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MARCOS ARAÚJO DE OLIVEIRA O JOGO DO PALHAÇO EM JOGO ILHA DE SANTA CATARINA 2008

O Jogo Do Palhaço Em Jogo - Marcos Araújo (62p)

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MARCOS ARAÚJO DE OLIVEIRA

O JOGO DO PALHAÇO EM JOGO

ILHA DE SANTA CATARINA

2008

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UNIVERSIDADE DO ESTADO DE SANTA CATARINA – UDESC

CENTRO DE ARTES – CEART

DEPARTAMENTO DE ARTES CÊNICAS

MARCOS ARAÚJO DE OLIVEIRA

O JOGO DO PALHAÇO EM JOGO

Trabalho de Conclusão de Curso apresentado como pré-requisito para a obtenção do título de Licenciado em Educação Artística com habilitação em Artes Cênicas pela Universidade do Estado de Santa Catarina. Orientador: Professor Mestre Toni Edson Costa Santos

ILHA DE SANTA CATARINA

2008

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Dedico este trabalho a todos que já tiveram o coração tocado e um sorriso “roubado” por um palhaço.

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AGRADECIMENTOS

Gostaria de agradecer a todos os que, direta ou indiretamente, foram

fundamentais para a escrita desse trabalho. Aos meus colegas de aula, com quem

tive o prazer de compartilhar momentos de discussões frutíferas. Aos professores

que ajudaram a formar minha visão de teatro.

Em especial aos meus pais, pelo apoio incondicional e pela criação que me

deram, base sólida para a formação do meu caráter.

Gostaria de agradecer também aos mestres do passado. Márcio Corrêa,

Andréa Rihl, Artur Torres, Marisa Naspolini, Rafael Pereira Oliveira, Patrícia dos

Santos, Denise Bendiner, a vocês muito obrigado por me fazerem ter certeza do que

queria para minha vida.

Aos mestres do presente, Professor Níni, Professor Faleiro, Professora Vera,

Professor Milton, Jean Machado, a vocês muito obrigado por me ajudarem a

entender o que é ser professor.

A Trupe Popular Parrua, mestres que me acompanharão no futuro, Júlia,

Mário, Toni e Veruska. Enumerar tudo aquilo que sou grato a vocês seria muito

complicado, portanto agradeço por confiarem em mim.

Amenduim, muito obrigado por desde o dia 18 de julho de 2005 estar

presente em todos os momentos da minha vida. Que assim continue por muitos

anos, minha amiga, companheira, artista e inspiração.

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Existem poucas coisas mais sérias que um palhaço. Poucas coisas são mais bem organizadas que um circo, e apesar disso, a linguagem cotidiana ainda chama o circo de caótico ou desorganizado, e o palhaço de pusilânime, ou de sem personalidade. Talvez a subversão dos conceitos, a perversão da linguagem, nos obrigue a reivindicar algum dia a precisão dos termos José Mª Armero e Ramón Pernas

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RESUMO

Esse trabalho não tem a intenção de ser uma cartilha para a iniciação ao jogo do palhaço, apenas investigar questões importantes em sua construção. Ele busca traçar um panorama histórico do palhaço e se aproximar dos momentos em que seu jogo foi desenhado. Usando como base a história do teatro ocidental, mostra alguns de seus antepassados. Através de entrevistas com participantes do extinto grupo Atormenta busca entender como se relacionar com o jogo do palhaço na prática. Aproximando teóricos e os entrevistados, aponta questões fundamentais para esse jogo e busca uma síntese que explique que jogo é este. Busca indicar ainda, onde o jogo do palhaço pode ser utilizado, como abordá-lo através de teóricos, como Stanislavski, ou pela dramaturgia através da obra de Shakespeare, Brecht ou Beckett. Chama atenção ainda, para o palhaço como uma linguagem teatral, não como apenas um tipo que usa nariz vermelho, roupas largas que geralmente aparece no circo.

Palavras-chave: Palhaço. Clown. Jogo teatral.

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SUMÁRIO

VAI, VAI, VAI, COMEÇAR A BRICADEIRA... ................................................... 07

1. E O PALHAÇO O QUE FOI?

FOI LADRÃO DE BOI! ................................................................................... 10

2. HOJE TEM FORROBODÓ?

TEM SIM SINHÔ! ........................................................................................... 20

3. Ó RAIA O SOL, SUSPENDE A LUA

OLHA O PALHAÇO NO MEIO DA RUA! ...................................................... 33

E O PALHAÇO O QUE É?

É LADRÃO DE MULHER! ................................................................................. 40

BIBLIOGRAFIA .................................................................................................. 43

ANEXOS.............................................................................................................. 45

ANEXO A – ENTREVISTA BASE........................................................................ 45 ANEXO B – ENTREVISTA DE PEDRO ILGENFRIZ........................................... 46 ANEXO C – ENTREVISTA DE MÁRCIO CORRÊA............................................. 49 ANEXO D – ENTREVISTA DE GERALDO CUNHA............................................. 54 ANEXO E – ENTREVISTA DE ANDRÉA RIHL................................................... 58

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VAI, VAI, VAI, COMEÇAR A BRICADEIRA...

Se decidisse pensar momentos fundamentais, da minha curta trajetória

teatral, para chegar à forma de teatro em que acredito hoje, sem sombra de dúvidas

lembraria dos momentos maravilhosos que tive com o grupo Legião de Palhaços, as

experiências de teatro de rua como o Mulher de Corpo em Cheiro, os processos de

criação coletiva iniciados com Drama Turgot, o envolvimento com o teatro de

animação através do espetáculo Agora Pia!!!, culminando na Trupe Popular Parrua,

que se encontra em processo de fundação por meus “companheiros de armas” 1.

Analisando esses momentos especiais da minha vida, pude perceber que algo

sempre tem me acompanhado ao longo desses anos: a figura do palhaço e o seu

jogo teatral.

Questionado certa vez, em uma mostra de teatro em que participávamos com

dois espetáculos distintos em linguagem, um de rua e outro de animação, sobre qual

era o foco do nosso grupo, veio à luz esse trabalho. Percebi, com a resposta, que o

que une não só os dois trabalhos em questão, mas todo o contexto teatral em que

me envolvo, é a visão do jogo teatral. Naquele momento olhei para um integrante do

grupo e orientador deste trabalho, Toni Edson Costa Santos, e soubemos que esse

seria o foco da minha pesquisa.

Com este trabalho aponto questões que circunscrevem o jogo do palhaço. O

palhaço a que me refiro, pode ser encontrado no circo, no teatro ou no cinema.

Alguns que praticam essa forma teatral preferem chamá-lo de clown.

A palavra clown tem como origem etimológica clod, que significa homem do

campo, rústico, homem desajeitado, grosseiro. O Clown, na pantomima inglesa, era

o comediante principal e tinha as funções de um servo (BOLOGNESI, 2003). Por

outro lado a palavra palhaço2 vem do italiano paglia, que significa palha, referente ao

1 Termo utilizado por Grotowski ao se referir que tipo de relação quer ter com seus alunos. 2 A palavra usada em italiano é pagliaccio que tem como tradução para o português palhaço, bem como a palavra inglesa clown.

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tipo de vestimenta que esses personagens usavam. Eram roupas do mesmo tecido

que os colchões e tinham enchimentos para proteger nas eventuais quedas em

acrobacias, fazendo com que quem as vestisse se parecesse com um colchão.

Como esses eram de palha, foi chamado de palhaço (BUNIER, 2001).

Segundo Luís Otávio Burnier, palhaço e clown são termos distintos para

designar a mesma coisa. Mesmo identificando que existem linhas de pesquisa

diferentes dentro dessa linguagem, o autor não associa diretamente nenhuma

dessas linhas aos termos supracitados. Opto pelo uso da palavra palhaço, para me

referir a esta personagem, buscando o fortalecimento do nacional. Afinal, palhaço é

a palavra que representa esse personagem no Brasil.

Para fazer uma homenagem aos palhaços brasileiros, o nome de cada

capítulo foi retirado de uma chula3, que é como ficaram conhecidas as músicas que

nossos palhaços cantavam. Todos os trechos utilizados são de domínio público e

foram cantados por diversos palhaços em folguedos e folias.

Analiso o jogo através da ótica de quem pratica, em seu trabalho, questões

relativas ao palhaço. O jogo do palhaço está ligado ao momento em que ocorre, o

presente. Para explicá-lo, busquei o responsável pela minha introdução a este

mundo, Márcio Corrêa e o extinto Grupo de Pesquisa Teatral Atormenta, onde ele

iniciou sua pesquisa. Utilizei-me de entrevistas para me aproximar do que os

participantes do grupo entendem por jogo do palhaço. Infelizmente, não tive acesso

a todos os que integraram o grupo. Da formação que permaneceu por mais tempo,

não foi possível entrevistar as atrizes Andréa Padilha e Vanderléia Will, pois

estavam na Europa em temporada. Porém, os demais participantes foram

entrevistados. São eles: Andréa Rihl, Geraldo Cunha, Márcio Corrêa e Pedro

Ilgenfritz. Cada um com uma forma peculiar de ver o jogo, que tentei transcrever

sem fazer alterações, pois com exceção de Pedro, que foi entrevistado via e-mail,

todos os outros foram entrevistados ao vivo e o modo como falam revela muito do

3 O termo Chula é utilizado para diferentes estilos de música. Pode ser sinônimo de fandango,

no sul do Brasil, dança e canto acompanhado de guitarra e percussão, no norte de Portugal, e ainda um dos nomes do samba. Esta definição de João da Bahiana, em entrevista a José Ramos Tinhorão, em 1971, faz uma interessante ligação entre chula, o samba, os palhaços do carnaval e os do circo: “antes de falá samba, a gente falava chula. Chula era qualquer verso cantado. Por exemplo: os versos que os palhaços cantava era chula de palhaço. Os que saía vestido de palhaço nos cordão-de-velho (grupos carnavalescos em que os participantes fantasiavam-se de velhos, com enormes cabeças de papelão) tinha chula de palhaço de guizo. Agora tinha a chula raiada, que era o samba de partido auto. Podia chamá chula raiada ou samba raiado. Era a mesma coisa.” (CASTRO, 2005, p. 104)

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que querem dizer. A entrevista de cada um deles está anexada ao final deste

trabalho.

O jogo do palhaço é físico e prático, portanto seria limitado buscar suas

referências apenas nos livros. O Atormenta foi um grupo que focou sua pesquisa na

personagem fixa, o palhaço. Por isso foram a base do trabalho.

Esse trabalho se divide em três capítulos. Em meu primeiro capítulo busco

traçar um panorama histórico do palhaço e me aproximar dos momentos em que seu

jogo foi desenhado. Usando como base a história do teatro ocidental, pontuo alguns

personagens que considero “antepassados” do palhaço.

No segundo capítulo aponto as questões fundamentais para esse jogo.

Aproximando teóricos e os entrevistados, busco uma síntese que explique que jogo

é este.

O terceiro capítulo traz o grupo Atormenta e como cada participante

entrevistado se relaciona com o jogo, trazendo uma etapa da iniciação de cada um e

a visão de sua prática.

Na conclusão indico onde o jogo do palhaço pode ser utilizado, como abordá-

lo através de teóricos, como Stanislavski, ou pela dramaturgia através de

Shakespeare, Brecht ou Beckett. Inicio a discussão de como funciona o jogo do

palhaço em outras formas de construção que não somente a clássica do nariz

vermelho.

Este trabalho não tem a intenção de ser uma cartilha para a iniciação ao jogo

do palhaço: deseja investigar as questões que julgo importantes em sua construção.

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1. E O PALHAÇO O QUE FOI?

FOI LADRÃO DE BOI!

Se tudo tem um começo, e o palhaço o que foi? Onde e como surgiu essa

figura de nariz vermelho, cabelo e roupas esquisitas que não sossega enquanto não

roubar um sorriso? Creio que se fosse possível saber quando o ser humano riu pela

primeira vez, poderíamos mapear com extrema precisão o surgimento dessa

personagem. Pois é no riso que o palhaço se pauta, em fazer rir. Segundo Dimitri4,

em seu artigo intitulado O mais nu dos artistas, “Se não for engraçado, o clown não

é um clown. Afora isto, ele tem todos os direitos” 5. Claro que não podemos pensar

que se alguém ri é porque está diante de um palhaço. Mas certamente se pode dizer

que quem, ou o que o fez rir, é um elemento a ser explorado pelo palhaço.

Esses elementos, que variam entre trejeitos e situações, foram sempre

explorados por personagens cômicas ao longo do tempo, elementos que transpostos

para o teatro formam o que chamamos de jogo. Patrice Pavis define, em seu

Dicionário de Teatro: “Em francês, a palavra jeu tem inúmeras acepções. Em teatro,

ela pode ser aplicada à arte do ator (o que se traduz em português por atuação,

interpretação), à própria atividade teatral”. (PAVIS, 2003, p.219).

É sabido que o riso esteve presente em muitos rituais para espantar o medo.

Alice Viveiros de Castro no livro O Elogio da Bobagem: palhaços no Brasil e no

mundo, afirma

4 Dimitri é um dos palhaços mais respeitados do mundo, estudou mimo com Etienne Decroux e também foi membro da trupe de Marcel Marceau, tendo iniciado sua carreira no Circo Medrano onde fazia um número em que era Augusto de Maïss, um famoso Clown Branco da época (Os termos Branco e Augusto serão aprofundados no decorrer desse trabalho). Dimitri fundou em 1975 o Teatro Dimitri em Verscio/Suíça, em 1978 a Scuola Teatro Dimitri e em 2000, junto com Harald Szeemann, o Museo Comico também em Verscio. Informações retiradas do site: http://www.clowndimitri.ch/e/clown_dimitri_short_biography.htm acessado em 12 de outubro de 2008, as 17h32min. 5 DIMITRI. O mais nu dos artistas. In: Clowns & Farceurs. Paris: Ed. Bordas, 1982, p. 36-37. Tradução de Roberto Mallet. Disponível em: http://www.grupotempo.com.br/tex_nu.html acesso em 1° de nov de 2008 às 15h23min.

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O riso surge nos momentos mais dramáticos, como válvula de escape nas tensões do grupo. Os antigos perceberam isso e o riso sempre fez parte dos rituais sagrados. Assim, em diferentes culturas encontramos a figura de mascarados que dão gritos e dançam danças exageradas, provocando espanto, medo e, por isso mesmo, o riso. Algo próximo ao medo que as crianças pequenas sentem do palhaço. (CASTRO, 2005, p.18).

O riso para espantar o medo é utilizado ainda hoje em muitos jogos de

palhaço. Funciona como uma “válvula de escape”. Se há algo que amedronta o

palhaço, ele satiriza essa situação. A figura de um “valentão” ou de um galanteador

que quer lhe roubar a namorada, por exemplo, assim que mostra suas garras, é

imitado (na maioria das vezes pelas costas) com trejeitos tão exagerados que se

tornam risíveis.

Como alguns seres humanos já acharam uma maneira de se defender dos

seus medos, apontando o ridículo de si e do outro através do riso, podemos

identificar figuras que se assemelham ao palhaço em todas as civilizações. Eram

mascarados nos rituais primitivos, bobos e bufões que acompanhavam reis,

príncipes e faraós. Satirizando a si mesmos e aos seus mestres.

Na Grécia, dito berço do teatro ocidental, existiam os “parasitas”, que eram os

que divertiam os banquetes dos filósofos. No princípio essa denominação era

utilizada para os sacerdotes que dedicavam os banquetes aos deuses. Depois

passaram a ser assim denominados todos os que faziam rir nessas ocasiões.

