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Biblioteca Breve SÉRIE LITERATURA O TEATRO NATURALISTA E NEO-ROMÂNTICO (1870-1910)

O TEATRO NATURALISTA E NEO-ROMÂNTICO (1870-1910)

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Texto sobre o teatro português dos séculos XIX e XX.

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  • Biblioteca Breve SRIE LITERATURA

    O TEATRO NATURALISTAE NEO-ROMNTICO

    (1870-1910)

  • COMISSO CONSULTIVA

    JACINTO DO PRADO COELHOProf. da Universidade de Lisboa

    JOO DE FREITAS BRANCO Historiador e crtico musical

    JOS-AUGUSTO FRANA Prof. da Universidade Nova de Lisboa

    JOS BLANC DE PORTUGALEscritor e Cientista

    DIRECTOR DA PUBLICAO

    LVARO SALEMA

  • LUIZ FRANCISCO REBELLO

    O teatro naturalista e neo-romntico

    (1870-1910)

    M.E.C.SECRETARIA DE ESTADO DA CULTURA

  • T tu l oO Teatro Naturalista e Neo-Romntico (1870-1910)Bib l i o t e ca Brev e / Volume 16Instituto de Cultura PortuguesaSecretaria de Estado da CulturaMinistrio da Educao e Cultura Instituto de Cultura PortuguesaDireitos de traduo, reproduo e adaptao,reservados para todos os pases1. edio 1978Compos t o e impre s s onas Oficinas Grficas da Livraria BertrandVenda Nova Amadora PortugalFevereiro de 1978

  • N D I C E

    Pg.

    Enquadramento histrico-social...............................................................6O legado romntico..................................................................................10O teatro em 1871......................................................................................17A gerao de 70 e o teatro.......................................................................28O drama histrico neo-romntico..........................................................41O drama e a comdia naturalistas...........................................................55O Teatro Livre e o Teatro Moderno ..............................................75O teatro musicado ....................................................................................86Sequelas do naturalismo...........................................................................97

    Documentrio antolgico:

    Sua Excelncia (Gervsio Lobato, 1884) .................................... 104Os Velhos (Joo da Cmara, 1893) .............................................. 107Dor Suprema (Marcelino Mesquita, 1895) .................................. 111A Severa (Jlio Dantas, 1901) ...................................................... 114Casamento de Convenincia (Coelho de Carvalho, 1904)........... 116Sabina Freire (M. Teixeira-Gomes, 1905)................................... 119s Feras (Manuel Laranjeira, 1905)............................................. 122Os Postios (Eduardo Schwalbach, 1909).................................... 125O Azebre (H. Lopes de Mendona, 1909).................................. 127

    Bibliografia.............................................................................................. 130

  • 1 ENQUADRAMENTO HISTRICO-SOCIAL

    Todas as fronteiras so artificiais e as fronteirascronolgicas no constituem excepo a esta regra. sempre arbitrria a fixao de uma data certa para inciode um movimento esttico ou literrio, pois, comoensinou Marx, o modo de produo da vida materialcondiciona o processo social, poltico e espiritual davida; no a conscincia dos homens que determina asua essncia, mas, ao contrrio, a sua essncia social que determina a sua conscincia. A estruturaeconmica da sociedade, definida pelas relaesmateriais de produo, constitui assim a base sobre aqual a literatura e a arte se constrem, o que as tornaportanto inseparveis do processo histrico e incompreensveis fora dele, no em termos puramentemecnicos mas numa perspectiva dialctica, em que arte e realidade, num jogo de aco e reaco contnuas erecprocas, acompanham e ao mesmo tempo promovemo seu incessante desenvolvimento.

    Como, a propsito de Garrett e do seu contributopara a restaurao da cena nacional, escreveu AntnioJos Saraiva, pr o problema do teatro nacional nadamenos que pr todo o problema da estrutura da

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  • sociedade portuguesa. E esta, no tero derradeiro dosculo XIX, que elegemos para marco inicial do presenteestudo, estava longe de suscitar uma renovaoprofunda da arte dramtica (no s ao nvel do textoescrito mas ainda, mais amplamente, da sua produocnica), a qual, pela mesma poca, noutros pases seestava a processar. O projecto scio-econmicosubjacente revoluo liberal desencadeada em 1820,que o golpe de Estado da Vila-Francada deteve em1823, s a partir de 1832 pde comear a realizar-se,com as leis de Mouzinho da Silveira e Joaquim Antniode Aguiar, que respectivamente vieram abolir os direitossenhoriais, reorganizar as finanas pblicas e a divisoadministrativa e extinguir as ordens religiosas, cujosbens foram nacionalizados. Uma burguesia de proprietrios rurais, que aspirava a nobilitar-se e que constitua, no vasto corpo da nao, uma minoriaprivilegiada, ascende ao poder. Em 1835 estabelece-se oprincpio da escolaridade obrigatria, criam-se nos anosseguintes os liceus, as escolas mdicas e politcnicas. Em 1838 funda-se a primeira associao operria. Mas o governo setembrista de esquerda derrubado, em1840, pela reaco encabeada por Costa Cabral, quedefende a agiotagem, os interesses do clero e tomavrias medidas repressivas. Derrotado em 1846, CostaCabral retoma o poder em 1849, perdendo-o definitivamente, dois anos depois, com opronunciamento de Saldanha.

    Com a Regenerao inicia-se, em 1851, a poltica dosmelhoramentos materiais. Um tmido surto industrialconhece, em 1856, graas construo da redeferroviria e estradal, um novo impulso, de que, noentanto, apenas iro beneficiar os capitais nacionais e

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  • estrangeiros (sobretudo ingleses) e os grandes agrrios, eque, de resto, as estruturas arcaicas do pas a brevetrecho condenam ao imobilismo. Continuam porresolver os problemas das camadas sociais menos favorecidas, marginalizadas do processo poltico a pequena burguesia, o artesanato, a massa campesina, a que vir juntar-se mais tarde um incipiente proletariadoindustrial o que, por vezes, d origem a movimentospopulares de descontentamento, como a Janeirinha(1868). A industrializao do pas, encetada em 1835com a introduo da mquina a vapor, processa-seatravs de saltos bruscos: um ano depois de aAssociao Internacional dos Trabalhadores lanar emPortugal as suas razes, desencadeia-se, em 1872, aprimeira greve; e, em 1876, uma grave crise financeiraprovoca a falncia de vrios bancos (em menos de vinteanos, de 1858 para 1875, o nmero de estabelecimentosbancrios subira de 3 para 51), um ano aps a fundaodo Partido Operrio Socialista, que ir realizar em 1879o seu primeiro Congresso. Certos acontecimentosexteriores a revoluo espanhola de 1868, aunificao da Itlia, a guerra franco-prussiana, aComuna de Paris repercutem-se no pas, onde umaconscincia republicana (de que as comemoraes dotricentenrio de Cames, em 1880, foram o agentedeflagrador) comea a formar-se, sob a influncia dealguns intelectuais esclarecidos e insatisfeitos.

    O cansao evidente das instituies monrquicas, areaco nacional ao Ultimato ingls de 1890, que veio travar o sonho quimrico de expanso ultramarina, aconsequente crise econmica e financeira,desembocaram na abortada revolta de 31 de Janeiro de1891, no Porto. Mas este movimento para a implantao

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  • da Repblica, apoiado pela aco de numerosasassociaes pedaggicas e sindicais, e subterraneamente pela actividade de organizaes secretas e das lojasmanicas, era j irreversvel: em 1901 o deputadoAfonso Costa apresenta na Cmara uma moodeclarando que o povo portugus carece de substituirsem demora as actuais instituies polticas por outrasdiversas, de feio republicana; os surtos grevistassucedem-se (1903, 1906, 1907); mas, neste ltimo ano, aditadura de Joo Franco, cerceando drasticamente asliberdades, iria precipitar os acontecimentos: o rei D.Carlos e o prncipe herdeiro Lus Filipe so assassinadosem 1908, no ano seguinte o Partido Republicano reneem Setbal o seu congresso, que encarrega o Directriode apressar o movimento revolucionrio para ainstaurao do novo regime, e em 5 de Outubro de 1910 a proclamao da Repblica saudada como a aberturade um novo captulo na histria de Portugal.

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  • 2 O LEGADO ROMNTICO

    Todos estes fenmenos, de que nos limitmos adescrever as manifestaes essenciais, tiveram o seureflexo necessrio na arte e na literatura nacionais, e emespecial no teatro, que regista, como um sismgrafo, asmais leves variaes das estruturas scio-econmicas,sem que ao mesmo tempo deixe de reagir sobre elas.Trata-se, como diria em 1889 o jovem crtico Moniz Barreto, de uma espcie literria cujo carcter prprio ressentir-se imediata e directamente das vicissitudes doestado social que a produz. Foi a revoluo liberal de1820 que abriu caminho ao romantismo nas letrasportuguesas; e o mais autorizado porta-voz do movimento, Almeida Garrett, que em 1821 fizerarepresentar uma tragdia em que as novas ideias seexprimiam ainda dentro do espartilho das regrasclssicas (Cato), elaborou em 1836 um plano para a fundao e a organizao de um Teatro Nacional, oqual, sendo uma escola de bom gosto, contribuisse paraa civilizao e aperfeioamento da nao portuguesa. Esse plano, de que o futuro autor do Frei Lus de Sousa(para quem o teatro era uma questo de independncianacional) fora incumbido por uma portaria rgia,

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  • assinada pelo ministro Passos Manuel, abarcava todosos nveis da criao teatral, desde a formao de actorese o estmulo aos autores atravs da fundao de umConservatrio Geral de Arte Dramtica, destinado apreparar os primeiros e a premiar os segundos, construo de um Teatro Nacional em quedecentemente se pudessem representar os dramasnacionais, tudo isto coordenado por uma InspecoGeral dos Teatros e Espectculos Nacionais, para cujadireco ele prprio, Garrett, foi nomeado ainda em1836. O Conservatrio comeou logo a funcionar, comelevada frequncia de alunos, e em 1839 era aberto oprimeiro concurso para a atribuio de prmios aosdramaturgos nacionais, considerado por Garrett comoo primeiro elo de uma cadeia de regenerao para a artedramtica em Portugal. Quatro dramas, todos eles detema histrico, foram distinguidos pelo jri: Os Dois Renegados, de Mendes Leal, O Cativo de Fez, de Silva Abranches, O Cames do Rocio, de Incio Maria Feij, eOs Dois Campees, de Pedro Sousa de Macedo. O equvoco do drama histrico, que mais ou menosregularmente haveria de subsistir at ao fim do sculo,comeou ento.

    Debalde Herculano, em 1842, estigmatizava alinguagem de cortia e ouropel utilizada pelos autoresdesses dramas, exortando-os a porem de preferncia emcena a vida presente, que tambm sociedade ehistria; em vo o prprio Garrett, criticando tambmo destempero do drama plusquam romntico, a danamacabra de assassnios, de adultrios e de incestos,tripudiada ao som das blasfmias e das maldies, comohoje se quer fazer o drama, apontava o caminho certoao escrever, em 1843, o Frei Lus de Sousa, que unia a

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  • fatalidade do teatro antigo a uma dialctica dossentimentos especificamente romntica e projectavanuma dimenso mtica uma realidade histrica nacional.Os seus continuadores, incapazes de elevar as suas obrasa essa dimenso, confinaram-se aos limites de umaartificiosa reconstituio pseudo-histrica, assimtrazendo (como diria Engels a propsito dos dramashistricos de Victor Hugo e Dumas) s foras dareaco o apoio de um passado que resistia adesaparecer.

