos uelhos eXigem que se the pergunte a tdade: adolescente ()u jarre/a? Mas, de fmeciiato, logo que apareceu a pele e a carne, toda a gente descobriu a sua mesti<;agem: mulato, mesth;o, a,,, .. iatico, hfhrido em geral, e em ljue grau? Quarterao, octavao? E se naa representava nunca a rei, mesmo como come­dia, sentir-,",-e-ia uontade de lhe chamar bastardo au cruzado, atravessado. iHe,\'ti~o, marrao au marrana, atrauessado.

Tat uado, ambidestro, herma/rodita e mesti~x), que poderia 0 mon.,'tro ago­ra fazer-nos ver soh a sua pele? Sim, 0 sangue e a carne. A ciencia fala de r5rgiios,fun~i5e.\~ celulas e moleculas, para con/essar finalmente que desde~_lha muUo tempo se naofalajd da vida nos fahoratorios, mas nao indica nunca a carne que, muifo c!aramente, designa a mistura, num dado lugar do cor­po, aqui e agora, de mllsculos e sangue, de pefe e pelos, de ossos, neruos e fUll<r:Jes diven'as, que con/unde, pois, aquila que 0 saber pertinente analisa. Assim, a vida hrinca aos dados ou cld as cartas. Arlequim descobre, para acabar, a sua pr6pria carne. klisturados, a carne e 0 sangue do Arlequim parecem ainda a[ confundir-se com um manto de arlequim.

Desde ha muito que algum; dos e~pecladores tinham ahandonado a !-.'ala, cansados dessas atitudes tealrais falhadas, incomodados com essa viraRem da comeciia em tragedia, obrigados a rir-se e desiludidos por terem pensada nisso. Alguns deles, sem dlluida sa bias especialislas, compreenderam, por sua conta, que cada porc;ao do sell sa her se assemelha assim com 0 manto de A rlequim, dado que cada uma delas trabalba na interseq:iio ou inlerferen­cia de varias outras ciencias e par vezes de quase lodas. Por isso, a sua academia ou a encic!opedia rejeifava formalmente a comedia da arle.

Assim, quando toda a gente estava ja de costas volladas e as olhos davam sinais de cansar;o, todos senliam que a improvisac..:uo nessa noite acabaria em fiasco, mas de slthito algwJm lanr;oll urn apelo, como se novamente se estivesse a rf.!presentar num lugar em que tudo nessa noite era repetido, de modo que 0 pl/hlico par illteiro, uoltando-se ao mesmo lempo com os olhos postos no palco, uiolentamente iluminado pelas derradeiras fuzes mortir;as da rihalta, desatou a gritar:

- Pierrol! Pierrol.' Pierrot lunar.!

14

Page 9: O terceiro instruído

No lugar exacto do Imperador da Lua erguia-se entao uma massa des­lumbrante, incandescente, mais clara do que pdlida, antes transparente do que desbotada, lilial, enevoada, candida, pura e virginal, muito branca.

- Pierrotl Pierrot! - gritavam ainda esses idiotas, quando a cortina des­ceu.

E, enquanto salam, nao deixavam de se interrogar: - Como e que as mil cores assim confundidas podem dar origem a uma

massa tao branca? - Como acontece com a carpa - explicavam w,- rnais doutos - que

assimila e retem as varias diferen~:as conhecidas durante a,'; viagens e regres­sa a casa matizado de novas gestas e outras usas, bw·,-eados nas ,\;uaS atitudes e funfoes, aD ponto de se nao acreditar que alguma COl~,-a nele mudou, ou ainda como a milagre laica da tolerancia, da neutralidade belleuo/ente, que acolbe, pela paz, muitas Dutras aprendizagens para fazer brilbar a liberda­de de inuenfao, ou seja, de pensarnento.

15

Page 10: O terceiro instruído

CRIAR

L

Page 11: O terceiro instruído

r I

Corpo Sentidos

Nascimento do Terceiro Aprendizagem

Nascimento e conhecimento Escrever

Sexo QUimera

Vinco e lar;o Primeiras recordar;i5es

Dia. Noite. Manhit Rosacea

Trinado, musica Danr;a

Magnificencia Alegria, dilatar;ito, criar;ito

Page 12: O terceiro instruído

AG RADECIMENTO

Obrigaclo. 0 mel! rcconhecimento patetieD vai em primeiro lugar para LIm antigo professor, cujo [osto, voz e maDS continuarao presentes na minha memoria ate a morte e que, a distancia de alguns decenios, fez de mim 0 que a maioria ciircitista chama por compaixao um canhota contra­riacio, mas que cleva descrevcr alegremcnte COl11o LIma parte adaptacla. Nenhul11 acontecimento pode modelar 0 mcu carpo com olltras conse­quencias, ninguem decicliu por mim no scotielo Blais revolucion{trio cia palavra.

Por uma vez, 0 curpo de quem ensina, que sc levanta para dizer e convencer au se inclina para esc rever, revela-se perantc 0 seu Pllblico com a maior ingenuidade: como 1I111 organisll1o, que cia lugar a lingua e ao pensamento, e eviclente, mas carnalmente modelaclo por um mestre-escola anonimo a quem ell agradec;o.

CORPO

( Ningllem coloca em dllvida a bondade da refonna que pennitiu aos i, canhotos, mells semelhantes, escrever COll1 a sua propria mao. Os olltros

tinham-nos precipitado no meio de lima poplllac;ao vaga de muclos, perver-"/_ sos Oll nevr6ticos, ou scja, a teoria. Em principio, eu fa~o parte desse

grupo tao doente, qlle hoje represento e ao qual empresto a palavra. Estranha noviclade: tudo avanc;a pelo melhor no ll1e1hor dos corpos pos­siveis.

19

Page 13: O terceiro instruído

J i

L

;! Como descrever um destro? Como lim organismo cortado, sofrendo

gravemente de hemiplegia. A caneta, a faea, 0 martelo au a raqueta apenas se manejam com lima das maDS, enquanto a Dutra naa serve para nada. Vivo, quente e flexivel, uma parte do pr6prio carpo e cia sua estatura carrega consigo lima especie de gelneo caciaverico, feio e frio, desprezivel e impotente: inconsciente. ':

Eis at apenas uma parte cia verclade. Como descrever por Sua vez um caohato? Como un1 organisl11o atravessado por uma raeha, paraph~gico,

doente. 0 lapis, 0 garfo, a bola, 0 cinzel, tuda convem a essa m3.o, en­quanta a Dutra pende, donne. Alerta, suave, presente, eis a1 uma face do espa~o e cia vida, enquanto a Dutra metade do corpo empurra au abando­na sem equilibrio possfvel a outra, dura, ausente, morta, peso sem for~a, massa inconsciente sem lingua.

Como balan~o, pOltanto, uma vale pela outra. Cada uma das partes divorciadas compoe-se de do is gemeos, de que apenas um, por escolha, de um lade ou do outro, tem direito a vida, nao tendo 0 outro podido nascer. E deixar livre mente que os canhotos assim permane~am equivale a fazer deles pessoas destras, isto e, novas destros, do outro lado. Por isso, a liberta~ao da esquerda parece-me agora uma decisao da direita.

Os corpos hemipli:gicos reconhecem-se entre si e ilnpoem que todos permane,am na estupida patalogia da divisao.

Nao, nao somos um, mas dois. ~~nhoto_ou(les~r9J_cu:~()rpo de cach urn C01n oe-se de dois irmaos inimigos,' e~;te;~ 'et:feitos, embora e~n:trOl1:1ort~ ou seja, ao mesmo tempo simetricos e assimetricos, gemeos concorrentes e contra~os, depois de Uln deles ter ja morto 0 ;;\'Itro e trazer 0 ~ cadaver na bandoleira, como os generais da antiga Roma, que arrastavam, no meio do seu triunfo, os adversarios vencidos escravizados? Esse uso, que alguns etnologos consideraram universal, apenas em metade do seu corpo remontara a imemoriais praticas de sacrificio? Direito ou canhoto, nunca suportam 0 outro a seu lado, excepto morto ou nado-morto. II Protesto contra a pena de morte nesta Inateria, sou pelo corpo reconci­

Hado, pela amizade entre irmaos, enfim, a favor dessa tolerancia talvez rara do amor, que procura que 0 outro, seu sen,1elhante mais proxiIno, viva feliz e tenha no futuro pelo Inenos a oportunidade ou 0 direito de nascer. l'

o cerebro divide-se em duas partes que, atraves de feixes cruzados, con1unicam com 0 outre lade do corpo, respectivamente. A hemiplegia paralisa ao mesmo tempo ou 0 lade esquerdo do corpo e 0 direito do cerebro ou 0 lado esquerdo deste e 0 direito do outro. Parece-me melhor viver, falar ou pensar com todos os seus orgaos do que suprimir do seu conjunto uma metade escura. Ninguem imagina um tal prindpio, apesar da sua bela, harm6nica e plena evidencia: como explicar a paixao da Hu­manidade, parece que pOI' inteiro, atraves de uma doen~a que obriga metade do nosso corpo a agarrar-se a urn cadaver, como num casamento odioso?

20

Page 14: O terceiro instruído

Portanto, obrigado em primeiro lugar aquele que me formou na pleni­tude e na satura~ao proprias de urn corpo completo. Nada faz mais sentido do que mudar de sentido. Assiln, conto por imagens a lembran~a que guardo dessa muta,ao.

Ninguem sabe nadar verdacIeiramente antes de ter atravessado sozinho um rio largo e impetuoso ou urn estreito, um bra~o de mar agitado. Existe apenas um espafo numa piscina,. que e territorio para al se mergulhar em conjunto. Partamos, mergulhemos. Depois de ter deixaclo a margem, per­manece-se algum tempo n1uito mais perto de um do que de outro, mesmo de frente, peIo menos 0 suficiente para que 0 corpo se entregue a esse calculo e diga silenciosamente que po de selnpre regressar. Ate um certo limite, podemos encarar essa seguranfa, ou seja, que nada foi abandonado. Do outro lado da aventura, 0 pe espera a aproximafao, desde que fran­queou urn segundo limiar: encontra-se bem perto cia margeIll para dizer que se chegou. Margem cIireita ou Inargem esquerda, POllCO importa nos dois casos: terra Oll solo. Nao se nacia, espera-se poder ancIar, como al­guem que salta no ar e desce, mas nao pennanece no seu voo.

PeIo contrario, 0 nadador sa be que um segundo rio carre naquele que} toda a gente ve, entre as duas margens, antes ou depois de teren1 desapa- ¥ recido tocIos os cuidados: e al que fica toda a referencia.

SENTIDOS

A verdacIeira passagem ten1 lugar no proprio meio. Qualquer sentido que assuma 0 acto de nadar, 0 espafo esconcIe-se a algumas dezenas ou centenas de metros sob 0 seu ventre ou a varios quilometros atras e a frente. 0 viajante esta a{~~inho, precisa_,_pois, fazer a tr~!vessia para con he-cer a soEd~9-".J: __ l2.2~5:~~ __ ~~Q~}~ec}~.ii ___ rto Q~saparecinl~nto _~~Els s-uas refe-~J.K_ias_.

Num primeiro tempo, 0 corpo reIativiza 0 sentido: que ilnporta ser a direita au a esquerda desde que sinta terra finne, diz ele. Mas a meio da passagem, 0 proprio espafo desaparece, acabaln-se as dependencias. Entao o corpo voa, esquece 0 que e solido, ja nao espera quaisquer apoios estaveis, procede como se se instalasse para sempre na sua estranha vida: brafos e pernas entram numa fraca e fluida potencia, a peIe adapta-se ao meio turbulento, a vertigem da cabe~a detem-se porque so pode entao contar ja com 0 seu proprio suporte e, sob pena de afogamento, executa com confian,a a sua lenta bra,ada.

o observador que esta de fora acredita facihnente que aquilo que mucla passa de uma cIepenclencia a autra: de pe em Calais como se estivesse em

21

Page 15: O terceiro instruído

, Douvres, como se Fosse necessaria dispor de lim segundo passaporte. Nao. Isso apenas ocorreria se 0 pr6prio meio se reduzisse a um ponto sem dimensao, como no caso de urn saito. 0 corpo que faz a travessia apreende decerto urn segundo mundo, aquele para 0 qual se dirige, em que fala lima Dutra lfngua, mas inicia-se sobretudo Ollln terceiro, para ande transita.

NaG caminhara mais nem se levantara como quando naG sabia qual a sentido au a marcha: bfpede antes ciissa, ei-lo agora carne e peixe. NaG mudou apenas de margem, de linguagem, de babitos, de genero, de espe­de, mas conheceu 0 seu trar;o de lIniao: hOlnem-ra. 0 primeiro animal beneficia de certa ciepenciencia, e tambelll 0 segundo, claro, mas 0 estra­oho ser vivo que um dia eotrau nesse rio branco que corre nas aguas visiveis e teve de se adaptar a essas aguas estranhas para nao morrer deixOll atras de si qualquer dependencia.

Atraves dessa nova vivencia, sente-se verdadeiramente exilado. Privado de casa propria. Morto sem sepultllra. Intermedia1'io. Anjo. Mensageiro. Tras;:o de undo. Para sempre fora de toda a comunidade, mas llln pouco e muito ligeiramente em todas. Arlequim, pois.

NASCIMENTO DO TERCEIRO

E alcans;:a a outra margem: sendo antes destro, e agora visto como canhoto; antes, gascao, vemo-Io ser hoje franc6fono ou anglomano. Julgamo­-10 naturalizado, convertido, mudado, transformado. Claro, que temos 1'a­zao. De facto, embora contrariado, habita agora a segunda margen1. Pen­sain que isso e sin1ples? Nao, claro que nao, e complicado. En1bora seja clestro, continua como canhoto. Bilingue nao quer dizer somente que fala duas Iinguas: passa sem cessar pelas pre gas do dicionario. Bem adaptado, mas fiel ao que foi antes. Esqueceu tudo obrigatoriamente, mas lembra-se disso quando e preciso. Julgam-no um duplo?

Mas nao tem em conta essa passagem, 0 sofrimento, a coragem da aprendizagem, as aflis;:6es de Uln possivel afogamento, cia fencla aberta no t6rax para 0 afastamento dos brac;os, das pernas e da lingua, uma ampla barra de esquecimento e mem6ria que assinala 0 eixo longitudinal dessas n1argens infernais que as nossos antepassados designavam C01110 amnesias. Juigam-no duplo, ambidestro, dicionario, e ei-lo triplo au terceiro, habitan­te das duas margens e frequentando esse meio em que convergem os dois sentidos, alem do sentido do rio que corre, mesmo 0 do vento, e ainda as inclinac;oes inquietas do acto de nadar, as inumeras intenc;6es que provo­cam as decisoes. E nesse rio no rio, ou a abertura no meio do corpo, se forma uma bussola au rotunda de ande divergem vinte ou cein mil senti­dos. Consideran1-no con10 triplo?

Ainda 0 desprezam, mas ele e multiplo. Como fonte ou modificador de sentidos, relativizando para sempre a esquerda, a direita e a terra de onele

22

Page 16: O terceiro instruído

j

saem as direo;bes, integrou um compasso no seu corpo liquido. Julgam-no convertido, mudado, transformado? Decerto. E mais ainda: universal. Sobre o eixo 1116vel do rio e do corpo estremece, comovicia, a fonte dos sentidos.

APRENDIZAGEM

Atravessando 0 rio, entregando-se todo nu a dependencia da margem a sua frente, acaba de aprender uma terceira coisa. Do outro lado, decerto, existem novos habitos e uma linguagen1 estranha. Mas, para la de tudo isso, conhecera a aprendizagem nesse meio difuso que nao faz senticlo para os reencontrar a todos. Porque no vertice do cranio, em turbilhao, ve­-se 0 redemoinho dos cabelos, lugar-l11eio em que se integram todas as direq;:bes.

Universal quer dizer que, 0 que e unico, se orienta em todos os senti­dos. 0 infinito entra no corpo de quem, demoraclamente, atravessa tU11 rio bastante perigoso e largo para conhecer essas paragens longfnquas em que, seja qual for a direq;:ao que se adopte ou clecida, a referenda esta sempre indiferentemente distante. Desde logo, pois, urn solitario, errando sem destino, tudo pode receber e integral': todos os sentidos se equivalem. Mas tera atravessado a totalidade do concreto para entrar na abstraq;:ao?

Os professores poderao duvidar do que ensinaratll, num sentido pleno, aqueles que foram contrariados, ou antes completados, mais do que aque­les que fizeram atravessar esse caminho?

Decerto, nao aprendi nada de que na~ tenha partido, nem ensinei os outros sem os convidar a abancIonar 0 seu ninho.

-:;. Part}~ _e~!_~:: _~11:_d.q~_c~~~~:!l~~~~ 3~~~ .. ~rranca ~lI11a par_~~_ d_~_S9EP_o __ ~y-~!!~ q~lt;_.permane_ce lig~da ~ margem de nasdmentc!, a proximidade de p~ren­tesco, a_s~_~~ ~ aos costumes pr6prios do meio, a cultura cIa lfngua.-·e- -?t. rigidez. dos -.~~bitQ~. Que-n1_._n~o se mexe na~ aprende nada. ~iI~?.<..~~t.~ ~ divide-te em partes. Os-'t~~s pais correm 0 risco de te condenarem como ~m-ln11ao separado. Eras (mico e assinahido, va is tornar-te em varios, por vezes incoerente, como 0 universo que no cOll1e~o, diz-se, explodiu com grande estrondo. Parte, e entao tudo come~a, pelo menos a tua explosao em mundos a parte. E tudo come~a por esse nada.

N~.~.!~_l!_l11~ ~pr~~~~?~~g~IA.~.Y.@ __ ~_Yl?g~rr"h.Sob a orientar;ao de um guia, a educa~ao empurra para 0 exterior. Parte: saL Sai do ventre de tua mae, do berr;o, cia sombra oferecicla pela casa paterna e as paisagens juvenis. Ao vento e a chuva: Hi fora, faltam todos os abrigos. As tuas ideias iniciais nao repetem senao paYav'ras ~n·tigas. Jo~em: velho tagarela. A viagem dos mhos, eis 0 sentido despido da palavra grega pedagogia. Aprender provoca a ~ errancia.

INSTITUTO m PSICOLOGIA - UFRGS BIBLIOTECA

Page 17: O terceiro instruído

Partir em bacados para se lan<;ar num caminha de saida inccrta exige um tIL heroismo que sobretudo a infancia nao e capaz de oferecer e, portanto, e precido seduzi-Ia para a comprometer. Seduzir: conduzir para gU!tQJ..ililu.. Bifurcar a direc<;ao dita natural. Nenhul11 gesto da mao que segura uma raqueta prossegue uma atitude que 0 corpo tomada esponta­nealnente, nenhuma palavra em ingles emana faciltnente dos labios de lIln frances, uns grandes olhos abertos nao revelam quaJquer icleia cia geOlne­tria, nem 0 vento nem os passaros nos ensinam musica. Rcsta, pois, encarar o corpo, a lingua ou a alma em scntido contrario. Bifurcar, obrigatoria­mente, quer dizer enveredar pOI' 11m atalho que conduz a um lugar clesco­nhecido. Sobretudo: nunca tomar facilmente uma rota, atravessar de prefe­rencia um rio a nado. , Partir. Sail'. Deixar-se um dia secluzir. Tornar-se em varios, enfrentar a ~xterior, bifurcar ,cn~_CJl@~~E_~~!~~ao. Eis as tres primeiras singuhlrida­des, as tres v,uieclades de alteridade, as tres primeiras formas de se expor.

" porgue . .!l~o .. ~1ii§l~_~Ql~.tr!Qiz~XI.:!_ .. ~~nl. eJP~si<;~D, l~ll1.~ta?_ye~e~ p~_~,~gSJs_~.?_~_~~'-" , Qutro. Jamais saberei 0. que SDU, oncle estou, de onde vcnho, para ancIe \. YOU, por onde avan<;ar. Exponho-me aos outros, ~lS singularidades.

Para onde, cis a quarta questao, colocada com novos custos. 0 guia tempor{lrio, 0 professor, conhecem 0 lugar para on de conduzem 0 inicia­do, que agora desconhece e a seu tempo 0 descobrirfl. Esse espa<;o existe, terra, cidade, lingua, gesto ou teorema. A viagem avan<;a por af. Mas a conida acompanha certas curvas de nivel, segundo luna altura ou 11m perfil que depend em ao mesmo tempo clas pernas do correclor e do terrcno Jque percorre, pedreira, deserto ou mar, pftntano Oll parede. Nao se apressa para o objectivo, para 0 fim, no sentido cia sua finalid~lde. Nao, 0 jogo cia peclagagia nunca se efectua a dois, viajante e destino, mas a tees. 0 tercci­t"9 lugar intervem ai tanto conlO 0 limiar cia pass~~g~n~. Ora, nenl 0 ~lluno nem o;nTCia(fo~' -s-aben;-t11Ui·t~~s--veics c}uai ~ -Iugar ou 0 usa clessa porta.

Um dia, em qualquer momento, cacla um passa pelo meio desse rio limpicio, numa situa<;ao estranha de mudan<;a cle fase, que se pocle chatnar

'j ~g~!i-~, palavra que signif~~_ .. ~._.P'~_~.~~biliclacle ou a cap~l,c!~Ia.cle em todos os sentidos. Sensivel, por exemplo, a balans;:a quando se inclina para dil1a --e'·p~u:a· babco ao mesmo tcmpo, vibranclo assinl lllUito bem nos dois sentidos; sensivel tambem a crian<;a que vai avan<;ar, quando se lan<;a num clesequilibrio reequilibraclo; nus observe-se ainda, quando tllcrgulha na palavra, na leitura ou na escrita, esclarecido oU confunclido pelo senticlo e pelo nao-sentida. Como famos hipersensiveis, repreenclidos, censuraclos, no momento de franquelf todos os limiarcs cia juventucle. Esse cstaclo vibra como uma instabilidacle, uma metaestabilicladc, como um terceiro nao cxcluf­clo entre 0 equilibria e 0 desequilibrio, entre 0 ser e 0 nacla. A sensibiliclade frequenta, pois, lUll lugar central e periferico: em fanna de estrcla.) j'

Alguma vez se mantem os objectivos cia sua equipa quando um adver­sario se aprcsta para clesferir em breve uma boa pancacla? Descontraiclo,

24

Page 18: O terceiro instruído

sentinclo-sc livre, a corpo imita 0 participio futuro, bem preparaclo para se clistencler: para cima, ao res da terra ou a meia altura, nos dais sentidos, csquerda e direita; para a centro clo plexus solar, um palco iluminaclo ian<;a os seus raios virtuais en1 toclos os senticlos ao meSIl10 tempo, como um feixe cle ax6nios. Eis ai 0 estado de sensibilidade vibrante, despcrtar, aler­ta, aten<;ao, apelo ao animal quc rasteja, espreita, espia, solicita<;ao em todos as sentidos de lad a a aclmiravei rede de ncur6nios. Carre ate a rede, pronto a clespachar: aincla como participio futuro, a raqueta clcstina-se ao mesmo tempo a toclos as gal pes cm conjunto, como se 0 corpo, posto em desequiHbrio de todos as lados, alimentassc uma bola cle tempo, Ulna esfera cle senticlos e libertassc a partir do t6rax uma estrela clo mar. No centro cia estrela esconcle-se 0 tcrceiro lugar, a que antes chamci alma, experimentaclo na passagem de tlln obstaculo diffcil de ultrapassar. Habita esse p6lo da sensibilidade, clessa capacidade virtual, ao mesll10 tempo que se lan<;a e se cletem, isto e, se lanc;a em parte ao longo das calnaclas flutuantes do astro que explora 0 espac;o, como um sol.

CEREBRO

Se 0 corpo ou a alma sabem isso, a cerebra naa a ignora. Tanto no sono como na vigilia, vibra e salta em todos as sentidos simuitaneamente de tal modo que a curva complexa que deixa trac;ada no electrocncefa­logram<l exprime ou imita a sua autonol11ia como bola e feixe ou em milhbes de estrelas: sob a camacla craniana cintilam as constelac;bes. Muiti­pia mente sensfvel, sobe ~l recle para clespachar au, bem experiente a defen­der-sc, apresta-se para receber a bola em toclos os flngulos do cspa<;o e em todos os instantes, como balan<;a bem aferida, crian<;a auclaciosa que se lanc;a numa tarefa incerta, boca que balbucia entra 0 rumor e a palavra, entre sim e nao, claro e escuro, mentira e verclacle, lingua, hlbios e palato abrigando esse terceiro <If inclufclo. 0 cerebro activa-se a quadricular 0

espac;o-tel11po: como? Com toda a eviclencia, estanda a1 e noutro lado ao mesmo tempo, continua e descontinuament"e. Saltitando e cintilanclo, lasseclia esse terceiro lugar descoberto pelo acto de nadar para atravessar 0 rio.

Tal como a inteligencia, a pr01nessa de inven<;ao domina durante muito tempo esse jogador, essa crian<;a, esse vigia, que balanc;a ou nada, essa virgem que se apressa a decidir. Corpo, m(lsculos, nelVOS, sentidos e sen­sibiliclade, alma, cerebro e conhecimento, tudo converge nesse terceiro lugar em forma de estrcla: olha a esqucrda, passa ~l clireita, observa em cima e corre cm baixo ...

Essc terceiro lugar consolida-se no tempo e no esp<l<;o. Atraves cia jane­que atravessa, 0 corpo sa be que passou para 0 exterior, que acaba cle

25

Page 19: O terceiro instruído

entrar num outro mundo. 0 espar;o e as nossas hist6ri~ls sao densas em tais limiares: eixo do rio, brar;o de mar que 0 acto de naclar ultrapassa. Parece acabar aqui a aventura, enquanto a viagem atinge lIIll certo estadio, com 0 tcreeiro scguramente incluklo, dado que alguma coisa aeaba e nao aeaba semprc ao mcsmo tempo. Eis ai 0 ponto de ehegada, varia vel eonfonne 0 dia e 0 trcpador, cm que cleseobre quc, nessa manha, podera passa-lo, / mesl110 que oeorfa uma tempestade. T~_!:<2-~.iro !!l.~h![dAQ~J!~g_fh~~~~IQ,_'!1}.as L / JOf;J!!.Yi~~~Q~I~!f!Q.: Eis 0 momento pr6prio em quc, - de Sllbito, eOIuo po; gra\,<l, tudo se torna f{tcil e nao se sa be porque. Mesmo no Ineio, a obra estremece. E esse 0 instantc em que, clepois cle alguns anos de treino, de vontacle, de preocupar;ao, tudo de repcnte entra e se instala no esqucma corporal ou ate categorial; mas isso mesmo eu eomer;o c acabo simultanea­mentc, sei que falarei chines sem ainda t~llar, que resolvcrei as equar;ocs do problema, recuperarei a sallcle, acabarei a travessia. Mas_~ taQJ_~aLe~$_~ ( llmiar que nos podemos iluciircolns.k: eis ai 0 momenta em que se inicia ' a cO~licla, embor~l o-pl:{rlci'pi~u~t~ {ulgue que ela acaba mesmo par veneer os ) seus obst~kulos; falso meio, por vezes umJ.,eLG...G.tL9_Jrl1;J.ginariQ.

NASCIMENTO E CONHECIMENTO

Nao sei 0 que me leva a dizer que estas quatro provas ou exposir;oes maiores da pedagogia - 0 escalonamento clo corpo em partes, a expulsao para 0 exterior, a escolha necessaria de um C<lI11inho transversal e parado­xal e, pOI' fim, a passagem para 0 terceiro lugar - nao as sofremos logo nos primciros instantes cia pr6prio nascilnento, eln qlle e preciso, por vczes com efusao de sanglle ou mesmo 0 esmagamento cia caber;a, retirar­-se de llln corpo 0 que no 110SS0 se integrava, porque vivfatnos como parte do corpo materna, ou suportar um impulso irresistivel para 0 frio irrcspiravel sentido de fora, tomar llln caminho que nenhuma restri~ao anterior previa, pass~lr, finalmentc, por uma abertura retraida e ate pouco dihltacla, pronta a fechar-se de imediato, com risco de nos abafar ou estrangular, de apertar o corciao em reclor do pescor;o, fazer sufocar, mOlTer por asfixia no canal assim obstruido, estenosaclo, apertado, fechaclo, cle 111aneira que assim se vive, e toeJa a gente como eu sabe isso, tuclo iSso, essa agonia para nascer, cssa morte para reviver noutro lado, que clesejo clizer agora, num outro tempo, ou seja neste instante em que estou £If, com 0 pe e 0 coras;-ao a bater, ofegante, clisposto ja a aclaptar-se, a aprencler: morrcr-viver mesmo C01110 um tercciro.

Assim, todos passamos por lim clesfilaclciro, esse estranho e natural lugar na 1110ntanha em que 0 ponto l11ais alto clos pontos baixos iguala exactamente 0 ponto mais baixo dos pontos elevados. Aprendemos ja que / ?_ filTI __ ~~_"!:l..Ql.~~~!g_?~ia de repente podc aproximar-sc clo sentido cia vida.

26

Page 20: O terceiro instruído

Nascimento, conhecimento: nao serfl espantoso 0 perigo se mais terrivel for a exposi\ao?

No decurso dessas experiencias, 0 tempo nao brQ!~ nem cia posl~ao,

como equililirio estatuario, nem cia oposi~ao, uma seguncla estabilidade de onde nada pode derivar, nem da sua rela~ao, arca ou arco est{ltico de imobilidade perene, mas de Ul1).j!.~~t~~,. ~te~ _~9!-.lilfpX!q .ql~~ .. es~9~a .Ol~ .toma .. posiS.~9J9.ra ~!~_~.t rD~~g~~ .. p'anl ()~.c~_e:s.eguililirio, que. a cxclui do seu sosse-go,· exact~mente de um falso suporte:';l hng-{ia' usua(expr"fn-le-a' expressivi­il1enYe~a'trav~s '(f~i' ·expos-i~'ao. No eixo do rio cuja corrente 0 dissipa, como ~ ,'t alguem que assume um risco, 0 nadaclor exp6e-se. .,J

o tempo expoe-se e, no espa\o, lan~a alguns lugares em que nao existe o estar neles. 0 espa~o enxameia-se de lugares de exposiC;;ao em que se gasta 0 tempo.

Deslizante, esse terceiro lugar expoe quem pOl' ele passa, mas nin­guem passa sem esse deslizamento. Nunca ninguen1 mudoll nada, nem coisa nenhuma do mundo, sem ser atraves de uma queda. POitanto, gual­quer evo!us:ao ou mes~o aprendizagem exise.~1~. __ a .passagem pOI' um ter- <

~ei~o lugar ~. ~P.E,~·.,_!~,~?~. ~~=~9~E~.<.f.l~~~n-io.~- pensan:el.l.~o -' ?~1 invenc;;ao, nao cessacle saltar de un1 i-crceiro para olitro', tercelro lllgar, expoe-se sem­p~~;~po_is) .0\1 ~ql!.~~~ .. g~I~ __ :~Q.Q.I~.e~~.~ P~~I]~~l.,?l~_.inv,en.ta clepressa se torna ne-?s.~ __ ~~rceiro qu~ .. r~ssa. Nem posta nem oposto, sem cessar exposto. Um pouco em equiHbi:Yo, raramente tamben1 em desequilibrio, sempre afastado do lugar, errando sem um hahitat fixo, caracterizando-se peIo nao-Iugar, sim, como alargamento portanto cia liberdacle, ou melhor ain­da, como sllporte falso e condi~ao constrangeclora e soberana de avan­c;;ar para 0 que e verclacleiro.

Eis assim descrito 0 terceiro instruicio, cuja instrLH;ao nao para: pela sua natureza e pelas suas experiencias, acaba de entrar no tempo; abandonou o seu lugar, 0 seu ser e 0 proprio estar ai, a sua terra de origem, viu-se excluido do parafso, atravessou varios rios, com toclos as sells riscos c perigos. Mas sera qlle descola agora cia propria terra: habitara ele 0 tempo?

~ Nao, ningllem habita 0 seu tempo, porque isso exlui os terceiros c

1 desaloja toda a gente de forma imecliata. POl' isso, vivcmos toclos quase scmpre desalojados.

ESCREVER

Durante csta viagem da pedagogia, nao aconselharei, pois, ninguel11 a deixar que uma crian\a canhota utilize a sua vontacle essa mao, sobretuclo para escrever. Como trabalho extraordinario, escrever mobiliza e recruta um conjllnto tao refinado de m(\sculos e extremidacles nervosas que qual-

27

Page 21: O terceiro instruído

quer delicado trabalho manual, de 6ptica ou de relojoaria, se revela pOl' compara<;ao mais grosseiro. Ensinar essa alta cscola a uma popula<;ao tor­na-a em si mesma, em primeiro lugar, uma colectividade de pessoas destras - obscrve-se de passagcm essa palavra pela qual os professores destros fazem toda a sua publicidade junto dos hemiplegicos. Poderao tornar-se cinlI'gioes do cerebro, mecanicos de precisao, enfim, fazer tuclo isso, porque descobrir a alta precisao muscular e nervosa abre a finura do pens31nento.

Mas fazcr a entrada nesse mundo novo, invertcndo 0 pr6prio corpo, exige um perturbante abandono. A minha vida reduz-se talvez a mem6ria desse momento dilacerante em que 0 corpo explode em partes e atravessa Ull1 rio transversal em que correm as aguas da mem6ria e cia esquecimento. Ulna parte e arrancada e a outra pennanece. Descoberta e abertura cle que

~ toda uma vida profissional de escrita descreve, na sua se~J(:~ncia, uma cicatrizac;ao difericla. -'--~-------- ---

Estc golpe acompanha com ficlelidacle a velha separa,ao cia alma e do corpo? 0 canhoto dito contrariado poded tornar-sc ambiclestro? Nao, l11as antes ll1ll corpo dividido, como uma quimera: pcrmanecc canhoto no acto de agarrar no cinzel, martelo, foice, florete, bola, raqueta, num gesto ex­pressivo e nao em relac;ao a sociedade - aqui, 0 carpo -, nunca deixou de pertencer a uma minoria desajeitada e sinistra, pretende 0 latim - viva a lingua grcga que se considera aristocrata! Embora destro para agarrar na cancta e no garfo, aperta a mao na sua aprcsentac;ao - eis ai a alma. Bem educado na sua vida publica, mas canhoto ao t~lzer um.l caricia e na sua vida privada. Para os organisll1os assim adaptados as maos adequadas.

;, Como revelar, enfim, alguma tolerancia e nao-violencia, a nao ser colo­car-se do ponto de vista do outro, saber estar do outro lado?

Nao aconsclharei ninguem que privc a seu mho ciesta aventura, cia travessia do rio, dessa riqueza, desse tesouro que nunca eu consegui esgo­tar, porque contem 0 cssencial da aprendizagem, 0 universo cia tolerancia e a cintilac;ao solar cia atenc;ao. Os chamados canhotos contrariados vivem num outro mundo que a maioria dos outros apenas em parte explora. Conhecem 0 limite e a ausencia, e sinto-me satisfeito: hennafrodita lateral.

SEXO

Apenas alguns seres vivos beneficiam de 1Il11 sexo, enquanto tudo no mundo, inerte ou vivo, se revela munido de um sentido, que avanc;a ate mais longe c e mais profundo do que aquele. Canhoto e destro diz-se em rela<;ao a muitas coisas como macho e femea e separam-sc mais universal­mente quando 0 genero os nao ciistingue.

Os astros giram e avanc;am, orientacios, como as particulas em redor do nCicleo do ~ltomo. Crista is e moleculas sao lateralizaclos, em simetrias e assimetrias altamente refinaclas. 0 senticio Oll a orienta<;ao nao resultam

28

Page 22: O terceiro instruído

dos homcns nem elas suas preferencias, das suas inclina<;6es, mas do mun­do inerte anterior ao scr vivo e do ser vivo antes cia pr6pria cultura. As coisas completam-se: campos de for<;as, auroras boreais, turbulencias, ci­clones, pesquisas sobre 0 planeta ](lpiter, 0 universo nasce, diz-se, de lima ruptura de simetria. 0 sentido percorre, pois, a imensidade do ceu, entra na linha do pormenor e cavalga com 0 proprio tempo. Depois, passa aos mariscos, levogiros, dextrogiros, aos crustaceos, que possuem Ulna pin<;a grossa ao lado de outra tnais pequena, p01tanto sao heterochercos, depois enl todos as C01-pOS, nos nossos, nos olhos, nas narinas, na ponta clos cabelos e no equilibrio um pouco quebrado do pcito feminino: 0 seio esquerdo imp6c-se sobre 0 do lado direito, peIo menos enl termos estatfs­ticos. Atravessa os nossos corpos e faz parte dos objectos fabricados. 0 canhoto insinua-se com dificuldade na floresta ela tccnologia destra.

A orienta<;ao interessa, finaimente, as nossas preferencias, as nossas partilhas culturais, os vennclhos no poder e os brancos sentados no banco, Oll 0 contra rio, conforme 0 hemiciclo das. revolu<;6es. A politica, como coisa (Iltima, perdidamente, se repete. Se 0 tribunal da sociologia me con­denasse por nao tel' dito que 0 munclo e apenas oricntaclo pela projec<;ao das suas partilhas ou pela imposi<;ao das proprias escolhas, creio que res­ponderia assim - e contuelo ele tnove-se.

f

0 mundo esta lateralizaclo 2£1' toda "parte .~ ... ~.'lS~inl ql.le .elliste,' C di r I~~)

A orienta,ao parte do local para a global c do pequcno para 0 grandc, atomos e astros, cia materia inerte para 0 ser vivo, crista is e conchas, cla Natureza a cultura, clo puro ao aplicado, do espa<;o ao tempo, clas coisas as linguas: alias, atravessa sobretudo as~gens, c sem dificuldade, que a filosofia considera mais delicadas.

Ora, a divisao por generos apenas concede aos seres vivos sexuados alguns papeis sociais, por vezes a sua linguagem. Em sllma, bem pouca coisa.

Tocla a gente diz, scm saber que repete isso, que.l~_ bllssola, inclicando o norte, permite que nos orientenlos. E se eu tne decidisse, como aquitano, californiano ou habitantc do Sudocste, a ocidentar-me para 0 sui? Pois bem: ir em frente, diz-se, sem tomar em conta que a rectidao recomenda que se volte a estibordo. Como pode a. justi<;a apresentar-se segundo a imagem publicWiria de uma balan<;a equilibrada, quando e 0 proprio direi­to que a faz inclinar para um dos pratos? Mas aqui, leva do pela inclina<;ao, o dizer nao e adiantado pelo genero.

Em suma, 0 sexo pesa menos que 0 sentido ou 0 macho que a direita.

j Vivemos constantemente tnergulhados mais no turbilhao lateralizado do que na emo<;ao sexual. Esta compara<;ao designa a expedencia do canhoto contrariado ou adaptado no centro cia prime ira partilha como mais intensa

'~ c mais larga do que mitica, a do androgino no centro clo segundo, porquc este avan<;a para 0 objecto, clos crista is para as estrelas, e 0 Hermafrodita detem-se na carne, volta do sobre si, for<;aclamente narcisico, abcrto para 0

muncio c portanto conhececlor.

29

Page 23: O terceiro instruído
Page 24: O terceiro instruído

l

Mas neccssita pelo menos clo clireito e da moral, aWls, para construir pacientemente a clupJa curva clas suas trocas, globalmente cquilibradas. Comec;a sempre assim e pOl' toda a parte a orientac;ao, restando construir enl seguida as diferentes equilibrios. A troca aparece, pois, em segundo lugar.

Da escrita a caneta, 0 nosso tempo passa por varios tons. Como as compositores falham quando utilizam a mao esguerda! Ela acompanha-a, dizem eies, como serva, escrava, sombra da outra. Nao, as 111aOS no ema­ranhado das notas fazem amor entre si, que habitual barbarie deixaI' passar tudo isso quase passivamente! Andr6ginos pOl' vezes em miraculosas par­tituras que as fazem sentiI' I'ealmcntc bilatcralizaclos.

o pr6prio piano figura como um corpo adaptaclo, elnbora vulgar e selnpre codificado, e a corpo assemelha-se mesmo a uma mesa. Hannonias cortacias, quebradas, em que se nao pociem leI' senao alguns fragmentos ou analises, pianos suaves enl que 0 alto se perderia no cinzento, apagado pelas nuvens, instrUlnentos agudos em que 0 baixo se perderia na sombra profunda, cis os canhotos ou os destros. Ora, amanha havemos de escrever de preferencia com essa (mica mao que segura 0 lapis c a cancta sobre uma pagina, orientaclos au ciesoricntados, mas como duas maos comple­menta res sobre as pautas ou outras consolas. A questao da escrita encon­tra-se alterada: pOl' acaso, teremos de contar tambem com os destros adap­tados na sua mao esquerda. Deixamos a civilizaC;ao clestra do estilo para entrannos na clos tons, plana, volumosa e clescentracla. Tudo isso mudara a nosso corpo e alma e transfo!~~~~~_q_~e~~~P9:..

QUIMERA

Onde soa 0 centro do piano? Em redor do tcrcciro la? Escutem 0 x ou o chi cia gama ascendente cia esquercla para a direita, encontrando de aigUln modo a torrente de notas que correm de cima para baixo, escutem a pr6pria quimera e 0 ponto de cobertura. Nesse ponto determinado, vernal, nasce a encruzilhacla, sob a estatua do Hennafrodita; esse lugar primaveril encontra-se no corpo, conhec;o-o como dor e Inatriz, cicatriz e origeln, tesouro e carta secreta, numa ligaC;ao que passa pOl' ai como tratamento de um segundo caminho e este como forma de ligac;ao do primciro. Nao guebrem as hl,OS cia guimera.

*" { Os nossos antepassados procuravam justa mente 0 Jugal' misterioso em que 0 corpo se entende com a alma, as lac;os e segredos dessa ligac;ao.

o canhoto contrariaclo assemelha-se a uma quimera que levaria a sua alma para a direita, dado que escreve ao lado clas obras de cuitura, e 0 seu corpo para a esquerda, pOl"que conscrva os seus utcnsflios nesse trabalho

31 INSTITUTO DE PSICOlOGIA - UFRGS

BIBLIOTECA

Page 25: O terceiro instruído

com que ganha a vida; cis ai um mundo continuo, passando pelas suas entranhas, ®e une 0 SCI' vivo a Pl!!-~~~!:!!~!r~l, lllao para lavrar a terra ou espalhar as sementes, mao para esc rever delicadamente c com cstilo ou compor mllSiGl, passagem pcrmutavel par esse Jugal' vernal em que 0 labor corporal se prolonga normalmente, pela encruzilhada, no pensamento pro­funclamente abstracto.

Este lnQnstro ad~l?tad~, quero dizer nOrInal, licorne, esfinge-l. mulher­-serpente ou sereia, cons'ti"oi um universo conexo, passando pclas cobertu­ras do centro, que une a vida privada ao colcctivo exterior, mao pronta a uma caricia, voltada para 0 gesto c a saudaC;ao, em que se to caIn e se confunc!em os espac;os dos jogos e a delicada serieciade, na esquerda a bola e na direita a caneta, passagen1 para lun ponto estabeleciclo em que o senticlo de lima sensac;ao se transmuda em sentido de lima significa~ao, em que se desvenda mesmo a solidao, em que a atenc;ao livre se tOrIM produtora, em que 0 riso se misturara com as lagrimas, em que 0 rigor se afina pela beleza.

o canhoto contrariaclo-adaptado desliza constantemente sobre a encru­zilhada ou a conexao, pratica cem vezes pOl' dia esse papel de Rermutador em que 0 seu esforc;ado suor se encaminha para as singularidades cia arte, pOl' oncle 0 trabalho persistente e obstinado se desdobra em obra,~ onde as poderosas fermentac;6es cia terra acaban1 no universal da forma pura. "Ligre» ou «tigrao", sardo de tigre e de leoa au de tigre-femea e de leao, mcstic;;:o, Arlequim, animal cruzado, erguiclo descle sempre na direita tradicional, permanecendo na esquerda pcla vida vulgar e b{lsica, liga, alimenta, corta, articula, cicatriza, hannoniza, teve mesmo de provocar cen­tenas de mortes para chegar ai, esventrado debaixo da sua cintura enfraquccida, a alma como um sa co de Iagrimas no meio do torax, fazenclo esse jogo com as duas maos, passanclo, voltanclo a passar, acariciando e cuidando do seu meio proprio, vernal, novo, s6lido, sereno, mais jovem clo que a infancia envelhecicla.

E necessario demarcar uma cruz para determinar um centro e percorrer um caminho penoso para af chegar. t'Iao basta apenas a clireita ou um desses lados. E preciso um corpo cruzado que passe pelos orgaos do centro, cora<;ao, ventre, plexus solar, sexo, lingua, nariz de sapiencia e de sabedor, atravessanclo 0 reconhecimento dos lugares axiais, para que a lfngua comece verdadeiramente, para que 0 sexo fac;a a sua apari<;ao. Como e que um canhoto ou um destro, assim dividiclos, podem atingir 0

seu centro, cleitados que estao no mesmo lei to? Uma rajacla de vento nao forma lima rosacea, sao precisas muitas e que se crllzem no pr6prio com­passo para fazerem senticlo. Mas tendo esses infelizes um sexo e uma lfngua, como ocupam eles essa rosacea que multiplamcnte sc atravcssa no sell cerebra?

32

Page 26: O terceiro instruído

Uma parte do corpo muito sublinhada, existindo tao fortemente que se toma como referencia, conduz para aI, faz perder 0 centro, poderfamos chamar-Ihe 0 lirnite de gravidade, sempre evocado, como uma bola descentrada, tocando no solo scmprc cia Inesmo lado como um bone co teimoso. Mesmo a massa global, forte e sombria, se desvanccc poueo a pouco na cabeleira grisalha a medicla que se afasta dessc lado, ate t1utuar, quasc ausente, com um peso ligeiro, de tOll1 clarcte. A lateralidacle asse­melha-se a um estandarte que se agita ao vento.

o seu corpo eaminha por tcrras estranhas, pOI' lugares dcsconheci­dos, por sitios cujo mapa e inexistente. Poderemos entao dizer de outro moclo, pOI' entre alguma intens;:ao ou importfmcia dada aos pr6prios m~ltizes, que a seu centro, claro-escuro, participa cia consciencia e do inconsciente? Lingua talhacla, sexo cortado. Ou 0 sexo e cortado, pOI' secs;:ao, au e cruzado, como intersecs;:ao. Mas um corpo cortado au um COIVO cruzado nao definem um centro equivalente, nem mesmo no proprio animal.

As duas bandas ou caminhos encontram-se no terceiro lugar de intcrsecs;:ao, simples, duplo e cruzado: ausente, exclufdo, fortemente presente. 0 cerebro e simples, duplo e cruzado, COlno um quiasm3, como uma quimera: n6s pensamos nelc como l110delo do corpo, pdo menos organicamente. 0 canhoto contrariado tem Ut11 corpo mode­lado pelo seu pr6prio cerebro, organisInO adaptado que remete sem cessar para 0 modelo central, em cruz. E a todos os seus 6rgaos axiais.

Paralclamente simples, duplo e cruzado, 0 ~ e assim clesignado como seq;ao, porquc a sua partilha deve derivar do claro e do escuro, do lado consciente forte c do lado inconscicnte fraco, no caso normal clas pessoas latcralizacias; ou pocle antes alargar-se no senticio de inter­seq:ao, pela dupla orienta~ao. A grande escolha cia quimcra esbo\'<l e produz essa intersecs;:ao que, alias, quer dizer produto. Uma des cobert a luminosa: 0 sentido prociuz 0 sexo, os dois sentidos sao disso os sells factorcs. 6 desejo, apesar de tudo, e 0 reencontro agudo, incisivo e vivo desses dois sentidos que formam 0 muhdo enos fazem participar nele.

o cerebro e simples, duplo e cruzado, intersec~ao c procluto. 0 sexo e simples, dupIo e cruzado. A lIngua, no centro, e simples, dupla e eruzacla, sopra sempre a cllivicla e 0 triplo, esfor~a-se par traduzir, por cantar 0 que e quil11erico. Ramificada, a llnguaJ)lf!:_~!:~_~l, f~~la_ ~! ___ cluas _yozgSJ ___ eU) dois ___ se.otidos. ~ub~ln Rroduzida pelo scn_-Ji_(~Q .. Baixa, aguda, forte ou fraca, clara, cscura, verdacleira au falsa, rigorosa, imaginaria, mentirosa ou leal, estranha Oll vern{lcula, secluto­ra, repugnante, sempre polarizada. Sensata, insensata. Mas, de repen­te, passando de um sentido a outro e dal ao nao-senticlo, a um ter­ceiro lugar.

33

Page 27: O terceiro instruído

VINCO E LA(,;:O

Nao sei, eu sei 0 que se passa no centro. Conhe<;o 0 sell cnvoivimento, clesignci-o como encruzilhada, cruz Oll crU2amento. Qual 0 caminho que passa por cima Oll pOl' baixo?

Esta questao elemental' coloca-se quando tcmos nas maDS dais fios enos apressamos para fazer um n6, C0l110 pratica antiga cia marinharia au cia tcce­lagem, Oll cia teo ria muito receote dos graficos. Para cima, para baixo. Poderia clizer-se que brincamos com as maos. P~Q~Lc:JI2~_ ~QD}9_J~_~~Qe~~'! __ .~t1t_t~J_~_Q! assim as suas malhas. PeIa clire:ito e relo avesso:. Ql_lalquer. n6 complexo reso1Ve~se- issin1- ~l-ti~lvf§s"-dc vin-cos- lOC~lis -et;;- q~~ -a mesm;l qu-cstao ~iSs-enta~ Par~i"'cima'~-'paril-' b~i~_o-'-- Uma Dutra -fOl:irii-(fe~'Hgar -c~~qlH:;rda"e (HI'eit~l,-oasta inclin~l'r-se' um POlICO para logo a obselvar. As duas maos tccem ou tricotam juntas, sao complementares, em qualquer momento poderiam concorrer nos teares. Sitnples e duplas, crUZa111-se: mas em que sentido? Antes de ensinarem as crian<;;as a tocar piano, fa<;;am-nas tecer ou tricotar.

Portanto, se se segue atenta111ente a linguagcln, a designa<;;ao de C0111-plexo, resultante do y.i~lcQ_ .. OH do nO., designa e dcscrevc meS1110 uma situa<;;ao um pouco mais complicacla clo que a multiplica<;;ao. Voltacla ape­nas para 0 ntlmero, zomba cia paisa gem enquanto aquela a leva em linha de conta. 0 complexo clesigna, pois, um conjunto de vincos quando passa do aritmetico, como pura redu<;;ao, a topologia, que nao despreza ° menor elemento.

Apesar de tudo, 0 complexo nunca descreve mais do que uma situa<;;ao dessas como, pOl' exemplo, em ffsica, em que uma rede, electrica ou outra, possui numerosos fios que passam uns sabre os outros e os outros sob alguns outros, ou seja, uns a esquerda ou a direita daqueles como melhor se quiser: esboc;;o de topologia combinat6ria, nudeo generalizado, designa­do como complexo pela primeira vez pOl' J. B. Listing, em alemao, e utili­zado por Maxwell na sua teoria dos campos electr6nicos. Uma tal rede de fios ou de for<;;as, interceptada algumas vezes por resistencias e capacida­des, e chamada pel os ffsicos como um ponto de Wheatstone.

Quando lun tal ponto se equilibra entre dais limites, nenhum aparelho de medic;;ao pode clesvenda-lo. 0 complexo e entao inobselV{lvel: nem visto nem conhecido. Existindo, pois, enorme e pOI' vezes elnbara<;;ado, entravado, en­trelac;;ado, mas contudo alimentaclo em e por essa nulidade cia diferen<;;a de potencial, nao existe senao como potencia, COll10 Inem6ria apagacla, entre a presen<;;a e a ausencia, 0 esquecimento e a iembran<;;a, a energia local e a incapaciclade global. Descoberto af, 0 inconsciente} rede admiravel de malhas J e de estranhos nos, faz palte da familia 16gica dos terceiros. Se existc, dcsliza 'H­para 0 meio e, C01110 ele, revela U111a tendencia para se perder no escuro cla_ memoria C ocupar depois todo 0 espa<;;o e 0 tempo.

Page 28: O terceiro instruído

t

PRIMElRAS RECORDA<;:GES

/)ia. I?~:an!_~ Y. _~!h~I __ ~~}!~~op_t;._~~<:L_~9.~11pOe, ___ s:_d~l a ~~I~_~J.~l2~~Q~~~egun-do 0 cartao perdido de (IUe ninguem fala, mas que segue 0 sell plano e faz admirar as cenas cia via gem, a ilha de Circe, Nallsica que juga a bola na praia, Polifcmo cego no centro cia caverna, as Screias com as seios a 11105tra que envolvem 0 clesfiladeiro de encantamento, pe~:a por pe~a, ciia ap6s dia, trabalho para 0 amante, canseira para 0 amante, fragmcnto de lim canto para 0 acdo Oll trovaclor, de zenas de versos para Homero, como se os quatro trabalhassem juntos, sob a illlmina~ao diurna, 1lI11 deles na Slla conida sob 0 vell, 0 Olltro numa ccna na tela, 0 escritor cliante de uma pagina, 0 cantor compondo a sua melodi<l, caela Ulll deles climprindo assim a sua tarefa cliarja.

Nos seguimos, esclItall1os, lemos, olh<1mos esscs varios quadros, mcrgu­Ihados no encantamento da mllsica: a fciticcira fatal, a jovcln rapariga com as suas amigas, 0 monstro cego, e, acompanhadas pelo ondular da melo­dia, os labios abertos pelo vento silencioso elas vozes, as femeas-peixes dc peito erguido sobre as agu<ls, iluminadas pelo sol.

Nuite. Ora, quando 0 Sol clesaparccc no horizonte, 0 marinhciro clesce as vclas e a lira cala-sc, quando a noite impede 0 genio de escrever e 0

leitor de leI' ever, diz-se que Pene~ desi~?"_"~ __ I?"~_Q!....9.\J~j;L!~(:"(~l.l, Circe apaga-sc, clcpois a propria Hha, a bola clcsaparece nos brar;os de Nausica, o Ciclope percle 0 seu Linico olho: e assim os fi.Q§2.~sJ.e_sp",reJH:lel1), tudo a que foi tecido desaparece, as n!ar.c:<1c;b~s pcrelcm-_sc e c-'esfja~~?~?_~. A cscuri­ciao engole esses falltas~llas, a melodia mergulha no silencio, ja nao se veem as Sereias nem a boca afona e musical ncm as scios fonnosos rcvc­lados ao sabol' saito clas vagas.

Este despojamento significa que nao tcmos ncccssiciacle nem cia tela I)QD.L.clQJ!!ill.?.!!, cia partitura gravada ~d~'poema escrito, nem m~';~~ sequer da memoria. ~~l~~;t..:nQs_.~~_Yid.4."_~_~a~ __ no~sas __ entranhas escuras. A pe\"<l ontcm tccicla, com as suas mccliclas e estrofes, entraram muito clara­mente na nossa carne e no sombrio esquecilnento, enterradas vivas na sombra do corpo ou cia alma obscura, pela noite dos tempos e sem ocupar nenhum lugar, nao ja incomodas con10 um bra\"o ou qualquer outro 6rgao. Podemos clesfaze-Ias scm pena, continuam af, mas sem la cstarCl11. A noite servc-sc muitas vezes do dia sem 0 clizer e esse nada representa aiguma coisa, pOl"que a mem6ria, musical, nao ocupa cspac;o. As vozes entram em sile-ncio e trabalham, na escuriclao, com uma clara inteligencia.

