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O Músico Nabor Pires Camargo e a São Paulo do início do século XX Adriana Carvalho Koyama Julho de 2010 Em 1940 um sanitarista dizia, sobre Indaiatuba 1 : O tipo mais comum de habitações é de estilo colonial. [...] Município antigo e pobre e cujo progresso se faz sentir muito lentamente deixa, no entanto transparecer em alguns pontos o espírito modernizador de seu povo. Já são inúmeras as residências que se constroem obedecendo o traçado da arquitetura moderna e que darão em breve um aspecto elegante e moderno à cidade. Esse espírito de tudo destruir para dar lugar ao “novo” tem feito grandes estragos à vida urbana das cidades do interior de São Paulo. Segundo um observador europeu de 1914, O Brasileiro moderno estima que sua civilização atual, as ferrovias, as grandes cidades de aspecto londrino, parisiense ou berlinense, a eletricidade profusa, os incontáveis bondes, os hospitais-modelo, os teatros monumentais, as escolas exemplares, merecem exclusivamente admiração. O prodigioso esforço efetivado no tempo colonial, durante três a quatro séculos, considera-o nada perto daquele realizado a partir de 1880. A glória do Paulista é ser “avançado”. Ele despreza os países [regiões] “atrasados”, esses que somem menos trilhos, menos estações, menos mobiliário vienense em madeira recurvada, mais casas antigas cor de rosa, azuis, marrons e brancas com arcadas, mais igrejas azuis e brancas de dois sinos e com amplos pórticos em estilo jesuíta, mais passantes de ponchos e chapéus de feltro. Toda a tradição e o que dela subsiste é uma injúria lembrar ao Paulista. Ninguém sabe a data inicial das velhas igrejas, nem os nomes dos primeiros arquitetos. ... As pessoas mais instruídas, e que o espantarão por seu saber de filósofos, letrados ou matemáticos, permanecem mudas diante dessas questões rudimentares. Inexoravelmente os paulistas demoliram seus monumentos de outrora, tanto temem, mais que tudo, parecer atrasados! 2 Nesse ambiente viveu o músico Nabor Pires Camargo no início do século vinte. Na vertigem da modernidade, o tempo se encurta, as multidões anônimas nos fazem 1 Tavares, Manoel Ramos, 1940, p.. Arquivo Público Municipal Nilson Cardoso de Carvalho. 2 Paul Adam, apud Barbuy, H., em A Cidade Exposição. São Paulo: EDUSP, 2006.

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O Músico Nabor Pires Camargo e a São Paulo do início do século XX

Adriana Carvalho Koyama Julho de 2010

Em 1940 um sanitarista dizia, sobre Indaiatuba1:

O tipo mais comum de habitações é de estilo colonial. [...] Município antigo e

pobre e cujo progresso se faz sentir muito lentamente deixa, no entanto

transparecer em alguns pontos o espírito modernizador de seu povo. Já são

inúmeras as residências que se constroem obedecendo o traçado da arquitetura

moderna e que darão em breve um aspecto elegante e moderno à cidade.

Esse espírito de tudo destruir para dar lugar ao “novo” tem feito grandes estragos à vida urbana das cidades do interior de São Paulo. Segundo um observador europeu de 1914,

O Brasileiro moderno estima que sua civilização atual, as ferrovias, as grandes

cidades de aspecto londrino, parisiense ou berlinense, a eletricidade profusa, os

incontáveis bondes, os hospitais-modelo, os teatros monumentais, as escolas

exemplares, merecem exclusivamente admiração. O prodigioso esforço

efetivado no tempo colonial, durante três a quatro séculos, considera-o nada

perto daquele realizado a partir de 1880.

A glória do Paulista é ser “avançado”. Ele despreza os países [regiões] “atrasados”, esses que somem menos trilhos, menos estações, menos mobiliário

vienense em madeira recurvada, mais casas antigas cor de rosa, azuis, marrons

e brancas com arcadas, mais igrejas azuis e brancas de dois sinos e com amplos

pórticos em estilo jesuíta, mais passantes de ponchos e chapéus de feltro. Toda a

tradição e o que dela subsiste é uma injúria lembrar ao Paulista.