    A mesma opo estilstica (e ideolgica), agoraaplicada ao que se apresentava como uma descrio doscostumes contemporneos, se exprime nos dramas ecomdias ditos de actualidade que, em perfeitacorrespondncia com a poltica dos melhoramentosmateriais, a partir de 1851 vieram substituir nos palcosportugueses os melodramas histricos em grandeparte, alis, da autoria dos mesmos escritores. certoque a aco destas peas no se localizava j no passado;os castelos e as masmorras medievais cederam o lugar aos sales burgueses, eventualmente s fbricas eoficinas; as personagens trocaram o gibo e a cota demalha pela sobrecasaca, pelo roupo domstico,algumas vezes pela blusa de operrio; em vez da linguagem arcaica, o dilogo procurava adaptar-se aotom coloquial da conversao corrente. Mas, como diria,anos mais tarde, parafraseando Zola, o tericoportugus da esttica naturalista, Jlio Loureno Pinto,o Carnaval da natureza continuava.

    Depois de ter sido o apstolo fervoroso do dramahistrico (leia-se, por exemplo, o altissonante prefcioque escreveu para a edio em livro de Os DoisRenegados), Mendes Leal antecipou-se nova escola da

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  • dramaturgia francesa, representada pelos Dumas filho eos Augier, escrevendo volta do meio-sculo os cincoactos de Pedro, atravs dos quais se propunhaconfessadamente esboar na vida coetnea um quadro em que vivesse a paixo como se no supunha aindaplausvel. O drama, publicado em 1857, s em 1863veio a ser representado no Teatro Nacional; mas a suafactura anterior estreia das grandes comdias sriasde Dumas (A Dama das Camlias, 1852; Demi-Monde,1855; A Questo do Dinheiro, 1857) e Augier (O Genro doSr. Poirier, 1854; As Elegantes Pobres, 1858). De realismose falou, ento, a propsito de Pedro e dos dramas de inspirao idntica que se lhe seguiram: era, porm, ainda o legado romntico que eles exploravam, numaespcie de metamorfose apressada das teorias de Victor Hugo sobre a fuso contrastante do grotesco e dosublime, que combinava a observao dos costumes e a inteno moralizadora, prprias da comdia, com assituaes patticas e a expresso exaltada dossentimentos, caractersticas do drama romntico.

    Dois textos de 1856, que mutuamente se respondem um estudo sobre o teatro de Mendes Leal, includopor Ernesto Biester na sua Viagem pela LiteraturaContempornea, e o prefcio escrito por aquele para acomdia-drama A Redeno, do segundo, nesse anoestreada no Teatro Nacional definem, em termossignificativos, as coordenadas estticas deste pseudo-realismo. Dizia Mendes Leal: A comdia, que noexclui as lgrimas, que sabe aliar a ironia com aveemncia, o sarcasmo acerbo com a eloquncia audaz,as delicadezas da sensibilidade com os reptos doentusiasmo, que no gasta monotonamente uma cordanica da ateno e do corao, mas faz vibrar todas,

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  • tirando de cada qual o seu som, inquestionavelmente o gnero, vrio e multplice, que mais se quadra com o esprito mbil, perscrutador e inquieto de umasociedade que toda ela aco. Este gnero (. . . ),aproximando-se da realidade sem deixar de ser ideia, abraa, no seu complexo, a vida esmaltada de dores ejbilos, alternada de lgrimas e risos, entremeada defestas ruidosas e martrios profundos tudo s vezesmesclado e misto; tudo sobressaindo em relevo pelomtuo contraste, (. . . ) tudo, em suma, concorrente aco ao drama, como lhe chamavam os gregos , aco tal como a sociedade a oferece em exemplo ao teatro, tal como o teatro a deve recambiar em cpia elio sociedade.

    Esta teoria especular da literatura, meramentemecnica sob o aspecto estilstico, idealista do ponto devista ideolgico, retomada por Ernesto Biester,quando escreve que o teatro deve ser a reproduoverdadeira dos costumes contemporneos, da vida do nosso tempo, da sociedade actual; e o autor de Pedro(que tambm j era, ento, o de Os Homens de Mrmore eO Homem de Ouro) mostrava-se, segundo Biester,especialmente apetrechado para se aproximar dessemodelo dramtico, pois sabe onde a stira acaba, eonde a ofensa comea, sabe que se um direito ferir ovcio, um dever respeitar a sociedade; sabe fazer rir efazer chorar; ora moteja com o riso leve e de bom gosto,ora fulmina a censura que abala; umas vezes castiga peloridculo, outras comove pela paixo; entrelaa, como nomundo se v, a comdia e o drama, e de ambos tiraelementos de ensino e exemplo.

    As citaes que precedem, oriundas dos doisrepresentantes mais autorizados do nosso drama de

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  • actualidade, esclarecem-nos inteiramente quanto s suas caractersticas fundamentais, aos seus propsitos e aos seus limites. Os autores invocados por Mendes Leal(o alemo Kotzebue, os franceses Pixrcourt eCaigniez, respectivamente cognominados o Corneilledo melodrama e o Racine do boulevard, Ducange eMarguerite Ancelot) logo denunciam as origensromnticas do gnero que, por outro lado, a almejadafuso da sensibilidade e da ironia crtica no deixa deevidenciar. A comdia-drama da Regeneraoportuguesa, tal como a comdia-sria da Restaurao edo 2. Imprio franceses, ainda uma variao do melodrama romntico, na sequncia do drama histrico(o exemplo de Sardou concludente), derivada damesma viso dicotmica e mecanicista do mundo. Porisso, as peas integradas nesta tendncia reconduziam-seinvariavelmente a dois ou trs esquemas estereotipadosque as tornavam indistinguveis umas das outras:conflitos abstractos entre a honra e o dever, entre oindivduo e a sociedade, entre a aristocracia decadente ea classe trabalhadora, alicerados sobre oposiessimplistas e incarnados por personagens convencionaisque se exprimiam numa linguagem convencional.

    Demais, a inteno moralizadora inerente ao dramade actualizao detinha-se, prudentemente, nos limitesdo respeito pela sociedade, que em termos explcitosErnesto Biester preconizava. Da o tom paternalista quenesses dramas se adoptava em relao ao operariado retoricamente enaltecido como os soldados obscurosdas modernas lutas da inteligncia, a novaaristocracia, a realeza do sculo ; da o carcterprofundamente conservador e reaccionrio, sob umaaparncia humanitria e socializante, de todo este teatro,

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  • tipicamente reflexivo de uma mentalidade pequeno-burguesa, a que a simples evocao de alguns dos ttulos(Fortuna e Trabalho e Os Operrios, de Biester; A PobrezaEnvergonhada e A Escala Social, de Mendes Leal; DoisMundos, Trabalho e Honra, Aristocracia e Dinheiro, de Csar de Lacerda; A Mscara Social, de Alfredo Hogan; AsGlrias do Trabalho, de Leite Bastos) suficiente paraevidenciar a sua origem e limites burgueses, confirmando assim o acertado juzo de Henri Lefebvre,para quem o melodrama a forma teatral que tem maisimediatas relaes com a estrutura e a vida real, a vidaquotidiana dos homens na poca burguesa.

    Falar de realismo a seu propsito , pois, estilstica e ideologicamente errado (embora no deva subestimar-seo papel que estes dramas desempenharam na evoluohistrica que ao realismo conduziu). Mendes Leal, noprefcio que citmos, ao defender uma aproximao darealidade que no deixasse de ser ideia, declaravapreferir a nudez da esttua nudez do hospital e perguntava: Que se lucra em mostrar a verdade ignbil,a verdade nauseante, a verdade pustulenta, a verdadecalosa dos ps, disforme de corpo, estranha de rosto?

    Tinha razo Camilo Castelo Branco quando, nos seusEsboos de Apreciaes Literrias, escrevia que o drama,chamado realista, deveria ser antes chamado o dramaespiritual.

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  • 3 O TEATRO EM 1871

    Os Esboos, de Camilo, foram publicados em 1865. Nesse mesmo ano subiram cena, respectivamente, nos Teatros Nacional e das Variedades, Os Operrios, deBiester e As Glrias do Trabalho, de Leite Bastos doisprodutos tpicos desta dramaturgia que s por equvocoparecia ento corresponder misso que o teatromoderno deve desempenhar (Silva Tlio, acerca de OsOperrios). O drama de Biester, em que a reconciliaofinal do capital e do trabalho selada pelo Hino doTrabalho de Castilho, mereceu a este um pomposolouvor, precisamente por adequar-se a essa misso doteatro: escola de sentimentos honrados, de doutrinasss e fecundas (mas sem nfases de socialismos nem lisonjas perigosas...) de aferro aos deveres, de amor ao trabalho, de beneficncia mtua, enfim, em toda aamplssima e variadssima acepo destas duas palavras,cifra e eplogo duma ideia indivisvel.

    Ora, foi no mesmo ano em que Castilho escreviaestas palavras que a sua carta-prefcio ao Poema daMocidade de Pinheiro Chagas veio precipitar a rupturaentre duas geraes e, mais do que isso, entre dois conceitos no apenas de literatura mas (sobretudo) de

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  • vida. O texto polmico do velho poeta cego a suacegueira levara-o a supor a plateia do Teatro Nacionalapinhada de mais homens de trabalho e povoao dasoficinas, que de casquilhos de passeios e salas... erade certo modo o grito de alarme (de estertor?) de uma literatura oficial, anmica e conservadora, ameaada poruma nova escola que fazia do inconformismo e danecessidade de profundas transformaes no corpo dasociedade portuguesa a sua bandeira. Dois jovenspoetas, Antero de Quental e Tefilo Braga, que nesseano e no anterior haviam publicado, respectivamente, asOdes Modernas e a Viso dos Tempos, saram estacada emdefesa das novas ideias, alvo do reaccionrio ataque deCastilho. Assim nasceu o que viria a ser conhecido pelaQuesto Coimbr ou do Bom Senso e Bom Gosto,primeira grande batalha travada pela implantao dorealismo nas letras e artes nacionais, de que asConferncias Democrticas do Casino Lisbonense e a sua arbitrria proibio pelo Governo iriam ser, em1871, um marco decisivo.

    Entre 1865 e 1871 muita coisa aconteceu em Portugal e fora do pas. Lincoln assassinado nosEstados Unidos em 1865, e no ano seguinte reconhecida aos negros a igualdade civil. Tambm em1866 comea a funcionar o primeiro cabo transatlntico.Maximiliano do Mxico fuzilado em 1867, e dois anosdepois inaugura-se o canal de Suez. A Revoluoespanhola de 1868 destrona Isabel II, Roma ocupadapelos italianos em 1870, ano em que o exrcitoprussiano de Bismarck invade a Frana, derrotaNapoleo III em Sdan e cerca Paris, que se rende. E a18 de Maro de 1871 comea a gesta herica da comunade Paris, afogada em sangue na trgica semana de 21 a

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  • 28 de Maio. No mesmo perodo, em Portugal promulgado o Cdigo Civil e abolida a pena de morte(1867), o movimento popular da Janeirinha leva queda do ministrio de Joaquim Antnio de Aguiar (1868), extingue-se a escravatura em todos os domnios(1869), o pronunciamento de Saldanha abre uma novacrise no regime no mesmo ano em que Portugal ficaligado a Inglaterra pelo cabo submarino (1870).

