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© Sociedade Martins Sarmento | Casa de Sarmento 1 O românico no concelho do Guimarães II - A igreja de S. Miguel do Castelo Luís de Pina Revista de Guimarães, n.º 37, 1927, pp. 136-141; n.º 38, 1928, pp. 32-38 II A igreja de S. Miguel do Castelo “Nam ê pequena defgraça nam fe faber o “autor de qualquer obra gloriofa, e magnifica “pera por ella fe lhe dar jufto louuor, que ê o “premio deuido á virtude.” — G. Estaço — V. antiguidades do Portugal —MDCXXV. Poderoso e arrogante, como que rilhando o céu as agulhas de suas ameias muitas vezes centenárias, o castelo de S. Mamede, no alto do lendário “monte Latito”, coroa senhorilmente a cidade. Ao pé, roído dos tempos e do esquecimento, desamparado como velhinho trôpego a quem já nada fazem tisanas ou pós da botica, desmantelado, a aluírem-se as altas chaminés, rijas ainda em seu tijolo revelho — de longe até parecem ossos esburga dos pelos corvos, ossos dum cadáver abandonado e podre - ali está o que foi outrora o mui formoso e rico Paço dos Senhores Duques de Bragança! Jóia do Gótico perdida, andam o vento dos temporais e as chuvas dos invernos a cantar-lhe os responsos da agonia, a bufarem e a gemerem contra as arquivoltas do pórtico soberbo do seu salão e os pilares e mainéis das suas formosas janelas geminadas. E, por certo, os sons vivos dos clarins que chamam à forma ou ao rancho os soldados que lá se deixaram aquartelar, reboarão por aquelas paredes em ecos soturnos,

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O românico no concelho do Guimarães II - A igreja de S. Miguel do Castelo Luís de Pina Revista de Guimarães, n.º 37, 1927, pp. 136-141; n.º 38, 1928, pp. 32-38

II A igreja de S. Miguel do Castelo

“Nam ê pequena defgraça nam fe faber o “autor de qualquer obra gloriofa, e magnifica “pera por ella fe lhe dar jufto louuor, que ê o “premio deuido á virtude.” — G. Estaço — V. antiguidades do Portugal —MDCXXV.

Poderoso e arrogante, como que rilhando o céu as agulhas de suas ameias muitas vezes centenárias, o castelo de S. Mamede, no alto do lendário “monte Latito”, coroa senhorilmente a cidade. Ao pé, roído dos tempos e do esquecimento, desamparado como velhinho trôpego a quem já nada fazem tisanas ou pós da botica, desmantelado, a aluírem-se as altas chaminés, rijas ainda em seu tijolo revelho — de longe até parecem ossos esburga dos pelos corvos, ossos dum cadáver abandonado e podre − ali está o que foi outrora o mui formoso e rico Paço dos Senhores Duques de Bragança! Jóia do Gótico perdida, andam o vento dos temporais e as chuvas dos invernos a cantar-lhe os responsos da agonia, a bufarem e a gemerem contra as arquivoltas do pórtico soberbo do seu salão e os pilares e mainéis das suas formosas janelas geminadas. E, por certo, os sons vivos dos clarins que chamam à forma ou ao rancho os soldados que lá se deixaram aquartelar, reboarão por aquelas paredes em ecos soturnos,