Segundo Alice de Castro existiu um “parasita”, Philipos, que com suas imitações,

fazia todos rirem. Um dia Sócrates tentou calá-lo e foi imitado com tamanha

perfeição que quem se calou foi o próprio filósofo.

Percebemos aqui a presença de outro contexto da imitação com a

preocupação de fazer rir, não mais pensando apenas em expurgar o mal. Seria

simplório analisar que essas imitações nos fazem rir de uma forma rasa, pelo

contrário, sempre possuem uma forte crítica. Certamente ao se deparar com a

própria arrogância, Sócrates se calou. É ao nos identificarmos com uma

personagem que surge o inusitado, fazendo-nos reagir de diferentes maneiras.

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Outro exemplo, desta vez mais próximo da nossa sociedade atual, é quando

Mazzaropi6, em seus filmes, mesclados de poesia e graça, o jeca aparece como

“ignorante”. Com isso nos deparamos com o ignorante que somos e por isso o riso é

inevitável.

Pode-se perceber, com esses exemplos, que o palhaço é muito pessoal.

Pedro Ilgenfritz7, perguntado sobre o que reconhece de seu palhaço quando faz

outras personagens, em entrevista concedida para este trabalho, responde:

A gente cria a matriz do jogo, que é a forma que cada indivíduo joga. E isso tá ligado à história pessoal, ao talento, a disciplina, a Fisiologia (uso do corpo, reflexos, nervos, músculo, equilíbrio e etc.), a imaginação, sentido de observação da realidade, ideologia e classe social. Em resumo, quem a gente é. Todos os personagens vão ser variações dessa matriz, dessa forma de jogar. Desse clown fundamental, dessa maneira de ver o mundo. Dessa forma de reagir. O Peidolito [nome do seu palhaço] hoje dá aula de teatro, dirige espetáculos. Não que o meu clown faça isso tudo, mas é o artista que é o Pedro que faz isso tudo.8

Outra forma teatral que influencia muito o jogo do palhaço, também da

Grécia, são os mimos. Hoje, o senso comum entende por mimo representações

teatrais sem fala. Patrice Pavis define que mimo, em uma forma mais ampla, é a

“arte do movimento corporal” (2003). Porém, na Grécia Antiga, assim ficaram

conhecidas as trupes ambulantes vindas da região dórica. Eles representavam

cenas cômicas onde utilizavam técnicas de acrobacia, malabarismo e

funambulismo9. Os mimos também utilizavam a fala para imitar pessoas influentes

da sociedade. Atividade semelhante ao que fazem os circos-teatro nas cidades em

que se instalam.

Muito próximo da Grécia estava a terra do circo, Roma. Não me remeto aqui

ao circo moderno, com lona, picadeiro, números aéreos, e claro, o palhaço. O circo 6 Amácio Mazzaropi foi um cineasta brasileiro que mergulhou a fundo no universo cômico/poético da roça. Com mais de trinta filmes gravados em que ele se envolveu diretamente, como ator, produtor ou diretor, Mazzaropi é tido por muitos como o Carlitos brasileiro (personagem criado e representado por Charlie Chaplin em toda a sua trajetória artística). Assim como Chaplin, ele representou por toda a sua carreira, que começou no circo-teatro, um único personagem: o Jeca. 7 Pedro Ilgenfritz é ator e diretor de teatro formado pela UDESC em artes cênicas, fez parte do Grupo de Pesquisa Teatral Atormenta durante os anos 90. Em 2000 foi morar na Nova Zelândia e em 2005 concluiu seu mestrado com ênfase em direção teatral estreando o espetáculo de clown The Spot. 8 Entrevista de Pedro Ilgenfritz concedida ao autor desse trabalho, em 05 de outubro de 2008, por correio eletrônico. 9 Funâmbulo: palhaço que anda ou dança na corda bamba; volteador. Definição retirada do site: http://www.priberam.pt/dlpo/definir_resultados.aspx acessado em 13 de outubro de 2008 as 00h38min.

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em Roma teve o papel de entretenimento e diversão, bem como o nosso, porém a

visão de entretenimento dos romanos daquela época é bem diferente da nossa.

Foram “espetáculos” onde os escravos eram colocados em batalhas sangrentas,

quase sempre em desvantagem de condições (um homem contra um leão, ou um

gladiador com um gládio10 contra outro com armadura escudo e um machado). Entre

atrocidades, era distribuído ao povo alimento. Política essa, que ficou conhecida

como “Pão e Circo”.

Em uma sociedade tão violenta, onde estariam os palhaços? Segundo Alice

de Castro (2005), eles estavam nas casas dos nobres romanos. Cada nobre teria,

para seu próprio divertimento, uma trupe de anões. Fácil compreender, em uma

época em que o corpo era extremamente valorizado, tornar-se risível a deformação.

Essas trupes eram compostas por anões corcundas e feios. Os romanos se

surpreendiam tanto com uma sátira inteligente, vindo de um ser aparentemente

inferior, que em um momento de inspiração, alguns palhaços tornavam-se sábios.

Vemos aqui, o nascimento de um antepassado do palhaço, o bobo da corte.

A figura do imitador, também não sumiu em Roma. Era conhecido como

Stupidus. Utilizava um gorro de feltro em forma de cone e um traje de retalhos que

lembra a roupa do Arlequim.

Com a queda do império romano do ocidente, surge a Idade Média. Durante

um grande período foi vista como um vácuo na história, a “Idade das Trevas”. Porém

ao ser analisada com mais afinco, percebeu-se que não é tão inóspita. Num mundo

centralizado pela religião, engendrado no fundamentalismo, com cidades

desestruturadas, o poder central desaparecido, ou melhor, nas mãos da Igreja, é

fácil pensar no motivo pelo qual a Idade Média foi vista dessa forma. Os artistas

tinham poucas opções. Uma delas era ceder aos interesses da sociedade

produzindo arte sem o mínimo de liberdade (vê-se, ainda hoje, artistas que não se

importam em vincular sua arte aos poderosos, felizmente, eles não são a maioria),

outra opção era formar grupos itinerantes passando de feudo em feudo, castelo em

castelo, em cada feira, vendo sua arte ser negada e escondida pelo sistema regente.

Lá estavam os artistas, onde deveriam, no meio do povo.

10 Gládio: Espada de pequeno porte e lamina larga de dois gumes. Definição retirada do site http://www.priberam.pt/dlpo/definir_resultados.aspx acessado em 16 de out de 2008 as 15h05min.

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Um exemplo contemporâneo de um palhaço nascido da relação com o povo é

Luiz Carlos Vasconcelos11, o palhaço Xuxu. Alice de Castro dedica a ele um

Capítulo do livro Elogio da Bobagem, que começa da seguinte forma: “Enquanto

alguns iam para a Europa encontrar “seu clown”, lá no nordeste – na Paraíba para

ser mais exata – uma outra vertente se abria (...)”. Em seguida traz um depoimento

do próprio Vasconcelos à revista Folhetim, do grupo Teatro do Pequeno Gesto, de

maio de 1999, dizendo como se iniciou à arte da palhaçada:

Assim foram quatro anos, todo sábado, às três da tarde, a passear cercado de meninos, a cantar e a descobrir, a inventar. Ao invés de ensaiar numa sala como todo mundo, para construir um palhaço, eu fui violentado na rua [...]. (VASCONCELOS apud CASTRO, 2005, p. 213).

Se analisarmos o renome e a importância de Vasconcelos para os palhaços

brasileiros, podemos entender o que acontece quando o artista está perto do povo.

Xuxu é uma releitura de muitos artistas que foram “violentados”, como na Idade

Média. Margot Berthold, no seu livro História Mundial do Teatro (2003), atenta que

ao analisar os pórticos das igrejas, que datam da Idade Média, veremos a figura de

bufões, saltimbancos, dançarinos e domadores de animais. A sociedade precisava

aliviar suas tensões de alguma maneira, assim se recriaram as Saturnais romanas.

Essas festas eram momentos em que os escravos se vestiam como patrões e

celebravam a Idade do Ouro em igualdade e harmonia com os mesmos.

As Saturnais, que passaram a ser conhecidos como Festa dos Loucos, era

uma data em que os estudantes e membros inferiores do clero subvertiam o poder e

rezavam missas com roupas extravagantes e repletos de lascívia e escárnio. Nessas

festas surgiram muitos poetas satíricos e cômicos, para sanar a necessidade do

povo de rir de si mesmo (CASTRO, 2005).

A personagem mais relevante para a formação do palhaço na Idade Média foi

o bobo da corte. O bobo, que aparece em muitas culturas anteriores, como no Egito,

na Grécia ou em Roma, recebeu a forma que conhecemos hoje nessa época. Alice

de Castro (2005) diz que;

11 Luiz Carlos Vasconcelos fundou em 1977 a escola de teatro e circo Piolin, realizou o 1º Festival de Palhaços da Paraíba em 1983, o 2° Encontro de Palhaços em 1997, e realizou também o Riso da Terra (Feira de Arte Popular Cômica, Encontro Mundial de Palhaços e Fórum do Riso) em 2001. Alice de Castro o aponta como causador da aproximação dos nossos palhaços aos palhaços do folguedo e dos pequenos circos, como Polydoro, Pompílio, Piolin, Arrelia, Carequinha e Picolino.

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Na cabeça, um chapéu cheio de longas pontas com guizos em cada uma delas. Na mão, um cetro – a marotte –, símbolo da loucura. A roupa colorida, com triângulos de cores diferentes, como a de um Arlequim. Na cintura, uma espada de madeira e um bastão com uma bexiga de porco cheia de ervilhas secas que, de quando em quando, ele bate no chão, pontuando suas brincadeiras com um som forte e cômico [...] Durante a Idade Média, onde houvesse um senhor, um poderoso, fosse ele um conde, barão, bispo, abade, príncipe ou rei, haveria um bobo. Uma corte que se prezasse deveria ter pelo menos um bobo para divertir o senhor e seus convidados. (CASTRO, 2005, p. 32).

Os bobos eram o braço direito de seus senhores. Por gozarem da confiança

de seus mestres eram muito invejados na corte. Eram considerados loucos e,

portanto, tinham a liberdade de falar o que quisessem. Eles satirizavam seus

mestres e mesmo assim lhes tiravam risadas.

As sátiras feitas pelos bobos se assemelham aos jogos mais elaborados de

palhaço. Segundo Geraldo Cunha12, em entrevista concedida para este trabalho, um

palhaço bem construído é capaz de se relacionar com qualquer coisa,

estabelecendo uma lógica própria, que não é a do ator, e sim a da personagem.

Através dessa lógica, ele faz uma crítica inteligente da sociedade em que vive. Essa

crítica é visível já nos bobos da corte e em todos os imitadores que lhe

antecederam.

Outra forma de teatro popular que é forte influência ao jogo do palhaço é a

Commedia dell’Arte. Seus integrantes eram artistas remanescentes da Farsa

Atelana13, que permaneceram perambulando entre as vilas, se apresentando nas

festas e em espetáculos populares até que sua arte se disseminasse por toda a

Europa.

Nesse momento não se vivia mais a intensa repressão da Igreja, a sociedade

voltou seu olhar para os ideais gregos, desenvolveu um olhar antropocêntrico,

período histórico que ficou conhecido como Renascimento.

A Commedia dell’Arte, cujo auge acontece nesse período, trabalha com

personagens tipificadas e oriundas de diferentes regiões, como na Farsa Atelana.

12 Geraldo Cunha é ator e diretor de teatro de Florianópolis, formado pela UDESC – Universidade do Estado de Santa Catarina. Dirigiu o Grupo de Pesquisa Teatral Atormenta durante todo o percurso do mesmo (1989 à 1998). Como ator criou o personagem Seo Maneca, que toda a Ilha de Santa Catarina conhece. Personagem com o qual ele ainda trabalha, usando a lógica clownesca a que ele dedica sua pesquisa artística. 13 A farsa Atelana foi um gênero teatral que iniciou na cidade de Atela e se encaminhou para Roma. Eram peças que trabalhavam com personagens fixas e tipificadas que como na Grécia fechavam os festivais para dar final cômico/grotesco as peças históricas e tragédias nos Ludi Romani. (BERTHOLD, 2003)

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Cada personagem é representada por uma máscara que é a síntese de todos os

elementos presentes em sua construção. As peças eram baseadas em roteiros,

chamados canovacci, e improvisadas a partir do repertório de cada ator. A esse

repertório de improviso foi dado o nome de lazzi.

Os lazzi são jogos físicos que os commediantes acumulavam em cada

representação, reutilizando-as sempre que se deparavam com uma situação

semelhante. Os lazzi estão na essência das gags dos palhaços, principalmente nas

gags físicas. É o que destaca Alice de Castro:

Todas as cenas de pé na bunda, tapas, trambolhões, perseguições e esconde-esconde que encontramos nos picadeiros e palcos de hoje têm sua origem em tempos imemoriais, e foram reelaboradas e transformadas com apuro técnico e maestria, durante os séculos XVI, XVII e XVIII, pelos Mestres dell’Arte. (CASTRO, 2005, p.44).

Esses lazzi estavam principalmente nas cenas dos empregados ou servos: os

Zanni. Comumente esses eram os personagens que movimentavam a ação.

Apareciam em duplas: um muito esperto e o outro muito estúpido. Esse paradoxo

ajuda a obter uma harmonia em cena. Identificamos esse jogo também nas duplas

de palhaços, o Clown Branco e o Clown Augusto. Essa relação, “familiar”, segundo

Márcio Corrêa14 em uma entrevista concedida para esse trabalho, configura o

equilíbrio:

Você pode ter uma dupla de “Brancos”. Eles vão, de alguma forma, sempre entrar em atrito, ou vão achar cada um o seu comparsa, escravo, ou servo. Um pode achar um rato e o outro uma barata para escravizá-los. Mas eles sempre vão necessitar de uma outra pessoa. Mas quando é um “Branco” e um Augusto eu acho que é uma relação familiar. Isso a história comprova, existem inúmeros duos, você pode pegar o desenho animado, o cinema, o circo. 15

A relação desses duos a que Márcio Corrêa chama a atenção pode se pautar

não somente no jogo físico, como na Commedia dell’ Arte, mas também no jogo da

palavra, semelhante ao dos prestidigitadores e dos charlatões, presentes nas feiras

e nas ruas do Renascimento. Eles usavam a verborragia para prender a atenção do

público e vender os mais distintos elixires. Esses prestidigitadores são vistos ainda

14 Márcio Corrêa é ator e diretor formado pela Universidade do Estado de Santa Catarina – UDESC, Possui o único circo de pulgas do Brasil (espetáculo de animação onde “pulgas amestradas” apresentam números clássicos circenses como corda bamba e o canhão). Devo a ele o desejo de trabalhar com o tema do palhaço, pois foi e ainda é um grande mestre. 15 Entrevista de Márcio Corrêa concedida ao autor desse trabalho, em 10 de outubro de 2008, em Jaraguá do Sul -SC.

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17

em todas as grandes cidades do mundo. Eles são capazes de deixar o seu

espectador tão confuso, que depois de achar ter feito a “compra da sua vida”, é

comum se questionar: “para que comprei isto?”

Exemplo de palhaço que utiliza o jogo verborrágico é Groucho Marx, um dos

Irmãos Marx16. Groucho é tão hábil com as palavras, que é capaz de ludibriar todos

em seus filmes. Como espectador, sinto-me tentado a concordar (por vezes até

ludibriado), com a lógica absurda do seu discurso retórico.