    O inventrio literrio e artstico destes anos pe em evidncia o desfasamento da nossa cultura em relaoao estrangeiro: enquanto Claude Bernard publica aIntroduo Medicina Experimental e Taine inicia a publicao da Filosofia da Arte em 1865, Dostoevski d sucessivamente estampa o Crime e Castigo em 1866, oIdiota, em 1868 e Os Possessos em 1871, Marx o primeirovolume do Capital em 1867 e Tolsto o ltimo da Guerrae Paz no ano seguinte, em que tambm sairiam a TeresaRaquin de Zola e os Poemas em Prosa de Baudelaire, eaparecem em 1869 as Festas Galantes de Verlaine, os Cantos de Maldoror de Lautramont, a Educao Sentimentalde Flaubert, e em 1871 o primeiro tomo da srie dosRougon-Macquart de Zola, em Portugal os livros deversos que se editam so a Paquita e as Canes da Tardede Bulho Pato em 1866, a Delfina do Mal e os Sons que Passam de Toms Ribeiro em 1868, as Flores do Campo deJoo de Deus no mesmo ano, as Miniaturas deGonalves Crespo em 1870, as Primaveras Romnticas deAntero em 1871, e os romances A Queda dum Anjo(1866), O Retrato de Ricardina (1868) e Os Brilhantes do Brasileiro (1869), de Camilo, As Pupilas do Senhor Reitor(1867), Uma Famlia Inglesa e A Morgadinha dos Canaviais(1868), de Jlio Dinis, e o Mistrio da Estrada de Sintra, deEa e Ramalho, em 1870. A simples comparao destes

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  • ttulos suficiente para evidenciar at que ponto Portugal continuava separado do mundo apesar de ocaminho de ferro o ligar Europa, atravs da Espanha,desde 1863. Mas, precisamente, a circulao das ideias, favorecida pelos novos meios de comunicao, iriapermitir o desenvolvimento e a actualizao das letrasnacionais com uma relutncia naturalmente maior nosector do teatro, j que, como notava Zola no prefcio edio teatral de Teresa Raquin (e Jlio Loureno Pinto no se esquecia de o repetir na sua Esttica Naturalista),as revolues literrias fazem sentir a mais lentamente os seus efeitos, pois o pblico, no seu conjunto, resistea mudar de hbitos e os seus juzos tm geralmente abrutalidade de uma condenao pena ltima.

    De facto, no perodo que estamos a considerar, asituao do nosso teatro no destoa sensivelmente do quadro acima descrito: dentro da mesma linha dosOperrios, um ardoroso apstolo do sindicalismo, o tipgrafo Silva e Albuquerque, estreara no Teatro da ruados Condes O Operrio e a Associao, comdia-drama em2 actos dedicada s classes operrias, para cuja edio(de 1867) Vieira da Silva escreveu um prefcio em queassinala ao teatro, como pensamento, levantar doabatimento em que um grande ostracismo de sculostem deixado as classes trabalhadoras, concorrer para queo nvel moral dessas classes suba alto, fazer com que osangue espargido em tantas lutas se torne profcuo paraa grande causa por que principalmente tem sidoderramado, pois, sendo ele representao viva daspaixes humanas, escola prtica dos costumes, espelhoreflector das tendncias e da marcha do espritohumano, melhor do que outro qualquer meio deexpresso pode, no meio do prazer e da distraco,

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  • inocular no seio das multides as ideias e os princpios neste caso, a ideia e o princpio do associativismooperrio, que a pea de Silva e Albuquerque romanticamente defendia. Em 1869, no TeatroNacional, com imenso xito, sobe cena A Morgadinhade Valflor, de Pinheiro Chagas, que, sob a exasperaomelodramtica dos sentimentos, contava por entrearrebatados acentos de um j ento serdio ultra-romantismo, e no quadro rural de um sculo XVIII deconveno, uma histria de amor impossvel entreindivduos de extraco social diferente. A mesmasujeio escola romntica, no que ela tinha de maisconvencional e exterior, se depara nos dramas sociais deCosta Cascais (A Lei dos Morgados) e Gomes de Amorim (Aleijes Sociais), ambos de 1870, e (mas neste caso comespecial incidncia sobre a componente subjectiva) nodrama que o crime passional de Vieira de Castro inspirou a Camilo, O Condenado, que se estreou no Teatro Nacional em 1871. Veremos adiante como essetom romantizante perdurou at ao fim do sculo (emesmo para alm dele), no s por autores reveladosantes do sobressalto que s letras nacionais trouxe aQuesto Coimbr (Homens e Feras, de Csar de Lacerda, 1874; O Drama do Povo, de Pinheiro Chagas, e ACaridade, de Costa Cascais, 1875), o que no deversurpreender, mas ainda em autores surgidosposteriormente, de que o caso mais frisante seria o deFernando Caldeira (1841-1894), com as suas comdiasem verso, de um lirismo discreto e galante, mas irremediavelmente caduco (O Sapatinho de Cetim, 1876; A Mantilha de Renda, 1880; Madrugada, 1892).

    A iniciativa das Conferncias Democrticas, que no dizer de scar Lopes visava um largo e ambicioso,

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  • embora vago, plano de reforma da sociedadeportuguesa, e a sua proibio por ordem do ministrodo Reino, Marqus de vila e Bolama, que suscitou oindignado protesto de Alexandre Herculano (mas teve oaplauso de Pinheiro Chagas, uma vez mais ao lado dasforas reaccionrias), foram sem dvida oacontecimento mais saliente, no plano intelectual e poltico, do ano de 1871. Poder parecer arbitrrio ouabusivo, dado que em nenhuma das cinco confernciasque puderam ser proferidas antes da proibio porofensa clara e directa s leis do Reino e ao cdigofundamental da monarquia, na medida em que atacavam a religio e as instituies polticas doEstado, a questo do teatro havia sido especificamenteabordada, situar nesse ano o comeo do presenteestudo, que tem por objecto a dramaturgia realista.Tanto mais que a obra teatral de maior ressonncia quenesse ano se estreou, alm de algumas incuas comdiasde Sousa Bastos, Baptista Machado, Leite Bastos, e detradues de Sardou, Legouv e Feuillet, foi, como decaminho j ficou referido, O Condenado, de Camilo, cujoexemplar romantismo teve no grande actor Jos Carlosdos Santos o intrprete ideal. A verdade, porm, quese algum teatro de feio realista se escreveu erepresentou em Portugal e pouco alm donaturalismo se ter ido, mesmo nos melhores casos , a transformao das mentalidades que o tornou possvelficou a dever-se ao choque provocado pelasConferncias do Casino, cujas intenes programticas,assentes no pressuposto de que no pode viver e desenvolver-se um povo isolado das grandespreocupaes intelectuais do seu tempo, aludiam aligar Portugal com o movimento moderno, procurar

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  • adquirir a conscincia dos factos que nos rodeiam na Europa, agitar na opinio pblica as grandes questes daFilosofia e da Cincia moderna, estudar as condies detransformao poltica, econmica e religiosa dasociedade portuguesa.

    Na sua palestra sobre a Nova Literatura, Ea deQueirs, falando em termos gerais sobre o realismocomo nova expresso da arte, sustentou que ele deveria ser perfeitamente do seu tempo, tomar a suamatria na vida contempornea; proceder pelaexperincia, pela fisiologia, cincia dos temperamentos edos caracteres; ter o ideal moderno que rege associedades, isto : a justia e a verdade conceitos que encerravam, implicitamente, a condenao de quasetodo o teatro que ento ocupava os palcos nacionais. Jna conferncia de Augusto Seromenho, que precedera ade Queirs, essa condenao fora explcita: tal como oromance, o drama mostrava-se perverso, corrupto,falso e falto de probidade intelectual, apresentando-seat como original na maior parte dos casos quando eratraduo descarada, roubo conhecido.

    Esta anlise seria retomada por Ea de Queirs notexto de abertura das Farpas (datado de Junho de 1871,precisamente o ms em que as Conferncias foramproibidas) e desenvolvida em Dezembro seguinte, numartigo sobre o teatro em 1871, depois recolhido no primeiro volume de Uma Campanha Alegre.Considerando o teatro como uma necessidadeinteligente e moral, e reconhecendo-lhe importnciapblica, o autor dos Maias inseria a sua actualdegradao no quadro mais vasto e geral da decadncianacional e no hesitava em afirmar que, entre farsas tomelanclicas como uma runa e dramas to cmicos

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  • como uma caricatura, ele havia perdido a sua ideia, asua significao, e at o seu fim. Duas eram, fundamentalmente, as causas a que Ea atribua a degenerescncia da arte dramtica: o abaixamento geraldo esprito e da inteligncia e as condies industriaise econmicas dos teatros (o autor de um opsculopublicado no ano anterior, Carl Busch, imputava oatraso do teatro portugus a uma terceira causa, que sesentia tentado a considerar a nica: a falta da crtica,pela qual responsabilizava o provincianismo da nossavida literria e artstica). Ao lado de algumas afirmaesdiscutveis pela sua formulao dogmtica e absoluta(como, por exemplo, a de que o portugus no temgnio dramtico; nunca o teve, mesmo entre as passadasgeraes literrias, hoje clssicas, ou de que a nossaliteratura de teatro toda se reduz ao Frei Lus de Sousa),deparam-se muitas observaes pertinentes, nomeadamenteas que aludem pobreza geral e carestia da vidaque deixavam a bolsa cansada e incapaz de teatros. Oteatro tornava-se assim uma espcie de feudo exclusivo de uma classe privilegiada, para a qual funcionava, nocomo (so ainda palavras suas) uma curiosidade doesprito, mas como um cio de sociedade. Para essaminoria desprovida de exigncias, ou sequer decuriosidades, intelectuais, actores sem estudo, semescola, sem incentivos, sem ordenados, sem pblico,ainda que em muitos casos de talento e de vontade,representavam ms tradues e imitaes do repertriofrancs, muitas vezes anunciadas como originais, queseguiam invariavelmente um de trs modelos fixos: o drama sentimental e bem escrito, de belas imagens, odedialogada em que uma personagem lana frasessoberbamente floridas, a outra retruca em perodos

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  • sonoros e meldicos, e a aco torna-se assim um tiroteio de prosas ajanotadas; o drama de efeito, com oque se chama finais de acto, lances bruscos, umembuado que aparece, uma me que se revela; e afarsa com os velhos motivos de pilhria lusitana, oempurro, o tombo, a matrona bulhenta, o general debarrete de dormir... Fora deste quadro limitado e falso(em que a pera italiana de S. Carlos, largamentesubsidiada pelo governo, desempenhava um papeladormecedor e alienante), em vo se procuraria encontrar o que Ea insinuava deverem ser os requisitosde um teatro que fosse, ao mesmo tempo, uma liopara o critrio no presente e no futuro um documentopara a histria: o estudo verdadeiro e profundo desentimentos, caracteres solidamente desenhados,costumes bem postos em relevo, tipos finamenteanalisados, estudos sociais concretizados numa aco, anatureza, a realidade, a observao da vida.

    Semelhante diagnose poder afigurar-se excessivamentesevera, sobretudo se tivermos em conta que em 1871funcionavam em Lisboa para uma populaoligeiramente superior a 200 000 habitantes, ou seja cerca de 5% da populao total do pas, segundo o censo de1864 oito teatros, trs deles construdos ainda nosculo XVIII (os Teatros da rua dos Condes, do Salitre e de S. Carlos) e cinco inaugurados entre 1846 e 1870 (D.Maria II, Ginsio, Prncipe Real, Trindade e Taborda). Mas j dissemos que peas se representavam nesses Teatros e a que pblico se destinavam. No entanto, atao fim do sculo o interesse pelo teatro no decresceria:em 1899 a populao de Lisboa subira para 356 000habitantes e o nmero de Teatros para dez, abstraindodas salas suburbanas de Alcntara e Belm, quase todas

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  • alis de efmera durao, e das salas destinadas a espectculos de circo e variedades, porquanto aos oitoque havia em 1871, desfalcados de um que entretanto fora demolido (o antigo Salitre, que em 1858 passara adenominar-se Variedades), vieram acrescentar-se trs (osTeatros do Rato, Avenida e D. Amlia). E no decursodessas trs ltimas dcadas do sculo XIX construram-se, fora de Lisboa, mais de 75 casas de espectculos, dasquais cinco no Porto e sete nas ilhas adjacentes, cerca dequatro vezes mais do que nos trinta anos anteriores.Notava, de resto, Lopes de Mendona, numaconferncia sobre A Crise do Teatro Portugus, proferidaem 1901, que proporcionalmente, raras sero ascapitais em que a populao indgena, sem auxlio daflutuante, que entre ns mnima, concorra com maiorassiduidade aos espectculos pblicos. Pena quefaltem ndices estatsticos dessa concorrncia,permitindo distribui-la pelos diversos estratos sociais.