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em clamor de barbaridade, arrepiando a alma triste do monumento, das suas tão mal amadas ruínas! Ao lado, voltadas para o castelo as costas, em perrice de muitos séculos, humílima e pobre, serena na sua mudez de escuro e rugoso granito, fica a pequenita igreja de S. Miguel do Castelo1, que outros apelidam de Santa Margarida. Esmolada a sua restauração por gente amiga, nos fins do século XIX, tem resistido fortemente aos anos que sobre ela voejaram por centos; mas, agora, novas fendas iam abrir-se; as águas das chuvas escorriam pelas paredes interiores como em fresca gruta; as raízes dum plátano vizinho tentavam escadraçar-Ihe os alicerces; e a derrocada seria breve, se alguém dela se não lembrasse e, condoidamente — aliando à sua mágoa de artista •a vontade de rectamente cumprir seu dever de arquitecto2 dos M. Nacionais — lhe não deitasse mão salvadora; e a ermida de S. Miguel do Castelo, a que foi Capela Real na meninice da nacionalidade, já parece remoçada, linda e mais limpa de excrescências tumorais que a molestavam e molestavam também nossos olhos3. É pois aí que, sobre esse alcantil verdejante, estas três relíquias de outras idades, as mais velhinhas de Guimarães, do “burgo de Vimaranes”, ainda nos entontecem a alma que sente e os olhos que vêem; relíquias sagradas, grande tesouro de pedra que vale tanto como os que são de ouro de lei; trindade sagrada que se vai desmanchando aos poucos, pelo tempo e pela impiedosa incúria dos homens! Que as gentes da velha Vimaranes, ressuscitando em si os brios da grei antiga, se apeguem e agarrem a essas muralhas, aos seus pórticos, às suas pedras, e as amparem, as sustentem, como se a todo o momento lhas viessem roubar; e, a não fazerem destarte, que ao menos as respeitem e façam respeitar, a essas velharias que fizeram o burgo, que fizeram a cidade, que fizeram o seu orgulho, que fizeram os “bons burgueses de Vimaranes” de que conta a História!

1 Os mais antigos documentos só assim a denominam. 2 O distinto arquitecto Sr. Baltasar de Castro, alma dedicada e inteligentemente servindo a arte, protegendo-a, amando-a. Que Guimarães lhe seja grato. 3 Quase um barraco que lhe foi encostado, para fazer de sacristia, etc. ...!

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Sobre a história desta pequena igreja, de somenos é o que pode dizer-se; mas, em pesada compensação, para grande empresa é o marcar-lhe a época absolutamente precisa da fundação, que, sendo ignorada, tem sido referida sem firmeza por vários estudiosos; e para que este meu trabalho fique o mais completo possível, tentarei, numa primeira parte, deslaçar a meada de opiniões que foram lançadas sobre o seu nascimento, que em treva de poço se esconde; nas restantes laudas apresentarei o estudo de conjunto da sua arquitectura, detalhando-a o mais precisamente, para que a sua monografia se apresente à gente ledora de arte como cousa a que uma manchazinha de inédito possa dar graça e, quiçá, mais valimento. Acho incompleto tudo o que sobre esta igreja se tem escrito; parece que, por pobrinha e arrecadada cá para o Norte do país, os olhares que lhe deitam são de soslaio e o que dela as penas deixam traçado nos papéis da letra redonda é de fugida. Por mim, sigo o que aconselha inteligentemente F. Alves Pereira4: ”Desnecessário é hoje encarecer as vantagens, que resultam de registar, nas páginas das publicações especiais, todas as relíquias, por mais modestas que pareçam, da arquitectura antiga. Não é simplesmente o edifício monumental e grandioso, que deve ser estudado: nas construções da mais reduzida fábrica, escondidas nas sombras dos campos e relegadas para o fut2do dos vales, há importantíssimos elementos de observação.” Mas, como já larga vai esta pregação, passo à história do fundamento da afamada igreja de S. Miguel do Castelo, que é das mais sóbrias e simples igrejas do “nosso espólio de arquitectura românica, não intacto e puro, mas escalavrado e reduzido”5, contemporânea, segundo Filipe Simões, da igreja de Cedofeita, na cidade do Porto6. A data da sua fundação, desconhecida como foi dito já, é o que vou ensaiar descobrir; anda ela ligada intimamente à origem do Condado Portucalense, pois tão antiga é como ele, se o que ao diante eu escrevei for capaz de demonstrar. Para que se historie S. Miguel do Castelo, para se tentar descobrir seu nascimento, hei que remontar-me longe, revolver-me nas trevas da 4 «Uma fundação de D. Tareja”, in “O Arqueólogo Português”, 1918, pág. 113. 5 “S. Pedro de Rates” — Manuel Monteiro. 1908. 6 “Relíquias da arquitectura romano-bizantina em Portugal” — Filipe Simões. 1870.