A nossa flexibiliclaclc consentc a tapeptria desfeita, os cartOes ausentes e a taeita meloclia, scm outra perturbas;ao que nao seja ados mllsClIlos, clos nervos, clo corac;;ao ... .Jncorporacla, a lembrans;a torna-s..c carnc: rcssliscita em parte, ja vibrant~, clesse .. ~1:~1l: negl~q~ ~ YY\ O. r'" caS C I-e.CJ'I~' +Y\)~)

Page 29: O terceiro instruído

il1anhd. Ell acredito que nUl1ca os ouvi cantal', que ncnhuma velha av6 1110S con tOll, vi-os apenas lima vez em perfil fugiciio, Ii-os somen­te nllm mall reSlIlllO, mas no entanto 0 mel! corpo, esta manha, sem clificuldacle restitui, trazidas do mar e clas suas profundas grutas, as ovelhas que sacm, enormes, do antra negro cIo monstro cego, a in­quietante Circe que faz cmergir os marinheiros como POI'COS imuncios, a bola que salta, cianr;;ante, fora cia confusao em que sc lans;am as amigas de Nallsica, ~IS Sereias caladas de seios erguiclos pOl' cim<l das fU111orosas vagas.

Toclos rcsslIscitam clo tumula vazia, dos fios desfeitos, clos versfculos eliminaclos, do silencio, dos meus Iambus, cia 311sencia, da carne calma e viva, clo meu t6rax sonoro que sai do mar sombrio.

Tu que escutas au yeS surgir estas figuras cia sombra atraves cia estranha luz da mllsic3, cia recita ritmada au cia cscansao da tecclagetl1, esquccc-os altivamente, dcsfaz dentro cle ti sem um lamento as fios que as clctem ou as marca~ocs e as palavras que os cvocam, e um elia trauteara.s dc cor tudo isso par~l as tuas filhas pequenas, comprendenclo entao, finalmente, a quc aprendcste outrora de modo ohstinado: 0 fogo 111agico e uma radiante e inocente bola, um monstro perigoso ou um cego vftim<l e, naturalmcnte, as Sereias como cora is de scios nus por sabre as [lguas.

Esqueciclas nos nossos corpos, as Sereias de tuclo sc hao-de lembrar; cntoam ainda esse poema. Scm espa\'o, a l11usica desperta em n6s a ilha quasel sem l11emoria. Desaparcce n<1 carne, sem cleixar nenhum rasto, a terceiro lug~ * em redor do qual 0 ritmo se acompanha e a mllsica vibra.

RosAcEA

Treme e vibra no tempo 0 que se passa no centro. o jogaclor de tenis e 0 guardiao sabenl esperar e ao mesmo tempo

conseguir e no mesmo instante lan~ar pOl' baixo, clisparar a bola para um ponto bem clistante, um lance fapiclo e curto, llln salto no ar, 0

evitar brusco do corpo se 0 ataque acontece de frente, esquerda, direita, pOI' cima, par baixo, mas como e que os pr6prios membros se aguen­tam? Como e que isso se passa, nao sei clizer, mas sci que 0 corpo a sa be fazel', por9lJe donne e clespeI1;;t COB)'._.9~ .. RfQP!'ios ouviclos. Coloca­se~;-clesequmEri;~ afast~lcfO,--ell1·to-do -.~ lado. Sabe -a:~~i711-·-prestar aten­~ao. Livre de sentidos. Com os fios desla~aclos, flutuantes, tad os os n6s abertos e nao apenaclos, bra~os e pernas soltos, a cabc~a vazia; circular como uma rotllncla, alto como um palco sem c3usalidade, torna­se possivel, se assim me att·cvo a dizer. Illlovel, com for~a para se mover. A tapcr;aria a toda a hora se desmancha. Podera dizcr-se que tem uma malha clara, irracliando enl toclos os sentidos pel a rosacca de UIlla catedral.

36

Page 30: O terceiro instruído

I

Ateota, em expectativa, 0 corpo posiciona-se. Os fil6sofos chamam tese ao acto cle situar: um objecto, um acontecimento, uma verdadeira afirma­\=ao. 0 corpo naa se situa assim, como uma peclra au uma estatua que Se imobiliza conforme as leis cia est8.tica, assente sobre tlln aliccrce e em redor do seu centro de graviclade, estavel, cquilibracla, abanclonada as regras do descanso. Mas acontece descrever-se 0 movimento como uma serie de equilfbrios, como uma sequencia de repouso.

o corvo faz de est{ltua quando donne e torna-se tambcm numa dcpois de mOlto. Em ambos os casas, clescansa, por vezes voltado de frentc. Canhoto clo lado esqucrdo, clcstro do outro lado. A orienta\=ao representa, pois, 0 papcl de uma segunda gravidade. De pe, sinto as minhas pernas pesadas c a cabe<;a muito ligeira. A pele clos pes por vezcs fericla pelas unhas, ideias volantes, palavras cmitidas no folego. Como se a sustcnta\=ao produzisse par si algumas divisoes que sc disputam longamente na arena dos filosofos. 0 espiritual participa cia proprio fOlcgo, ligeiro, e a real clo pesado, importante. Mas as obstinados nao se cont'rontam com um vago sentimento saido do proprio corpo?

Ora, se 0 corpa faz de estatua, pelo seu peso, para baixo, esculpe uma segunda, pela sua lateralizaC;ao, para a direita Oll para a esquerda. Dcscansa sobre os pes, mas inclinado para um clos laclos. Seria preciso esboc;ar uma componente obHqua que de sse a verdadeira vertical do scr vivo, seduzido sem cessar par cssa diagonal e que formaria com a oormal 0 angulo cia sua propria inclina<,:ao. Tudo se inclioa e se expoe para 0 lado em que acabe por tOInbar.

f Alguem que se consiclcre realista, clir~l de si 111eSmO que tem as pes na

terra. Os pes, mas na~ as maas oem a cabe\=a. 0 importante nasce de baixo, pOI·em, esquece-sc de perguntar em prilneiro lugar sabre qual dos pes: esquercla ou clircito? POI·que lmico e bem detenninaclo, nao estara ja f ~--.

o carpo no sell tlll11tJlO? Mora claramente af a estMua cia proprio corpo,..;! 0( . c

inclinaclo como qualquer antigo colosso, com a perna lan\ada~ara cIar a_ c-I-)<.:

ilusao de caminhar. Eis a tesc mais corrente: a descanso. Donne estencliclo ~q;~ sobre um clos lacIos, com os pes para a frentc. E assim sc clesenham as ::~ C-o..}

for<,:as da morte. pelo contrario, levanta-se, desperta e, atento, espera. Salclo cia rcpouso_,

ja nao se abancIona: fica dispontVeJ-IXHfl qualquer cve.ntt,talidac!~. 0 que vai acontecer pode chegar cI~ qualquer dircq;:ao no horizonte. Revela entao 0

cuidacIo de <tpagar tocla.S_~lS fOJ<,:.a.s.que_fa:li_all1.~lele uma estatua,inerte, uma te~~st8.tica. Contudo, nao se mexe, mas elimina a angulo da sua q-tteda f;tal, apaga melhor a sua gravidaclc, inundando de subjectividacle a pr6pria elasticidade muscular, deprcssa esquecida c inclinada num cIcterminado se~t-i~I;;-·e po~~utra forma, como jogador de tenis subincIo para volar, ou um guarda-recles atento e vigilante. Preenche 0 seu espa<,:o cIe modo identico: tanto para cima como para baixo, para a dircita ou a csquerda, cicixa de lado prefereocias e cIetermioac;;:oes, abandona as suas depenclen-

37

Page 31: O terceiro instruído

, !

ii I'"

cias e sa be l11uito mclhor agir pot'que atravcssoll muitas vczcs 0 velho c llmpido riO. Eis 0 carpo que se torna adaptado.

E clai sc ve como 0 obstinaclo, que grita para a esqllcrcia e para a ciireita, Oll para a base real all para 0 alto cspiritual, mostra realmcnte a slIa falta de aten<;ao. Nao sc indina, como olltrora um filho fazia perante 0 rei seu pai, a esquercla c a direita. 0 vigilante que espia Oll 0 investigaclor aplica­do, suspenso, torna-sc I11uito deprcssa um c£lnhato contrariado.

Mas, pelo contra rio, presta semprc muita aten<;ao, embora de fanna virtual, cxceclendo sempre que passivel a slIa capacidade, porque ell1 for­<;<1, litcraimente, sc ex poe em toclos os scnticlos, como um sol fugiciio. Ao longo cia sua paixao eliminoll taclas as cletennina<;ocs, Oll melhor, aelaptoll-as. E, nao scnelo de forma nenhuma llln anjo ou uma besta, clado que a dupla nega<;ao produz uma coisa neutra cstllpida e nula, revcla-se anjo e bcsta ao mesmo tempo, erranclo sem dcpendencia, como corpo amalgamado quc acede ao possivcl. 0 existente e um possivel em primciro lugar. 0 corpo faz parte da sua capacidade. Cresce cxactamentc em [or<;<1, avan<;a' a mon­tante de qualquci:-p~-issag~1~'- ao acto. Nao falamos aqui do corpo indeciso, embora ocupe um lugar a jusante de qualquer decisao que precede a ruptum. A. indedsao impoe uma clificuldade a jusante e .~.Lpr~_::Q~d~~!03 [or(<l da -QIQPria~Qt=ig~-11~.:-PI·e=cisC\-01as-iSSo(liZ~se--Inelh-;;:- de Dutro mo~lo: virgcm. 0 corpo solfcito embranquece como neve virginal. A atcI1<;ao e a expectativa avan<;~Hn sobre a brancura. Todo 0 corpo procura uma vizi­nharwa no centro para se ent'oscar no que e possiveL Impossfvci? Mas dispoe dos seus pequenos modelos reduzidos: cerebra, sexo, lingua, pe­que nos corpos cruzados. Procura ° dcsvio c1csse cruzalllento, lugal' oncle os senticlos se pcrmutam em conjunto, quase rnergulhados em cadeia. Mudem de sentido, pois, mas revelem uma maior aterwao, porque esta se assemciha ao sol clas rosaceas: uma exposi<;ao en1 todos as sentidos_

Arlequim torna-se Picrrot.

o cerebro, 0 sexo, a Ifngua exp6cm alguns possiveis em expectativa, que em si mesmos s~10 6rgaos ou fun<;ges do possfvcL No ponto cle cru­zamento, existc a questao do n6, esquercla, direit<l, em baixo, em dma, que ja nao se coloca, mas a sua forma ainda sc expoe. 0 corredor aberto, c1csocupaclo, trans!lICicio nas suas linhas, pertence a todos os caminhos de uma forma estavei e in stave I. Pra<;<l ampla, rotunda estrclacla, flutuante. Tuclo freme em reclor clo eixo ou do centro transparente e na sua vizinhan­<;<1. 0 cerebra espera, imcnso complcxo de vigWincia, oscilanclo multipla­mente, cstremeccndo, vibrando no tempo como 0 sell proprio electrocnce­falograma. 0 scxo hesita, chcio de expectativa e de capaciclade e ataca clepois, brilhanclo com tocla a for<;a; a lfngua hesita c embara<;<1-se, reticen­te, possivcl,como um palco de nub causalidade, oscilante c cintilante como a mllsica e os sons que a revclam.

38

Page 32: O terceiro instruído

Conjunto de tremores, marcas essenciais e talvez em segrcclo a vida em que se rcconhece a origem clos seus estremecimentos, regula res no caso do cora~ao, caoticamente en-Micas e complexos pcla cabec;a c sistema nervoso.

TRINADO, MUSICA

Regresscmos a pcquena tlecha difercncial, minllsculo clcsvio, funda­mental, cia l10ssa razao de ser. Dcitar-se sabre 0 lado csquerdo all ciireito, passivo, afasta-nos 111uito clcssa £lecha. A inqllietucle,_1I!JiJ}_~_~!L~!r~p_eE_I2-~~!9_ do centro allsente: lim desvio _.S~E~j_nal}_2_slo _X~129us2:.._I~!:!~Q~_~_._s.~_~~~s como os_canhotos ciormenl no_fundo do leito_de lin) sentido_lllorto, como-

~e f;~I;(fo~~~I~!J_c.!9._ do_.~~}itc; ~~~~sJ~.~§_~·~~~.~ri~!~~~~~"-l;0.i ;'~ga0! ~C~D C?,,~anhoto sc incline ara a direita ,e 0 destro P~ a fim de A. despeltarem assim cia sua quietude ~o seu sono mortal, para aquecerem a sua paralisia. E, fazendo isso, passam pelo centro.li RC.) 0'1)

Aquele que parte de uma margem e a deixa para tras, mas nao a esque­ce para ten tar de novo alcan<;ar a que esta a sua frente e habita-Ia, adopta­-la, transita pdo eixo cle forma que 0 corpo experimenta a abcltura clo torax ou do ventre, no meio cia boca ou entre as 01 has, tuclo isso feito pela Hecha originaria. Esquartejaclo peb sua envergaclura, exposto. Como anseia ao m~_~lno ten-po as cluas_ margens esquercla e direita, cleve atravess~lrscll; cei~~~~l~ ~-J2.~~t~ln-t-~-~1-~i~~_~.i~~~.' __ 9_-~e.~I_:.~~~~lJ?? .~e _P. s~u_ Itlgar naturais~_ ~U2.;~~~_~i!: estren!ecem, fremem, tremem, vacilam, hesitan:,_ duvidam em red~)f de uma ~1(lvicia -·i~;,-q~II~f.~l·:.~·~~!i~i?}~~·_f!~~P~·~:~~!·· .e .. soatlci0 eOlno ul11a corela vibriintc:-- .

A orienta<;ao originaria parte do centro ausente e inencontravel como se ai ganhasse raizes: 0 c1arao que a assinala e a esconcle atraves dos proprios brilhos e oculta<;6es pestaneja pOl' toda a parte COIno um sol fugidio.

Nao nos encontramos no centro e clispOlllo-nos a abancloml-Io. Inclinamo­-nos para a direita, e a esquercla e clai nos quercmos afastar. Teremos realmente mecio,? Nao sabemos flem.l?odemos viver com essa dllvida, nesse ~i;Zo-oune~-;-~--tt;-;=G-ilhao~--qLle~ll-po-cl~;'ia ~onst~~uirasua casa-no meio da

corrente? Nenhuma institui<;ao, nenhUlll sistcma, nenhuma ciencia, nenhuJ ma lingua, nem unl gesto ou pensamento se consolida sobre esse ~ i<­~29-~, que e 0 fundamento liitimo e nao esclarcce nada.

Apenas nos poclemos dirigir para elc, mas no pr6prio momento de 0

alcan<;annos, abandonamo-Io, arrastados pelas flechas que dai partem. Nao sL~xal~1os-.S!~...§~r ap'~J!;!'-? um iI}_-?~~~!l_t_e _infinitesimal. Tempo e lugar cia mais cxtrema atcn<;ao.

Mas podemos regressar. E, peIo meSIllO esfor<;o e no mesillo impulso atraves de identico movimento, clirigimo-nos ate de, mas cm sentido inver­so. E, de novo para ai cmpurracios, podemos ultrapassa-Io no momento de o atingir. Permanecemos assim pOl' Llln tempo muito breve c regressaillos

39

Page 33: O terceiro instruído

logo clepois. Retomamos, em sentido inverso, pelo meSI1lO caminho, atrai­dos pOl' essa ausencia, e indefinidamente concluzidos por ela. Regrcssamos £linda e atravessanlOS sem treguas 0 mesmo rio, ern sentido obliquo, diago­nal ou transversal, em todos os sentidos passive is cia espac;o e do tempo, nessa forma de retorno, cia direita para a esquerda, de frente para tras, de baixo para cima, por baixo, pOI' cima.

Nascem assim 0 ritmo, os equilfbrios, as escaIas, as cantigas de embalar, as lengalengas, as Glnc;oes de jogos, a mllsica, os estribilhos, as melopeias, a dois tempos e a dois pes, a quatro pes ou a tres tempos, breves, longas, novamente breves, rimas femininas, rimas masculinas, ligadas ou altcrna­clas, a danc;a, a valsa, 0 par eo Impar, as jogos de vertigem, a recle atirada ao mar no balanc;o clas ondas e turbulencias, as orac;oes e os ritos, 0 sino que toea regularmente, toclas as vibrac;6es antes cia propria lingua, todos os movimentos que passJm e voltam a passar pelo centro ausente em que nunca ninguem se pode deter, entre 0 naela e 0 ser, polo ou fundamento ultimo que nao suporta nacia que se afaste de si, e eis como a experiencia, a existencia e 0 extase se exprimem por essa nleSI11a palavra de exposic;ao ~iciOaf~1e;.}~ a -~q~l·ivalencia~mb~ia·gu~z, arreb~ltaI1lento, coroanclO a perturbac;ao 'gerilinada do al~l.

Tudo cleriva do terceiro lugar no duplo senticlo.

DAN<;;:A: MINUETE DO TERCEIRO LUGAR

Os homens e as mulheres danc;am juntos e de rostos encostados, mas a respectiva linha descai ligeiramente, de mane ira que cada mulher se situ a diante do espac;o vazio entre dois homens e apenas 0 ve a ele, enquanto Glcia homem se revela s6 por si entre duas mulheres. Qualquer Illulher pretende preselvar esse espac;;a abello, enquanto os homens falam do seu amor na allsencia das 111l1lheres, 1113S por elas sempre influenciados. E assim cada um cleles se encontra sozinho na Slla calma suficiencia e infeliciclaclc.

Entao, cansaclo de sofrer, caela um cleles abre as brac;os, como dantes faziam os suplicantes, e qualquer mao encontra lima a sua esquercb e outra a sua clireita: e uma especie de cacleia cruzacla e alternacla que assim se forma. Cacla um mantem uma relac;ao amorosa com os dois correspon­dentes que limitam 0 intervalo que entende como parte do seu dcstino, mas como os outros dais tambem revelam um~l relat;ao com clu<ls sombras que, de frente, enquadram 0 seu espa<;,'o, nenhUln cleles ve nem fala a ningllem e, portanto, ningllcm Ihe rcsponde: essa cadcia de suplicac;6es produz um crescimento cia necessidade de suplicar. Uma dllpla barreira. E _~clai dcrivam as figuras cia clan\,<l, pOl' estac;6es e passagens, e as suas infinitas substituic;6es.

Malha elementar ou tr3ma de relac;oes humanas reais, nllnca em linha recta mas feita de mil arabescos, presilhas, argolas all helices nos quartos

40

Page 34: O terceiro instruído

b

ou nas salas, sobre as cadeiras, essa cadeia em quinconcio assemelha-se a uma abertura musical onele as notas tomariam quase 0 mesmo lugar para se podcrem escutar de forma familiar como um ritnlo regular, sarabancia, tango, «be-bop», miouete; emaml cia linha, prossegue clescic que 0 nosso munclo e nlUndo, esse rumor mon6tono que caota 0 inclcfiniclo mal do amor.

Figura central da dan<;a. A terceira filosofia gosta clos COI-pOS que se confundcm. Post coitum omne animal triste; com efeito, isto define muito bem 0 animal - aqucle que se entristece depois do coito.

Portanto, ciepois clo caito, 0 hOillem e que rio

MAGNIFICENCIA

Recoohes;o em mim um ser tranquilo e est{lvel, nllcleo denso que nao se mexe, como se assemelhasse ao meu centro cle gravidacle ou af se concentrasse. Decerto como sujeito pOI'que nada desliza debaixo dele, posta e deposto mais em baixo. 0 pr6prio corpo deita-se au levanta-se em redor dcssa posi<;ao inclinada, mas quando se levanta lao<;a-sc, salta, cami­nha,Jcorre au nacia, atira a bola ou evolui, agarra lUll objecto ou olha, viaja ou presta aten<;ao, conhece, inventa, regressa ainda na sua rcla<;ao com esse ponto.

Mas quem sou eu, antes de mais? Esta pcclI'a negra. Peso resultantc e marcado pelos vectores da pregui<;a e clas minhas fraquezas caseiras, que se clirige para 0 centro cia Terra. Embora diversanlente localizaclos, os homens no seu todo somcntc heneficiam de assim cstarelll ai, e isso que revela 0 seu genera ou a sua especie, raiz lmica cia vida e sinal que cia ao homcm 0 nomc de hlUllUS. Esse nllcleo cle gravic1acle dirige-se para a marte, comum, sem dllvida instalada no pr6prio centro.

Cuidaclo! Aten<;ao! Tal acontecimento, esse humor, projecto ou pensa­mento pass3m, exigem, solicitam, e acon~ece clepois uma certa clistancia. Exactamente a distflOcia da sua Ill~trcha: a crian<;a vai procurar a sua sorte no mundo, lan<;a lUll pe em relas;ao a outro ja dado, consolidado, como raiz dirigida para 0 centro da Terra, embora abranja apenas uma certa localidade.

POI' um clesequilibrio sem preocupa<;ao nem seguran<;a, com uma ~ incoativa inquietude, risonha e arriscada, 0 ser acaba de abandonar esse centro. Expbe-s~. Deixa de se sentiI' enfraqueciclo e- eleva-se. ~_~7i~lita. __ ~ .~!}}\~._g..?._~us ramQ~. Salta. Abanclona 0 est{lvel e afasta-se. <;~_I.n~iQb_~I,_t;QJr~:. Deixa 0 rio e "aven~ura-se. Nada. Larga 0 que e habitual para tentar outra coisa. Evolui. D~l-se. Of~_LCC.e.:, Ama. Passa a bola. EsqlJ_~C~_._~L.sua_pmpffil t~r_~'~IL aV!lnt;;:~.,_ vh~t'l-,_ vagabundeia, conhecc, observa. inventa, pensa: Nao

41

INSTITUTO DE PSICOlOGIA -BlBLlOTECI~

UFRGS

Page 35: O terceiro instruído

I ,I

I: I'

"

rcpete nacla. PcnsQ Oll <lmo, pais, 0 que naa SOLI; pcnso all amo, pais, 0 que naa me pertencc; pcnso Oll a1110, pais, 0 que j<l nao est<'i ali. Cansei­-me de scr aqueie que era.

Medimos 0 passo do pe esqllcrclo ao direito, a altura cia tadio, 0 des­nivelaclo cia con-ida, a largucza de vistas, 0 volllllle de conhecimcntos, 0

~pa\o tl~~~~~1<iQJ2_~J.<~_<;_r!:.~_I}_~i!1, 0 mapa do clcserto pcrcorriclo. E cssa distan­cia que separa 0 animal cia arvore e a arvore cia areal estavel. 0 ser enrafza­-se clesdc esse lugar para 0 centro ('olllum clo muncio e pesa mais a partir dessc cixo, como se Fosse lim vegetal. Alargar a clistftncia para esse equi­libria imovel projccta lim segundo ponto Oll lugar que precisa de estar bem exposto: lim distanciamento que inventa lim espac;o entre a posic;ao e a exposi~'ao. Mas <1 distancia e a separac;ao n:1O se referem jfl ao centro da Terra nem a comunidade da invariancia e do peso,

Quem sou eu? Em primeiro lugar, essa inextirpavel posic;ao estavel. Arvore ou vegetal, Wll legume qu<ilquer. Mas depois quem S()ll ell? Nao estou ai, nao sou eu, exponho-me, sou. rc~limente cssa rr6pria -cxp~siC;£lo, ~ ~stou voltado para 0 ~utID, -·~a~ jft pe·l·~ -·~n~·;i~am~nto-,- nl~;s pehlS' e~trc;111-clades, flcxfveis com 0 vento, as ramagens, no alto da mont<lnha, 'no ~~Itf(.-) extremo do munclo para oncle parto, movimcnto animal, rastejamento, voo, corricla, mas SOl.1 tambcm tuclo isso que conhec;o, interrogo ou penso, estatua, cfrculo- o'u 0 outro que eu <11110.

Mas annal ql!em sou eu? 0 con junto de tu(k~ .isso, entre 0 estar ai e 0

ponto exposto, entre a posiC;ao clepositacla nesse lugar, tese qllasc semprc mllito escassa, e a cxposic;ao. Portanto, essa clistancia engloba no minima a arvore toda c um espac;o por vczes imenso. Consiclero que e grande essa climensao: a alnw.

Jll11gnr--/ical anima mea: literalmente, essa grandeza procluz, constr6i, faz a minha alma, Sempre proporcional a exposic;ao. As grandes almas cxpoem-se bastante, mas muito pOll co as pusiWnimcs. A alegria domina-as e absorve-as, como as pode aprofunclar a miseria e a dor.

Chamamos magnificencia ao trabalho. na abertura dessa distancia, com uma dimcnsao Oll volume mediocre au amplo, entre os dois palos cia posic;;ao, liln ponto baixo e estave! do proprio lugar ou £Ii posto, deposto, de um laclo, e um ponto alto, nao-Iugar au aprofunclamento da alma, risco e libertac;ao, explosao. Nada pode ser animal ou animaclo sem esses dois POtHOS, nao ser humano, mesmo mcsquinho, sem percorrer esse intervalo. A morte £lcaba pOl' regressar ai, la em baixo.

Descrevcndo cle forma exacta a constnl~;}o cia alma, no proprio momen­to em que ela se fortna, par clilata~ao ou trabalho no lItera cle um novo espa~o sob a forc;a cle um ser vivo equivalentc ao verbo, 0 salmo nomeia esses dois pontos: a humildacle servil, na parte baixa, cvocando assim 0

hllI1ll1S, portanto, 0 homem ao mesmo tempo que a terra, e para 0 Mais

42

Page 36: O terceiro instruído

r Alto a santidaclc de Deus. N~10 e de t~lcto ll1uito razoavel clcsignar como Delis 0 conjunto infinito de loci os os pontos de cxposit;ao. Em contrapar­tida, provoca em mim grandes coisas: fecil mihi magna ... palavras que repctem 0 magnijica! como identica, mas invertcndo a sua ordem. DeLIS

magnifica a minha alma; a minha alm~l magnifica DeLIS; Oll scja, a distancia entre nada e tudo, a grandeza bz Dells c a minha alm<1.

ALEGRIA, DILATA<;:Ao, CRIA<;:Ao

Dcntro c1csta escala, de pe, a humilclacle servil avalia pOl' dll~IS vezcs 0 volume em formac;,:ao: de baixo, pela sua alegria, exultac;,:ao, exaltac:;ao, names verticais cia exposi~ao; clo alto, pelo olhar que 0 proprio Deus lhc hllwa, para tras, sabre a sua hU1l1ildaclc; portanto, a altura e mcclida por ciu<ls vezes, clircctamcntc e ao contdrio. Um resultado quase metrico: 0

espa<;o cia alma ocupa a clistancia, literalmente exaltacla, cia Terra ate Deus. A mais modesta experiencia cia alcgria confirma que a alma precnche

com 0 sell canto a gloria dos d~us ou, com 0 sell vazio, 0 proprio mllnclo. E 0 mesmo se passa com 0 tempo: a beatitude corre de gera<;ao em gcra­<;ao, de modo que a alma bcata habita a omnitude desenrolada pelo eSIXl\'O e pela historia.

Acompanhada da alegria, a experiencia abre esse espa<;o, que vai clai para outro bdo e pode ir da Terra para DeLIS, pela construc;ao Oll ciilata<;ao cia alm~, pelo fechamento ou abertllra de lima passagem, dc um limiar, de uma p rta, de um porto, e por af se pode aceclcr a um desscs lugares exposto·. A experiencia atravessa-os e expoe-se. Entre nacia c tucio, lan<;a um cspa<;o e um tempo, como um bra<;o livre e flutuante. 0 extase exprime o fim clessa viagem, uma fixa<;ao, temporariamente estavel, ou antes lim distanciamento do equilfbrio em redor desse ponto cxposto, na sua vizi­nhanc;'-l, C0111 0 diferencial do tempo.

II' Programado, 0 instinto animal fecha-se sobre si, situa-se. 0 animal e af um ser e, exponclo-se atraves da experiencia, 0 homem entra I1Q telUj20--L t~g_lli!rte ciele. Nao ha __ nada de_ hUlllano- SenL;:l expcl·iencia. - (f Designamos pOl' alma a varicdade de espac;o e de tempo dilatavcl cia sua pr6pria posir;ao em todas as exposi<;oes. Assim 0 t6rax, 0 lltero, a boca, o estomago, 0 sexo c 0 corac;;ao dilatam-se e enchell1-se de vento, vicia, vinho, canr;6es, bens, prazercs, do outro all do rcconhecimento - cia fome, secie, miseria e tambem de rcssentimento. A sua ciimensao alarga-sc por entre a alegria c os desgostos. Estamos Iigados pOI' tecidos c1asticos.--. ',-< i r_ '-' (.

o :crescimento £lbre no corpo llln tcrceiro -CUg;lf -para 0 -6rcc;ldl~~r -c~;-;n Olltros. Torna-se maior. I(

Alegria. Instalado no valc, habita ainda 0 clime cia lllontanha que na liitima semana tinha cscalado, clilato-me claqui para cima, sim, daqui de baixo para 0 Mais Alto; a minha alma, humilcie, asseclia, com a variar;ao de

43

Page 37: O terceiro instruído

/. d: { t.:

\':.: . ,

I

)

;

tempo e de espac;o, a cupula do GoOter, 0 Monte Branco e 0 glacial' dos Graneles Mares. Nao, 11aO me lembro elissa, mas a sua magnificencia, que cntrou em mim, af permanecc; foi reaimcnte necessaria que 0 meu carpa crescessc, como QlItrora sc alargaram as ciimensocs clo pico do Everestc. Et exaltauit humiles ..

Assim, ergui a minha tenda, depois a minha mais fragi! juventude entre as idcalidacles matematicas, 1;1 no alto, c as longitudes distantcs, para hI das agu3s. Erro pelo munelo e pel os olltros muoelos, nllm3 oLisacia abstraq'ao, ~IS paisagcns, as culturas e as Hngu<ls, as castas socia is, e assim a minha alma se expoc pelos conhccimentos, como se arriscou e ainda continua sabre 0 deslizar clos glaciarcs. Abrir a porta, vislumbrar a parecie, e no limite disso expor-se a morte. Uma vida de experiencias condiciona a passagem, breve au longa, esteril ou frutllos~l, do nada para a marte, transitanclo pela alegria, indefinidamente dilatacla.

Nada de--1~.~I!!~~.Q?_~xis~~. s~m a e_~p_~l~~ench~, sen1 essa exposi(ao que se avaO(<l ate a explosao, nada de h-lunano pode haver sem essas dilatac;;:oes.

I; E de SLlbito, bem no centro do corpo, elas se enchem com um terceiro, que sou ell sem ser eu. E, e£.!~~cimento.z.-9- cu define-se. 1

As gr;:tnclezas sociais, falsas, aniquilam essa distancia: soberhas, ricas e poderosas colocam-se pOl' si nos scus pr6prios lugares, nas sllas cacleiras, com os scus bens, ° seu podcr, a slla gl6ria e, afastanclo-as sllcessivamente desses lligares, dispersos, esvaziados das sllas riquezas e do seu poder, que foi substituldo, assim Deus realmcl1te as cngrandece ou as magnifica ... deposltil potentes de sede .. " et divites dimisi! inanes.". E 56 enta~, recupcrada a distflncia e voltando a scr grandes, pcb dispersao ou peb inanidade, grandes pot"que al c1epositacl;ls, e quc existem as tres vercladeiras mediclas ele granciez,l c de volume. Expcrimentanclo a fotne dentro de mim, no est6mago, no Lltero e no corac;;:ao (re-cordatlts mi.\·eri-cordiae, eis ainda aqui uma clistancia calculacla), no espac;;:o imenso cia minha alma exposta, recebo com humildade, no ponto mais baixo e terreno, as bens cintilantcs vinelos do ~lltO, nao do Jugar clc Deus, quc precnchem ate <10 clll1ll1Io ... esurientes implevil honis ... essa magnifica clistflncia que sc cha~"h- ..-J:-«)V'\ ,,-

o salmo cia Virgem inventa <l alm~l c.C?}gg, !11edid.~1, em granclez<l e volu­me, clcss<l clilatac;;:£lo. Ontological~i";;-i1ie-,:';l-aIina -e gr~incle; a grandeza produ­-la, metricamcnte. A alma e alegria no plano psicol6gico. Eticamente, e a contraq;ao, mas ao inves 0 rebaixamento destr6i-a: pecaclo 1110rtal dc pe­quenez e pusilanimidadc.

Sem conhecer 0 sentido Oll a dirccc;;:8.o, a nossa errfl11cia vai do ser para a exposi(ao, cia humildadc, vercladeira csscncia do humano, para 0 nao­-lugar ausente e distante, a nossa slljei\,~10, e esse lllovimento cria uma distflI1cia dc exalt;:lC;£lo, a nossa grancleza e ° nosso scr, lima distftncia vazia au plena, miser{lvcl c radiosa. A miseria c a alegda jllntas precnchem a experiencia fundamental que poclemos tCl" do ser, cia vida, clo mundo, dos outros e do pensamcnto.

44

Page 38: O terceiro instruído

r

1

Refere-se pOlleD a lim iugar sujeito, mas sobretudo a esse espa~o cujo sujeito, humilcle, nao constitui senao 0 labia au 0 bordo inferiores e cujo segundo lugar, exposto, define a Dutra cxtrcmidacle: exactamente, 0 bordo do Dutro. Assim a minha alma, em terceira lugar, equivale a essa grandcza que limita em baixo 0 eu terreno que the e proprio e, no alto, lIma

multiclao de DutfOS de taclas as orclens. Nesses altos lugarcs, expostos, sem os quais nao 5011105 nada - um eu

scm alcgria - habita Deus em si meslllo, como nomea<;ao omnivaiente, universal, integral, 50m3 clas vcrs6es indefiniclas que se nomeiam, pOl' sua vez, como a cllpula clo GOlller, certa idealidade, Oll acroporto no Hm do munclo, 0 outro que ell a1110 e que me a111a, 0 muncio cuja beleza me maravilha e ao qual me entrego, 0 objccto que observo e me enche de informas;3.o, 0 pensamento que desenvolvo e a lingua gem que cintHa sobre mim, a multidao suave dagueles em redor de qllem gravito, tu, vos, estra­nhos ou familiares, portanto, 0 homcm nao existe sem Deus, sem essa funs;ao-Deus, sem a criaS;ao e a experiencia desse abismo exposto de que nao sou senao a margem mais baixa, ll1n labia local e terroso, sem esse espa(;;o alto e grande, dilatavcl, que experimento aqui e agora no mcu torax, no meu coral);'3.o, no meu estol11ago, no meu litera, na minha alma, sem essa abertura para a S0111a da alteridadc.

{

0 eSlxtl);'o dilatado pcla aprendizagem, 0 outro 0 preenche com um terceiro ser, eu e nao-eu, com quem um dia me naa deitarei.

¥ No sujeito, como primeira pessoa, os outros engenclram uma terceira pessoa, finalmente bem educada.

/v/anhii. Trevas. Silencio. Despertar. Pequenos gestos j{l vivos. Ei-lo que est{l pronto, com nova for<;;·,l. Alllortccida, a bomba. Oferecida, a alegria. Que fazer? Sim, empreender e c1ecerto em grande. Partir para aiem dos mares, construir, descobrir. .. 0 entusiasillo provoca, ao despertar, 0 regres­so ao mundo, ele e eu regressados a propria manha da crial);'ao, Omnipo­tcncia: tudo se torna possIvel. Magnificencia: essa forl);'a tcnde para a grancleza,

Qual? Onde, como e porque? Entao, no momenta de decidir, na lelll­branl);'a da propria historia, que nao model a grandes coisas senao atraves clos mortos, desde as pes ate aos olhos e de um a outro ombro, 0 meu corpo, fcito por ela, chora essa grandeza. Presentc en1 si mesmo, eviclentc, avassalador, inaplicado.

Nacla 0 forma, nacla 0 ciemonstra, nada de social nem de historico, excepto atraves dos crimes e clas falsidades; nem a vito ria que eSlllaga mil vencidos, nem a excclencia que depoe a coorte dos meclIocres.

Ora, com a experiencia assegurada, desde a minha inf5.ncia, violenta, pesada, exigente, cresce e dilata-se em mim essa grandeza. POl'tanto, todos

45 INSTITUTO DE PSICOlrG!!\ - UFRGS'

BIBLIOTECA

Page 39: O terceiro instruído

os elias elesperta lima energia qlle ja desde h5 alguns decenios esta prepa­racla para sc precipitar ao primeiro apclo, vigilante atento, selvidor fiel, devotaclo ate mOlTer, mas apenas a ela obediente.

Essa omnipotcncia matinal livre , essa exigencia imensa, pode esgotar-se numa obra, mas esta apenas raramente alcanr;a a sua graneleza e scm cltlvicla de forma anonima, porque nao se trata de mim, mas do que ela procluz e retirar;:l de mim. Entao, essa forr;a ina plica vel continua intacta, juvenil e fresca ate a velhice. Exactamcnte virginal. E entoa 0 kfagnificat.

Ora, nada pode bzer clessa expericncia uma excepC;;ao. Sem dllvida, ( cada um, pelo menos um dia, sente essa espantosa dilatacao CicL§..Q.!" em

2 vOlume .. , forc;;a.e virt. W.' .. liC.I<l.C.le explosivas, essa brisa Iiberta, essa grancleza a solta, virgem f<iC;;<i 0 que fizer, no infinito lamento de permanecer a sell !ado: .<.1. infiilltfLR9~~s~bi!.idacie de aprencler.

Porque teimar em' ~a~ charllar '~dma ~l essa intensidacle disponivel, mun­do e penS<lmento possiveis no pr6prio centro do corpo, com0 tlln rosacea ou tlIn sol fugiclio?

46

Page 40: O terceiro instruído

r r i_.

(

INSTRUIR

Page 41: O terceiro instruído

, , , ,

L

Dia Noite

Cia ro-escu ro o terceiro lugar

o terceiro homem Instruir ou criar A terceira pessoa A terceira mulher

o terceiro instruido: antepassados o terceiro instruido, de novo: a origem

Come(,:o da cria(,:ao o problema do mal

Guerra par teses o estilista e 0 gramatico

Paz sabre as e,pecies Nupcias da terra com os seus

sucessivos senhores Paz e vida pela inven(,:aa,

Um outro name para 0 terceiro instruida A dupla generica da hist6ria, marte e imortalidade

Page 42: O terceiro instruído

r

Diu. Nem 0 Sol nem a Terra sc sitllal11 no centro clo Mundo. A filosofia glorificoll Olltrora a revolw;ao coperniciana de tel' sacudiclo 0 nosso plane­ta, mas Kepler dcscobriu que 0 movimento geral c10s astros segue 6rbitas em clipse, que sc refcrem, cleccrto, em conjunto, ao cloadar solar de for~a e de luz, mas caela Lim, aWis, num segundo foco de que ninguem nunca f~lla, revcla-se tao eficaz e necessaria como 0 primeiro, LIma especie de segundo sol negro. Au sol branco, brilhante c linico, corresponclem varias focos obscuros que se poclcm rCLlllir Illima especie de zona de forma anelar, exposta, quero clizer colocacla lunge clo Sol.

De resto, nenhu111 clcsses dais p610s sc encontra no mcio. o centro real de cada 6rbita habita exactamentc lim tCfeciro lugar,

justamentc entre os seus dois focos, 0 globo cintilante e 0 ponto obscuro. Nao, nem 0 Sol oem a Terra se encontra1l1. no centro, mas numa terccira zona perdida de que se fala ainda menos do que dos parceiros solares.

De resto, um distanciamento mensuravel separa cia lu? do conhecimen­to um segundo foco escuro, pelo menos tambenl activo, em bora sombrio. Vocabulo de uso corrente, a pesquisa, cuja raiz latina se extrai do cfrculo, tal como a enciclopedia, palavra sabia que Rabelais, douto, recopiou em grego cia anterior, blam ambas da gnosiologia circular, centrada unicamen­te sabre lim distribuidar de Iliz. Falanclo do centro de pesqllisa, a !fngu<l, redunclante, repisa e retarcla, pOl·que existcm, nos nossos sa beres, alguns segunclos focos afastados do primeiro, que cumprem ciclos perfeitos de maneira eXCc2ntrica. Sim, 0 conhecimento fllnciona elipticamente, como Kepler afirmoll antes clo sistema planetario.

49 lNSTITUTO DE PSICOL0GIA - UFRGS

BIBLlOTECA .l .. ______________________________________________ l

Page 43: O terceiro instruído

; !

.. ..

I

I

l

Os fracos e os simples, pobres e iletrados, toch! a multich)o suave t~)o desprezada pel os doutores que a nao consideram ohjecto dos sells pr()­prios cstuelos, os excluielos do saber can6nico regulam-se mllitas vezes pelos pontos negros, sem dlivida porque os nao perturbam nem os inco­modam ou os sustentam tanto C01110 0 sol arrebata os filosofos. Alem elisso, os pr6prios cientist;.Is poderiam reconhecer os mornentos solares do pode­roso conhecimento se n~)o confunclissem as longas horas do sol negro? A vcrdadeira intui\,ao nao se acompanha por uma fraqlleza indispens{lve!? E que Ihe deve cia?

Para a dareza, 0 conhecimento excentra-se, como 0 mundo, mas como de, no seu impulso, revcla a encrgia do seu movimento. Desconhecemos o que nos incita a abanelonar a ignorftncia, motiva~'oes e finalidades, e mais ainda para ondc nos conduz 0 saber. A lnotricicladc encontra-se partilhacla entre a fonte obstinada de luz e um segundo ponto obscuro. 0 nao-saber limita 0 proprio s,lber e confuncle-sc com de. Una, englohanclo 0 munclo c os proprios homcns, a pesquisa gira, segundo os seus objectivos, em redor de 1I1ll centro igualmentc distante desse elois focos.

Medir a distancia constante clesses dois p6Ios, calcular 0 que a cstreb tlamejante cleve ao ponto cego c este ~\ primeira, procurar as razc>es de uma tal distancia, avaliar a produlividade da zona obsclira e mesmo a fecund i­clade clesse cluplo (' nao j{\ simples comanclo ou regula~J\o atractiva - que percleria uma sem a outra? -, eis 0 programa cia Tcrceira InstrlJ(;aO, scgun­cia a lei cle Kepler.

Que clizer dos novos centros? Chamava-sc outrora centOll a tlln poema cujos versos au fragmentos de versos eram claramcnte extraklos de varios autores. Par extens~)o, deverfamos clesignar assim qualqller especie de obra, lited.ria, historica, musical ou teorica cdada a partir de fragmentos e peda­\,os retirados de outras. Transcrevam urn modelo qualqucr e logo que plagiam, mas se se copiar um cento, depressa se e considerado como doutor. Exemplo: 0 C'studo clas raizes greco-Iatinas cia palavra centro rcduz­-se a um centao, palavra pouco utilizacla, na verdade, enquanto a miscela­nea que a descreve se apresenta com frequencia.

A lingua latina, pois, conhecia ja a palavra e a coisa, t~\zia j{1 parte elessa.s trapalhaclas, tambem chamadas satiras, de onde se observa como a preglli­\·a nao tern idaclc. Mas antes de se elesignar essa tal mistura de fragmentos cscolhiclos, para recitar, cantar ou citar, chamava-se cell to a urn pano re­menclado, a um retalho de teciclo de varias cores, que depressa sc tornou no manto cle Arlequim, comecliante situaclo no centro do palco e deste livro.

A palavra francesa de que lamento 0 apagamento entre a abllnclfincia cle objectos que deveria designar, como 0 seu equivalentc latino, remete para o grego kf!lltnJll, que tracluz exactamente cellto e 0 centao, poema kito a

50

Page 44: O terceiro instruído

,

partir de fragmcntos cxtraiclos de varias Fontes e 0 manto rcmenclaclo, representanclo um c1eles 0 pard cia imagcm do olltro. Mas, em primciro lugar, kenfran c1esigna 0 aguilhao com que 0 Glmpones incitava, ainda h::i POllCO tempo, os bois para pllxarem a charru<l, a anna no ventre cia abelha au nas costas do escorpiao, mas tambem lim chicotc cravada de pregos, que servia como instru1l1cnto de suplicio.

Ora, a mesma palavra designa 0 utensflio cia punic:;ao e aqllcle que a sofre Oll a 1l1crCCC, a sua vitim<l. 0 centro, pOltanto, acaba pOl' indicar 0 miseravei, conclcnaclo a malls tratas au aD aguilho.o m01tal c colocado assim no sell pr6prio lugaL Kcnlr6n tracluz enta.o 0 centro do cfrculo, 0 ponto aguclo, a singuiaricJacle, tudo no sell meio exacto. 0 iugar cetto sabre 0 palco em que Ariequim se c1cspiu. E j;i nem recorda qual a aldcia da minha intanci~l em que se designava par esse nome a prac;;a principal: a prac;;a dos Ccntoes.

Sozinha, scm esfol"<;o, a lingua fala atravcs de varias vozes e narra sem contar comigo a desfolhagem do preludio. Eis aqlli 0 Inanto, centao rcmen­dado, e depois 0 relata simplesmente acrescentado e composito do cair clas succssivas p;utes clo manto ou clas paginas que descrevem 0 acto cle se despir, com 0 Imperaelor ela Lua no centro, tornado motivo cie risota do publico e logo elepois a sua cabq;a de turco, par entre grac;;olas c ,lssobios, mas, finalmente, 0 Arlequim coloca-se bem no seu proprio centro, com toelos os pecla<;os das suas roupas, au debaixo de tudo 0 que traz par baixo: ou seja, ele e um e v{lrios ao mesmo tempo.

Afirma-se como a ponto central em que se coloca, num todo matizado, como ponto de intersecc;;ao inclivisfvel, das direC\_'oes e dos muncios em redor. 0 manto clesse p,IVaO vaidoso cintila aos 01 has claqueles que 0

olham, por entre olhares azuis e negros, olhadelas verdes e cor de avela. A palavra centro representa nele ao me sma tempo 0 ll111 e 0 mllitiplo, 11111

pelo senticlo espacial evidenciado, como intersec<;<.lo, C 0 outro, como reu­niao, at raves de raizes lingulsticas oCliltas, mas ambos, finalmente, em planas geornetricos.

Segundo a hist6ria clas ciencias, a lfngua descreve que 0 centro do circulo ou que 0 centro em geral, essa idealidacle pum, longe de ciesignar, ~l partida, o Jugar calma em que se debate uma cetta igualclade democratica serena, descreve 0 rasto deixado pelo aguilhao, a estimllla<;ao sob um estilo clistinto, mas tambem 0 prego e 0 chicote do supliciaelo, 0 lug,lr de sllpifcio e 0 Jugar do rei ridicularizado: a geomctria aparecc em (Iltimo lugar, trazenclo aU'as de si esse passaclo, como a caucla negra de um cometa atras do centro que brilha. E brota dai um qualquer Sao Sebastiao atravcssado de flechas, traspassado, flagelado, escondido ou sob a transparcncia clesse puro conceito de centro, cuja limpidez esconde, melhor do que urn ecra, esses residuos de alta forma­C;;ao arcaica. A hist6ria clas ciencias cia assim origem a lima antropologia da geomctria, que esta puramente esquece.

Aparece 0 segundo sol negro, afastado do que cintila, mas 0 nosso desvanecimento especulativo oculta-o perante 0 centro dessc circulo. Existc

51

Page 45: O terceiro instruído

,:

I I'

I ,

! "

algum<l sombra na proximidade dcssa Iuz e da propria clor em rcl~l\'a() a estc conceito tranquilo.

No centro dcsliza 0 centao: cheio de pe<;as, composto de peda\'os. Dentro dessa singularidadc a distancia pontuai e qU<Ise auscnte, 0 Illundo inteiro concentra-sc e reencontra-se, muitas vezes justapoe-se ou a1 chega mesmo ~l mergulhar.

No centro desliza 0 sujeito, definido pebs suas pr6prias pe<;as, receptor de informa<;ao c de dol'.

Cria<;ao, instru<;ao, educa\ao formam esse sujeito central, ~l imagem do centro do mundo, Brilhante c sombrio, 0 mundo converge para ele.

Noire. A imagistica astronomica, cujos bstos cOl"rem de Phltao ate Kant e mais alem, para canonizar as rela~'oes do saber e cia luz, do mundo e do sujcito, raramente tem em contI que os obselvaclores, scnelo noctftmbulos, trabalham quase sempre de noite.

Nao apenas 0 conhecimento se descentra e reclama 0 apoio dos segun­dos s6is negros, mas do proprio centro, meio lugar qU<lse nulo, que de s(lbito se cspalha pelo universo, um meio imenso em que 0 mundo terrcs­tre, solar e phlnet{lrio se reduz a um cantao. No elecurso dessas longas noites sombrias, confundidas, obselvam-se essas luzcs e trevas saidas de milhoes de s6is brilhantes e dos chamados buracos negros.

Canonizado pela esmagadora realeza do dia, 0 nosso saber imp6s incic­vidamente 0 sistema solar local como lei geral. Ora, a tarde nao significa mais do que ° escasso principado de uma noite que esta proxima. Recebc­mos de longe a luz de outros sois, pOl' vezes gig~lI1tescos, mais alimentados ainda de sombra.

Par isso, segundo a rcvollH;ao kepleriana, 0 Sol n;10 abandonou apenas o centro, mas existe111 por at miriades. Auscnte au quasc como primcira figura, 0 centro reprocluz-se c multiplica-se no meio da propria totaliclacle do universo. 0 seu quase-nada espalha-se indcfinidamente. A revolu~~J.o astrofisica ja the percleu a conta.

Existem sujeitos pOI' tada a parte, entre a luz e a somhra.

Traduzidas clo esp<l<;o na clistancia, a nostalgia ou 0 narcisismo, quc se revcstem de um sujeito que esta no centro de tuclo, engcnclram a estranha ideia de que existem dois aspectos analogos desse centro no tempo: 0

comc\-'o e 0 imccliato, scnclo este (iltimo continua mente optimizaclo como o momento cm que melhor sabcmos cbs coisas.

De facto, como e que 0 cspac;o e tambem 0 tempo se cspalhariam atraves de uma infinidade de centros ou instantes capitais? Quantos COI11C­

<;os e fins tem verdacleiramente lugar nesse instante? Sim, 0 que e imecliato COl11cc;a sempre um novo destino, ou se sc quiscr encerra uma fasc ou

52

Page 46: O terceiro instruído

r

..

permanece gentilmente indifercntc. Escolham, pois, entre essas verclades equivalcntes.

Como lim tcrceiro entre dais p6los, brilhante e sombrio, 0 centro, de nenhuma palte passa por toclo 0 bela, espa~o all tCl11PO, C de coisa nenhUlna se torna mliitipio.

Nao fornece apenas a luz, mas tambem a for~a, pela sell papel atractivo. Desde Kepler, caela planeta nao se scote unicamente atraido peIo Sol, mas tambem pelo outro ponto negro. Passamos, pais, a conheccr assim lima Illultiplicidaclc de atractivos de farmas divcrsas que procluzem determina­clas orclens ca6ticas.

A pcsquisa all a enciclopeclia clos conhccimcntos, Olltrora consiclerada fcchacla em si mcsma, segue lima hist6ria equivalentc, torna-se elfptica Oll

com dais foeos atractivos como ja em Auguste Comte, tanto nas ciencias exactas como nas ciencias socia is, na fisica e na socioiogia, antes cle hoje se clispersar e beneficial' tambem ela dc varios centros au atractivos; altera­-se a forma e 0 conceito cia antiga enciclopeclia, nus mesmo assim nao se pocle clesign{l-la por caw.pedia.l

Porern, isto nao significa qlle se abancloncl11 as lcis, mas que a sua previ­sao cles\'a ate lima ccrta imprevisibiliclacle. E isso abrangc tanto as ciencias como as pr6prias coisas, porque ninguel11 sabe nelll pocle prevcr a invcnc;ao clas leis, mesmo se elas perl11anccem como 0 CllIllUlo cia razao e clo cletermi­nismo. Em ambos as casas, no saber c no universo, existc a pr6pria hist6ria e clar cssa mistura de prcvisao e de imprevisibilidacle; mas, inversamente, conceber a hist6ria torna-se de futuxo mais fadl, dado quc nao sc cletem em pattc llcnhuma esse reencontro da razao cleterminacla com 0 caos.

Uma certa clesordclll favorece, pais, a sintese.

CLARO-ESCURO

o sol percle 0 seu dominic sabre 0 conhecimento: nao e 0 seu (Iltimo fim nem 0 seu primciro come\'o, mas rcdllz-se a um pequeno cone de poeira 1evantada de uma fissura na caixa negra do esp~H;O. 0 sol do meio­-dia produz apenas um c1eslllmbramento obHquo. Nao deixamos de bdo as nossas fraquezas nem as nossas limitac;oes. A luz nao inunda ja a volume, nao ocupa 0 espac;o, nao ocupa toclo 0 seu lugar, como Ulll deus num reino em que nao havera mais nada de novo, Illas chega-nos, como um raio dcsfcriclo entre miriades, atraves de singlliares corcs espectrais. Saida de lllll sol. cada faixa e interrogada, matizada, listrada, zebracla, mas forne­cc algumas informa\'oes diferenciadas. 0 manto de Arlequim. Imperador cia Lua, figura tambelll nessa sabcdoria nocturna.

Sob 0 sol unico e total resplandece a unidade do conhecimento. Com a aurora, a sua luz extingue a l1lultipliciclade indecifravel das diferentcs

53

Page 47: O terceiro instruído

J I

: ',.

.. " " ",

estrelas. De lcste nada de novo. Nada de novo clcscle que esse fogo nos i1umina, clcsde as idacles cle luz; a partir clo Sol grego, 0 Deus unico e a cicncia classica, clescle Pia tao, a sabecloria cle Salomao, Luis () Grande e a Aujkliirung, esse saber diurno sempre perclera tempo. Nenhum c1esses nomes, nenhuma clessas eras consicleradas novas alglllna vez muclou 0 regime, sempre 0 mesmo, cia propria luz, lmica e intemporal.

Eis ai 0 que existe cle novo. Nao ja ingenuamente oposto ao clia, como a ignodncia em rcl~H~·ao ao conhecimento - que bela oportuniclaele para 0

ritma nictemeral quanta a csses simples e accrrimos defensores do erro e cia verclacle, cia ciencia e elos sonhos, clo obscurantismo e clo progresso! -, mas enxameacla cle cores e ele negro, a noite revela a soma clos proprios elias cia conhecer. Assim, arlequinada e crom::itica, a terce ira instruc;ao, como as ante­riores, eleriva clos noctftmbulos e observaclores clo esparo que confundem 0

elia com a noite, e esta integra, por sua vez, oS elias clas galflxias nas noites cheias cle huracos negros e essa mistura provoca assim uma tcrceira luz.

Deixamos ele parte 0 Bem platonico, 0 seculo (las luzes, a vit6ria exclusiva cia ciencia classica, a historia unitaria clos nossos pais. Mas nunca as religi­oes triunfantes, as politicas gloriosas, a ciencia que se julg~lva no seu ,-Ipogeu apenas quanclo mal comerava, a historia scm t~dsifica~,-Io, toleraram as im,-lgens de uma tal discri~ao ou moclcra\'ao, nem a confusao de oncle nasce 0 tempo.

Eis-nos chegados, pois, a iclacle clos claroes. 0 conhecimento ilumina esse lugar. Tremulo. Coloficla. FrfIgil. Confuso. Inst{lvcl. Circullstancial. Penumbroso. Embara\'aclo. No raio ele cbriclacle, matizaclo, chcio ele poeira, dan~am as atomos. 0 rei Sol ve OS seus loiros cobertos de po. Longe de iluminar a universal, pestaneja sob 0 nll111erO cia pulveriza~~10. Eis af a iclaele clos brilhos e das proprias ocultac;oes, ~I iclade cia cintilac;ao. Mas, em vez cia luz, n,lo se dcvera antes preferir 0 cromatismo a unielacle, a vcloci­elade ~I clarielacle!

Porem, uma vez mais se pergunta de onele vem, pois, cssa sombra necessaria t,IO confunclida com a luz e a instfu<,;-ao elo terceiro?