Apesar de o palhaço vir sendo esboçado por inúmeras manifestações, é em

1768 que ele aparece da forma como o vemos ainda hoje, no circo. Essa é a data

em que o suboficial da cavalaria inglesa, Philip Astley, cria uma arena de 13 metros

de diâmetro em um edifício fechado onde se apresentavam números eqüestres.

Essa arena é o que conhecemos por circo moderno. (BOLOGNESI, 2003).

As apresentações sobre cavalos eram comuns naquela época, porém Astley,

ao transportá-las para um espaço fechado, possibilitou que fosse cobrado ingresso,

Assim, os “montadores” poderiam seguir uma carreira profissional. Mário Fernando

Bolognesi, em seu livro Palhaços nos traz alguns dos números que eram

apresentados no chamado Anfiteatro Astley:

De início, o espetáculo concebido por Astley comportava apenas apresentações com cavalos, em várias modalidades: volteios de cavalos livres, que obedeciam à voz de comando de um treinador, executando evoluções, com ou sem obstáculos; cavalos montados por acrobatas que executavam saltos, pirâmides e outras evoluções em seus dorsos; pantomimas envolvendo cenas militares; mimodramas com cavalos e cavaleiros, quase sempre aludindo aos grandes feitos da história militar e outras demonstrações circunstanciais de destreza. (BOLOGNESI, 2003, p.32).

Como os números criavam uma tensão muito grande no espectador, era

necessário achar um momento em que o público pudesse respirar e se preparar

para o próximo número. Aí surge o palhaço. A aparição do palhaço era para aliviar

as tensões, ele satirizava os números apresentados pelos acrobatas. O número

clássico de sátira ao espetáculo eqüestre é quando o palhaço se prepara todo para

16

Os Irmãos Marx levaram para as telas características pessoais marcantes no teatro: Groucho (Julius Henry Marx) representava a sociedade burguesa, com roupa e jeito de homem ocupado; Chico (Leonard Marx) representava o intriguista refinado, que falhava muitas vezes; Harpo (Adolph Arthur Marx) era o intérprete de harpa, com sorrisos luminosos e um chapéu-de-coco, sempre mudo; e Zeppo (Herbert Marx), que se retirou em 1933, depois de atuar em cinco filmes, personificava o bon-vivant. Informações retiradas do site: http://biografias.netsaber.com.br/ver_biografia_c_683.html acessado em 26 de out de 2008 às 18h25min.

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montar no cavalo, arruma do chapéu ao sapato e em um pulo cai sentado sobre o

cavalo, porém virado para o rabo do animal e logo repara que há algo de errado.

Teria o cavalo perdido sua cabeça? Por aí segue o jogo até que ele perceba que

montou ao contrário.

Esse tipo de aparição do palhaço ficou conhecida como reprise, pois o

palhaço teria reprisado às avessas um número do próprio circo. (BOLOGNESI,

2003). Márcio Corrêa conta que, ao chegar a uma idade avançada, o acrobata, por

não conseguir mais executar seu número com a agilidade da juventude, se dedica à

arte do palhaço. Se por um lado a agilidade não é a mesma, por outro ele se tornou

tão experiente a ponto de poder fazer seu número às avessas.

A reprise tem o mesmo teor de crítica que vimos com o “parasita” Philipos. É

ridicularizando a si mesmo, como acrobata, que o palhaço nos faz pensar como nos

impressionamos com nossas habilidades.

O palhaço permanece no circo moderno, e com o passar dos anos, ele foi

adquirindo mais funções em prol do espetáculo. Jesús Jara, em seu livro El Clown,

um navegante de las emociones, narra a mudança de status do palhaço. “Ele

passou de um simples ‘tapa buracos’, cujo papel era dar tempo para realizar as

mudanças necessárias para o próximo número, a um elemento indispensável para

qualquer circo que se preze” 17 (JARA, 2002, p. 32).

A partir daí surgiram tipos distintos de palhaços, gags, números e esquetes.

Hoje não se imagina o circo sem palhaço. Uma lona, um picadeiro e um palhaço, e a

multidão já sabe: hoje tem espetáculo.

Apesar de ter “crescido” no circo, o palhaço não ficou apenas no picadeiro.

Ele enveredou por outras artes. O cinema, por exemplo, foi um espaço onde o

palhaço teve uma relevante aparição. Basta lembrarmos de Charlie Chaplin, Buster

Keaton, Jacques Tati, Os Irmãos Marx, Os Três Patetas, O Gordo e o Magro,

Mazaroppi, Mister Beam e tantos outros palhaços do cinema mundial.

Outro exemplo da presença do palhaço na atualidade são as inúmeras e

escolas e cursos de teatro que formam os “palhaços de palco”. Essas escolas vão

17 Livre tradução do autor desse trabalho. Original: Ha pasado de ser un simple relleno al principio, cuya función era hacer tiempo para que se realizaran los cambios necesarios para el siguiente número, a convertirse en un elemento indispensable para cualquier circo que se precie.

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desde a famosa Escola Jacques Lecoq18, na França, até os cursos que se podem

encontrar com facilidade19 para atores em formação.

O palhaço no teatro, por muitos chamado de clown, encontrou um terreno

fértil para seu estudo e aprofundamento (bem como no cinema ou no próprio circo).

É importante pensar que eles têm uma origem semelhante. Andréa Rihl20 em uma

entrevista concedida para este trabalho afirma:

O palhaço de circo tem um determinante que o diferencia, assim como o de rua tem outro determinante, e ao trazer esse palhaço de rua, de circo para o teatro já se criou um outro determinante. Mas as bases, os princípios, eu acredito que sejam os mesmos.21

Portanto, se possuem as “mesmas bases e princípios”, fazem parte da

mesma arte. O palhaço que vemos no circo, ou no centro das grandes cidades

vendendo balão, desde que saiba a arte que representa, não é melhor ou pior que o

palhaço que estudou no exterior e tem nome “importado”. Se procurar seu

crescimento e fortalecimento na relação com o espectador e com seu jogo próprio,

certamente se tornará um palhaço tão bom quanto o que vier de uma escola

específica. Basta lembrarmos como Luiz Carlos Vasconcelos formou seu palhaço.

Foi subindo o morro todos os sábados e arrastando a criançada com cantigas. Claro

que não é qualquer um que usa o nariz vermelho que pode ser chamado de palhaço.

É preciso ter a consciência do que se está fazendo. O verdadeiro palhaço é aquele

que acima de tudo se diverte e não abandona jamais o jogo, não renuncia jamais a

lógica que o faz palhaço, o jeito diferente de olhar para o mundo, às vezes ingênuo,

às vezes agressivo, mas acima de tudo, muito pessoal.

18

Jacques Lecoq é o fundador da Ècole Internationale de Théâtre. Que ensina o controle do gesto e do movimento através do melodrama, da comedia, da tragédia, do bufão e do clown. Informações retiradas do site oficial da escola: http://www.ecole-jacqueslecoq.com/index_uk.htm acessado em 1° de nov de 2008 às 15h54min. 19 Não quero dizer que por ser fácil encontrar cursos de palhaço, que os mesmos sejam de baixo nível. Na verdade vejo isso como um bom sinal. Sinal de que a arte da palhaçada está sendo difundida e respeitada. 20 Andréa Rihl é atriz e bonequeira da cidade de Florianópolis, formada na Universidade do Estado de Santa Catarina – UDESC e pesquisa o palhaço/clown há 15 anos participando de grupos que se dedicaram a essa linguagem. Foram eles: Atormenta, Desterrados e Legião de Palhaços. 21 Entrevista de Andréa Rihl concedida ao autor desse trabalho, em 30 de outubro de 2008, em Florianópolis -SC.

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20

2. HOJE TEM FORROBODÓ?

TEM, SIM SINHÔ!

O que o palhaço tem, que é capaz de fascinar de crianças a idosos? Que

“forrobodó” é esse difícil de explicar? Creio que ao se aproximar da forma com que

ele “joga” com os espectadores, seja possível entender esses questionamentos.

Geraldo Cunha ao falar do Palhaço Catalão Tortel Poltrona22, “o melhor clown que

viu ao vivo” disse que “ele tem uma energia tão grande que você fica paralisado, ele

não tira a atenção do público um minuto”. Que tensão é essa que é capaz de nos

paralisar? Creio que essa tensão se deve, em primeira instância, a presença cênica.

Por presença, Pavis define:

“Ter presença”, é, no jargão teatral, saber cativar a atenção do público e impor-se; é, também, ser dotado de um “que” que provoca imediatamente a identificação do espectador, dando-lhe a impressão de viver em outro lugar, num eterno presente. (PAVIS, 2003, p. 305).

Pela definição de Pavis, pode parecer que a presença é um dom divino ou o

que chamamos, no senso comum, de talento. É necessário ter como premissa, que

no teatro ou em qualquer outra área, é importante muito trabalho e afinco para se

destacar, e isso não é diferente do “quê” citado por Pavis.

No seu treinamento, o palhaço passa por inúmeros exercícios23 que

fortalecem sua presença. Esses exercícios dão conta de um universo de

possibilidades e formas de jogo a serem utilizadas por ele a posteriori. Luís Otávio

22 O palhaço Tortel Poltrona é Jaume Mateu Bullich, que nasceu em Barcelona em 1955. Iniciou sua carreira como cantor cômico da Gran Orquestra Veracruz (1974). É diretor e fundador do Circ Cric (1981) e do CRAC - Centre de Recerca de Loles Arts del Circ (1995). Desde 1978 participa de Festivais Internacionais de Teatro na Europa e na América. Informações retiradas do site: http://www.destaquesp.com/index.php/Cultura/Especial/circo-zanni.html acessado em 27 de out de 2008 às 23h31min. 23 Aquilo que aqui me refiro como exercícios podem ser exercícios de teatro propriamente ditos, feitos em salas fechadas sob uma condenação, ou experimentações a partir do encontro com o espectador.

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Burnier, no seu livro A Arte de Ator: da técnica à representação, em um trecho

focado no treinamento do palhaço, diz

Na parte do treino que trabalha o ator, começamos normalmente pelo energético [...] Depois entramos no trabalho técnico: enraizamento, gravidade, saltos, quedas, elementos plásticos, articulações, impulsos, tensão – leveza, koshi, pantera, dança dos ventos, lançamentos. Essa etapa inicial trabalha elementos básicos da arte de ator, preparando-o para o posterior aprofundamento na questão específica do clown. (BURNIER, 2001, p. 212).

O que Burnier aponta é a necessidade de preparar o ator que deseja

enveredar na arte do palhaço, para que seu corpo possa responder, com prontidão,

à lógica própria explorada por tal personagem.

Existem elementos fundamentais para que o palhaço consiga, como Tortel

Poltrona, “paralisar” o espectador. Alguns elementos que formam a “base” do jogo

do palhaço são: o olhar, a prontidão e a economia dos gestos.

O olhar é um dos pontos fortes da representação de um bom palhaço.

Segundo Jesús Jara,

Em um palhaço, o olhar é uma porta aberta para comunicar, para expressar. Nunca para se esconder, nem mesmo quando o deseja. É uma porta social para a troca, a ponte de comunicação de seu mundo interior. É a maneira de confrontar esse com os demais, com as normas da sociedade. 24 (JARA, 2002, p. 67).

É através dele que o palhaço consegue estabelecer a “relação” com o

espectador. Marianne Tezza Consentino25, em seu trabalho de conclusão de curso

intitulado A Formação do Clown: o teatro como prática de liberdade, dizendo que

“não basta apenas que haja pessoas olhando, é preciso haver um diálogo entre ele

e a platéia” (CONSENTINO, 2004, p. 40), atenta, também, para a importância da

cumplicidade entre o palhaço e o público. Um bom palhaço usa seu olhar como uma

bússola, que guia o espectador através da cena. Esse olhar que “guia” a ação

24 Livre tradução do autor deste trabalho. Original: En el clown, la mirada es una puerta abierta para comunicar, para expresar. Nunca para ocultar, ni siquiera cuando lo intenta. Es una puerta social para el intercambio, el puente de comunicación de su mundo interior. Y la manera de confrontar éste con el de los demás, con las normas sociales. 25 Marianne Tezza Consentino é atriz e diretora graduada na Universidade do Estado de Santa Catarina – UDESC e também é pesquisadora da linguagem clownesca. Tornou-se Mestre na Universidade de São Paulo – USP com a dissertação nesse tema.

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22

também pode ser visto no teatro de animação. Segundo Valmor Níni Beltrame26 “o

olhar adquire importância fundamental quando o boneco, antes do início de

determinadas ações, olha para o ponto exato de deslocamento. A precisão do seu

olhar indica ao espectador o que deve ser observado.” (BELTRAME, 2008, p. 29).

O diálogo do olhar se evidencia ainda mais através da “triangulação”. A

triangulação é um jogo de olhares. O momento em que se cria um triângulo entre

ator, objeto da ação e espectador. É quando o palhaço, “conta” ao público, como

está se sentindo com cada descoberta que faz na cena. Um exemplo de

triangulação pode ser elaborado a partir de uma cena de banquete, narrada por

Márcio Corrêa: “na hora que alguém abre a tampa da comida, e de repente tem um

frango desossado, aí que ele começa a jogar” 27. Nesse momento em que se depara

com o inusitado, o palhaço reage mostrando como vai se comportar diante dessa

situação. O triangulo está formado: o palhaço, o frango e o público.

Relembrando o inusitado no jogo, fica evidente outro elemento que penso

servir de base para o palhaço: a prontidão. A prontidão está ligada ao tempo da

cena, atitude e ritmo. Em que momento vai se dar a reação. O palhaço deve estar

preparado, mental e fisicamente, para responder prontamente aos estímulos que

surgem. Pedro Ilgenfritz diz que “as leis do jogo do clown são as leis da

improvisação” 28, portanto seu treinamento deve ser focado na prontidão. Claro que

cada palhaço possui o seu tempo, e ele varia em sua construção. Fazendo parte do

jogo, a lentidão de resposta também é risível.

No treinamento da prontidão o palhaço treina “poses”, seus trejeitos. São

posturas físicas que vão de quedas a formas de levantar. Se um palhaço estabelece

seu jogo baseado em posturas, antes de agir, o público já estará rindo. No

espetáculo Cirquinho de Pulgas do grupo Legião de Palhaços29 (na formação em

26

Valmor Níni Beltrame é Doutorado em Teatro, Professor de Teatro de Animação e do Programa de Pós-graduação – Mestrado em Teatro da Universidade do Estado de Santa Catarina – UDESC. 27 Entrevista de Márcio Corrêa concedida ao autor desse trabalho, em 10 de outubro de 2008 em Jaraguá do Sul -SC. 28 Entrevista de Pedro Ilgenfritz concedida ao autor desse trabalho, em 05 de outubro de 2008, por correio eletrônico. 29 O grupo Legião de Palhaços foi uma grande escola. Fazer parte desse coletivo, mesmo na função de iluminador, ensinou-me muito sobre o jogo do palhaço. Conviver com Márcio Corrêa, Andréa Rihl e Artur Torres, vendo-os criar, jogar e estando em contato com suas idéias, formou minha maneira de entender o teatro.

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23

que tive a oportunidade de trabalhar como iluminador), Yorik (Artur Torres30), sempre

antes de subir as escadas fazia uma pausa e olhava para o público. Em seguida

virava-se para a escada e tropeçava logo no primeiro degrau, caindo e batendo a

“boca” no último. Essa ação se repetia por todo o espetáculo. Na terceira vez que ia

subir a escada, o público já estava rindo.