    Mas este movimento, salvo raras excepes, no foiacompanhado de uma correspondente subida de nvelliterrio e artstico dos espectculos. Ramalho Ortigonuma pgina das Farpas em 1876, Moniz Barreto no seuestudo sobre a literatura portuguesa contemporneaque servia de introduo Revista de Portugal em1889, D. Joo da Cmara numa das suas crnicas doOcidente, em 1895, feriam todos a mesma tecla:enquanto Barreto atribua ausncia duma comunidadede sentimentos e dum acordo de opinies naconscincia colectiva a agonia da literatura dramticaentre ns, o dramaturgo de Os Velhos constatava a mediocridade assustadora a que o nvel intelectual dasociedade havia descido. No se esquea, alis, que por

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  • finais do sculo o ndice de analfabetismo era da ordemdos 75%.

    O diagnstico de Ea de Queirs estava, pois, certo.Mas faltava encontrar a teraputica. E nenhum doshomens da gerao de 70, mau grado o interesse que, de um modo ou de outro, todos eles manifestaram peloteatro, se empenhou a fundo em descobri-la.

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  • 4 A GERAO DE 70E O TEATRO

    Com efeito, a interveno dos intelectuais de 70 navida teatral do pas assumiu a figura de uma pequenasecante. Nenhum deles fez do teatro, como Garrett, ocentro da sua paixo dominante, emboraeventualmente para ele ou sobre ele houvessem escrito,sem que no primeiro caso da tenham advindoconsequncias de maior para a sua obra ou para aevoluo da nossa literatura dramtica. J no segundocaso o seu contributo se revestiu de um significado maisrelevante: a investigao histrica de um Tefilo Braga,a doutrinao esttica de um Loureno Pinto,sobrelevam decididamente o mrito dos, raros alis,textos dramticos dos seus companheiros de gerao.

    No citado artigo das Farpas, Ea defendia a criao deum teatro normal que estimulasse a criao de uma literatura dramtica, isto , o enriquecimento do nossopatrimnio intelectual. No foi, decerto, cumprido estepropsito com o seu nico labor teatral conhecido: umaimprevista traduo (que alis ficou indita) de ummelodrama francs de Joseph Bouchardy, Philidor,modelo acabado daqueles dramas de efeito que no pouparia, mais tarde, aos seus sarcasmos... certo que

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  • no seu esplio literrio foram encontradosapontamentos para uma pea a extrair de Os Maias, onico dos meus livros que sempre se me afigurou prprio a dar um drama, e um drama pattico, de fortescaracteres, de situaes morais altamente comoventes,diria ele em carta dirigida ao escritor brasileiro Augusto Fbregas, que transpusera O Crime do Padre Amaro para acena. A adaptao teatral dos Maias ficaria, porm, adever-se a Jos Bruno Carreiro (e estrear-se-ia em 1945,no Teatro Nacional, por ocasio das comemoraes doprimeiro centenrio do grande romancista), mascircunscrever-se-ia praticamente ao conflito passionaldo livro, reduzindo-lhe o alcance da crtica social.Outras teatralizaes da fico queirosiana foramempreendidas, quase sempre com xito, pelo Conde deArnoso e Alberto de Oliveira (Suave Milagre, 1901), Vaz Pereira (O Primo Baslio, 1915), Artur Ramos (A Relquia,em colaborao com Luis Sttau Monteiro, 1969), e ACapital, em colaborao com Artur Portela Filho, 1971). E o colaborador de Ea nas Farpas, Ramalho Ortigo,(1836-1915), tambm limitou a sua actividadedramatrgica traduo de obras alheias embora demelhor quilate que o melodrama de Bouchardy: oAnthony de Dumas (1870), O Marqus de Villemer de George Sand, A Esfinge e O Acrobata de Feuillet (1874),Fromont & C. de A. Daudet e A. Belot (1899), a Electrade Prez Galds (1901).

    O interesse de Tefilo Braga (1843-1924) pela histria da nossa literatura em geral, e do teatro em particular,corporizou-se nos quatro tomos da sua Histria do TeatroPortugus, publicados em 1870 e 1871 e respectivamente dedicados Vida de Gil Vicente e sua Escola (que em 1898seria por ele desenvolvido e desdobrado em dois

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  • volumes), Comdia Clssica e as Tragicomdias, BaixaComdia e a pera, a Garrett e os Dramas Romnticos. Comtodos os seus lapsos e inexactides, as suas hiptesesarriscadas, que o facto de se tratar de um terrenovirgem, pela primeira vez explorado, amplamentejustificava, com todos os seus preconceitos, a suaconformao aos esquemas mentais do positivismo, ela ainda o estudo mais completo, mais sistemtico, maisrico de informaes, que ao nosso teatro at hoje seconsagrou: e a verdade, como observou Augusto daCosta Dias, que poucos souberam, como Tefilo,analisar as ideologias na criao literria, os seusaspectos alienatrios e as suas determinaeseconmico-sociais. Esse mesmo interesse t-lo- movido, embora com resultados bem menos relevantes,a escrever duas peas, ambas em verso, baseadas na vidade duas grandes figuras literrias: Gil Vicente (Auto por Desafronta) e Correia Garo (Poeta por Desgraa), que em 1869 foram includas no volume de poesias Torrentes. Altima fora representada em 1865, no Teatro Acadmico de Coimbra, tendo Ea de Queirs interpretado oprotagonista. Motivos vicentinos inspiraram ainda aTefilo o auto O Lobo da Madragoa, integrado no 2.volume da colectnea Folhas Verdes, editada igualmente em 1869. Tempos depois, em 1907, com os cinco actos, enquadrados por um prlogo e um eplogo, de GomesFreire, reincidiria no drama histrico que, invocando o Shakespeare de Jlio Csar e o Schiller de Guilherme Tell,contrapunha tragdia antiga, considerando-o a expresso teatral moderna por excelncia, na medidaem que nos pode apresentar os altos caracteres, comotipos de imitao, e dar-nos a lio objectiva dosgrandes sucessos como uma animada experincia

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  • sociolgica. Um propsito semelhante animara OliveiraMartins (1845-1894) a conceber o projecto de um ciclo de quatro peas histricas, que todavia nunca chegou arealizar mas de que confidenciou a Tefilo Braga, numacarta datada de 1869, os ttulos e os temas: A Tragdia doJogral, em que aspirava a desenhar, dentro domovimento nacional portugus de emancipao dosservos, o carcter da Idade-Mdia, pela formao daconscincia dentro do animal; Afonso VI, tragdiahistrica, simbolizando o cair do direito divino e daautoridade poltica; O Abade, luta confusa de elementos religiosos, polticos e econmicos dasociedade actual; e O Mundo Novo, tragdia idealrepresentando a fuso e compreenso do esprito com a carne, da cincia com a conscincia, o encerramento daIdade-Mdia, a continuao da antiguidade alargada portodas as descobertas do mundo moral.

    Mais activa seria a participao de Guilherme deAzevedo, (1839-1882), o poeta revolucionrio da AlmaNova, que se reunira ao grupo coimbro quando este sedeslocou para Lisboa entre 1870 e 1871: alm de umatraduo de Sardou. (Andra, 1876) e de uma operetafrancesa, escreveu uma comdia-drama em quatro actos,Rosalino, e, em colaborao com Guerra Junqueiro, arevista do ano Viagem Roda da Parvnia. A primeira,definida por Rafael Bordalo Pinheiro como a expressoespirituosa da sensaboria lisboeta, estreou-se no TeatroNacional em 1877, mas foi hostilmente recebida pelopblico e pela crtica; mais tarde, o autor reduziu-a a trsactos, eliminando a parte dramtica e refundindo a partecmica, subindo ento de novo cena no Teatro doGinsio, mas desta vez com assinalado xito. Nestemesmo Teatro se representou, a 17 de Janeiro de 1879,

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  • a revista escrita de parceria com Junqueiro, anunciadanos cartazes como relatrio em quatro actos e seisquadros, da autoria de Gil Vaz (comendador), que seria pateada das dez meia-noite e proibida no GovernoCivil uma da madrugada. Dela falaremos maisdesenvolvidamente no captulo dedicado ao teatro de revista, limitando-nos por agora a citar Antero deQuental (que em 1875 havia traduzido, com JaimeBatalha Reis, o libreto da pera-cmica O Degelo, postaem msica por Augusto Machado): numa das curiosasnotas includas na sua edio em livro, o autor dosSonetos caracterizou-a como a descrio da sociedade de Lisboa, na variedade pitoresca das suas pequenas e no pequenas misrias morais e intelectuais, com os seusridculos e as suas baixezas, as suas pretenses e a sua ignorncia, o seu descaramento e o seu vazio. E foitambm ele quem melhor apontou as limitaes dastira de Azevedo e Junqueiro: Os autores usaram decaricatura e do epigrama. So coisas anodinas. Lisboa, aLisboa oficial e oficiosa, que patusca, chacina, intriga,goza, explora, compra e comprada, vende e vendida,essa Lisboa merecia certamente as honras patibulares dastira juvenalesca. Se h gangrena nesse corpo social e tantos sintomas rapidamente acumulados a estodenunciando o cautrio, o ferro em brasa queconvm aplicar-lhe, e rudemente, firmemente, porqueno se brinca com a gangrena.

    Tinha razo Antero. Guilherme de Azevedo, que havia de morrer trs anos depois, no teve tempo de prem prtica o conselho do grande poeta. Mas no custaaceitar que Junqueiro o tivesse presente ao escrever, em1896, as estrofes vingativas da Ptria, violentamenteantimonrquicas e anticlericais, em que estremecem as

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  • nobres cleras, as fundas indignaes, os diosjusticeiros que Antero, na citada nota, consideravasintomas precursores de uma renovao fecunda daalma colectiva. Poema dialogado, ou oratria cnicacomo lhe chamou Jorge de Sena, emparelhando-a com oAnti-Cristo de Gomes Leal (1884), mais do quepropriamente poema dramtico, a Ptria sfragmentariamente tem sido, at hoje, levada ao palco,embora constitua um desafio a um encenadorimaginoso. No s por isso, mas sobretudo porque afora e a sugesto das suas imagens e dos seus ritmos se apoiam numa esttica simbolista, a sua anlise ficariadeslocada num estudo, como este, dedicado ao teatro naturalista e neo-romntico.

    Um trao comum ao poema de Junqueiro e ao quepode considerar-se como as primeiras tentativas de criao de um repertrio naturalista, j assinalado depassagem, o anticlericalismo, que desde 1871inflamava os versos dos Falsos Apstolos, de Guilherme Braga, por via deles excomungado pelo Bispo do Par...No mesmo ano em que Ea publicava na RevistaOcidental a primeira verso do Crime do Padre Amaro,em 1875 portanto, Antnio Enes (1848-1901),comissrio rgio em Moambique e autor da reforma de 1898 do Teatro Nacional, estreava no Ginsio a pea emtrs actos Os Lazaristas, que viria a constituir o prottipodo drama de tese anticlerical. Atacando directa eincisivamente a reintegrao das ordens religiosas e anefasta influncia do clero reaccionrio no seio dasfamlias, mas utilizando um estilo imoderadamentetribuncio, como observou scar Lopes, que prolongava o drama de actualidade de meados dosculo, a pea obteve um xito apotetico, de que a

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  • imprensa progressista da poca recolheu os ecos (oslazaristas tm a escola e o pblico para a suapropaganda; ns temos o jornal, a tribuna, o livro, oteatro (. . . ); este drama pertence a todo o partido liberalportugus, escreveu-se na Revoluo de Setembro),ao mesmo tempo que desencadeava uma violentacampanha da reaco, que tentou proibir a suarepresentao em Braga e conseguiu interdit-la noBrasil, onde a polcia invadiu o teatro em que, numarcita nica e por convites, se procurou apresent-la, oque deu origem a tumultos de que resultaram mortos eferidos. Dessa polmica ficaram alguns testemunhos vibrantes, entre os quais um opsculo do Padre Sena Freitas (que logo comeava por definir o teatro comouma das armas mais traioeiras com que os homens domal buscam actualmente ilaquear e extinguir, entre ns,as crenas e o sentimento catlico) e um folheto emque o prprio Enes defendia a sua pea das acusaesque no Brasil lhe foram movidas, recorrendo a argumentos anlogos aos que Molire empregara parasustentar o Tartufo.