Oa clor, como aquela que esconelia 0 centro?

o TERCEIRO LUGAR

Caela e!ipse revela um centro e clois focos: cis .ai um terceiro, lim con­junto de tres. Mas porquc chamar-Ihe tcrceiro? Um terceiro lugar, um tcrceiro homem, a terce ira pcssoa!

Como terceiro no meio dos outros, pode revelar-se lima posi(~IO delicaela c <lmiJigua, se acaso na~ for - ou por vezes e - muito limitaelo. Portaclor, par exemplo, de boas ou de m{1S noticias, interpreta, aproveita, por vczes imen­s<lmente, cle lima sitlla~~10 qlle, com frequencia, se volta tambem contra de, e

54

Page 48: O terceiro instruído

r ,I

.!.

pode assim expuls,-l-lo de forma impieclosa, exclui-Io dar C01110 parasita. Mas, sendo parasita Oll mensageiro, ll1uito hem all mal colocado, 0 terceiro sofre, all abusa, no meio dos outros dais. Expulso por muito interferif, interceptar, se intcressa/' AqueJe que se agarra muito ao lugar, acaba por percle-Ia. Entre duas pessoas que se contraclizem, e rcalmente necessaria que LIma cliga a verda­de e a autra minta: nao existe lim terceiro possfvel e, por isso, cliz-se que 0 Ter­ceiro est~l excluido, all melhor ainda, que 0 meio-termo nao existe. Sera verda­de? Atentanclo na palavra meio, a lingua francesa define-a como um ponto au um fio quasc ausentc, como um plano au lima varicclade sem espcssura neln qual­quer dimensao, e de repente entende-se como a totalidade do volume em que vivemos: 0 nosso meio ambiente*. Nova mudanr;;a, do n1eio lugar, pequena lo­calidade excluida, na~ limitada, pronta a desvanecer-se, para 0 meio, enqllanto um universo a nossa volta.\

Aquele que nao tinha lugar, ocupa-o todo. I

Como uma corda vibrante que soa, 0 terceiro nao deixa de oscilar - e cintilar - entre as boas e as mas noticias, a atcnr;;ao c 0 desprezo, a indiferen~a e 0 interesse, a informar;;ao e a dor, a morte e a vida, 0

nascimento e a expulsao, 0 tudo e 0 nada, 0 zero e 0 infinito, a ponto de que nunca se fala, entre os do is focos, solar e negro, e 0 universo que em redor se espalha. No seculo \' antes de Cristo, alguns s{lbios gregos anoni­mos ciescobriram, em geometria, a demonstras;ao a pagogica, ou seja, pelo absurdo. Medindo a diagonal de urn quadrado de um dos lados, concluf­ram que 0 seu compritnento nao podia exprimir-se nem por um nlltllerO par nen1 por um lmpar. F. dessa contradi~ao, portanto, 0 terceiro de via excluir-se. Mas desde logo nao existia a dita diagonal, mas ei-Ia agora, entre aspas, decorando muito justamente 0 meio do quadrado, que ela scpara em dois scm meio impondo-se a propria intui~ao. Assim eia existe, mas e inefavel. Diziall1-na indizivel, irracional, outra coisa. Ora, uma indemonstravel multiplicidade desses outros de sllbito apareceu nos nllI11e­IUS enos gnl.ficos: a algebra exacta, a verdadeira, a grande matematica acabava de nascer. i

1 Resultou assim do terceiro excluklo e clesta impossivel situar;;ao: nem ele nem 0 seu contra rio; ou seja, ciesta fonte indesejavel, do absllrdo que empurra a diagonal clo quadrado, nem par nem impar, para a ausencia de meio entre as ciuas impossibiliciades de a dizer. Desde entao, a descoberta cia algebra exacta, funclincio como um gciser essa falha ausente, imp6e a todos os outros nlllneros conhecidos, pelo menos nesse tempo, que se recluzan1 a certos casas limites dessa nova forma, meio absurclo a principio, portanto nulo, e em seguida invasor, mcio quase total. Mas nao se reco­nhecera clesde logo em todo 0 lado que esse terceiro seja aceite sem

* Jogode palavras intraduzlvel coma palavra «milieu» subdividindo-a «mi-lieu» (meio lugar}e apontando as suas conotar;ocs (meio. meioambeiente, etc). (N. £.)

55 INSTITUTO DE PSICOLOGII\ !lFRGS"

BIBLlOTcC;;'

Page 49: O terceiro instruído

I: f. !

j, c: (', 'I

t: '," , "

nenhum<-t exclusao. N~lO representava nada e torna-se tuclo - ou quase. Mas absurdo quer clize1' su1'clo: nao sera esse 0 caos que no Genesis se cliz tel' prececliclo a criac;'ao dcpois de um tal sileneio? il

/' Aquele que se agarr<l Illuito ao lug:.u, acaba pOl' pcrcle-Io, qucm nao ocupava nenhum, ocupa-o todo; 0 nacla pode tornar-se tudo e este pocle lnergulhar no nada. Lei dc transform<l\'ao com bifurcac;oes imprevisfveis. l

\

o paras/fa segue essa lei, como um animal pequeno que, multiplican­do-se para 111uclar de escaia, produz cpiclemias que levam a morte enor­mes con juntos de animais maiores, mas quc, por isso mesmo, se cxpoc a desaparecer; 1'eprodu-hl 0 proprio Hermes, na sua conduta normal dc inte1'mediario, de quem se espera que transmita as suas mensagens como um viclro transparentc, portanto nulo, mas que t1'ansformc toela <l paisa­gem cultural cm cada informac;ao, contribuindo para quc 0 meio iugar se torne mcio ambiente: besta e deus odiosos e indispensaveis, ao mesmo tempo anjos bons e maus, mediadores, operadorcs chl mudanc;a. Assim expressa, essa mcsma lei, como lic;ao dos livros antigos, oricnta as trans­form<l\'oes reais e cria-as. Mas pocle1'~ ela produzir 0 pr6prio tempo, nao o dos relogios, mas 0 nosso, 0 clas nossas almas, clos nossos conhecimen­tos, 0 clas coisas e ela historia?

, Da historia, pOl' exemplo? Aquelcs que nao pertenciam nem a nobreza ncm ao clero, eram agrupados sob 0 Antigo Regime nUl1la terceira c1asse: o terceiro Estaclo. Nao represcntava nada, nao cst-ava abrangido, efa mes-1110 muitas vezes cxcluiclo, mas qllis tornar-se naigulll<l coisa, COIll 0 Sllces­so que se sabe. '

Hoje, do Illesmo modo, ',Irrast~ldo pelo SCll crescimcnto demografico gigantesco e com 0 risco cconomico de morrer, exige-se que 0 Terceiro Mundo se clesenvolva. Em que se podcra tornar?

, Ora, no saber e na instruc;ao, cxiste t;:unbem lllll tercciro lugar, posic;ao hoje nub cntrc as outras cluas: de um Iaclo, a ciencia exacta, formal, objec­tiva, poclcrosa, e clo outro bclo 0 que se chama a cuitura, moribuncla. E clai a criaC;ao cle um terceiro hamcm, a tCfeciro instruido, que n~10 era nada c hojc assim se rcvela, se torna qualquer c.oisa e cresce. Nasce neste livro em que, como pai, Ihe desejo, uma longa vida. i

Eis um apologo que abrangc os dois lugarcs: sonha alcanc;ar um clia 0

Premia Nobel, em meclicina, economia ou ciencias fisicas? Entao, cleve traba­Iha1' numa boa univcrsiclacle de lfngua ingles:L Mas, para a litcratLlra, com vista a mesma recompcnsa, mais vale escrever e vive1' no Terceiro Mundo. Esta tripla clistfmcia, geogrMica, de fOltuna e de especialiclacle, clcmonstra 0 senti­clo clo clesprezo em que hojc mcrguIhou a estima manifestaela outrora pebs letras: cultur<:ls cia miseria, mise-ria cia cultLira.

Pocleremos retarclar 0 inevitavel eonfronto do Norte, feliz, sabio, afortu­nado, c clo SuI, misedvel pela invenc;ao clcssa cultura terceiro-instruicla? Caminha-se ao mesmo tempo, na esfcra intclectuaI, cia sabecloria para a

56

Page 50: O terceiro instruído

f I

h

justi<;a, e em ll1ah~ria econ6mica a partir cia Terra para assim se protegeI' tambem a paz, n0550 hem supremo.

A epistemologia e a peclagogia rccncontram, como a qU<llqucr hora no centro, a cxclusao, a dol', a violcncia e a pobrez<l, porque 0 problema do mal atravessa todo 0 saber. Eis af a sua sombra.

Como Kepler nos ensinoll, acreditamos que no centro COlll1lll1 do mun­do brilha 0 sol universal clo saber e cia razao, mas que a sombra se ciispersa nos seguodos focos dos V{lriOS planetas; acontcce-Ille hojc pcnsar, peio contra do, que 0 problema clo mal involui para 0 centro COIl1UIl1 de todas as cuituras e que rnil s6is de sabcres clivcrsos cintilam no meio comum clessa dolarosa sombra universal.

Ell safro: diz-se isso por tad a a parte, desde sempre, mas nos pensamos que este cog ito, especialista, apenas diz respeito a raras comunidades.

Portanto, temos de nos instruir como um terceiro lugar entre esses dois focos.

o TERCEIRO HOMEM

A terceira pessoa assedia as nossas palavras e as nossas Iinguas. Dialoga­mos e tagarclamos porque 0 delis Hennes circula de novo entre nos, por­tanto, comunicamos: ell cntendo-me COJlfigo, os olltr()S dirigem-se a nos, 0

tecto lingllfstico da nossa ciependencia abriga a primeira e a seguncla pessoas, entendidas no singular ou no plural. Muito definicla e fechada, embora per­mane<;amos surclos a tuclo 0 que af se passa, essa esfera inclui-se a si mesma e ao outro, excluinclo os terceiros, ausentes, nulos ou ridiculos. /' Durante 0 cli<'lIogo, e/e ou eta, esfe, elas ou e/(!s designam precisamente,

como tercciro, a exclusao ou a exterior do conjllnto fechado cia nossa pOSiC;:IO, a n:lo-depenciencia ~l nossa comuniGI(ao, portanto, um terceiro lugal' mais definido, este, aquela, esse, aquelas au aqueles, sem 0 que, sem o que ou de quem e do que faiamos, com 0 tercciro exclufclo c incluido.

Essas terceiras pessoas gramaticais, ger~tlmente clerivadas de pronomes ou adjectivos demOflsfrativ()s, sao mais exactamente, demoJ1strativamenfe, esses terceiros de que conhecemos ja os precedentes avatares 16gicos, geometricos e socia is. Passamos os brar;;:os pcbs janclas cia clcpenciencia para os mostrar ou para apontar com 0 dedo para 0 exterior. Ij

, Ora, para esses terceiros, de novo, a mesm<l lei de bronze dcscreve uma me sma transfonnac;,·ao: 0 nada pode tornar-se em tllcio, que por sua vez poclc mergulhar no nada/A terce ira pessoa, exclufda, mal colocada no encadcamento do meio lugar, raramcntC' tem a nome de uma pessoa, dado que empresta 0 seu a um demonstrativo, mas pocle tornar-se 0 meio todo c, em particular, do nos, que nos entregamos a linguagem, meio objectivo e intersubjectivo em que mcrgulham desde sempre as proprias lfnguas.

57

Page 51: O terceiro instruído

l

Alem disso, e ainda mais, essa rela~'ao do nacla com 0 ludo libert<1 0 segredo cia nia<;ao, do futuro c do tempo,l,

Do terceiro exclufdo ou da terceira pessoa as figuras j{i nao percorrem assim 0 esp<1\'o lacunar dos excmplos ~ll1teriores, de que se podia conside­rar que se tornavam ao acaso em rubricas divcrsas, mas, pelo contra rio, acabam por preencher e saturar esse universo onto16gico. 00 mesilla modo, ncste livro, 0 retrato clo terceiro instrufdo, eu mesmo como primeira pes­soa, tu ou qualquer outro como segundo, abunda de s(lbito e origina um, dois, dez modelos, tantos as que 0 tercciro quiser.

o cnsino e ,Issim essa sementcira. Portanto, cis al a terceira pessoa quC' se torna a totalidade do colcctivo

social que cnvolve aqucles que fabm; nesse caso, nomeia-se esle ou cada am ou toc/os ou os ou/ros. Ou pregnante ou expulsa. Em segundo lugar, torna-sc 0 conjunto elos objectos ou da objectividade em geed: a nossa volta, sem n6s, 0 {sso, 0 istu ou aquilo que apontan10s a dedo. Em tercciro lugar, 0 munelo como tal ou ffsko, impessoal, exacta111ente clenominado: ele chora, de grita, ele faz cair granizo, de faz nevar; as intcmpcries desig­nam, de novo e em profunclidade, 0 operador temporal. Em quarto lugar, o pr6prio Sec a express;lo francesa de estar, cle existir, traduz palavra par palavra e utiliza justamente a terccira pessoa e 0 seu locativo, 0 dasein ~demao. Finalmente, a moral: ele precisa, um terceiro imperativo t,IO impes­soal como 0 objcctivo ele chora.

A terceira pessoa indexa, pois, 0 ciclo Oll a sfntese do sahel' e dos objectos. Quem podcria lIIll clia ter sonhado com cssa soma? Tel' n;:1 mao os fios ele uma tal totalidade? I

o Terceiro e a sua lci vibrante de exciusao e cle inclusao funclamentam, pois, as ciencias, exactas e humanas, as primeiras que ;:Issentam apenas na clemonstra\"ao rigorosa, fundacla sobre 0 princfpio do tcrceiro exciufclo (vem05 af, sem duvida e pcb prilneira veL, como facilmcnte se passa do clemonstrativo lingufstico, pronome e adjectivo, simples gesto feito com 0 indicaclor ~Ipontaclo para 0 C"xterior, que 0 amea(a ou aclmira - 0 isle Iatino de c1esprezo torna-sc a file de gl6ria -, para a clemonstnl(ao que conciui com rigor, pclo funcionamcnto bem regulado da CXclUS;IO), e as segundas sobre 0 devil' global da exclusao local, que define ou designa, antes dc mais, um cleterminado inclivicluo e cle repente logo a totalidacle da inciusao social; em ambos os casos, trata-sc do mesmo fundamento, que ali{ls se suportam bem um ao outro. Da cxciusao social e humana passa-sc ao terceiro excluido quc, pOl' sua vez, torna rigoros;:1 - mesmo no dupln sentido - a concluta colectiva c 0 conjunto cbs suas consequenci'ls. Final­mente, cis como se c1escobre uma passagem do Noroeste em que sc nascc nos dois scnticlos, oncle os comc<;os de um e cle outro se substituem e se criam um ao outro.

Funcbmentam-se metafisicamente, ligando scmpre a dcmonstra<;ao a ffsica, ciancio ~I Natureza a sua objcctivielade geral, como sc fizcsse funcionar os

58

Page 52: O terceiro instruído

r I

l

fen6mcnos naturais fora cia inten<s'flo cbs pessoas limitadas pelo disclirso e na slIa propria depench~ncia. Fundamentam a ontologia clo proprio SCI', mas ta111-bem 0 tempo e a hist6ri~l, fornccenclo 0 opcraclor cbs transfonna<s'ocs. Final­mente, funclamcntam a moral, clcscobrinclo lima lei de conciuta nao rcfe­renciacla atraves de qualqucr vontacle particular, exterior a esfera da cOl11uni­Glr;ao.

A tcrceira pessoa estabciecc, pais, lima funcla\';10 de todo 0 real exteri­or, cia objcctividacle no sell conjullto, (micu e universal, fora de qualquer slIjeito como primeira Oll scguncla pessoa. Fora de toclo 0 topps, cis <11 a !"aZao clo rcalis1l1o, filosofia incicmonstravcl scm essa terce ira PCSS(U, c agora, gra(<ls a cia, mais do que clClllonstr{l\rcl, dado que se afirma como a origem de tocla a de1110nstra~':IO,

Portanto, e a objcclivo c 0 rim cia filosofia cia c0111unicac;,'ao que a mensagcm cle Hermes prociam<l, como terccira entre a primeira e a segun­cia pessoa, circulanclo entre as suas rela<;6es: neI11 cIa nem 0 seu deus poclem ultrapassar 0 que naa esta neb au nell'.

INSTRUIR OU CRIAR

E claf 0 conhecimento, a experiencia e a instru<;3o, Outrora chamav~l-se pccbgogo ao escravo que concluzia para a escola 0 filho clos nobres. Hennes acompanhava-o tambem pOl' vezes, como gub. A crian~;a abandn­na a casa de familia; s~lfda: segunclo nascimento, Tocla a aprenclizagem exige essa viagcm com 0 outro c com a altericlaclc, mas clurante (ssa passagcm muitas coisas sc alteram.

Amem a lingua que faz a escravo SCI' dono de si 1l1esmo e, portanto, a viagem para a propria cscola, como instru<;ao elessa emigrac;;lo. 0 escra\'() conhece 0 que cst{, fora, a exc!us:lO, 0 que e de cmigrar; mais forte c aclulto, puxa um pouco pcb crianc;a mais preguic;,'osa para uma igualelade temporaria que torne posslvcl a sua cOl11lll1icac;,'ao, Errando pcla noresta, tarnbel11 a Branca ell' Ne\'e cncontrou alguns vcJhos anoes: ~l\'6s pOl' sercm j;:i "ethos, mas ainela cri,-ll1\'as pcln scu corpo, numa quasc-igualclacle que lhe permite permanecer protcgicla e scr protcctora; scmprc crianc;,'J e jJ maclura; mae c ainda ha poueo filila; porlanto, vai renasccr dela, dcles, cia floresta, em si mcsma c de olltro modo, como nlha c m:le de si propria, Nao existe qualquer ensinamento sem esse autocrcscimcnto, Assim, de cillla, a cri;:lI1~'a rica fala com 0 pobrc escravo adulto quc lhe responde do cimo peb sua estatura m~\is clevada; de repente, talvez clescjcm dar as m;:l.os, ao \'ento e ;\ chuva, obrigados a recolher-sc por momcntos sob a ramagem de uma faia em que se abriga lIm;:\ terceira pessoa: cst;:i a I1C\"ar,

faz frio, Scndo oulro e vi\'endo dolorosamentc ;:\ altcridaclc, 0 escr;:t\'o cOl1hcce 0 exterior, vivell scm pre do laclo de fora,

59

Page 53: O terceiro instruído

,

I il Ii

l

Entao, 0 mundo entra no curpo e na alma do rapaz inexpcrientc: 0

tempo impessoal e tambem a cstranheza clo exclufclo, isle, 0 escravo desprc­zaclo, e c1epressa mestre, ille, ainda distante, no terma cia viagcm. Mas antes de chegar, ja nao C 0 l11CSI110, rc-nasce. A prilncira pessoa torna-sc lima terceira antes de franqllcar a porta cia cscola.

A aprenclizagem consistc IlU111;1 tal 111csti<;agcm. Estranho e original, ja misturaclo nos genes de sell pai e de sua mae, a crian<;a apenas evolui atraves clesscs novas cfuzamcntos; tocla a peclagogia rct011l~1 0 gerar c ()

nascimento de lima crians;a: nasciclo canhoto, aprcncle a scrvir-se (b mJo direita, mas permanece canhoto, renasce clcstro, na contluencia clos c10is sentidos; nasciclo gascao, continua assim e torna-se frances, rcalmcntc mesti\'o; como frances, viaja e torna-se espanhol, italiano, ingles au ale­mao; casa-se e aprende a sua cultura e a sua lfngua, ci-Io, enfim, quartcr;)o, octavao, ahll~l e corpo misturaclos. 0 seu espfrito assemelha-se ao manto dcspido do Arlequim.

P~lssa-se exactamente a mesma eoisa para eriar 0 corpo ou para 0 ins­truir. 0 mesti\'o aqui ehama-se terceiro instrufda. Cientifico pOl' natureza. secluziclo pelo meio escolar, entra assim na cultura. A raz~lo comUlll remcte para alguns focos negros, cliferentes, com os seus particularismos cuitur:lis. Mas, par uma cstranha simetria, 0 problema do mal - injusti\'as, sofrimcn­tos, violencia e morte -, culturalmente universal, ocupa tocla a zona do foco cle sombra, cle oncle se aprende a e11earar as razoes clams como certas solu\'oes racionais vari{lveis e isoladas. Porranto, 0 espirito altera a sua varieclacle.

Finalmente, tuclo isso se aplica tambem a concluta e ao saber, atraves cia eclUG1(ao. Sendo ja outro, 0 aco111p~lT1hante avans;a ao encontro de uma segu11da pessoa - experiencia dificil e exigentc, sob a vento C' as cbrc)cs - em que 0 pr6prio a si se gcra, scm abandonar a sua propria pessoJ nem a sua lIniciacie, isto e, lima terceira pessoa.

Par isso, ~lma 0 outro que engcncira em ti 0 espirito.

A TERCElRA PESSOA

Presente par toda a parte cia universo, mas <luscnte a ponto de ninguem ai 0 poder encontrar par muito se esconcler, C01110 tuclo c portanto nada, nada mas tucio, Deus compreencle alias a lei cia inGlrn~l<:;ao que pretenc1c que tuclo, 110 muncio e no tempo cia propria historia, se torne nada, como o hllmilclc filho cle carpinteiro nasciclo num mise ravel estabulo, condcnado ~l morte e crucificado como um escravo, rcencontrando, exponclo, asslimin­do a problema clo mal, quc finalmcnte se torna tuclo, sentado, rcsstlscitJ­do, ~l ciireita de seu Pai, sabenclo ser a seguncla pessoa; a terceira pcssoa. o Espirito, desccncie clas olltras duas.

60

Page 54: O terceiro instruído

f Represcnta-se 0 Pai, omniscicnte, scntaclo no trona do puder e cia glo­

ria, estavel. Como balanc;o, tef:l trabalhado oito elias c descle ent~10 vive no sell eterno repollso. 0 Filho clesce sabre a terra e, £linda mais a baixo, nos Infernos, para enfim ressllscitar e clepois, na sua Ascensao, subir aos CeliS,

anele julgara, no jlli20 final, as vivos c as 11101't05. Do Delis que incarnam, as dais movimentos ciao, C0l110 balao<;:o, lim equilibria: 11aO unicamente estatico, mas compensaclo pela rcclem;ao Oll 0 resgate. lJma scgunda csta­biliclacle: a invariancia pOl' varia\'oes, comprcenclenclo de passagem lima soluc;~lo tr{lgica para 0 problema do mal. Reside £Ii a sombra e a luz, 0 sofrimcnto e a omnisciencia.

Como terceira pcssoa cia Trindade, 0 Espiritu Santo assume a forma cle um p:lssaro, cle uma pomba, por vezes a aparencia de uma lingua de fogo ou de um sopro impetuoso: ele f~tz vento, ele grita, ele desfere raias. Brisa, ruida ou chama, 0 Espirito propaga-se pOl' onde c quando quer, tomba sabre n6s, aqui, acaEt, ainda h:1 pouco ou amanha, cle repente, como as intemperies, a corisco que atravessa 0 ceu ou a chuva, e as seres vol ate is apenas se suportam pelas turbulencias que se formam sob as suas asas. Nem peIo voo nem pelos ventos tumultuosos se cncontram quaisquer tra<;os de equilibrio, de estabiliclacle ou de compensa<;ao. A sementeira clo espirito depencle do calor e do aI', portanto, clo telupo que faz, mesmo ~tleat6rio, e nao do tempo esperado, regular; penetra no munclo em turbi­lhoes. Nacla e tudo; tudo e nacla. Um minu.sculo pecla<;o de lingua no interior de uma sala fechada, toclas as lingua gens do munclo conhecido na pra<;a pllblica, eis ~li de novo a lei vibrante, ~1 de Pentecostes.

Mas nem 0 vento, 0 fogo ou os passaros em voo conhecem descanso. A terceira pessoa descende das outras cluas, cleriva clai apenas em procis­sao, clescrevendo esta liltima palavra um passo em frente, como um pe lavado, que se expoc. 0 Espirito expoe-se fora do Pai e do Filho, sem abanclonar a sua uniclacle. Nenhum texto diz quando essa procissao sc cletem, que p~ISSOS se clevem clar: e dar as figuras da asa e clo voo que, nos tluidos voIateis, jamais encontram apoios definitivos. Como, em clefinitivo, ° esteio cede sempre, e preciso recome<;ar de novo e ~tpoiar-se sobre quem acabara sempre por ceder. Fortanto, 0 Espirito procedc, nitidamcnte falan­clo, abanclona as estabilidades cia hist6ria circular para se aventurar nas movencias inst:tveis clos pr6prios clesvios de equilibrio. E isso que!" dizcr que n;10 cleixa de se expor, que evolui e viaja. E dar a sua excentras;J.o, fora das estabilidades clas cluas primeiras pessoas; dai 0 saber c 0 tempo. Ou mesmo a aprendizagem.

Esse tempo real do vento c clo fogo, dos elementos e do dima, 0 do proprio espirito, cquivale ao cia cria<;jo, cia instru<;"jo, cia inteiigencia ines­peracla e do conselho constante, das transfonna<;oes sem retorno, clas lin­guas e clas ciencias, das viagens, das inven<;oes e das clescobertas, da paz improvavcl para la das vingan<;as, cia prcscri<;jo, clas inevitavcis confusoes, clas alian<;as ... No meio clas dU<ls pcssoas estavcis na sua infinita posi<;ao,

61

Page 55: O terceiro instruído

entre a omnisciencia e a exposi~'ao ao mal - um foco brilhante, tun outro em brasa - inullcla 0 tempo ca6tico clo espirito, a terceira pessoa.

lnvcrsamcnte, 0 tercciro homem que, no periotlo cia aprcnclizagem, nasce em mim e espirito.

o tempo cia hist6ria engloba um tempo circular, ffsico e legal, 0 clo cmprego clos clias clo calenclario atraves clos trabalhos realizados, com 0

tempo erratico e imprevisivcl clo espirito, como propon;ao ou ra2ao irregu­lar na sua soll\C~-,ao. A hist6ria clescencle tamhcm cla do espirito.

o mUllcio cleriva sobretuclo clessas cluas pessoas, ou seja, a criac;ao ohjectiva e a reclenc;ao ou recria~'ao peIo resgate, mas como 0 espirito tamhcm resulta clai, acontece que 0 munclo real e a terccira pessoa, como se viu, ou 0 pr6prio espirito ou 0 espirito C 0 proprio munclo ou tuclo 0

que e objectivo, para que este ultimo possa ser conheciclo, enHm, para que juntos sejam 0 tempo, como coisas hclas que nao apenas eu gostaria de clemonstrar, mas que nascem ao mcsmo tempo como a sua clemonstrac;ao. / Senclo terceira pessoa, 0 conheciclo constr6i-se como sc instrui 0 conhececlor.

A TERCEIRA MULHER

Os s{lbios utilizaram a palavra "fenomellologia n eIll rnedll1ica celeste, em primeiro lugar, para clescrever os movimentos clos planetas, as suas apan~n­cias e a sua raz8.o, clepois na ffsica geral, antes que a filosofi~l dela se servisse para os avatares clo espirito ou reconhecimento cle certas estabili­clacles mergulhadas no meio de voluveis perfis. Tracluzindo vernaculamente esse vocibulo grego e s{lbio, podercmos talvez c1izer: "a aparic;ao fala", frase por vezes balbuciada, sem se saber, pelos cxcentrados do conhecimento. Solar e a primcira expressao, obstinacla a seguncla, com um mesmo sentido. :E esse 0 segundo toco.

Numa gruta sombria de Lourdes, a uma pastora analfabeta, a Virgem Santa apareceu para afinnar a sua concepc;ao imaculacla, como se se tratas­se cia sua propria procissao. Toda a cena e· piedosa e ingenua: Ana, a mae ausente, evocacla; Maria, mha e mac, aparecida, quase presente, fabnte, e a jovem Bernadette, silenciosa, visivel, carnal, ai presente, camponcsa igno­rante, constituiram assim uma nova trinclade feminina, peIo menos inespe­racla numa cultura em que cleuses ou Deus, brilhantes como sois, sc cria­riam ou procederiam ainda no masculino; as mulhcres, finalmente, clescen­clem cle si mesmas.

Ccrtos buracos sombrios na terra c os simples de espirito demarcam uma distfll1cia no saber, na materia cia munclo e na alma clos homens. Sim, o mHo - como dizer? - vivc sempre e num constante afastamcnto em relac;ao a ciencia c mesmo as institllic;oes cia teologia ll1aior de que se dam os racionalistas. Mas os pr6prios sofiSt~IS gregos nao c1esprezaram bastante

62

J

Page 56: O terceiro instruído

o texto da Neplfhlica por causa cia p~lgina em que se evoca 0 mito de Giges, outro pastor em extase numa caverna semelhante? Platao arrogava­-se 0 direito de falar do Sol, para fa cia geometria e da di<lleetica, mas 0 sell texto f~lia tambem do eamponcs lidiano clentro de uma gruta sombria. A sua pedagogia produz clois (oeos OLi consente uma exeentrac;;ao que nos recusamos, mas a verdade e que ele pensou isso antes enos cscrevemos ja depois cia revolu<;ao kepleriana.

Toleramos a antropologia, mas com a concli\:ao de a deixar aos olltros, aos pobres do Terceiro e do Quarto Mundo, aqueles que permaneeem eomo objccto dos nossos saberes.

Sim, em Lourdes e na Jugoslavia hoje, pastores ou cri~ll1c;;as ignorantes blam de apari<;6cs nas suas cavernas, mas dessa fenomenologia n;1O nos atrevemos a (alar. Ora, a palavra erudita e a Frase popular exprimem um<l (mica c mesma eoisa, uma resulta clo foeo solar e a outra do buraco negro, mas, recolhidas, parecem tel' as mesmas aparcneias.

Trata-se de duas locw;;oes, depressa eonsideracias como a mais seciutora e a mais clara.

A procissao masculina do Espirito ateic;oa a cria<;a.o, tal C0l110 a conccp­~'ao feminina, virginal ou imaculacla; trata-se assim de bons modclos antro­pologicos cle instruc;ao e da prociu<,'ao peIo outro em lllim de um tereeiro, seja verbo ou espirito.

Em mim 0 espirito concebe-se virginalmente ou clele procede.

o TERCEIRO INSTRUiDO: ANTEPASSADOS

Tereeiro no espfrito Oll na Hnglla, a propaga<,'ao do saber cientifico na narrativa oll na meditac;ao resulta de uma grande tracli(ao. De Rabelais a Valery, passando por Moliere, Voltaire, dez cscritorcs dominaram quase pOl' completo a cicncia clo seu tcmpo. Ilumina e consolida a sua obra que, por sua vez, tambem a i1umina e fortifiea. As sombras e as fOI\'as resultam em eonjunto clas duas fontes que criam a obra. A linha divisoria que clistingue os CliltOS ignorantes e os instrllidos incliltos, tal como a noite sllcecie ou se justapoc ao dia, apareceu ciesdc ha muito poueo tempo.

o easo mais tacit de uma clistribuic;ao tao compadvel ao cell c1iz respei­to a 1Il11 iclentico corpo; 0 mesmo autor, a mesma invenc;~l.o em dominios que apenas foram separados pela nossa estreiteza. Pascal nao cieixoll ape­nas uma obra e, como amhiclestro Oll como corro adaptado, escreveu com as dU<ls maos Triangle aritmetiqlle e il1emoriaf, Coniqlies e Prouil1ciafes, ROlilelle e Pellsees, que prosscguem todas em conjunto a mcsma busca comUIll, jllstamente a clo centro, inaeessfvel nessc Illunclo infinito, mas que o espac;o sobrenatural faz ~Iparecer. Par isso, Leibniz, Oiderot, Goethe Oll Robert Musil, que apenas com as nossas limita\,oes aprescntamos como

-~~~-I"

':'~:b

Page 57: O terceiro instruído

! ,I

" " ,

,

I

11l0nstfllosas cxcep\-'oes, clcixaram atras de si milhares de textos tercciro­-instrufclos: 0 primciro cstabelece urn mecanismo meta fisico, enquanto 0

segundo narra 0 c1cterminismo a cavala, 0 terceira rala-nos clo a1110r C c1as SU<lS afiniclaclcs, mas utilizanclo sempre a mecanica OLI a geometria das eUpses e ;:I quimica nascentc, enquanto 0 (tltimo preve as probabiliclacles de lima mcteoroiogia cia hist6ria. Trata-sc, pais, de obras como corpus aclapt~lclos.

Como n~10 nos cspantar que cssa paixao cia pedagogia tcoha compreen­dido oS corpas dotados assim clessa completude? Gostam de CritH aquelcs que amaram a slia propria crial),:Jo. Moclclos de moclclos, Platao, Arist6tcles, Montaigne Oll Rabclais espalham a sua cultura conl toclo 0 saber cia epoe;:},

para modelar, no meio dessa clesordem, 0 homen1 que hfl-de chcgar. Scm clllvida, a dupla eclucativa Menon-Socrates, 0 jovem Telcmaco, ° velho Nestor, ignorante e sabedor, constitllerll esse duplo corpo cia instrllc;'ao, mas poclera saber-se porventLlra 0 que 0 segundo deve ao primeiro?

Conhecedor clos saberes traclicionais consolidaclos pelo tempo, 0 velho padre egipcio clo 'fi'meu trata os gregos como crianc;'as, nas quais vislumbra a perpetua juventLlcie das ciencias, como forma met6c1ica dc separar 0 joio clo sell trigo. A peclagogia conhece 0 nllcleo cerraclo clesses dois tempos. No sentido pr6prio do sell caminhar, os velhos clirigcm-se aoS jovens para Ihes transmitir as suas arcaicas humaniciacics, porqlle e prcciclo avanc;ar n~1 idacle para se compreender a sua sabedoria. Mas, no sentido contrario, exactamente clas cri<lIW<ls para as pessoas maduras, cla-se a passagem clas ciencias exactas, Homero rcpresentava 0 patriarca desde 0 ~II vorecer aos tempos aureos do terceiro milenio, enquanto Teeteto, Pascal, Abel ou Evariste Galois, cri~II1\'as inventoras de teoremas, I110rreram ainda na flor cia idade. Os avos de olhos marejaclos passam obstinadamente pelos contel\­dos da cultura, quase sempre obscuros, enquanto rejubilam com 0 aval das nfticlas mensagens vinclas dos jovens de olhos brilhantes. Par isso, ensino interrogativamente as minhas netas lima certa bonomia, cuja grandeza ain­da me domina, mas, em contrapartid~l, elas ensinam-me os mais recentes descnvolvirnentos c conquistas clas ciencias e clas tecnicas. Um saber ama­durecido comporta-se como um bom vioho, enquanto 0 segundo, prin1ave­ril, sem cessar reverdece, Premio Nobel das ciencias juvenis ao lado de patriarcas condecorados pel a literatura,

Dat qlle seja necessario ensinar ao mesmo tempo 0 que se compreencle e 0 que sc nao compreende: no primciro caso, clesaparece a dist,1nci<l\'ao, mas 0 segundo proclu-Ia. 0 obscuro projecta lim tempo que 0 claro ahre­via, mas 0 c1aro-escuro define 0 proprio tempo. Crian~as, apreT1cl<im, pois, com 0 cora\'ao junto de Homcro e La Fontaine, mesmo inaccsstvcis para J

vossa iclacle, porque eles morrerao assim lentamente dentro de v6s, e de outro modo com as matematicas.

Estes dois vectores contrarios do tempo e da inteligencia afastariam para sempre de qualquer ensino as dais corpos clessa duphl, ignorantes lim em

64

Page 58: O terceiro instruído

relas;:ao ao Dutro, cxcepto no pensar au clescnhar 0 turbilhao real clo tempo Oll as tllrbulencias do espirito. 0 que na vida sabe, desce na entropia. No seio clcssa turbulencia, au scja, cia idade adulta, em que 0 tempo se 1110-

vimcnta, sabe, cai e parcce cleter-se ~ dir-se-ia ser lima g,1l5xia -, 0

Terceiro Instruicio projecta 0 tempo ingenuo cia ciencia, antes e depois clas experit~ncias cia cultura, mas anula scm ccssar, para tras, 0 tempo clos curto-circuitos cia distin\3.o cientifica e constitui, para a frente, 0 clemorado tempo cia humaniclacle pcJa lenta cligestao dos contellclos tradicionais. 0 aclulto: 1..1111 jovem-velho compensado pela vantagcm clessas cluas iclaclcs.

Poclercmos, cnfil11, dcfinir a iclade cia razao?

Num Dutro caso intcnneciio, sem cllivida 0 mais frcquente, 0 autor pro­duz com uma mao e apenas se inforrna con1 a outra: Zola fala da familia dos Rougon-Macquart e, t~lzendo isso, dcscrevc a genetica do seu tempo; mas, contra ria mente ao que sc esperaria, inventa vcrdadeiramente as con­dis;oes fisicas em que se colocam os problemas da reproduS;ao. A flalna crguida pelo trovador prolonga os fossos das clareiras. Como romancista, canta ~l gesta de uma tribo c as atrihulas;ocs dos seus membros, mas se­guindo a risca as elementos do genoma, adopta 0 gesto preciso dos sabios que as hao-de descrever.

Se as cspecialidades sc partilham, 0 inventivo pen11anece como indivi­so. Na fornalha de Souleiadc, 0 doutor Pascal, gencticista, avans;a para a termoclinfllnica, sem que Zola abandone 0 romance pOl' um s6 momento. A literatura imp6e a ciencia porque considera que 0 romance se antccipa completamente a ciencia. Eis ai 0 processo de crias;ao, entendido no plano do vivido.

Estc caso normal remete entao para 0 primeiro de Inaneira fulgurante c assim os saberes nunca se dividem como continentes cristalinos, s6lidos fortel11ente dcfinidos, mas como oceanos, viscosos e sempre muito batidos: atravessam-nos dcz correntes quentes ou Frias que af produzem gigantes­cos maelstrums. Nada de hist6ria elas ciencias nem de hist6ria em gemI, nada de instruS;ao possivel, nao hft qualquc;r transformas;ao sem esses flu i­dos turbilhbes.

Com a caneta, a principio, na sua melhor mao, Zola a pouco c pouco aprendc a falar do outro. Atravcssou 0 rio e, sem 0 saber, cria em si um sabio desconhecido.

A situaS;ao mais dificil, no comes;o do caminho, talvez a mais interessante e dificilmente observ{lvel, rara, espantosa, concluz 0 escritor a anteciIXl\'ao. Nao falo dos recentes romances catalogados nessa clesignas;ao e muitas ve­zcs medfocres, mas de sllbitas intuis;oes presentes e escondidas, mesmo per­didas em paginas cuja mensa gem parece falar de Dutro modo, como lagos de premonis;ao, bolsas de ciencia infusa nos estranhos momentos de literatura.

65

Page 59: O terceiro instruído

POI' vezcs, rclata-se, num conto ou apenas num poema, sem isso se saber, diversos saberes. Gostaria de dar a cad a lllll desses textos 0 titulo verdadeiro de obra-prima desconhccida: sobretudo dcsconhecida, porquc algumas ciencias para ai convergem juntas num;} transparencia atraves da qual 0 olhar avanc;a sem vel' naela; tal como as corcs do areo-iris se fundem na limpidcz e1ita branGl da luz diurna, tambem os conhecimentos se funclem numa palavra que se tem como banal. Diderot parece tel' compreendido que bastava nomear como sonhos essas tarefas quando elas se constroem intencionalmente e t~lzen1 despertar lim sabio filosofo, aduito, sob os olhos e a atcnc;ao de um medico filosofo e sabio, igualn1ente homcm feito.

Mas 0 poeta nao alimenta nenhum projecto desse genero, quando a sua volta se adonnece, irritado ou cmbalado pelo ZUll1bido de uma vespa em redor da sua cabec;a. POl' isso, Ie Reve de d'Alemhert, sem dllvida lllll falso sonho, apressado, tra~ado em esbo~o, projecta a extrapolaC;ao a pattiI' clas exactas e reconhecidas Clilvas da verdadeira ciencia do tempo, como faz brilhar as diversas cores que 0 prisma do texto desenvolve, enquanto Verlaine, no soneto intitulado Sage .... ·se, "A esperan~a brilha como lllll fio de palha no estabulo", dcsconhece tudo acerca de um saber futuro, quase adonnecido, de cotovelo sobre a mesa, no calor sufocante dessa hora, durante a sesta meridiana, com os pes mcrgulhados em agua fresca, mas ve ao mesmo tempo tuclo isso como um raio de luz saiclo de um buraco, libertando alguma poeira. Entao, quando chega a tarde e a luz do sol platonico apenas penetra C0111 parcilnonia no gualto, ele descreve, como de noite, 0 rUldo de fundo cia cenestesia, invaclindo 0 ouvido durante 0 sono, e 0 nlido de fundo do mundo semelhan­te ao do COl--pO, voo de vcspas, poeiras que dan~am, fios de palha no estabu-10. 0 que nao e ainda Ulll sonho e se apresta para 0 ser, pennite obsclvar, em claro-cscuro, um caos indetcrminado cuja presen~a constantemente nos acol11-panha, organismo quente e universo ruidoso, COI11 multiplicidacles zumbicloras em que a ciencia como a vida, a lfngua como a poesia, esgotam os seus come~os. Ou seja, a vaga mas rigorosa intui~ao de um saber e de uma epistemologia futuras.

Eis ai os antepassados au as pedagogos, desdc h{l muito tempo ja estabelecidos, do terceiro-instruido.

Eis ai descrita uma segunda cria~ao, que parte de um segunda excentri­cidaele, com outros conteudos de saber, nao resultante ja das ciencias exactas, mas de outras historias e Ifnguas.

o TERCEIRO INSTRUIDO, DE NOVO: A ORIGEM

"Se nao me amas, eu amo-te." Quem nao sa be cantar 0 refrao de Georges Bizet? Toda a gente viu a Carmen, a opera mais representada cia historia. Em contraparticla, quem leu 0 romance de Prosper Merimee? Alias, saber­-se-a realmente como come~a?

66

Page 60: O terceiro instruído

r POI' lllll monumento de crllcli~ao. A linguistica cruza-se af com a geogra­

fia, a hist6ria e a arqucoiogia, c coloca algumas questoes precisas e subtis: quem escreveu, paralela a Guerra das Calias, a Guerra de E'1Junha? Embo­ra scja 0 sell principal actor, diz-se, ](liio Cesar naG C autor. Entao? Foi algum romano, un1 cspanhol? E anele ocorreu, por cxemplo, a batalha decisiva de Monda, em que sc clccidiu 0 fim clas gllcrras civis contra os dais filhos do grande Pompeu? Em Muncla Oll Mantilla? Embora prctensio­sa, a filologia luta com a toponimia cia Andaluzia montanhesa, entre C6rdova e Granada. Para compreenclcr isso, e preciso ter procediclo a ccrtos estu­dos, saber ler os mapas antigos e os Comentarios latinos.

Merimee anuncia al mesmo um artigo eruclito sobre as "Inscri,oes roma­nas cle Baena .. , que aparecera, com efeito, em fa Revue archcofogicjue, dis­tribufda em Junho de 1844. Nada de mais distantc dos amores ciganos e das raparigas que roubam. Sim, Carmen comc<;a na ciencia. As notas em pe de pagina, que tanto desfiguram os livros e as nlllneros ou asteriscos com que os criticos inundam os sells textos, remontam com arrogancia das paginas fin~tis para oncle por vezes as rclegam, ate ao incipif do romance. Uma est lipid a confusao que merece bem pouco a nossa benevolenda.

Eis, pois, 0 bom Mcrimee debru\ado no trabalho entre os seus livfos, comparando textos e mapas, na bibioteca do ciuque de Osuna ou na clos clominicanos de Cordova. E que resta ou vai sail' claf? Encontro de l11ulheres fatais, que cl<ll1,~lIn por dma clas prateieiras au no mcio dos incunabulos?

Existe ja uma moral cla hist6ria? Claro, sera necessario frequentar as bibliotecas e convem segura mente tornar-se delas conhecedor. Estuclem, trabalhem, porque sempre brotara daf alguma coisa. E clepois? Para que exista um depois, qucro dizer algum futuro que ultra passe a copia, devcm abandonar a biblioteca para tomarem ar; se pennanecerem ta dentro, ape­nas conseguirao fazer livros a partir de outros livros. Esse saber, excelentc, contribui para a instru<;ao, mas esta tem C0l110 objectivo outra coisa para hi dela mesma. Procurem la par uma outra oportunidade. Qual? Regressem entao ao come,o da Carmen.

Mcrimee esta dentro: arque610go, cartografo, Ie, copia, t0111a notas, pu­blicara depois um artigo de erucli,ao. Dois focos: clentro e fora. Ei-Io agora de fora: eu patti, diz ele, em excursao para csclarecer as minhas duvidas sobre a situ<l\JO do combate travado pOl' J(ilio Cesar, levando na bagagenl apenas algumas camisas e os Comentarius, mas continuando mesmo assim com os restos da biblioteca.

Parece percorrer 0 pals andaluz em redor das margens do Guadajoz. Mas, por mim, duvido muito que essa excursao nao se reduza a um excursus, ainda mais erudito do que as notas, em face clas dcscri<;oes do planalto de Carchera e clos pantanos mais proximos que recopiam, com as seus enos e apartes, diciol1<lrios, catalogos, clzcvires. Apanho-o com a boca na botija: mentiroso! Par mim, sei pcla geografia em que me situo que de transporta o que csta fora para dentro cia dentro, numa atitude de pcdantismo: Merimee

67

Page 61: O terceiro instruído

pretende narrar lim passeio enquanto eu posso mostrar que elc transcrcve um manuscrito! Quando chegarcmos aos ciganos e ~lS chlI1~'as?

Quando passaremos assim do ,utigo para 0 romance, que nao deixa donnir as raparigas e os garbosos oficiais?

Dia. No entanto, tuclo come<;a realmente assiln. Poderia dizer-se antes que 0 cruclito caminha e safre. Nao, nunca recopia. Qucimaclo pelo sol, cheio de cansa<;o, morre de sede - isso acontecer{l apeoas a meio clo livro - e entretanto vai beber, c1eitaclo cle barriga para baixo, como os mallS soldaclos de Gecleao. Para merecer escrever um vercladeiro livro - aqui, a Bfblia -, e preciso abanclonar 0 Egipto e enfrentar a c1ureza clo deserto, scm olltra protcc<;ao alem clo ceu e outra parecle aiem clo horizonte.

Mas antes de pocler acalmar-se, Merimee procura e encontra um peque­no charco cheio de sanguessugas e cle ras. Esta observa<;ao nao nos pode iluclir. Sim, tuclo sc joga af. Diante cle um pantano, em que as sanguessu­gas-vampiros se alimentam clos Bvros clos outros, pociemos infcrir que, seguindo para jusante, existe um ribciro, que alimentanclo 0 pantano a montante, COnclllZira sem clllvicia ~I origem, mais pura e sem parasitas.

Por outras palavras, 0 arqueologo, 0 historiador, 0 latinista efuclito, 0

cart6grafa, 0 fil6logo, procuram qllase semprc as fontes. A horrfvel massa cle livros revela c esconcle 0 rio e as suas origens: gosto de dizcr que as fantes secluzem os sabios porquc estao Iibcrtas clos sabios! Se eu quisessc passar pOl' erudito, chamaria a tucio isso Quellen/orschullf!,.

Eis, pois, 0 viajante que segue n~l clirec<;ao cle montante. Espanto maravi­lhado pel a sua descoberta: junto cle um declivc, nll1na zona tranquila, som­brcada e c1e uma beleza soberana, cis a fonte que brota c inunc!a a bacia de areia branca. Junto deb, sobre a clva fina e lustrosa, um homem donne.

Merimee nao nos faz assim percorrer 0 mesmo tra jccto feito por Tito Livio que, rCl11ontanclo ~IS funda(oes de Roma, dc repente clescobre, nllm meS111a e agracliivel relvado, 0 proprio Hercules aclormecido, cnquanto por ali pastoreia o rebanho que roubou em Gerion dcpois de matar 0 pr6prio clono? Laclrao e assassino, como ele, e como ele aclormeciclo, junto cia fonte que Merimee clescobre, historiaclor ou seclento, nesse lligar paraclisfaco em que se evade 0

estreito cleclive por onde corre um cursa cle agua, Dom Jose guarda lim bacamartc nao longe cia sua mao, e bem perto cia outra jazia a clava, enquan­to os cavalos, ao longo da garganta a jus<1nte, responclem com os sells relin­chos aos apelos insensatos que retomam em eco os 111ugiclos surdus clos bois de Tito Llvio. Estranhamentc, lim qlladro muito pareciclo se clesveochl a mon­tante, no come<;o clas clu<ls historias, nitidamente rOll1,lI1as.

Trata-cle cle lima cena origimlria c muito pr6xilna das SU,IS origens? Merimee expor-se-{i aqui rcalmente ~10 sol, a secie, ao dcserto, a violen­

cia, ao clesfecho, aos percevejos clas hospeclarias suspeiras, as trai(;,'oes e a morte, em suma, ao mal e a realidade, ou antes, ainda C01no mentiroso,

68

J

Page 62: O terceiro instruído

f , copia mas scm revelar 0 pr6prio pai cia hist6ria ramana? Devemos hesitar <linda? Porque descrcver uma paisagem sel11clhante. ribeiro e fonte, no comec;;o, atravessada pel os mesmos actorcs, deus Oll banclido, crime e rou­iJa, ambientc s6rdido e gente estllpicla, vozes de animais privadas de sco­tido? Trata-se de historia, de lim mito au de um rOlnancc?

Podcl11oS cncontrar af as origens cia mesma ccna junto c1as Fontes? Nos limitcs cia Quel/enforschung, parcce que basta pensar em qualqucr coisa como lima auto-referencia: a primeira fonte deveria sair ciat, diz-sc mesilla que ela carre por si. Contudo, inlllncras visitas as da Garona, de Viena e de outfUS rios Oll ribeiras cleprcssa nos convcnccm que 0 ponto de partida se reduz a lima recolha, cuja bacia relIOe ou congrega mil pequenas agu<1s trazidas de montante, dos giaciares ou das pradarias humid as, em conse­qucncia do gelo ou das chuvas. Sempre e por toda a parte, a origem se rclaciona, pois, com um ponto que tanto corre de qualquer fluxo como da direita orientada, como geometria, centre esses lugares conhecidos apenas alguns formam uma barragem.

Comparcmos as duas hist6rias. Ladrao e criminoso, perseguido peJa justi~a, 0 bandido basco tomou 0 lugar de um assassino laclrao, numa substitui(,'ao que nao tem grande diferen\a. Hercules desperta e mat a CaClls, mas Dom Jose nao mata ninguem quando acorda.

Embora 0 apanhe ou quase em flagrante delito de assasstnio, alguem todavia desculpa Hercules: lIln tal Evanch'o, que representava nesse tempo o papd de governador; encarregado cia persegui\ao judiciaria, parece jul­gar a her6i, mas depressa 0 inocenta, rcconhecendo-o como divino; Hercules matou diante dos nossos olhos, mas e aos nossos olhos que beneficia da improceclencia judicial. 0 assassinaclo, CaClls, tinha Ina fama ... De subito, Evandro faz bifurcar a hist6ria para 0 mito, 0 juclicifuio para 0 religioso. Em vez cle prencler 0 criminoso, este e eolocado num altar. Deus ticlo como condenaclo e outra substitui\ao quase sem cliferen\a. Merimee trata assim esse baniclo com humanidade, enquanto 0 seu guia se apressar{l a entreg{l­-10 a justi\<l; reconstituem, os dois, a persona gem de Evanc\r'o, de forma que as cluas situa\oes encaram os homens de forma equivalente.

o narrador faz bifurcar aqui a hist6ria, que tambenl se Iiberta no plano jucliciario: Dom Jose continuara por algum tempo a viver em liberdade, porque os carabineiros, avisados pclo guia, chegarao ciemasiacio tarde para o capturarem. Tocla a clescri\ao vai clecorrer enquanto ele pennanece livre: entre a sua evasao, nao lange clas fontes, e a sua prisao e depois a sua execu\ao, em C6rclova.

Eis at Hercules e Dom Jose libertos - filhos cia boemia, nao chcgaram a conhecer a lei? - mas livrcs cle quem ou de que? Em ambos os casos, dos juizes, da justi\a, cia decisao. Deixemos de lado 0 latim c a lingua espanhola e falemos do grego por instantes: os dois homens libertam-se do julgamento, isto e, cia critica, que pOl' sua vez entrega as arm<lS para as fontes.

Em Tito Livio, 0 religioso e 0 mitico bifurcam no juciiciario, mas na

69

_l ___________ ~ _____ .

Page 63: O terceiro instruído

, I

ciencia critica a narrativa literaria bifurca em Merimee: nas duas circunstan­cias, no mesmo instantc, nas mesmas concli~oes e na mesma proximidaclc de origem. Por outras palavras, 0 mito esta para 0 jucliciario como a nar­rativa esta para a critica, e a critica esta para 0 juciici{lrio C01110 0 mito para a narrativa.

Dom Jose fala antes que 0 carrasco 0 enforque, Merimee assume para comes;ar 0 habita e 0 gesto do critica, condu-lo e clepois percle-o pelo caminho da erlldi~ao; qU<lse se padeda dizer que 0 scmeia, porquc 0 c1eixa entreguc as fantes que af brllscamente se bifurcam.

As dU<ls historias - mftica, tited.ria - tem de COl11um 0 facto de se libertarcm clo aspecto jucliciario. Mas como?

Em relas;ao ao acusaclo, ao assassino, Evanclro faz substituir lim deus; ao banclido, Merimee substitui um her6i. No exacto iugar dessa bifurGl~aO, na altura do julgamento, sobre 0 palco em equillbrio, no momento em que se cleve cortar 0 n6 clecisivo, aparece a substitui~ao. Hercules c D01n Jose abanclonam os seus lugarcs para chcgarem aos altarcs Oll as tabu as clo teatro. No prindpio e a substituir;;ao.

Um deus e um hcr6i aprcsentam-se assim no lugal' de dois bandidos de baixa condir;;J.o, no cimo das escadas ou dos degraus, entre os veus do tabernaculo ou as cortinas do palco. No prindpio e a represcnta\'ao. Em tad a a representar;;ao, alguem sc substitui a um outro: um carneiro a Isaac, um actor £10 pape! principal, um texto a uma ac~ao. E n6s est<lmos ;:t1.

Quem opera cssa substituir;;ao? Evandro no primeiro caso, Merimee no segundo: 0 escritor Oll 0 sabio.

Na verdaclc, nao conhecemos ainda a vttima de Dom Jose: Carmencita, que de amava, que ele amava ... se nao me <tmas, eu amo-te c sc te amo, tcm cuiclaclo contigo ... Carmencita e aqucla que Dom Jose matou. Ora, no mito scm amor, EV;:lnclro, em nome do bom hOlnem, que diviniza 0 mais forte e prejuclica muito 0 mais f1'aco, tcm como mac - ou mulher -Cannenta.

Carmen: Carmcncita, Cannenta ... as cluas hist6rias, a Illontante cia sua origem, exceclem a propria fonte - mae Oll anlante do juiz, motivo clc exilio -, servem-se ambas clo mesmo nome, no mcsmo corpo, na mesma pessoa. Chegamos nos assim a uma fonte comum? SiIn, procurem a 1l1ulher.

Evandro, filho cle Hermcs, tinha invcntaclo, diz-se, a escrita ou pclo menos tinha-a importado cia Arcadia para as margcns do Tibre. Quanta a Carmcnta, sua mulhel' ou sua mae, antepassado das Sibilas, ela canta ma­gicamente.

Escrever, hllar, cantal', represcntar, toclas as opera~oes como invocar;;oes ou cncantamentos que substituem 0 que e 16gico e suave 'pelo que e material e cluro. Ou no deserto addu lll'lla bibliotcca climatizacla, guard an­clo em cima 0 que conserva em baixo.