A seqüência criada por Artur Torres teve como base seu treinamento de

prontidão. Ele estava tão “atento” durante a “subida” que, por vezes, incluía ações,

de acordo com a interação da platéia, para em seguida vir a esperada queda.

Percebe-se que a prontidão ajuda o palhaço a entrar no improviso e sair dele,

voltando a sua ação. Geraldo Cunha diz que um bom palhaço não deixa que nada

fuja do seu controle em cena. Se cair um alfinete, ou alguém derrubar algo, ele

prontamente irá jogar com isso. Geraldo não acredita em um palhaço que não

considere o público como elemento do jogo, ou que apenas em determinados

momentos de sua performance se relacione com o espectador. Para ele, esse jogo é

realizado o tempo todo.

A prontidão, no entanto, não deve ser confundida com excesso de reações. É

preciso que o público perceba sobre o que o palhaço está improvisando, portanto é

importante selecionar e executar com precisão a ação.

Essa precisão evidencia o último elemento citado como base para o palhaço:

a economia dos gestos. O palhaço não precisa de pressa, segundo Nani

Colombaioni31, o palhaço deve fazer “uma ação de cada vez. O clown não é um

doente mental que faz o público rir; é um artista fazendo o seu trabalho”.

(COLOMBAIONI apud CONSTANTINO, 2001, p. 50). A economia dos gestos está

ligada a “limpeza” da cena, ao que o espectador vai “ler” das ações feitas pelo

palhaço. Uma ação precisa terá mais chances de ter uma leitura precisa.

Valmor Beltrame, dirigindo-se ao teatro de animação assim afirma:

(...) A economia de meios, princípio que trabalha com o mínimo de recursos para realizar determinada ação. Implica em selecionar os gestos mais expressivos, o movimento preciso, limpo, sem titubeios e claramente

30 Artur Torres é ator formado pela Universidade do Estado de Santa Catarina – UDESC. Fez parte do grupo Legião de Palhaços e em minha passagem pelo grupo me ensinou muito sobre a arte de ser palhaço, ou clown, como ele prefere ser chamado. 31 Nani Colombaioni, considerado um dos melhores palhaços do mundo, é representante da quinta geração da família Colombaioni, cujas origens remontam à Commedia dell’Arte. Foi assessor de Fellini em filmes como La strada e I Clown. Informações retiradas do site: http://www.bgol.com.br/cultura/ser.htm acessado em 28 de out de 2008 às 9h58min.

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definido. É como compreender que “menos vale mais,” ou seja, não é a quantidade de gestos que garante a qualidade da ação. (BELTRAME, 2008, p. 28)

Com o boneco é preciso criar um repertório de movimentos para selecionar os

que se encaixam melhor na cena. O palhaço não é diferente. O jogo do palhaço tem

como base o improviso codificado e de repertório, como na Commedia dell’Arte

(BURNIER, 2001), o palhaço “treina” suas ações básicas e em cena as une em um

improviso ordenado, semelhante ao feito por bonequeiros mais experientes do nosso

mamulengo32. Segundo Luís Otávio Burnier “uma vez que o clown exista, tenha

nascido, ele tem uma série de ações que são codificadas [...] o clown em seu fazer

improvisa a seqüência, mas não os códigos” (BURNIER, 2001, p. 218).

É interessante perceber que a “base” do jogo do palhaço pode, por vezes,

aparecer em um único gesto. Por exemplo, no momento em que surge algo do

público, “triangular” com um simples movimento de cabeça (prontidão, olhar, e

economia de gestos). Para chegar a essa síntese, o palhaço precisa de muito treino,

e principalmente muitos encontros com o público. O palhaço cresce na relação com

o outro. Olhando para o encontro do palhaço com o espectador, Andréa Rihl diz que

acha importante que tenhamos a noção de que “é uma comunhão, é preciso

comungar. Eu vejo que o palhaço tem isso. [...] A própria estrutura de elementos,

dos princípios já levam a isso, essa quebra da parede. [ao se referir aos princípios

da triangulação, foco e presença cênica]”. Andréa complementa citando um trabalho

que fez, o MUCAP (Movimento Contra as Privatizações), que se tratava de um

roteiro, no qual eles (Andréa Rihl, Artur Torres e Márcio Corrêa) colocaram os seus

clowns em ação:

Nós não tínhamos quase nada construído e acabamos ficando em cena uns quarenta minutos. Se cria um roteiro, e a partir desse roteiro vão se fechando as questões, ou seja, quando a gente coloca o espetáculo o público vai respondendo, o palhaço é muito mais isso. Você vai

32 Mamulengo é uma espécie de divertimento popular que consiste em representações dramáticas, por meio de bonecos, em um pequeno palco ligeiramente elevado. Os fantoches são feitos de madeira, metal, papel, palha, barro, etc. São vestidos a caráter. Geralmente cada boneco tem o seu nome e a sua personalidade. Em todas as representações, nunca saem de uma determinada “linha de conduta”. Assim o chorão, o briguento, o valente, o bondoso, sempre se apresentam com seus predicados, pelos quais se tornam conhecidos. Informações retiradas do site: http://www.terrabrasileira.net/folclore/manifesto/molengo.html acessado em 15 de dez de 2008 às 01h07min.

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descobrindo o jogo, a platéia também entende o jogo, e claro, ela vai contribuir.33

Essa “comunhão” pode se dar de inúmeras maneiras, normalmente com cada

palhaço se dará de uma forma. Depende de seu jeito de jogar.

Mário Fernando Bolognesi, analisando os tipos de palhaços encontrados no

circo, em primeira instância, separa-os em duas vertentes: os palhaços de reprise e

os palhaços de entrada. Ele também nos traz que, na prática, essa fronteira não é

tão evidente (BOLOGNESI, 2003). Porém, vejo que essa divisão é de extrema

relevância para a análise do jogo do palhaço.

Os palhaços que Bolognesi chama de palhaços de reprise são aqueles que

focam seus números no universo circense. Reprisando-os de forma “atrapalhada”

visando aliviar as tensões causadas pelos números mais perigosos, como trapézio

voador ou a corda bamba. Essa forma de jogo, que surgiu no circo Astley no século

XVIII, acompanha o circo ao longo de sua história.

Apesar de não serem vistos comumente fora do circo, números que remetem

a esse universo, a essa forma de jogo, acompanham o palhaço. Não que todo o

palhaço seja acrobata ou funâmbulo, mas pode-se afirmar que o palhaço “brinca”

com o que está a seu redor. Seu jogo se dá no presente. No circo, ele vai jogar com

os elementos presentes, seja a corda bamba, ou o canhão.

No teatro (casa de espetáculo) ele quebra com a lógica da representação.

Provavelmente o público não vai se deixar envolver com a representação a ponto de

crer que, ao invés de personagens, está diante de um recorte da vida de uma

pessoa, quebrando com a ilusão proposta pela “quarta parede”.

No cinema, ele quebra com o sistema em que está envolvido no universo do

filme. Charlie Chaplin, no filme O Grande Ditador (1941), faz uma forte crítica ao

regime implantado na Alemanha por Adolf Hitler34, quando o personagem que

representa, um bêbado, é confundido com o ditador.

33 Entrevista de Andréa Rihl concedida ao autor desse trabalho, em 30 de outubro de 2008, em Florianópolis - SC. 34 Adolf Hitler foi o líder do Partido Nacional Socialista dos Trabalhadores Alemães também conhecido por Nazi (os nazistas), uma abreviatura do nome em alemão (Nationalsozialistische). Hitler se tornou chanceler e, posteriormente, ditador alemão. No período em que Adolf Hitler esteve no poder, grupos minoritários que considerava indesejados, tais como Testemunhas de Jeová, eslavos, poloneses, ciganos, negros, homossexuais, deficientes físicos e mentais e judeus, foram perseguidos no que se convencionou chamar de Holocausto. Informações retiradas do site: http://pt.wikipedia.org/wiki/Adolf_Hitler acessado em 04 de nov de 2008 às 21h29min.

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Sobre o jogo do palhaço, Márcio Corrêa diz: “o palhaço está sempre tentando

sobreviver a determinada situação [...] ele vai agir como um soldado, como um

médico, ou como um garçom. O palhaço tem que sobreviver” 35.

Os jogos dos palhaços de reprise são em geral jogos sem fala, pois esta só

foi permitida, na França, em 1863. Em 1680 somente a Comédie Française tinha o

privilégio de representar em francês. Qualquer tentativa de burlar a lei dos

“privilégios” era denunciada à polícia, que podia multar ou fechar o

estabelecimento36 (CASTRO, 2003). Foi então, em cinco de novembro de 1863, com

a abolição dos privilégios dos teatros, feita por Napoleão III, que os palhaços

puderam falar nos picadeiros. Segundo Bolognesi “Os clowns, nos picadeiros,

finalmente puderam explorar a palavra para dar vida nova ao jogo clownesco”

(BOLOGNESI, 2003, p. 69).

Com a utilização da palavra surgiu a outra vertente do palhaço. O palhaço de

entrada. Analisando a presença da fala no jogo do palhaço, Geraldo Cunha diz:

“quando comecei a pesquisar o clown, eu achei que o trabalho com a fala e sem a

fala tinha o mesmo peso. Depois na pesquisa, pra mim, a fala contribui mais. É

importante o clown falar para poder aprofundar certas coisas” 37.

E de fato, segundo Bolognesi, o palhaço aprofundou o seu jogo na questão

da relação. Começar a falar fez com que o palhaço trouxesse novas possibilidades

de jogos no picadeiro que não somente as reprises dos números.

O palhaço se voltou para um vasto leque de manifestações cômicas

populares ao extrapolar o universo circense. As “máscaras opostas” que o circo

criou, puderam ser experimentadas em esquemas dramatúrgicos preconcebidos

(BOLOGNESI, 2003).

Essas máscaras a que se refere Bolognesi foram criadas na relação entre o

palhaço e o mestre de pista. O mestre de pista, ou o apresentador do circo,

participava das entradas de palhaço como o elemento lúcido, mesmo que a lucidez

não seja um elemento muito trabalhado pelo palhaço. O mestre de pista se tornou

35 Entrevista de Márcio Corrêa concedida ao autor desse trabalho, em 10 de outubro de 2008, em Jaraguá do Sul - SC. 36 A partir desse “silêncio” se desenvolveu a arte da pantomima. Segundo Jean-Louis Barrault a mímica é a “linguagem do povo a quem o poder retirou a palavra” (BARRAULT apud CASTRO, 2003 p. 40). 37 Entrevista de Geraldo Cunha concedida ao autor desse trabalho, em 20 de outubro de 2008, em Florianópolis - SC.

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uma espécie de soberano do palhaço. Criando um contraponto cômico que depois

foi incorporado ao jogo como Clown Branco. Bolognesi define por Clown Branco:

O Clown Branco tem como característica a boa educação, refletida na fineza dos gestos e a elegância nos trajes e nos movimentos. Ele mantém o rosto coberto por uma maquiagem branca, com poucos traços negros, geralmente evidenciando sobrancelhas, e os lábios totalmente vermelhos. A cabeça é coberta por uma boina em forma de cone. A roupa traz muito brilho (BOLGNESI, 2003, p. 72).

Percebe-se que Bolognesi está se referindo à imagem clássica do palhaço

nos circos. Geraldo Cunha, ao se referir ao Clown Branco afirma:

O Clown Branco já traz uma cara. Ele nunca tá feliz, ele está sempre com aquela cara de dor de barriga. Que é uma característica do Clown Branco, ele está sempre ocupado, está sempre pensando em alguma coisa. Ele é mental. Ele pensa tudo ‘errado’, ele elabora ‘errado’, mas ele é mental.38

Justapondo essas duas falas, pode-se perceber que o Clown Branco é a

representação da ordem: o patrão.

Se por um lado o “Branco” é o representante da classe dominante o palhaço

que se relacionava com o mestre de pista se tornou o “Augusto” ou Tony Excêntrico.

Por “Augusto”, Bolognesi define:

O “Augusto” é um tipo de palhaço que tem como marca característica o nariz avermelhado. Ele não cobre totalmente a face com a maquiagem, mas ressalta o branco nos olhos e na boca. Sua característica básica é a estupidez e se apresenta frequentemente de modo desajeitado, rude e indelicado (BOLOGNESI, 2003, p. 74).

Frederico Fellini39 aponta para uma característica muito marcante do

“Augusto”. – A simpatia do público:

A criança se identifica de saída com o “Augusto”, na medida em que esse se parece com um patinho feio ou um cachorro e é maltratado, e por isso quebra os pratos, se retorce no chão, se atira baldes d'água no rosto. É o que a criança gostaria de fazer e os Clowns Brancos, os adultos, a mãe, a

38 Idem nota 37 39 Frederico Fellini (1920 – 1993) foi um dos mais importantes cineastas italianos. Ele ficou eternizado pela poesia de seus filmes, que mesmo quando faziam sérias críticas à sociedade, não deixavam a magia do cinema desaparecer. Fellini foi um grande representante da arte do palhaço (digo isto mesmo não tendo nenhum registro de Fellini com um nariz vermelho ou vestindo roupas largas, mas sim pela forma com que via a vida, como fazia suas críticas sociais de forma leve e repletas de poesia).

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tia, impedem que faça. No circo, através do “Augusto”, a criança pode imaginar que faz tudo o que está proibido, se vestir de mulher, armar surpresas, gritar, dizer em voz alta o que pensa. Aqui ninguém te repreende. Pelo contrário, te aplaudem.40

O “Augusto” é o elemento que completa o jogo. A reação. Não é possível

pensar um jogo que não reverbere no outro e não se transforme. Um Clown Branco

sozinho é como um “Augusto” sozinho, não é nada. Um depende do outro para criar

a tensão do jogo. Não que o jogo do palhaço só exista em dupla, ou que os solos

não se configurem como jogo de palhaço. Reafirmo que o jogo depende da outra

metade para encontrar o equilíbrio. A outra metade não precisa estar em outro

palhaço, pode estar desde em um animal, como no trecho que Márcio Corrêa relatou

(“Você pode ter uma dupla de ‘Brancos’. Eles vão, de alguma forma, sempre entrar

em atrito [...] um pode achar um rato e o outro uma barata para escravizá-los” 41.) ou

no público, como Andréa Rihl disse: “Ou ele vai ser ‘Branco’ e dar ordens ao público,

ou então ele vai ser um Tony a mercê do público” 42.

Um ponto relevante no jogo do “Augusto” e do “Branco” está na relação de

poder, na crítica da sociedade. Segundo Dario Fo,

Os palhaços sempre falam da mesma coisa, eles falam da fome: fome de comida, fome de sexo, mas também fome de dignidade, fome de identidade, fome de poder... No mundo clownesco há duas possibilidades: ou ser dominado, e então nós temos aquele que é completamente submisso, o bode expiatório, como na commedia dell’ arte; ou dominar, e então nós temos o chefe, o Clown Branco, o que dá ordens, aquele que insulta, aquele que faz e desfaz. (FO apud BOLOGNESI, 2003, p. 78).

Dario Fo compreende que no “mundo clownesco” se torna visível a relação

crítica da arte do palhaço. Nós, pessoas comuns, sempre estamos nos mascarando

em situações cotidianas. Quando não recebemos o troco correto, muitas vezes

soltamos todas as nossas frustrações diárias no vendedor, que pode não ter feito

por mal. Nesse momento nos posicionamos como donos do poder: Os Clowns

Brancos. Claro que nem sempre a ironia do jogo está presente no cotidiano e

algumas injustiças passam despercebidas.