Ninguém sabe a data inicial das velhas igrejas, nem os nomes dos primeiros

arquitetos. ... As pessoas mais instruídas, e que o espantarão por seu saber de

filósofos, letrados ou matemáticos, permanecem mudas diante dessas questões

rudimentares. Inexoravelmente os paulistas demoliram seus monumentos de

outrora, tanto temem, mais que tudo, parecer atrasados!2

Nesse ambiente viveu o músico Nabor Pires Camargo no início do século vinte. Na vertigem da modernidade, o tempo se encurta, as multidões anônimas nos fazem

1 Tavares, Manoel Ramos, 1940, p.. Arquivo Público Municipal Nilson Cardoso de Carvalho. 2 Paul Adam, apud Barbuy, H., em A Cidade Exposição. São Paulo: EDUSP, 2006.

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companhia, o convívio modorrento da vila torna-se entediante. Esse era o sentimento de muitos dos homens “cosmopolitas” sobre as pequenas vilas em que haviam nascido. Vilas antiquadas, ignorantes das novidades do mundo que vinham de Paris. Vilas de doces que demoram uma vida para cozinhar, de tempo para as conversas, de homens e mulheres que se conheciam a vida inteira, e conheciam, mesmo que de ouvir dizer, os pais e avós dos conhecidos. Vilas de redes sociais estáveis, embora de pouco convívio “social”. As pessoas nas vilas não convivem com desconhecidos, convivem com parentes, compadres e compadres de parentes, nas suas casas, nas festas da Igreja e nos bailes nos sítios. Nesse mundo pequeno também era preciso passaporte para entrar, mas os “cosmopolitas” às vezes se ressentem por não serem bem recebidos com suas credenciais de dinheiro, glória ou letramento. Na vila alguém conhecido tinha que apresentar o recém chegado ao grupo de convívio, e se responsabilizar por sua idoneidade. Aí as portas se abriam, devagar, como em todo lugar. Mas na virada dos anos 1900 os baluartes da vida urbana e letrada reclamam privilégios em relação ao mundo rural tradicional. São “modernos”, têm quase como missão tirar esses “caipiras” das vilas de sua ignorância do mundo, de sua vida sonolenta e arcaica. Nabor Pires Camargo nasceu em Indaiatuba, em 09 de fevereiro de 1902, e viveu sua infância e juventude no coração dessas transformações. Com dez anos era clarinetista da Banda de Indaiatuba, e aos dezessete anos era seu maestro. Com catorze anos começou a trabalhar em seu primeiro emprego, na Companhia Telefônica de Indaiatuba, recém criada. Foi para São Paulo em 1921. Lá estudou música no Conservatório Dramático-Musical de São Paulo, foi clarinetista de uma banda do Exército, da Banda da Lapa, das orquestras dos cines São Bento e Olímpia. Em 1923, com 21 anos, bem no início das transmissões radiofônicas, entrou para a Rádio Record, e foi músico da Sinfônica da Rádio Tupi, da Rádio Gazeta e da Rádio e Televisão Nacional também, além da Sinfônica Municipal de São Paulo. Viveu nesses anos no vórtice de um embate, que hoje poderíamos repensar, para viver melhor, entre o “arcaico” e o “novo”. Suas músicas desse período são registros bem humorados dessa guerra simbólica em que se envolveu, com outros de seu tempo, como Monteiro Lobato, Mário de Andrade e Almeida Júnior. Retratou uma São Paulo com bondes e vacas, caçoava das boinas francesas dos estudantes da elite paulistana e registrava nas músicas a vida da sua vila. Vida “caipira”, gentil, desconfiada de estranhos e de novidades saídas de lugar nenhum. Vila que acabou se rendendo às críticas dos cosmopolitas e destruindo seu patrimônio, para dar lugar aos modernos “bangalôs”, que agora, também já “arcaicos”, estão sendo destruídos. Então aqui vai reproduzida a partitura de Espanta-Vaca, como aperitivo para essa obra tão interessante. Quem quiser conhecer mais, pode pesquisá-la no Arquivo Público de Indaiatuba, ao vivo e a cores, pois são parte do Fundo Nabor Pires Camargo.

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