Merimec, como sabia, caminha para a fonte e, encantaclo, clesce daf a recital'. Teve assim de passar pOl' um tcrceiro ponto.

70

Page 64: O terceiro instruído

Noile. Da fonte sai 0 Guadaloz, sem d(lvida, ou um pequeno tributa­rio desse anucnte do Guadalquivir. Dcseemos agora pelo rio mais exten­so, deixando-nos levar de montante para jusante, como dizem as mari­nheiros, elas origens para a fio do tempo e cIa hist6ria, nesse intervalo que define a clura<;ao cia liberclacle cle Dam Jose, enquanto, sobrc a margcm clireita, cm C6rdova, ao eair clo Sol, c\cpois cie tel' soado 0

angelus, algumas mulheres se banham, nuas e, clo alto cla margem, ao luseo-fusco, ninguem po de distinguir entre uma velha vendeclora de la­ranjas ou uma jovcm e bonita costureirinha. Pocieren10s confundi-las um<l com a outra. Saida clessa eena sombria e cia margen1 cia ribeira - acaba ela de a atravessar a nado? -, pela eseadaria que d{l para 0 eais, junto do autor, de s(lbito aparece a jovem cigana de cabelos negros. Como Afroclite, cia nasce das ondas. Mas a quem se substitui esta Venus anacli6mena?

Carmcn, morta e invisfvel sob 0 arclente sol clas fontes, Carmen, muito bela no meio da cena, de repente aparceida, sentada e <11 vislvel, em plena noite, scmpre ao lado cia autor, presentc, viva, fatal, bela, poderosa, cnebriante, scclutora, mol, feiticeira, terrivel Carmen. Fonte de vida e causa de morte.

Eis-nos assim na origcm enfeiti<;ada cia hist6ria, 1'0111ana, espanhola, que importa, de toda a hist6ria - observcmos que esta palavra evoca de ime­cliato uma ciencia humana e uma certa tagarelice sem interesse -, da palavra, do canto, da opera, cia escrita, cia ciencia e do romancc em geraL Carmen cliz tudo ao mesmo tempo, como lim joker sllplente.

Relinchos, mugicios privados de scntido, caval os e bois, cantos m{lgicos, feiti<;arias) bans e maus olhados) vozes cm cllIas ciirec<;6es que se opoem, jufzos infquos all justos, amores cleliciosos e fatais, lIm duplo sentido que succde ao rukio insensato dos anima is, lim (mica scntido, finaitnente, para o relata que come<;a e 0 rio que corre ... Eis que nasce tun corpo, nu, a nadar, inacessivel e, no cntanto ai mesmo, nas origens de C6rdova, nas aguas do Guadalquivir. Antes e fora de qualquer lei, magia, quimera, dei­lando as suas cartas vennelhas c pretas, lendo as linhas bifurcadas na cscrita natural cia mao e, antes cia lingua, cantara e baila1'ina, Carmen revela pOl' si essa (mica genealogia.

Qualquer obra-prima relata a cria<;ao cia sua propria arte e e pOl' isso que goza c\esse titulo: obra-prima.

A erudi,ao e a arqueologia, a historia c a filologia concluzcm) a partir de uma fonte, a uma substitui<;ao cuja causa, ainda a montante, se chama Carmen; deixa-la descer clepois para jusante, ei-la ai nua, banhanclo-se nas {tguas saklas dessa me sma fonte, como sc 0 rio a tivesse criado. Como os livros na sua origem, um curso de jgua servc como fio inclutof, mas a sua corrente, seguinclo noutro senticlo, nao conduz nunca a biblioteca nem ao artigo eruclito! Dir-se-ia que um tluxo a bifurcou e, depois de morto, 0

s{lbio artigo engendra uma nova forma viva.

71

Page 65: O terceiro instruído

! ! r

I I

A cria\,do diz tambem respeito £10 escritor. Renasce uma segunda vez, erudito e narraclor, tcrceiro, como essa 11lulher, seciutora e fatal, C01110 her6i, criminoso mas c1ivinizado, como 0 rio, cujos bra<;;:os se desenham sabre a terra.

Ris 0 duplo focD. A ciencia cleixa a sua clariviclencia C 0 relata, obstina­clo, come<;a ao cair cia noite. Hesitante, a ciencia conduz a Ulna hipervidencia e a literatura, racliantc, faz ~l sua aparir;;:ao. QueLll deciciira? Existira lima claridadc suplementar na ciencia crftica e lima obscuridacle no relato, dado que ciiscorre sabre ele c nao elc nela; ora, oeste caso, 0 relata fala e parte cia crItica e abanclona-a, como se cxistisse nele lIIBa claric!acle pr6pria para cleixar a ciencia entregue a sua obstinar;;:ao: extra-lClcida Carmen. Que se faz com esse claro-escuro alternaclo?

Sabios, nao coloquem notas de rodape nas paginas cia Carmen, porque desde 0 princfpio 0 romance extraiu delas a pr6pria essencia do que po­cleriam dar; deixem 0 livro em paz, porquc ele afinna, melhor do que qualqucr cie-ncia, exactamcnte 0 que a ciencia nunca sabera dizer de si mesma nem dos textos nem dos homens neln do mundo.

Esbofando algumas redes de bifurcac,;oes, Carmen ensina de forma ex­celentc 0 terceiro instrufdo tal como ao mesmo tempo lhc aponta uma mosofia da criafao. Scmprc que sc suba 0 curso de um rio Oll cIo vale para a montanha, cncontram-se todos oS afluentcs que quisennos. E, para des­cer, e preciso escolher: au sc decide viral' a dircita, do lado das Inscrifoes e Bclas-Lctras, au se decide voltar a esquercla para 0 relata narrado. Mas, num dado momenta Oll mesmo a todo 0 instante, clado que abunclam as encruzilhadas, a ~lventllra pennanece como terceiro, em equilibria, Duma origem corrente, entre os jllfzos, 0 amor e a morte, a ciencia e <l literatura, a erudifao e a tagarelice.

o romance descreve a passagem de um limiar ou de tl1n declive: a ciencia at sobe e 0 conto desce. Prova CX(lcta de que a fonte inuncla precisamente a passagem do terceiro ponto: do espafo tranqllilo ao rclva­do fino c a arcia branca ... Nesse lugar, a que todos hojc subimos, clorIne o terceiro instrufcio.

A lifao de Merimee mudara a nossa .vida: como sabio, ele sai e nao sai da biblioteca e, ncssa hesit<lf8.0, copia 0 seu artigo erudito; mas, ao cair cia noite, cansaclo clesses trabalhos, rcgressa ao cais cia rio, entre os curticiores e os operarios e rcencontra at aqllela que, a montante das fontes, inspira desde sempre 0 que sempre ultrapassa infinitamente a erudito: uma fa sci­nante tagarelice. Como 0 curso de agua, 0 corpo do autor bifurca: com a mao esquercla, Merimee comef<l realmente a escrever e esquece a ciencia, recopiada com a mao direita.

E assim clescobrc a origem corrente, enuncia 0 titulo e desenvolve a sua execufao.

Dir-se-ia que aliteratura passa par onde a erudifao encontra algul11 obsta­culo. Como se, mergulhando na densiclade do senticlo, 0 na~-saber soubesse

72

Page 66: O terceiro instruído

l

£linda aquilo que, repleto de informa\,oes, ° sabcr jamais sabera. Do mesmo modo, se a tllosofia consistisse cm clarificar as conversas e transforma-Ias em objecto de debatc, teria assim Uma dupla utiliza\,~lo COlll a ciencia. Para Ia do relato, obstinadamente incluiclo, a mosofia repisa e amesquinha.

Mas apenas eta pode ir assim tao longe para demonstrar que a literatura ainda vai maL') tonp,e do que ela.

Verifieo, pois, que 0 saber claro contem llma obstinac;;ao peIo menos tao ampla como 0 profundo sabcr obscllro conUdo na ignorancia. Por vezes nao se compreendc isso sem ser para liquidar a pr6pria ciencia no relato exacto (las circunstfmcias. As soluc;;6es nem sen1pre residcm no lugar cm que as procuramos. E preciso scmprc pagar, ou scja, decidir sal dar pOl' qualquer obstinac;;ao essa mudan\,a de lugar para se vcr melhor.

COME<;:O DA CRIA<;:Ao

Fetido pelo odor dos ovinos machos, salpicado de leite coal had a em redor dos queijos que ainda pingam sobre os cestos, a cscura caverna cm que donne 0 Ciclope c1efende-se contra todos os olhares: mas ele vi}: mais e melhor, gigante hirsuto e selvagem, pOl'que tem apcnas um olho no meio cia testa c dela sai um raio laser. Os gajeiros de Ulisses scntiaI11-se bem nos seus cantos, mas as patas peludas do monstro procuram tin_I-los dai e lcva­-los, ofegantes, para outro sitio, com a boca a sangrar.

Quem c<1uterizar{l essa luz implacavel? Qucm fcchara essc segundo poc;;o abeIto no funclo da goela? Um homem chamado Ninglletl1. Errando clesde hft muito tempo pelos mares e fora clas ilhas, pOI' onde tuclo cle pcrdeu, 1l1csmo os seus utensllios e sanc/{tlias, a sua t(mica, os seus projectos, em que ate 0

seu pr6prio nome ainda hoje 0 alxmdona. Deixou ha n1uito de contar. o monstro zarolho extrallicido, que consegue vel' mesmo no escuro,

pocleroso como a montanha debaixo cia qual donne, tem um nome que se cxprime ao mesmo tempo cle varios modos ~ Polifemo. E isso quer clizer que fala muito, que fala em toda a parte, aeclo, ilustre c fertil em argumen­tos. E muito importante. Tocla a sua gl6ria Ihe sai atraves desse olho. Ou melhor ainda 0 seu nome comum de Ciclope signifiGl: circular, ocupando toclo 0 esp::I<;o, incontornavel. Discernindo tudo sobre a IliZ clesse olho circular e mantenclo a sua linguagem com lima boca devoradora, rodeia-sc de ovelhas e C<lrneiros, clisdpulos, admiraclores, lugar-tenentes, sujeitos, escravos, porta-vozes ficis, curvados ate ao chao, sem inteligencia.

o louvor exciusivo emanado de U111 buraco alimenta 0 segundo, avitlo. Ninguem, 0 vagabunclo, n;10 tem nome, mas 0 cnciclopedista Polifemo

dispoe de cem mil palavras espantosas ou rigorosas.

Mas entao quem fala sem cessar, arenga em banquetes, negoccia, troca, ganha, como incontestavel perito CI11 Hnguas? Ulisses. E de quem sc fala

73 INSTITUTO DE PSICrll"G! '" - UFRGS

BIBLlOT2.';;,.

Page 67: O terceiro instruído

f'" "I':

descle a Guerra de Troia? Dele, cem vezes mais do que clos vcnceclores e clos cielopes. Quem navega circularmente, visita toelos os mares e terras conhecielas? 0 mesmo. Quem nao pode 1111nCa passar sem campanhia, sem rivais, sem a sua corte? Ulisses.

Portanto, quem usa 0 nome do Cielope Polifcn10? 0 pr6prio Ulisses. Quando 0 navegaclor cauteriza 0 olhar do gigante, mesmo no meio,

com 0 sell venabulo afiado, esta a ccgar-se a si mesmo. Crava a seu verdadeiro olhar entre os dois olhos j{l extintos: a sombra sucede assim a luz no meio c1esses dais focos.

Polifemo apaga 0 seu pr6prio nome, 0 sell belo e cclebraclo sobrenome, nao para adoptar um outro apelido, mas para renunciar a todos: ei-Io, pais, invisivcl, Ningucm. Abandona a sua gloria e poderio, 0 fogo e a montanha, os corcleiros que balem, e refugia-se no antra dentro de um carneiro lanfgero, nao pode ser apanhado, nao pode ser visto. Ninguem 0 ve renascer do buraco escuro cia gruta atraves de um pmto invisfvcl e animal.

Abanclona a lucidez integral, a ciencia circular e total, 0 dominio cia lfngua, o imperio feraz sabre os homens, os titulos pomposos, percle toda a sua fon~'a para conquistar a humildacle: mais do que animal, dentro de um animal de qU<Itro patas e cle cabe<;a baixa. Ninguem. Finalmente, ei--lo escritor, criaclor, artista, peIo menos no caminho austero que concluz a esse ofkia.

Hirsuto, insaciavel, alimentaclo de carne de Dvino e humana, perficlo, vaidoso, profllndamente clominador, 0 primeiro du pIa de Ulisses arde sob a embriaguez cia pr6pria gl6ria, semideus poderosa sustentancla a 1110nta­nha, mais que olimpico. E de novo deposita todos as andrajos para rcnas­cel' cia caverna mortal sob um segundo nome apagada: Polifemo tornado Ninguem, eis 0 verdacleira autor, espa<;o auscnte de uma bela obra. Nac\a mais conta.

Cravou 0 seu olho mesmo no meio. E Ulisses chega entaa par~l assinar a Odisseia. Oiz-se que Homero nao via. Mas que lan<;a queimou au que ponta

afiada cravou os seus olhos? Oita isso, quem pode reconhecer que a car rosa cia aurora e acariciacla

com as dedos, senao pOI' um cego elarividente?

o PROBLEMA DO MAL

Em direito universal, extensivamente, a ciencia parcce opor-se a essa cultura, comprccnsiva c enraizada, de facto, num dado lugal'. Ulll (mico foca brilhante, cliversas sOlllbras. Mas, extensivamente, toclo 0 hOlllem sa­bre a Terra vive a sua propria cllitura, sem a qual nao paclcria sobreviver; ei-Ia af, pOl' clireito, universal, oposta, por lim trajecto contra rio a ciel1cia,

74

Page 68: O terceiro instruído

, I I

e clividicIa nestas all naquelas especialidades se torna realmcnte comprecn­siva e local, por vezes incapaz de alcan~ar as problelnas globais. Um (mica foco obscuro, varios outros daros. A Terra integra 0 conjunto das localicla­des singuiares e a de-ncia 0 universo clas regi6es especializadas.

Universal, a ciencia percorre 0 circulo disso a que se chama ria a enci­clopeciia. Porque tra\'~l1' esse cicio? Sem dllvicia, em virtucle cia ordc1l1 e cia homogeneiclade que se sup6e a razao. Ora, em celtos l11omentos, lima especie de ressalto risca a 6rbita perfeita em que aparece lima excentrici­dade, como se 0 cicio perdesse a sua superficie lisa au a sua pureza. EDassim alguns acidentes, C01110 0 cia fisica, na explosao cle Hiroxima, cia bioiogia, haje, ou clas ciencias da Terra, interrompem esse optimismo. Trata-cle entao de crises internas cia ciencia?

A razao atravessa a violencia, a guerra, as doenc;;as, a morte, reencontra o problema do mal, tradicional em filasofia. De modo erudito, Merimee, subindo ate as origens, descobre, nas pr6prias fontes, 0 assassino de Car­men; a lan~a afiada entra no olho do ciclope, espinho do drculo; os pontos negros disseminam-se de subito pelo ceu estrclado; cliantc clo sol do meio-dia aparece 0 segundo foco negro; entre os textos terceiro-instruf­dos atras evocados, desde os romances de Zola aos Pensamentos de Pascal, nenhum deles deixa de estar nesse cruzamento, nesse reencontro inespe­rado da ciencia com 0 mal, 0 sofrimento, a injusti~a e a dor.

Que rela<;6es mantem a razao, como preconceito simplesmente lumino­so, com esse problema que as trevas criam?

Uma liga<;;:ao origimhia. A razao ocidental nao reencontra a 1110rte em Hiroxima nem mesmo nos maiores perigos tecnicos de haje, mas cncon­tra-a no parafso terrestre; a arvore do conhecimento au cia ciencia induz os nossos primeiros parentcs a um pecado original tornado trans--hist6ri­co, clesde a alvorada semftica da nossa hist6ria, que sob as l11esmos ceus nasce das piramides clo Egipto, tumlllos, cia Guerra de Tr6ia, carnificina, ou das tragedias gregas, vioiencia, explIlsao. Ao contra rio clos indus e depois dos arabes, de toelos os nossos vizinhos, pr6ximos ou distantes, que tambem colocam esse problema, l11as lhe oferecem lima outra solu­<;;:3.0, a Ocidente come~a ao meSillO tempo que 0 problema do mal e empenha--se contra ele num diJ.logo ou nun1 combate consubstanciais, de forma que 0 trcigico fundamenta ai a sua hist6ria, a sua razao e a hist6ria cia sua razao.

Mas a razao nao integra nunca 0 mal e antes 0 exclui. A ciencia ociden­tal nasce, pais, dessa exclusao. Ela emerge do tragico. As suas categorias fundamentais derivam claf: pureza, abstrac<;ao, rigor, terceiro exclufdo ... Repetitiva, a sua hist6ria assinala alguns processos de exclusao e as seus confrontos mal definidos com a religiao e 0 direito, que se dcbatem ambos com 0 problema do mal.

Regula-se por entre um sol claro que se depura de toda a sombra, mas de repente tambem se regula conforme 0 segundo sol negro. Sim, a razao

75

Page 69: O terceiro instruído

acede ao universal, mas, perante ela, existe um universal cultural induzido pelo problema do mal. Na base, somos terceiro-instrufdos.

Melhor ou pior, nesta questao, a ciencia depressa ocupa 0 lugar de Deus ou chega mesmo a substitui-Io. Acusavamos outrora 0 segundo, todo­-poderoso e omnisciente, de provocar 0 sofrimento e 0 mal. A Teodiceia de Leibniz contribuiu mesmo para 0 fazer comparccer no processo fundamen­tal do destino humano. Ora, n6s na~ sabemos nem somos eficazes a nao ser, claro, pela nossa ciencia. Nela e por ela, portanto, a universal nao­-circular da ac~ao e do pensamento reencontra, tanto hoje como na sua origem, 0 esdindalo do mal.

E at se encontra a cultura, antes de qualquer jufzo. Com efeito, nada na ciencia ajuda a suportar a finitude, nem a compensar a morte dos filhos, a injusti~a que atinge os inocentes, ° triunfo permanente dos homens violen­tos, os felizes fugitivos do a1110r nem a estranheza do sofriInento, enquanto nisso colaboravam as culturas cujo enraizamento local fazia participar, bem ou l11al, a sabedoria na propria carne. I,

Nem Leibniz nem os sells sucessores assumiram essa revolu~ao keple­riana que consiste el11 colocar dois focos na orienta~ao do conhecimento como no do 11lundo, ou seja, esses dois sois universais: a razao e a dor.

A ciencia divaga, a cultura enratza-se. A primeira nao conhece lugares singulares, mas antes espa~os inteligfveis; ela recolhe e por isso viaja. Ela circula. Prosper Merimee procura a verdade propria clas informa~oes livrescas e clas obras de arte abandonadas. A ciencia universal bate todo 0 campo em busca das origens, das raizes, da sua funda~ao.

Oh que maravilha, eis 0 lugar paradisiaco em que a erva verde atrai 0 sono do vagabundo e 0 pasto do cavalo, em que a fresca fonte suavizara a sede, em que a sua beleza permite descansar. Finalmente, a esta~ao. Nao, 0 guia, inquieto, fareja logo 0 perigo, porque um homem ocupa ja esse lugar. Todos os lugares estao sempre ja ocupados; a ciencia nao tera. come~aclo a sua ernlncia por essa raz8.o, porque alguns homens, dies ou exercitos em pe de guerra ocupavam desde ha muito esses paratsos possiveis? Na verdacle, esse homem, aqui mesmo, donne nao muito afastado do seu bacamal1e, cia sua velha es­pingarda. No paraiso perdido das fontes e do prado verde, 0 saber universal reencontra 0 mal singular, injusti~a, amores desiludidos, violencia, motte, fome.

/ No lugar de ressalto em que 0 singular renova 0 ciclo universal e liso, a dor local cria 0 seu relato. A literatura destila mise ria e sofrimento descle as suas origens. A ciencia nao aprendeu ainda a lfngua desse solu~ar. E nesse lugar tragico con1e~a a razao terceiro-instrufda. II

" 0 sofrimento e 0 mal, a dor, a injusti\a e a fome encontral11-se no ponto em que 0 global se aproxima do local, 0 universal do singular, a ciencia da cultura, a for~a cia fraqueza, 0 conhecimento da cegueira ou 0 pr6prio DellS da sua in­catl1a~aO. 1/

~ 0 general observa a batalha de longe COll1 0 seu binoculo e, pOI-tanto, muitas vezes nao corre perigo, os sa bios descrevem Oll estudam a dor,

76

Page 70: O terceiro instruído

r

l

lange de se poclerem qllcixar; por isso, nem 0 global nern 0 universal sofrcm c, se a cieneia e 0 pensamento se refcrem a questbcs colcctivas ou formais, apenas 0 pr6prio local sliporta esse mal. Dcitaclo abaixo, 0 slIjeito suporta e ci-lo, finalmcnte, porquc tem esse nome.

E cia! dais cogitos. Nos pcnsamos e saben10s. Ell sofro. j I A ciencia recncontra a cultura quando a inca rna c reencontra ou produz

dol', rnal e pobreza. Esse tempo nao cessa, porquc ele abrange 0 l11undo e a hist6ria.

Primeiro foco; a razao cientffica universal e clara, solluminoso; segundo foco, abrasador: toclo 0 indivicluo incarnaclo C0l110 singular satre e morre pelo rigor clos homens, ecce homo; a filosofia naa evita 0 centro Oll a periferia, terceira pessoa terceiro-instruicla que clescendc Oll e oriuncla cles­sa universaliclacle racional e da singulariclaclc dolorosa, cia universaliclacle dolorosa e clas singulariclacles racionais, espirito que, ~10 mesmo tcmpo, faz ou segue a excentriciclacle propria clo mundo e que se espalha nlllltiplicacio peIo universo. Eis at 0 segrcclo do conhecimento: ele funciona como 0

mundo. N6s conhecemos atraves do patetico e da razao, inseparaveis, ambos

universais, um col110 foco cia ciencia c 0 outro das cuituras; pcnsamos porque sc sofre e isso e assim mesmo.

Mas 0 cl1l11tllo do univcrsal observa-se pelo singular, aqui ou acola, neste heroi ou naquele exemplo; 0 da abstraq'ao le-se e ve-se na paisa­gem, 0 do saber mergulha no concreto; 0 cia narrativa, preenche-o a critica ou a tcoria; 0 do monotefsmo, no regime do espirito e na vida de quem 0 incarna; 0 cia ciencia no conhecimento da fraqueza e da fragilidade.

E clai a ideia nova cle tlln cicIo de instnl<;ao propria a atribuir as ciencias hum~tnas que expiram pocque nao avan\am mais e nao avan\am mais porquc nao formam ninguem e nao se forma ninguem sem as ciencias exactas, sem a hist6ria das ciencias, a tecnoiogia, por um lado, e sem 0

direito au a filosofia, scm a historia das rcligioes ou clas litcraturas, por outro lado. Em brevc, no plano relativo e sem a razao nos dais focos universais.

"0 terceiro-instruido deve a sua cria<;ao, a sua instrLH;;ao e a sua edu­Gl<;ao, cm todD 0 SCLI crcscimento, a razao, como sol racliante quc comanda os saberes cientificos ou mesmo a uma segunda razao, u mesma decerto, mas abrasaclora no segundo foco, que nao resulta apenas do que pcn­samos, mas cle tudo 0 que sofremos. Mas mesmo essa razao nao se aprende sem as cuituras, os mitos, as altes, as religibes, as contos e os contratos.\ ,

As ciencias humanas lamentam-se por tcrem esquccido esses dais mo­dos fundamentais cia razJ.o, 0 clas ciencias e 0 do clireito, aquilo que nos chega clo pensamento e e muito universal, que nos inspira a problema do

77

Page 71: O terceiro instruído

mal: injustit;a, dol', fome, pobreza, sofrimento e InoIte, e que assim produz os artistas, os jufzes, os consoladores e os deuses.

Apenas existc uma <lutentica radio e ela ilumina e mobiliza atraves de duns fOrInas: sem a primeira, clara, a seguncla seria irracional, mas sem a segunda, quente, a primeira seria desrazoavel.

A igual distancia das duas, 0 terceiro-instrufdo e cdado pela ciencia e pcb piedadc.

GUERRA POR TESES

Palavras. A clor, inefavel, ultrapassa 0 que e exprimfvel. Evitamos clizer o que nao poclemos dizer: 0 indizivel, como imagem vulgar.

o retorno ao clado em bruto, paisagem singular, por abanclono cla lingua­gem caractcriza lIl11(.l ingenuiclade fingida ou 0 verdadeiro disparate. Na vercla­de, malcavel, encurvada, bbil, omnipresente, a Ifngua vinga-se, exceclendo tranquilamentc 0 clebil patetico ou vaidoso que, pretendendo scmpre ultrapass{l­la, repete, cmbora mal, as mesmas palavras rcpisadas. Vigiamos para nao confundir 0 inefavel e a nossa falta cle vocabuIario: nao importa qual 0 banco que exceci<l em opulencia as magros peclllios depositados todas as semanas pOl' uma cleterminacla pcssoa, as vinhas de Fran<;a prometem melhores colhei­tas do que a que tenho na minha obscura despensa, 0 sol aquecc um espa<;o mais amplo clo que os nOS505 tres pedat;os de antracite.

Muito desejada, mais do que dificil e excessiva, a verdadeira ingenuida­de coroa, pelo contra rio, a longa paciencia do escritor. Deixaclo ao aban­clono clas suas pr6prias paJavras, desdc h{l muito que instal au 0 sell gabinete em pleno dicionario. Mais rica a sua lingua, mais correcto 0 seu trabalho. Do mesmo modo que, para falar de mancira ajustada do mar, e preciso te-Io aplainado em todos os sentidos, tambem para se exprimir na sua lingua convcm ter visitado toclos os lugares. 0 escritor l1aO acede ao seu estilo senao depois dessas travessias probat6rias, como um fil6sofo atinge 0 seu pensamento depois de longos pcriplos pelo reino cia enciclo­pedia. Nenhuma economia, mesmo teurica, dispensa est<lS instrll\,oes. 0 pensador cleve comec;,:ar por aprender tudo, mas dado que pensa na sua lingua deve tambem tornar-se escritor e assim -atravess,H em todos as sen tid os a sua cap;Kidade. Tal como 0 marinhciro nao se modifica par tel' sentido balanccar a sua cama par todos os oceanos fOl"lnados ou nao dos mares locais, tambem 0 pensador manifesta 0 pensamento espalhado pebs ciencias regionais e assim do mesmo modo experimenta a sua lingua, repugnando-Ihe escrever na linguagem clo estivador, do vaclio, do carpin­teiro, do monge, dos sabios, na linguagem am01"05a, pictorica au musical, tccnica, consulta ,lssim as paginas das enciclopedias e dos cliciom'irios, cxcedendo a ciencia e as narrativas; sim, a metaffsica chega clepois cia

78

Page 72: O terceiro instruído

1

fisica, a filosofia comcr;a dcpois dos saberes c das literatllras: nao apenas as conhecimentos, cluros e suaves, exactos c inexactos, rigorosos c tlui­dos, vivos e humanos, mas as palavras, porque somente sc meclita atraves delas, e de todas as palavras possiveis, porque semprc se pensa C01n

inll111CraS palavras. Mllitiplo periplo do pensador que nao cleve limit~ll'-se

aDs saberes can6nicos nem a justa prov~lI;ao, mas que cleve clebruc;;ar-se tambe-m sobre os mitos, contos e literaturas.

Designamos pOl' lfngua pcsacla aqueia que utiliza poucas palavras: como um tanque gelaclo perdido IlUI11<l tloresta. Quem escrevc com um registo assim tao cerrado podera pcnsar subre a lingua? Encerrado nllm idioma escasso, poclc falar de ~1tomos) pOl' exemplo, cle veu, mllsica ou amor, mas nao da lingua! Ora, eu creio que as filosofias ditas da lingua gem nao utilizam, de facto, senio um recluzido nlunero de palavras. Mas 0 que se percle em cxtcnsao, poded ganhar-se em finura ou em rigor?

Nao cligam, fac;am, mesmo quando dizem. 0 sentido ganha-se avanc;anclo. Com muitos discursos, actos, com 0 pr6prio discurso. Nacla de crftica: antes as obms! 0 que se chama teoria oferece 0 maximo de faciliclade com 0 minima de vocabuhlrio. Trabalho paciente clo escritor que navega pelo longo curso cia sua Hngua total e que, nao tenclo medo de qualqucr paragon, nela escreve e pOltanto a descreve ate as suas mais longfnquas para gens, tentando assim esgotar as suas capacidades. Na maioria clas vezes a lfngua adormece, excepto numa recluzida paIte, como dortnem os nossos ncur6nios. Par isso, os uten­sflios ou os testemunhos de intcligencia permanecem entorpecidos no viltual, na expectativa daqueJe que escolheu por dircito revcla-los, clefinir a sua lingua ate a fenda, suscita-la inteira e pr6pria, faze-la pensar ou existir, colo­cando-a em t~llso equilibrio; combina e ensaia longas cadcias cle sinonimos, todos complexos e clesajustados, que de repcntc convergem para a perda extrema de qualquer nuance. E af encontra aquilo que a sua lfngua nao abrange. Ei-lo enfim ingenuo. Obrigado a olhar, a tocar, ouvir ou a gostar, obrigaclo a sapiencia e a sagacidade.

Nao se sabe, pelo exemplo simples e mais trivial, que 0 homu sapiens, pelo menos na sua espede de lingua francesa, nao utiliza os adjectivos para significar os perfumes, enquanto sapiens significa em primeiro lugar sentiI' ou cheirar os sabores e as fragrancias? Azul e nao cor do ceu, amarelo e nao cor de mel, ser{l para 0 olhar, muito hem serviclo, como 0

cheiro da rosa ou 0 gosto de uma pera? TelTivei falta de sentido! Mesmo a est{ttua de Condillac nao preenche nunca essa bIta, ela que parece justa­mente comec;ar pelo olfacto, sem nunca abandonar as palavras.

Eis, pois, 0 que e 0 cstilo: vibraC;ao singular nos conEns da lingua, em que uma variedade perclida cle verde, ja vista, exige lima palavra nova clo velho clicionario que apenas Ihe chl umas trinta cambiantes aproximaclas, vibraC;ao clo que se sente e se exprime mal, lugar extrema em que como

79

Page 73: O terceiro instruído

ii'

LIma vela a lingua drapcja numa clas pontas. Nada mais parecido com lim

pensamento novo do que esse tremor, como soldac1ura derretiela au junta partida, na falba cia linguagem.

Assim, num dia qllalquer de sizfgia, BOllgainville entra na concha inominada em que as orcas e as balcias, que cerean1 0 sell bot:JI6, 0

impcdem de chegar.

Mergulhar desde muito ecdo nos c1ados singuiarcs do mundo, esqueci­do de uma lingua mal aprenclicla, nao faz nunca aceder a ingenuidacle, mas restitui algumas sentens;as ja gastas, como um falso banho de juvcntudc de onde se sai seniti importa mais deixar COlTer a Hngua, uma pont a clessc novo mundo arrisca erguer-se ate ao canto do portulano. 0 novo ingenuo de tal acontecimcnto mostra-se vclho.

Toea, entencie, gosta, respira e sente, ve, nao fala dos cinco senticlos senao no Em de alguns periplos probatorios pelas ciencias c romances. Tarde, muito tarde. Depois de tel' voltaclo a ultitna pagina das enciclopc­elias e corpus. Sim, a metaffsica ou a filosofia aparecem elepois das ffsicas e clas poeticas. Passando por ;:li, a SLla cabe<;;a embranqueceu C0111 os conhe­cimentos, utilizou a sua lfngua em mil palavras. Como velho roteiro diante das ilhas virgens, pagou 0 elevado pres;o cia ingenuidade.

Poele instruir pOl'que tem a alma pum das crian<;;as. Um velho e 0

verdacleiro ingenuo instrutdo e um jovem 0 falso ingenuo. Eis at de novo a velha dupla eclucativa: duas ingenuidacles que nao sao gemeas, a velha, autentica, aclquirida, sapientc, verdacleira - juvenil -, e a jovem, fals:J, louca, fresca, radiosa, nativa - clecn§pita. Procurcm 0 terceiro.

Ao trabalho.

o ESTILISTA E 0 GRAMATICO

POl'que e que 0 fil6sofo mlo escreve? Em nome de que cleve reduzir a sua meditas;ao £lOS pr6prios elementos cia gram{Itica? Com que direito re­cusar-Ihe 0 direito ao estilo?

o estilo e a gramatica, eviclcntemente distantes, exploram ambos a Hn­gU<l, mas com diferentes meios. A dupla visit} 0 l11unclo, 0 conhecimento e os sujeitos, pOI' vezes Deus, partindo cia linguagem, atraves de metoclos que se podem clescjar cornplementares, l11esmo que nos espantemo~ de serem opostos, dado que um nao existiria scm 0 outro: a gramJtica pOI' falta de materia, 0 estilo por falta de regras. Ela descrcve, analisa, procur~l consolidar, algumas vezes chega a legislar; ensaia. A gramJtica quer-sc

80

Page 74: O terceiro instruído

tearica e de usa experimental. A filosofia, pOI·tanto, devera limitar-se a gramatica e rejcitar 0 estilo?

Conheeemos essa distancia que separa ou separou a tradic;ao academi­ca, nascicla nas universidades da Europa na Idade Media, sobrc os funda­mentos gregos lanc;ados pOl' um certo PIa tao e a escola de Arist6teles, con­servados peIos Padres Latinos, tradic;ao que perelurou sem assinaHivel inter­rupc;ao ate aos nossos elias em tad as as paises do Ocidente, incluindo a Frans;a, e uma outra linha, menos estavel, mais rara, pall eo profissionalizacla pOl'que ligacla a alguns talentos individuais inimitaveis, e pOl'que inimit{lveis sem escola nem cliscipulos, uma linha sem cI(lvida surgida em Franc;a, des­de Montaigne ate ao seculo XVIII, mas tambem na Aiernanha, desde Goethe ate Nictzsche. A grandeza de Platao e 0 lugar que ocupa, na origem clessa bifurcac;ao, resultam de tel' uniclo na sua obra 0 debate gramatical e a ex­plorac;ao estilistica e tel' assim escrito 0 Teeteto e 0 Banquete.

Estas duas partcs da filosofia, rolando sabre duas vertentes, desejam muito pouco aliar-se e, longe de se amarem, rivalizam e cobrem-se de anatemas e de sarcasn10S. Em certas obras, no cntanto, quiseram que isso mesmo acontecesse c ai se reencontram, como hennafroditas, nao eom­preenclendo no momento da sua fusao pOl'que e que a analise matematica recusaria a linguagem refinada, porque e que 0 escritor, nunca acedendo por direito a consielerar-sc fil6sofo, ricliculariza ao mesmo tempo Honorius, Marphirius e Janotus de Bragmarclo, apaixonados racionadores.

Pode conceber-sc, tranquilamente, que semelhante clivisao sc torne complementar? 0 matemarico conhecera melhor 0 mundo e mesmo a sua pr6pria lingua gem se se entrega a fisica, 0 fisico conhecera melhor as coisas e mesmo a sua pr6pria utensilagem se se entregar a tecnica, 0

tccnico se aprende 0 artesanato c 0 artesao se acecle a obra de arte. o ifil6sofo gramatico conhecera melhor a lingua e 0 conhecimento e 0

mundo se tolerar 0 estilo c sc interessar pelas suas explora<;oes. Ao contra­rio, concebe-se 0 progresso do artista quando de se prcocupa com 0 artesanato, 0 do artesao fazendo-se passar par tecnico, 0 do tecnico ... e assim ate ao fim do caminho, tanto para as matematicas como para as logicas. Mas e um caminho duplo para 0 fil6sofo. E, pOI'tanto, como com­plemento, 0 estilista na~ cscreve sequel' sem luna obediencia previa a gral11atica, sem 16gica nem regras no scnticio, scm sintaxe nem semftntica. Se ele escrcvc realmente e porque isso lhe e consentido.

Mas nao explicita nem as regras nem as leis. 0 gramatico, pOI' sua vez, nao desenvolve nunca a lingua que, alias, fala sempre com finura e peltinencia. Um supoe 0 outro: a explora<;ao, 0 desenvolvimento, implic<1111 a regra que implica tocla uma filosofia; mas a gram:ttica supoe uma lingua que apenas pode existir com as suas odisseias. 0 facto precede 0 direito, mas 0 direito precede 0 facto. A obra antecipa a sua 16gica no tempo cia hist6ria e a filosofia crgue-se quan­do chega a noite, mas as regras antecipam a sua pr6pria aplicac;ao no tempo ideal c 16gico do saber e 0 t1l6sofo despelta com a aurora.

81 INSTITUTO DE PSICC'L0Gl~ - UFRGS

BIF' LI{)T :',- r ~ j , .... ,. ,

Page 75: O terceiro instruído

Ora, se 0 estilista raramente tem necessidade da gramatica e pode trans­grecli-la no pr6prio acto refinado de inven\'ao, se 0 gramatico nao se afei<;aa nUllca ao estilo com as suas clelicadas mifll.kias de analise, resta que 0 fil6sofo, presente nessas dU<ls frentes, tem nccessicbde de conhecer o gesto de ambos e deve fazel', se isso for possIve!, com que um se torne no outro. Mas em nome de que principia ablativo sc limitaria a teoria clos elementos, dado que 0 trabalho positivo da lfngu<1 consiste tambem em acompanha-la ate aos pr6prios confins e ao seu futuro?

o gramatico analista elimina t~lcilmente 0 mito, a poesia ou a literatura em viltude dos seus contetldos confusos ou obscuros, mas em todo 0 caso cnvoltos, porque procura 0 claro e 0 distinto, a explfcito, e suscita sempre 0

debate entre difcrentes posi<;oes. Para a seu gosto, a narrativa naa sabc nunca o que di .....

o estilista ri-se do gramatico, Rabelais de Janotus, Moliere de Marphirius, Marivaux de Honorius e Musset de Blazius, a literatllra zomba da academia ou esta dos universit~hios atraves de pequcnos 6dios que espalham ° terror em casas de guerra implacaveI, um POlICO minuciosa em excesso, em face sobre­wdo cia imobilidadc. A analise clarifica, mas nao agita, explicitando indefini­clamente, argumentando sem descanso. A gramatica filos6fica do nosso tempo conseguira ir mais longe clo que no seclilo XVIII e este avan~ara para Ia das teorias medievais au estas llltrapassaram mesmo a Antiguidade? Nao. Nesses Iugares t~lscinantes, a filosofia descobre-se como um ponto de acumula~ao, de oncle extrai um debate sem treguas, como se retira a agua de lUll pO\,O, scm poder ja caminhar a passos largos como 0 estave! Zenao. Decerto, isso ilumi­na, mas nUI1ca se move. Decelto, isso esclarece, mas ~l custa de unYtl lingua­gem tecnica restrita, afiada, cerracla, passanclo muitas vezes pelo aigoritmo, clepressa inacessIvei para quem a nao fala, como outrora a escoiastica, como se a escola separasse com complacencia todos £1queles que nao dis poem cle meios para p~lIticipar n£1 conversa~ao. Podera clarificar-se tambem a cllsta da mais espessa obscuridacle?

Como se 0 obscuro se igualasse e 0 que nisso se implica permanecesse afastado de toda a gente. Como se ~l linguagem se vingasse em ambos os casos. Mas e preciso pagar sempre com a moecla que se deseja ganhar. Nao querem analisar isso? Nunca se para de 0 fazer sel11 abandonar 0 mesmo aspecto, como se metessemos a mao nllm po<;o infinito de onde a dicoto­mia renasce pOl' si mesma. Desejam mesmo clarifica-la? Nao deixarao entao de fazer IlIz ate a extin<;ao de todos os focos. Desejam explicita-Ia? Nao parem, pOI-que a implic<l\,ao se impoe incessantemente. Querem dehate-la? o debate engendra-se a si mesmo porque a guerra s6 se entende bem com a guerra, passanclo por cima de todos os problemas e dos m01tos, espezi­nhando 0 mesmo Iugar. Por isso, as rigorasas filosofias da comllnic~l(;ao se tornam incomunicaveis a for\,a cia sua tecnicidade.

82

Page 76: O terceiro instruído

r Os esfor~os Oll trabalhos do gramatico c do estilista aproximam-se tanto que se op6em. Entregues a esse envolvimcnto C01110 a lima vertigem, c1c­senvolvcm 0 obscuro, lun em comprecnsao, jllsteza c profundidacle, Dutro em extens:lO, largueza e movimento. Estas explic<l\,oes expostas ficam ca­ras: em ambos as casas, e preciso pagar, e111bora todos acreditem que nao pagam. fOra a verdade e que tudo se p~lga: meSIl10 0 progresso, l11eSI110 as liberdades clemocraticas, mcsmo 0 aterSIl1o, e por vezcs paga-se tudo ll1uito caro. AWis, as clcspcsas a hIzer clevem clIlnprir-sc na lnoecla que tem cursu no mcrcaclo em que se fazem esscs ncg6cios: em dinhciro sonante no pequeno comercio, na tfoca clo £111101" pOI' ternura, na assinatura propria nos contratos cscritos, pOl' vezes mesmo con1 0 sangue c a vida. Sempre que for necessario pagar ou gastar para conhecer, deve-se pOI' conseguinte regular essa divida, mas na moeda do conhecimento. A c1aridaclc paga-se com estreitcza c a largueza ele vistas com a imprecisao. A c1arifica~ao acerta-se peJa estatica e pcla esterilidacle, a inven~ao e a velocielaclc pelo confuso e 0 obscuro.! Mcsmo em filosofia, ningucm eonscguiu obter nunca ao lllesmo tempo ~l manteiga e 0 seu prc~o cle ellsto. A caela lim 0 seu risco. Um ace ita que lhe atem os pes e 0 outro nao c1eseja tel' ao solos pes descalc;os. '/A caminhacla, a conida, dispenclelll e perdem lUn pOll co de luz, a analise permite a feeunelidacle. Uma qucstao de escala: 0 que elissipam ou ganham 0 lllicrose6pio c 0 telescopio, 0 pormcnor ou 0 grande cera? Alguns constrangimentos pagalll-se mesmo com a liberdaele e ccrtas re­grcssbes pagam-se com 0 progresso. Mas e preciso, sobretudo, fazer um balan~o~

Cada qual conta as perdas clo outro para the dizer amavelmente: eu nao pereebo patavina do que dizes. 0 gramatico cliz ao estilista: fora daqui, espirito confuso e irracional. 0 estilista cliz: tens sempre razao no que avan~as e desejas, nisso eu eoncordo. E depois? Astuto, prudente, rigoroso, circunspecto, avan~as meio milimetro nwn seeulo. Durante esse tempo, distraklo, corajoso, intuitivo, creio quc isso faz sentido, sim, scnticlo sobre a vida, 0 mundo, 0 tragico, 0 proprio conhecimcnto, 0 amor, a rela~ao com o proximo, e as anclorinhas que levantam voo sempre pela Primavera. Fa~o vivcr a lfngua a custa da cIariclade. Tu clarificas-a a cllsta cia propria vida. Se ell analisassc, no acto de con'er, 0 movimento dos ossos, ml\SClilos e ncur6nios, as minhas inten~oes c objeetivos, razoes e propor~oes, nunea eome~aria a correr. 0 gramatico diz: tu nao sabes nada. E tu nao fazes nada, responde 0 estilista.

Mas um e outro pensam de forma COlTecta. 0 fil6sofo sabe, mas tambem faz, trabalham ambos em estaleiros de media eseala.

o analista corta, distingue para reconheeer os e1elnentos, pOl' exe1l1plo ela lingua. Mas a dicotomia ou a separa~ao nao tem 0 exclusivo na busca do elemental'. Torna1l1-se possiveis outras opera~bcs, em todas as ciencias ou pesqllisas, pOI' exe1l1p10 na qufmica: 0 peso, a mistura de um corpo nU1l1 outro au 0 contaeto de ambos, as reac~6es, 0 exame ou 0 contro10 das

83\

l -----------_._------------_.-

Page 77: O terceiro instruído

I'

varia~6es em certo modo de funcionar Oll proccsso respcitam lig<ls;:oes e conexoes clestruldas pcla clivis~lo c permitenl rcconhccer a preseo\,a de um metal, a autenticiclacle de lima Jiga, a mais adequacla, all seja -a vcrdacle cia analise: n1t~toclos neccss{lfios se aquela faIha, desejaveis mesmo se se 1110S­

tfa agressiva, porque truncal' as slIas liga\,ocs naa cleixa as coisas tal como estaval11. 0 meSIlla se passa na filosofia e na lingua: a fiI6sofo escritor en.'iaia.

Ele prava, experimenta. Ele testa, ensaia: dais antigos vcrbos cia velha quimica, meSIlla cia alquimia, regressados ao sell lIS0 COl11Utn. Utiliz,l-se ainda a antiga palavra caclinho nos laborat6rios, pcclas;o all potc de IOllql refractaria que servia para ensaiar Oll testal' 0 GlUO, mas nao se conhece ja esse ensaio no sentido da sua pesagem.

o m6sofo escritor experimenta COIn a lfngua ao construl-Ia, conlO 0

gesto do artesao continua e prolonga a linha cia sua ~ute, como pauta musical ou linha de senticlo e, sempre que pode, avan~a. 0 analista detem­-se, esmaga, teoriza; 0 escritor prossegue, Inantem taclas as liga~6es, fabri­ca, porque acredita que nao se conhece nacla que se nao tenha profissio­nalmente praticado. Uma linguagem fechacla oferece um conhecimento esteril das coisas mortas. Saber a sua lingua exige, pois, que tudo se f~l~a, se teste ou se ensaie com ela.

I. Um ensaio correcto produz, por vezes, com frequencia, um resultaclo negativo, oposto, insensato. Os object os vingan1-se assim como a lingua, como a terra quando nao e trabalhac!a. ReserV<lI11 algo de inesperaclo, nao reagenl como estava previsto. A tentativa comporta um certo risco de <lcaso e desconhecido. I, ,

Expoe-se qU;:lndo se faz, imp6e-se quando se clesfaz. Quando se desfaz, nunca realmente nos iluclimos. Nao conhes;o nenhum meio mel hoI' para ter sempre r<12ao. Nao creio conhecer, em contrapartida, me1hor defini\-"ao do homem do que 0 velho adagio errare humanum est, a que devo acrescen­tar: e humano aquele que se engan~\. Ou peIo l11enos tentou. \1

Fragil, nu, diante de uma falsa porta, 0 escritor apenas confia no seu talento que nunca tem a solidez de um lnetodo: sem escoht para 0 proteger pelo clialogo e a posi~ao repetida no· seio do grupo, sem imitador nem mestre, ele explora sozinho. Portanto, pocle falhar, enganar-se Oll perder­-se. Assume esse CITO possIvel e essa quecla eventual COIllO clefeitos ocor­ridos no tlanco da sua obra. Sofrimento e coragem na sua errancia para pagar tocla a novidacle. POI'que toclas as manhas se apresentam diante dele algumas form;ls estranhas, imprevisIveis, tao seclutoras e belas que ele se levanta, a pressa, ao alvorecer, com grande entllsiasmo para atravessar essas paisagens, interessado em retomar a viagetl1 atraves de lim muncio poucas vezes familiar, muitas vezes extraordinario. Nunca sa be 0 que vai acontecer na pagina seguinte. Tanto pior para a sua quecla, mas ele tenta! Se percler, nao tera causado mal a ninguem, mas sc ganhar ficar{, contente. Para 0 diabo toclas as falhas, ele tenta.

Page 78: O terceiro instruído

T

L

Poderia ter-se a audacia de [alar clo munelo se acaso 0 nao tivessemos percorrido? Tal C01110 as caisas diferem imensamente do que clizem os discursos, livros, jornais, revistas, representaC;6es, tan1bem a lingua nada tern a ver com 0 que se cliz quando flaG e praticada em tada a plenitude.

Acredita-se facilmente que naD existe nenhuma cliferenC;3 entre lim dis­curso sabre Margaux e Margaux, desde que se flaG tenha [eito esse esforc;o. Tomem e bebam. Gostam. Experimentem. Sabe-se que quaJquer bam atlas nos mostra no deserto um lugar habitado pelos tuaregues do Sara. Partan1 para la, vao. Mas cIescontem alguma coisa de tudo 0 que os jornais clizem. Dispam-se, corram pelo prado, brinquem. Crftica Eaeil, arte cliffcH. Nao, 0

arnor flaG se prova nunca pelas palavras, nem com as cartas amorosas. Nao basta falar, e preciso praticar. Uma historia clita nao vale lima hist6ria vivicla, embora ofere~a mais gloria e clinheiro infinitamente com menos cansa~o, tal como as estrategias se jogan1 no terreno. Em todo 0 caso, devem selnpre ten tar .

De contrario, mentem. Mentiriam, mesmo se clissessem a verdacle, Sll­pondo qlle ficariam contentes de a dizer. Vivam, apreciem, partam, brin­quem, fa~am, nao copiem. A verdadeira mentira resulta cle se recuar seln­pre diante de qualquer tentativa.

Cn2-se facilmente que a Ifngua analisada pela gramatica e a filosofia valem a lingua viva inventada pela escrita. Nao. 0 gramatico, 0 professor, o fil6sofo nao escrevem nunca para saber. Nao se tem observado nas aulas, nas escolas enos anfiteatros uma verdadeira falta de exercicio? 0 examinador ou juiz nao exige nunca um poema, uma noveia, romance ou pe~a de teatro, nunca exige uma medita~ao, mas sen1pre a critica ou a hist6ria, a copia de capias. POI-qUe? Porque nao saberia redigir 0 que se corrige. Peio contra.rio, exige historia, critica, analise. POI-qUe? Porque isso ele sa be e pode recopiar. POI-que? POl' faciliclade. Fazer explora, clesfazer explode. Nao mintam, escrevam. Toda a verdacle, nada mais clo que a verdade.

Mas, aten~ao: ela e mortal.

S6crates, analista, exige um discurso breve. Interrompe ret6ricos e rapsodos, zomba deles e torpedeia-os. As suas questoes cortam a exposi­~ao em frases breves de dialogo e a sua dicotomia conduz a proposi~ao at raves de lim minimo de palavras.

Porque escreves ou falas em "exigir», e em que sentido ou com que exigencia tu falas? Que discurso, porque um cliscurso, longo, breve, que dialogo, porque um dialogo, que perderas se tudo isso COl-tares? Nao im­porta quem pode dar a S6crates os golpes que ele deu a Protagoras ou nao importa a quem_ COIn que direito impoes tu, aqui e agora, esse tipo de argumenta~ao? Sob que condi~ao? Que desejas au contra quem te bates? A extensao das questoes previas e das condi~oes exigidas cia bem a meclida cia sua malevolencia. Mas COlno tu amas a briga e 0 trjunfo, S6crates, como

85

Page 79: O terceiro instruído

. ,

pode a tua alma descer tao baixo? Mas quem te nomeou como advogaclo geml ou procuf<ldor implacavcl da humanidade? Porque assumes tu a lugar daqueles que nos concienam e que algum ciia te hao-de julgar? Que ressen­timento te leva a acusa\,ao perpetua de todos aqueles que tu encontras? Com que direito te arrogas 0 direito de perscguir e cienunciar? Um terceiro S6crates, se se quiser, poele nascer, pOl' sua vez, clas qucstoes colocadas par Socrates a S6crates, e assim tanto como se c1esejar. Eis assim aberto 0

poc;o indefinido do debate. Annada com a sua curta espada, 0 soldado de infantaria avan\,a para 0

cavaleiro para tentar um combate mais pr6ximo, num corpo a corpo de que sai clerrotado. Embara(ado na sua montada, conl a sua gualdrapa e a sua clamide, 0 sofista escritor cai pOl' tcrra, liberto dos seus ar\,oes, porque tem o habito de galopar a cavalo c nao de lutar no chao, armado com lim arco com cllja flecha atira para bem longe Oll com 0 clarclo que elc Ian\,a. Ei-lo agora atirado por terra, fragil, mergulhaclo e esmagaclo no ch~10 por Socra­tes. Qual a sua raiva e com que ciircito?

Um atomiza 0 texto, pOl' um pcqucno estalido de esgrima, que ponne­noriza com cuiclaclo a larga recle de sentidos entrecruzacios pelo outro c sobre as quais as atrac\,oes a longa distancia representam 0 exordia fin,ll e se revelam reciprocamente subtis.

o min11iclao com um pequeno sabre, protegido com uma pesacla courac;,l, insecto quitinoso, enfrenta, em campo fechado, 0 rechirio clescal~o, despido, de lac;o agil, como passaro volllvei. Combate Singular do soldaclo cst{nico e solido contra 0 atiracior agil e envolvente: os 1'0111anos apreciavam outror~1 esses dois gladi,lciores, modelos reduzidos da cavala1'ia nas manobras terriveis e cia inf"lI1taria na sua resistencia obstinada, bem colocada no chao, que se opoem numa mcsma batalha, em linha e cm campo abeno.

A espada esventra, despeclapl, corta a recie, talha l11alha a malha nas falhas clo falso-sentido. 0 reciario faz ondular 0 la~o, como rede que sc torna armadilha, plano e esfera, muro e prisao, superfkie csquercia e volu­me mobiL a dimensao zero, ponto Oll bola que rola no punho do gladiaclor; numa s6 climensao, longa cadeia de raz6es atiradas par,l os ombros; a duas climens6es, trabalho com a capa aberta diante clo mirmichl0, como esse engodo que 0 touro olha; a tres climensoes, omnipresen~a, em redor do corpo, de lac;;os cruzados que 0 prenclem, 0 apertam, 0 sufocam, 0 condu­zem ~l morte.

Analisada, desfeita a faca, Frase a frase, letra a letra, palavra a pala\'ra, guardara a lingua 0 mesmo alcance, Um,l semelhante fUl1c;ao que e ondu­bnte, mobil, conexa, ligae!a, muclanelo sem cessar de aparencia, tlutuante com a sua composiC;;ao propria, sempre global Oll 11)('smo densa como lima pech'a na rnao? Nao pocled tel', em ambos os casos, um estatuto polemico ou guerreiro?

S6crates sold ado de infantaria desconcerta 0 cavaleiro, Socrates mirmidao csmaga 0 lac;;o clo reciario, Socrates pilar, imovel, pesco<;o de touro lan\'ado

86

Page 80: O terceiro instruído

l

para a [rente, no t(mel escuro clo combate, com as pes enterrados na lama ate ao tarnazela, resiste a qualquer investicla, pJaqueia mesmo 0 folego das jogadores de tcrccira linha au tres quartos, que altcram toclo a dis po­sitivo pesaclo de uma imperceptivel llluciao\,<l de apan2ncia. Antes cia luta palma a palmo, 0 media de abertura, mudanclo de pe, reorienta todo 0

tecido do juga fcchado para 0 lado aberto, com Ull1 ligeiro Oll invisfvcl c1esvio de equilfbrio, as Iinhas atrasadas mistificam-se sem cessar em seo­tielo contr:trio.