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fundação do burgo vimaranense, entre as quais já estrelejam, graças a Deus alguns luzeirinhos clarificantes, devidos a uma falange de mais ou menos certos historiadores; destes, das suas asserções, o Dr. João de Meira — raciocínio belíssimo de interpretações sinceras e bem honestas — alijando de seu coração amores pátrios e bairrismos exagerados — ele, que era um patriota inegável —, arrancou a verdade e varreu as mentiras, pois só assim se pode fazer História conveniente; e é com eles, com esse honesto Professor e com os demais historiadores reputados sinceros, que eu vou em peregrinação aos séculos atrás, amparado com suas memórias, seus escritos, suas asserções e seus sábios raciocínios. Que o eu ir recontar agora alguns factos de história, já por todos sabida, me não seja levado de tal guisa que me acoimem de mero copista ou tolo mostrador de erudição livresca; não, simplesmente sou obrigado a fazê-lo, resumindo ao máximo a história de Giuimarães primitiva, para assim poder encadear bem esta parte toda de raciocínio histórico. Está mais que provado que Guimarães deve sua origem à Condessa Mumadona; nada se encontra em documentos que garanta ter existido alguma edificação ou agregado urbano anteriormente a ela7. Ela sim,

7 “Guimarães nasceu em volta do convento fundado por Mumadona numa quinta sua, no meado do século X. Anteriormente a esta data não existia no local onde nos encontramos qualquer agregado urbano. Como consequência — Nem Guimarães pode ter sido a Araduca de Ptolomeu, nem S. Dâmaso, que viveu no século IV, pode ter sido vimaranense” — João de Meira — Conferência. “Revista de Guimarães” — 1921. N.o 3 Julho. «a villa nuncupata Vimaranes era uma simples propriedade rural onde não existia coisa que se parecesse com a torre, o povoado e a igreja dos crédulos monógrafos. As razões em que fundamos esta opinião (que de resto parece ser a de Gaspar Estaço, Alexandre Herculano, Martins Sarmento e Alberto Sampaio) são demasiado claras para não serem bem recebidas por quantos se interessam por estes assuntos” — João de Meira — “O Claustro da Colegiada” de Guimarães. 1906. N.º 1. Janeiro. “efta villa nam começou de cima, quero dizer do Caftello pera baxo, como alguns dizem, fenam debaxo pera cima, como te mostra pello que temos dito, que é começarffe eIla pello burgo feito iunto ao mofteiro o certo é, que debaxo começou, porque claramente confta do burgo feito en baxo iunto ao mofteiro, e nam confta de algua habitaçam feita en cima. — Gaspar Estaço — “Várias antiguidades de Portugal”.

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ela foi quem povoou Guimarães, fundando o sei convento duplex de frades e freiras, no local onde hoje se encontra a celebrada Igreja de N.ª S.ª da Oliveira a Colegiada de Guimarães, e, lá em cima, o castelo de S. Mamede para defesa do mesmo mosteiro castelo que os reis primeiros acrescentaram e asseguraram melhor8. De tudo isto se conclui, e importantíssima conclusão esta é, que Guimarães, no tempo de Mumadona, era composta simplesmente de Castelo e Mosteiro, à roda dos quais começou a aninhar-se a população Não há documentos que provem que isto assim não era, e todas as opiniões sobre Araduca, e quejandas cidades imaginárias, caíram já sob a crítica do Prof. Dr. João de Meira9; portanto, quando o conde D. Henrique entrou a governar estas terras, cem anos quase se passaram desde as fundações de Mumadona10, vindo encontrar a povoação