    Na esteira dos Lazaristas vrios dramas de temaidntico ou prximo, uns denunciando a intromisso doclero na vida pblica e domstica, impugnando outros ocelibato dos padres e a indissolubilidade do casamento cannico, ocuparam os palcos nacionais at implantao do novo regime, geralmente em directaconexo com as teses da propaganda republicana.Assim, ainda em 1875, Silva Pinto (1848-1911), que via na substituio do enredo pela tese a originalidadedo drama moderno, fazia representar Os Homens de Romae em 1877 O Padre Gabriel; em 1876, Cunha Belm(1834-1905) estreava O Pedreiro Livre, obediente ao

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  • propsito de patentear sociedade os verdadeirosintuitos e nobres fins em que se empenha a maonaria;em 1877, Lino de Assuno (1844-1902) engrossava esterepertrio com Os Lzaros, cuja ideia geral se subordinaa umas preocupaes de positivismo ramo Littr,segundo as suas prprias palavras, a que se seguiriam em1894 Monsenhor e O Mundo e o Claustro; em 1882 CiprianoJardim (1841-1913) apresentava no Teatro Nacional OCasamento Civil, em que defendia a tese de que no oGoverno que tem de expulsar do reino os jesutas; afamlia, a mulher, que tem de os expulsar do lar; em 1892, e no mesmo Teatro, era a vez do Segredo de Confisso, de Lorj Tavares (1857-1939)... Dobrado o cabo do sculo, estes temas iro reaparecer, tratados porvezes com maior rigor, em peas como O Novo Altar, deBento Mntua, e Missa Nova, de Bento Faria (1905) ou Casamento de Convenincia (1904) e A Infelicidade Legal(1911), de Coelho de Carvalho, N Cego, de Henrique Lopes de Mendona (1905) e A Lei do Divrcio, deAugusto de Lacerda (1910). A seu tempo delasvoltaremos a falar.

    Mas, se um esprito novo, diremos at progressista,animava aquelas peas, o molde em que se vazavasubmetia-se ainda ao cdigo esttico do melodramaromntico da Regenerao, com o seu mecanismoartificial, a sua linguagem retrica, as suas personagensinteirias, a inverosimilhana das suas situaes (noobstante algumas vezes assentarem numa base real, como era o caso dos Lazaristas). As ulteriores obrasdramticas de Antnio Enes, nenhuma das quaisalcanou o xito desta, so disso a prova evidente: OsEnjeitados (1876), O Saltimbanco (1877), grande criao do

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  • clebre actor Antnio Pedro, O Luxo (1881) e AEmigrao, estreada no Brasil mas indita em Portugal.

    Mais prxima j do naturalismo situava-se a nicaincurso teatral de Teixeira de Queirs (1848-1919): acomdia satrica O Grande Homem, integrada na srieromanesca da Comdia Burguesa e estreada no TeatroNacional em 1881, em que se caricatura, em traoscerteiros, a ambio e o carreirismo dos polticosmedocres, mas a que falta a graa das situaes e dosdilogos imaginados por um Gervsio Lobato, trs anosdepois, em Sua Excelncia. Mas a imperturbvel anliseexplicativa dos factos em que, para Teixeira deQueirs, consistia o valor da escola naturalista, acomodava-se mal com os excessos caricaturais e asderrapagens romanescas da aco da sua comdia. Porisso a considerou Jlio Loureno Pinto a primeiratentativa falhada de fazer entrar o naturalismo no nossoteatro e falhada, como lucidamente observouTeixeira Bastos num estudo sobre O Teatro Modernoem Portugal publicado na Revista de Estudos Livres, porque o autor ps de parte os processos naturalistas,no obrou como simples observador que constata osfactos da experincia humana, no se baseouexclusivamente nos documentos fornecidos peloromance experimental.

    Em 1885, desiludida pelas contingncias da vidanacional, nauseada pela burocratizao do parlamento epelo jogo rotativo dos partidos polticos alternantes nopoder, amolecido o mpeto revolucionrio, que nuncaalis abandonara o nvel da teoria, a gerao de 70afivelou a mscara desencantadamente irnica dosVencidos da Vida, fechando-se num aristocratismoque, com raras excepes (Tefilo Braga, por exemplo),

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  • iria preparar o terreno ao nacionalismo irracionalista da dcada final do sculo. Mas, curiosamente, seriam osescritores da nova gerao que iriam fornecer aos palcosportugueses o repertrio naturalista de que os seusimediatos antecessores se limitaram praticamente aafirmar a necessidade.

    Quem nesse sentido mais se empenhou foi JlioLoureno Pinto (1842-1907), o romancista hojeesquecido das Cenas da Vida Contempornea, que em 1885 reuniu, sob o ttulo Esttica Naturalista, os artigos quepublicara, dois anos antes, na Revista de EstudosLivres fundada por Tefilo Braga. Um captulo desselivro trata, justamente, do Naturalismo no Teatro(ttulo igual ao do livro que Zola fizera editar em 1880 ecom o qual coincide, em muitos pontos, nas ideias e atna sua expresso verbal, o do autor portugus) econstituiu o primeiro e mais sistemtico textodoutrinrio que sobre o naturalismo dramtico entre nsse escreveu. Outros textos surgiriam no dealbar dosculo XX, como a conferncia de Ernesto da Silvasobre Teatro Livre e Arte Social (1902), os artigos de Manuel Laranjeira acerca de Ibsen, publicados no dirioportuense A Voz Pblica (1903) ou o prefcio deCoelho de Carvalho ao seu Casamento de Convenincia(1904). A todos se antecipou Loureno Pinto.

    A anlise a que ele procedeu da tragdia clssica e dodrama romntico de cuja inadaptao s novasrealidades econmicas e sociais faz decorrer a exignciade uma renovao dramtica radical merece serrecordada, pela agudeza e pertinncia dos argumentosem que se apoia: A tragdia, na sua imobilidade autoritria, definhava-se de vetustez e inanio sempoder j traduzir a transformao social que tem na arte

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  • a sua melhor expresso; incrustava-se no estreito quadroda antiguidade; o movimento cnico, a verdade natural,a inspirao criadora falseavam-se, acanhando-se natirania da lei das trs unidades, nas convenesperpetuadas numa preocupao de inviolabilidade, e oautor, escravizado a esta espcie de superstiosacrosanta, no raro sequestrava dos olhos doespectador cenas e situaes que alis eram necessrias compreenso do pensamento dramtico. Certasperipcias violentas relegavam-se do palco comoatentatrias das convenincias, davam-se como passadasdentro dos bastidores, ou deixavam de ser postas emaco e intercalavam-se nos monlogos e nas longasnarraes. Nenhuma liberdade de movimentos,nenhuma espontaneidade, nenhuma naturalidade: tudopautado, comedido, regrado pelas convenincias, peloscnones fixos, inexorveis e compressivos. A acocomo que se passava nas nuvens, num ambienteolmpico extra-terreno, em que as personagens assumema atitude fictcia de heris e semi-deuses.

    Isto quanto ao teatro clssico, ou, maisrigorosamente, quanto aos prolongamentos acadmicosgraas aos quais o teatro clssico debalde procurava asobrevivncia. No tocante ao teatro romntico, a anlisede Loureno Pinto no era menos lcida: Certamente,o drama romntico destronou a tragdia, revolucionou acena, baniu a retrica clssica, transformouprofundamente os aspectos da cena, deu maioramplitude aco; mas a verdade natural, a viva e exactarealidade, embora fosse o lema inscrito na sua bandeirarevolucionria, no foi implantada no palcovitoriosamente. Mudaram-se apenas as roupagens que a desfiguravam; o drama de 1830 em nada se adiantou

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  • obra de Shakespeare. Esse movimento impetuoso,exceptuando as conquistas da liberdade do pensamentoe uma maior largueza na aco dramtica, nada mais fezque substituir a Idade-Mdia Antiguidade, a exaltaoda paixo exaltao do dever, a fatalidade antiga crena religiosa e ao ponto de honra. As personagenscontinuam a mover-se na cena sem a espontneanaturalidade da vida real, hidrpicas e retricas, enfticasna exagerao dos sentimentos, disformes ou disparatadas na anttese monstruosa com a verdade.Continua-se o mesmo carnaval da natureza: somente anudez da verdade encobre-se com outros ouropis e aretrica adorna-se com outras lantejoulas... O dramaromntico, banindo da cena a frmula trgica emelodramtica que se mumificara numconvencionalismo imutvel indiferente ao movimentoda transformao social, cujo reflexo a arte deve sentir eacusar, criou, certo, uma outra frmula maisacomodada moderna renovao mental, mas a vida e osentimento verdadeiro da natureza ficaram ainda fora doteatro, e, em vez de reivindicar para a arte a verdade natural, apenas entronizou num quadro mais largo amecnica de um certo convencionalismo.

    Para Loureno Pinto, o drama histrico no podeser o tipo do drama moderno, embora reconhecesseque a evocao do passado no podia eximir-se alada do dramaturgo; mas, para ser verdadeiro, ressuscitando o passado como se fora presente,demandava um grande trabalho de erudio, que nopode ser inteiramente suprido pela intuio artstica.Era, contudo, na vida contempornea, na realidadeambiente que actua sobre ns, que pe em conflagraotoda a nossa sensibilidade extrnseca e intrnseca, nas

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  • sugestes dos modelos vivos, que se assimilam etranssubstanciam, que se oferecia um fundo inexaurvelde vitalidade e renovao artstica. Mas, para atingiresse resultado, haveria que atender especificidadeprpria da criao teatral: no menos importante que o contributo do autor dramtico, que segundo ele aindano aparecera (pois Dumas Filho e Augier aindavacilam, transigindo com o artifcio e a conveno, eZola, com as tendncias do seu temperamento parainterrogar a natureza nas suas extremas cruezas, no oreformador mais bem dotado para se insinuar nocorao das plateias), se lhe afigura o concurso do actore do decorador, j que a representao material da natureza e da realidade no teatro devem ser tais que aimaginao desapertada possa evocar a coisarepresentada como ela realmente existe, e esta vivaevocao no se consegue no teatro sem os efeitos dorelevo, da perspectiva e da ptica.

    E o autor da Esttica Naturalista, conclua, tal comoZola, pela afirmao de que a influncia do naturalismo se limitara, por enquanto, s artes subalternas e subsidirias da composio teatral, isto , a dico, otraje, as decoraes, que admitia haverem passado poruma transformao radical, cingindo-se ao rigorhistrico e verdade natural. No entanto, por carnciade dramaturgos conscientes da necessidade de ampliar essa transformao aos prprios textos fonteprimignia da criao dramtica a aspirao de um teatro que se cingisse apenas verdade natural e que fosse o espelho fiel da sociedade que representavacontinuava, em Portugal, a ser apenas isso: umalongnqua aspirao...

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  • 5 O DRAMA HISTRICO NEO-ROMNTICO

    Estas duas observaes de Jlio Loureno Pinto eramperfeitamente justificadas. De um lado, e como vimos, as peas representadas entre 1870 e 1885, ainda quandoobedeciam a uma inteno polmica, mantinham-se fiisaos cnones do romantismo. Alis, mesmo para alm das nossas fronteiras, o drama naturalista s entocomeava a impor-se: se Ibsen j havia estreado em 1877 Os Pilares da Sociedade, em 79 a Casa da Boneca, em81 os Espectros e em 82 Um Inimigo do Povo, s em 1887subiria cena O Pai, de Strindberg e Andr Antoinefundaria em Paris o Teatro-Livre, que viria a ser de certo modo a verificao prtica, sobre as tbuas dopalco, das ideias de Zola acerca do teatro, aconcretizao cnica do esprito experimental ecientfico do sculo. Por outro lado, as artessubsidirias ou subalternas haviam atingido, de facto,um nvel aprecivel de verosimilhana e rigor natural,devido sobretudo ao exemplo de grandes e prestigiosasfiguras de comediantes estrangeiros, que regularmentevisitavam o nosso pas e aqui se produziam numrepertrio de transio, seleccionado menos em funo de exigncias artsticas que das oportunidades de brilhar

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  • em papis de seguro impacto. Scribe, os Dumas pai efilho, Augier, Sardou, eram os autores obrigatoriamenteincludos nesse repertrio, a que pelos finais do sculovieram juntar-se Ibsen, Sudermann, Hauptmann osnovos brbaros do norte, como lhes chamavam osdefensores da tradio. Assim foi que, entre 1870 e o fim do sculo, nos visitaram Celestina de Palladini (em 1874, 79 e 81), Sarah Bernhardt (em 1882, 88, 95 e 99),Ernesto Rossi (em 1883 e 84), Coquelin (em 1887), Antnio Vico (em 1892 e 98), Emmette Novelli (em 1895 e 98), Eleonora Duse (em 1898), Maria Guerrero eRjane (em 1899) e em 1896, pela primeira vez (a segunda seria em 1903), Antoine, que ento passou quase despercebido.