Quando 0 analista distingue 0 ciireito clo esqllcrc!o, com 0 terceiro cxc1uklo, 0 cstilista COIOCOli ja no chao, acariciando a terra, lima terceira pata de pomba, que mal se vislumbra e faz vaal' 0 1<1\,0 ate as tribunas populares, uncle era esperado do lado presiciencial. Combate breve Oll

demorado, mudan~a de escala, Uma col una avan~a passo a passo, metro a metro, pela terra duramente conquistada, lima torsao de rins, lima finta Oll

movimento de costas, lima patada na caixa, que vai percorrer ainda uns sessenta metros, Sobre que vazio te inclinas tll, analista, a questao colocou­-se mllito mais longe sobre as sllabas geodesicas da linguagcm", Ergue a cahe~a par cima dessa mole, ve mais alto e mais longe,

o touro mlope, com 0 pesco\,o inclinado para a terra ocre, lan~a todo o scu peso c as chifres, numa 6rbita rectiHnea, para 0 toureiro em vestes mortuarias de iuz, revoillteando pOl' entre mariposas e manoletinas venne­lhas, as pernas tensas, finas, frageis, tremlliantes, as virilhas e as ancas bem expostas, um punho intcligente para a mais pequena solicita~ao, Que po­der{l acontecer, com essa sua inclina~ao, num milfmetro ou numa fracc;ao de segundos? Qual dos dois, soldado quadrllpede ou correclor de pe ligei­ro, vai morrer, na cclebraC;ao de um 11101nento decisivo na hist6ria da estupidez humana, qual dos dois, no chao ou em contrape, vai matar, nessa comemora~ao do instante em que 0 colectivo, sem 0 saber nem clecidir, passou do sacriffcio humano ao sacriffcio animal?

S6crates touro, olhos globulosos, frente calva, focinho dc fauno, feio de meter medo, desmonta com um gesto de cabec;a 0 fantoche sofista desar­ticulado, Que instante come mora ele nesse odioso parridclio? Que momen­tos desaparecidos se consagram quando 0 pilar plaqueia 0 tres-quartos, quando 0 reciario estrangulava mesmo no chao 0 minnidao vencicio, quan­do 0 soldado dc infantaria desancava 0 cavaleiro, quando 0 analista con­vence atraves cIo nao-sentido 0 fil6sofo escritor? Mcsmo que cleste modo se passe do crimc ao espectaculo, cIa guerra a ginastica, cIo rita a linguagem, do sangue derramacIo a propria filosofia, as comportamentos permanecem cstaveis tal como as paixoes,

Mas nao nos pocIemos iludir sobre 0 que distinguc os corpos ginasticados clas natufczas atlcticas, dizem as bons treinadores, lJns con'em, saltam, brinc<1m, enquanto os outros lutam ou equilibram-se nos aparelhos como

87

Page 81: O terceiro instruído

{.!" C

I ~i

, ')

I

h{l pOlleD faziam as I1lcstt'es de marinhagem. Nenhum atleta se en contra ) vontade no trapezia au nas barras, pOlleos ginastas sc descmbara~am bcm l1a pista all no terrena. Musculatura baixa, atarracac!a, forc;a nos bnl\'Os C cintura ('scapular uu antes uma forma longiHnca, fOfs;a .e elasticidaclc subre as coxas. 0 recfutamcnto militar rcprcscntava, suponho ell, cssas duas populac;oes. CUlna recruta, S6crates movil1lent~l-sc entre as ginastas.

o professor, bam treinaclor de inteligencias, nao se cngana, isso nunca acontecc, acerC3 cia Inesma cliferenc;a pOI' parte clo conhecimento. ObSCfV<l as duas populac;6es de modo semelhante: trabalhaclores pcrsistentcs, Lima VOI1-

tade obstinacla, horizontes CUftos c poucas icieias, eficazes c cstaveis, triunt~lclores, regressando sempre aD mesmo <lssunta, cletenninados e obses­sivos, lrnarroes; intuitivos ligeiros de olfacto subtil, muitas idcias passagciras, inventores privaclos do dominio cia sua pr6pria fecundidade, ineficazcs, insta­veis, enamorados de beleza, espertos. Exploradores realistas e aristocratas miseraveis. 0 insecto cavaclor e 0 passaro migratorio, 0 gramatico e 0 estilista. Dom Quixote c Sancho Panr;;a. Hoje, Pan\a faz a sua fortuna na ciencia, mas e na vulgar Iiteratura que Quixote alardeia a SU;:l Iniseria.

S6crates e Platao. Nao existe filosofia scm esta dupla estar em paz, scm cste casal se sentir uniclo como nunca. Scmpre eln duelo, em suma. PhIUlo - Imas para onele corria ele, assustado, na altura cht morte clo sell mestre, o grande ausente do Fedon? -, Plat:)o escreve, arquivado 0 processo, sobre 0 cadaver de S6crates, rigiclo e frio, no tenl10 clas finas an{tlises cb alma; PIa tao envenena S6crates com a cicuta para escrever clemoraclamente e bem, mergulha no torpor do pr6prio torpor, <lchninistra-Ihe um narc6tico para nao se sentir cle mesmo entorpecido, imobilizado, obrigaclo sem ces­sal' a essa dicotomia esgotante e tambem infinita no seu genero como 0

discurso mais dilufclo. Que grande oportuniclade para manter a gramatica ~l

clistfmcia sem as zumbiclos clo gramatico, cumprir a lei clepois cia morte do legis lad or, mas que tristeza tragica comcmorar semprc 0 mesmo combate (' pela mesma razao de mortc.

Quando escreve, 0 touro esta morto. Mas nunca explica pOl' que C que Socrates nunca pode escrever: esgotado de tanto analisar.

Velha filosona selvagem cm que a paz nao pode intervir senao cntre lim S6crates ricliculo, sentaclo sobre 0 seu jumento, e urn belo Platao clerrota­cia, escarrachaclo num<l pileca, no encalr;;o das ideias mais puras, Dom Quixote e Sancho Pan(a.

Que 0 escritor considere a gramatica como 0 seu demonic e de ligeir,-t ironia, Jargueza de vistas au de campo, que 0 analista oferer;;a ao estilo lima soliclez sem macula, e assim renascera a filosofia. Assegur~tr 0 seu lugar na vizinhanr;;a mais pr6xima, mas pennanecer af~lstaclo: ninguem conduz as sC'us passos na montanha, com ° cavalo ao lado, com a seu COl'PO, quase semprc com a sua vida, a sua alma, a sua famnia, 0 sell or~amcnto ou a sua ~lplicar;;ao, o seu pensamento, passanclo c1esse simples c necessario preceito, que reune num relance de olhos 0 local e 0 global, 0 universal e 0 singular, mas cuja

88

Page 82: O terceiro instruído

r

l

clisjlln~ao produz lima (mica estupiclez risfvei, qucda Oll imobilidade, Quixote c1iante dos l11oinhos e a clesilusao, Sancho cultivando a placiclez.

Nao existc uma filosofia scm essa ciupla apazigU<lcla, rinclo clos cOl11ba­tes inllteis c tornados simpiesmente rituais como comemoLl~ao. Mas agora que nos recorclamos nitidamentc clas cachlvcrcs que jazem entre n6s, 0 do gala sacrificaclo subre 0 de Socrates condcnaclo, cia touro Oll do matacior, do reciario e do minniciao, clo sold ado de infantaria e do cavaieiro, agora que nos lembramos desse pee ado original clas c1isputas linguisticas, cia arcaica pratica cia morte, para que serve esse ritual cia comemora~ao? Porque continuam a com bater na arena cia linguagen1 0 estilista e 0 gra­matico?

Se a filosofia, <l11liga da sabedoria, ou 11lais gramaticalmente, portanto eOll1 mais elegancia no estilo, :..-ahida no umor, tem pOl' objectivo 0 que pretende na sua origem, poder{l afirmar-se amanha cm conjunto com a lingua e exigira os seus apoios, mais do quc ~l amllise e a rct6riea em conjunto, aos mitos e as religiocs, ~IS tecnicas c as ciencias, com 0 tercciro, a1 inclufdo.

Nesse dia, recomec;ara a aventura.

Uma lembranc;a dc juventude: Leibniz conclui 0 sell Discurso da Con­/ormidude da PC com a Ruzdo na altura dos funerais de Bayle. 0 meu adversario, afirma ele, ve-se agora na presenc;a de Deus - e sa be que eu tenho razao. Um poueo antes, tinha citado grandes preclccessores, como Abelardo, que sofrera no corpo as agruras clas SU;:IS c1iscllssoes. Leibniz impbe-se, pais, a Bayle que ja esta morto. 0 tribunal condena-o e final­mente compreende-se 0 peso dessa sentenc;a: dantesca. A IJiuina Comedia tambem se vinga post mortem nos tres cspac;os sobrcnaturais distinguidos peb senten(a. A vingan~;a da cscrita e da filosofia expande-se como a bomba atomica.

Nao mata apenas, mas condena ou ainda salva meSll10 dcpois cia morte. Nas ciencias, as teorias muciam, na~ apenas pelo maravilhoso pocler da sua veracidadc, mas porque oS defensores adversos fazem a slla rctirada, mor­rem talvez no meio dc eo16quios e na administra~'ao e scmpre se encontra um historiador qualquer para desenterrar os cadaveres e candenar outra vez este ou aquele inventor esquecido de insistir scm descanso no inferno do etTo e clas sombras enganadoras, A Hist6ria: um pac;o de rcssen­timentos.

Mas ainda aqui a inten<;ao do discurso se regula pcb marte, em canfor­midade com a razao cafe, POl'que se a razao racionadora e pcrsistente empurra a ac1versario para a morte, a fe 56 por si revela-nos 0 que se passa dentro dela. POI-tanto, a confonnidade, quero dizer a caisa c a causa que tem em comum a te e a razao, C £linda a pr6pria morte, Claro, de uma forma especulativa, mas tambem, pratiea11lente, na discussao escrita entre

89 INSTITUTO DE PSICtJ:~C,

frI~r!:~ ~f'j'" ',' * ._~ l .

Page 83: O terceiro instruído

Leibniz e Bayle, ate aos esplendidos fllnerais do segundo, imolado a entra­da do tribunal cia 'J'eociiceia. Porem, atras do tribunal em que Deus cOlupa­rece pOl' si mesmo como acusado, aparece aquele em que 0 fil6sofo, como escritar, triunfa.

Leibniz constr6i entao 0 pretoria e acusa al a causa clivina. Tcm a seus pes - e nisso se bascia - a tll111l!lO de Bayle, um santo e razoavel fil6sofo que vai resolver a questao e cal1seguir lima boa senten<;a. Tal como Platao se levanta sabre as exequias e 0 tumulo de Socrates. Mas sed. que esta posi~'ao aproxima todos os filosofos? A razao filosofica tera sempre neces­sidacle de um crime para se consolidar?

Ainda ha pouco se deu comigo uma mudanpl ill1portante: os meus pes nao se apoiam no tlllllUlo - cheio - cle nenhul11 corpo particular, mas sobre 0 cenotano - vazio - do genero hllmano na sua totaliclade, desde «;] Thanatocracia», au seja, Statues e Contrat naturel. No tribunal cIa razao e da ciencia, 0 fil6sofo clcfende hoje a sobrevivencia clos homens e cia Terra, revela-sc a favor cia prolongada vacuiclade cia abominavel caixa negra.

Nao se trata de nenhuma pratica de morte singlJlar, mas ela exigencia cspecifica cia vida: apenas nos batcmos j5 contra n6s mcsmos. N;10 somos nem uns nem outros, opostos uns aos outros, mas vivemos toelos como terceiros.

Uma certa hist6ria se cncerra. E ser{, que uma nova vai comes,'ar?

PAZ SOBRE AS ESPECIES

Uma cstrada envolve a Univcrsidacle de Stanford; no interior cia cin­tura, quinze mil mulhcres c homens cscrevem, leem, experimentam, imprimem, Gllculal11, rClmem-se para hdar com frequencia e por vczes pens3111, cntregues ~lS suas linguagens e c6digos. Fora dcsse limite, quasc scmprc pelaclas e par vezcs verdes, tres colinas suaves servem como refllgio aos passeantcs que, sc fizerem ~dg1l111 silencio au anclarem mais lentamcnte, podem encontrar at alguns gaios reais e falcoes francelhos, raras cascaveis e algumas serpentes inofcnsivas, um l11ilhafre Oll uma cnorme tarfmtula, mllit~'s vezes uma manada cle bczerros, como replica tacita dos proprios cstudantes e investigaelores que se encontram mais em baixo.

Apenas se vislul11bra 0 sol ou a Iua, a bab ao longe, a falha de Saint­-Andre muito pcrto, n.lo se oLive senao 0 vento, 0 dciar canoro de algum passaro tao hidl de imitar que 0 cantor logo responde com com placencia, tuclo pOI' at se comunica, po is atraves cia linguagem: sera esse LlIn clos lugares cle Lim outro saber?

90

Page 84: O terceiro instruído

Recusanclo transportar, como passeantc, a Ifngua de lllll silencio para outro, a passeante solitario procurara fazer sobretudo incidir esta mais antiga naqlleia, que e nova, mas como discipulo de Sao Francisco prcfere falar aos passaros e assim cscutar 0 seu canto.

E assil11 os animais sempre se calam.

NUPCIAS DA TERRA COM OS SEUS SUCESSIVOS MESTRES

Chcgados tarde, inundando ainda a Terra com a slia juventude, desajei­tados, teimosos, altivos, apenas com alguns mil hoes de anos, portanto mal aclaptados, arrogantes dcntro da sua pequena ciencia, os hominideos jul­gam-se as primeiros porque foram os lJltil110S a chcgar. Materia inerte, flora e fauna muitas vezes mais antigas do que eles. Mas parecem c1esconhecer que a sua hist6ria, nova e recente, repete milhares de ciclos Olltrora con­cluidos.

Ei-nos af. Quando cada uma das especies vivas a parcceu a luz do dia, as Olltras viram-na ell1preencler activJ.mente a conqllista de tocla a Terra, cia flora e cia fauna em geml, presente e passada, 0 espa\-'o, 0 tempo, a energia, enfim, toda a criac;;ao, clesde 0 sol as entranhas do globo.

Plantas, peixes, repteis, passaros, insectos, mamiferos, cicio apos cicio e tempo atras de tempo, pOl' vagas sucessivas, arrancaram a vida 0 dominio e 0 imperio, cada qual segundo as seus pr6prios meios e com a sua estrategia, climensao, forc;;a, potencia, nlllnero, astlkia e clesconfianc;;a, ate ao extremo limite clo pocler c cia gloria.

E todos, sem excepC;;ao, do venne ao touro, do feto ~l sequ6ia, do mosquito ~l vaca, cia serpcnte a baleia, gera\'ao ap6s gerac;;:10, se tarnam reis: 0 lobo, a rata, 0 ocelote, 0 veaclo ... Ao apraxin1a-Ios, reconhcccmos ainda hoje, em cima cia arvore ou no proprio tronco, pdo seu tamanho Oll pela altura, a majcstacle cia rcino e cia mais antiga dignidade. Est:l0 ai no seu apogeu.

Mas, cle repcnte, e preciso decidir. Cada especie, especializada, chegada aos limites extremos da sua apropriac;ao, fez sacudir 0 que era incite e gcral na sua obliqlla estrciteza. 0 novo mcstre invadiu a Terra inteira: toda a superficie clo globo se encontrou de Sllbito povoada pOI' mil hoes de lagartos - nacla de novo sob 0 sol; a reproduc;ao racional abrange 0 real multipio e cheio cle folhas; ou ainda, segundo a pr6pria supremacia, mllna lmica e gcneralizacla tenniteira, a tennita ja nacla tem para comer a nao ser lima outra termita.

Atingindo, pais, a seu cume, essa especie e!imina toclas as outras e clestr6i a Terra, colocacla em clesequilibrio e em perigo de morte par essa simplificac;ao e, entao, cst a (Iltima coloca pOl' sua vez a especie rainha em

91

Page 85: O terceiro instruído

'I':

perigo de extin\,8.o pelo seu proprio e excessivo triunfo, Mas se porventura oS ratos deixassem de existir, como e que de facto os ratos pocleri'lm continual' a existir apenas entre eles?

Neste limiar vertiginoso, lima por lima, no decurso clo tempo e em mil hoes de milenios, foi assim que por sua vez as especies se aprcsentaram e a Terra as consideroll,

Aqui e ;:lli, no universo, talvez noutras terras, escaparam a esse desafio, clesistiram cia sua luta final contra 0 clono tempor{uio, mas a presen\,<i constante e hierarquica da propria Tcrra, aqui enl baixo, demonstra que apenas nesse limiar temporal, reproclllzido sem cessar atraves cla nossa evolu(ao, se obtem selnpre a ultima palavra,

Cacla lim dos reinos rccuOll perante a Mae, Algumas especies clesapareceram e muitas outras Iiteralmcnte se sujeitaram.

Decelto subsistem pOl'que renunciaram ao dominio (mico, ao pocler c a gloria, a concorrencia impbc{\vel, perante 0 anuncio cia propria mOlte colectiva a que se seguiu imediatamente lima definitiva vit6ria, Para sobreviver, pois, por si mesmas e elas pr6prias, tomaram LIma decisao silenciada, definida tacitamente no seu gene coclificaclo, Nasceu ai a marca cia slla propria humilh,v;;ao,

Sim, humilharam-se perante a Terra, abanclonaranl 0 apogcu e entraram neb: obedientes a todas as sujei\,oes, mergulharanl ai para se mistllrarem n<1 profundeza dos mares ou deslizaram sobre a sllpcrficic sem a perturbar, colando-se na vaga, abriram a custo cavernas escuras no humus Oll nas rochas, desapareceram nas turbulencias clas altas regioes Oll deixaram-se enla<;;'ar, im6veis, numa recle inextricavel de lianas c de l'amos para formal' a massa clas florestas plllviais ou equatoriais, todas enfim clissolvidas, mis­turadas, funclidas na Natureza, assim mesmo denominacla porque dera ori­gem ao nascimento, silenciosa e comunitari'amente, de toclas as especies que acabavam de abandonar a arrogancia clo sell antigo destino, esse paranoico projecto de ocupar a Terra inteira s6 pOl' si, ou atenuando a sua grande estrategia para conseguir a cega obediencia do instinto, desvio harmonico sem falhas da Tcrra-Mae, que entao as protegell.

E assim perante 0 homel1l, 0 animal parecc inclinar-se hoje llluito humi­lhado, 0 nosso esquecimento incluz essa ilUS~lO estllpida. Mas a obecliencia retlecte, em toelos os lugares e tempos, uma imagem de comando,

Muito jovens £linda, chegados tarde, apenas corn alguns mil hoes ele anos, nUnGl aclquirimos a mem6ria dos reinos anteriores; a era cia liana, ela aranha, clo escaravelho, 0 reino elo mamute, cia mosca ou cia vaGI. Mas a lingua lembra-se elisso, porque 0 nome que 0 hom em recebeu deriva ela sua humilclacle,

Orgulhoso, arrogante, cheio cle pocler e de gloria ou inclinaclo activa­mente para etas, 0 homo humili:.,- parece ignorar que 0 seu clestino, escrito na propria denomina<;;'ao, como uma elecis::l0 principal, final e definitiva clas plantas c anima is, se inscreve silencioso no gcnolna clas especics e 0

obrigara lim elia a humilhar-sc, A funelir-se, a misturar-se, a esconder-sc no

92

Page 86: O terceiro instruído

h(llllUS, nosso primeiro parente, perante 0 riseo de lllorte e de enterramento. Poueo voeacionados para eomandar, todos noS inclinaremos, pela nossa parte, perante cssa Terra que tem 0 nosso mesn10 norlle.

Ao contra rio clas nossas ilusoes, se os animais se hllmilh~lm, eom a eabec;;:a no chao e as olhos baixos, mostram-nos assim que, cpoea apos epoea, representaram lim dia e eada um por sua vez 0 pape! dos homens.

HlImilhados, todos os seres vivos um dia se ehamaram homens all foram homens. Alcanc;;:aram 0 apogeu e e01110 reis lan~aral11 0 desafio viril do seu c1omfnio antes cia retiracla definitiva. A nossa lfngua 0 reafirma, 0 olhar cia otaria 0 cxprime, pode-se mesmo eonta-Io pclas riseas cla pele do tigre, Ie-Io sobre a ear~lpac;;:a vermelha da viuva-negra ou clecifra-lo nas manchas calmas da anaconda.

Toclos os seres humanos, antcs da sua dissolllc;;:ao no h(llllUS e no ins­tinto, carregam atras de si 0 seu vercladeiro pecado original, estavel para sempre no pr6prio genoma: 0 de tercm siclo homens, ou seja reis, novos, gloriosos, poderosos e tao loucamente concorrenciais que acabaram porse esquecer cia Terra. Obedientes depois por muito teren1 comanclado, aban­donaram essa inteligencia em favor cia bestialiclaclc. Selvagens e sabios.

Esse pecado c guarclado fixalllcnte por toclos c tocla cssa existencia instintiva continua instalada na nossa mem6ria, lllas fazemo-Io avanc;;:ar en1 ft·cnte eomo 0 nosso projecto colectivo. Nao e ja original, mas terminal. Pr6ximo, final, mas nao primitivo.

Eis-nos aqui, pois, como as (Iltimos, no apogeu cia pocler, no exacto mOlllento de cometer algum erro. Vamos abandonar 0 parafso?

Devo dizer aDs meus netos que me recordo ainda cle uma infflncia calma passada no campo, que nos clava frutos muito c1eliciosos.

Escolher: 0 imperio Oll a Terra? Mas esta selnprc ganhou ate hojc.

Procuro lim caminho intermedin entre a inteligencia altiva arrogante imbecil e 0 instinto harm6nico polido humilhaclo, obedientc com lima placiclez animal por tel' comandado 101lcamente.

Nao me deixo ficar, portanto, pcla estracla - terceira - de crista lc­vantacla entrc as institllic;;:6es cia ciencia e as colinas do silencio.

PAZ E VIDA PELA INVEN<;,:AO

Aprendizagem, esqllecimento. Oeixanclo de lado alguns casos rarfssimos, 111enos de dez seguramentc em quatro milenios de hist6ria conhccicla, cujos nomes assinam quase toclas as obras no c1omfnio clas mateI11aticas e da mllsica,

93

Page 87: O terceiro instruído

~ ,II

II:

essas cluas linguagens de mil valorcs pOl'que privaclas de um sentido discur­sivo, nao se reencontra nenhum genio natural, imediato c selvagem. Quem espera pela inspin.l<;ao apenas produzira vento, que sao ambos acrofagicos. Tudo resulta scmpre do pr6prio trabalho, incluindo nele 0 dom gratuito cia idcia que despelta. Entregar-se, aqui e agora, de lim golpe, a qualquer coisa que scja, sem prcpara<;ao, conduz a uma '-lIte bruta, cujo interesse sc limita a psicopatologia ou a moda: coisa passageira para p,llha<;os e saltimbancos.

Obra de arte, sim, mas vejamos 0 seu sentido. A obra tem como autor lIln opcdrio, de forma<;ao artesanal, tornado especialista na sua materia, por entre fonnas, cores, imagens, como linguagem para mim, mannore ou paisagem em qualquer laclo. Antes de pretender produzir novos pensamentos, c preciso, por exemplo, escutar as vogais: um ope­rario, um artesao da escrita distribui-as ao tonga cia frase e pela pagina como lun pintor espalha os verdes e os vennclhos, ou lllll compositor comb ina os meta is e as percussoes, mas nao imparta nunca como 0 faz. o mesmo se passa com as consoantes au subordinadas: um trabalho clemorado sobre a folha pejada como 0 toncl das Danaides, tao indefi­nido que par at passa toda a sua vida. Criar: entregar-se apenas a isso, descle a alvorada ate a agonia.

Mas isso supoe tel' boa sallcle: devoranclo a corpo no meio cia sua c1csorclem, a cria<;ao conduz a morte e mata na nor cia idac1e quem a ela nao resiste com tocla a for<;a: Rafael, Mozart, Schubert, a volta dos trinta anos, Balzac e Sao Tomas de Aquino, perto dos qlIarenta.

Antes de eomec;ar a rimar, 0 vdho Corneille despia-se para se enrol aI', todo nu, nos seus cobertores de burel e assim suaI' COI11 abundancia, como se fizesse sauna: a obra genial transpira do corpo como lima sccreC;ao. Brota das glanclulas. Par scu lado, Rousseau e Diclerot caminhavam todos os elias algu­mas dezenas de quil6metros. As novas icleias emanam de certos atletas. 0 apelielo Pia tao significa em grego ser largo de ombros. Por isso e preciso imaginal' os grandes fil6sofos como jogadores de raguebi. Na enx{lrcia do veleiro com tres m<1stros, entre Saint-Malo e Baltimore, Chateaubriand obriga­va os marinheiros a uma gimlstica acrobatica e na corda bamba.

Costumavam perguntar a Malebranche como e POl'que Deus tinha cria­do 0 munelo, com 0 scu cortejo de penas e hUI11ilhac;6es, de crimes c abominac;6es, esse Deus infinito que pode tao faciln1ente rcpousar, gozan­clo etcrnamente da sua inteligencia e feliciclade renovaclas, mas a isso 0

fil6sofo tinha 0 habito de responder que ninguem cria nacla a nao ser pOl' um acrescimo de poder: portanto, 0 universo nasce da su perpotencia clesse factor. Na pratica, nada de rna is vcrdadeiro: Quanta mais for<;,1 tiver, mais a obra rcsuita, porquc cia fraqucza nacla se consegue.

Reencontramos, pois, ccrtos genios cloentes, drogaclos, fracos all melan­c6licos. Duviclanclo, sim; patol6gicos, nao. Tendo produziclo muitos 6nulos estereis, a pllblicidaclc romflntica e mentirosa em favor de um criaclor 101l­

co, desajustado Oll desequilibraclo, cuja obra avanc;a para a nevrose all

94

Page 88: O terceiro instruído

L

para a qUlI111Cl: nacla resuita de lim picadela ncm de um frasco de alcool. Ou antes: sllponcio que, fraeo e csmorecicio, 0 operario comc\,a a sua obra, pequena e crcsccnte, depressa isso funciona para de como lim apaio e sem ccssar 0 refol\'a. A obra habita pcla slia for\,<l e depois cssa fon;a instala-se na obra; lima alimcnta-sc cia Dutra que assim com eIa se confor­m<1 e ambas crcseem, numa simbiose espiralacla, lima em rela\,ao a olltra, aumcntando a slIa resistencia a atraq:ao cia murte.

o que se clcsigna como a imortalidacle das obras-pritnas resulta simplcs­mente c1essa voluta posit iva que sc alimenta e se alarga sabre si mesma, como um turbilhao au lima gahlxia. A sa(,cle vital procluz-sc a si pr6pria, em scguida 0 prociuto enche-se de vida ate veneer quer a morbiclez quer n mortalidade. E assim vive intensamente 0 que nasceu h5. ja do is mil anos. Se a obra tem ncccssidade do opera rio, h5. um momento em que ele nao tem j5. necessidade dela: d{l-lhe 0 seu curpo e a sua vida, ela aeeita-o corn algum beneficio. E nesse limite acontece 0 triunfo sobre a mortc.

Portanto, existe uma higiene, sim, uma dietetica da obra. Os desportistas de alta competi~ao vivem como monges e tal como csses atletas vivem assim as criadores. Querem come~ar a inventar au a criar? Comecem entao peJo ginasio, sete horas de sono regular e um regime alimentar. A vida dura mais e a disciplina e mais exigente: ascese e austericlade. Resistam ferozmente aos cliscursos em vulta que pretendem clizer a contra rio. Tudo o que debilita acaba pOI' esterilizar: alcool, tabaco, longas noitaclas e me­dicamentos. Resistam nao apenas as drogas narc6ticas, mas sobretudo ~l

qufmica social, de longe a mais forte e, portanto, a pior: aos media, as fonnas cstabelecidas. Toda a gente diz sempre a mesma eoisa e, como 0

Huxo da propria influcncia, juntos descem ao longo cia grande encosta. A obra de arte ergue-se como obstaculo perante essa derrocacla. Triunfo

sobre a morte, identifica-se com a vida e apenas existe vida conhecida no plano individual. Singular. Original. Solitaria. Obstinada. A obra cria so par si uma especie animal, dado que a sua arvore, filogenetica, procluz frutos ou rebentos individualizaclos, livros, mllsicas, filmes ou poemas. Resulta, puis, da simples distribui~ao dos neuronios e dos vasos sanguineos. Nunca cia banaliclade colectiva. E, ao contrflrio cia mochl, oposta ao que se prochl­ma, resiste pOl' defini~ao aos media, quero clizer, a media.

o objecliuu da instrufao e 0 fim da instrufao, uu seja, cia il1uenfao. A invens;ao e 0 (lI1ico acto intelectual verdadeiro, a (mica ac~ao de intcligen­cia. 0 resto? Copia, disfarce, reprochJ~ao, pregui~a, convens;ao, batalha, sonho. Apenas ela suscita a clescoberta. 56 a invenc;ao demonstra que se pensa verclaclciramente aquilo que se pensa, qualquer que seja essa Illesma coisa. Eu penso, logo invento, eu invcnto, logo penso: e a (mica prova de que um sabio trabalha ou de que um escritor escreve. Trabalhar para que ou antes escrever para que? Muitos outros dormem uu lutam e preparam-

95

Page 89: O terceiro instruído

.",

'",'. 1:£:

-se mal para mOlTer. Repetell1. 0 tolego inventivo rcsulta somente da vida porquc a vida inventa. Uma falta de inven<;ao prova, em contraparticla, a ausencia de obra e de pensamento. Aquele que nao inventa trabalha, mas sem usaI' a inteligencia. Animal. De resto, como n<l vida. Morte.

As institui<;oes de cultura, de ensino Oll cle investiga<;~lo, aquelas que vivem de mensagens, de imagens repetidas Oll de moclelos copiaclos, os grancles mamutes cia Universidade, clos media Oll cia edir;ao, meSIllO as proprias icieocracias, rocleiam-se de uma massa de artificios que impeclem a invenr;ao ou a esmagam, consicleram-na como 0 pi or dos perigos. Os inventores causam-Ihe meclo como os santos punham em perigo as igrejas, cle oncle os carcieais, par se scntircm incol11oclacios, os expulsavam. Quanto mais as instituir;oes evoluem para uma climcnsao gigantesca, melhor se estabelecem entao as contra-indicar;oes clo exercfcio clo pensamento. Dese­jam criar? Pensem enta~ no perigo que correm.

A invenr;8.0, ligeira, ri-se cia mamute, pesado; solitaria, ignora 0 grande animal colectivo; clelicacla, evita a fon~'a que se prende a esse colectivo; durante toda a minha vida, aclmirei a forr;a cia inteligencia que provoca 0

tacito contrato social clos estabelecimentos ditos intelectuais. A inven<JIO, agil, rapida, fustiga 0 ventre mole clo animal sossegaclo; a intenr;ao voltacl~t para a descoberta traz consigo, sem dllvida, ll1na subtileza insllporl{tvcl para as grandcs organizar;oes, que apenas poclem conservar dentro de si as concli<;oes para consumir a propria redunclftncia e impedir a liberdadc de pensamento.

Chama-se informac;;ao a uma quantidade que e proporcional a raridaclc. Verclacleiramcnte cientifica, t~tl defini<;ao surpreende quem percebe que a outra informa(ao se espalha e difuncle ate a reclunclflncia. Ora, reside nisso um contra-senso: 0 que se propaga e se torna provavel, fazenclo inclinar­-se as caber;as obeclientes, designa-se como entropia, mas, ao contra rio, a neguentropia cresce como 0 improv{J.vcl. A informar;ao, neguentropica c, portanto, pouco provavel, percorre 0 curso irrevcrsfvcl cia entropia que pOl' si avanc;;a para a clesorclem e para 0 nao-diferenciado.

Este ultin10 fluxo utiliza 0 relevo, 0 nfvcl, dissolve as rochas de todas as especies e mistura-<1s, 0 rio arrasta para 0 mar, a mistura com as {Iguas eaela vez mais pesaclas e amarelaclas, a areia inclistinta, enquanto a barragem cria a sua diferenr;a: resiste a clescida que a antiga lfngua clcsignava pOl' engolir e escoiher a jusante. A essas harragens se recluzem todas as origens conhc­ciclas. POl' isso, para que a invenr;ao, como se cliz, encontre a sua fonte, e preciso que essa resistencia intervenha, em quaiqucr altura e em qualquer parte; sem duvida, isso basta. A entropia ciescc, a informa~;:lo sobe, a primeira e provavei, a segllnda mais rara.

96

Page 90: O terceiro instruído

1

Resistir. A corrente, a queda, a dissollH;ao, a desordem, ao tempo. Unl peda<;o de as;:(lclf 11aO pode evitar a {lgua que 0 dissolve, mas ela 11aO

clcrrete 0 dialnante. Poderfamos facilmente clcfinir 0 trabalho como 0 C011-

junto de opera<;oes que permitiriam cortar a cana, extrair e cristalizar 0

<1<;(lcar, a partir cia {lgua que entrasse em sollJ(;ao: pelo contra rio, clissolve­-10 ai cia a conheccr 0 inves desse trabalho. E necessaria haver energia no primeiro caso, mas 11aO no segundo. Como se costUlna clizer, isso faz-se por si meS1110.

Dado que a obra e 0 operano pertencem a mesma familia como a palavra energia, 0 que ser{l a obra que 0 operario faz? Um banco de cnergia, um dep6sito de patencia como um lago a montante de uma bar­ragem, lima t11ina de carvao, uma toalha de petr6leo, um capital qualquer. Saturado de inform~lI;ao, inestragavel, a obra de altc nao resiste apenas ao tempo quc passa, mas antcs 0 exeede.

Observa-se scm clifieulclade a diferen\,a temporal, pOl' excmplo, entre a obra de arte e 0 objecto de luxo: este mostra-se 111uito mais caro no momenta em que a moela a exibe, mas alguns anos de po is revenele-se par qualquer pre\,o ou mesmo em saldo; as seus quach'os, em contra partida, nao salva ram Van Gogh cia indigencia nem Gauguin cia extrema miseria, e centcnas cle parasitas eonseguem depois os seus quach'os a peso de oiro ou clo iene. Na eq\.Ja\,ao em que 0 tempo e dinheiro, a obra sobe e 0 objecto clesce.

Eis como se define assim um outro munclo diferente daquele em que vivcmos: a terra e as astros rodopiam af em senticlo inverso: toclos os elias Molierc rejuvenesce e faz rir as minhas netas e a 6pera cia Bastilha, antes de come\"u, leva um vilao a bater num velho. Resistir nao basta, porque nunea se viu em clia elc derroeaela 0 rio subir, ncnl Ulna virgem intimidada ceder entao a qualquer fauno UIll poueo bem elisfan;ado. 0 tempo nao para no seu trabalho de usura e, para pregar lima partida, faz pOl' isso com que 0 rio corra para montante. Vinela cia fonte, a agua faz erescer a estia­gem do lago cia barragelll para cima sem a elevorar.

Reeonhece-se a obra e 0 verdadeiro oper{lrio nesse inelfcio que nao falta e ambos assim rejuvenescem. Morrerao jovens, a for\,<l de correrem para a origenl do mundo. Criar quer dizer chegar as maos do opera rio divino no alvoreeer das coisas. Inverter a tempo.

Como lIma raridacle, a inform,l/;aO corre, pais, na clireo;ao oposta a cia informa\'ao no sentido da sua difusao. Pais bcm: a ordem que comp6e 0

cristal, 0 pentagono das ros{lceas, a celula geminac.la de oncle parte 0

homem, inverte a pr6pria orclem que paralclamente t~lZ com que se curvem toelas as cabc\<ls obedientes. Como se certas coisas percorressem um curso de que descendem as ordens dadas aos homens. Um exige energia, traba­Iho e for\,<1 , 0 outro actua pOl' si sozinho. Dois mundos, do is fluxos ou rota\oes de astros, dois tempos: 0 da obra de arte acompanha a vida, 0

outro escolhe entre a morte e a hist6ria. Reencontran1-se at os dois focos.

97

Page 91: O terceiro instruído

I'

'1'

, . '''.

" ... ,

Resistir nao basta, em virtucle cia invariflncia; e preciso inverter esse sentido, a ac\,ao do proprio movitnento.

Amem, se querem eriar: as fontes, os jactos de agu3, as peclras preciosas, os altos picos das montanhas, os bolbos clas cebobs, as folhas da alcachofra, o olhar da otaria, as celulas germinais, os mhos, wdo tao cheio de infonna­\,oes como os supergigantes azuis que afugentam as armadilhas que assim se perdem: os jornais, 0 que se chama notkias, 0 rumor que se espalha.

No entanto, algumas obras alcan~aram sucesso, mas foi necess{uio que seguissem 0 gosto m,tis provavel para Inerecerenl de subito esse favor. Sim e nao, mas pOl' fim certamente nao.

Para resistir ao ultimata, distinguimos duas especies de sucesso. Sim, 0

prilneiro acompanha a mod a e disso da provas ao transformar-se quase de imecliato num fracasso. Nao resiste um mes, por vezes uma semana, ell1 geral quase no proprio instante. Quantos livros conheceram ontem uma yoga temporaria e enchem hoje as prateleiras dos saldos? Claro, a sucesso nao cia origem a sua sucessao.

Ao contra rio, como pOl' milagre, 0 outro mergulha ate ao fundo clas obras vivas do momento, aclivinha-os, domina-os, revela-os, liberta-os, sus­cita-os. E este segundo triunfo que perdura. E eu 0 clesejo a todos. Mas nao se iludam: nada e mais dificil do que saber enl que consiste 0 presente do nosso tempo. a que tocla a gente diz, Ionge de 0 esclareceer, encobre­-0 e csconde-o. Nao se esque~am que os media repetem hoje 0 que cliziam aqueles que os suportavam quando tinham vinte anos: chegam agora atra­sados, pois, uma gerac;;ao e pOl' vezes cluas. Fortanto, e preciso procurar apaixonadamente 0 que sc e e nao 0 que se diz que se era. Nao escutem ninguem. Rcsistam a essa torrente e as influencias, as medalhas.

Reside nisso 0 (mico meio de libertar 0 presente, que justa mente se define pelo reencontro, raro, miraculoso, saturaclo cle informa~~lO, da obra e clas for~as vivas latentes que a condicionam, mas que so ela pode liber­tar. a momento contemporaneo cria-se pela obra de arte, sabendo-se alem do mais que ela apenas ai se produz. 0 tempo que sempre donne desper­ta-se atraves da cria~ao, como Deus despcrtou Eva que suspirava sobre a costela de AcEto. POI' isso, 0 sucesso assegura e provoca a sucessao: a do tempo segue-se ~l da obra e nao 0 contra rio.

Encontrar 0 que e contemporaneo e coisa benl clificil. Descobrir 0 que o e, e uma invenc;;ao ainda mais ram.

Parcce-me que apenas se pode acreclitar directamente na cultura que se incarna na carne cia propria carne. Costumo gaguejar quando me cxprimo numa outra lingua que nao e a minha, dado que a minha preocupa~ao de clizer e encontrar em frances alguma coisa que 0 meu corpo transporta desde ha milenios na minha lfngua materna clo DC, diviclida entre espanhol e italiano, que sao as olltras duas folhas de unl trevo com pecllmculo

98

Page 92: O terceiro instruído

l

latino, mas pcrdida pOl' terras celtas, portanto a oeste do que e, Oll scja, mais inglcsa do que mccliterranica. Eis £1f a imagem que contem 0 mel! brasao, a tatuagem cia minha pele, 0 que cst{l inscrito no mcu c6c1igo genetico, mesti~o. Nao se inventa entao nada de novo que naa veoha p. clas S1I3S mais profuodas ralzes? Como lim trOYaO, a idcia presente ~ltinge a terra negra c csquccida com a irrespiravel estratosfcra do futuro. Sera ne­cessaria, pais, falar cia nossa especificidadc.

Na ordcm da raridaclc, a tracli<;ao francesa, exigentc, iranica e subtil, sabia mas ligeira, reservacla sob a litotes, a clcva<;:lo e 0 segrecio, manten1 sempre lim grande avan<;o sabre as suas rivais au el11ulas, mas e lima primazia cad a vez mais ignorada, em face cia Slla natureza e ll1uito cxacta­mente da pr6pria quantidade de informac;ao, escondida sob reserva. Roma, Florenc;'-l ou Vcncza cntregam-se mais facilmente do que Paris, cidacle mais sublime do que arn{lvel e sempre diffcil cle comprccnclcr. De resto, Coupcrin e Corneille, infinitamente ousaclos, cntcnclern-se menos a vontadc clo que Beethoven e Shakespeare, que nao hesitam perante qualquer meio fulgu­rante cle captar a benevolencia. POl' hoS, recusarnos atenc;oes e comoclicla­des, de forma que passamos por ser incliferentes e pOl' vezcs mesmo arrogantcs. Que 0 pudor se mostre orgulhoso, eis 0 nosso paradoxo! Assim, sempre com risco de clcixar 0 sLlcesso aos sedutores mais atrevidos e mais seguros, a Franc;a arrisca-se mortalmente a derrubar os proprios franceses, cuja cultura sem cessar <1lneac;a ruil' pOl' esse seu exeesso ou distanciamento. Quando a clebilidade se torna mocht, a nossa lingua, por exemplo, rara, exigente, artfstica, fica a percler. A Coca-Cola impoe-se sem dllvida ~l Sauternes. Nitidamente.

Alias, criticamo-nos a n6s mesmos ate a exasperac;;ao e a exclusao, de forma que nem neste seeulo em que a publiciclacle quase obriga as outros a uma venia, continuamos a bater-nos em todas as eompetic;oes, agora muncliais. Nao se limita apenas as bc1as-artes, essa dimensao improvavcl que nos torna a vida mais diffcil: nao nos agradam nacla os meios termos. As nossas equipas jogam futebol e rftguebi 11luito beln, mas quase sempre se afunclam quando Ihes escasseiam as suas rarfssimas capacidades. Tanto nos estadios como noutros lugares, qualquer cultura cta provas da sua propria natureza. A nossa, a mais diffcil, exige ainda mais <lllstericlade do que mil Olltras que nllnca recusam grande eoisa para Ifl de uma certa complacencia.

Portanto, nacla e mais diffcil em Franc;a do que eriar, mas n6s estamos conclenados a procluzir mesmo no meio clessa indiferenC;<l. Resistam, pois, as importac;oes, muitas vezes ja em decomposiC;ao. Sempre nos revelamos maus nas contrafacc;oes. Mestic;o, sim; imitaclor, nao.

Para eriar e preciso saber e, por isso, trabalhar imensamente, mas essa necessaria concliC;ao pOl' si apenas nao chega. Do passado Oll cia ciencia 0

99

Page 93: O terceiro instruído

1,1' t: t I

'I .. 'I

.1

11,: '.1

I~:

peso csmaga e esteriliza: ninguem procluz menos clo que llIn historiaclor, um professor, ou pi or do que qualquer crltico. Analisar au julgar, eis a que e proprio dos illlpotcntes que, em conjunto, gozanl de todos as poderes.

Com todo a seu cmpo, a sua paixao, a sua c61era e a sua liberdacle vendacla, quem cleseja mesmo assim erial' resiste a fOf\,a do saber, como tambem as obras ja criaclas e ~lS institlli\,oes que as parasitam. Isso signifiea, daramente, que se cleve clcixar de lado tuclo 0 que nos tranquiliza e assuI11ir as maiores riseos. E prceiso instrllir-se 0 mais possivel, a principia, para se reaJizar: tuclo rcsulta do trabalho, clevemos aprender e eriar sem descanso. Mas bifllrco agora para alcan\,ar 0 contd.rio.

Decerto, depois de se ter ;:tprenclido tudo para de seguida quase nacla se saber. DlIviclar para eriar. Rcsisto, pois, para conduir 0 meu discurso anterior.

Tenho vontade agora de falar melhor cia aventllr~l, a unica aventura ainda possfvcl nos tempos que eOlTem, 0 (mieo jogo de que quem percle ganha e de quem ganha mllit<ls vezes percle. Nao, 0 filosofo que procura nao dis poe de nenhllm metoda, a exoclo sem fluno pennanece como a sua clerracleira pennanencia e 0 seu livro braneo. Nao eaminha nem viaja se­guindo por lim mapa que repetiria um espa<,;o ja exploraclo, porque esco­lheu errar. A crrancia comporta alguns riseos de engano ou desorientac;ao. Para on de vais tu? Nao sei. De oncle vens? Proeuro nao me lembrar clisso . Para onele queres ir? Para tocla a parte 0 mais possivel encidopedicamente, mas tento esqueeer-me. Poe de belo as tuas referencias. Ha pOll cos sinais no meio clo cleserto. A mosofia vive e desloca-se nessa paisagcm austera e desertica em que todo Lim povo errar<l durante luna geraC;ao que esperoll e nunca alcanc;a a terra prometicla. N~10 procura lima fonte, um poc;o, montanha au estatua, invenc;oes Oll dcseobcrtas loeais, mas Lim munclo global, habitavel par;! os pr6prios netos.

As ciencias positivas dispoem cle metoclos e de resultados: sabc-se qlW­se sempre 0 qlle se faz, ~lquilo que se matematiza, que se programa e realiza atraves cle qualquer manipulac;·ao em laborat6rio ou quando se realiza uma sonclagem na opiniao publica ~ e, qU<lndo a n~lo sabe, claro que por vezes inventa.

Quando as lfnguas maldizentes pretendem afinl1ar que quase nunca sci o que fa<;o Oll vou pensar quando me entrega a filosofia, pe\,o-lhes que ~lcreditem nessas informa~:oes. Conforme 0 proprio metoda Oll a escola que segue, 0 fiIosofo morre na inflexibilicbde clo dogma ou porqllc se diz que um mcstre vitrificou 0 scu pensamento; obtell1-se assim alguns resul­tados limitados, pOI' sorte a sua diseiplina torna-se uma ciencia, perdida para sempre para a filosofia.

Mas que clevo agora definir: a filosofia confia-se globalmcnte a lima anteeipaC;ao do saber e clas pratieas futuras. Um cientista clescobre au

100

Page 94: O terceiro instruído

invcnta nas lacunas de um metoda, as falhas da expericncia, a incompletude dos resultados ou a hesita~ao cle uma teoria, mas ° fil6sofo nao clispoe nem cle uns nem de outros e muito menos £linda clas suas falhas ou reveses. 0 primeiro, sempre reconhecivel, clefine 0 seu tcmpo, 0 segundo reconhcce-se pelo que ofereceu, sim ou nao, ao futuro: se ele falhar, nao pode existir. A filosofia, rarissil11a, apenas existe se e quando estabelece e define urn cspac;;o que a hist6ria habitara como a pr6pria Idade Media se determinou num<l especie de Arist6teles agostinizado, a Rcnascen~a em Platao e os tempos modernos em Descartes, Leibniz ou Bacon.

A ohm de um filosofo, concretiZ<l-se se e quando se instaura um terre­no que consolidara as invenc;;oes locais futuras. Incide sobre a generalida­de, 0 territ6rio Oll a atmosfera da propria hist6ria clas ciencias e a liberda­de clas <utes, a abertura clo saber e 0 centro cia piedade. Longe cle ser produzida, alifls como hojc, pebs divisocs clo antigo saber e como uma no seio debs, a filosofia tem como fun<;;ao, portanto, engendrar 0 pr6ximo saber, na sua cuitura global, e as razoes pOl' que sonha sempre com a terceira instru~ao.

Essa inven~ao e a sua esperan~a empurram assim para uma aventura de onde nao se regressa e se poclc clescrever em termos de exodo e nao de metodo, de nascimcnto e de mesti<;;agem, como erranda mais do que con10 itinerario ou currlculo, 11111 cleserto privado de referencia em vez de disci­plina como espa<;;o cleterminado, ou seja, tuclo em tenllOS perigosos e arriscaclos que se podem entencler como mitos ou poemas para os excluir clo pensamento, quando se enverecla pOl' caminhos l11ais seguros, mas que se impoem como elel11entos dc uma antropologia cia descobcrta Oll dc uma etica, au mclhor £linda, de uma simples higiene para aqllclcs que se lan~am nessa loucura sem qualquer esperan~a de recompensa. Crist6vao Colombo descobre as Novas Indias, mas nao regressa pel os sells passos; erra, priva­do de um roteiro, por uma zona cle alto mar scm nenhuma referencia; resiste a pressao clos seus pares e 0 SCLI exoclo clesconhece que avista enfim uma globalidacle, a que clara outro nome. Que in1porta. Elc cngendra 1I111 tempo.

Assim, ciesde hfl varios seculos, alguns "fi16sofos clftssicos se empcnha­ram nas Regra.';, imitaclas clos 1110steiros, mas para orientar 0 espfrito. Ollsar­se-ia recscrever para 0 percleI', ou para confundir os jogos clo sujeito Oll cia linguagem publicitarias, tao clesejados na ciclacle ou nos sistemas clominan­tes? Mas aprenclc tucio, em primeiro lugar, C chcgado 0 momento proprio lanc;;a sobre 0 fogo tuclo 0 que possufres, incluindo os teus sapatos, cleixa que tudo assim clcsapare<;;a. Inventa apenas uma terceira inocencia. Se clesejas perder a tua alma, esfor<;'<l-te para a salvarcs, pOl'qUC podes salvaI' enfil11 aquilo mesmo que pareccu perde-la. Dcscobrc somcntc 0 que signi­ficou esse jogo m<.lis arriscado, mais absurclo e mortal, esse jogo em que quem sempre percle acaba por ganhar no outro l11unclo ~ 0 clas coisas em si mesmas.

101

L ____ _

Page 95: O terceiro instruído

" ""

AS homens de toclas as culturas nunca inventaram nacb em nenhuI11 domfnio porque sabiam que caminh<lvam para a morte e souberam viver e pcnsar dentro dessa proximidade, na nossa ultima limita\,ao e origem ex­trema. au seja, 0 iugar teHivel de onde brota toda a vida.

A cria<;:ao resiste ~l motte, reinventando a vida: e a isso chamamos ressurrei\,ao.

UM OUTRO NOME PARA 0 TERCEIRO INSTRUIDO

Eu nao procuro, encontro - e naa escrevo selH que encontre. Nada nos meus livros, em nenhum lugar, fai renovado noutro lado. Que e que existe de mais vivo, ao leve despertar cia alvorada, alem do inesperado improva­vel, t30 desperto para 0 tempo, do que lim achado?

Que tedio mais insuport3.vel existe alem clo raciocinaclor repctitivo que copia ou parece construir, cleslocancla a cada instante 0 mesmo cubo? Que enfadonho passar a tempo a ruminar 0 passado'. Que indolencia repetir um metoda! a metoda procura, mas nao encontra.

No cntanto, ieitor, como e tacil reconhecer-te num texto pot'que 0

recomcC;as scmpre clo mesmo modo: pensas que campreencles esse reto­m:OH, m~lS apenas pracuras sempre a mesma coisa. Pelo contrario, quem entende aquila que encontra?

Exige-se muito de si mesl110 e de quem 0 pratica: novo em caela linha, lim texto nao sc apoia em nenhuma repeti\,J.o. Alte muito mais c1ifkil do que a cia melodia inhnita que se lan<;a e se arrisca, erranclo par um caminho que para si mesma inventa e nao regressa nunca ~l si OU cujo saito apenas se sustenta pel a sua inquietude, exposto e explorado sem cessar nllm outro fragmento ele terra, abrindo como lllll estandarte £10 vento, indo em frente sem proveito nem ajucla, disposto sempre a nascer, ~tlegre, desvairado, atonnentado, torci­do, tortllrante, estranho de all vir, emanado clas rafzcs clo corpo como lim voo de passaro ao redor da folhagem de lima arvore, embrenhado, divergente, exoclo abelto que sofrem e cantam aqlleles que apressadamcntc clesejam qlle as novidades se tarnem achados, arautos, trovadores.

Nasciclo sob lim nome secreto, reencontrei finalmentc os metls antepas­sados e escrevo clescle semprc como lim trovador.

A DUPLA GENERICA DA HISTORIA. MORTE E IMORTALIDADE

Apesar do SCLI nome glorioso, a fon;a qlle possui e 0 sell gesto teatral, a cria\,ao nao pode sob reviver pOI' si mesilla. Morre sem meccnas C ml0 vive senao com ele: Estado, Igreja, empresa ou pessoa abastada. Sc porven­tura se desinteressarem, logo cla desaparece.

102

Page 96: O terceiro instruído

L

E dai se extrai, portanto, lima clcfinic;ao: a criac;ao vai morrendo. A mosona clistingue facilmcntc a natureza e a cuitura, 111(15 compreendemos bem pOl' que isso acontece: sempre em vias de nascer, a primeira opoe-se ao que nao deixa de percler as suas forc;as, enquanto a cuitura luta pela sua existencia e l110rre no acto de eriar. Definic;ao tao justa e tao profunda que, como aventura, a poclemos reencontrar, aqui e ali, pocierosa, rica, respei­tada, dominante e fertil, mas nao se trata com certeza dela mesilla e antes de um sell simulacra au contrafaq;ao. Nao po de haver boa sallClc se nao cria, mas chi a sua vida, pelo contr{lrio, para 0 fazer. Pocien1os reconhece­la por esse sinal que nao nos engana: lima perda seln remeclio. A cuitura criaclora e essa crian~a fragil que expira entre n6s, recem-nascido em ago­nia desde 0 comec:;o do mundo.

E, contucIo, cia sobrevive. Ou melhor, conhecemos como Mecenas so­mente aquele que abrigou a sua imortalicIade num estado nasccnte. A crianc:;a delicada liberta cIa morte hist6rica 0 mortal afortunado que a salva. E ela nao apenas sobrcvive, como ainda revela LJ1na longa e hist6I'ica permanencia de que s6 ela tem 0 segredo para subsistir.

Reside £If 0 doador e 0 beneficia rio: um faz certanlente viver 0 outro, que por sua vez contribui para que de alguma fonna 0 priIueiro possa sob reviver. Inlltil e definir 0 generoso sem aquele que recebe, nem este scm aquclc, porque ambos formam uma dupla indissoci{lvel. Ligados, de facto e de direito, embora de tuoelo assimetrico, Ulll delcs juga a 10ngo prazo e 0 segundo a curto, este mais pdo segura e aquelc com poucas possibilidadcs.

Virgilio seguramente teve um Mecenas e La Fontaine mereceu a atenl);'ao de Fouquet, mas e realmentc bem cscassa a probabilidadc de que os dois (iltimos tivessem poclido sob reviver na hist6ria apenas gra~as a fabllia ou ~l epopeia. Numa dupla assim reunida e estavcl no telupo, 0 que e raro c comum, Ulll assegura a passagcm prescnte e em tenlpo real, enquanto 0 outro beneficia da sua continuidade num perfodo tao longo.

Qual e como? Na verclade, essa dupla, em conjunto, joga 0 prazo curto pelo longo,

que e de rcsto inesperado. Mas, perante a sua ligac:;ao e no meio de sse jogo comum, aparece entretanto a morte, individual ou corporal, ou colectiva, no esquecimento das genll);'oes futuras. E juntas lutam contra 0 mesmo apagamchto.

Dc facto, essa dupla nao poderia esclarecer a hist6ria, dado que compoe a prosopopeia nas duas bces das pr6prias condic:;oes: aqui fOltuna e ali genio, mas nos dois casos uma inencontravcl c a outra £linda mais rara, ali a gene­rosielacle c aqui a crial);'ao, uma ins6lita e a outra ainda mais excepcional?

Eis, pois, a cliitura e a economia, na sua ligac:;ao concretizacla, como um clom e 1I111 contra-clom: que cxperi(~ncia crucial para nos pennitir observar

103

Page 97: O terceiro instruído

as condic;oes elell1entarcs da historia sabre unl cxemplo singular e qlle maravilha pocler af decidir!

Antes e ainda h5 bem pOllCO, alguns situaram a economia como infraestrutura da historia, enquanto vemos nisso apenas 0 que constitui a Slla imediata condic;ao, Inesgotavcl pclo tempo, enquanto a economia a clecompoe em tenlpos breves, a cultura fornece a (mica e profunda infraestrlltura, pOl'que ela e apenas cia, pela sua fraqueza, tem for\'a para p~rmanecer .