“Pelo que pertence ás demais Povoaçoens da Diocefe de Braga, he de advertir que todo o tempo, que corre defde a ruima da monarchia dos Godos, até o Conde D. Henrique, as Povoaçoens das Provincias de Entre Douro e Minho, e Tras os Montes, mais confiftião em Caftellos, e Torres, em que poder defender-te das invafoens dos Arabes, que em Cidades, ou Villas, na forma que hoje vemos, e o nome de Villa fe dava a qualquer Aldea, Lugar ou Cafal, fegundo tenho obfervado nas Memorias Antigas. — Contador de Argote — “Memorias para a historia ecclesiastica do Arcebispado de Braga”. L. VI. C. III. T. III. “Mumadona achou isto deserto, e a ela é que deve considerar-se como verdadeira fundadora de Guimarães... — Pinho Leal — “Portugal antigo e moderno”. 8 Gaspar Estaço, nas suas «Varias Antiguidades de Portugal», cita e transcreve documentos assinados por Mumadona, rogando que conservem o seu castelo e auxiliem, como parte que era do mosteiro; é datado dc 960 (E. de C.). «S. Mamede era hum Caftello, que edificou a condeffa .Mumadona, para defensa do mofteiro de Guimaraens.» — C. de Argote — «Memorias para a historia ecclesiastica do arcebispado de Braga». “Foi provavelmente depois de 998, que se concluiu sobre o alcantilado monte Latito, o forte castelo, com altas muralhas e maciças torres, cercado de profundos fossos...”. “... A velha torre e castello desta cidade foram feitos pela Condessa Mumadona, pelos anos de 957, dando-lhe o título de castelo de S. Mamede, para defesa do mosteiro dobrado (de frades e freiras) que fica na baixa da colina...”. “...É mais provável que a Condessa não terminasse as obras de defesa, pois não consta que elas estivessem em estado de resistência na ocasião das invasões dos mouros, em 967 e 998...” — Pinho Leal— «Portugal antigo e moderno». 9 João de Meira — “O Claustro da Colegiada. de Guimarães”. 10 ldem — “O Concelho de Guimarães”, pág. 53.

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servida da mesma forma por castelo e convento, posto que nada há que firme nova construção importante. E aqui estou chegado a esta conclusão que vem arrastando tão estirado discurso — a igreja de S. Miguel do Castelo não existia quando D. Henrique entrou no seu condado, portanto não é anterior ao século Xl, ou é deste século se foi construída nos seus últimos cinco anos, que foram os primeiros do governo do Conde, o que parece pouco admissível, como adiante justificarei. Afigura-se-me ter sido construída no princípio do século XII, segundo raciocínios que se seguirão quando puser em confronto a sua arquitectura com a de outras igrejas deste século, algumas até dentro do próprio concelho de Guimarães. Para melhor textura deste artigo, antes de referir-me propriamente à história desta velhinha igreja — história que congregará as diversas e já conhecidas críticas ao monumento, assim como a minha muito desapaixonada opinião — tentarei apresentar agora a sua traça arquitectónica, quer geral, quer em detalhes precisos, que julgo sempre importantes. A melhor descrição, e mais completa, que deste templozinho conheço, é devida a Albano Belino11, bom observador e arqueólogo probo, a quem a morte depressa levou e ao qual presto homenagens sinceras. Em cerca de dez páginas, fala-nos da modesta igreja, interessando-se todavia mais com sua história, do que, propriamente, com sua arquitectura. Sem pretender cair em aborrecida e impertinente repetição, vou, no entanto, apresentar a igreja tal como hoje se encontra. Ela é, como quase todas as rústicas e pobres igrejas destas paragens, composta de duas partes rectangulares em seguimento: corpo e altar-mor. A sua altura é pequena; a silharia, de grosseiro granito, bem castigado das afrontas do tempo: — pedras rectangulares, de juntas hoje tomadas a cal e cimento.

11 “Arqueologia Cristã”. 1900.