    Um encenador francs, mile Doux, que em 1835viera a Portugal com uma companhia que nos deu aconhecer o repertrio romntico, e por c se deixouficar, influiu decisivamente na formao dos principaisactores que pisaram os nossos palcos no terointermdio do sculo: Emlia das Neves (que ainda em1871 electrizava o pblico do Nacional com a suainterpretao do Gladiador de Ravena), Carlota Talassi,Josefa Soler, Delfina, Emlia Adelaide, Manuela Rey,Tasso, Epifnio, Teodorico, Jos Anastcio Rosa,Sargedas, Isidoro, Taborda, Jos Carlos dos Santos. Agerao seguinte, que ascendeu ao tablado volta de1870, mais do que com o ensino ministrado no Conservatrio, aprendeu com os monstros sagradositalianos, franceses ou espanhis que passaram pelosnossos palcos uma tcnica de representar mais aderenteao rigor histrico e verdade natural. RosaDamasceno, Virgnia Lucinda Simes (criadora entrens, da Teresa Raquin, de Zola), Adelina Abranches, Joo

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  • e Augusto Rosa (filhos de J. Anastcio), EduardoBrazo, Ferreira da Silva, Antnio Pedro, Joaquim deAlmeida, ao quais pelo fim do sculo vieram juntar-sengela Pinto, Lucinda do Carmo, Luclia Simes,Chaby, Antnio Pinheiro, Carlos Santos, destronaramos dolos do romantismo e, com o auxlio de cengrafosveristas (o italiano Luigi Manini, radicado em Portugal apartir de 1879, Procpio Pinheiro, Eduardo Machado,Augusto Pina), abriram o caminho ao naturalismo nacena portuguesa. Os livros de memrias que, escritospor eles ou por confidentes seus, nos deixaram, sodisso um testemunho eloquente.

    Caminho que no foi fcil e se perdeu, muitas vezes,por oblquos atalhos: significativo que os autores dosprimeiros dramas a que pode aplicar-se, sem grandeimpropriedade, o rtulo de naturalistas Joo daCmara, Marcelino Mesquita, Lopes de Mendona, JlioDantas hajam comeado por escrever dramas defundo histrico (alis, Ibsen e Strindberg haviam-nofeito igualmente no exrdio da sua carreira...), comoelucidativo ser um relance de vistas pelo repertrio dacompanhia que, reunindo quase todos os actores acimareferidos, se propusera renovar a cena nacional. Foi ela acompanhia Rosas & Brazo, qual fra adjudicada em1880 a explorao do Teatro Nacional D. Maria II, ondese manteve at 1898, ano em que a reforma de AntnioEnes provocou uma ciso de que resultou os titulares dacompanhia serem contratados para o Teatro D. Amlia,inaugurado havia quatro anos, permanecendo no TeatroNacional Ferreira da Silva, Virgnia, Carlos Santos. Emdezoito pocas sucessivas ali alternaram, eclecticamente,autores romnticos e naturalistas, nacionais eestrangeiros (e at clssicos como Shakespeare, Molire

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  • e Gil Vicente, nomes inabituais nos cartazes de ento);mas enquanto as obras romnticas predominaram naprimeira metade, na segunda j prevalecem as obrasnaturalistas, ocupando os dramas histricos o terointermdio o que reflecte exactamente a evoluodramatrgica do sculo. Assim, entre 1880 e 89representaram-se peas de C. Delavigne (Luis XI),Victor Hugo (Ruy Blas), Franois Coppe (Severo Torelli),Sardou (Fdora), Dumas filho (A Estrangeira, com que acompanhia inaugurou a sua explorao), FernandoCaldeira (Sara, As Nadadoras e A Chilena), Antnio Enes(O Luxo) e, numa linha de aproximao ao naturalismo, apenas a Arlesiana, de Daudet, e O GrandeHomem, de Teixeira de Queirs; enquanto que de 1890 a98, dando a rplica a algum Dumas e Georges Ohnet e Madrugada, de F. Caldeira, puseram-se em cena O Fim deSodoma, de Sudermann, o Joo Jos, de Dicenta, a TierraBaja, de Angel Guimer (sob o ttulo de Manelick) e osprimeiros textos naturalistas de D. Joo da Cmara (OsVelhos, A Triste Viuvinha), Marcelino Mesquita (OsCastros, Velho Tema, Dor Suprema), Eduardo Schwalbach(O ntimo, Santa Umbelina), Alberto Braga (A Estrada deDamasco, A Irm, O Estaturio), Abel Botelho (AImaculvel). tambm neste segundo perodo que seregista a primeira tentativa de teatro simbolista, com OPntano, de Joo da Cmara, representado em 1894.

    Foi, como j se disse, no tero central deste perodo,entre 1886 e 92, que o novo surto historicista se produziu: sucessivamente, estreiam-se O Duque de Viseu(86) e A Morta (90), de Lopes de Mendona, a LeonorTeles (89), de Marcelino Mesquita, o Afonso VI (90) e o Alccer-Quibir (91), de Joo da Cmara. Razes conjunturais precisas explicam esse surto, ou melhor,

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  • esta nova preiamar do drama histrico, aps o refluxoverificado a partir de meados do sculo. (Mas certoque ele nunca esteve inteiramente ausente dos nossospalcos, como testemunham, entre outros exemplospossveis, o Martim de Freitas e o Egas Moniz de Mendes Leal, representados em 61 e 62, No Tempo dos Francesesde Florncio Sarmento em 64, A Morgadinha de Valflorde Pinheiro Chagas, e D. Frei Caetano Brando de SilvaGaio, ambos em 69, O Louco de vora ou PortugalRestaurado de Ferreira da Cruz em 72, a D. Leonor deBragana de Lus de Campos em 77, o Favorito de D.Afonso VI de Jlio Rocha, no mesmo ano, ou o Camesde Cipriano Jardim em 1880). Coincide estarevivescncia do teatro histrico com o auge daexplorao administrativa e da ocupao militar dascolnias africanas, com o altear do sonho imperialistarepresentado pelo mapa cor-de-rosa e o seu desfazer-se com o ultimatum de 1890. Repercutem em todosestes dramas, ainda quando evocativos de perodossombrios ou de personagens frustres da histria ptria(D. Fernando, Leonor Teles, Afonso VI, a derrota deAlccer-Quibir...), um eco de pretritas grandezas, amemria de tempos gloriosos, as virtudesexpansionistas dos nossos egrgios avs, como diria scar Lopes. Assim o drama histrico funcionava (e oxito obtido junto dos vrios estratos da burguesia disso a prova concludente) como uma espcie demecanismo de compensao; mas, num artigo crtico,laudatrio alis, que Oliveira Martins dedicou a um desses dramas o Afonso VI, de Joo da Cmara, com o qual samos por excepo desse mundo ridiculamenteconvencional do teatro que nos servem todos os dias

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  • , lembrava-se, muito a propsito, que no se vive de passadas glrias, existe-se por via de foras actuais. . .

    Se certo que, nestes textos e sobretudo no seulevantamento cnico, se registava um notrio avano emrelao dramaturgia de feio histrica dos sucessoresde Garrett no tocante descrio de costumes, caracterizao psicolgica das personagens e suainsero num quadro social bem delineado, no menoscerto que, estilisticamente, eles permanecem tributriosdo modelo romntico que, mais de meio sculo antes,Victor Hugo fixara e Sardou repusera em uso,mecanizando-o. Ao romantismo, alis, se prendemcertos tpicos recorrentes nalgumas destas obras,nomeadamente as de Marcelino Mesquita e, j na viragem do sculo, Jlio Dantas, como o culto dosvalores individuais, a exaltao dos rasgos hericos, umaconcepo palaciana e corts do amor. Eis como,voluntria ou involuntariamente, estes dramasentroncam na corrente nacionalista que, na dcada de90, forneceu um substrato ideolgico s forastradicionalistas e reaccionrias, saudosas do passado ereceosas do futuro, procurando esconjurar este pelatentativa, de antemo condenada a frustrar-se, deressuscitar aquele. O que surpreendente, massignificativo das contradies em que se debatiaideologicamente a classe mdia, que alguns autoresdestes dramas neo-romnticos fossem republicanosconvictos, como Lopes de Mendona e MarcelinoMesquita. . .

    Considera-se geralmente Henrique Lopes de Mendona (1856-1931) como o iniciador deste ciclo (oDuque de Viseu estreou-se, como foi dito, em 1886 no Teatro Nacional); mas a verdade que ento j

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  • Marcelino Mesquita havia escrito a sua Leonor Teles e at,numa primeira verso, a fizera representar em 1879,numa rcita de estudantes. Para Lopes de Mendona, aparte mais substancial da sua obra dramtica eraconstituda por trs dramas histricos em verso, que eledefiniu como trs quadros do viver histrico dePortugal, correlacionados como os elementos de umtrptico: o citado Duque de Viseu, em que transpunhapara a cena o romper da Renascena, com as lutas paraa consolidao do poder monrquico e os alvoroadosprimrdios da expanso ultramarina; A Morta (1890),sua contribuio pessoal para a larga cadeia de obrasque, desde a Castro de Ferreira (para no remontar strovas de Garcia de Resende, includas no CancioneiroGeral), narram os trgicos amores de Pedro e Ins, coma particularidade de a aco se desenrolar aps oassassnio da msera e mesquinha; e um Afonso de Albuquerque (editado em 1898 e s representado oito anos depois), tendente a glorificar a aventura dasconquistas ultramarinas. Explorando o mesmo filohistoricista, Lopes de Mendona escreveu ainda olibreto de uma farsa lrica sobre motivos vicentinos, Tio Negro (1902), e de uma pera-cmica de costumessetecentistas, O Espadachim do Outeiro (1909), para ambas as quais comps msica Augusto Machado, alm de umacto em verso (Saudade, 1916), de inspirao anloga dos episdios galantes em que se especializaria JlioDantas; e, alargando o conceito de teatro histrico, oapropsito patritico, escrito em reaco contra oultimatum ingls, As Cores da Bandeira (1891), cujamarcha final, com msica de Alfredo Keil, viria a seradoptada como hino nacional aps a implantao daRepblica, o quadro evocativo das campanhas africanas

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  • Sol Novo (1896) e uma alegoria acerca do primeiroaniversrio da Repblica, Auto das Tgides (1911). A sua carreira teatral (abstraindo por agora dos textos deestirpe naturalista) terminou em 1924 com uma outraobra de fico histrica, mas em prosa, O Crime de Arronches, cuja linguagem directa contrasta singularmente com os excessos retricos da trilogia emverso.