40 FELLINI, Frederico. Sobre o Clown. In: Fellini por Fellini, Porto Alegre: L&PM Editores Ltda., 1974, p. 1-7. Tradução de Paulo Hecker Filho. Disponível em: http://www.grupotempo.com.br/tex_fellini.html acessado em 1° de nov de 2008 às 15h28min. 41 Entrevista de Márcio Corrêa concedida ao autor desse trabalho, em 10 de outubro de 2008, em Jaraguá do Sul - SC. 42 Entrevista de Andréa Rihl concedida ao autor desse trabalho, em 30 de outubro de 2008, em Florianópolis - SC.

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No universo do palhaço nada passa despercebido, e é por isso que o

“Augusto” nunca executa de forma correta sua tarefa. Para que o “Branco” não tenha

seu desejo concretizado. Criticando, assim, de forma suave, a relação patrão e

empregado.

Bolognesi analisa as “máscaras cômicas circenses” como resposta à

sociedade de classes e à individualidade do ser humano:

Assim, tem-se nas máscaras antagônicas dos palhaços duas das principais marcas da sociedade classista; uma divisão ordinária entre lugares distintos na hierarquia da cena, que advém de um processo de abstração da hierarquia social; uma distinção entre as diversas personalidades, quando os atributos psicológicos e subjetivos se mesclam aos tipos cômicos circenses, enfatizando que há um “sujeito” naquelas maquiagens e vestimentas. (BOLOGNESI, 2003, p. 105)

No segundo momento do discurso de Bolognesi, percebe-se que ele aponta

para a individualidade do palhaço. Cada palhaço é diferente do outro, não importa se

é “jogado” na mesma situação. Não existem palhaços iguais, não existem pessoas

iguais. O jogo também está pautado na individualidade. Essa constatação se torna

concreta quando vemos a mesma gag repetida por dois palhaços distintos. Cada um

inclui “seu” jogo na cena, formando, assim, números distintos. Atribui-se a ao jogo

pessoal do palhaço sua lógica subjetiva e individual. Em nosso cotidiano, não é

possível saber o que outra pessoa pensa, ainda mais se o outro for um palhaço. O

jogo se pauta no imprevisível. Assim como Jacques Lecoq descreve em seu artigo

Em Busca de Seu Próprio Clown:

ele põe em desordem uma certa ordem e permite assim denunciar a ordem vigente: deixa cair o chapéu, vai apanhá-lo mas, desajeitadamente, dá-lhe um pontapé e, sem querer, pisa na bengala que lhe joga de volta o chapéu nas mãos. O clown erra onde não esperamos e acerta onde não esperamos. Se tentar um salto perigoso, cai, mas o executa quando lhe dão uma bofetada. Assim o clown Grock [43], escondido atrás de um

43 Grock, nasceu no dia 10 de janeiro de 1880 em Reconvilier, Suiça e se transformou na estrela do entretenimento europeu com o nome de “Grock, o palhaço”. Seu palhaço de tipo Augusto atuou com diferentes companheiros em circos, teatros e teatros de variedades durante quase 60 anos. Esse músico virtuoso, podia tocar 24 instrumentos e falar vários idiomas, se converteu no rei dos clowns no começo do século XX; seus números com o piano e o violino se transformaram em clássicos. Informação retirada do site: http://www.mundoclown.com.br/grock acessado em 1° de nov de 2008 às 15h59min.

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biombo, conseguia [fazer malabarismo] com três bolas, só elas visíveis ao público, o que não conseguia fazer perante o público. 44

A imprevisibilidade do jogo é fundamental para se tornar risível. Por que o

palhaço é capaz de agir de forma inesperada? A resposta está na sua forma de ver

o mundo, em sua lógica.

A lógica do palhaço busca “simplificar” as coisas, agindo muitas vezes ao “pé

da letra”. Ao pedir a um palhaço um milhão (pensando em dinheiro) provavelmente

receberá um milho grande.

Para entender essa lógica, trago um diálogo transcrito por Fellini entre dois

palhaços:

O “Augusto”: - Tenho sede. O clown branco: - Tem dinheiro? O “Augusto”: - Não. O clown branco: - Então não tem sede. 45

A lógica controversa do palhaço busca simplificar, mas acaba por dificultar

ainda mais as coisas. Trocar uma lâmpada, para um trio de palhaços pode ser sinal

de muita confusão. Não seria surpresa se um segurasse a lâmpada e os demais

girassem a escada. Jesús Jara diz que o palhaço possui o que chama de “sus

grandes verdades:”

- O palhaço é e sempre deve ser AUTÊNTICO. - O palhaço é sincero e espontâneo. - O olhar do palhaço é um espelho através do qual vemos seu interior e nosso reflexo. - O palhaço é transparente. Suas intenções são claras, mesmo quando ele tenta nos enganar. - O palhaço é complexo, ou seja, é composto de vários elementos que compõem sua personalidade, o que lhe confere uma riqueza expressiva e pessoal.46 (JARA, 2002, p. 73)

44 LECOQ, Jacques. Em Busca de Seu Próprio Clown. In: Le Théâtre du geste, org. de Jacques Lecoq, Paris: Ed. Bordas, 1987, p. 117. Tradução de Roberto Mallet. Disponível em: http://www.grupotempo.com.br/tex_busca.html acessado em 1° de nov de 2008 às 15h32min. 45 FELLINI, Frederico. Sobre o Clown. In Fellini por Fellini, Porto Alegre: L&PM Editores Ltda., 1974, p. 1-7. Tradução de Paulo Hecker Filho. Disponível em: http://www.grupotempo.com.br/tex_fellini.html acessado em 1° de nov de 2008 às 16h19min. 46 Livre tradução do autor desse trabalho. Original: - El clown es y siempre debe ser AUTÉNTICO.- El clown es sincero y espontáneo. - La mirada del clown es un espejo a través del cual vemos su interior y nuestro reflejo en él. - El clown es transparente. Sus intenciones se ven, incluso cuando intenta engañar. - El clown es complejo, es decir, está compuesto de multitud de elementos que conforman los múltiples rasgos de su personalidad, lo cual le confiere una gran riqueza expresiva y personal.

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Essas grandes verdades formam o caráter do palhaço, sua lógica. Como

entender questões tão subjetivas como autenticidade, sinceridade ou

espontaneidade? Dimitri propõe trazer essas questões através do

desmascaramento: “minha vida, meu ofício, tudo está no mesmo saco! Eu não

represento um papel: estou nu; o clown é o mais nu de todos os artistas porque põe

em jogo a si mesmo, sem poder trapacear” 47. A nudez de que fala Dimitri se refere à

desapropriação das máscaras sociais. O encontro com o próprio ridículo. Perceber-

se imperfeito e se apropriar disso. Relacionar-se com o próprio fracasso. Roland

Auguet, estudioso do circo, analisa o impacto que o fracasso possui no jogo, falando

do Clown Augusto:

O “Augusto” é justamente o tipo marginal, não somente pelo seu aspecto exterior, mas sobretudo pela inaptidão generalizada em acompanhar as coisas mais simples – fracasso simbolizado pelo tropeço de sua entrada na pista. Prodígio de ineficácia que naturalmente suscita o riso em um universo ultra-racional voltado à eficácia (AUGUET apud BOLOGNESI, 2003, p. 77).

Claro que não é apenas o “Augusto” que fracassa. O “Branco” inúmeras

vezes fracassa, porém mantém a “pose”, tenta fazer com que pareça que tudo está

sob controle. O que também ocasiona o riso. Creio que seja importante ver o

palhaço e sua relação com o fracasso como representação teatral. O palhaço é a

busca do auto conhecimento frente ao jogo cênico. Ele visa à representação e ao

contato com o espectador, portanto deve ser “controlado” pelo ator. No mergulho

para entender o fracasso não é necessário que o ator se frustre de verdade, e sim

que entenda essa relação no jogo.

No exercício O Dono do Circo, citado por Luís Otávio Burnier, essa relação se

torna clara:

Neste exercício, o dono do circo, Monsieur Loyal, tem uma única vaga a oferecer para trabalhos em seu circo. Existe uma enorme fila de interessados, e Monsieur Loyal seleciona os candidatos. Um a um, os clowns vão se apresentando ante Monsieur Loyal, mostrando suas qualidades e aptidões para fazer a platéia e o próprio Monsieur rirem. (BURNIER, 2001, p. 217).

47 DIMITRI. O Mais Nu dos Artistas. In: Clowns & Farceurs. Paris: Ed. Bordas, 1982, p. 36-37. Tradução de Roberto Mallet. Disponível em: http://www.grupotempo.com.br/tex_nu.html acessado em 1° de nov de 2008 às 15h23min.

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Burnier revela ainda que esse exercício, para ter um bom resultado, deve ter

algumas regras. A mais importante, na minha opinião, é que o palhaço deve se

relacionar com o que o Monsieur falar como verdade absoluta. Se ele disser que

está bom, o palhaço acredita. Porém, se falar que está ruim o palhaço se esforça até

fazer melhor, pois ele precisa desse emprego (BURNIER, 2001). Burnier conclui sua

análise do exercício dizendo:

Monsieur Loyal, nesse exercício, leva o clown a se sentir o mais idiota e inútil ser do mundo, ou o mais belo e bem-dotado clown do circo. A relação que se estabelece entre Monsieur Loyal e os clowns torna-se muito real, como se aquilo tudo realmente fosse verdade. Aliás, é verdade para o clown; talvez não o seja para o ator. (BURNIER, 2001, p. 217).

Para iniciar um ator no jogo do palhaço, é preciso ter o olhar atento a quem é

esse ator, como “desarmá-lo” para que entenda a sua relação com o fracasso.

Alguns podem precisar ter a auto-estima quebrada, outros não. Essa iniciação

precisa de “jogo de cintura”. Não existe uma fórmula. Cada ator é um ator, cada

palhaço é um palhaço.

Esse “jogo de cintura” passa primeiro pela observação. Por isso, a meu ver,

propostas de jogos como “O Dono do Circo” devem ser deixadas para uma parte

mais avançada do treinamento, para preservar o ator e prepará-lo para o jogo. Iniciar

um curso, ou uma pesquisa, com a relação do fracasso, pode por vezes bloquear o

ator para a criação, fazendo que ele não se sinta à vontade em cena. O

entendimento do fracasso e do ridículo é fundamental para a arte do palhaço, porém

leva tempo para a maturação. Um ator que não está à vontade em cena dificilmente

irá responder ao treinamento com prontidão, e raros serão os casos que alcançarão

o desmascaramento necessário para essa forma de representação. Por isso, creio

que os treinamentos devam partir do entendimento físico, para depois aprofundar a

relação com a lógica do palhaço. Como o que foi visto com o Grupo de Pesquisa

Teatral Atormenta.

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3. Ó RAIA O SOL, SUSPENDE A LUA

OLHA O PALHAÇO NO MEIO DA RUA!

Como explicar uma arte que se pauta no tempo presente e tem como

premissa a relação com o outro? Como transcrever para o papel questões que são

físicas e práticas? Nada melhor que olhar ao redor e procurar quem sinta essa arte e

essas questões na pele. Qual foi minha surpresa ao olhar e me deparar com

algumas pessoas, que há 10 anos recebiam o nome: Grupo de Pesquisa Teatral

Atormenta.

O Atormenta foi um grupo de Florianópolis que focou seus 9 anos de

existência na pesquisa da personagem fixa: o palhaço. Foi um dos primeiros, senão

o primeiro, grupo de Florianópolis a trabalhar com essa linguagem48.

Tudo começou quando um grupo de atores, egressos do CEART/UDESC,

interessados na pesquisa do palhaço, convidou Geraldo Cunha, que estava na

época trabalhando com Roberto Mallet49, para dirigi-los. Essa pesquisa teve como

resultado o espetáculo Clowns, que participou de diversos festivais nacionais. O

elenco que estava no espetáculo sob a direção de Geraldo Cunha era constituído

por Andréa Padilha, Márcio Corrêa, Pedro Ilgenfritz, Vanderléia Will e, em uma

última formação, Andréa Rihl.

Dessa formação, não ouve como entrevistar as atrizes Andréa Padilha e

Vanderléia Will, por estarem em temporada na Europa no período da escrita deste

trabalho. Os demais participantes confidenciaram como surgiram seus palhaços e

como esse coletivo foi importante para as suas vidas artísticas. 48 Devido ao difícil controle das atividades de todos os grupos da cidade não é possível precisar essa informação. Porém os participantes do Atormenta, disseram acreditar tratar-se do primeiro grupo de Florianópolis a iniciar essa pesquisa. 49 Roberto Mallet é diretor, ator e professor. Em 1992 fundou em São Paulo o Grupo Tempo onde dirigiu os espetáculos Judite (1993), Abismo de Rosas (1994), Teresinha (1998), Canto de Outono (1999) e Drakul - paixão e morte (2002). Em 2001 voltou a trabalhar como ator, no monólogo Lições de Abismo, direção de Mario Santana, e em Auto-escola de arte dramática, com o seu clown Gregorio. Informações retiradas do site: http://www.iar.unicamp.br/docentes/robertomallet/ acessado em 02 de nov de 2008 às 17h19min.

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Fato interessante que acompanha todos os participantes é que seus palhaços

surgiram no jogo, na dedicação e importância que davam ao treinamento. Sobre o

treinamento, Márcio Corrêa lembrou que eles permaneciam às vezes duas, três

horas seguidas sem sair da personagem em uma improvisação exaustiva, e sempre

que saíam da lógica da personagem lá estava o Geraldo pedindo para que

retornassem e repetissem (2008).

Pedro Ilgenfritz lembra que foi em sua passagem pelo Atormenta que

entendeu o teatro como ato coletivo. “Foi ali que entendi a necessidade de se ter um

grupo. De ver o trabalho sendo desenvolvido no contato diário e disciplinado. Do

respeito pela arte e da ética do treinamento. O grupo acabou, mas não terminou o

trabalho” 50. O grupo Atormenta foi, de fato, marcante para cada participante

entrevistado.

Como já foi dito, a relação do palhaço com seu jogo é muito pessoal, e isso se

reflete na história de seu nome. Muitos palhaços, em sua prática, passaram pelo

ritual do batismo. Pedro Ilgenfritz, ao falar do nome do seu palhaço, lembra que foi

em um jogo que o recebeu:

Ele se chama Peidolito. Ele surgiu no jogo. Na aprendizagem dos elementos básicos do jogo, no uso da máscara, no trabalho diário... Em outras palavras, ele surgiu na improvisação. Naquela época o Geraldo propôs (não me recordo com precisão) um jogo onde os clowns davam nomes uns aos outros, e acho que foi assim... Foi o Geraldo que batizou ele de Peidolito. Mas existe uma anedota por trás disso. Eu era (e ainda sou) muito peidão. Especialmente quando começo a me movimentar. Todo dia antes do ensaio, nós fazíamos uma bateria de exercícios e alongamentos, trabalho com o corpo e eu logo começava a soltar gazes... Não sei, é o meu organismo! É assim que ele responde, pode até ser um reflexo emocional também, do meu sistema nervoso. E lá ia eu, soltando tudo durante os ensaios... E até em apresentações! Um clown peidão. E ai tu imaginas, de onde vem o nome Peidolito. Tem toda essa coisa do clown ser super pessoal, das imperfeições, do ridículo, do inacabado, do grotesco, do baixo corporal (Bakhtin), e acho que o nome vem bem a calhar, e sou muito orgulhoso de ser um peidão.51

Com Márcio Corrêa também não foi diferente, recebeu seu nome no jogo e foi

“batizado” por Geraldo:

50 Entrevista de Pedro Ilgenfritz concedida ao autor desse trabalho, em 05 de outubro de 2008, por correio eletrônico. 51

Idem nota 50.