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O que nos impressiona imediatamente, olhando a sua pesada frontaria, é o campanário, a rematar a cimafronte; campanário banal,

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tendo ao alto, de remate, uma cruz de pedra trilobada, que apresento na fig. XXX. Além do campanário, atraem os olhos quatro repisas, em linha todas, a meio da altura da fachada. Nas faces esquerda e direita do corpo da igreja, existem também modilhões, a meio da altura das paredes, não recurvados como as repisas da frontaria, parecendo-me terem servido a outra alpendrada, continuação da que suportavam aquelas repisas, e que correria pelas três faces, anterior e laterais, da igreja de S. Miguel. Sob ela é que se refluíam, para darem audiência, os juizes da vila do Castelo; da mesma forma se refluíam cá em baixo, sob a galilé de Santa Maria, os juizes da vila baixa ou da Senhora da Oliveira, isto é, os da parte mais moderna da vila de Guimarães12. Julgo-a posterior à fundação da igreja, porquanto as repisas da fachada estão colocadas quase a meia altura das arquivoltas do pórtico; dessa forma sustentada pelas repisas, encobriria parte do fecho do pórtico, o que seria inestético e inaceitável pelo arquitecto do monumento, o seu primeiro arquitecto, ainda que rude e pouco artista. Deveria ser construída mais tarde, por desconhecidas razões, sendo certo que já existia no século XIV, por prova que adiante apresento.

12 Carta régia em 20 de Setembro de 1369 (Arq. Nac. chancelaria de D. Fernando, livro I, fl. 63). Vem citada pelo Dr. João de Meira em “O Concelho de Guimarães”, Tese de doutoramento. 1907.

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Albano Belino dá-a presumivelmente construída no século XVII, e como que fazendo parte dum claustro pertencente aos frades capuchos

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da Piedade, que oficiavam, por empréstimo, na dita igreja. Encontro esta opinião insegura, pois que está provado existir uma alpendrada, e assim ser referida — e não como claustro — na mencionada carta do rei D. Fernando (vide a nota [17] da pág. 12). Desse pretenso claustro não acho memória escrita ou oral, e não iriam os pobres frades, nos quatro anos que viveram (?) ali na humilde Igreja, esperando a construção do seu convento (1664 a 1668), despender dinheiro em tal obra que depois não poderiam levar consigo. Mas, melhor que qualquer prova de raciocínio, lá está a insuspeita carta fernandina. As quatro citadas repisas dessa alpendrada são semelhantes às doutras igrejas, como, para não ir a outra parte, as da fachada da igreja do Espírito Santo, de Moreira13. Entre o campanário e o fecho do pórtico rasga-se urna estreita fenda, parte externa de fresta interior de arregace; a esta se assemelham as outras seis frestas da igreja. Deve notar-se ainda a irregularidade dos silhares da frontaria e a das suas linhas de união horizontais, discordantes, em certos pontos, na direcção. Da fachada, resta falar no pórtico. Esta parte do monumento parece-me bem ter já sofrido mutilações ou desvios, quer dos homens, quer dos tempos. Nota-se logo a ausência de tímpano de pedra; em seu lugar existe um de madeira, em almofadas, obra moderna, assim como as portadas. Se existiu tímpano ou não, desconhece-se. É natural que existisse, porque nos pilares há saliências e friso de suposta sustentação, e porque o arco primeiro ou inferior se me não afigura ser o primitivo e portanto ter havido uma derrocada, por exemplo, do dito arco e com ele o suposto tímpano. Claramente que isto não passa de hipótese e pessoal maneira de ver, como é certo também noutras igrejas haver pórticos com arcos semelhantes a este actual, de lisas aduelas de esquadria, sem relevo algum, nem simples insculturas. O arco superior é toscamente lavrado, dando a união das aduelas ângulos suficientes para lhe quebrar as curvas. O motivo lavrado é o que representa a fig. XXXIII. Assentam os arcos sobre lisos pilares, dos quais um, mais interno e posterior, não denuncia utilidade alguma, a não ser para sustentar o tímpano, que acima referi; esse pilar, em

13 “Igrejas e Capelas Românicas da Ribeira Lima”, por p.e Aguiar Barreiros. 1926. Ed. de Marques Abreu.