, Daf uma nova questao: como e possfvel que 0 que entre nos se revel a como 0 mais fraco, mesmo infantil ou est{t mesmo a morrer, nurna perda irremecliavel, pocle permanecer e continual' obstinacio, senl aiterac;ao, quan­do os nossos corpos se corrompem ou os nossos bens c pocleres clesapa­recem cia superfice cia terra? Como e possfvel que a cultura criaclora estabelec;ao longo prazo cia historia e a sua continlliclacle, que paracloxal­mente 0 16gico funcla e condicione 0 material, que 0 que e Fraco possa sustentar 0 mais forte? 0 material, cluro, funcle 0 16gico, rna is fraco, no presente imediato, mas c1esdc logo 0 prazo curto 0 substitui pOl' uma longa duraC;ao, e assim a relaC;ao se inverte: 0 forte nao dura e apenas perdura a maisfraco, \ I

Mas, em primciro lugar, porque acontcce essa protecc;ao, pOI' parte cia institui~'ao au clos homens ricos, em relac;ao a essa crianC;a fraea e moribun­cia? Como explicar essa improvavel generosidacle para hi clas vantagens fiscais? Pot'que entregue a si mesma, a fortuna tencle a reprocluzir uma fortuna acrescicla e obriga so a pensar nela, pOl'que 0 comando nao sa be engenclrar senao a hierarquia, a guerra infantiliza 0 eontlito e a concorren­cia a rivaliclacle, enfim, porque essas leis clesencacleiam 0 tempo monotono cia historia atraves de reproduc;6es tal como pod em ferir os corpus mesmo espessos. Nada de novo sob esse sol dourado, 0 que se paga depressa aborrece. Comprem, pois, dez casas, tenham vinte engraxadores a traba­lhar, usem vinte aneis de bom prcc;o, instalem-se numa posiC;ao nota vel, que interesse permanece para conquistar mais algllma coisa? POl'que na verclade sempre encontrara a mesma. 0 desejo aviclo como enjoo peb repetic;ao e, embora infinita, a vontade de pocler, que sempre foi somente uma causa cia desgrac;a dos homens, nao encontra cliante de si senao a obecliencia repugnante, numa rclac;ao que nos concluz a condi\'ao animal. Os grandes deste munclo comem no jarclim zoo16gico. E cia! a necessicladc de procurar outro bem para 1ft clo Duro e cia dominac;ao, que sao produto­res exclusivos de monotonia.

Dc novo se pergunta, pois, 0 que e a cultura criaclora? Com frequencia, de manha, Mecenas recebia Virgflio que the lia em voz alta 0 que escrevera na vespera, partilhando juntos assim cssa noviclacle. A cria~'ao inventa as novicladcs, contanclo hoje 0 que ignorava ontem - 0 meu oncio consiste

104

Page 98: O terceiro instruído

em escrever e clizer nao apenas 0 que sei, fasticlioso, morto e passaclo, mais que perfeito, mas, pelo contr{lrio, 0 que eu nao sei e que me cspantar{l -e 0 mecenas passava de manha a conhecer as novidades, nao aquelas que toclos os dias sopram £lOS nossos ouviclos acerca de outros crimes, mas as mesmas, outros escanelalos, gucrras, cat~lstrofes, cncaraclas como poder, ainda e scmpre as mesmas, vel has repeti<;6es mon6tonas ele um munclo entregue a iterativa clomina<;ao, mas exactamente 0 imprevisfvei do artista, o inesperado e rigorosamentc a improvavel.

Nem Meccnas nem sobretuclo Virgflio sabiam de vespera 0 que eliriam no clia seguinte.

Em qualquer altura, essa dupla produz um tempo inedito. A cultura criadora vive com 0 novo e pode definir-se: a probabiliclade mais baixa, portanto, a perda irremedhtvel, a maior raridadc. Nada menos mon6tono nem mais incstimavclmente precioso: sempre em estado nasccnte.

A velha Ifngua francesa, nesse ponto mais vivaz e robusta do que aque-1£1 que dcpois passanlos a usaf, procurava encontrar esse proclutor de lima improvavel novielade: troveiro ao norte, trovaclor £10 sul. Claro, nao as rcconhecenlos senao como pesquisaclores. 0 criador nao procura, que ciiabo, ele encontra e, se nao encontra, que aelianta, pois, poluir a cultura com os seus ressentimcntos?

Essa itnprevislvei inven<;ao designa-se como paz, que cleriva cia inven­<;ao e a condiciona. A paz, mas tambem a vida.

o mecenas t~lZ viver 0 artista no munclo oposto aqucle em quc 0 artista faz sobreviver 0 mecenas. Julgo que sobreviver nao significa apenas prolongar a cxistencia, mas tambem transfigura-Ia. No reino do pao e da agua que 0

generoso oferece £10 criador, 0 tempo vai cia esquercla para a dire ita, clo nascimento a mOlte normal, no scntido cia grande probabilidade, da ccrteza (mica clo Hm; no outro munelo criado pcla obra que 0 trovaclor oferece ao doaclor, 0 tempo vai cia dire ita para a esquercla, cia mOltc para 0 nascimento, para 0 improvavel, para a maior rariclade, para a espantosa noviclaclc. 0 artista c 0 mccenas reencontram-se na intersec<;ao clesscs dois tempos.

Por isso, eu falo cia mho. 0 criador, ao mOlTer, dirige-se para ° nasci­mento c a infancia, no outro senticlo do tempo. E assim a obra nao se utiliza e resistc a monotonia cia hist6ria, cujo tluxo corrc para as maiores possibilidades cia pocler, cia gl6ria e da morte. Seguinclo para a infancia e o nascimento, esta sempre em vias cle nascer, como a natureza ge6rgica e buc61ica com que Virgflio anllnciava ao Mecenas 0 sell parto toclas as manhas. Eis a1 pOl·que a clIltura sc torna lima seguncla natureza.

o criaclor nasce vclho e morre jovem £10 contrftrio daqucles que, bem realistas e com os pes firmcs na terra, como sc costllllla elizer, sabem nascer como crians;as e mOlTer velhos, como toda a gente. Um ofcrccc ao outro 0

clia qlle passa e 0 outr~ cla-lhe a inesgotavel juventucle.

105 INSTITUTD DE PSICOlOGIA - UFRGS

BIBLIOT i-Rr-i

I I

~

Page 99: O terceiro instruído

,.

" ,,'

~I II • ~

Esses dais l11undos que giram em dais senticlos diferentcs e esscs dais tempos ciesconheccm-sc e raramcntc se apreCh1111. Nacla tem de comum c e improvavci que essa c!upJa contingcnte se harmonize atraves de algul11 clom.

E scmprc mais clificil reccber do que dar, porquc toclas as cultunls cxigem, express<lmente Oll de maneira t{leita, Lim clam diferente. Prefiro chamar-Ihe pcrdao. Que interessa aqucle que t~IZ bem chamar parasita ao que 0 defcnclc, se Ihe oferecc lim manto, lim tecto e comicia? Palavras inllteis, levaclas no vento, coisas que nao valem nacla e pOl' isso mesmo se nao podem comprar.

E a troca salcla-sc entao pelo dcsequilibrio: tudo contra nacla, cis Lim contrato leonina. Ou antes: a clistancia entre 0 material e a infonna~'ao. 0 balan<;o ergue-se entao, a medida que se avan<;a elll moclernidacle, em que a prenciemos a estimar esta (Iltima clefinida justanlente em teoria como improbabilidade, como grande raridaeie.

Mas existe lima informa<;ao corrente e rara. Tueio se joga entao nisso a que eu chamaria 0 risco de raridacle. Para um dom raro, 1Il11 outro inencontravel; deccrto que se encontram sempre poucos mecenas, mas aincla muito menos criaeiores.

A procura de um maior rcssentimento faz fracassar, bem enteneiieio, qualqucr iniciativa de mecenato: 0 que faz mais barulho aco1l1panha sempre 0 ar clo tempo e nao sabcria antccipa-Io, mas 0 que anuncia um novo tempo chcga scmpre como 1Il11 f6lego subtil cle vento, slIavemente, sem grande algazarra.

E dai esse resultaclo perigoso: 0 interesse propriarnente cultural, poclerosa­mente criativo, c muitas vczes - mas nem sempre - inversamente propor­cional as paixoes cia momenta e por vezcs - nCI11 scmpre - corresponde ao que mlo revcla nenhllm interesse. A amllise significa tudo para a obra de artc tal como a pesquisa cientifica: acontece qU<lse sempre que se recusa toeb a impoltftncia a Lltn detcfminaclo ffsico aparentemente debnl<;aclo sabre ques­toes sem interesse e que, passados dez anos, rccebe 0 Premio Nobel pela sua invcn<;ao inegual:lvel, justa mente nesse clomfnio. Nao existe nenhu­ma garantia nem seguran<;a para a criatividade; mas, inversamente, quando est;:! se impoe, reembolsa mil vezes a sua garantia e seguran<;a para um tempo demasiaclo longo consenticlo ao seu clmldor, eventualmente ja 11100tO.

Pot·tanto, 0 contra-clom relaciona-sc ·com lima aposta quase SCl11pre perclicla, mas que se desclobra infinit~tl11ente, mais do que qualquer outra, qU~Incio se acaba cle a ganhar. Esse ganho pocle definir-se l11uito rigorosa­mente como 0 de uma seguran<;a-sobrevivencia, porquc se trata de uma outra vida, da vida transfigurada que tenho tendencia para consiclerar como a (mica viavel, por se tratar de imortalidacle e por ela regrcsso assim ~l

continuiclacle cia historia. Virgflio tornOll Mecenas ilnortal e arrasta-Io-:i. na SlI,t bagagcm enquanto a hUl11anidade sobreviver, enquanto dez mil mecenas salvaram cem milmaus poetastros cia fome que abunc.lantemente mereciam.

Mas que intercSs~1 a celebridade! Apenas conta 0 tecido cia propria hist6ria que cia demonstra e COI1Stitlli. Por isso, designei como generica essa cllIpb em que entrou.

106

Page 100: O terceiro instruído

Atraves da continuidade assim tecida, chegamos ao nosso tempo. Certas cadeias deterministas fornecem de preferencia a sociedade dita de consu­mo produtos cujo valor muitas vezes mergulha num intervalo fulgurante: nove decimos, cm volume e em peso, do que compralnos no supermerea­do van directamente para 0 eaixote do lixo e £11 encontram 0 jornal e a quase totalidade do que rccebemos nesse db peIo correio. Consumo ou consumpr;ao denotam esse evidente desvio de importancia. Assim, um pais hoje prospera e desenvolve-se mais c\epressa quantas mais mcrcadorias lans;a para 0 lixo. Dc um objeeto que circuia perguntcm a que prer;o se podera C011lpr{1-lo amanha ou clentro de cinco anos. Perdemos 0 sentido cia raridade. Portanto, 0 Ion go prazo acontece em rela<;'ao aos mesmos aetas e ao mesmo tempo.

o Imperio Romano durou dois mil anos, a Idade Media cia Cristandade um milcnio, 0 dominio britflnico no Mundo estendeu-se ao longo de me­nos de cem anos, 0 reino americana come<;a na (iltima guerra e inicia 0 seu declinio passado um decenio, mas pOl' quanto tempo governarao £linda os cinco dragoes da Asia? Devemos pensar 0 mecenato em t~lce das condis,'oes reais que a hist6ria e a economia fazen1 valorizar, mas ele corr6i-se propor­cionalmente a velocidade das suas circular;oes: lima e Dutra crescem verti­calmente. E dai os seus rendimentos c\ecrescentes.

Proponho assim que sc mantenha a designar;ao de mecenato para as puras ajlldas culturais, para os dons acorclaclos ~lqueles que a sociedade actual, nem mais nem menos do que as anteriores, priva scmpre de todo o bem, ate mOlTer, e nomear pOl' apadrinhamento, ou pior £linda por spomiorinR, os dons que regressam, pOl' r{lpida troca, atraves cia publicida­de, com as nomes pr6prios nas banclcirolas, no desporto ou na cieneia, actividades nob res, mas quase tao ricas como os cloadores, dado que pcla inova<;'ao a pesquisa precede c comanda mesmo a economia. 0 contra-dom ultrapassa em tempo real 0 dom quando 0 veleiro ganha a conida ou a deseoberta relanr;a a produr;ao excedent~lria. Nesse 111omento de desvio vive para a mercacioria, a publicidade, como contra-clom informacional, que vale muitas vczes mais dinheiro do que 0 cluvidoso procluto que agressivamente deseja impor.

Um dom de contra-dom minimo, eis at 0 mecenato. Apenas esse mfni-1110 alcanr;a a corrente poderosa que t~lz percler a raridade. As palavras grau, gras;a au gratuidadc exprimem essa simples tlccha de permuta sem retorno Oll exigencia de rctorno. A 16gica do grau clifere da da permuta. Determinista, esta segue a circulaS;ao dpicia e a baixa fulgurante que acabo de evocar, porque at espera e representa a raricladc. A troca calcula e procura ganhar, 0 dom gratuito representa para quell1 ganha perder c para quem percle ganhar.

A regra do mecenato aproxima-se muito claquela quc cxen;o no mcu trabalho diario, a que abrange todas as pcsquisas, a que conduz a tad os os achaclos e e esta: quem deseja salv~lr a sua alma aceita perde-la e se tu nao

107 L ________________ __

Page 101: O terceiro instruído

,., 1,1 'W

.J U •• XI

queres salv{i-Ia, seguramente que a pcrdeds. Dificulclade inversa ~l cia pru­(h~ncia voltada para 0 pocler c a gloria. lJma bate-sc com a permuta e a olltra lanc;a-se no clom e nos sells puros aC1SOS. Dessas duas especies de jogo difercntcs, os dois tempos de repcnte haa-de nascer c bifurcar-sc.

Um l11ecenas tomba sabre 0 abade Delille, mall verscjaclor, Oll sabre Virgflio, imortal, sabre lim pintoI' de domingo Oll sabre Braque Oll Rafael. 0 nU111cro de genios que morrem desesperaclos comparado com 0 c10s impotentes clis­tinguicios demonstra que a escolha, selnpre cliffcil, se assemclha a lima lotaria, de anele se extrai essa rariclade que j~l perc!emos. A procllra aleat6ria de lima tal improbabilidade, com a m{lxim<1 inform<lc;ao, parece-me representar 0 pa­pel actual e 0 trabalho positivo do mecenas, que restitui entao no nosso mundo, como coisa banal, a improv{lvel csquccido.

Entao, estocasticamente, 0 dom pode alterar-se~ pagar ou fazer tro<;a de uma obra, com valor de usura rapicla, que permanecc trans-historicamente. E 0 mecenas mantem apenas 0 scu nome em rehwao ao artist::!. POl' um acaso ou lotaria, 0 contra-clom impoe-se ao dam, infinitamente.

Essa mudan<;a de pennuta e de grau inverso ao pr6prio tempo que, em vez de lIsar, cleprecia 0 valor, fa-la creseer verticahnente. Uma qllestao se coloca: 0 que se revela hoje, neste tempo sem cultura e cle cria\ao quase nula, como 0 lmico valor que resistc a tad a a inthc;ao e, pelo contra rio, ate sobe? Em que objecto se cleve investir? Resposta unfmime dos peritos: na vere!adeira obra de arte. E isso ell gostaria de dell1onstrar.

Mas para se definir a <lutenticicbde no tempo cxacto, aqui e agora, na~ existe nenhuma certeza. Trabalhem, pois, e aSSUI11am os pr6prios riscos: lima Iota ria para os <llldaciosos, a quem por vezes ;:lcaba por sonir a ver­dadeira fortuna .

Imagino que Virgilio, lima bela manha, recitou cliante clo Mecenas essa pagina cia seu poema em que Eneias desce aos infernos. Quanclo 0 silen­cio substituiu a mllsica cia clfstico, 0 ministro pergl!ntou se era necessaria que 0 her6i morresse para entrar no outro mundo.

- E clescle entao - acresccntou ele -, C0l110 pensas que sc livrou c1isso? Julgas que ressuscitou?

- Nao sei - respondeu Virgflio -, se moneu au nao morreu par isso meSI11O, mas segur~lInente que esse risco teHive! nessa visita infernal con­diciona a existencia e a beleza das obms. Nao existe nenhuma verclacleira cria<;;?to sem uma viagem assim tao negra.

- Explica-te, enta~! - gritou 0 Mecenas, angustiado. - Aqucle que sai cia sombra, e nao sei como - retomou ° autor cia

Fneit./a -, chama-se Encias, como eu 0 fiz, ou talvez antes Homero, que aqui recordo e que na Odisseia fez clescer Ulisses aos mesmos lugares. Evocamos a sua sombra peb magi a cia ritmo: Eneias abandona cnfim 0

abismo, Homero sai daf, Ulisscs tambem e ainda Orfcu, c antes deles 0 sell

108

Page 102: O terceiro instruído

1

antepassado milenar, 0 arcaieo Gilgamesh, que foi 0 primeiro no fertil cres­cente, pelo men os na nossa memoria, partiu ligeiro em busca da imortalida­de. Da caixa negra em que Ulll clia decidiram mergulhar, libcrtaram-se, mll

ap6s outro, finalmente mitridatizados contra 0 esquccimcnto, renascidos, ressuscitacios, os (micos verdacleiramente imortais em virtude do sell supH­cio. Eis al como pela recriac;ao heroica a cultura se torna lima segunda natureza, a verdadeira, aquela que comprcencie 0 quc c nascer, isto e, sair realmcntc do nada. A (mica obra bela que nos concluz a juventude e a beleza (mica chamada humanidacle no sell presente vivo seillpre recriado.

- Mas - pcrguntou ainda 0 ministro -, que quer dizer essa cena ou essa serie m(iltipla, que significa essa sequencia, para lela a historia clos nossos saberes, lima longa teo ria de nomes ilustrcs dcsenvolvicla antes dc Encias nos seculos dos seculos, Gilgamesh, Orfeu, Ulisses, sem esquecer Hercules e Teseu, semideuses que, nao o£1 historia mas pela lenda, se aventura ram tambem nesses ioominaveis subterrflncos?

- Que se 0 genero humano nao receia a morte no sell con junto e na sua historia - diz Virgilio com entusiasmo -, isso 0 cleve aos raros herois que lutaram de perto para produzir e ligar entre si as gera<;oes; podemos chamar-lhes os nossos barqlleiIus: um poueo como caela um de nos faz na sua passagem do sexo para que os pr6prios mhos se afirmem dcpois do seu desaparecimento. Tal como 0 amor tecc a nossa JigaS;ao propria e indivi­dual, corpo a eorpo e na genetica, a arte cumpre essa transmissao na sua mais longa dura<;ao, pela aceita<;ao de uma 1110rtc pessoal que consolida a hist6ria como a nossa pr6pria condiciona 0 nascimento dos nossos clescendentes. Sentimo-nos vivos c juntos, no tempo, pcb obra assim realizada, em parte peIo que nela integra todo 0 saber e em parte por nao receannos estar face a face com 0 mal, a clor, a injusti<;a e a morte.

o Meccnas, de pe, entllsiasmado com esta profunda visao, ainda pergunta: - Mas clepois de nos? Depois de ti, que sais do nada nesta pagina

memoravcl? - Imagino - responde Virgilio ~, e espero ou profetizo, que cssa

passagcm nao para; quem sabe se 0 futuro assist ira ao advento de lima religiao - esse entllsiasmo diligente que resiste a negligencia - fllndacla em parte sobre essa ideia em que nunca ninguem acredita e se revela como o mais grave dos perigos; incarnaria num homem que poderia dizer-se divino e renasceria depois de ter aceite morrer as maos dos mais poderosos de entre os seus contemporaneos. Depois dele, as obras de m(lsica, de pintllra, os poemas, as estatuas, celebrarao durante alguns seculos a slla ressurreir;;ao, que come<;ad a hist6ria da sua era, a cia boa nova que con­sistc em situar a nossa morte, nao ja perante n6s, como sofrida, mas final­mente antes de nos e vercladeiramente esquecida. Porque tambem entio se said dos infernos. Gostaria que um genio nasccsse na Italia, naa lange daqui, e mais tarde me fizesse dcscer eu meSl110 com elc a esscs sells lugares abomin{lveis, em eompanhia de uma mlliher tao feliz peJa viagem

109

IN~TlTUTO DE PSICOI.TGlII - UFRGS

BIBLIOlfC;.

Page 103: O terceiro instruído

·, .' .. ,L

.' J 3 • »

que' sc chamara Bcatriz. Ajuda-la-ei a entrar, lima vcz mais, loucamente, e depois a sair, como promotor de lima bela ohm. Nao, acrescentoll sonha­cloramentc, nao posso concebcr que essa sequencia hist6rica se detenha. A nossa hist6ria fundamental acompanha ados predecessores que mostram 0

caminho mais difkil e lima exigencia radical. A artc sai do tumulo. Se a semente murre, claro, naa pode ciaI' belos [rutos. Nao te afirmo mais clo que lima lei cia vida: mas as leis cia que e mais longa nao se cnunciam 5en;10 pcb mais breve, aquela que pertence aos nossos carpas finitos. Sel11 c1llvicia, existe na carne viva lIm programa pr6prio, escrevo na minha pro­pria Iinguagem, com alguns outr05, a carta cia hist6ria.

E Virgilio catoll-se, finahnente. Quem the sucede? Nos nossos museus, as multid6es COlnemoram hoje

a ressurreiS;ao de Van Gogh ou G,luguin, que morreram na miseria e de fome, sem ajucla nenhuma, e cclebram esse seres vivos espantosalnente presentes com mais importancia e fervor do que os grandes que se enche­ram de gloria, ricos, poderosos, conquistadores, au decapitados entre os pr6prios rolamentos que os tambores do pocler dcixam entendcr, pobres em obras e postericbde, Sem 0 ~Ifirmar, ela sabe, scnte que descendc clecerto de convencionais au de marechais, mas ainda mais de lun misera­vel perdido nos arquipelagos do Pacffico, como Jean Valjean se perdeu nos esgatos de Paris, em busca clessa mesma bcleza que tambem suscitaram esses nomes e esses corpos que suportaram a ten1po,

Enos ignoramos 0 nome do miseravel que, nesse mesmo momenta, da a sua vida pela obra que os nOS$OS netos consllmirao para sobreviver: pot'que se a vontacle de pao por vezes se atenua, essa fome, como cu espero, jamais se apaziguara, Finalmente, 0 que e entao a cliitura? A ressur­rei\'~lo irregular e regular cI~lqlleles quc enfrentaram a morte para criar, que retomam panl Iig,lr a tracli\,ao de ontem a vivacidacle de hoje, Scm cles na~ h{1 continuidade, nao existe imortalidacle para a especie hlltnana, scm 0

sell reconhecimento nao h;;l hist6ria, Portanto, a quem se cleve chamaI' meccnas? A essa jUlwao em que a

longa c1ur~H;ao alia a vida breve, aos lugares r<1r05 em que a hist6ria se projecta sobre ° momento que passa e pode ser a peclra tumular para que um fantasma renaSS;<l au regrcsse, aquele que nos visita hoje, como Ulisscs c Gilgal11esh visitaral11 Mecenas pel a voz de Virgilio, como este visitou Dante e the dell 0 seu ramo de oiro, como a sOinbra de 13eatriz flutuou sobre nos pOl' llm momento, fantasma evanescente, desconhecivel, pronto a apagar-se nos ventos suaves, mas que s6 por si tem a qualidacle, a fan;;a geradora e a ca pacidade de nos reunir, na transmissao hllmana global e para a sementeira incsperada de grandes cria\oes, nestes elias sombrios,

Ai esta incandescente e, recriaelo pel a ciencia e pela morte dos homens, ci-Io como espirito, Hngu<l ele fogo, semcnte de Olltros sois,

110

Page 104: O terceiro instruído

EDUCAR

Page 105: O terceiro instruído

I

,I; ' .. -. . , tt) -, XI

I

Lei do rei: nada de novo sob 0 sol De novo sob 0 sol, algures

De novo sob a sol, aqui Eu. Noite Tu. Dia

A terceira pessoa: fogo

Page 106: O terceiro instruído

LEI DO REI: NADA DE NOVO SOB 0 SOL

A temperatura nao e mais do que a variavel do clima de Ull1 certo lugar. Mil olltros elementos muclam at ao mesmo tempo, ligac!os entre si: 0 releva e a altitude, a humidacle, a cspessura cia camada de terra aravcl sabre a rocha, a riqueza e a clcnsidacle cia nora all cia fauna ... Alguns equilibrios iocais, est:tveis Oll transit6rios cleterminam esses factores. Suponhamos que LIma das variftveis, a temperatura, climinui Oll aumenta fortemente, influen­dada pOl' qualqucr razao.

o frio sobrevem c impde-sc, torna-se tcrrificante all podera clizcr-se que at se imp6c. Ganha c reina. Nao transforma moderadamcnte 0 equilibria fragil obtido pela fusao ondulada de numerosos factures, mas sufoca au encobre a slIa clensiclacle. 0 Inverno ganha a batalha: sobretudo como rei, comanda sozinho os ventos, sustem as aguas, nivcla 0 relevo, cobre a terra e os mares, expulsa ou rarifica a flora e a fauna, impoe certas especies, embranquccc totalmcnte 0 espa\,o e 0 volume: uma (mica lei vitrifica a extcnsao, nada mais haved de novo sob essa luz ciistante e gelada, atraves desses plainos descorados. A monotonia nao se repete perante um olhar indiferente, fonte de luz sem chama cliante da qual desapareceu 0 inespe­rado. Quando surge a unifonnidade, um sol toclo-pocleroso, ausente au presente, produz com efeito essa luz.

Frio. Nacla de novo sob 0 sol. Mas invertamos essa tendencia: ganha, reina 0 calor, clesertifica 0 cspa­

\'0, expulsa au mata de fome animais e plantas, cobre a terra de ariclez e t'lZ evaporar as {lguas cia mar, nivela as colinas e atulha as vales, enfim, imp6e a sua (mica lei aos ventos. A chama clestr6i 0 volume com 0 seu calor c a extensao cumpre a sua orclem.

113

Page 107: O terceiro instruído

.. ;; • .I ~ • I

Reina a lei clo frio nos parses do Norte, a do calor governa 0 SuI, nacla de novo atraves do sol au scm elc. A sabedoria de Salomao coloc£1-o tao lange que elc observa, desligado, a dissoluc;ao que entretanto a insola~ao procluziu. Tera £linda Jugar sob 0 seu alhar? Dccerto, mas faz-se sobretudo pela pr6pria ac\,30. Se sc retirar, 0 banco de gelo branco avans;:a, estala e o deserto ucre estende-se pclo espar;o. Au contrfnio, quando 0 novo falta, proclIfc111, se acaso naG estao mortos, 0 sol que 0 t~lZ cstar ausente.

Nada de novo sob 0 sol. Prova disso sao as paises temperaclos, uncle ~l temperatura sc sU3viza,

porque a maclrugada cai e 0 crepusculo se alonga diante clo pudor cia manha. E assim reaparecem em cataciupa as outfUS factures: hlZ-SC tepiclo

e fresco, seco e hlllniclo, calmo e ventoso, luminoso, claro-escuro, apare­cem abetos, palmeiras, uma fauna bastante variada: tuclo se pade vel' ao mesmo tempo. 0 clima nao atinge a cume, 0 espal);o nao se limita ja a uma excess iva submissao. Essa mistura variavel poclcria clesignar 0 tempo, pala­vra que significa a mistura ou temperamento e com que se qualificam oS parses clitos temperaclos que, por essa razao, como suponho, em contra par­tichl inventaram assim a historia, quero clizer Uilla sequencia temporaria temperacla como uma gama cle acontecimentos.

A noviclacle sobrevem se 0 sol se conserva. Se as aguas se mantem. Com a enchente, comcs;:a e impbe-se 0 dilllVio

ate que tuclo sc abisma sob 0 peso clas suas aguas. Aincla af uma (mica lei: a transgressao marinha, reinante, engole tuclo sob 0 nivel calmo cia {lgll3 seclosa.

Se U1113 especie ou uma variedade viva se mantem. Imaginem a Terra coberta por milhoes de lagartos quasc todos iclenticos ou lima praia intcr­minavel coberta de carangllejos escuros movcnclo-se sem ncnhum espa\,o aberto, toclos expostos a um crescimento vertical cia reprocluy8.o. Ou ainch! o espal);o invaclido por lima rccle inextricflvel de lianas entrelal);aclas, de lima (mica familia, ratos do mesmo grupo ou fonnigas com as meSI110S h{lbitos politicos. E esses ratos, esses lagartos, que poderao eles comer quando tiverem venciclo a famosa guerra cia vida, de forma a nao poclerem viver senao num ambiente exclusivo cle ratos ou de lagartos? De lagartos?

Ou se os homens se mantem. Moclelamos 0 muncio so para n6s, anima is acima de tuclo exclusivamente poifticos, inexoraveis triunf~lclores cia pro­pria luta pela sobrcvivencia, cncerrados para sempre na ciclade construida sem limites, coextensiva ao planeta: quem pode sail' hojc de lima cidacle chamacla )apao ou de uma estufa chamada Holanda? Uma catastrofe: quan­do as estufas cobrirem a tel'r~l. No meio clas pedras e do vic! 1'0, os homens nao tcrao senao vieiro e pcdras sob des, para eclificar, e cliantc cleles, para vivcr, num munclo enfim vitrificado, submetido apenas a sua propria lei. Vivenclo apenas de rehll);OCS, nao comenclo, nao bebendo senao atraves dos seus pr6prios lal);os, dedicaclos enfim a poHtica c so a ela, finalmente sozinhos, como longas lianas em reeles alimentadas pela comunica~ao,

114

Page 108: O terceiro instruído

grancles col6nias de formigas agitaclas, lagartos aos milhoes. A especlc a que 0 homem pertence triunfa, vai reinaI', nao se clesconfia deb, nao se l11antel11, nao rescrva nada da slia forc;a, da sua ciencia, cia sua politica. A «hominiclacle» cleve aprencler essa moclerac;ao, pudor e vergonha; a slla lingua cleve manter a litotes e a ciencia a Slia rescrva. Perscverar sem cessar no pr6prio SCI' ou na sua forc;a 0 que caractedza a fisica do ineite e 0

instinto dos anil11ais. Scm d(lvida, a humaniclade comec;a com a 1110derac;ao.

Mas Dcus tambem se madera. DClis e 0 (mico scr a quen1 semelhante aventura ja aconteceu. 0 monoteismo destruira os deuses locais, j{l nao ouvimos as deusas rirem-sc nas fontes, nem vemos os genios aparecerem no mcio cia folhagem; DeliS esvaziou 0 mundo, diz-se Inesmo que 0 gran­de Pa esta morto. Quanclo 0 sol surgiu clo lado clo Medio Oriente, as estrelas empalideceran1, mergulharam no brasciro cia unidade Inuitas clas suas luzinhas. Nada mais po de pretender alcanc;ar a novidade sob a tocha cia omnitude: um poc;o absoluto cle vercladeiros pensan1entos, omnipoten­cia condicional e criadora, pre-formal);'aO cle todo 0 possivei, clominado pela lei, Deus nao sc modera.

Um eno. Deus moclera-se em toda a eternicladc. Limitaclo - padera se­-I a? - pel a pader do mal, partanta dual e trinitaria, rocleado par mllltiplos mensageiros, serafins e arcanjos, podcres e clominal);'oes, sobrecarregado dia ap6s dia pela pequena gl6ria dos homens chcgados a beatitude au a santidade, coberto de martires, virgens e da ViI'gem, Deus reserva-se ou, como e cle slla natureza, modera 0 seu pocler. A hist6da sagrada cle DeliS nana outra coisa atem cia pr6pria solidao e mostra, pelo contn'irio, a sua moderal);'ao, a sua suspensao, as nossas liberclacles. E dai a sua bonomia, a sua tolerancia, a sua clol);'ura ... Mas se Deus nao aclerisse ao estrito 111ono­teismo? Que diabo, Ele criou 0 mundo e de subito muita gente pretende comanda-Io!

Talvez Sata demonstre a clemencia de DeliS. Talvez 0 mal existentc clcmonstre a slIa bondade. Talvez a existencia clos maus deln6nios, como ados anjos e dos querubins, como a dos santos, da sagrada familia, bans e maus espiritos enfim na me sma linha e par uma vez na meS111a funl);'ao, talvez a existencia de todos os impedimentos que Deus tolera au que n6s impomos a sua ubiquidade, incluindo a sua pr6pria incarna~ao, nos falem da sua benevolencia e cia sua miseric6rdia, em toclas as latitudes em que se afirme. Devemos agradecer a Deus revelar-se bastante moclerado para la clo monoteismo. Sobrevivemos talvez com cssa reserva. Talvez Deus nao tenha cdado 0 munclo senao no campo da sua abstenl);'ao? Que significaria tudo isso se nao Fosse moderaclo?

Dominado pela traciiC;ao, acreditei durante I11uito tempo que 0 monoteis­mo tinha morto os cieuses locais, e lamentei a pcrda clas hamadriacles,

115

Page 109: O terceiro instruído

,I

pagao como tocios os camponeses mcus antepassados. A soliciao em que se encontravam as arvores, os rios, os mares e oS oceanos fllstigava-me, sonhava voltar a povoar esse espa~o vazio, teria mcsmo t~lcihnente exigido 0 regresso dos clellses clerrllbados. Ociiava 0 monotefsmo desse holocausto de divinda­des, parecia-mc uma violencia completa, sem perdao nem desculpa. Mas incapaz de pcnsar de outro modo, por estar ligado a batalha milemhia dos cleuses, a cssa gigantomaquia de que fizemos 0 nosso n10delo.

Peio contra rio, vejo que Deus acolhe os deuses, nao estende as seus bra~os para 0 ciiabo, dado que Sata, C eviciente, toma scmpre tad os os poderes do Mundo sem que alguma vez proteste, reparo mCSI110 que se cleixa perturbar pelos anjos e sofre a concorrencia cia suave lcgiao dos santos, que desaparece mcsmo lim pouco na confusao das asas, cias aureo­las e clos mantos, que mal se Ihes distinguem as palmas. Descubro que Deus e bom e talvez mesmo fraco infinitamente. Modera-se, com pudor e vergonha. E chegou mesmo a clcixar-se matar sem reagir cle forma aclmira­vel. Ao mesmo tempo, rio-mc da vclha gigantomaquia clos pcquenos deu­scs locais, sem cessar como n6s sempre em pe de guerra. E consiclero-me assim ja menos pagao.

Uma lei unica, pretensamente genII, resulta da expansao for~ada de um elemento local que percle a 1110dera~ao, nunca a teve, esqllcce mesmo a no~ao, que tinha aprcncliclo, para fazer clesaparecer 0 resto.

A alvoracla apaga as estreias, nacla no ceu sera novo de po is dela. Ora, o Sol nao e mais do que um anao amarclo cllja aurora esconcle os gigantes azuis. E toclavia os supergigantes continuam a girar, tal como as pr6prias gahlxias. Mas sao inteiramente mais gigantescos, reluzentes e coloridos. 0 anao perdeu a sua climensao e cleixou a Illoclera\,ao. E todavi,l os Qutros ainda giram. A expansao cia lei unica de uma estrela muito pequena ch£1-ma-se aurora.

Os gases ocupam pOI' si Inesmos 0 volume que se oferece em face cia sua pressao expansiva. Nunca ninguenl viu qualqucr gas t~tzer prova de reten~ao para deixar vazia uma parte do espa~o. A barbaric segue a lei (mica. A lei da expansao. A dos gases. Que se propagam. A barbarie espalha-se. A violcncia espalha 0 sangue, que por sua vez se clerrama. A pestilencia, a epiclemia, os micr6bios propagan1-se. 0 rUldo, 0 estrondo, os rumores espalhanl-se. 0 meslllo acontece com a for~a, 0 poder, tal como os reis. E tambem a alllbi~ao. A pllbliciclacle. E preciso fazer uma lista cle todas as coisas que se espalham tao amplalnente como qualquer gas, de todas as coisas qlle se expanclem, ganham espa\,o, ocupam volume. 0 mal estencle-se, eis a sua defini\,ao; excecle os sells limites.

E se 0 sabio escolar se reduzisse a lim anao amarelo? Un1 clesses peque­nos que cstalal11 com rUldo para escondcr alguns supergigantes azuis e silenciosos?

116

Page 110: O terceiro instruído

Ao inves, quem Iouvara 0 pudor cia cultura, a vergonha cia verclade, a litotes cia bela lingua, a moderaC;ao da sabedoria? Passagen1 e falta de excelente qualiclade: nao e bonito sacuclir do ombro os pr6prios defeitos. Faltas e defeitos sao cxigidos pela vcrdade, pela beleza, pela bondade, clecerto, mas tambem peb vida. '

Devemos isso a propria moderac;ao de Deus, criados que fomos nas margens da Sua reserva. Mas clevemos isso tambem ao conjunto clas faltas cometidas pelos outros seres vivos, a terra, a atmosfera, as aguas e as chamas que, em contra partida, devem a sua existencia as reservas margi­nais que Ihes c1cixamos.

A morte impoe sempre a sua lei, portanto, 0 nascimento esconde 0 seu estabulo nas margens do nao-clireito. Natureza e moderar;;ao.

Nada nasce, como novo, se algum sol exasperado 0 impede. A obra nasce num espar;;o moderado. A moral exigc em primeiro lugar essa abstenr;;ao. Primeira obrigar;;ao: a

reserva. Primeira maxima: antes cle fazer 0 bem, evitar 0 mal. Abster-se de todo 0 mal, moderar-se simplcsmente. Porque se se expandir, tal COlno 0

sol, taillbem 0 bem depressa se tOfna no mal. Esta primeira obrigar;;ao condiciona a vida, estende uma vontade ate uma zona de emergencia de oncle resuitara a novidade.

o novo pode nascer sob esse claro-escuro. o homem educaclo modera-se. Reserva aiguma forr;;a para tlloderar a sua

forr;;a, rccusa dentro de si e a sua volta a forr;;a bruta que se propaga. 0 sabio desobedece, pois, a lei (mica de expansao, nao se mantem sempre no seu modo de ser e pensa que erigir a sua pr6pria conduta em lei universal define tanto 0 mal como a loucura.

POl' isso, a raz~to procura nao sofrer qualqucr intluencia, em particular a da sua pr6pria expansao. Reserva algum<l !"aZao para 1110derar a Slla raz30. o homem educaclo e razoavel pode, pois, desobeclecer a razao, para que certas margens nasr;;am em seu red~r, com vista a uma coisa nova. Inventa ~l boa nova. E llm descobridor.

Sc 0 sol, se as agU<lS se moderam, se as especies vivas rescrvam a sua forr;;a, se n6s refreamos a expansao clas nossas razoes, entao e porque Dells se absteve. De contr{lrio, existiria s6 por si. Mas 111Uito clificilmentc se pode clistinguir na densa multiclao de santos e anjos, en1 que se encontrou ainda a sua origem, fragmentada aincla na Trindacle. Esconcle-se e cleixa-se invaclir. A sua ausencia no espar;;o e na historia significa a sua moclerac;ao.

A boa nova nasce a meia-noite: sem sol. Deverlamos clissimular-nos lim pouco sob as arvores e as juncos, abrir

as nossas polfticas aos clireitos clo mundo. Cacla um de n6s cleve ria mode­r~l1'-se, sobrctLlcio abster-nos em con junto, investir LIma parte cia forc;a na atenuac;ao da nossa forr;;a.

117

iN3TiTUTO DE PSiCr , '-'(" r,

B~R U (1

Page 111: O terceiro instruído

, Como humano que nunea baixa as brac;;os perante os fracos, pOl' obri­

ga\-'ao, Oll perante as fortes por ressentimento, meSIllQ em rehH,;ao aqueJes que sao clemonstn:lc1amcnte mallS. /A humanic!ade torna-se humana quando inventa a fraqucza, que e fortemcnte positiva.

Perseverar scm cessar no proprio ser, if mesmo para 15 cia slIa perseverao\,a intciramente clcsenvolvida, ultrapassar conservanclo, cis tim comportamento de IOllcura. A paranoia poderia clcfinir-se pcla expansao de um trac;;o local exaspcrado, vitrificando 0 espa<;o mental para nao clcixar nenhuma oportll­nic!acle aD crescimcnto de lima Dutra variavel. Presente, tim psic6tico irradia lima outra presen<;a, como nele se aperfcic;;oou a psicosc. Real, imperial, solar, mantem 0 sell proprio ser, expande-se, converte 0 proprio mcio a sua volta. A propagaC;;ao cia patologia exeecle tudo 0 que encontra a SU<l [rente e abSOlve isso, conservando-se. Nada de novo sob essa loueura.

I Mas nos suportamos mal essa psicose quando unl indivfduo a impoe, embora por vezes ofcrec;;amos a propria vicla quando cIa se torna colectiva. As nOSS~IS condutas socia is traduzem muitas vezcs as doenc;;as em 1l10dclos gigantes ou adicionam lllll nllIllero de ~1tomos au de elementos quc, enC<I­raclos separadamente, se reduzem a um estado morbiclo. A loucufa, a gran­de loucura, quase sempre muito ou pOllCO se assemelha a eonduta daquele que deseja tornar-se rei e comec;;a a identificar-se con1 0 Sol. 0 povo nao se ilucic por 111uito que 0 loueo se consiclere Ul11 Napoleao. Ora, l1UnGl se diz que se engana aquele que ere. Mas e preciso que algum dia qualquer ge6metra corso acreclite nisso ate ao Hm. 0 eolectivo concentra-se e reeonhe­ee-se em redor do potentado que tucla proeura fazer para que 0 tomem como verclaclciro. Se 0 conseglle, ei-Io coroado C0l110 imperacior, mas se fracassa, clepressa 0 apontam eomo IOlleo. A linha divis6ria e muito tnenor do que ~l que sepam as cluas tentativas clecisivas, Em todos os casos, eis af uma variavcl singular que tenta ir alem clo seu pequeno nicho, que se mantem no pr6prio ser ou se excede, conservanclo-se, Para se definir a Joucura, nao rcceemos utilizar eertas palavras met6dicas cia filosofia,

A loucura desenvolve-se segundo a me sma lei cle expansao claquela mesma que clesignamos como 1'az8.o, E esta pretende invaclir toclo 0 espac;;o como n~IO importa qualquer outra variavcl OU qualquer Olltra desrazao, Razoavcl significa a moderac;;ao antes cia capaciclacle cia sua pr6pria razao) de manei1'a que se designa assim aquele que nem Setllpre tem razao e nao impoe ncnhum<l vantagem sabre aqueles que nunca tem razao nem sobre aqueles que) em rigor) poclem pOl' vezes tel' razao. infima e proxima cle zero e a probabiliclade de ter scm pre razao em rclaC;;ao a tudo e a todos.

'. 0 pcnsamento comec;;a quando 0 clesejo cle saber se liberta de qualque1' tenclencia para a ciominac;;ao, Educamos os nossos filhos a ter vergonha cia raz<.10 para que inanifestem 0 seu puclor. Entenclemos como razilo esta propor's-'ao: cle determina a quantidacle ou 0 volume cia um elemento pre-

118

Page 112: O terceiro instruído

! .

l

seote ouma soluc;ao. Que parte de {tgua existe nesse vinho pura? Como nome dado tambem ao cocficiente de propaga\,8.o numa sequencia all serie, a ra2ao investe-se dessa proporc;ao. Uma nao avan<;a sem a Dutra, mas oao ha razao oem propor<;ao sem se confundirem; a radio razoavel rir­-se-~l, pais, cia razao pura, como de Ulll Qximoro, de tal modo ela mergulha nos carpas confuodiclos, de tal modo nos ensina tuclo 0 que naD e, e de l11uito longe, sempre e pOl' tada a parte como aquila em que coota:- Como poclcmos n6s tef dela uma icleia cxpansiva e unida que se tornot! en1 loucura, tnuito ao contrario, puis, de uma propon;ao? I

Mas a !"azao modera-se.'/Ela nasee, sob a clesignac;ao grega de logos, rclac;ao au propon;ao, quando Tales clescobre, junto das pirfuTIicles, que as grandes valcn1 como 0 pequeno segundo uma identica rcla\'ao.' Que6pe c Quefren, admiraveis faraos, pela primcira vez t11oderam-se perante Miquerino que pOl' si mesmo se previne cliante do COlVO do ge6t11etra, de pe, livre e firme, cuja estatuw mediocre projecta, sob 0 sol, uma sombra setnelhante as tres sombras eoonnes de acordo com a me sma razao, Tales inventa a cicncia nas trevas, fora clas loucuras solares dos reis.

Eis at alga de novo it sombra do sol. E entao a noviclacle ergue-se em cad a minuto do dia au cia noite: essa

fecundidade inintelTupta do tempo, inesperada no cleserto seeo e abrasador, c designada pOl' n6s como a hist6ria clas ciencias, que equivale a clas moderas;oes da pr6pria razao.

Mas a Clenna racional moclera-se. N6s arganizamos meticulosamente um mundo que apenas 0 saber canonizaclo regenerou, un1 espas;o que arrisca assemelhar-se quase a terra coberta de 1'atos. Unificacla, louea, tr~igica, a cien­cia ganha, depressa vai reinar, como rcina e clomina a Inverno. Excelcnte e decerto a saber, mas como 0 frio, quando permanece fresco. Justa e (Itil e seguramente a ciencia, mas como 0 calor, permanecc suave. Quem nega a utilidacIe cia chama e cIo gelo? A ciencia e boa, quem 0 nega, e mesmo, se disso estou cetto, mil vezcs melhor tambem cia que Inil outras coisas boas, mas pretende-se que seja a (mica e a melhqr, c se eOlnpolte como se assim nao fosse, entrando assim num(l dinflmica de loucura. A ch§ncia tornar-se--a sabia quando se moderar a si mesma e fizer tudo a que pode fazer.

POI' mais judiciosa que se apresente uma icieia, torna-se ainda atroz se reina sem quaiquer partilha. Serb perigoso que as ciencias duras se impu­sessem somentc pela pr6pria mane ira de pensar. Ou de viver. Poderemos conceber que as cicncias se tornem sabias, pOl'que basta ria aprencler a litotes, a reserva, a moderac;ao; 0 conte(ldo de llma icleia importa n1llito menos do que a sua conduta, 0 valor cia ciencia estima-se pelas pr6prias metas alcanc;adas e tambem peJa sua verdade: um juizo tempera 0 Dutro. Sim, que importa 0 rigor de um teorema Oll a sua profundiclade se acaba pOI' sufocar as homens ou fazel' pesar sobre des llIn excessivo poder?

119

Page 113: O terceiro instruído

( A sageza consente a sua propria medida. 0 receio de uma soluc:;ao unitaria C 0 come~o cia sabecioria. Nenhuma solllc:;ao constitui so por si Ulna (mica soluc;ao: nem uma detenninacla religiao, nem lima dada politica, nem uma certa ciencia. A unica esperanc:;a que permancce e a de est a (Iltima poder ensinar lima sageza tole1'ante que as outras instancias nunca souberam ensinar verdadciramente e evitar assim lun mllncio unido, louca­mente logico, racionalmente tragico.

A verclade, pOl' dircito, nao cleve assllmir 0 dire ito de se espalhar pelo espac:;o. A sabedoria acrescenta lima moclera4!,'ao ao que e verdadeiro, rcser­va-a aos criterios do que e verdadeiro. Alem elissa, nao poderei considerar col110 mais vereladeiro quem nao pode nem sa be moderar a sua conquista.

Loucura cia verclade solar. Mas tal como a ciencia e a razao se moderam, tambem isso acontcce

com a filosofia. Amo a filosofia porque ele traz consigo essa paiavr,1 de al1101' que estimo, essa sageza que demorei a clescobrir, nao conhec:;o nacla ele melhor do que eIa, de mais vasto, mais quente, Inais profundo ou mais extensivo e luminoso, nacla que se revele mais inteligente, nada que COI11-

preenda melhor as coisas do mundo, os meios cia historia, da linguagem c clo trabalho, que pennita viver melhor e aceder a rara beleza, porque a ela dou a minha vida, 0 meu corpo, 0 meu tempo, oS IllCUS prazeres, as minhas noites e as minh'ls aventuras, meslllo os meus amores, cia os assumiu e melhor soube valorizar, mas tao segufamente como a amo, sei que nao e necessario promove-la nem dar-Ihe qualquer poder, ,lntes pelo contra rio tuclo c1evo fazer para a impcdir cle 0 tCL Muito perigosa. Mas amante cia filosofia, nunca me tornarci um seu zelador. Nao fa\,o nacla para engrandeccr a sua forc:;a.

A filosofia cleve engenclrar homens de trabalho, n1<1S desejo que ela seja esteril para os homens de institui~ao e c1e pocler. Esteril, a instituic:;ao conserva 0 seu modo de seI', av~tn<;a, abstinada e persistcnte. A obra, timida, fraca, frftgil, perclicla, espera que a ,lceitcm, brilha suavemente como lima peelra no v<lzio, felizmente nao se espalha pOl' si. Em relac:;ao a si mesma, a obra modera-sc. Nao h{1 nada de novo no seu claro-escuro.

Se a mosona, esquecida cia obra, pocl~ em qua!quer parte revelar a sua forc:;a, cia reina entretanto nos cemiterios. A historia nflO nos lllostra ne­nhum exemplo em contra rio. Muito perigosos, sao oS fil6sofos. Mais terrf­veis do que os polfticos, os pacires, os cicntistas, mUltiplicam urn pelo outro oS riscos dos outros. Nao conferimos poder as icleias porque elas multiplicam 0 alcance cia sua forc:;a. Muito perigosas, sao as teorias. Como se expandem pelo cspa<;o, alguns milh6es c1e homens clesfilarao cntretanto nUlll passo GIclenciaelo ao longo cle milhares de quilometros descle 0 pro­prio lug.lr cie partida cliantc clos retratos gigantes claqueles que os prOlllO­veram. Propaga<;ao (mica e solu<;ao final. Julga-se sempre que lima ideia nao e pcrigosa apenas porquc ela c falsa. Mas na tnelhor altura exprimirft a verclade e assim devemos evitar a sua publicidadc.

120

Page 114: O terceiro instruído

A sageza propria cia mosofia resulta cia sua moden:l<;ao, construindo esta lllll munclo universalizante, enquanto a arte a rocleia com Ulna margem de bdeza rcscrvada. Filosofos, criem po is a vossa obra com seriedacle e so­fram em silencio como e pr6prio clos poetas: aqueles que em geral sao excluiclos cia cidacle. Mas e melhor assim. Construam Ulna obra grande onde se encontrem precisamente localizaclas todas as coisas clo mundo, rios, ma­res, constela<;oes, os rigores cia ciencia formal, lllOcldos, estruturas, proxi­midacles, exacticloes aproximativas cia experimenta<;ao, turbulencias ou per­cohl<;ao, tlutua<;oes cia historia, multidoes, tempos, pequenos dcsvios, as f5bulas cia lingua e os contos populares, 111as construam-na de forma tao bela que seja moclerada peb sua propria beleza. Modcrada com singulari­dade. Definicla. Prcservada do excesso. POl' sorte e pOI' defini<;ao, 0 initnita­vel nao encontra imitaclores e, portanto, nao se expande nem se propaga.

Tudo belo, tuclo novo. o belo contem 0 vercladeiro, quero dizer retem-no, limita-Ihc a expan­

sao, apaga 0 rasto quando de passa, cJa forma ~lS suas partes. 0 verdadeiro exige um limite e vai busca-Io a beleza.

Quanclo a ciencia e a razao tiverelll atingicio a belcza, entao, nao cor­remos nenhum risco. Como uma coisa bela, a mosona afasta toclo 0 perigo.

POI' ser belo, 0 que c verclaclciro esquece-se de avan<;ar no espa<;o. 0 belo C 0 vercladeiro em paz consigo mesmo: a verclade moclerada.

Mas tambcm a lingua se madera. Nada, sci isso profunda mente, e lao bela C01110 a minha lingua, secretamente musical, nacla se esconde com tanta cliscri<;ao, precisa e clara sem estalar, nenhu111 modo de expressao se aproxima mais da litotes, nada existc de t~lo puro C01110 0 gusto frances, excelente, refinaclo, secreto, tao ausente como Deus sob 0 manto dos querubins ou 0 lil{lS de uma pcra ou m<1<;a secas num velho Yquem, nada se aproximou tanto da bcleza que eu nao poderia suportar que se nao falasse por tocla a parte apenas e sempre na minha lingua.

Sofreria muito, crcio, se tivesse hoje de falar em ingles, quero clizer se tivesse cle consiclerar 0 ingles como lingua materna. Claro, isso p nao se modera e, no entanto, como c belo!

Quando todas as pessoas no 111unclo falare111, finalmente, uma me sma lingua e comunicarcm a mcsma mensa gem au a mesma regra cle razao, clesceremos entao, pobres imbeds, mais baixo clo que os r~ltos, seremos mais estupidos do que os lagartos. A meS111a lingua e ciencia maniacas, as mesmas rcpcti<;6es clos mesmos nomes em toclas as latitucles, a terra cober­ta pOl' simples tagarelas rabujentos.

Quando os podcrosos e os ricos nao falarem senao em ingles, clescobri­rao que a lingua dominante no 111unclo revela lima falta de puclor. Mas terao deixado, com desprezo, os outros clialectos aos pobres.

POl' sercm mais fortes, apenas os melhores se conseguem moclerar. Os ciclaclaos livres cle Atenas, de Tebas, os revolucionarios parisienses do ano II, os potentados clo Ociclente, hoje chcios de clolares, inventaram ou

121

Page 115: O terceiro instruído

praticarn, dizem eles, a democr~lcia, enquanto lhes servia au serve aincht de publicidade au de barrcir,t para esconder como esmagaram os escravos e metecas, como substituiram os nobres dec£1pitaclos ou como exploram ain­cia ate ~I morte 0 Tercciro Mundo.

Qual e, pois, a melhor forma de governo?, perguntam a cad a passo alguns te6ricos. Enunciacia assim, a res posta impoe-se clescle logo: a £1risto­cracia. 0 governo clos melhores c a melhor farIna de governo, 0 Ociclcnte sempre 0 conheceu clesde a alvoracla cia seu pr6prio tempo.

Sempre e par tocla a patte clentro cia nossa cultura, as aristocratas se consi­deraram como iguais, irmaos de armas submctidos a implacavellei clos duel os, equivalencia das fottunas par uma concorrencia selvagem, auxilios impiedosos entre as peritos merecedores, porque e semprc neccss{lfio formar Oli imitar 0

ideal do homem, isto 12, a melhor possivel: nascer, rico ou intcligente. Quando se conheccI11 apenas alguns exemplos e se actua dcntro de CCltos tnoclelos, como evitar a competi<;ao, ou seja, a aristocracia e a desigualdacle?

Optimiza-se enLlo uma tendencia, escolhida: ;:\UI11entam as armas, as riquezas ou os meritos, come<;a a corrida, para que a for<;;a ganhe terreno, ou a fortuna, ou 0 talento. Porque e que se clevem moderar sempre as mclhores coisas?

Ora, descobrimos hft pouco essa nova mas antiga eviclencia de que a Terra nao rode ciaI' aos seus mhos 0 que hojc as ricos lhe arrancam. Existe uma eefta raridade. E, entao, os nossos modelos aristocraticos constantes mclhoram ou optimizam csta ou aquela tcnCh2l1cia para que possa invaclir o espa<;o, <l vcrcladeira democracia, aquela que eu espero, que minora ou minimiza a mesma ou a referida fon;;a. Beneficiar de algum poder e com ele prcvalecer, eis ~lf 0 comc(o da sageza. Da civilizar;8.o.

Filosofia politica da mociera<;ao: a (mica igualdaclc pensavel supoe, ali­as, nao ja a escasscz de riqucza, mas enquanto valor positiv~, a pobreza.

o Tcrceiro Mundo precede-nos. Part~lmos.