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O Tongo, na verdade surgiu com o nariz vermelho mesmo. O treinamento começava com o nariz, primeiro com o trabalho físico do jogo sem a fala, focado na ação. [...] Acho que foi o Geraldo que me deu o nome de Tongo. Por eu ser maior, grandão. Usava um suspensório tipo uma jardineira, era uma coisa meio infantil [...] como eu sempre assumi a postura do palhaço Branco, ficou Tongo [em referência à sonoridade da palavra].52

Andréa Rihl, que entrou mais tarde no grupo, também passou pelo ritual do

“batismo”. Não é muito difícil tentar adivinhar quem deu seu nome:

A Groselha surgiu nos trabalhos que a gente fazia no grupo Atormenta. Eu acho que por eu ser muito branca, eu fico meio avermelhada. E eu tinha uma coisa com o vermelho, tudo que era rosa, vermelho, eu puxava pra mim. Quem batizou o nome foi a Andréa Padilha. Nem foi uma coisa minha e acabou ficando [...] então surgiu daí, do trabalho e dessa questão física. Eu ficava mesmo vermelha, parecia uma groselha. 53

O palhaço não segue outra lógica que não sua própria. Dessa e das outras

vezes, não foi o Geraldo quem batizou os palhaços e sim o grupo através do jogo.

Geraldo Cunha, que já trabalhava com a pesquisa antes do Atormenta, já

chegou ao grupo com um nome. Embora quem conheça o trabalho do Geraldo

possa pensar que o nome de seu palhaço é Seo Maneca, personagem que ele

trabalha há anos, seu nome é Tito:

O meu clown é o Tito. Eu comecei a pesquisar com o Mallet, ele passou um exercício porque a gente estava com dificuldade de achar o nome do clown. Era um exercício para ver o nome, saiu Tito e ficou. Mas com o Tito eu trabalhei muito pouco. Eu pego a pesquisa do clown e coloco no Maneca. O que eu tenho de clown eu uso no Seo Maneca.54

Como se pode ver, o nome de cada uma das personagens que nasceram no

Atormenta tem um motivo extremamente pessoal. Não haveria como chamar o

Tongo por outro nome, ou a Groselha. Eles são como apelidos de que o palhaço se

apropria. Como Pedro disse em seu relato: “Tem toda essa coisa do clown ser super

pessoal, das imperfeições, do ridículo, do inacabado”. Sobretudo, é importante

aceitar esse ridículo. É possível ver nas falas dos entrevistados, que eles aceitam o

nome. “Acho que o nome vem bem a calhar, e sou muito orgulhoso de ser um

52 Entrevista de Márcio Corrêa concedida ao autor desse trabalho, em 10 de outubro de 2008, em Jaraguá do Sul - SC. 53 Entrevista de Andréa Rihl concedida ao autor desse trabalho, em 30 de outubro de 2008, em Florianópolis - SC. 54 Entrevista de Geraldo Cunha concedida ao autor desse trabalho, em 20 de outubro de 2008, em Florianópolis - SC.

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peidão” (Pedro). “Como eu sempre assumi a postura do palhaço Branco, ficou

Tongo [em referência à sonoridade da palavra]” (Márcio). “Eu ficava mesmo

vermelha, parecia uma groselha” (Andréa).

Outro ponto em comum do surgimento de todas essas personagens é o fato

de terem surgido no jogo e na construção física.

Pedro, por exemplo, lembra que seu palhaço, o Peidolito, demorou três ou

quatro anos para começar a falar. Antes disso o que havia era a improvisação

corporal e física, para entender o jogo.

É de comum acordo, entre os entrevistados, que a fala pode atingir questões

mais profundas durante uma cena. Porém, todos também concordam ser necessário

entender esse mecanismo no jogo para não empobrecer a cena. Andréa disse que

por vivermos em um sistema embasado na retórica, a fala perdeu sua função

apaixonante. Ela confidenciou que geralmente não consegue usar a fala quando

está envolvida em um exercício de teatro, pois ainda não sabe o que está por vir.

Acredita que primeiro se deve observar o foco do jogo. Sem desvalorizar os

trabalhos que se baseiam na fala, Andréa disse ainda que a fala nos remete ao

intelecto. O que pode, em primeira instância, ser muito direto, fazendo com que o

jogo não se aprofunde.

A palavra no jogo do palhaço tem a idéia de síntese. Deve ser “econômica”.

Portanto, é necessário que se entenda o jogo para se relacionar com ele.

Estabelecer um jogo calcado na fala é uma tarefa árdua, que precisa de clareza e

experiência para não se remeter diretamente ao intelecto. Por isso a importância

dada por Geraldo em aprofundar as questões físicas do jogo no início do

treinamento.

O entendimento do jogo se dá através do treinamento e da experimentação.

Os entrevistados, por terem feito parte do mesmo coletivo, têm uma visão

semelhante de jogo. Geraldo observa que tudo no teatro tem jogo, desde a tragédia

ao teatro pós-dramático:

O jogo pra mim está na ação. O princípio do teatro é ação. O jogo do clown é um jogo específico. É um jogo principalmente do humor. Tem que ter humor senão não é clown. É um humor aprofundado, refinado, que vai pra um campo quase da loucura, do insano, da surpresa. Aquilo que te surpreende. É o jogo da convenção também, que ele mesmo instituiu.55

55 Entrevista de Geraldo Cunha concedida ao autor desse trabalho, em 20 de outubro de 2008.

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A convenção instituída a que Geraldo se refere está ligada ao

estabelecimento do jogo. A postura repetida que antecede a ação. O crescimento do

jogo estabelecido, que é acompanhado pelo crescimento da reação do espectador.

Geraldo cita como exemplo a cena em que Charlie Chaplin come a “sopa de bota”

em A Corrida do Ouro (1925). O jogo só funciona porque ele prepara a sopa em

seus mínimos detalhes. Experimenta para ver se está boa, coloca mais sal, e por

fim, pega a bota de dentro da panela. Ele estabelece o jogo.

Pedro, como Geraldo, identifica elementos importantes para o jogo do

palhaço:

As leis do jogo do clown são as leis da improvisação. Essas leis são evidentes no jogo da máscara e se evidenciam em questões como, por exemplo, economia e sustentação. O jogo deve ser indireto, deve ser instalado, deve obedecer ao próprio ritmo (que difere do ritmo da vida cotidiana). O jogo deve ser apoiado na presença cênica, que por sua vez depende da ampliação da atenção física e sensorial do ator. O jogo também depende da inteligência, do raciocínio rápido, da imaginação livre e desimpedida, da fantasia, da livre associação. 56

Pedro afirma que o jogo precisa ser “instalado”, compartilhando com Geraldo

da idéia que o jogo deve ser estabelecido. Porém, ele chama a atenção para a

questão da pessoalidade. Dizendo que o jogo depende do universo do ator, Pedro

toca no aspecto da individualidade do palhaço. Cada ator tem uma forma de jogar,

que passa pela sua forma de ver o mundo. Falar de raciocínio, imaginação e livre

associação, abre caminho para que cada um inclua no jogo seus anseios e

vivências.

Márcio, ao analisar o jogo, aponta para sua visão do fracasso:

Todo mundo tem um pouco desse personagem, dessa coisa “fracassada”. Não que o palhaço é fracassado, ele na verdade está sempre melhor que todo mundo. O palhaço é o mais esperto de todos. [...] Ele nunca vai se dar mal. Apesar de que ele sempre vai ter seus desacertos, que vão fazer parte desse jogo. Ele vai sempre procurar o caminho mais difícil, não só o mais difícil, mas aquele que o ator está dominando o palhaço. 57

56 Entrevista de Pedro Ilgenfritz concedida ao autor desse trabalho, em 05 de outubro de 2008, por correio eletrônico. 57

Entrevista de Márcio Corrêa concedida ao autor desse trabalho, em 10 de outubro de 2008, em Jaraguá do Sul - SC.

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Márcio ainda chama a atenção para que o palhaço, através de seu jogo, se

relaciona com o espaço procurando sobreviver a ele. Dizendo que ele “é o mais

esperto de todos”, Márcio se refere à falta de vergonha do palhaço em se submeter

às situações mais incomuns para sobreviver, ele olha para um espaço e pensa o

que pode fazer com ele. É um sobrevivente. Essa deve ser sua relação com o

fracasso. Ter que se moldar a cada situação. Passar por uma provação a cada dia.

Parecer fracassado perante seus “desacertos”, tornando-o assim uma figura poética

e melancólica.

Já Andréa analisa o jogo como uma base, um princípio que está presente em

todas as formas de representação. Para ela, o jogo do palhaço tem o mesmo

princípio em que está calcado o teatro de animação (com referência a proximidade

dos princípios já citados). Sem o jogo, na sua visão, o palhaço não cumpre seu

papel, dado que está presente nos comentários dos demais entrevistados. O jogo é

o fundamento base do palhaço.

Cada entrevistado desenvolve seu raciocínio a partir de um aspecto. Geraldo

trouxe à tona a questão que antecede o jogo, sua preparação. Pedro, a

pessoalidade. Márcio, o fracasso. Andréa, sua relação com o teatro de animação.

Porém todos o entendem como base sólida e fundamental para o palhaço. Base,

que construíram de forma prática, na vivência do Atormenta, através da “disciplina e

da ética do treinamento”.

O Grupo de Pesquisa Teatral Atormenta significou, para os entrevistados, o

alicerce de sua arte. Pedro Ilgenfritz, quando questionado sobre o que representou

fazer parte desse coletivo, afirma:

Tudo. Ali foi a escola, a fundação, o alicerce, o começo, a plataforma onde o meu trabalho como artista e educador foram estruturados. Devo isso a todos os integrantes do grupo, mas em especial ao Geraldo Cunha. Ele é meu mestre e amigo, é hoje, colega que está sempre perto de mim onde eu for. A ele eu presto meu tributo e respeito. Admiro o Geraldo como um pai. Meu pai teatral.58

Para Andréa Rihl foi de extrema significância, sobretudo pelas amizades que

construiu:

58 Entrevista de Pedro Ilgenfritz concedida ao autor desse trabalho, em 05 de outubro de 2008, por correio eletrônico.

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Foi muito bom, eu aprendi bastante. As amizades que fiz, que são pessoas que eu tenho o maior carinho e respeito até hoje. Pela questão ética, pela questão do conhecimento, pela questão até de persistência. São pessoas que, de alguma maneira ou de outra, estão persistindo ainda. Indo à procura desse conhecimento. 59

Andréa concluiu dizendo que no Atormenta ela pôde refletir mais sobre sua

prática, que na sua visão era, e continua sendo, intuitiva.

Geraldo vê o reflexo do Atormenta em seu trabalho na ótica de diretor que foi.

“O Atormenta foi muito importante porque foi um momento em que eu nunca tinha

dirigido, foi quando eu comecei a entender a lógica da direção, da formação do ator

e aprofundar o jogo do clown” 60. No grupo, ele também teve um retorno como ator.

Surgiu o personagem “Seo Maneca” com o qual ainda trabalha. Analisando o

término do grupo, Geraldo disse que o que lhe restou do Atormenta depois de 9

anos de dedicação foi o aprendizado e o Maneca. Aprendizado este que utiliza e

reutiliza nos cursos que ministra e nos atores que forma.

Márcio Corrêa disse que estudar uma forma de teatro e depois não treiná-la,

é como ensinar piano a alguém que não tem um piano em casa. Seu aprendizado

fica superficial. Disse que ali foi o início de seu trabalho como ator. Que foi de

relevante importância para seu entendimento teatral ter se relacionado com aquelas

pessoas naquela época e naquele lugar (UDESC, onde fez sua graduação). Conclui

seu pensamento dizendo que uma coisa que ele aprendeu com o Atormenta foi que

as coisas acabam. Deve-se tirar força disto e não desistir. E foi o que ele fez,

seguindo o conselho que recebeu de Nani Colombaioni antes de entrar em um

auditório lotado: “melhore sempre o seu trabalho”. Colombaioni não se referia à cena

que seria apresentada em seguida, mas ao trabalho de ator, a busca do melhor

possível dentro do proposto. Buscar mais que o melhor, buscar melhorar sempre. E

essa busca se refletia dentro do trabalho do Atormenta, através da pesquisa e do

aprofundamento da linguagem, que não se herda, se aprende.

Tenho orgulho de ter sido aprendiz de Márcio Corrêa como o orgulho

revelado por Pedro ao chamar Geraldo de seu “pai teatral”. Como Márcio disse, “é

assim que o conhecimento passa. [...] Eu aprendi pouco e passei esse pouco pra

você da melhor forma”. E sem dúvida, essa forma se reflete neste trabalho.

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Entrevista de Andréa Rihl concedida ao autor desse trabalho, em 30 de outubro de 2008, em Florianópolis - SC. 60 Entrevista de Geraldo Cunha concedida ao autor desse trabalho, em 20 de outubro de 2008, em Florianópolis - SC.

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E O PALHAÇO O QUE É?

É LADRÃO DE MULHER!

Como pensar o que é, ou o que foi o palhaço, considerando-o apenas como

um tipo com nariz vermelho, roupas largas e geralmente no circo? Para entender a

relevância do palhaço é necessário vê-lo como uma linguagem teatral.

Geraldo Cunha, ao se referir a alguns críticos e estudiosos, disse: “eles

setorizam, eles estreitam a coisa em um personagem. Se não tem nariz, se não tá

no circo, não é clown.” Com isso, deixam passar despercebida a conexão entre seu

jogo e textos dramáticos ou métodos de interpretação.

Shakespeare61 possui um universo extremamente fértil no tocante à utilização

do palhaço como elemento de dramaticidade. Analisando suas obras pode-se

encontrar personagens que se aproximam de palhaços.

Em Sonho de uma noite de verão, a relação dos artesãos é um exemplo.

Trata-se de atores que vão representar uma peça para os nobres, porém tudo sai às

avessas (lógica do palhaço). Em Noite de Reis, o personagem Malvólio tem a lógica

do Clown Branco. Segundo Geraldo, Shakespeare se refere aos coveiros de Hamlet

como dois clowns. Ele ainda lembra que o dramaturgo escrevia para os atores que

tinha em sua companhia, portanto devia ter bons palhaços a seu redor.

Outro dramaturgo que tem em seus textos elementos passíveis de

comparação com o jogo do palhaço é Samuel Beckett62. Suas peças falam da

61 William Shakespeare (1564-1616), foi o mais famoso dramaturgo e poeta inglês de todos os tempos. A arte dramática do poeta pode ser dividida em três partes. Na primeira, compreendida entre os anos de 1590 e 1602, Shakespeare escreveu comédias alegres, dramas históricos e tragédias no estilo renascentista. A segunda fase, que vai até 1610, é caracterizada por tragédias grandiosas e comédias amargas, A última parte, que vai até a sua morte, é marcada basicamente pelo lançamento de peças que têm o final conciliatório.Toda a sua obra, escrita em 20 anos, está presente em palcos e telas de todo o mundo. Informações retiradas do site: http://educacao.uol.com.br/biografias/ult1789u145.jhtm acessado em 8 de nov de 2008 às 19h20min. 62

Samuel Beckett foi um dos realizadores do teatro do absurdo e é considerado um dos principais autores do século 20. Sua obra foi traduzida para mais de trinta idiomas. Escreveu poemas e textos em prosa, como romances, novelas, contos e ensaios, além de textos para o teatro, o

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sobrevivência. Da busca de uma lógica que de manter-se vivo mais um segundo.