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forma de esteio, parece-me ser a prova da existência desse suposto tímpano. Não será grande ousadia afirmá-lo. Ambos os arcos são quebrados, mais o inferior que o superior; neste, o ângulo formado na sua parte mais culminante, é devido um pouco à irregularidade da aduela e friso-limite; tal aduela, a ser como a homóloga ou par, daria a essa curva mais extensa do arco uma forma quase de semi-circunferência e portanto também quase em curva de pleno centro. No entanto, nota-se-lhe uma tendência para a ogiva, o que a Belino não agrada, visto isso não estar de acordo com o estilo romano-bizantino (século X) em que colocou a igreja, repudiando assim a opinião de Vilhena Barbosa que lhe marca, salvo erro, o século XII. Por outros críticos, creio que todos, está dado o monumento como românico (J. de Vasconcelos, Manuel Monteiro, etc.). Basta compará-lo, no geral e nos detalhes, ao da Correlhã, de Bravães, Rates, etc., para ser posta de parte a ideia duma construção romano-bizantina. Adiante voltarei a este assunto, para agora seguir com método a descrição prometida da arquitectura de S. Miguel do Castelo.

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É rematada a lace N. da igreja por uma singela cornija fincada em modilhões muito simples, análogos aos que se vêem nas paredes do claustro românico de N.ª S.ª da Oliveira (Guimarães), aos da igreja românica de S. Salvador de Pinheiro, já nesta Revista por mim estudada, e ainda aos de Travanca, Serzedelo, Sé de Braga (alguns), Escamarão, S. Pedro de Rates; e S. Pedro de Polvoreira, S. Cipriano de Taboadelo, Santa Eulália de Pentieiros, S. Torquato o Velho, S. Martinho de Candoso, etc. (estas cinco últimas no concelho de Guimarães). Além das repisas já atrás referidas, rasga-se nesta parede urna porta com arco de descarga, tão usual nos monumentos românicos do País. É ladeada por dois arcos de volta redonda, embutidos na silharia, limitando assim, cada um, seu nicho; parece terem servido de

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sepulturas14. O da direita é ornado por friso semelhante ao do pórtico da fachada; o da esquerda é simples e menor que aquele; idênticos a estes túmulos, há dois, interiores, na igreja românica de Serzedelo (Guimarães); o túmulo ornamentado é contemporâneo da fundação da igreja, sendo o outro posterior, no meu entender. Duas frestas ou troneiras quebram a luz que ilumina o interior da igreja. A parede sul é semelhante àquela, com porta, repisas, modilhões e frestas análogas. A capela-mor é banalíssima, nada a notabilizando. Derrubada a sacristia, corno atrás referi, apareceu uma porta de volta redonda, na sua parede sul, próximo do muro do transepto; uma fresta de arregace na parede da testeira e modilhões semelhantes aos do corpo da igreja, são as suas únicas características. O transepto é exteriormente rematado por urna cruz de Malta aberta num disco de granito (fig. XXIX). Interiormente, é a igreja muito escura, única e escassamente iluminada pelas frestas que mencionei; pobrezinha e nua, cobre-a um tecto de madeira pregado ao vigamento. O arco cruzeiro, fielmente restaurado sobre as primitivas aduelas, é de centro pleno e a única arquivolta tem por galas duas fitas entrelaçadas, como se vê na fig. XXXII. Teve outrora, aos lados, dois altares15: um dedicado a Nossa Senhora da Graça, da parte do Evangelho; outro a Santa Margarida, do lado da Epístola. É pelo nome desta última santa que é hoje geralmente chamada a igreja, santa com tradições e seus jeitos de milagrosa16. Nas paredes existem ainda, em baixo-relevo, as cruzes preceituais da sagração, realizada em 1239 pelo Arcebispo de Braga D. Silvestre, em honra de “beati Michaeliz ei S. Martirum Saturnini, Juliani, Basiliae, Fusztsti, et Januarii”. A pia em que, segundo conta a lenda, foi baptizado o primeiro Rei de Portugal, D. Afonso Henriques, nada tem de notável: é um bloco rude de granito escavado em gamela, irregularmente circular; a forma exterior é cónica, e só duas caneladuras lhe ornamentam a base e o vértice truncado. Daquela igreja retirada no século XVII, para ornamento da de N.ª S.ª da Oliveira, voltou este ano ao seu primitivo posto.