DE NOVO SOB 0 SOL, ALGURES

Durante a batalha do Pacffico, uma clas mais duras cia (litima guerra mundial, um navio de apoio, de que mlo direi 0 nome nem a bandeira, rccebcu ao meSIllO tempo uma tal chuva de torpeclos e de projectcis que rneteu tanta agu<l como a sua tonelagem. Mas nao foi ao funclo, porque um navio nessas condi\oes extrcmas £linda conseguc nutwlL

Scm maquina nem rumo orientado, privado de todo 0 contacto atr,-Ives cia radio, envolto de Sllbito pela brullla, dominaclo por fortes correntes e dcpois pOI' ventos quando a borrasea sc levantol!, desamparado, entreguc ~IOS Illetcoros sem pocier actuar, errOl! assim sozinho durante du'-ls ou tres semanas peb v,-Istidao dcserta clo mar, depois de ter perdido a sua esqua-

122

Page 116: O terceiro instruído

dra que, julgando no fundo desde ha muito, acabou por deixar de procu­rar. Como as coisas vivas e mortas desapareciam nas aguas, quase toda a equipagem se encontrava nos pontos mais altos, entre mastros e enverga­duras, procurando en1 toclas as direc~6es qualquer sinal no horizonte. Os que se salvaram contaram depois que nesses momentos acreditavam ir deixar para sempre 0 tntmdo dos homens.

E, de repente, uma bela manh3, chi-se 0 milagre. Terral Terra! Ihuninacla pelo sol que surgia do levante, mesmo na sua frente, Ulna barreira de coral com uma laguna tranquila de aguas verdes, vislumbram at uma extensa costa plana de areia e atr{lS dela altas falesias enfeitadas de palmeiras e cascatas. Disseram ser a ilha Coco, uma das mais belas das terms pacffieas e das mais tfpicas, mas situada alguns milhares cle milhas mais a leste.

Uma vaga tranquila arrastou 0 navio, corpos e bens, para a primeira extremidade de pedra, onde parou e encalhou em dois minutos, como se tivesse esperado, em equilibrio, durante vinte elias esse lllomento fulguran­teo Depois, as jangadas e baleeiras, atiradas antes para 0 mar, come~~1fam a levar para a margem marinheiros e ofieiais nessa 10llC3 elesordem que bem se adivinha e na esperan~a desvairada de poderem sobreviver. Nao houve um tinieo que se afogasse.

De toclos as pontos da costa surgem entao compridas pirogas cheias de remadores e de arautos que os chamam par entre fortes gritos e gesticula­~6es, cantos, tambores. Cad a barco de salvamento parece investir c, como as marinheiros nao compreendem nada perante tais l11anifestac;;:oes e ges­tos, nao sabem 0 que fazer: defender-se em face de qualquer ataque ou abra~ar quem assim os acolhe.

Mas de repente faz-se silencio: 0 chefe au rei aparece, quase nu, en1 majestacie, exige falar com 0 capitao, que logo se levanta e elefinem-se as situa~6es. Um certo encantamento ilumina toda a cena. Os nativos regres­sam as suas embarcac;;:6es, frente a frente, e conduzenl para terra aqueles que de sse modo se tornam seus h6spedes.

Nacla faltou durante esses meses para que a felicidade dos n~lufragos Fosse completa, acreditando todos eles nessa altura terem chegado ao paratso terres­tre. Trocas feitas entre as duas paltes, jogos e risos, festins deliciosos em redor das lareiras polinesias abertos na terra e onde os cozinheiros preparavam sumptuosos bolos de batata doce; alguns deles, como nos seculos passados, arranjavam mesmo mulheres, outros escavaram UIn canto de jardim para se­meal' algumas sementes que se salvaram do naufragio.

Uma vez reguladas essas coisas da vida, comec;;:aranl a discutir intermi­navelmente: sobre as de uses de cada urn dos lados, comparando as suas capacidades, falaram sobre as regras adoptadas em 111uitas materias pOl'

123

Page 117: O terceiro instruído

cada uma clas comunidades, sobre as suas vantagens e inconvenientesj a principio, atraves dos seus gestos complacentes e clepois numa linguagem progressivamente nitida e dominada.

Os nativos revelavam uma estranha paixao pel as palavras: exigiam a tradu~ao correcta dos proprios vocabulos e tornavam-se inesgotaveis nas suas explica~oes. As assembleias multiplicavam-se e nem sempre acabavam no meio de gargaIhadas e de boa disposi\,ao, porque era interessante falar sobre 0 amor, a religiao, os ritos, a pollcia, 0 trabalho, com toclos os ponne­nores. E tentaram mesmo estabelecer alguns paralelismos: as restri~oes diferiam, mas cada qual sofria no seu pals 0 peso de normas igualtnente complicadas, incompreenslveis em face do riso das interJocutores, mas sem nunca serem negligenciadas tanto de um lado cOlno do outr~. Em breve, no meio de algumas diferen~as espectaclllares. acabaram todos pOl' reconhecerem profundas semeIhan~as e isso mesmo as aproximoll.

o tempo passava e 0 horizonte permanecia virgenl. Para os nativos, nunca deixou de permanecer assim mesmo. Os antigos contavam, no eo­tanto, que os seus antepassaclos dizianl, e assinl por diante, que elll tempos recuados certas popula~oes brancas tinham ja chegado ali, mas nunea antes deles. Por sua vez, os repescados clo barco de guerra nao se lembravam de que existisse qualquer ilha nos seus mapas daquela zona costeira.

Alguns deles chamaram-Ihe, pois, a Hha de Ninguem, mas, como nao se encontravam j{l separaclos, como dentro do navia, uns a bombordo nas suas tarefas, e outros a estibordo a olharelll 0 mar, clesataram a rir-se e clesignaram conlo Terceira Ilha essa terra bendita, COIllO Ullla embarGl~aO

im6vel sem a sua equipagem clividida. E assim a tempo passava.

Como corriam 0 risco de se aborrecereIll ou IlleSl110 de se confronta­rem, apesar da alegria e cia saciedacle senticlas, organizaram clepois alguns desafios de futebol. Em principio, como espectadores clesses jogos ou Iu­tas que se desenroJavam enI terrenos abertos, os insulares, muito cIotados, depressa aprencleram, com os pes descal~os, a dominar a bola, a defender e a ataear, a multiplicar os passes e a atirar a baliza. Os seus defesas, sobretudo, entregavam-se a acrobadas muito extravagantes. E realizaram a seguir alguns encontros mistos, que opunham cacla lima das comunidades em eqllipas clistintas tanto cia parte dos ilheus eOlno dos seus h6spedes. Nas cubatas, a noite, bebendo cerveja, discutiam-se as estrategias e os trei­nos. E 0 tempo assim se percleu nesses encontros. Os n{tufragos contaram clepois que assim esqueceram as recorda~6es cia sua antiga vida.

Que todavia regressou, uma bela noite, sob a fonna de lim porta-avioes, que aparecell de repente sem que alguem 0 visse sair algures cIa linha do

124

Page 118: O terceiro instruído

horizonte. Dizia-se mesmo que a sua baleeira tinha tocado em terra antes de se molh£1r e atracar, gigantesca, diante cia barreira cle coral. 0 ahnirante quc comandava 0 navio convocou 0 capitao para ir ter com cle a bordo e decidiu repatriar entretanto toda aqucla gente que j{l nao pensava noutra coisa a nao ser num desafio cle futebol ali nos tr6picos, naquele paraiso e numa vida de sonho. Houve despediclas, choros, desespero a partida e outras coisas, separac;6es pateticas, promessas, lembranc;as, cantos e melo­peias, enquanto os marinheiros do porta-avi6es, olhando-os de lange pela escotilha, qU<lse nao acreditavam no que via1l1 e ouviam. Levantaram de­po is a fmcora ao toque de um melanc6lico clarim, as falesias e cascatas clesa pareceram no meio do mar.

Logo de scguida, cad a qual retomou as hostilidadcs, dentro d£1quela nova unidade, tendo 0 almirante tomado todo 0 cuidado em nao disper­sar 0 grupo. Alguns morreram, outros nao, confortl1e a sua sortc. E clepois a guerra acabou, como se sabe, em Hiroxima. Fim do primeiro acto.

o segundo e llitimo comcc;a numa cidade ocidental, de que calarei 0

nome e a lfngua. Dois desses naufragos encontraram-se pOl' acaso, num bar, numa igrcja ou num mercado, quem sabe, au sem cluvida a safda de lim estaclio.

Depois de algumas palmadas nas costas, comec;am logo a evocar as antigos combates e clepressa regressam ao paraiso perdido. Utn cleles, mais entusiasta, pensa mesmo 15 volta I'. Porqlle nao, diz-lhc 0 outro. Cacla um cleles dcseja procurar essas antigas gentes, reencontrar algumas dclas, eo­tretanto dissetninadas um pouco por toda a sociedade, 0 espac;o e a fortu­na. Os ricos pagam menos clo que oS pobres e a viagem organiza­-se. C01110 nao existe qualqucr lioha regular de um para outro Jugar do mundo, e preciso fretar um navio e 0 sell tamanho espanta oS naturais que nunca tinham visto senao 0 grande porta-avioes fora da linha cle agua e cujo rasto depressa clesapareceu.

Eis af 0 triunfo clo retorno: novos e cleliciosos festins em redor clas mesmas lareiras no chao, algumas trocas fdtas ainda entre as partes, cantos e melopeias, cortaclos por exclal11ac;oes: como 0 rei ficol] mais velho, C01110 as raparigas e os rapazes cresceram, mas as l11ulheres continuam belas e prccisam meS1l10 de se inclinarem diante do tlll11tdo dos mortos que conhe­ceram e nao tiveram a sorte de rever os nallfragos. E, feito e dito tuclo iSso, os prazeres retomam-se e regressam, em multidao, £10 estadio, sob os olhares do rei agora envclhecido. Toda a gCl1te ocupa af 0 sell lugar, levantam--se os clal11ores.

125

Page 119: O terceiro instruído

Trata-se de um encontro que opoe a equipa de Leste a do Oeste, duas cicia­des da ilha. Soberbo, dramatico, elegante, acaba com 0 resultado de tres bolas a uma, ;:10 hm de noventa minutos. Os dais marinhciros levantam-se entao para abandonar 0 espcctaculo e ircm donnir. J't era noite. Mas nao, mas nao, clama a multicla.o, tem de voltar a sentar-se, 0 espectaculo ainda nao acabou.

A partida torna-se ainda mais bonita e, no lneio de tochas acesas, pro­longa-se por toda a noite. 0 tempo passa e os antigos marinheiros ja nao entendcl11 nada: extenuados, quasc sem folcgo, os jogaclores tombam uns atras dos outros, as pernas com caibras. Mas, teimosamente, 0 desafio continua. Cada cquipa marca e, ao romper da aurora, estao em oito a sete. E isso torna-se enfaclonho.

De Sllbito, a popula~ao levanta-se, agita os brac;os e as maos, ha gritos de alegria, tuclo chcga ao fim: acaba cle ser marcado a golo cia igualclade pOl' um dos avan~aclos que e lcvado em triunfo ao longo do terren~. E todos gritam: oHo a oito, oito a oito, oito a oito! Ensonados, llluito atof­cloados e incapazcs de compreenderem claramcnte 0 que se passava, os marinheiros depressa alcanr;am as suas cubatas para se deitarem.

Algumas horas depois, as palavras retomam de novo 0 seu caminho, Estrategia, desafio, resultados, e assim que se retomam as conversas de outros telnpos, E pouco a pouco a verdade torna-se clara,

Os nativos declicavam-sc descle ha I11uito a esse jogo, C0111 equipas que tin ham 0 meS1110 numero de homens colocados na c1isposir;ao sabre 0

terreno, mas tinham alteraclo uma das regras, apenas uma pequena regra. - 0 desafio acaba quando uma equipa ganha c a Dutra percle, e apenas

nesse caso - dizcm as nossos marinheiros - E prcciso que haja sempre um venceclor e um venciclo.

- Nao, nao - exclamam os insula res. - Entao, como e que as duas equipas desempatam? - perguntam as

marinheiros, - 0 que signifiG! essa palavra no vosso clialccto? - Uma diferenp de gal os. - N<.10 entenclcmos essas vossas icleias, Quando cortam um bolo se-

gundo 0 nlunero das pessoas a volta ch mesa, entao nao 0 dividem? - Dccerto. - E cacta um nao come assim a sua parte? - Com certeza. - E entao 0 bolo tem alguma vcz que ser desempataclo? - Isso nao quer clizer nada - protestam as l11arinheiros por sua vez,

colocados resolutamente a bomborclo au sempre a estiborclo, - Claro que sim, C0l110 no futebol. Alguem corllera tudo e os outros

nao comerao nada, se voces clesempatarem. Os rostos brancos, aturdiclos, ficaram calados. - Porque e que as equipas haviam de desempatar?

126

Page 120: O terceiro instruído

- Nao entendemos que isso seja justo c humano, dado que um se impbc ao outro. Entao, fazemos todo 0 tempo do jogo, como nos cnsina­ram. Se no fim 0 resultado for nulo, a partida acaba CQl110 uma verdadcira clivisao.

- De contrario, as duas equipas, como voces disseram, Bcam descmpata­das, e isso e uma coisa injusta e lxlrbara. Para que humilhar as vencidos se que­remos pass~1f, como v6s, por civilizados? Entao, prccisamos de recomer;;ar e por mais algum tempo ate que a divisao se fa~a. Acontece por vezes que uma par­tida pocic durar scmanas. Vimos ja morrcrenl alguns jogadores. ~ Morrerem? A serio? - Porquc nao?

- Entao, a cidade do Oeste junta-se toda e faz a festa, C01110 as do Leste, as do Norte e as do SuI. Os fest ins, que 0 desafio acaba por inter­romper por um tempo por vezcs alongado, poclem ser retomados em rec.lor das lareiras onde se preparam os bolos.

No meio dos ventos que os empurravam para a sua cidade e para a sua familia, entre 0 balancear lento dos juncos, em doce equilfbrio sobre 0

ondular das vagas, os marinheiros sonhavam COIn essa terra singular, ilha terccira ou de ninguem, ausente das cartas marftimas. TagarelavaIn, de ita­dos, com as maos debaixo da nuca:

- Diz-me uma coisa, n6s nao ganhamos na (iltima guerra? - Claro que sim. - Em Hiroxima?

- Ganhamos, a serio? - Pretendes conhecer os verdadciros vencedores? - perguntou 0 se-

gundo, que passava pela coxia. - Eu conhe~o-os bem, podia leva-los por vezes no meu barco ... Etn6logos, soci6logos, nao sei 0 que sao, mas estudam os nativos c\as ilhas c encaram, em geral, os h0I11CnS C0l110 objecto de estudo, ou seja, como simples objectos. Cantmll vit6ria: quem pode conceber que, para Ii daqucles que explicam e comprcenciem os outros, sob esse ponto de vista eles nunca serao os seus setnelhantes e muito menos ainda 0 seu pr6ximo?

DE NOVO SOB 0 SOL, AQUI

Mas ele - escriba, douto, legislador -, querendo demonstrar a sua justir;;a, clisse: "E quem e 0 meu pr6ximo?"

Jesus explicou: "UIn homem descia de Jerusalem para Jeric6, e cail! nas maos dos salteadores, que 0 despojaram e, espancando-o, se retiraram,

127 INSTITUTO DE PSIC('V'Gl!l - UFRGS

BIBLlOTcCt.'.

Page 121: O terceiro instruído

deixando-o ali qU<lse morto. E ocasionalmente descia pelo mesmo cami­nho um sacerclotc, que, vcndo-o ali, passou £10 largo. E de igual moclo procedcu um levita que, cheganclo aquele lugar e vendo-o ali, passoll t~lInbem ao largo. Mas um samaritano, que ia dc viagem, chcgou-se £10 pe dele, ligou-Ihe as fericlas com azeite e vinho e, pondo-o sobre a sua cavalgadura, ievou-o para uma estalagem, e cuidoll dele. E, partindo no ciia seguinte, tirou dois clinhciros c deu-os ao hospecieiro, clizenclo: "Cuida dele, e tuclo 0 que de mais gastarcs, eu to pagarei no meu regresso." POitanto, qual destes tres te parece que foi 0 proximo claquele que caill nas maos dos salteadores?» E 0 legislador responde: "Poi aquele que usou de miseric6rdia para com ele."

Huangelho Segundo Silo rucas, X, 29-38

A campainha toea. A porta cia aula abre cIiante dos estudantes lim patio vazio e feio que logo invaclem £lOS gritos nas horas ditas de recreio: partilha equilibracla do esp,l/;;o e clo cmprcgo cio tempo oferccido ou antcs impos­to, dcntro das nossas latitudes, aos rapazinhos quc em grupo exerdtam ai os seus retlcxos. La clcntro, ~l figura enorme do profcssor, ordenando que se fa~a uma c6pia ou as contas, assegura a orclcn1 nas filas c nas carteiras, ou seja, na cl~lsse; passado 0 limiar, Hi fora, a algazarra e retomacla por entre benos e furias, batalhas, um caos sem nenhuma espcran~a clesde que toea a campainha.

Filho do povo, garoto das ruas e do campo, a minha infancia ou inferno passou-se, no patio, sob 0 terror clas pancadas e clas incessantes vingan<;as clos banclos comandados por rapazes terriveis, altivos e empertigaclos, arro­gantes e corajosos. Bastava estender alguns dedos para desequilibrar sem contestar, lim golpe de ombros ou de anca, ou ate de calcanhar, mesmo que nao fossem at::lcacios. No terreiro, entre os troncos de arvore, ao longo de cubfculos repugnantes, no meio de nuvens de poe ira, junco ou floresta primitiva, os mais fortes supliciavam sem cessar os mais fracos, pOl' simples prazer, c os mUlTOS cabm quase sempre em cima dos meSlnos. Mas 0 mais musculado ou desafiaclor nao insistia longamente se se montasse a sua volta uma guarda, mais poderosa em conjunto e mais lutadora do que esscs tipos arrogantes. E dar a forma<;;ao, no meu tempo, de lllna militia contra ria as ordens clo novo inimigo, munida tambem ele cie gorilas Oll ministfOS. Os combates come<;;am entre oS gangs logo que a campainha toca.

Recordo-me muito clara mente do meu clesgosto pelos {ovens chefes seguros cia sua for<;;a mais do que pOI' esses lugares-tenentes, com unla servil obeciiencia, que procuram 0 poder sem disporeI11 de lncios, executo­res em seguncla mao, pequenos cutelos mais implacaveis perante a massa humilde e an6nim~1, pacifica, mas dominada peIos ventos da for~a. Esses lacaios imitavam sem cillvicia os seus parcntes: viviamos nessa ignobil epo-

128

Page 122: O terceiro instruído

l

ca enl que a Fran<;a perdia a propria alma na colabora<;ao com os nazis. Nenhuma forma de recreio era possivel sem que a canlpainha aounciasse alguma ignonlfnia.

Os adultos designam como acidcntcs cscolares, cobertos pelo seguro, esses verdadciros crimes perpetrados conscientementc, na aparcnte turhu­lencia das Sllas brincadeiras, por menores irrespons{lveis juclicialmente. Na saida seguinte para 0 recreio, pOl'tanto, soava a hora cia vingan<;a ou do ajuste de contas, como se dizia nos jornais para 0 que era a guerra dos mais crescidos, uma batalha preparada pelo campo advers,hio atraves de sinais e tnensagens que circlllavam entre a classe, de nli'lO enl nlao nas carteiras, sob 0 olhar paternal e obstinado do professor. 0 grito geral quando a porta se abria depois de a campainha tocar e em que os aclultos julgavam expritnir 0 alfvio hem legftimo de abandonar finalmente as cacler­nos em branco e 0 quadro negro, mas que significa va sitnpiesnlente a reabertura clas hostilidades.

Quando escllto 0 toque de qualquer campainha que divide esses tem­pos nos estabelecimentos ditos de ensino, sei como estreme<;o de terror.

Regressados ao nosso proprio meio, 0 tempo civil e t~uniliar ritmava-se do mcsmo modo: sirenes dos bOinbardeamentos, varios sinais de aletta, infonna<;oes que anunciam, hora apos hora, depois da Inllsica indicativa, a abertura de novas balsas de GIl"!, Entre a revolu,ao espanhola de 1936, a Seguncla Guerra Munclial e 0 seu tcnno somado a HiroxiIna, nenhuma crianc;a podcria perceber a diferen<;<t entre essas gigantcscas praticas de morte e as vingan<;as sem pcrdao que opunhanl tad os os lobos, filhos de lobos e futuros pais dos mesmos, pelo eterno regresso do mesmo sinal para ritlnar as horas, lei morna da nossa historia pequena ou grande, como sinal nos reflexos dos di.es.

Finahnente, soa a campainha. Quem nao tera gostado do repoUso silen­cioso e de lun certo cheiro de pat'aiso, na sala de aula, quando a porta ilnpedia as tempestades do patio de recreio e 0 botn professor recitava cllI<-ls qlladras sobre idflicas vindimas em que realtnente 0 alltor nao tinha participado, porque a algazarra nao parava mesmo ja nas clornas em que os sexos, cruelmente, se entrechocavam: mas 0 que se canta nos poelnas sera essa felicidade calma do bucolico? Acreditei durante muito tempo, pelo Inenos ate aos nove anos, na paz ideal do intelecto, nas pastorais, na utopia das figuras e dos nomes, ate £10 momento em que, sete vezes abcn<;oado, comprcendi de Sllbito que as <-lmava pot'que 0 professor as distinguia como de primeira classe e me cobria C0111 a sua sombra: dessc lado cia muro, nlC rccncontrei, pois, sob 0 mcsmo vento de uma outra for<;a, duro e altivo, llltador corajoso, chefe de gang. .. Unl horror, ign6bil desgosto, aclivinhando jJ os elogios servis em certos olhares e a canga as costas. Essa vergonha inunciou-mc c nunca mais me abandonou, con10 paixao

129

-----

Page 123: O terceiro instruído

secret~l que me leva a falar agora de nos mesmos, das nossas maniganeias especulativas e cia seu mal cssenciaI, ocultos num outro espar;o, utopia intc­lectuaI, e separados no tempo por qualquer indicativo sonora.

Passei grande patte da minha vida em barcos de guerra e em anfiteatros para testemunhar pewnte a juventude, que ja sabc isso, que nao existe nenhuma diferenc;;a entre oS habitos puraillente animais, isto c, hier{trquicos, desde 0 p{ltio de reereio, as tacticas militares e os compottamentos academicos: reina 0 mesmo terror dentro do patio, clentro clos lan<;a-torpedos ou nos meios universit{lrios, ou seja, esse meclo que pode passar pcla paixao fundamental dos trabalh~ldo­res intelectuais, sob a dimensao majestosa do saber absoluto, esse fantasma que esta de pe atras perante aqucles que escrevem na SU<1 mesa. Eu sinto-o e acli­vinho-o, feticlo, viscoso, bestial, regressanclo a cad a passo como 0 retinir da c<lmpainha, abrindo e encerranclo col6quios em que vocifera a eloquencia para aterrorizar os que fabm ~l sua volta.

Longe de nos aproximar cia paz, a ciencia e a inteligencia clistanciam­-nos mais clo mllsculo, cia garganta ou cia estatura. A cultura continua a sua guerra pOl' outros meios - talvcz atraves ainda clos mesmos. Encontramos nos ganp/~' te6ricos os mesmos pcquenos chefes, com efeito, os 111esmos lugares-tenentes, por entrc a mesma obediencia servil e em semelhantes Iegibes pacfficas, curvados humildemente sob os ventos da forr;a, que por vezes julgam estar na moda, ou pior, que eles tomam com frcquencia pOl'

verdacle. ChamaI' campus ao ambiente das universidades e uma eoisa tao literal dado que esse termo clesignava outrora 0 campo ocupaclo a noite pelos soklaclos cle Roma antes clo ataque ou durante a sua defes<l. De fleto, os peritos sabcm a que faec;;ao, a que gang pertence este au aquele campus c que grupo de pressao tem ai ~l pahIvra.

Ora, os meios intcleetllais, linguistieos, tearicos, sabem que no tr~lvar des sa gucrra nao se comparalll aos arrogantes e Iutaclores no patio do recreio: revclam-se mais finos, astutos, globais e transparentcs ate ~l

irresponsabiliclacle inocente da especulac;;ao pura. 0 mais forte pugilista do muncio apenas se deixa cair perante um golpe inesperaclo, com lim swing ou um uppercllt, e parcce-me um santo do paraiso ao lacio clo ffsico tea rico cuja equa<;ao pode fazer abalar a Terra ou clo fil6sofo escravizador de povos inteiros ao longo de algumas gcrar;6es - au a seitJ que 0 imita durante a sua carreira. Criamos hoje filosofias tao globais que elas irradiam por tad a a hist6ria c encerram 0 futuro, com estrategias tao poderosas que atingem a mesma dissu<lsaO conseguida com a arma at6mica e deciclem sabre um genocklio cultural perfeitamente eficaz. '

Eis assim definido 0 mal proprio dos n05SOS trabalhos: eomo qualquer coeficiente, a inteligencia Illultiplica ate oncle quiser .a sua propria ving;lI1r;a e parece meSI110 anuIa-Ia clissimulando-se. Mas pOl' muito vingativamente que actue, a violencia cresce pouco e lentamente, atraves dos punhos e dos pes, mas sobe ate ao ceu e invade 0 tempo e a hist6ria, clesclc que a ra2;IO assuma oS eomandos.'

130

Page 124: O terceiro instruído

Assim, as teorias poifticas tradicionais, como as ciencias actuais clos jogos de estrategia, sobrevaloriz<lm grave mente 0 papel pacificaclor clo co­nhecimento racional: esse contra-sensa da origem a autopubliciclacle dessas disciplinas. A razao gira sempre em redor da propon;;:ao e cia clominancia. Estabclcce, pois, uma ponte entre a c1asse e 0 patio dito de recreio.

POl·que e que, pelo contra rio, a filosofia tende a designar-se cleste moclo? Porqlle nao se the pede para amar a inteligencia, 0 saber ou a razao, mas antes Sofia, a sabedoria. Que sabedoria?

o conhecimento pacificado.

Sem saber isso, 0 saber entrega-se a um oficio arriscado, para as sa bios e para os outros, isto C, Lim perigo que apenas descobrimos em momentos de tcnsao ou de crise. Como masofo Llniversitario frances do pas-guerra, tenho infclizl11ente sobrevivido a varios terrores clcsencadeados por teod­cos serventu{lrios de ideologias polfticas ou academicas, principais directo­res de grupos que mantem sob a sua pressao 0 espa<;o dos campus, as nomea<;oes e as notas de pc cle pagina, proibem a todo 0 custo qualquer liberclade de pensamento, mas sao terrores de que naa torno responsavcl qualquer cleterminado inclivfduo nern uma dacla scita, dado que isso equi­valeria a vingar-me, e antes condeno a proprio funcionamcnto da inteli­gencia na institui<;ao e clesta na primcira, a implicaC;ao redproca cia ciencia na socieclade.

Assim, por higiene clo corpo e do espirito, puck imaginar para meu usa privado algumas regras de moral ou de cleontologia:

Depois cle um exame atento, nao se cleve adoptar nenhuma icleia que revele, com evielencia, qualquer vestigio de vinganc;a. POI' vezes, a raiva ocupa 0 lugar de pensamento, mas sempre 0 eliminui.

Nunca se meter em polemicas. Evitar qualquer depenelencia: fugir nao apenas muito simplesmente ele

qualquer grupo ele press~)o, mas tambem ele toela a elisciplina cientifica defi­niela, campus local e s{lbio na batalha global e societaria ou diminuic;ao sec­torial no debate cicntifico. POltanto, nem mestre, nem sobretuelo eliscipulo.

Essas regras nao estabclecem um metodo, mas muito exactamente um cxoelo, caminhaela caprichosa e pareccnelo irregular, mas eletenninaela ape­nas pela obriga<;ao de evitar os lugares especulativos l11antidos pela forc;a, geralmente vigiados pOl' caes de guarela. Um passeio pelo campo consagra uma scmelhante trajcctoria inesperada e elcnteada, pOl·que somos atacados e c1epois sem cessar perseguiclos, de terra em terra, por clez molossos que se suceclem enos procuramos evitar. 1/ Nao clispomos de utensilios, de no\'oes e de efidlcia, em elevaclo n(l­

mero, mas em contrapartiela necessitamos clispor cle U111a esfera intclectual

131

Page 125: O terceiro instruído

liberta de qualqucr rcia<;8.o de dominio. Muitas verdacles, 1l1uito pouca bonclacle. Mil certczas, ~nomentos raros de inven\,ao. Uma guerra penna­nentc, scm nunca tel' paz. Apenas os animais gostam cia hierarquia e clar as inccssantes lutas que eles traV3m. Precis<ll11os para 0 homcm de lIm intc­lecto simpiesmcnre democnltico. Definamos essa esfera clcntro cia 110');'8.0

de prescric;;ao. 1

Nenhuma no<;ao importa sc nao for pacifica.

A vinganc;;a procluz uma justic;;a aparente, a equivaiencia clistributiva clo castigo. A linguagcm corrente tama uma peb Dutra, quando aconsclha, pOl' cxcmplo, a vitima de lima agressao que fac;;a justi<;a por si mesma: trata de ti, pais. 0 castigo remete Oll rcsgata a of ens a que a balan<;a equilibra: tal equal. Nao se fala OllI11(l lei de percentagem que sLlporia qualqucr igual­dade na sua ordem de grandeza, mas fala-se cm pen a de taWi.o cuja origem latina (tal. .. qual) indica un1a distribui\,ao mais delicada, qualitativa, essen­cial: um dente nao vale pOl' lim olho.

Essa invariancia vingadora Ian\,3 um proccsso que nenhuma razao po­de ria deter, dado quc a propria razaa equivale a repara\,ao plena e inteira, satisfazendo 0 of en dido que exige ser reparaclo cia injllria e isso consegue. A causa plena encontra-se, em qllanticlade e em quaJidade, no sell vercla­deiro efeito: lei racional c cia justi~a c cia mecanica. Isso basta: a injllsti\,a eonsistiria num excesso ou num defeito na repara~ao. E c issa que consi­deramos como razao: nunca uma igualclade quantitativa, mas lima propor­~ao exactamente adaptada aos qllcixosos e a queixa; eonsicleram-se as razoes colocaclas nos dais pratos, mas talnbem as rcla~ocs de extensao sobre 0 fiel da balaos;a, que pratica assim uma rigorosa justis;a.

o principia cle razao Oll antes de dar razao (principium reddendae ration is) nao deriva aWis dai: oada, cliz-sc, passa SClll ela. Esse nada vem de res, palavra do direito romano que designa 0 caso judicia rio que um processo discute e formaliza: a causa. Antes de signifiear a c:lusalidade, este liitimo termo indica a acusa<;:ao. it preciso dar razao, como 1I1lla forma de reciprociclade, como se isso vie sse em segundo JugaL Nacla sen1 uma razao Oll coisa sem causa exprimem menos como absurclo ou contradic;.'ao do que 1Il11 desvio no equilibrio cIa balan~a cIa justi~a: a esse nacla, a cssa coisa, con10 suspensa no aI', scm apoio, e preciso, en1 c011lpensa~ao, acres­ecntar ou retirar essa tara que domina 0 fiel - bela palavra que 00 hori­zonte apela a razao. Nao sabcIllos pensar numa coisa isolacIa, desligada seja do que for ou tlutuanclo sem peso: 0 verbo pensar deriva por si mesn10 cia inclina~ao e do peso dessa compensa~ao. Como pensar sem compensa\,J.o, sem a tara racional? Assim a razJ.o exige justi\,a a eoisa, assim como a causa cxige tel' razao.

Eis aqui 1Il11 principio que cleve clesignar-se como cle equivalcncia ou cle equiclaclc.

132

l

Page 126: O terceiro instruído

Que exista mesmo assim alguma coisa mais do que nada ou do que isto, qualificada tal e qual, em vez daquilo, eis os enunciados que descre­vem dais desvios de equilibria que se requer, contra a injusth;;:a, que uma tara os conduza a justa posil);8.o, horizontal e plana. Mas se se colacar no outro prato para resgatar as danos causaclos a esse nacla que nunca pode existir e a isso qualifieado de outro modo, estamos dentro da virtualidade ou nos mundos possiveis? A razao justifica a existencia do que cxiste, compensando 0 possivel ou 0 nada. Medida au colocacla sabre uma vara, a existencia, cujo nome indica £linda um desvio no equilibria, equivaJe a razao que se junta ao nada, numa rigorosa eqttal);ao. Mas, ao contrario, a igualdade matematica conduzira tambem ela a lei da justil);a?

Entao, que e que clesignamos pOl' pensar? COlnpensar 0 que nao csti no centro da razao, situar a tara racional entre a cxistencia e 0 nada ou 0

possivel, como se a razao estabelecesse a rela<;ao do set' ao nao-ser, Oll

justificasse 0 que e a partir disso mesmo que nao e. Partanto, ela atinge a cri;:u;;:ao quase divina e supoe uma familiaridade mortal com a nada ou 0

possivel. Esse pensamento racional, essa medida all proporl);8.o cOlnpensa­toria preenchem exactamente a falha ontologiea.

A razao vinga-se do nacla.

Dando equidade ~l existencia, 0 principio da .-azao conduz a ontologia sob a lei universal do clireito. Preenchendo a falha ontologica, a razao faz com que a ciencia inteira que cleriva dcla resultc entao do equilibrio jus­ticeiro.

Inventor do principio cia razao suficiente, Leibniz chama leis cia justi<;a as regras de invariancia e de estabilidade pebs quais se compensam tanto as proprias coisas como os enunciados. Essa !'azao reparadora conservad na ciencia ou no racionalismo algum tra<;o de castigo vingador?

Porque designar como justos, no sentido juciiciario, na astronomia me­(lieval ou renascentista, esses prolongados equilfbrios do universo au da economia, entendicla como legishll);aa posit iva do mundo fisico, aparecen­do a justeza Oll a jllstir;a como as invariancias Oll estabilidades, as retornos e compens<ll);oes circulares do tempo c6smico? As leis da natureza, reciuzi­das a determinadas hannonias, relacionam-se com 0 prindpio cia razao suficiente. Dar cle tun fen6meno a sua razao consiste em compens{l-lo, em torn<.1-10 £lincla pens{lvel. Factor de vindicta pllblica no l11unclo e no pensa­mento ou a sua respectiva ordem?

A invarifmcia distributiva cia vingan<;a lanl);<1 tun processo em que nada, sem razao, poderia deter-se: assim os prolongacios equilibrios clo mundo contal11-se atraves do eterno retorno. 0 ofenclido que obtem razao cia injt:iria infligc ao que ofenclcu um ciano exactamcnte igual e de natureza

133

Page 127: O terceiro instruído

equivalente para fazer destc ldtimo um terceiro hOl11em ofencliclo, que pOl' sua vez exige um equilfbrio ou razao suficiente: a vinganC;'<t n:1o cessa e a hist6ria conspira e consente 0 retorno ritmaclo (las canstelar;6es bem C01110

as regras impostas pelo pensamento, Tuclo est{i ern orclcm: 0 cosmo e 0

tempo fazem chegar a hora clas compensar;6cs. Eis ,ll 0 motor imovel clos nossos movimentos, a razao no munelo e na

historia, gemea cia vinganr;,l e imitanclo as suas cOl11pCnS<lc;'oes ou repara­c;6es, como os eloutos que se entrcgam ao pensamcnto dentl'o dos muros cia escola irnitam os vadios que lutam no patio quando soa a campainha.

Mas nos, como racionalistas cvoluiclos, csclarecidos pelas leis mais pro­funclas que reinam no munelo dos atomos, chamamos a tuelo isso por vezes o equilibrio clo terror. POI'que e sempre a mesma ordcm que governa 0

mundo. A vinganr;a c a sua justi<;a aparcnte, fUl1ciando 0 cterno retorno, mantem

intacta a memoria integral cia razJ.o exacta, peIo tempo reversi've! e dciico, Desconhecem a ciura\,ao au esse tempo irreversfvel que segue lima dada clirecr;ao sem nUl1ca pocler ,lrrepiar caminho. Ao longo elessa durac;'ao inter­vem 0 esquecimento, em que a anamnese l1unca se restitui l1em compensa a memOII<l exacta ou intacta, l1unca 0 efeito integrai vale a razao plena l'

intcira: esse tempo novo imp6e uma falha a suficiencia, pOl' clefeito ou cxcesso da razao.

E uma vcz mais as teorias poifticas tradicionais au as ciencias aetuais dos jogos c estratcgias mergulham num tempo passivo c nao numa dur~l­C;'ao em que todas as coisas mudam. Pennanecell1, pois, no tempo do eterno retorno, confortam-no e talvez 111csmo 0 procluzam.

Essa falha, excesso ou defcito assume no dircito frances a dcsignac;'ao de prescrifr-ijo.

Define-se, no dircito civil, como meio legal de adquirir uma propriecla­de pOl' posse nao interrompida e designa-se como adquirida nestc caso, ou Iibertar-se de um encargo, pOI' exemplo de uma (Hvida, quando 0 credor nJ.o exige a execur;<.lo, e entao chama-sc extinta ou liberatoria. No direito penal, estabelecc-se llln prazo de expirar;ao IXlra que a aq;ao pllblica ja nao possa fazer nacla contra 0 criminoso ou 0 delinquentc_

Em suma, a prescrir;ao admite a acc;'ao essen cia I do tempo. A usucapiao vale C01110 direito de propriedade como se a dura<;<.lo pOI' si mesma apagas­sc os direitos de qualquer outro, em particular os do eventual predecessor. Do I11CS1110 modo quando 0 credoI' nao exige nada e 0 rninisterio Pllblico nao ataca ninguem, pOl' si meS1110 0 tempo suspenelc a ac\'ao ou modifica-a.

o tempo passa e nao decorre de forma passiva, mas, pelo cOl1trario, csqucce ou apaga os aetos. Retorna apenas para exigir tel' razflo. Ligado ao eterno retorno e as invariancias estavcis, a vinganC;'<l torna-se astron6mica como as constelar;6es au OS comctas.

134

Page 128: O terceiro instruído

Diz-se que 0 rio clo Esquecimento cone para os Infernos: a prescri~'ao cleita-o pOl' terra cujos mhos, sentados a beira clas margens, perdem muitas vezes a memoria e ao mesmo tempo a raz;1o. Nao existe lim mundo mais atroz clo que aquele em que a natureza se entrega ao cterno retorno e remete para os Infernos 0 esquecimento e 0 perclao. A prescrh;ao f{l-lo rcgressar ou coloca-o £lOS sells pes: real e suave e esse munclo em que os rios correm para as bocas clo esquccimento e faz retornar aos Infernos a verdacle prazentcira: a aletcia, gelacla, nao se clerrama.

No plano fisico, quanclo regress<lm a si mcsmos os planetas, a USLlra enfileira-os um POllCO e os gigantes vcnnelhos clo Cell exploclem na hora cia sua "supernova". As granclcs invariflncias clerivaram daf e 0 mundo perdcu 0 eterno retorno.

Em terccira posl<;ao entre 0 direito e 0 nao-clireito, a prescri<;~10 tomba pOI' dcfini<;ao no domfnio irreversivel c1a historia e opoe os seus la psos dc tempo, anuais ou trintanarios, as regras invariaveis e inviohiveis. Embora as nao limite, anuia as leis em vigor no que respeita a encargos, dfviclas, propricclade, delitos e crimcs. De repcnte, tudo sc passa como se sc nao dcvesse mais nada, como se se puclessc esquecer tel' alguma vcz roubado ou mataclo, porque 0 tempo traz consigo a inod~ncia, como um rio baptismal. A prescri<;<10 tra~'a no direito 0 limite do n;:to-clireito, a pr6pria fronteira ao lado da hist6ria E esta, como sabcmos, apaga os tr<1<;os, suprimc os restos, cOlToi os actos c os factos, esquece e acaba par se calar, tal como 0 tempo zomba cia princfpio de contracli<;ao.

Peios sellS c6c1igos e os sellS textos, 0 direito faz parte integrante cia memoria do orc.lenador social. Pas ai a sua mao para 0 construir. Luta contra a USura da hist6ria. Eis porquc 0 seu clllblema e represent ado par uma balan~'a e ao mesmo tcmpo peb simetria clo espa<;o, a equivalencia dos encargos e 0 retorno regular do tempo. Eis porque, do laelo cia vingan­(a, continua a scr radonal. Eis porquc esta sempre mais ou menos ligado, do outro lac\o, ao scu limite ou fronteira, ao belo do intemporal, com 0

direito natural, que justamente sc diz imprcscritfvel. Ncsse limite, 0 tempo nao tem por si mcsmo nenhuma ac(ao e a razao, estavel pOl' esse tempo passivo, pcrmanecc invariantc n£1 sua passagem.

Infclizmente, heroicamentc, a direito mantem-sc entre as dUllS zonas, cssas duas tentac;bes: uma, ocupada pelo clircito natural, universal e inva­riante, nao escrito e portanto imprescritivei, intemporai, e a outra, invaclida peia hist6ria e os csquecimentos marcados peios scus restos. Segundo as cpocas, inclina-se em suma de uma para a outra, para 0 direito maximo ou o nao-direito, alguns diriam da4 razao rigorosa para 0 caos, outros falariam de urn fantasma idealizado para a sakla complexa do concrcto.

Tal como tcmos situaclo 0 tempo na Terra e a 110SS0S pes, substituindo o antigo mapa-mundo elos Infernos c do Globo, clado que como no rio

135 INSTITUTO DE PS1COLOGlLl - IlFRGr'

BIBLIOTEC,

Page 129: O terceiro instruído

Letes tuclo se derrama no Amor enos seus esquecimentos, tambem e necessario contornar frontal mente esse espectro para que apenas a prescri­<;ao se torne uma lei universal e imprescrit1vel. Nao existe invariante senao com a condi<;ao de se cair no vari{lvei e assim n6s pcnsamos mais nos equilibrios clo que nos movimentos.

A razao vinga 0 nada e a ciencia racional guarda em si alguns tra<;os desse direito primitivo, que se chama natural, scm se interrogar sobre essa natureza que continua a ser estranha a obra clo tempo. Em rela<;ao aos direitos mais positivos, os nossos actos mergulham no tempo, mas atraves cia prescri<;aa fazem e consicleram 0 tempa como a stJa verdacleira materia­-prima. A dura<;ao alimenta-os, exalta-os, clesnuda-os, elilnina-os. Esta na sua origem chi-los desaparecer. E isso e da sua propria natureza: aquila que vai nascer, sim ou nao. A natureza corre ou cola-se de bifllrca<;oes em bifurca<;oes, em contluentes turbulentos c vivos em br~l(;:os 111ortos csquc­cielos, ista e, esquccimentos tornam-se lembram;as e as mem6rias em per­das aridas. Nao pode assim pass~lr pOI' ser nem elefinitivamente estavel nem louca ou irracionalmente instavel.

Tal como justifica os 110SS0S actos, 0 tempo real cria 0 clireito e, se a faz, tambem 0 c1esfaz, e isso e natural, como aquila que vai nascer ou se anisca a nao nascer. Cria 0 clireito, forma-o, transfonna-o e, portanto, funcla-o. A ijurisprudencia, fllltuante, C01110 se sabe, cria 0 clireito ao lado da hist6-ria, mas 0 dircito rcconhece isso ao reconhecer a aq'ao clo tempo, peb prescri<;aa. Eis af a abertura clo dire ito a sua pr6pria funda\ao, ot! seja, para o direito que para os antigos se designa por natural, ou seja, como natu­reza fisica. Fazenclo-o variac, anulando-o, a prescric;ao, est{lvel portanto, funcla-o. 0 clireito natural, no sentido mais profundo cia palavra, nao se encontra po is do bdo em que se esperava, mas do outro, separado do primeiro pela cspantosa extensao do ceu. A prescri<;aa faz parte do clireito natural, nisso se funda 0 direito e assim cle pcn11anece imprescritfvel. o . (l11ico acto que nao podemos apagar nem anular e 0 acto de anular ou de apagar. Nao se esquece 0 esquecimento, como um acto de algum modo inesquecivei.

Isso pcrtence ao c1ireito, mas tambem a' moral, a politica e a teologia: 0

perclao estabelece a etica, a clemencia cria a for<;a, a moden.l(aO ou mise­ric6rdia abrangc a justi\,'a e incide sobre 0 clestino.

Como 0 pr6prio terma indica, c assim se exprimia no clireito romano, a prescri(ao inscreve-sc antes de mais como prcambulo au pref:kio, como epfgrafe de qualquer texto. Quando sc pretcncle escrcver, chegado esse momenta, sobre a teoria ou a litcratura, sobre 0 c1ireito, a ciencia, a mate­matica ou 0 amor, devemos saber que antes da pagina e111 branco, na sua margem ao £litO, a prescri\,'ao esta sempre presente. POl' defini<;<:10, existe sempre antes de tuclo. Escrita ao alto cia pagina, l11as <lgarrada a cia e cleixando-a intacta, livre, virgem, branca, inocente. Nurna terceira posi\,'ao: inscrita, apagacla.

136

Page 130: O terceiro instruído

Oescle h5 clois milcnios, pelo menos, toclos nos lembramos e todos nos esquecemos cle que as samaritanos tinham 0 pial' c10s papeis, C01110 inimi­gas malclitos, implacaveis, irreconciliaveis. Mas a parabola clo bom samaritano enuncia uma contracliC;ao: lllll homem clesses nao pocle passar por SCI' bom. Toda a gente se lembra disso, cada um cle n6s 0 esquece: existe realmente uma prescric;ao e ela triunfou.

Exige a esquecimcnto, mas tem ja escrita a lllcmoria, dado que clcixou af 0 seu tr~lI;o. Lembra-se como escreve, mas prescrcve que isso se esquec;a. Nao equivale ja. a conservac;ao nem se identifica com a perela ariela, mas inventa novamente, como um terceiro, a mem6ria-esquecimento, a recorda­c;ao guarclacla e ao mesmo tempo apagacla, intclcctualtnente invariante na caixa negra da historia, mas passionalmente, historic<lmente, sabiamente perdida: nova invariante por variac;oes, estabilidade par instabiliclacles, fun­c1ac;ao do direito agora mais forte clo que 0 suave eterno retorno, im6vcl como um sa co de chumbo au son ante como a campainha.

Para nao escrevennos j{t senao acerca ela beleza au do amor peb sabedo­ria, passamos a interessar-nos mais pela filosofia clo que com a prescric;ao.

Quando se pudcr ler sem nenhum escfmdalo uma hist6ria em que 0

homem mais abomin{tvel sc comporta entao como a melhor dos homens, ent~l.o chegara a Messias. Ele ja chegou, porque cscrevcu este texto cle que nao sou 0 autor.

EU. NOlTE.

o autor? Quem e ele, quem sou eu? Admiravelmente nomcaclo, 0 sujeito, pudica au apavorado, esconde-se,

lanc;a-se para tras ou sobre a sucessao dos scus h{lbitos, outrora escondido sob outras capas c mantos, como um Ariequim inencontn.lvel, cuja desfolhagem mostrou sempre c por todo a laclo a mesma coisa, talvez com algumas vadac;oes, ou seja esse seu aspeCto matizaclo, quer se trate cia roupa, cia pele, do sexo ou do sangue, ou enfim da alma - a minha alma com as mil uozes que DellS me dell c%ca-se no centro de tudo como um eco sonoro -, cujas facctas justapostas, como as de um espclho ou 0 olhar do 111ocho, retlectem, em bora intimas, a flllgllrante 111ultiplicidade dos acon­tecimentos exteriores, como se 0 nlllnero daquclas correspond esse ao clas paredes interiores que as suportam. Podemos procurar um outro? 00 compa­rativo, a interior, ao superlativo, 0 intima? Existe ainda alga mais intima? 0 que desliza par baixo assemelha-se sClllpre ao que se pode ver a su­perffcie?

A. falta do sujeito, eu posso falar do adjcctivo. Se 0 primeiro se coloca por baixo, a menos que outros a nao coloquem, 0 segundo e posta de

137

Page 131: O terceiro instruído

lado. A pergunta: quem sou eu?, ou a substituo pOl' quem e ele?, ou 0 pudor exige que eu procure sempre responder ao lado. Portanto, atraves cle certos adjectivos.

;: Quem sou eu? Dizem quc sou dclicado, acljectivo estimaclo no meu pais, em que se gosta clas vel has palavras nobrcs, como gentil, ou scja atcndoso, submisso, aclaptado, cortes. No outro, eu adivinho depressa as qualidacles, positivo, e de imediato ell sonia, mas nao sei duvidar dos seus vidos, ingcnllo. E rapidamente superabundam os adjectivos. Avan\,o facil­mente ao sell encontro, ofereccndo de bom-grado uma oportunidade ~l

contingencia, confiante. Timido ou ~lssustado, parcel', eu nao desconfio, mas poc\c· en tao clizcr-se que sou corajoso, nao? A Ininha primeira estima pelo outro, que 0 en co raja e muitas vczes 0 fortifiea, faz-me colocar sem­pre a fasquia acima de mim, nao encontro nada mclhor cia que eu meSl110: gencroso? Talvez, mas eis que de s(ibito clcscubro que mc coloco em baixo e assim cis-me um pouco olhaclo como sujeilo, pdo menos subjugaclo. Defino 0 eu pelos contactos, as proximidacles, os encontros e as rcla\,oes: sim, na comllnica(;;~10, eu construo-me e sitllo-mc diante de mim pr6prio. Screi finalmentc sujeito?!

NUS disso me prc"ino: a pr6pria palavra sujeito nao foi antes um acljec­tivo que rapidamente sc tornou um nome? Em primciro lugar depenclente, submisso, limitado, eXIJosto, obrigado exactamente a isso, como posso ell dizer a quem fala: abrigaclo, sin to-me obrigaelo, antes de tomar isso como ponto de partida ell' lllll enunciaclo 16gico e gratnatical, oncle esse ser individual se torne uma pessoa e 0 suportc at raves e10s sells aetos e con he­cimcntos. Acljeetivo l11uito bem posto ell' bdo que signifieava 0 cl6dl e 0 obecliente e que, de rcpcnte, tomou () lugal' principal e, substantivanclo-se, expulsou os outros adjectivos para fora clo centro em que, em filosofia, sua majestaele come\-'ou a dominar? Devemos reconhecer, no slIjeito, lim sujeito que teria asslImido inclevidamente 0 lugar central, llIll rei cle comcclia como Ariequim, Imperador cia LU<l, ou de trageclia e ent~lO supliciado, atravessada no meio pcbs setas?

Portanto, quem sou eu quando assim mesl110 me situo em baixo? Aclmi­rativo, cntusiast~l ate em rela\,ao ~I quem se revel a inventivo e bam, respeitaclor ell' quem trabalha, bastante gencroso, dcsobeclecenclo violenta­mente a quem ordena e estabelece ou pronuncia a lei, docemcnte ironico cliante de qllcm se ravonei~l, cmocionado pela bcleza do corpo Oll do talento, gelaclo perante a grandeza que se ostenta, clepressa rompendo com quem e vaidoso, apresento as minhas homenagens as criaclas e am<iS de leite, perten~() ~l familia dos mais humildes e raramente me cu!'vo perantc os bem situados, portanto, segundo a pessoa e a sua rocla, e!oqllente, taciturno, fahldor, caloroso, reservado, ausente Oll totalmentc entreguc ao outro. El1t.10, quem J1ucleste tu reencontrar, tu que me anlaS Oll me odeias, a quem suponho ser hostil Oll indifcrente? Um homem jovial ou modesto, selvagem, clistrafclo, ou peIo contrario COl1centrado ..

138

Page 132: O terceiro instruído

Mas acontece que rudo isso e verdacleiro: diz-mc, pois, e 0 que tc pe\'o, o que devemos entender por mentira? A rela~'ao produz a pessoa, nJo creio intciramente nas m{lscaras. Fugidio, lanc;ado vivo, sob 0 «nos» que sc move na intersubjectividade, 0 eu, como se diz, faz 0 que poc\c: adapta-se, subordinado aos la~os da comunicac;;Jo. Mestic;;o, quarter,-lo, heI"lnafrodita, <lmbidcstro, tatuado, vivendo sob mil camadas de Illantos aos peda<;os, posso-me desembara<;;ar dele sem dificuldade, mas isso nao altera grande coisa. Nao acuscm de serem mascaras os perfis que as outros traC;'<lm em mim.

Servidor de mil amos, Arlequim cobre-se com esses sujcitas-espectaclo­res, porque pennanece no mcio do p(IiJlico e dele faz parte, e por isso continua a SCI' lim imperador de comt-dia, enquanto SalomJo, exterior e distante, atrapalhado com a sua loucllra solar, se torna num verdadciro rei de tragcciia. Em chamas, 0 tragico forja s6 por si a unidacle cia pessoa ao mesmo tempo que as de aq;ao, de lugar e de telnpo - 0 sujeito do proprio saber, pelo menos no Ocidente, funda-se sobre esse tragic -, 0

c6mico dcixa-os entregues a sua multiplicidade. Suborclinado aos seus sujeitos, 0 lmperador cia Lua cnverga as suas cores e as scus mantas. Irresistivelmente, diagnostico esse teatro essencial do doente mental no tragico solar, porque 0 comcdiante, normal, ancla na boca de toda a gente.

Partanto, nova mente pergunto quem sou ell? Solitario e social, timido e corajoso, hllmilde e livre, reluzente, penllmbroso, animal de fuga e de amor, nunca me cubro cle po nem me pinto, nao usa qualqucr titulo debaixo da minha assinatura ou no cartao de visita, sinto a roupa sobre a pete como lim homem nu encoberto. SOLI bastante cocrente para I1Ullca ter necessidade de mentir.

'Na realidade, pOltanto, sou todos aqlleles que sou nas c pelas reku;,·6es sllcessivas ou justapostas nas qllais me encontro elnbarcaclo, produziclas por mim, sujeito acijectivado, subordinacio ao nos e livre de mim, e que 0

leitor se resolva real mente a perdoar-me: ell nao falo (serei eu, vcrdacleira­mente?) senao para procurar 0 mais lealmente do mllndo 0 que existe no outro. POl' isso, 0 ell e lim corpo misturacio: constelado, manchaclo, zebrado, listrado, ondulado, ocelado, cuja vida deve segllir 0 seu proprio caminho. E cis que assim regressa 0 manto de Arlequim, coberto cle adjectivos, qllero dizer, de tennos qlle se colocam lade a !ado. I

Assim 0 infeliz desperta em mim 0 "elha crist~lo que Ilunca donne senao sob urn dos lados e de novo faz nascer, sobre um monte de palha, o poderoso que para al condllz 0 antigo c{Haro, sempre presente, emhora lIln verdadeiro holocausto tlldo tenha irradicado - nao tenho mais antc­passados -, 0 ciogmatico mais teimoso desperta 0 trocista que donne e 0

est(lpido 0 inextinguivel riso clos deuses, 0 violcnto suscita quem e mais pacifico, mas a todos a beleza os faz ajoelhar.

Serei, pois, um quadro em rela<,:ao a isso, LIm perfil fugaz apagaclo perantc um horizonte desilucliclo c mentiroso? N~lo, ClI SOLI a soma c1csses

139

L~ ____________________ __

Page 133: O terceiro instruído

acljectivos, novamente substantivados (cleve falar-se antes em novos ricos), a iconografia clessas silhuet~ls, integral, inquieta e t1utuante, mergulhada no rumor e na questilmcula, no meio de gritaria, clo rufdo de funclo clos parasitas que gravitam em redor desse eu, exilio banhado no meio clos choros, t6rax alimcntado num lago de lagrimas, uma towl solidao lfquida, em estado instavel, sollJ(;ao sem exciusao em que 0 nuxo clo abandono atravcssa de sl,bito 0 cspa<;:o variavel da coragem, onde a camada amarela do clespertar se percle e se lan<;:a no volume negro dos esquecimentos, em que alguns tra<;:os subtis de orgulho se funclem sem futuro numa bacia de humildacle gordurosa ... Sim, os acljectivos mergulham por si mesmos uns nos outros e representarn sem cessar 0 sujcito: uma confusao em que caela um por sua vez e por vezes toelos juntos se elirigem para 0 centro, mas oncle ocupam todos os lugares e toclas as clireo;;oes do espa<;:o, em todos as senticlos.