Associo essa sobrevivência à que Márcio relatou ao falar do palhaço e sua relação

com o fracasso. O que torna o palhaço “melancólico” é sua relação com a

sobrevivência.

Analisando o texto Fim de Jogo (Beckett), a relação de dependência entre os

personagens Clov e Hamm é praticamente a mesma entre os palhaços “Augusto” e

“Branco”. Hamm depende mais de Clov, que Clov de Hamm. Porém, tenta a todo

instante fazer Clov ver-se como dependente. Ainda nesta obra, destaco as rubricas

com indicações de ações físicas, que se aproximam das gags. Clov no início do

espetáculo vai de um canto ao outro da sala olhar pela janela algumas vezes. Cada

momento é indicado pelo dramaturgo. A relação que as personagens têm com os

objetos também me remete ao jogo do palhaço. Hamm, que é cego, usa óculos e,

por vezes, limpa suas lentes. Essa relação, aparentemente absurda, estabelece uma

crítica. Para Dario Fo (1999), o palhaço deve ter capacidade de provocação, deve

ter um empenho moral e político. É o que Beckett faz com suas personagens. Essas

relações se repetem em Esperando Godot. Pozzo e Lucky podem ser lidos como um

Clown Branco e um “Augusto”, as rubricas indicativas estão presentes e a relação

crítica também.

Brecht63, também pode ser lido a partir da ótica do palhaço. É possível

identificar princípios do jogo do palhaço em sua obra. As relações de poder, sempre

presentes em seu teatro, dão abertura para esta leitura. A relação entre patrão e

empregado pode ser associada à relação entre o “Augusto” e o “Branco” inclusive

nas reviravoltas de humor entre a personagem Puntila e seu criado. Extrapolando a

questão dramatúrgica, Brecht queria desvendar os procedimentos técnicos para que

o espectador pudesse se relacionar com a obra de forma crítica. A relação que o

palhaço tem com a “desconstrução” do universo em que se insere (exemplificada no

teatro, cinema e circo) pode ser vista como uma forma de “estranhamento”. cinema, o rádio e a televisão. Informações retiradas do site: http://educacao.uol.com.br/biografias/ult1789u804.jhtm acessado em 8 de nov de 2008 às 19h25min. 63 Dramaturgo e poeta alemão. Revolucionou o teatro com peças que visavam estimular o senso crítico e a consciência política do espectador. Brecht foi um dos nomes mais influentes do teatro do século 20, não só pela criação de uma obra excepcional, mas também pelas inovações teóricas e práticas que introduziu. Com sua teoria, que propunha uma representação épica, Brecht pretendeu opor-se ao "teatro dramático", que conduziria o espectador a uma ilusão da realidade, reduzindo-lhe a percepção crítica. O "efeito de distanciamento", sugerido por Brecht, visava estimular o senso crítico, tornando claros os artifícios da representação cênica e destacando conseqüentemente os valores ideológicos do texto. Informações retiradas do site: http://br.geocities.com/edterranova/bertolt.htm acessado em 8 de nov de 2008 às 19h30min.

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Em minha iniciação ao teatro, seis anos antes de ingressar na universidade,

tive a oportunidade de ler A Construção da Personagem, de Stanislavski64. Na época

meu olhar estava voltado para o palhaço. Via palhaço em tudo e tive certeza que

Stanislavski havia escrito um livro sobre como criar palhaços. Com o passar do

tempo vi que a realidade não era exatamente essa, porém ainda percebo alguma

relação. Exercícios descritos por ele, como a “mascarada” 65, podem ajudar no

processo de surgimento do palhaço. A relação que faz com a lógica interna da

personagem é outro aspecto interessante. Um palhaço deve pensar como um

palhaço. Essa questão se faz importante, para que se torne possível relacionar-se

com qualquer coisa. Vejo que o “mergulho” proposto por Stanislavski no universo da

personagem, pode ser transposto para a criação do palhaço.

Não basta apenas entender a lógica para se tornar um palhaço. É preciso

saber executar essa lógica. Acredito em um jogo do palhaço que é, acima de tudo,

físico e presente. Portanto, todas as formas de treinamento físico do ator podem ser

utilizadas na construção de um palhaço. Pedro ao analisar o jogo como “um

processo psíquico e físico onde o racional e o intuitivo se complementam” diz que é

possível se discutir “as leis do jogo do clown usando como referência princípios

desenvolvidos por Stanislavski, Meyerhold, Copeau, Artaud, Grotowski e Lecoq” 66.

Mais que uma personagem isolada, o palhaço tem uma linguagem própria,

com fundamentos e princípios. Dizer que um palhaço é simplesmente alguém com

um nariz vermelho é ignorar a bagagem que essa personagem traz ao longo dos

anos. Relacionar palhaço a uma figura “pusilânime ou sem personalidade” é uma

falta de respeito.

Creio que “ser palhaço” é uma forma de olhar o mundo, que possui autonomia

para transitar por gêneros teatrais. Quando entra cena, o palhaço traz consigo sua

lógica. Na rua, no palco, no picadeiro ou onde quer que esteja, ele é dono de sua

arte.

64 Ator e diretor de teatro russo (17/1/1863-7/8/1938). Pseudônimo de Konstantin Sergueievitch Alekseiev, criador de um novo estilo de interpretação, o método Stanislávski, baseado em naturalidade, fidelidade histórica e busca de uma verdade cênica. Informações retiradas do site: http://www.algosobre.com.br/biografias/konstantin-stanislavski.html acessado em 8 de nov de 2008 às 19h32min. 65 Exercício citado no livro A Construção da Personagem, de Stanislavski onde são dispostos, aos atores, inúmeros elementos para a construção de uma personagem, cada ator pega um elemento e a partir dele inicia sua criação. 66 Entrevista de Pedro Ilgenfritz concedida ao autor desse trabalho, em 05 de outubro de 2008, por correio eletrônico.

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BIBLIOGRAFIA

BELTRAME, Valmor Níni. Princípios técnicos do trabalho do ator-animador. In: BELTRAME, V. N. (org.). Teatro de Bonecos: distintos olhares sobre teoria e prática. Florianópolis: UDESC, 2008.

BERTHOLD, Margot. História Mundial do Teatro. 1. ed. 2. reimpressão. São Paulo: Perspectiva, 2003.

BOLOGNESI, Mário Fernando. Palhaços. São Paulo: Editora UNESP, 2003.

BURNIER, Luís Otávio. A Arte de Ator: da técnica à representação. Campinas: Editora da Unicamp, 2001.

CASTRO, Alice Viveiros de. O Elogio da Bobagem: palhaços no Brasil e no mundo.Rio de Janeiro: Editora Família Bastos, 2005.

CONSENTINO, Marianne Tezza. A Formação do Clown: o teatro como prática de liberdade. 2004. monografia (Graduação em Teatro) – Centro de Artes, Universidade do Estado de Santa Catarina, Florianópolis, 2004.

FO, Dario. Manual Mínimo do Ator. 2. ed. São Paulo: Editora SENAC, 1999.

JARA, Jesús. El Clown, un navegante de las emociones. Colección Temas de Educación Artística n° 2. Sevilha: Olimpia, 2002.

PAVIS, Patrice. Dicionário de Teatro. 2. ed. São Paulo: Perspectiva, 2003.

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BIBLIOGRAFIA DISPONÍVEL NA REDE

DIMITRI. O mais nu dos artistas. In: Clowns & Farceurs. Paris: Ed. Bordas, 1982, p. 36-37. Tradução de Roberto Mallet. Disponível em: <http://www.grupotempo.com.br/tex_nu.html> acesso em 1° de nov de 2008 às 15h23min.

FELLINI, Frederico. Sobre o Clown. In: Fellini por Fellini, Porto Alegre: L&PM Editores Ltda., 1974, p. 1-7. Tradução de Paulo Hecker Filho. Disponível em: <http://www.grupotempo.com.br/tex_fellini.html> acessado em 1° de nov de 2008 às 15h28min.

LECOQ, Jacques. Em Busca de Seu Próprio Clown. In: Le Théâtre du geste, org. de Jacques Lecoq, Paris: Ed. Bordas, 1987, p. 117. Tradução de Roberto Mallet. Disponível em: <http://www.grupotempo.com.br/tex_busca.html> acessado em 1° de nov de 2008 às 15h32min.

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ANEXOS

ANEXO A – ENTREVISTA BASE

1 - Quanto tempo você trabalha como palhaço?

2 - Qual o nome do seu palhaço? Como ele surgiu?

3 - Quando faz outro personagem, o que você reconhece do seu palhaço?

4 - Na sua visão, existe algo que possa ser chamado de “Jogo do Palhaço”? Se sim,

como defini-lo?

5 - Como se configura a relação entre dois palhaços?

6 - Com a inclusão de um terceiro palhaço, como se transforma essa relação?

7 - Em que a fala pode ajudar ou limitar um jogo entre dois palhaços?

8 - Como o espectador influencia no jogo?

10 - O que o Grupo de Pesquisa Teatral Atormenta significou para você?

11 - Em que o fato de ter participado desse coletivo reflete na sua postura como

artista?

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ANEXO B – ENTREVISTA DE PEDRO ILGENFRIZ

(concedida em 05 de out de 2008 via correio eletrônico)

1 - Quanto tempo você trabalha como palhaço?

Eu comecei com o Geraldo Cunha em 1992. Estava na primeira fase de Artes Cênicas e participei de uma oficina centrada no jogo cênico, depois fui convidado a fazer parte do Grupo Atormenta. Trabalhei com o Geraldo até meados de 2000, quando mudei para a Nova Zelândia. Comecei a dar aula e ministrar oficinas sobre a arte do clown em 1998. Quando cheguei na Nova Zelândia esse trabalho se fortaleceu pois era a única forma que eu encontrei de manter o contato com o estudo e pesquisa do jogo e do riso. Em 2003 estreei como diretor e escritor com um espetáculo centrado no mesmo eixo do trabalha do ator e do clown, a peca se chamava The Last Presentation. Em 2004 comecei o mestrado em direção teatral e lá criei outro trabalho de clown chamado The Spot (2005). Esse ano montei um trabalho sem fala investigando os elementos básicos do jogo, esse espetáculo se chamou The Flying Jug. Ano que vem vou montar uma companhia com o intuito (finalmente) de pesquisar o jogo e a linguagem do palhaço a fundo.

2 - Qual o nome do seu palhaço? Como ele surgiu?

Ele se chama Peidolito. Ele surgiu no jogo. Na aprendizagem dos elementos básicos do jogo, no uso da máscara, no trabalho diário... Em outras palavras, ele surgiu na improvisação. Na aquela época o Geraldo propôs (não me recordo com precisão) um jogo onde os clowns davam nomes uns aos outros, e acho que foi assim... Foi o Geraldo que batizou ele de Peidolito. Mas existe uma anedota por traz disso. Eu era (e ainda sou) muito peidão. Especialmente quando começo a me movimentar. Todo dia antes do ensaio, nós fazíamos uma bateria de exercícios e alongamentos, trabalho com o corpo e eu logo começava a soltar gazes... Não sei, é o meu organismo! É assim que ele responde, pode até ser um reflexo emocional também, do meu sistema nervoso. E lá ia eu, soltando tudo durante os ensaios... e até em apresentações! Um clown peidão. E ai tu imaginas, de onde vem o nome Peidolito. Tem toda essa coisa do clown ser super pessoal, das imperfeições, do ridículo, do inacabado, do grotesco, do baixo corporal (Bahktin), e acho que o nome vem bem a calhar, e sou muito orgulhoso de ser um peidão.

3 - Quando faz outro personagem o que você reconhece do seu palhaço?

Eu estou sem trabalhar como clown por um bom tempo agora, mas posso refletir em relação a alguns trabalhos que ainda estão vivos na minha memória. O clown vem de uma estrutura do jogo que é a estrutura básica do teatro. As leis fundamentais do jogo dão impulso a cena e revelam o aspecto poético e pessoal do trabalho do ator. A gente dizia (mais precisamente o Geraldo dizia) que clown só tem um. É impossível criar dois clowns. A gente cria a matriz do jogo, que é a forma que cada indivíduo joga. E isso está ligado à história pessoal, ao talento, à disciplina, à Fisiologia (uso do corpo, reflexos, nervos, músculo, equilíbrio e etc.), a imaginação, sentido de observação da realidade, ideologia e classe social. Em resumo, quem a gente é. Todos os personagens vão ser variações dessa matriz, dessa forma de jogar. Desse clown fundamental, dessa maneira de ver o mundo. Dessa forma de reagir. O Peidolito hoje dá aula de teatro, dirige espetáculos. Não que o meu clown faça isso tudo, mas é o artista que é o Pedro que faz isso tudo. O que muda é a forma de jogar a medida que a gente se torna mais velho, compreende melhor as leis do jogo, entende mais o nosso corpo, entende mais a sociedade. O clown amadurece com o ator. O jogo vai sendo mais refinado a medida que o ator joga mais.

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4 - Na sua visão, existe algo que possa ser chamado de “Jogo do Palhaço”? Se

sim como defini-lo?

Claro. Como havia explicado na entrevista da Tica. As leis do jogo do Clown são as leis da improvisação. Essas leis são evidentes no jogo da máscara e se evidenciam em questões como, por exemplo, a economia e a sustentação. O jogo deve ser indireto, deve ser instalado, deve obedecer o próprio ritmo (que difere do ritmo da vida cotidiana). O Jogo deve ser apoiado na presença cênica, que por sua vez depende da ampliação da atenção física e sensorial do ator. O jogo também depende da inteligência, do raciocínio rápido, da imaginação livre e desimpedida, da fantasia, da livre associação... Como você vê é um processo psíquico e físico onde o racional e o intuitivo se complementam. Desta forma se pode discutir as leis do jogo do clown usando como referência princípios desenvolvidos por Stanislavski, Meyerhold, Copeau, Artaud, Grotowski e Lecoq.

5 - Como se configura a relação entre dois palhaços?

Conflito. Sempre vai haver um problema entre dois clowns. E ai vem a parte dramatúrgica do universo do clown. A coisa do “Augusto” e do “Branco”, os opostos gerando a disputa, o debate e também o equilíbrio. Dai vem a estrutura do jogo, de desenvolver um problema, uma série de eventos até a exaustão de um jogo, de abrir todas as possibilidades dentro de um problema, da relação de conflito que a gente está constantemente negociando com o mundo. Dos paradoxos e das contradições que o jogo gera, desdobrando o sentido e revelando a estrutura dos discursos. O clown sempre vai criticar uma moral, uma visão de mundo através de sua loucura. Isso gera o riso. Isso até pode ser terapêutico, e eu prefiro ficar no campo da arte, do que me enveredar no caminho da terapia, mas também sei que clowns tem esse poder. Estou aprendendo sobre os clowns naturais nas sociedades do Pacífico, mais precisamente em Samoa onde se tem uma coisa chamada Fela’Aitu. É algo que está naquela área entre arte e vida cotidiana. Se há um problema na aldeia, se algum chefe por exemplo esta abusando do poder, ou administrando mal o poder delegado a ele, a comunidade se reúne e alguns membros da comunidade (que tem o conhecimento desse tipo de atividade) começam a encenar, a dramatizar de uma forma cômica grotesca, o comportamento e atitude do chefe, ridicularizando o chefe... Toda a tribo cai na risada, tem gente que até espontaneamente se junta a performance! No fim todos viram e experimentaram a total inversão do poder. O chefe foi alvo do riso que destronou e destruiu a imagem dele como respeitável, inteligente, sábio e correto. As ações dele foram reveladas e ridicularizadas. Todos puderam liberar aquela tensão que se acumulou, incluindo o chefe. E assim “o aviso” foi dado no sentido de restabelecer o status da tribo e normalizar as atividades políticas. Fela ‘Aitu também rola em outras ocasiões, sempre que há um desequilíbrio de ordem social e política. Assim você vê o poder do clown de aliviar as neuroses do dia a dia.