14 Albano Belino — Ob. cit. 15 P.e Carvalho — “Corografia portuguesa” — 1706. 16 Alberto V. Braga — “Tradições e usanças populares” − 1924. Do autor: «Medicina Popular (segundo a tradição de Guimarães) — Santos Curandeiros., in «Revista Lusitana» — 1927.

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O que de mais importante existe é o seu pavimento, constituído por lajes tumulares que nos indicam a sucessiva passagem de muitos séculos, e todas esculpidas ou gravadas. Entre elas se notam, como mais antigas, as representadas nos desenhos IV (pé duma cruz de Malta), V e VII (cruzes de Malta, sendo uma associada ao Sitio-Saimão), e ainda nas gravuras XXIII e XXIV; curiosas são as que nos mostram primitivas béstas, com estribo, coronha, arco e chave (figuras III, XIX e XXVIII). Besteiros com armas semelhantes podem ver-se desenhados no Livro das Aves (Arquivo Nacional)17; aproximam-se muitíssimo das que vêm desenhadas, por ex., no Museo Militar18. Nas figuras VI e XVI notam-se bem os copos e o punho duma espada; noutras lajes, talvez das mais velhas19, estão representados alguns instrumentos de ofício, corno martelos e machados (fig. XXI, XXVI e XXVII); as mais modernas são as das figuras I, XIII, XIV e XV; uma revela ainda certa inscrição gótica de difícil leitura, por ser incompleta e muito gasta; outra, indicando ama figura humana como em postura adorativa, muito grosseira e comida do tempo, parece-me ser uma escultura bastante primitiva, anterior a qualquer das outras lajes; Albano Belino dá-lhe uma idade muito posterior20. Devo notar que as portas laterais são encimadas interiormente por arcos rudemente tratados, parecendo, no acertado dizer daquele arqueólogo, não terem os nossos respeitáveis antepassados conhecido o uso da régua e do compasso. Assim é, presentemente, a igreja de S. Miguel do Castelo, que foi Capela Real. A sua história é apagada e a documentação da época, a seu respeito, mesquinha. Nos testamentos dessas eras foi a pobre igreja quase sempre esquecida; todo o doador se lembrava de N.ª S.ª de Oliveira, dos Gafos que enxameavam a região, de várias igrejas dispersas por aquelas terras; os morabitinos dos ricos dispersavam-se nessas obras de fé e caridade. Corridas as citadas peças testamentárias, poucas

17 Alexandre Herculano — «Historia de Portugal» 8.ª edição — 1927. 18 “Museo Militar”. — editado por E. Melhastres. Barcelona. Vol. 1.º. 19 A respeito de cabeceiras de sepulturas, vide, in “A Terra portuguesa”, os artigos de Vergílio Correia e Eugeniusz Frankowski — N.º 25-26 — 1918. 20 Albano Belino — Ob. cit.