    Excessos retricos so tambm moeda corrente na Leonor Teles de Marcelino Mesquita (1856-1919), em que a histria funciona como mero pretexto para (e pano defundo de) uma intriga passional e uma copiosa efuso desentimentos, verbalmente traduzida em alexandrinosparticularmente aptos declamao. A sua percia de efabulador (mais que de construtor) teatral, a suaextrema facilidade, quase incontinncia literria (quelevou Fidelino de Figueiredo a falar de uma expressoexcessiva que nada deixa para adivinhar ou interpretar, nada guarda para a doce voluptuosidade da meditao),atraioaram-no mais do que o serviram: no raro o temase dilua na sua prpria dramatizao, e as personagensnas palavras que o autor lhes punha na boca. Tudo isto particularmente sensvel nas peas histricas (que aolongo de toda a sua obra alternaram sempre com asnaturalistas), em que uma agitao puramente exterior e romntica se apoiava to-s no aparato verbal dodilogo: O Regente (1897); O Sonho da ndia (premiada em1898 no concurso aberto por ocasio dascomemoraes do quarto centenrio da viagem deVasco da Gama, em que tambm se distinguiram obrasde Sousa Monteiro e Cipriano Jardim); Peraltas e Scias(1899), que inaugurou uma srie de comdias em prosa de costumes seis-setecentistas em que viria a salientar-se

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  • Jlio Dantas; Sempre Noiva (1900); O Rei Maldito (1903), aque, pelo atrabilirio enredo, melhor quadraria adesignao de folhetim histrico; Margarida do Monte(1910), episdio corteso que entrelaa, em redondilha maior, um dos temas predilectos do autor, a paixoserdia, glosado em peas de recorte naturalista comoEnvelhecer, no episdio veneziano Perina ou no poema OGrande Amor, com a crtica do despotismo e do poderabsoluto; Pedro o Cruel (1916), em que o desespero e asede de vingana do monarca, louco de um grande amor, se exprimem por vezes em acentos de verdadeira emoo potica. Acrescentem-se a esta lista, paracomplet-la, duas peas ainda, em que a aco recua at antiguidade grega e romana: Petrnio (1901), baseadanum episdio do Quo Vadis? de Sienkiewciz, e Frineia(1917).

    , porm, o Afonso VI (1890), de D. Joo da Cmara(1852-1908), a obra mais notvel de todo este grupo quevimos analisando, no s pelo maior cuidado literrioposto na factura dos versos (que desleixada emMarcelino e acadmica em Dantas e Lopes deMendona) como pela evidente preocupao de conferirdensidade humana, volume, riqueza e plasticidadepsicolgica s personagens e de articular os seus comportamentos com as grandes linhas de fora doquadro histrico-social em que se movem. Essaarticulao j menos conseguida no drama histricoseguinte, Alccer-Quibir (1891), que tanto pelo enredocomo pela linguagem, no isenta de tiradas declamatrias, reverte ao padro convencional de que,precisamente, o Afonso VI se afastava; mas retoma-se eexplora-se nele um veio que neste j aflorava e queconsiste num vago e nebuloso misticismo em que os

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  • pressgios, as vises profticas, os obscurospressentimentos, supem uma concepo idealista do mundo e dos homens governados por foras ocultas esobrenaturais que anuncia o simbolismo de algumas dassuas peas ulteriores. Simbolismo que, no seu ltimo texto de tendncia histrica (O Beijo do Infante, um acto em prosa, estreado em 1898, na verso italiana, pelogrande actor Novelli, para quem alis foi escrito), sereduz ao nvel de uma alegoria cenicamente eficaz.

    Aproveitando esta voga da fico histrica e o seuxito junto do pblico ( sintomtico que Joo daCmara e Marcelino Mesquita hajam, respectivamenteem 1903 e 1904-5, escrito romances sobre os assuntostratados no Afonso VI e na Leonor Teles, como Jlio Dantas (1876-1962) tambm fizera em 1902 com ASevera), e misturando-lhe reminiscncias de Ibsen eRostand, este ltimo autor vem tomar, nos umbrais donovo sculo, a cabea do peloto dos dramaturgos de linha historicista, fazendo no entanto inflectir essa linhanuma direco cada vez mais frvola e superficial. Fialhode Almeida definiu a sua primeira pea, O que Morreu deAmor, que os Rosas e Brazo estrearam na sua primeiratemporada do Teatro D. Amlia, em 1899, uma fbula de amor, lambida, declamatria a anunciar um talentode coisinhas que se manifestaria, nas peas seguintes, pela meticulosa fidelidade, manaca at ao pormenor,queles aspectos que exteriormente caracterizam umapoca: guarda-roupa, peas de mobilirio, jias eadereos, instrumentos de msica, panos e tecidos,locues e vocbulos. Vamos encontrar estes materiaisaplicados sistematicamente nas suas peas cuja aco, oscilante entre o herosmo e a galanteria, decorre nossculos XVII e XVIII: Viriato Trgico (1900), em que o

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  • poeta-espadachim Brs Garcia de Mascarenhas lhefaculta uma rplica lusitana do Cyrano de Bergerac deRostand (que Dantas traduzira em colaborao comManuel Penteado e subira cena em 1898 no mesmoTeatro D. Amlia, um ano aps a estreia apotetica emParis), A Ceia dos Cardeais (1902), o seu maior xito e umdos maiores de toda a histria do nosso teatro, noobstante tratar-se de um pequeno acto em versoconstitudo, tal como o resumiu Joaquim Madureira nassuas impiedosas Impresses de Teatro, por trs monlogossem aco, sem cor, ligados entre si por um faiso comtrufas, sedas roagantes de prncipes da Igreja, acordesligeiros num cravo antigo, baixelas ricas e versosdelambidos, mero pretexto para trs recitativos em quese fazem contrastar as imagens estereotipadas econvencionais da fanfarronice espanhola, da galanteria francesa e do sentimentalismo portugus; este acto seriao primeiro de uma srie de quadrinhos ligeiros, polidose brilhantes em que as palavras acutilantes disfaram apobreza das psicologias, na incisiva observao de JosDias Sancho (D. Beltro de Figueiroa, 1902; Rosas de Todo o Ano, 1907; O Primeiro Beijo, 1911; D. Ramon de Capichuela,1912; Sror Mariana, 1915). Esta ltima seriaparticularmente visada no escandaloso Manifesto Anti-Dantas e Por Extenso que, por essa altura, o futurista Almada Negreiros atirou ao rosto imvel e petrificadoda nossa literatura acadmica, de que Jlio Dantas j eraento o smbolo acabado. Pertencem ainda a este cicloum hbil panfleto anticlerical, Santa Inquisio (1910) e,rompendo um silncio de vrios anos, em que limitou asua actividade dramtica a adaptaes actualizadas detextos clssicos ou romnticos (A Castro, de Ferreira, eD. Joo Tenrio, de Zorrilla, 1920; Antgona, de Sfocles,

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  • 1946), um anacrnico Frei Antnio das Chagas (1947). Amesma superficialidade, o mesmo comprazimento emminuciosas reconstituies histricas puramenteexteriores, a mesma agilidade dialogal, caracterizam as suas peas a que a poca romntica serve de moldura: ASevera (1901), verso retintamente lisboeta e fadista da Dama das Camlias, segundo scar Lopes, que no anoseguinte ele prprio reescreveu como romance e em1909 Andr Brun adaptou a opereta para a msica de Filipe Duarte e Leito de Barros ao cinema em 1931; Um Sero nas Laranjeiras (1903); Carlota Joaquina (1919);Outono em Flor (1949), que assinala o termo da sua produo teatral, sintetizada por um dos comentadoresque temos vindo a citar como um museu de velhariasinteressantes.

    Talvez que a pea mais viva desse museu seja ASevera, grande criao da actriz ngela Pinto, para cujotemperamento artstico e bomio foi especialmenteconcebida (como A Ceia dos Cardeais o foi para osirmos Rosa e Brazo), ao lado da qual, bem como dosPeraltas e Scias de Marcelino, no destoa O GrandeCagliostro, de Carlos Malheiro-Dias (1905), que JlioDantas saudou como uma das mais encantadorascomdias de que se orgulha a moderna literaturaportuguesa. A figura enigmtica e controversa dofamoso aventureiro, que j Goethe, Scribe e Dumasfilho haviam teatralizado, aqui situado na corte de D.Maria I e envolvido numa intriga em que defronta ointendente Pina Manique, domina esta comdiabrilhante, mas superficial, que no teve qualquer sequncia na bibliografia do seu autor.

    Citmos, at aqui, os nomes dos autores e os ttulosdas obras que melhor documentam esta tendncia neo-

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  • romntica que insuflou novo alento ao teatro histrico,exausto pelo despudorado consumo que oscontinuadores de Garrett dele haviam feito. Mas esteinventrio deve ser alargado ao D. Sebastio, de Augusto Mesquita, publicado em 1891 e recusado pela empresa do Teatro D. Maria, que lhe encontrou inexperinciasna urdidura e na condensao dos elementos paracomover as plateias, Ins de Castro, de Maximiliano de Azevedo (1894), escrita numa prosa baa e descolorida,to inadequada ao tema como os excessos verbais comque outros o sobrecarregaram, e s vrias obrasapresentadas, em 1898, ao concurso comemorativo do centenrio da viagem de Vasco da Gama: alm do Sonhoda ndia de Marcelino Mesquita, que j mencionmos, uma outra de Sousa Monteiro com o mesmo ttulo, DePortugal ndia de Cipriano Jardim, A Descoberta da ndiade Faustino da Fonseca, Na Volta da ndia de Manuel da Silva Gaio. O drama inesino de Maximiliano deAzevedo (1850-1911), autor de um episdio das lutas liberais, Zefa, representado no Teatro Nacional em 1907, que se caracteriza por um mal disfaradoreaccionarismo, pode considerar-se o equivalenteoitocentista da Nova Castro de Baptista Gomes, que, exactamente um sculo antes, to grande entusiasmosuscitara junto das camadas populares do pblico. A essas camadas se dirigia tambm a pea de Azevedo,estreada, no por acaso, no Teatro do Prncipe Real: adistribuio dos vrios gneros dramticos pelas diferentes salas de espectculos fazia-se acompanhar deuma correlativa diviso de classes sociais. Assim, S.Carlos era reservado pera, o D. Maria II e o D.Amlia ao drama e alta comdia, o Ginsio farsa e baixa comdia, o Trindade, o Condes e o Avenida

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  • opereta e revista (praticando os dois primeiros,eventualmente, o drama e a comdia), o Prncipe Realao melodrama; e se era a alta e a mdia burguesia queespecialmente frequentavam S. Carlos, D. Maria II e D.Amlia, e mais raramente os restantes Teatros, j opblico destes era predominantemente de extracopopular. Um exame comparativo dos respectivosrepertrios permite verificar estas diferenas, que com aaproximao da Repblica e nos primeiros anos destatendem a esbater-se.

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  • 6 O DRAMA E A COMDIA NATURALISTAS

    Na conferncia com que contribuiu para o ciclodemocrtico do Casino Lisbonense, Ea de Queirsdefendia o realismo como nova expresso de arte.Anos depois, a esttica preconizada por Jlio LourenoPinto nos seus artigos da Revista de Estudos Livresdizia-se, no realista, mas na esteira de Zola naturalista.

    Ainda hoje se estabelece, por vezes, uma certaconfuso entre os dois termos, indiferentementeempregados para exprimir uma nica e a mesmatendncia literria. E se naturalismo e realismo tm umponto de partida comum descrio fiel e objectiva darealidade, a verdade natural como dizia LourenoPinto , certo que da em diante separam-se:enquanto o naturalismo se esgota nessa descrio, que inteiramente lhe basta, o realismo, para o qual essadescrio apenas um meio e no um fim, procura,atravs dela, reagir sobre a realidade que descreve,contribuindo para a sua necessria transformao. Daque o naturalismo se limite a reproduzir, passivamente, aface exterior da realidade, aceitando-a como , ao passoque o realismo se prope levar mais longe e mais fundo

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  • a sua indagao, desmontando o mecanismo interiordessa realidade, surpreendendo-a nas suas contradies,acompanhando-lhe o movimento dialctico. A evoluodo naturalismo adensaria a separao entre as duastendncias estticas: medida que a transcrio danatureza se vai diluindo em aspectos de pormenor, cada vez mais desligados de um quadro de significao real, e a objectividade se dissolve na pura impresso subjectiva,consuma-se a negao da realidade que est na base dodecadentismo e das correntes artsticas irracionalistas.