(, Par isso, quem sou eu descle logo se exprime scm dificuldacle: uma mistura, Ulna confllsao bem Oll mal telnperada, cxactamentc um tempera­mento. A palavra cxprime a coisa em si mesma c, por consequencia, ell sou feito de tempo, clesse tcmpo derivado cia temperatura ou cia temperanc;;a. Como ete, a rnistura e contraelit6ria: de um clia para outro, tuclo se po de moclificar Oll, no mesmo lugar e ao mesmo tempo, tudo se confunde. I

j/ Contradit6rios em si, a mistura e 0 tempo revelam-se, como a minha alma, nebulosa, vari{lvel, onelulante, matizada, aqllitana. A minha alma, a mistura C 0 tempo nao pod em exprimir-se por substantivos, l11uito estaveis, nem par acljectivos, muito justapostos, mas descrevcm-se In£1is precisamen­te pelo conjunto clas suas preposi\oes: antes e ap6s constroem a flllidez viscosa, cum e sem as partilhas hcsitantes, ... ;ohre e soh 0 sujcito falso e verdadeiro, por e contra as paixoes violcntas, atrti..,' e perante as frouxas hipocrisias e as corajosas leal clades, em c fora as c1austrofobias cOl-porais e teoricas, socia is e profissionais, entre c alem a VOGI<;:<'l.O metaffsica do arc£1n­jo-mensageiro, de e para 0 meu furor de viajante, topologia fina que expri­me do melhor modo os lugarcs e as proximiclacles, as ruptllras e as conti­nuidaclcs, as aClImula<;oes c as raridades, as posi~;oes e oS sitios, as fluxos e as cvolu<;:oes, a liquiclez clos solventes c dos solutos. )1

Nao, cu nao sou um problema; literalmentc, ell sou uma solu(,'ao. E conscntirei incluir alguns titulos no meu cartao de visita se porventura entender assim as cliversas relac;;oes clas substancias ai c1issolvidas, a sua clensiclacle da alian<;·a. Quem sou eu? Uma fusao de aliaclos, mais coalescente do que coalisado.

De humor aquitano, pOl'tanto, temperaclo C0l110 0 c1ima cia minha pai­sagem natal, melancolicamente alegre, entllsiasta c desespcraclo, de mati­zes marcadamente suaves, em doses clifcrentes e tftulos moventcs, segundo o instantc e as pcssoas cle um bom oU mau encontro, tuclo C01110 parte ou suspcnsao que pode de repente ser revelacla Oll trazicla a luz sob 0 f~lCho

cruzado das circunstftncias Oll clas interseq'oes, pela exigencia sl,bita de uma rela<;.'ao forte e pontual.

140

Page 134: O terceiro instruído

i !

!

I

l

Uma cspecie de pseud6poclo avan\'a. Estende-se. Retirar-se-a. Talvez nunca mais volte a apareccr. Vai tornar-se lim axono. Que invcntarei esta manh<-l sob a acr;~10 de que pata de pumba? Que nova proprieclacle resultara dessa nova mistura? Que delicada Afrodite nasccra, radiantc, c\cssa inespe­raela clesnatas,'ao?

Na multiclao, eu SOLI oetavao. Trago, pais, em mim mesmo, no mais Intima de l11il11, qU<lse cliria camigo proprio, a vestimenta composita de teciclos que cobrem a minha roupagem real e virtual, as andrajos em que se justapoem mal mil caras, 0 meu tempo as cosell c depois as misturou em con junto, como ninharia est~urapada) clecerto, Ina5 tornada a minha pr6pria carne, 0 meu sanguc liquiclo misturaclo: quebcquensc c1esde a Hha de Couch'es no meio de Saint-Laurent, africano desde as tnargens clo Niger, chines clescle Yang-tse, brasileiro descle Belem na margem cia Amazonas, os adjectivos locativos abunclam por sua vez, 0 meu sangue carre sob os rios cia Garona, Mackenzie e Yukon, a minha carne sai das areias cia Garona, cia Amour, da Ganges e do Nilo, descend a cia Garona, cia Huanghe, do Elba e cia Mississipi, nasci nas origens cia Garana, cia Tibre, clo Pactole e do jorclao, marinheiro do mar na confluencia das rios cia Terra, a meu cartao cle visita iclentifica-sc com as minhas visitas, COlll a propria geografia. Como quarterao, perten~o a multidao, nao sou 0 cliabo, mas sou 0 mapa­munclo e todo 0 mundo £10 mesmo tempo.

E toclo 0 mundo, creio, e uma mistura como eu de sangue rctalhado em mil tftulos e lugares, correndo semprc para toelos as rios, exccpto talvez aqueles que leram e acreclitaram nos livros que explicam 0 princfpio de identidade, que em resumo pennite tcinar. Como muncIo, ell SOLI legiao; nao, nao se trata de lima cloen~a.

Nunca os africanos acreditariam que eu Fosse um tubabe, os chineses julgavam-me saido de uma qualquer minoria nacional, pOl' tada a parte imigrada mais clo que emigrada, Lim indio cia America chegou mesmo a perguntar-me, num ''Pow-wow", a que tribo eu pertencia. Creio no fundo cle mim que a acto de se pertencer e que G.lUsa, enl face cia exdusao, 0 mal clo mundo. Encaro isso como uma intersec~ao cle cem mil clependencias, como mesti~o.'·

Como camp ones, sim, aprendi a lavrar; como merceeiro decerto vencli azeite, e sal seguramente como marinhciro; como pedreiro, afei~oando a pcch'a, nao tenho fcito outra coisa em tocia a minha vida; vaclio, talvez, e monge, claro que simi desde h<.l pouco tornei-me num novi~o montanhes; em busca da santidacle, apaixonaclamente; ou escritor, sim, como cspero que seja; mas, como fil6sofo, lamento a ell1o~ao e a csperan\"<.l perante a icleia de nisso me poclcr tarnal'... Sim, a todos, a todos eu compreenclo.

Mas quem nao sou eu? Touro, serpente, lince, c~'io, lobo, gaivota? Eu sou e compreenclo quem faz parte cia area. Do dilllvlo fluiclo e cia alian~a

141

\1~:'_! ('111818 SflH:ln - 'iilclvh. JISCl 30 010111SIII1

Page 135: O terceiro instruído

est'lbelecida. Que animal me poderia servir como totem? A raposa? N~lO, eu vivo como llln animal sem especie. Nada de genefo, sangue misturado, sem depcndenci~l: livre, livre, na especie irisada das mistllras, animal de tempe­ranc;a e de temperamento, um ser feito de tempo.

Quenl sou eu, lfquido, entre as higrimas escondidas? Quem sou eu, topol6gico e temporal? Quando 0 silencio, enfim, e a noite, insula1'izam a solidao, quando se cala a lingua gem que tem a seele dos outros em mim - como al1lordac;a1' 0 bico desse irrelnediavei tagarela? - erguem-se as vozes, a tonalidade musical fundamental que me acompanha clcsde a mais longlnqu<l inffmcia, continua sem ruptura, num rom pimento continuo, ar­ma<;ao ou armadura que me sustenta e cuja tessitura indica a minha propria ton<lliclade, sons puros privados de sentidos, eu SOLI, escuto a tlauta e 0

violoncclo, a GlI1c;'ao de embalar e 0 dinone, a banclu1'n.l e a tuba, a santona e a rabeca, serenata e ballet, cavatina e rigodao, soprano, baixo cantanle, sinto dentro ele mim os g1'andes 6rgaos, as minhas clelfcias e prazeres: bo1'd~lo, fanhoso e aflautado. Mas de novo essas pe~'as all instru­mentos se canfunde1l1, pOl' vezes harmonizados, quase sempre provocantes ou lamentosos, lima confusao, charivari, acofenas atonais, de onele ra1'a­mente cmergem as radiantes Afrodites pOl' entre alguns achados t11usic~Iis. Ou um puro g1'ito de dor. No fundo do fundo desliza c movimenta-se a m(lsica, tlllxO e rio unido c tu1'bulento, pottagem e partador clo tempo, no fundo do fundo do fundo tlutU<l esse ruido de fLlndo.

E ai me lan~'a no munclo clas coisas que se lanc;am em mim. Eu: uma questi(mcula em bmto. Eu: lima nota prolongacla. ELI: um prono­

me, quando a linguagem enfim se mistura, P;U<l esquecer, apenas como (mica menti1'a, as outras confusoes e Jigar a tllultiplicidade de todas as pec;as. Eu: um;:} terceira pessoa, em que esta a outra, os outros, todos, isto, ° munclo, e () impessoal clas intempe1'ies temporais: chove, chora, hlZ vento, queixa-se; protesta, grita, musica, 1'ufdo; de s(lbito, e preciso estar, e cis--mc assim aqui, etico, reunido, de pc, ao trabalho, desde ° romper cia db.

A filosofia c1assica aconsclha passar tlos mod as e atributos, circuns­tanciais, para a substflncia; passar dos adjectivos, voluveis e inconstan­tes, ao substantivo estavel e fixo: mas a. palavra sujeito, como jJ. disse, foi um adjectivo antes de se transformar em substantivo. Mentiroso! Poderia clizcr--se que 0 volUvel, so depois de tel' vivido, e que se fixou.

Quando se escuta ou compoe algumas variac;oes sobre um detenninado lema, n;lo nos interrogamos pOl' vezes se 0 proprio ten1<l n,lo se clesenvolve como uma variac;ao entre outras? Oll mais simples, sen) duvida, mais pu1'o, mais curto, decerto, mas porquc separar-se dehls? Existe cle facto uma grande dist?lI1cia entre estas (dtimas e entre elas e 0 tema que nacla me impede possa entao designar como varia<;;ao sabre uma das variac;oes. Porque

142

Page 136: O terceiro instruído

consider{l-lo mais estavcl e melhor centrada do que estas liitimas? Sim, 0

tema nao e sen,-10 uma clas varia~6es. Assim 0 pr6prio rei e urn sujeito, um homem entrc tantos outros, dois pes,

dez dedos, nos melharcs casos, c sustenta-sc sobre 0 mcsmo chao tal como eu. E prova disso e que, desde que a guilhotina funcionoll, todos esses sujeitos de outrom, talvez com raras e sabias excer~6es, evitam tornal' a1 0 seu lugar ou bzem tudo para aeolher 0 rei tcmporario, que nao dcixa de SCI"

sujeito tal C01110 os primeiros, encarado no sentido politico, dado quc 0 m:'l111e­ro de atcntaclos clirigidos contra ele 0 coloca ll1uito acirna clo nll111erO daquc­les que conspiram contra alguem. E ei-Io assim atiraclo a baixo: tem de saber que deve 0 seu lugar cle rei a esse facto de ser 0 mais sujeito dos sujeitos.

Acljectivo substantivaclo, tema-varia~~10, rei-cidach10; tal C01110 0 Sol nao e mais clo que uma estrcla marginal, an;1 amarclada C 111eclfocre, sem ver­cladeira grandeza, no imenso concerto dos supergigantes, vermelhos como Betelgeuse ou azuis como Rigel. 0 rei Salomao, regressado ate n6s, eliria: nacla de novo sob a galClxia Cygne? Eis como durante 11luito tempo a revolu<,'ao astroffsica nos ensinou a nao centralizar lTlais 0 ceu nem 0 universo. E ouve-se mesmo dizer que 0 ponto original do hig-hang nao teria lugar nem tempo.

POl' isso, 0 centro nao e mais do que um centao, junta mente com numerosas pe<,'as compositas. Ao lt11perador cia Lua podeIllos peclir que se dispa para mostrar 0 que nos csconde: mas ele nao eseoncle nada. Tudo esta realmente e scmprc por toda a parte como aqui, talvez nos limites de grandeza c de perfei~ao, quero dizer que tuclo e um manto de arlequim, a propria substancia, 0 tema, 0 sujeito, mesmo eu proprio, 0 rei, 0 Sol, e ate os substantivos. A singulariclaclc poupa-se, a uniclade multiplica-se.

E mesmo Deus? Nao' e esse um dos segreclos que eu desvendo: Cmico e tripIo, mliltiplo, acljectivo e substantivo, divino e divindacle, rei e sujeito, sllpergigante na sua gl6ria central c an~lo perdido I1um estabulo da peri fe­ria, universal c singular, lei criativa, incarna\'ao tdgica prestes a mOlTer, terceira pessoa espalhada por tado 0 laclo? .

Absurc\o, impossivcl, inaclmissivel: nunca 0 ousci clizer, nao, I111nCa tive a coragem de expor aquilo em que acredito.

Mas, em primeiro lugar, ell nao sei sc creio, clesconhe\'o 0 que e erer, nao sei que pensamcnto, acto ou sentimcnto acompanham a clTn~a ou a fe. Sei talvez um poueo 0 que e de saber, sci 0 que sci, quando 0 sei, como fa\'o para 0 saber, conhe\'o a ignorancia e a dllVicb, a procllra e a questao, conhe~o 0 conhecimento, a sua felicicbde e os seus objectivos, os sells mldtiplos caminhos, a sua bllsea entllsiasta e os sells desertos, a sua profun­da humildade, 0 sell esquecimento raro e necessario da razao clominadora. E ell reconhe~o 0 que sinto, encerrado para sempre na caixa negra clo plldor. Sed isso uma mistura de qualqller incerto conhecimento e de lim

143

Page 137: O terceiro instruído

certo patetico que consentc se Ihe chame cren\,a? Nao 0 sei. Ou sei que isso mc e indiferente. Que mc importa saber de onde vem 0 que YOU ousar dizcr: eis-mc ja bastante velho, isto e, bast ante forte para ter essa coragem.

Nao sci se creio em Deus. Sei que l11uitas vezes nao posso acreclitar em Deus: sou ateu em tres quartos cia minha vida. No entanto, atraves cle intermitentes fulgurac;oes, sei que 0 divino esta af presente, na minha proximidade, que ele reina no universo. Reinar aqui nao e falar propria­mente de um rei, mas clessa forma de constnH;aO designada por um ladrilhador quando diz de um desenho hexagonal e vermclho que impera em todas as divisoes de uma mcsn1<l casa. Por toda a parte no universo, o divino est{t nde tecido, outros falam de lei, mas eu prefiro descrever a materia ou a carne. Disso estou convenciclo, nao agora, mas por vezes, raramente, de maneira exUitiea. E quando a ocultac;ao demorada sucede ao breve retlexo intuitivo, eis-me segura de que Deus nao existe: uma hipotese ja velha e sem interesse. Talvez entaD me entrcgue a mim mes­mo, setn dllvida que me castigo, deixanclo que a 111inha propria inteligen­cia se entregue a essa miseria. Foi Deus que nos abandonou a partir cia dia em que n6s meSI110S 0 abandonfunos!

Nao creio, mas ercio. E isso nao se decide, lllas segue-se. Mfstico incre­dulo, as minhas raras eertezas mergulharam na mais morn a increclulidadc. Ora, durante csses momentos em que creio, eu creio no Deus lmico, ll1uro continuo clo universo, embasamento, fundaC;ao e Clllneeira, presenc;a inevita­vel, proximiclacle constante e sentida, mas nao posso c1eixar por muito tempo os bosqllcs scm as hamadrfacles, 0 mar sem as screias e as guerras clas na\,oes sem 0 seu oclioso sagrado, as ciclacles sem os templos cia diferen\,a e as Sll<1S habitac;oes sem os manes dos aeclos: 0 ar povoa-se de arcanjos que passam, de inlJll1erOS mensageiros; sim, af mc sinto verclacleiramcnte pag;10, confes­so, politeist<I, eampones fHho de camponeses, marinheiro filho de marinhei­ros, mas tcnho visto pOI' vezes os clellses fllgirem de lima ilha em que aporto Oll aparccer i1uma aureola, tenho-os ouviclo protestar, crueis, abominaveis, nas incarnac;oes de toclas as for\as, tenho ouviclo 111uitas vezes legioes de clem6nios fustig<-lclos peIo zumbir clos canhoes, sim, fui aterrorizaclo pelo proprio cliabo - quem nao vislu111brou clesenhar-sc 0 seu corpo monstrllo­so, real, par cletras chis nllvens clo estrondo atomico? -, mas tambem ja vi passar uma vercladeira cleusa no meio de I11l1itos sorrisos, juro peb minha palavra de filosofo, garanto-Ihes, tenho clisso testeI11unhas.

POI' vczes, aereclito no Deus de meu pai, ateu convelticlo de Sllbito no mcio do estronclear clos obuses no campo de Verdun, creio I11uitas vezes nos deuses clos meus vclhos antepassaclos, que sei bem intll1c1am ainda 0 esp~l\,o,

constitucm 0 munclo c, sobretudo, sao eles que consoliclam a sociedacle. Ali{IS, descle Nagasaki, sinto-me secluzido peb minha ascenclencia carara:

I11ulticlao de deuscs reduzida a dois, de que um deles, 0 do mal, pennanece como l11cstre sem partilha de tudo 0 que os homens cha111<1m pocler e gloria, a historia, enquanto 0 da bonclade se esconcle c clesaparece na palha de um

144

Page 138: O terceiro instruído

!

I:

cstabulo, tao at~lstado, comum, apagado, que continua inacessfvel. Tuclo para o primciro, nacla para 0 segundo, desfiguracio, clerrotado, improv{lvel.

Ell ereia, sobretudo creio, creio essenciahncnte que 0 munclo e Dells, que a natureza e Delis, cascata branca e riso clos mares, que 0 Cell varhivei e 0 proprio Deus: naveguei com Deus, voei pelo meio de Deus, reccbi a sua luz verclaclcira Bas minhas costas pelos correctores de gelo no alto cia montanha, ao romper do dia, tenho escrito por vezes meS1l10 sob 0 sell

sapro, tra<;;ando ingeouamente 0 meu caminho de humilclacle sabre a p{tgi­na clivina c, em virtudc clesse uffcio, nunca cleixei de sobreviver por ele, com ele e nele ... Mas, pOl' chua de tucio, toclos 50n105 Delis, tu que ell amo e tu que me ocieias, ttl que passas e que eu nunca conhecerci, todos aqucles que me exclulram, tu de quem ja recebi flores primavel"is, toclos enfim que fazem barulho, nesse burburinho que e a minha vida carnal e categorial...

Mas pOI' acn§scimo estou certo, absolut<1mente certo, de que para la de toda a esperan~a existe uma falha, uma coisa bizarra nesse panteismo 111<lSsivo e denso, uma exceps;ao estranha, orige111 de tada a cior, que sou eu e apenas eu, nesse concerto divino atravessado pOI' pequenas questitlt1culas, me diz que nao sou Deus; somente essa falha de nacia nao e Deus, isto e, um novo scntieio, bastante agucio, eia velha palavra ateu. Aqui, Dcus nao existe. Aqui, Deus apenas se 3usenta. A minha parte de destino e esse lugar de ateismo.

Tuclo c Deus excepto aqucle que 0 cscreve, que cleixa ficar a caneta entre as l{lgrim<ls.

o um. 0 centro. 0 sol. 0 tcma. A substflt1cia. Dcus. 0 nome proprio: 5alomao, Ariequim, 0 autor deste livro.

o mtiltipio. A pcriferia comp6sita. As estrelas de todas as magnitudes. As varia~oes. Os atributos, 0 manto esfarrapado. Os multiplos adjectivos: gentil, cortes, falador, taciturno ... Ou ainda antes: a mistura conseguieia, a musica, 0

tempo, 0 rumor de granalha que os moinho.') fazem, as almas e 0 mar. o mtlltiplo e a uniclaclc apresentam-se, na realidacle, como singularicla­

des-limite de uma varias;ao. Eis ai a imagctlJ sil11ples. Mesmo que seja 1I111

111osaico: ela justa poe milhares de elementos cntre cliversas for11us e cores variadas, cujos limites desenham uma especie de rede. Eis af 0 tl1ultiplo: mapa-muneio, manto de Arlequim, centao de v{lrios tcxtos.

PorqllC um quadro pintado a 6leo sobre uma tela representa a meSl11a coisa que 0 1110saico: a rede clesaparece, as proxil11iclades fundem-se, os elemcntos ligados ciao iugar a U111a c<lmaeia continua de formas e cores misturadas. La Belle Noisew·;e, obra-prima desconhecicla de um pintor an6-nimo, faz emergir lim soberbo pe no meio de um caos cle tonalidacles.

No corresponclente gratko geometrico, l11ergulhaclo num espas;o homo­gcneo e isotropo, as curvas clesenvolvem-sc segundo ccrtas leis e repcte111--se gras,'as as rectas, verticais c horizontais, os pontos nao existem par

145

Page 139: O terceiro instruído

partes, nem as linhas nem os pIanos de espessura: 0 reino de lim sucede aqui ao do multiplo no mosaico e na mistura clas cores lfquidas sobre a tela.

POI' um lado, podemos extrair do quadro 0 mosaico, crianclo uma' sepa­r£1<;ao, clepois um quebra-cabe<;as ou um jogo de paciencia a partir dos seus tr~l<;os ou regia a pOl' regiao. Ess~1 mistura tende entao para 0 mllltiplo, partes extra partes. 0 clescontinuo emerge cia continuidade, como as nume­ros inteiros numa prova real. Os elementos mergulhados nessa mistura separam-se bem au mal. 0 mosaico mosU-a todos os graos. Em rigor, dir­-se-ia com segur£1n<;a que se podia verLa Belle Noiseuse infinitamcnte de petto, onde se descobriri£1 essa ciisposi<;ao granular.

Pod cmos inversamente imaginal' uma mistura tao infinitamcnte dilufda que as cores se dissipariam para dar origem a sua homogeneiclade. UI11;:1

gota de mel, um pingo de leite, uma pinga de sanguc no mar Mecliterraneo nao poderiam perturbar a sua cor unifonncmcnte avinhacla. Entaa, as va­lutas cOInplicadas simplificam-se cm extrema, todo 0 ponnenor se al1ula e os objectos vitritlcam-se: <l aproxim£1<;ao cia lugar ao rigor, a mistura tencle infinitamente para 0 mais puro e a pintura para a geometria.

Como balanc;;:o, 0 m(iltiplo e 0 um tornam-se singularidaclcs-limite cia mis­tura e esta liitima nao cessa, permanece ai, cnvolve-nos e banha-nos, scnclo necessario apelar scm cllIvicla para a realidade talvez com 0 £1uxflio de dU<ls opostas singularid~ldes: 0 seu limite do lado do um e 0 outro limite sabre as f~lces clo mliltiplo, Arlequim vestido com 0 seu manto, Salomao e 0 seu sol.

o monismo e 0 pluralismo sao filosofias-limitc construiclas abstracta­mente sobre um fundo real de mistura. A primeira geol1letriza-o, enquanto a segund£1 propoc um mosaico, um corte como joga de paciencia, uma imagem sobre 0 ecra de um receptor de tclevisaa.

Como falar cia mistura? Dc novo, claro, at raves de prcposi<;bes. Se tives­senlOS dc dcscrever La Belle Noisellse ou 0 manto de Arlequim, deverfamos esgotar sem cessar a sua lista ou rubrica: esta cor ou aquela forma que se encontra em e fora, antes e entre, alem e contra, sobre e sob, segundo ou tal como esta Oll aquela: cis qlle assim regressa ;:1 topologia.

Ora, cxiste uma topologia no primeiro gn'ifico geometrico, uma clo mosaico e enfim uma outra do quadro. A descric;;:ao rigorosa que ela pro­poc ou aquela que vibra e cstrCI11ece como a cortina i1uminacla sobre 0

palco em que Ariequim se clespiu. POl' vezcs, clivisamos af 0 um, cnquanto distinguimos 0 mliitiplo ou mergulhamos na conf'usao_

Mas posso ainda descrever, cia mesma forma, a clans,'a do fogo quc nos inccndeia, atraves de continuas centelhas, breves, longas, distantes, vizinhas, sobre e sob, fora e cientro, ciiante, atras, depois, antes, alem e entre ...

Era isso que ell queri£1 demonstrar.

Fogo. Imagino uma pirflIllide, lim prisma, absolut~lll1ente transparentcs. Quando a luz clara do dia, ela mesma invisivel, mas capaz de tudo deixar

146

Page 140: O terceiro instruído

ver, se lanc;a para uma face desse cf1nclido prisma, ela retlecte, de frente, um areo-iris de cores misturadas e distintas: nenhuma escapa. Espectro de estrelas, manto de Arlequim.

Quem sou eu? Ninguem, falando absolutamente. Nenhum. Se me sentiI' muito palido e macilento deixo de existir. Espectro triste e descorado, prestes a dissolver-se no ar. Nada, em rigor. Demasiaclo branco, invisivcl, candido, transparente. Zero. S6lido puro inteiramente entregue ;1 luz, ve­nha ela de onde vier, de cima e de baixo, brilhante, disereta, fixa ou irregular. Nem uma 56 parte de ser, nacla a nao ser 0 proprio nada.

Entao, tudo. A luz branca sobre a piramide transilicicla explode segundo 0

leque, mais que multicolor, cia pancromia. Nacla e, portanto, tudo. Nenhum e, pOitanto, possive!. Ninguem e, pOltanto, todos. Branco, ou seja, todos os valores. Transparente, pOltanto acolheclor. Invisivel e assim mesmo produtivo. Inexistente, portanto, inclefiniclamente apto no universo. Eis ai de novo a lei.

Universahnente, pois, porque 0 homem nao e nada mas pode: possui uma in­fin ita capaciclade.Sou alguem e nao valho nacla: pOltanto, sou capaz de aprencler tudo e tudo inventar, corpo, alma, entcndimento e sageza. Depois de Deus e 0

homem terem morrido, reduziclos ao puro nada, a sua forc;a criadora ressuscita. POl' isso, eu pude e tive de escrever este livro: porque a aprendizagem,

cle que e um fundamento, e a clara essencia da hominidade.

TU. DIA.

Declicat6ria. 0 meu amigo Herge nao gostava clesse nome, suponho, pOl'que assinava com as iniciais clos clois prenomes, Remi c Georges. Uma tal sigla mostra e esconcle que ele mal comec;ava a ser au a existir, eOlno uma crianc;a, 0 pudol' liberta 0 cssencial e reserva-o. POI' isso, Tintin nao tem nome, nem sequel' lInl apeJiclo, mas e uma onolnatopcia, Evocamos esses dois nomes e nao os designamos,

Quem era, pois, trar;;o por tra~o, aquelc que povoou a nossa inffincia? Georges era branco: luminoso, cliafano, 'sedutor, mas calmo. Adepto ou

inventor cla linha clara no seu trabalho, vivia numa casa de cores ligeiras e um corpo limpido e puro. Lembro-me dele como de uma transparencia, a sua inteligencia levitava, sabia ja quando falavanlos que eu tinha pacta com um anjo. Tintin assemelha-se a ele, mas sobretudo 0 Corisco Abenc;oa­do. Nas altas zonas clo Tibete descobrem-se toclas as chaves clo segreda: a neve branca, 0 monge em extase, 0 amigo perdido e 0 bem abomin{1vcl. j{l

sem maus sacrificados nem punidos, 0 atroz munclo de vitorias e derrotas enfim sossegaclo, a grande conversao, exactamente ao contrario claquela que the aconselhou. A Hnha clara desvenda 0 conjunto clas suas incanclescencias. Pot'tanto, Georges ou Herge, que ass ina va com um nome em branco, <lmou uma colorista.

Page 141: O terceiro instruído

Trinta raios convergem para 0 centro cia rocia, ciita a sabecloria chinesa, mas 0 pequeno vazio no meio confere a roda for~a, coerencia e funl);'ao. Mais de vinte aIbuns irradiam como uma alvorada a partir dessa vida, mas como designar a luz cristalina, transparente c branca, que deu origem -atraves de que prisma? - a essas imagens em que milh6es de crian~as e de adultos se reconhecem desde ha muito telnpa?

Como encontrar-lhe um nome? Um genio? Sim, entre os notaveis e as gl6rias consequentes que pude encontrar na minha vida, creio pocler dizer que Georges se clestaca como um verdacleiro genio. Mas nao se podem referir muitas obras que se leianl continuadamente clesde ha mais de meio seculo por varias geral);'oes, cacla uma delas relenclo ao meSIllO tempo 0 que uma seguinte descobre. 0 genio nao se define apenas por esse crescente reconhecimento, mas sobretudo pela relal);'3.o secreta que mantem com as cluas manifestal);'oes positivas cia vida: 0 comico e a infancia. As sobrinhas bonitas e 0 tio cle cabelas brancos rienl-se em conjunto de Moliere e de Aristot~lnes que ninguem excede em forl);'a e enl vigor. Os grandes momen­tos das culturas come<;,:am por esses elevados rdlexos de juvenil alegria: a criatividaclc ri.

Herge percle nas neves do Himalaia os (Iltimos valores negativos de modo que a sua obra afirma-se como um imenso sitn, (l1lico ou raro num seculo que privilegiou, nas suas artes enos seus actos, a destrui~ao c as rUlnas e que se compraz na estcrilidacle. Quem anuncia por n6s, clos sete aos setenta e sete anos 0 que devemos fazer, esse sim ingenuo, natural, confiante, vivo, vital, risonho e novo? Transparente, candido.

o domino branco vale por todas as cores, virtual mente: conforme se colo­ca aqui ou ali, ei-lo um, dois ou tres. E deve essa possibilidade a sua bran­cura: zero e rellniao de todas as cores, assim as cOlllbina e as elimina, tudo e nada. A luz branca clecomp6e-se no espectro do arco-fris e absOlve-o, como a caucla do pavao depois de se abrir em leque. Se qlleres ser tuclo, aceita nao ser nada. Sim. 0 vazio transparente. Essa abstraq;ao suprema, esse despren­dimento que equivaJe a polivalencia. Embranqueciclo, cOlllprcenderas tudo e poclen'is tornar-te, a vontade, num pcixc, planta, flor, arcanjo ou iUlllinaria.

Assinando com as iniciais clos prenomes, sem nOll1e, cxistindo apenas, Hcrge desenha, primeiro a preto e branco, lima personagem qU<lse anoni­ma, designacla pOl' uma onomatopeia, redoncla como uma lua, a cabe\<l mal clefinida, sabendo tudo e podendo f~lzer tudo, capaz cle todos os possiveis, congreg~lt1do a sua volta 0 capitfro Haddock, 0 professor Tournesol e Castafiore, Serafim Lampiao ... 0 domino branco procluz c compreende a sequencia de todos os dominos. 0 centro cdador, a cabel);'<l de Tintin ou 0

genio de Georges, brilhalll, incandescentes, como a neve ou as glaciares do Tibete. Em trinta raios, 0 munclo inteiro, Asia, America, as ilhas cia Oceania, Incas, indios e Congoleses, convergem para 0 centro em que se

148

Page 142: O terceiro instruído

verifica em toda aroda coesao e plenitude, existencia e perfei<;ao, 0 vazio redondo e trans parente do meio, 0 centro cfmdido, a cabe<;a de Tintin, a alma angelica de Georges, 0 mundo aos pes de Corisco Aben<;oado, banco de gelo, infancia, tudo isso que cliz sim.

As circunstancias vitais, reencontros, esperas, viagens, oportunidadcs e falhas, trabalho, muito trabalho, sobretudo, massivo e dcnso, invadem os dias e as hOI';IS, ocupam as noites, deixam a corpo e a alma entregues ao mal do tempo, enfim, todos as ponnenores de uma vida dedicada a obra concorrcm todos, para a centro, para um homem, meu amigo, a quem presto publica mente testemunho c que, transfigurado pOI' ela, 0 scu rosto irradia brilhanclo como 0 sol. Como esbo<;ar 0 seu retrato, no meio da rosacea, dado quc a luz que dar sai produzia toclos os tra<;os, toclos as rctratos explodindo sobre 0 contorno do vitral, vinhetas m(lltiplas que nos fascinam descle a nossa amarga infancia?

E fascinam-nos parque 0 sinal branco, a cabe<;a inofensiva e quase inexpressiva, infantil e indcterminacla de Tintin rasgam a pagina ou inva­clem a casa como uma dessas janelas atraves das quais, nas feiras e festas, todos af tiram 0 seu retrato fotografico para passarenl par heroi, vcdeta Oll rei, podem deslizar por <\1 0 pr6prio rosto ou 0 SCll busto c reaparecer, do Dutro lado, oum ccnario de tloresta virgem, palacio ou 6pera. Mas talnbem pode acontecer que um focinho de touro Ihe caia sobre 0 pesco<;o e sobre os ombros e 0 t'1<;a voal', titubeante, com os pr6prios chifres ...

Cad a leitor mergulha, pais, 0 sell proprio corpo na abertura deixada pOI'

essa ausencia branca e em sua evoca<;ao diz-se: Tintin sou cu. 0 aventu­reiro, pOl' sua vez, tcnha 0 nome que tiver, iclentifica-se pel a mesma razao c participa junto de mil outras pcssoas, de tad a a classe, etnia, cultura, latitude, nas personagens dessa enciclopedia em elipses au parabolas que faz de Hcrge 0 J(llio Verne das primeiras ciencias humanas.

Subindo dessa multidao irrequieta e suave ate ao sell animador ou criador, acedemos ~l 1uz clara e calma, quasc ausente, em que uma serie de transparencias produz pOl' retorno certas densidades.

Quem percorreu Xangai, 0 Tibcte, a Esc6cia ou 0 Pr6ximo Oriente sem se interrogar: na~ reconhe<;o esta paisagem que sc parece estranhamente com 0 que eu j{l vi na lninha infflOcia atravcs dos olhos de Tchang ou clo filho do emir? Como pode acontccer que, bloqueado pcla guerra num cordao COll10 Garona, tenha ja viajado tanto e aprendido tantas coisas so­bre os homcns? As coisas lnodificam-se como por encantatnento: 0 mundo rctrata as coisas memoraveis, os modclos reflectctn a imagem, a vida desata em scguida os sortilegios da arte. Sei mesmo que nao sentirimn nenhum interesse pelas flores dos campos se nao tivesscm visto antes Ulna papoila num qualqucr quadro de Renoir: nao existia a Ile-de-France antes de Carat. Esta banal experiencia, que se cliz ser marcada peb pr6pria expericncia,

149

Page 143: O terceiro instruído

tem a sua origem no proprio autor que obedece a essa lei bizarra que inverte a ordem e a disposil);'ao das coisas: domina-a e comanda-a.

o homem realiza com 0 seu corpo c capacidades, sangue, alcgria e higrimas, e a sua obra que comel);'<l a produzir pOl' si mesma a vida como ela avan\,a e 0 mundo como ele se apresenta e, portanta, esse homem e que dccidc um dia mcter maos a obra. Circulo cncantado que alimenta um com a outra e a outra de 1Il11 hOl11em e da obra, espiral que mio se detem senao ~l hora cia morte, nunca saberemos se a casa se torna branca porque o desenhador morrc ou se mone porquc Tintin dessa vez clai nao sainI; circulo de fusao que faz nasccr em Moulinsart todas essas historias sem fronteiras con10 de uma abunclante cornucopia, provando assim que muitas pessoas e coisas ai se esconden1, nas annaduras ou nas suas dependencias. Vigiem, pois, quem deb sai ou at c1eixa vestigios: defenda-se 0 tesouro.

Diamantes, rubis, colares, cujo valor cxplocJe longan1ente sabre a trajec­to aberto dessa helice invasora ate aos astros, mas que rctorna a si para se alimentar dos antipodas no castelo, no fetiche, na cave, na est{ltua, no proprio corpo do autor, entenclido assim como procluto e produtor.

Georges irradia de luz clara um cliamante desse tcsouro. Tinha semprc o habito de sail' do SCLI castelo, que era 0 scu orgulho au nele habitava. 0 circulo crgue-se nao se sa be de ondc e sobe como uma espiral opulenta que chega as extremidades do mundo e 0 encanta, mas que regrcssa sempre ~l sua propria vertical: Rameau conta as cOinpassos que nascem naturalmcnte cia pr6pria mllsica, cujos compassos produzem a musica de Rameau e pOl' fim 0 proprio Rameau compoc esses compassos. Georges nao deixava de cntrar e de sail' do sell moinho.

POl' isso, 0 retrato do homem limita-se a olha1' a obra como se diz olhar o ciclone, cspal);'o calmo e ensolarado, esse lugar en1 que 0 tesouro de Georges brilhava, tranquilo c di{lfano.

Nas horas felizes em que nos esperava no patamar de sua casa, de bral);'os abertos, os 01 has e 0 rosto iluminados de sorriso c bondade, nunca achei que fosse longo 0 trajecto ate Diewcg nem que a minha emo\,ao excedesse o reconhecimento perante aquele que tinha povoado a rninha inffmcia. Atra­ves clas minhas l£lgrimas, eu adivinhava 0 sedutor.

Bombardeamentos, cleportwoes, guerr<1s e crimes enl massa esmagaram a nossa inffll1cia, no desespero e na dor, sentindo vergonha pelos homens, excepto 0 (mica encantamento que nos deram a China e a Amazonia, lxi­Ihando atras cia linha clara e 0 perdao incomodo do 1110nstro abominavel clesprezado de todos e, visto cle perto, tornado misericordioso e bom, numa conversao no meio do deserto imaculado. Apenas as luzes no seio clas trc­vas. Para que viver bem sc ninguem se encanta com a mundo? Como e oncle viver sc nao existc nenhum lugar encantado no meio clas destruil);'c)es? E, como conseguimos sobreviver, nesses tempos e nesses lugares invW.veis, sen;10 com

150

Page 144: O terceiro instruído

a gra~a de tais utopias? Aincla 0 olhar clo dclone, (mico espa\o em que lim barco nacla anisc<l, silcncio branco no meio clos gritos.

Entre 0 paraiso e a paisagem morna, entre 0 vale amargo e 0 reino, 0 Messias e o homem cia rua, a cliferen~a, infinitesimal, brilha como lima peqllena lagrima.

As coisas e as corpos encantaclos parecem lnergulhados numa agua limpida sob a qual cintilam como cliamantes all perolas: transfiguraclos pela laca, um oriente ou uma aurora cle que desconhecemos a natureza e a origem, nilnba-nos c protege-nos com a sua pr6pria luz.

Para assim as fazer irradiar, contentamo-nos n1uitas vezes em faze-las emergir na transparencia cia lingua gem ou no brilho do estilo e por vezes conseguimos: vema-las rcluzir atraves cle palavras clams au obstinar-se e regular-se dentro clo seu rigor quando nao se enrugam sob a fealdade au a senua dos pr6prios termos. «As {u"Vores e as plantas, clizia 0 fabulista La Fontaine, tornaram-se para mim criaturas falantes, e quem nao encararia isso como uma forma cle encantamento?» Assim discorren1 igualmente 0

girassol e a nor casta, as plantas, mas tamben1 0 haddock, peixc, com 0

cao, animal que laclra quase sempre. Para completar 0 milagre, podelnos mergulhar por sua vez as palavras e as linguas no sortilegio do canto, de onde nos chega a palavra encantamento.

As coisas emergem pela palavra e esta mergulha na musica: clupla transH­gura~ao do mundo pela ubra poetica, como uma entrada de Wagner que sobe e desce toclas as gamas de som pelo espa~o au a cscadaria de Moulinsart.

o desenhaclor nao entende isso assim por ser surdo de um ouvido. 0 encantamento, para ele, atravessa-se pdo canto: a cantara ricHcula enche atrozmente 0 ar cheio cle jOias e percle as suas que julga terem sido rouba­clas, mas que ainda brilham tranquilamente a ll1n canto cia gaveta.

A banda clesenhada abrc um caminho original, diferente do cia linguagem, do ritmo Oli cia som, e deixa irracliar os seres e as coisas pelas suas proprias fonnas e pcb sua agu<l singular: poesia silcnciosa e linha clara. As vinhetas substituem as rimas c os versos caclenciados nesse t~lbulista ci5ssico de centenas cle varios actos e cujo palco e 0 univcrso. Eis quc encontrci, pois, 0 n01ne de qucm nao queria, pot·que a fonte nos oferecc uma imagem de agua Hmpicla e tranquila.

Os retratistas outrora rocleavam as cabc\as dos santos e m:ittires, vir­gens Oli arcanjos com uma aureola cuja luz assinalava a sua transfigura~ao. Riam-se antes daqucles que disso se riem: a maioria clas culturas, moclernas ou antigas, tem uma palavra particular para designar a gloria com que por vezes brilham certos corpos, numa explos~lo de energia ou de amor, bonda­dc, extase e a sua fervorosa aten~ao. A esse sinal, reconhece-se logo 0 que alguem pensa: a ideia evacle-se ou em~lt1a do sell corpo num clarao clouraclo.

A gl6ria social nao faz mais clo que imitar pobrelnente essa aureola real quc se espelha no rosto. Os granclcs pintores, dotados dc um olhar pene­trante, Veelll-na. Oll projectam antes, na sua obra pintacla, a sua experien-

151

Page 145: O terceiro instruído

cia e a sua aten~ao divinas quando reproduzem as coisas do mundo tal como elas sao no pr6prio instante em que nascem efas maos clo seu cria­dol': infantes, iniciais, pre-nomeadas, principiantes.

Nao sci como escolher: a aureola descreve a Iuz que emaml clo modelo 01..1 do clcscnhador, 01..1 fixa ;;Intes a origem cia luz que ilumina ambos, au deixa-a cnHm vel' como os olhos verdadeiramente vecm?

Para concluir a livro que diz e descreve as circunstfIncias cia vida clo terceiro instrufdo, como um drculo de raios enl redor do seu nllcleo, projectei tra~ar 0 retrato de um amigo meu, unl clos pedis dessa vicla. Apenas pre-nomeado, ei-Io af: vazio no meio clcsse drculo reluzente, com 1Il11 brilho claro, luar de aurora, aureola clara, olhar cia pintor e do ciclone, fulgurante e calma, tal como a conheci, como 0 ~l1nci, pudico, reservaclo.

A TERCElRA PESSOA: FOGO

Quando um homem atravessa a nado ll111largo rio au UI11 bra~o de mar, como a ler au a escrever urn autor ouum leitor atravessa um livro e 0 acaba, acontece par instantes que franqucia um eixo, um meio, igualmentc clistantc das duas margens. Ai chegaclo, continuar em frente ou rcgressar scr~l. a mesma coisa? Antes desse ponto, para la desse instante, 0 campeao ainda nao cleixou a sua terra cle origem, enquanto clepois e ja 0 exflio a que se destina que a sublllcrge.

Fio comovente, pequeno c fino como uma aresta, esse limiar decicle cia viagcm e de toda a aprendizagem, cle que mal se nota esse lugar raro, tao abstracto que se pode clizer inexistente e no entanto tao pregnantc e concreto que se percebe a sua natureza e meS1110 a sua cor na tot~llidade do trajecto que consistc em franquea-Io. Toda a largura do rio au a sua eleva~ao - do livro e, no seu meio, do munclo - se presscnte como se reproduzisse em grande esse fio.

o limite de uma fronteira designa, para l{l dela, terras familiares, um tercei-1'0 se coloca ncssa paltilha, mas a viagem seduz e arrasta esse tercciro lugar atraves de tado 0 espas;o assim paltilhado.

Diante dela, menos cia que em casa, a novis;o nacla ou desIoca-se par~l a que e estranho; clepois dela, chegado a quaiquer patte, lembra-sc sempredcande paltiu: um tanto inquieto, a prindpio, mas logo depois chcio de esperan\:a; em breve nostalgico e logo de segllida quase a lamentar-se: Como e que, entao, umlugar singular pade pass~lr par ser raro e difunclir-se pOl' toclo 0 lado, no tcrreno e na alma, continuar abstracto, utopico e todavia tornar-sc pantotico au em pani­co, cntenclendo por isso a expansao em toclos as lugares c1essa singlliaricladc?

152

Page 146: O terceiro instruído

Embora nascido canhoto, escrevo com a mao direita, <l fclicidade de viver com tun corpo assim adaptado nunca me abandonou e assim ainda pc\,o aos professores para nao contrariarem, como hoje se diz, as meus cOll1panheiros de bOlnbordo, mas dar-Ihes essa imensa vantagcm e har1110-nizar 0 seu corpo, obrigando-os a manter 0 lapis na n1aO dire ita, comple­lnentar. E, par simetria, seguir 0 mesmo criteria com os destros. Como a Inaioria das pessoas hoje trocam a caneta pel a consola do computador, 0 seu teclado cxige sobretudo uma conjuga\,ao dos dedas.

A linha que separa a esqllerda da direita - e a femca do macho -, nao sei par onde e que passa, no meio do organismo, tao geometrica e formal, senl dtlVida, como a fronteira ou 0 eixo sobre 0 rio ou a estreito, mas todo a corpo muda e se transforIna conformc se volta para a direita ou para a esquerda, hemiplegico num e nOlltro caso, ou ace ita aventurar-se para a outra borda, hermafrodita, navio de dois bordos, para se cun1prir e estar de acordo. Uma vcz ainda, raramente 0 terceiro lugar invade 0 sistema par intciro: qualqller pcssoa se diz destra au canhota - ou adaptada.

E entao anula-se na mem6ria cscura ou dilata-se na alm<1 ° terce ira lugar: aberto, dilatado, povoa-se de terceiras pessoas. Aprender: tarnal' grandes os outros e a si mesmo. Cria\,ao e mesti\,age111. Como a terceira pessoa e espirito, 0 manto e a carne de Arlequim enx<.lmeiam os espiritos coloridos: os fogos.

Un1 palpita\,ao, uma pulsa<,'ao, um estremecimento como se ve numa cortina de chamas que brilha e cresce de sllbito para iluminar ate- ao horizonte e enfraquece de seguida para iluminar apenas uma proximidade estreita e limitada ou anular-se na obscuridade, um cintilar fremente, ani­maIn, neste livro, a descoberta, em muitas regioes, desses cstranhos tercei-1'os lugares, 1'aros como certos limitcs, agudos como arestas, singularidades que se poclem dizcr fora do comum, ambidextros, hcnnafroditas no que respeita as pessoas, mensagciros que pertencem a dais mundos porque os coloc<lm em cOmUniGl\,ao, tal como Hermes, 0 deliS dos traduto1'es, pas~ sando de uma margcm para a outra, mas que tambcm se pode encontrar na terra au no mar, ilhas au c<lminhos; esses terceiros lugares constituem a carne viva c vislvei, quente e tangivcl na vida ou no espa<;o observavcl sobre 0 n1apa, do projecto mais intelectual, sabio ou cultural, e de etica tolerante, da terce ira instru\'8.o, mcio harmonica, entre as duas margens, filha da cultura cientffica e do saber saido das humanidades, da erudi\,ao tecnica e da narrativa primo1'osa, do que e recolhido e inventado, ambos conjugados pOt'que na realidacle nao se rode separ-ar a tmica razao cia ciencia universal e clo sofrimento singular. Porque a urgencia 0 imp6e hoje, a hist6ria 1'ecupera esse projecto, aincla h5 poueo benl 1'aro.

E, cle stlbito, uma cria<;ao multiplicacla: essas singuiariclacies, espaciais, carnais ou peclag6gicas, sem que nada 0 tenha prcvisto, difundem-se pOl'

153

Page 147: O terceiro instruído

, tada a parte, por toclo 0 corpo, atraves clo leita do rio, no espac;o intelec­tual, ate csboc;ar uma sfntese au inclexar lim cspa<;o universal. A pequena chama brilha. Entre 0 nada e tudo e, em retorno, cia soma ao zero. Da cOlllunicas;ao fechacl:Ol entre ,IS ciU<lS primeiras pessoas, no singular Oll no plural, ao conjuI1to clcssas tcrcciras que se anulam au se torna111 0 toclo cia sociecladc, cIo universa, clo ser e cia moral. Nunca ell podcria esperar taota luz viva, embora, apesar dos seus claroes, puclesse talerar essa 50mbra cscura pelo inccssante partilhar cia sua vibras;ao.

Baixa, a chama ilu111inaria as proximiclacles; 0 fogo, clo alto, ilumina 0 mundo. As paginas dissipam-sc como Iluma iarcira C1l1 que a clanc;a, breve Oll demorada, clas centelhas cleprcssa hlInbe 0 local, ilumina 0 global e de Sllbito regressam as trevas: dia, noitc, manha, claro-escuro. Ver: 0 fogo ilulnina; mal: a chama arde. Dois focos, de repente: ciencia fulgurante, Ulna dor pungentc.

No mcio dc circunstflOcias improvaveis e diffceis, guerra, tcmpestade, <lcasos e infortlmios do mar, aport::l.mos a uma ilha nlla perdida na imen­sidade do Pacifico, em que os naturais se entregavam a praticas estranhas, mas onde pudemos aprender que a regra constantemente seguida por todos os nossos semelhantes, dos quatro !ados da agua, se recluzia a uma excep<;ao, scm cllivicla monstruosa, de um universal apenas rctlccticlo c clcscoberto por sorte nessa singularicladc abandonacla. Como se um pre­conceito tivesse conquistaclo toclo 0 volume cnquanto a pruciencia humana e razo,-lvcl se rc[ugiava em retiradas localidacles.

o obHquo conquistou 0 geral. 0 universal integra-se no singular. Cintila(ao clas chamas: anao amarclo, 0 Sol ilumina men os 0 mundo do

que um canto do univcrso e este nao se deixa vcr eln majcstaclc scnao atravcs de breves e fulgurantes intuic;,'oes, evidentes e problermlticas, mas nocturnas. A teoria cia comunica~ao nunca dcixou de tomar con10 moclelo a emissao Oll

a expansao cia luz. E esta repousava l1as trevas c devia triunfar no cspa<;o e na hist6ria. Tornados entretanto relativistas e modestos, os contemporftneos, antes prudentes, esfor~am-se por assestar sobre 0 ponnenor Ull1 feixe lumino­so quasc pontual, fino e pontiaguelo como um raia !ascI: Tinhamos abando­nado a sintese unit{tria para nos rcencontrannos ou nos perclennos deliciasa­mente nas clclicaclczas elo infimo, esquecido do universal e111 favor c1as singu­larielacles pOltacloras de sentielo. Mas confesso de boa vontacle ter desde ha rnuito tempo prcfericlo 0 local estranhamente abelto a um global pretensiaso sempre chcio de abusos: e nao precisei de nadar ate ao meio desse rio ou intcrrogar-me seriamente sobre as minhas maos ou ilhas, atento a esses pe­que nos e fr1volos ponnenorcs.

Dcfinido como cllpula e especificidade, 0 ideal de conhecimento pas­sou, pois, das leis gerais para 0 debate profundo, mesmo para lima frag­n1ent~If;JIO intermin<lvclmente disseminada. Surpresa: enl poucos lugares Oll

154

Page 148: O terceiro instruído

praximidades, 0 universal se poderia instalar. Ora, espantosamentc renava­do, nao exige mostrar-se ou reger, mas pdo contd.rio exige 0 seu regresso a localidade mais proxima e fina, adamantina, em que foi scpliltado. A chama, minuscula, torna-se imensa e rcgressa ao res do solo.

lrregularmente, do local para 0 global, bate, dan~'a, treme, vibra, cintila esse conhecimento como uma cortina em ciumas. No centro do sistema, 0 Sol ilumina todo 0 conjunto, mas esse anao marginal encantra-se at lanc;,'ado, em qualquer pal1e clo universo. Estas duas proposi<;oes, a universal c a singular, para um (lI1ico Sol, pennanecem ao mesmo telnpo COlno verdadeiras. Face a de, tao universal como a cicncia, a questao do mal e do safrimento, cia injusti<;a e da fome, tenebrosa, ocupa 0 segundo foco ou 0 escuro do univer­so, tal C01110 a cxistcncia singular do homem incligentc e dolorosa.

Essa palpita<;ao nao diz apenas respcito ao saber claro ou 0 mal, ou seja, aos principios de toda a aprendizagem e a medida do conhecimento: fio de palha acariciado por um raio de luz emanado de uma fissura, ou finnamento no seu todo sob 0 reino do mcio-dia, uso e lei, mas tambem a sua qualidade, talvcz mesmo a sua expressao.

Dedicados a procura da verdade, nem sempre at conseguimos chegar e, se realmente chegamos, nao c atraves de analises ou de equa<;oes, cxperien­cias ou evidencias formais, por vczcs meSIllO atraves de tentativas. Mas quando tal nao se conseguir diga-se 0 que sc faz, de resto, se se quiser; de resto, porque se a medita<;ao fracassa, nao se devcra tent~ll' a narrativa! Porque e que a linguagem ha-de pennaneccr sempre destra ou macha, hemiplegica e limitada a uma clas partes! Arist6teles clizia de fonna exce­lente: 0 fil6sofo, enquanto tal, clescrcve muito bem, nus logo acrcsccntava que aquele que narra cle algum moclo revel a SCI' fil6sofo.

Criado nessas chamas irregulares, instrufclo, cclucado, cria nele as tcrcci­ras pessoas ou ('spiritos que clisseminam no pr6prio corpo e alma a sua forma c 0 seu retlexo, enquanto as partes c peda<;os comp6em os fogos coloridos clo manto cle Ariequim ou 0 fogo branco que os illimina.

Espfrito: luz clara, pudic\ e reservada, enxameanclo 0 corpo c a alma como milhoes de s6is nocturnos enchem 0 Uni\TrSO cle constela\'oes.

Re-nasciclo, ele conhece, tem pieclade. Finalmentc, pode ensinar.

155

1980-1990.

-------------------------------------.. .-

Page 149: O terceiro instruído

LAIClDADE

CIHAR ..

INDICE

Agradecimentos ............................ . Curpo ..................... . Scnliclos Nascimento do Tcrceiro ............................ . Aprcnclizagenl ............ ..................... . ............................... . Cerebra ............... . ............................. . Nascimento e conhecimento ............. .

........... II

..17

. ..................... 19 . ................... 19

................. 21 . ... 22

. ......... 23 . ..................... 20

.............. 26 . .................... 27 Escrever ..

Sexo .. .................. . ... 28

Quimera ....... . Vinco e hl~'o Primeiras recorda<;(Jes.

Hosacea ... Trinado, m(isica ......................... . .............. . Dao's'a: minucte do terceiro lugar ...................................... . Magnificicncia ......................... . ......................... . Alegria, dilata\.'flo, cria<;ao ................. .

157

................ .31 . ....... 34 . ....... 30

..... 36

. .... 39 ....... .40

. ........ .41 . ..................... 43

Page 150: O terceiro instruído

INSTIWIR .....

Claro-cscuro ... o terceiro lugar o lcrceiro homem Instruir Uti eriar .. A terceira pessoa A terccira Illulher o tercdro instruklo: antepassados o terceiro instrufclo, ele novo: a origem Come<;o cia Cri;:U;:30" o problema do mal .... Guerra pOI' tcses o estilista e 0 gram{\tico ........... .. PJZ sobre as especies Nupcias cia terra com os sellS slicessivos mestl'cs P~IZ (;' vida peb invel1(;ao . . ............... . Um Olltro nome par;:1 0 terceiro instrufclo . A clupla generica cia hist6ria, morte e imortalidade.

EDUCAl( .

Lei do rei: nacla ele novo sob () sol .. De novo soh 0 sol, ;:IIgures. De novo sob 0 sol, aqui Ell. Noire .. Tll. Dia ..... . A terceira pessoa: fogo

158

INS1HUTO DE PSICOlOGlA pln l !nTFC./\

............ .47

. ...... 53 ..... 54

..... 57 .... ')9 . ..... 60

....... 62

...... 63 .... 66

......... 73 . ... 74

....... 78 . ..... 80 ..... 90

......... 91 . ....... 93

. ........ 102 .102

.......... 111

. ......... 113

. ......... 122 ... 127

........... 137 . .. 147 .. 1 ')2