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logrei encontrar que a mencionassem21; em 1226, Ferdinandi Petri lega pro meu anniuersario ad Ecclesiam Sancti Pellagii et Sancti Jacobi, et Sancti Mickellis de Castello, ei ad leprosos Sancti Andreae singullas quartas de marauitino. ... 22; Gonçallus Gonçalui, em 1232, faz seu testamento em que deixa a Sancto Micaheli de Castello unum marauitinum....23. Já em 1283, Dominicus iohanis, alfaiate, lega a Sancti Micaelis de Castello e outras igrejas sex liberas, ei diuidantur per illas inclusas quae ibi fuerint iunc temporis....24 O primeiro documento que julgo registar a igreja é o que transcrevem Estaço25 e o inolvidável Abade de Tagilde26; trata-se duma composição entre Arcebispo e Capítulo eclesiástico de Braga, duma parte, e o Prior, Cónegos e porcionários de Guimarães, da outra, respeitante ao não pagamento de censo, por estas, às entidades de Braga; as igrejas dêle dispensadas eram, em Guimarães, quator capellae scillicet Ecclesia Sancti Pellagii, Sancti Michaellis de Castello, Sancte Eolaliae de Foramondães, Sancti Michaelis de Crexemir.... Este documento é assinado pelo Arcebispo de Braga D. Estêvam e datado de 1216. As Inquirições de D. Afonso II (1220) não citam S. Miguel do Castelo; as de D. Afonso III (1258) referem-na, mostrando que já era sufragânea de N.ª S.ª de Oliveira (então de Santa Maria) e que fora Capella Domini Regis; antes de 1059, menção alguma dela se faz, nem sequer no importante e insuspeito inuentario de omnes hereditates sive et ecclesias de vimaranes, datado desse ano e pertencente ao Livro de Mumadona27. Logo, 31 anos antes da entrada do Conde D. Henrique não existia ainda. Já o Prof. Dr. João de Meira o indicava como seu fundador; a mesma opinião sigo eu, por várias razões; mandara o Conde reconstruir e ampliar, em 1103, pouco antes da sua partida para a Terra Santa, a Catedral de Braga e a igreja de Santa Maria de Guimarães; já entre 1096 e 1099 oferecia aos cavaleiros franceses que o acompanharam nas lides guerreiras um campo junto 21 “Vimaranis Monumenta Historica”. − colig. por Abade de Tagilde — 1908. 22 “Vim. Mon. Hist.”. Doc. CCXI. 23 “Vim. Mon. Hist.”. Doc. CCXIX. 24 Arquivo da Colegiada de Guimarães. Livro 1.º dos Testamentos, doc. 35.º, fl. 56 v.º. 25 Gaspar Estaço — Ob. cit. 26 “Vim. Mon. Hist.”. Doc. CLXXIX. 27 “Vim. Mon. Hist.”. Doc. XLV.

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ao Castelo — Palatium nostrum Regale — para nele edificarem uma igreja que lhes ficava pertencendo, mais tarde chamada de S. Tiago. Não havendo recinto bastante dentro do Castelo para construir uma capela que servisse à sua Corte nele instalada, é natural que a erigisse cá fora, a dons passos dos seus muros. Demais, era o Conde D. Henrique parente de D. Hugo, abade do famoso mosteiro de Cluny — onde germinou e donde irradiou o ascético estilo românico; as relações entre os dons eram das melhores; e isto, por certo, junto ao fervor das guerras santas na Palestina, que incendiava os corações cristãos desses homens, teria influído no ânimo do Borgonhês para construir novos templos de fé e dotar ou ampliar outros; é provável que então elevasse a Deus aquela pequena igreja de S. Miguel do Castelo, aí por volta de 1103 ou 1104, datas apontadas da sua viagem à Palestina, pertencendo assim aos princípios do século XII. Cotejando-a agora, para documentação arqueológica, com outras igrejas românicas do país, vemos que lhe são muito afins as de Correlhã, S. Cláudio (onde existem sepulturas análogas a algumas de S. Miguel do Castelo)28, S. Abdão, Espírito Santo de Moreira, etc. O pórtico da igreja vimaranense e muito semelhante, por exemplo, aos da capela de Távora e igreja de Serzedelo, para não ir mais longe. Quanto aos modilhões, já atrás ficou dito o que basta. A igreja de S. Miguel do Castelo pertence à geração de tantas ermidas que enfeitam religiosa e candidamente o Norte de Portugal, filhas ou irmãs da Catedral de Braga, fonte de inspiração e fé de canteiros e fundadores. Joaquim de Vasconcelos29 aponta-a entre os monumentos românicos, bem como Filipe Simões30 e Manuel Monteiro31. José Caldas supõe-na do século X32. A igreja de S. Miguel do Castelo, tendo sido construída em princípios do século XII, é legitimamente românica.

Porto, 21 -6-928. 28 Cónego Aguiar Barreiros — Ob. cit. 29 Joaquim de Vasconcelos — Colectânea fotográfica de Marques Abreu — “A arte românica em Portugal”. 30 Felipe Simões Ob. cit 31 Manuel Monteiro — Ob. cit. 32 José Caldas — vide artigo ia “A Arte e a Natureza em Portugal”. 1903.

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