    Sirva este pequeno parntesis para justificar aafirmao de que no houve entre ns verdadeiramente,e por via de regra, uma dramaturgia realista mas, quando muito, naturalista. Os escritores teatraisportugueses que intentaram trasladar para o palco a realidade que os seus sentidos apreendiam e lhesestimulava a imaginao, contentavam-se em fotograf-la, abstendo-se de a interpretar e mais ainda deconcorrer para transform-la. No foram, por isso,Ibsen, Strindberg, Hauptmann, Tchekov, Gorky os autnticos mestres do realismo teatral que elesseguiram, mesmo quando supuseram imit-los, mas sim os dramaturgos que desvirtuaram, pequeno-aburguesando-a, a lio daqueles, como Sudermann,Brieux, Benavente, ou um grau ainda mais abaixo,Hervieu e Lavedan, Capus e Donnay. E nem sempre salvo as honrosas excepes da praxe, que permitemsempre confirmar a regra poder dizer-se que, mesmodesses, tenham sido bons discpulos. . .

    Nos dez primeiros anos do sculo XX e ltimos da monarquia, quase todos estes autores foramrepresentados entre ns por companhias nacionais oupelos actores estrangeiros que continuavam a visitar-nos

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  • frequentemente. J dissemos que Antoine esteve emPortugal pela primeira vez em 1896 e a Duse em 1898,devendo-se-lhe a revelao da Cavalleria Rusticana deVerga e da Hedda Gabler de Ibsen; o grande dramaturgo noruegus teve os seus primeiros intrpretesportugueses em Luclia Simes (A Casa da Boneca, Teatrodo Ginsio, 1899), Luciano de Castro (Um Inimigo do Povo, Teatro do Prncipe Real, 1900) e Ferreira da Silva(O Pato Bravo, Teatro Nacional, 1900). A implantao donaturalismo nos nossos palcos ficou, alis, a dever muitoa estes dois actores; Luciano de Castro foi, com ArajoPereira, o grande animador do Teatro-Livre, e Ferreirada Silva, nos dez anos em que encabeou o elenco do Teatro Nacional, deu a conhecer um repertrio variadoem que figuravam obras de Lavedan e Hervieu, JeanAicard e Jules Lematre, Brieux e Pinero, Bracco e OscarWilde e, sobretudo, vencidos que foram osobstculos levantados pela censura, O Pai de Strindberg.Sem dvida mais rigoroso e exigente do que orepertrio levado cena pela companhia Rosas &Brazo (mas este ltimo tornaria em 1905 ao Teatro Nacional) quando, em 1898, se transferiu para o D.Amlia, onde, com raras excepes (A Parisiense deBecque, Cabea de Estopa de Jules Renard, O Av deGalds, A Casa em Ordem de Pinero, Magda e Fogueiras deS. Joo de Sudermann), o teatro francs de boulevardassentou arraiais, representado por obras de Brieux eCapus, Feydeau e Donnay, Hervieu e Laveden,Bernstein e Pierre Wolff, Flers e Caillavet. Por essemesmo palco desfilaram, neste decnio, notveiscomediantes, desde Zacconi (em 1901, com os Espectrosde Ibsen, as Almas Solitrias de Hauptmann e O Poder dasTrevas de Tolsto), a divina Bartet, Le Bargy, Mounet-

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  • Sully, Italia Vitaliani, Tina Di Lorenzo, De Fraudy,Coquelin, Rjane, Antoine pela segunda vez em 1903(com a Blanchette de Brieux, o Poil de Carotte de Renard, ONovo dolo de Curel) at aos apstolos do simbolismo que foram Georgette Leblanc-Maeterlinck e Lugne-Po.

    No tocante aos autores nacionais, um estudocomparativo dos programas das duas companhias nomesmo perodo permite concluir pela superioridade (emquantidade e qualidade) do conjunto de obrasapresentadas no Teatro D. Maria II: cingindo-nos atextos de factura naturalista, A Noite de Natal de Raul Brando (sua pea de estreia, escrita em colaborao com Jlio Brando), o Casamento de Convenincia deCoelho de Carvalho, o N Cego de Lopes de Mendona,o Caminho Perdido de Augusto de Castro, a M Sina deBento Mntua, A Lei do Divrcio de Augusto de Lacerda(que seria a primeira pea original a subir cena aps aimplantao do novo regime, em espectculo a que assistiram Afonso Costa e Bernardino Machado,representando o Governo provisrio), e a listapoderia ser aumentada com outras obras de autoresmais jovens: Afonso Gaio, Lus Barreto, UrbanoRodrigues, Vasco Mendona Alves , testemunham umdecidido propsito de abrir novos caminhos dramaturgia portuguesa. Arriscou menos a empresa doTeatro D. Amlia, que nesse perodo quase se limitou apr em cena peas, em regra menores, de autores jconsagrados, como Lopes de Mendona (Amor Louco),Joo da Cmara, (Aldeia na Corte), Jlio Dantas(Crucificados, O Pao de Veiros), Marcelino Mesquita (O Tio Pedro, A Mentira), Schwalbach (Cruz da Esmola, Os Postios). . .

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  • Adiantmos j que os introdutores, no nosso teatro,da esttica naturalista comearam por escrever dramashistricos neo-romnticos: e esta costela romntica, quelhes era congnita, no deixaria de manifestar-se nassuas produes da fase ulterior. Este compromisso,comum alis quase totalidade das peas naturalistasque entre ns se representaram, vem confirmar o queacima dissemos acerca da ausncia de uma verdadeiradramaturgia realista em Portugal.

    Os dramas anticlericais de Antnio Enes, Silva Pinto,Lino dAssuno e outros autores que citmos, acomdia satrica de Teixeira de Queirs, a que tambmfizemos referncia, situam-se ainda na periferia donaturalismo; este s pode ser invocado, compropriedade, quando Marcelino Mesquita estreia noTeatro do Prncipe Real, em 1885, depois de o Teatro Nacional a rejeitar por imoral, a Prola, e em 1893, nesteltimo Teatro, sobem cena Os Velhos de D. Joo daCmara.

    Episdio da vida acadmica chamou MarcelinoMesquita Prola e logo neste conceito se revelava opropsito naturalista que lhe era subjacente. Oepisdio foi, com efeito, a verso portuguesa da tranche de vie dos dramaturgos franceses que giraramna rbita de Antoine: Marcelino chamou episdiosdramticos Dor Suprema e Mentira, episdio da vidaburguesa Sinh e episdio trgico ao Tio Pedro,enquanto no repertrio do Teatro-Livre e do TeatroModerno abundavam os episdios cruis, dolorosos,ou irnicos. Definindo a sua pea como o desenhogrfico de um episdio real da vida escolar em Lisboa eapresentando-o como uma fotografia, concebida sema inteno de moralizar o mundo, e ainda menos de o

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  • desmoralizar, o autor de Prola assumiu, de facto, aposio de fria neutralidade que tpica do naturalismo;mas o seu temperamento incuravelmente romnticotrau-o na realizao do projecto, fazendo-o envolver acrueza do drama, que descreve os amores irregulares deuma prostituta e um estudante, nas roupagens de umdilogo empolado que retira credibilidade ao retrato do meio crapuloso em que a aco se desenvolve. Nacomdia seguinte, Os Castros (1893), que dramatiza umcaso de rivalidade amorosa entre dois irmos, alinguagem torna-se mais depurada, para atingir o seugrau mximo de naturalidade na tragdia burguesa DorSuprema (1895), da qual um crtico disse que no era um drama nem uma obra de teatro, mas apenas a narraode um facto lgubre. A histria banal do duplo suicdiode um casal de pequenos burgueses, a quem a morte deuma filha precipita na misria e na loucura, assumidapor Marcelino Mesquita na sua mais quotidiana emesquinha dimenso e transcrita literalmente com umasecura e uma nudez que fazem deste episdio oprottipo do nosso drama naturalista. Nenhuma dassuas obras ulteriores de assunto contemporneo acusato grande conteno, to eficaz economia de meios.Em Velho Tema, estreado tambm em 1895, e A Noite do Calvrio, que se estreou no Brasil em 1903 depois de tersido proibida a sua representao entre ns, o tpicoromntico da honra ultrajada serve de trampolim aoataque de uma sociedade podre, que trocou o gume daespada pelo da lngua, a moral pelo instinto, que fez da tradio um espantalho ridculo e da honra umaconveno pueril e apologia da necessidade de uma justia nova, uma nova moral; mas a tese perde-se emconversas de salo, em tiradas conceituosas, em

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  • desfechos melodramticos (o marido que mata o amanteda mulher, ou leva esta a suicidar-se). Em Sinh (1901)um outro tpico romntico, a virgem seduzida eabandonada, resolve-se num desenlace feliz,confortavelmente pequeno-burgus. Em Almas Doentes(1905) e Na Voragem (1917), sua derradeira produo, o tema da hereditariedade, que os Espectros de Ibsen haviam posto na ordem do dia, levado a extremos queroam involuntariamente a caricatura. No Envelhecer(1909) o sincero dramatismo do conflito passional postoem cena dilui-se num dilogo que oscila entre abanalidade e a retrica. A todas estas efabulaes lcitopreferir, pela sua linearidade desprovida de efeitos fceis, duas pequenas peas num acto, Fim de Penitncia(1895) e O Tio Pedro (1902), a primeira pela sua corajosadefesa de uma moral que despreza as convenincias e as convenes, a segunda pela sua intensidade trgica.

    Saudado, no seu tempo, por crticos exigentes comoum dos mais raros e fogosos temperamentosdramticos que entre ns tm existido (Fialho deAlmeida) e o nosso primeiro e nico dramaturgocontemporneo (Joaquim Madureira), o autor da DorSuprema aparece-nos hoje como o expoente das limitaes e compromissos do nosso repertrionaturalista, e tanto das suas potencialidades quanto doque as impediu de plenamente se afirmarem. Quase omesmo poderia dizer-se das trs peas com que Henrique Lopes de Mendona contribuiu para esserepertrio: Amor Louco (1899), que vale sobretudo pela exacta pintura do ambiente de uma aldeia piscatria; NCego (1905), em que a defesa do divrcio se antecipou deseis anos sua instituio legal entre ns; e sobretudo OAzebre, recusada pela empresa do Teatro D. Amlia e

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  • aceite com alteraes no texto pelo Teatro D. Maria(acabaria, alis, por subir cena no Teatro do PrncipeReal em 1909), devido ao seu spero realismo, que levoualguns a classific-la de teatro livre. O autor, porm,impugnou essa classificao, segundo ele reservada speas rejeitadas pelo pblico, ou pela repugnncia dostemas versados, ou pela deficincia de teatralidade eatribuiu a hostilidade desencadeada pela sua pea s personagens arrancadas escria social, aos episdiosdo viver dissoluto, aos traos de stira mordente. Noque no andaria longe da verdade: era, sem dvida,ousado para o tempo, e atentatrio da respeitabilidadedo pblico que frequentava aqueles Teatros, pr emcontraste um meio bomio, desregrado mas espontneoe generoso, e uma burguesia hipcrita, escorada na moral e na religio... e mais ainda tomar partido por aquele contra esta. E, se no pode negar-se umaeficiente construo teatral s peas naturalistas de JlioDantas, um dilogo aderente s situaes dramatizadas es personagens que nelas intervm (Crucificados, 1902; OPao de Veiros, 1903; Mater Dolorosa, 1908; O ReposteiroVerde, 1912), a sua excessiva colagem aos temasibsenianos da hereditariedade, numa leitura superficial eapressada dos Espectros, tal como j vimos acontecer emMarcelino Mesquita, no permite consider-las mais doque exerccios hbeis e aplicados, cpias servis diriaFidelino de Figueiredo em que no h arte, mas umapretensa fidelidade fotogrfica de reprter. E justamente, como acima procurmos demonstrar, por aque o naturalismo se distingue do autntico real