6 - Com a inclusão de um terceiro palhaço como se transforma essa relação?

Não muda muito. Somente se amplia a possibilidade de jogo. Na essência, na raiz, se mantêm semelhante ao que foi descrito acima. E claro que a medida que inclui mais clowns se tem mais problemas. Por isso que não se vêem trupes com mais de cinco clowns. Seria muita confusão. Clowns são sempre solitários, eles refletem o problema da comunicação. Clowns não conseguem estabelecer o básico do entendimento entre eles, eles tropeçam na linguagem. Não entendem as coisas mais simples que nós sabemos (ou pensamos que sabemos). Eu estou procurando um terceiro ator pro grupo que quero montar ano que vem, acho que com três clowns dá pra montar um trabalho com uma dinâmica muito boa. Se com dois clowns se tem equilíbrio, um terceiro sempre vai desequilibrar. Mas mais uma vez isso são questões dramatúrgicas que não são diretamente ligadas a estrutura do jogo. Esta estrutura permanece ligada as leis que são às mesmas independente do número de atores que se tem.

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7 - Em que a fala pode ajudar ou limitar um jogo entre dois palhaços?

Com fala dá pra ir muito mais longe. Dá pra revelar muito mais os aspectos pessoais do ator e ir mais a fundo na dramaturgia. O jogo silencioso é fundamental pra se aprender as leis do jogo. Meu clown começou a falar depois de três ou quatro anos jogando em silêncio.

8 - Como o espectador influencia no jogo?

O jogo está na mão do ator. A platéia é parte do jogo.

9 - Li em uma entrevista que você concedeu a Marianne Tezza que dizia que a

diferença entre clown e palhaço está na forma com que jogam. Que formas são

essas? E em que elas se aproximam?

Sim, eu falei que eles jogam de forma diferente, pois estão em contextos diferentes. Eu estou interessado num jogo que é mais refinado, que revela mais aquele espaço que está entre a comédia e a tragédia, esse clown que revela um lado poético da vida, as contradições, a essência da beleza e da feiúra da existência. Não estou interessado no palhaço que faz as pessoas rirem, mas naquele que faz as pessoas sorrirem. Quero chegar perto do coração, da contemplação de uma verdade... Não estou interessado no riso como reação superficial de algo que se apresenta distorcido, mas de algo que está relacionado a nossa sobrevivência. Acho que vejo o clown desta maneira, mais perto do sagrado. Por outro lado, acredito que todos os clowns têm ligação como esse aspecto ritualístico do riso.

10 - O que o Grupo de Pesquisa Teatral Atormenta significou pra você?

Tudo. Ali foi a escola, a fundação, o alicerce, o começo, a plataforma onde o meu trabalho como artista e educador foram estruturados. Devo isso a todos os integrantes do grupo, mas em especial ao Geraldo Cunha. Ele é meu mestre e amigo, é hoje, colega que está sempre perto de mim onde eu for. A ele eu presto meu tributo e respeito. Admiro o Geraldo como um pai. Meu pai teatral.

11 - O que, o fato de ter participado desse coletivo reflete na sua postura como

artista?

Foi ali que entendi a necessidade de se ter um grupo. De ver o trabalho sendo desenvolvido no contado diário e disciplinado. Do respeito pela arte e da ética do treinamento. O grupo acabou, mas não terminou o trabalho.

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ANEXO C – ENTREVISTA DE MÁRCIO CORRÊA

(concedida em 10 de out de 2008)

1 – Há quanto tempo você trabalha com o palhaço?

Na verdade é assim, quando eu estava na faculdade em 89, 90, logo que entra a gente se identifica com determinadas pessoas com quem você acaba trabalhado. O Geraldo, mais um grupo que tinha dentro da faculdade de atores, que na verdade não é uma faculdade de ator é uma faculdade de professor. Mas eram pessoas que agiam como tal, porque eu não consigo entender uma pessoa que dê aulas se ela não atua. Não existe um professor que não atue, claro, desde que o professor já tenha atuado durante um bom tempo e decide não atuar mais e vai ser só professor. Eu continuo, graças a Deus, fazendo as duas coisas. Sendo professor e também atuando. Com o mesmo espetáculo já há anos. Faz tempo que eu não faço assim vários trabalhos. Então, quando na faculdade, já no quarto semestre por aí, a gente se uniu e resolveu fazer um grupo. Um grupo de pesquisa que fixasse seu trabalho na figura do ator. No trabalho de ator mesmo então, investigar a fundo a proposta física, no caso do Jacques Lecoq, na verdade é como o conhecimento passa. Quando você fala, “o pouco que eu aprendi foi contigo”, é verdade, eu aprendi um pouco e passei esse pouco pra você da melhor forma. O Mallet dava aula pro Geraldo e o Geraldo é uma pessoa que pesquisa, que lê muito. Ele com certeza da turma toda era o que mais entendia do que fazia, de direção, de criação depois vamos falar um pouco sobre isso, como se cria dentro do teatro do palhaço. Mas então, a gente tava querendo pesquisar, começou com uma equipe, essa equipe mudou, até que fixou a partir de 1990, 91 em um grupo que durou até 98. O primeiro grupo de atores tinha a Eliete, o Ricardo Burigo, Patrícia dos Santos ficou um pouco depois saiu, tinha eu, a Luciana Cesconeto também participou do Atormenta uma época depois saiu também. Na verdade, o método era meio rigoroso. Como no trabalho do Mallet, que eu também fui aluno dele e aprendi muito disso, era essa questão do ego. Um ator tem que lidar com isso. A gente fazia um tipo de teatro que você não massageia o ego, não fica fazendo firulas, pesquisa tendo que andar pelado ou sei lá o que pra liberar certas coisas. Não, basta você ter a consciência física corporal, não precisa desse tipo de perversão. Era um trabalho centrado no que é concreto. Então isso foi muito importante para os atores daquela época, pra nós. Por que aí nós desenvolvemos uma pesquisa na linguagem do palhaço sem fala. É uma linguagem física. A gente ficou quase seis anos, quatro anos mais ou menos, fazendo o mesmo espetáculo sem nenhuma fala. No Clowns, os palhaços não falavam, o meu palhaço no começo ele falava só com uma corneta. Então aquilo foi bem importante pra todos nós, eu considero. Todo mundo até hoje continua, graças a Deus, a Vandeca e a Andréa estão continuando o trabalho delas, se juntaram com o Pepe, isso tudo cresceu, o Geraldo sempre foi a pessoa que era o Diretor. Fez o trabalho de ator dele com o manezinho, não sei se continua ainda, o Seo Maneca. O Pedro foi pra Austrália depois pra Nova Zelândia e continua sendo um professor de teatro atua lá, eu acredito, faz tempo que não o vejo, acho que está trabalhando mais como diretor. Eu, continuo meu trabalho. A Andréa Rihl que também fez parte do Atormenta. Não dá pra deixar de falar da Andréa Rihl, a Andréa Rihl é a atriz mais antiga de Florianópolis, a gente dizia isso pra ela. Ela fazia teatro já antes de eu pensar em fazer teatro. A Andréa Rihl teve a humildade de essa coisa que o ator tem, trabalhou como contra regra do grupo e depois entrou no treinamento porque o Geraldo tinha uma certa regra que era assim, você tinha que iniciar o treinamento pra você chegar ao nível de todos eles. Eu era o ator mais antigo digamos. Ator desde o começo, fundador e eu me beneficiei muito com essa pesquisa, como ator. Isso é uma coisa que leva tempo pra você desenvolver. Hoje, por exemplo, depois de dezoito anos lá do começo do grupo, eu sinto que estou entrando em um amadurecimento de entender porque que o ator tem essa fixação pelo irreal, pelo mistério, o surreal que é ser uma pessoa que na verdade não é, dentro dos princípios da atuação. Isso tudo foi muito bom pra todos os atores. Dos grupos de teatro que foram de Florianópolis, o Atormenta foi o que teve maior sobrevida, o mais teve vida, em uma ascendência rápida que tinha tudo pra acontecer. Tinha tudo pra ser um belo grupo, o que hoje a Vandeca e a Andréa fazem, que é o sonho de todos os atores que é ganhar dinheiro e viajar pelo mundo inteiro poderia ter acontecido lá em 98, 99. Imagina quanto tempo nos atrasamos, porque o caminho estava ali.

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2 – Qual o nome do seu palhaço, no caso o Tongo, e contar a história de como

surgiu esse nome?

O Tongo, na verdade surgiu com o nariz vermelho mesmo. O treinamento começava com o nariz, primeiro com o trabalho físico do jogo sem a fala, focado na ação. Naquilo que você não prevê, claro que você descobre uma coisa no improviso depois pode repetir aquilo. Acho que foi o Geraldo que me deu o nome de Tongo. Por eu ser maior, grandão. Usava um suspensório tipo uma jardineira, era uma coisa meio infantil. Acho até que na época a gente vacilou muito na questão da linguagem dos narizes. Poderia ter aprofundado mais. Coisa que depois a gente fez. Depois eu construi uns narizes que foram bem interessantes. Eu esculpi eles no formato do rosto de cada um. Mas no começo nós usávamos aqueles narizes de plástico, pequeno. Você pode até usar aquilo, mas tem que modificar, então usar fogo com um isqueiro e dar uma moldada nele e transformar ele em uma outra coisa. - Tem que ser sua, não é? Isso, tem que ser seu, a máscara tem que ser sua, ser feita pra você. Não é feita pra ficar usando com todo mundo isso é mascara de treinamento, mas uma máscara de um personagem que você constrói é sua, é sagrada. Tongo então surgiu assim, foi o Geraldo que deu o nome. E aí ele soprava uma corneta. Não podia falar, aí eu tive a idéia, a gente pegou uma cornetinha, então eu fazia a voz com a corneta, o velho jogo do apito. Só que no caso dele a voz dele era a corneta. Como eu sempre assumi a postura do palhaço Branco, ficou Tongo. Tanto é que uma vez eu fui fazer o curso com o Nani Colombaioni lá em São Paulo, isso em 98 daí eu fiz o curso com ele, tomei uma paulada, literalmente, de quedas, eu não me dimensionava. Era um ator inexperiente, no início de carreira e o Nani ele chamou, não, o Lelis que é filho do Nani, o Nani hoje já morreu quem mantém a tradição da família Comlobaioni é o Lelis, então ele me identificou, eu estava com meu personagem, sem nada só com agasalho de ensaio aí ele me chamou de maestro de orquestra. Ele definiu. Eu fiquei bem contente de ver a definição de um cara que tem a história, uma família de quinta ou sexta geração de Commedia dell’arte, ele identificar e bateu com o que eu queria, com o que eu já era, ele identificou na hora eu nem tinha feito nada. Ele olhou pra mim antes do exercício começar e disse maestro de orquestra eu entendi que seria o “Branco” naturalmente mas só que ele seria mais mandão. Assumiria o cara que é brigão que dá porrada. E a palavra tongo também tem uma definição segundo consta ele é uma entidade espiritual ou sei lá o que, não de traficantes mas de ladrões, meio bandidos. - Você ou o Geraldo sabiam disso? Não, não... Isso veio depois... - Então foi pela sonoridade da palavra mesmo? Isso. Hoje por exemplo sou bem isso. O Tongo ainda é o apresentador do circo, não uso mais nariz vermelho, a maquiagem já é outra, a voz eu puxei sempre de quando ele começou a falar. Daí já era um outro palhaço a gente já não usava mais nariz. Eu tinha uma coisa do bigode do Salvador Dali, uma coisa meio diabo, diabólico. E essa voz eu sempre mantive, sempre tentei aperfeiçoá-la. - Essa voz tem a ver com o som da cornetinha ou não foi uma coisa que surgiu? No começo quando apareceu era aquilo ali. Aí o Geraldo deu umas modificadas, aí você vai trabalhando um pouco das entonações pra achar o registro, você vai se incorporando na verdade. Demora sempre um certo tempo. Pra que faça parte do seu corpo mesmo. E aí ficou. Eu não gosto de fazer a voz do personagem quando estou sem nenhum elemento do personagem. Eu tenho que ter quase todos, por exemplo, quando eu ponho o óculos, já me maquiei certinho, quando coloco o óculos começa a aparecer a coisa. Aí já começou. Provavelmente todos os palhaços são assim, colocou o nariz, isso é regra não é, colocou o nariz começou não tem como não ser. Quando você não tem nariz aí coloca o óculos não é? Como o bigode do Chaplin.

3 – Quando você trabalha com outro personagem, eu sei que na época de

montagem vocês fizeram o Sonho de uma noite de verão, então o que você

identifica do Tongo, vou ampliar um pouco mais, o que tem do Tongo, no seu

trabalho de forma geral, seja como ator ou diretor, professor enfim, no seu dia

a dia?

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Primeiramente, eu não consigo ficar calado. Eu fico calado, eu respeito muito, quando eu vejo uma coisa que eu não concordo, coisas que são abertas, eu sou muito brigão, eu não me calo diante de injustiça. Não mexam comigo, não mexam com a minha família, não mexam com ninguém que eu veja que tem injustiça. Nesse caso eu sou uma pessoa que tenta sempre proteger a minha área, nesse ponto o Tongo é muito isso. Ele fala, ele briga se alguém tá na frente dele, as vezes pode ser um criança, ele é muito cruel as vezes então tem isso, isso é o mais próximo. No físico eu não acho nada parecido, não é o que eu pretendo, não sou tão arrogante nesse ponto. Por exemplo, a barriga, eu estou mais barrigudo que nunca então eu busco isso, explorar a barriga, eu sempre explorei na verdade. Nunca tive medo de mostrar a minha barriga eu sempre disse que tenho essa oportunidade de ser uma pessoa sem barriga com barriga. Você pode puxar a barriga e fazer um personagem mais fortão, ou fazer realmente um barrigudinho, sem ser um enchimento. Apesar de eu fazer Papai Noel por exemplo eu coloco enchimento, deixo ele mais gordo ainda.

4 - Na sua visão, existe algo que possa ser chamado de “Jogo do Palhaço”? Se

sim que jogo é esse?

Na verdade eu li poucas coisas com relação ao palhaço, sei que hoje em dia existe muito mais literatura, mas na época a gente tinha pouca literatura que falava sobre o palhaço. Devia ter livro em inglês ou espanhol. Mas na verdade todo mundo tem um pouco desse personagem, dessa coisa “fracassada”. Não que o palhaço é fracassado, ele na verdade está sempre melhor que todo mundo. O palhaço é o mais esperto de todos. De todos nós, ele é um ser muito esperto. Ele nunca vai se dar mal. Apesar de que ele sempre vai ter seus desacertos, que vão fazer parte desse jogo. Ele vai sempre procurar o caminho mais difícil, não só o mais difícil, mas aquele que o ator está dominando o palhaço, dentro de um improviso, por exemplo, dentro desse ambiente aqui tem um monte de gente tomando um chá, então ele vai atuar naquilo ali. Vai se transformar em um garçom pra sobreviver àquilo. Então o palhaço está sempre tentando sobreviver, quando digo que ele é o mais esperto é que ele não tem vergonha, ele está fora do que é real. Ele anda sempre pelo alto, por isso que quando um palhaço voa, essa imagem do palhaço anjo, essa coisa que se fala da passagem do anjo se dizia quando o ator tinha uma grande comunhão com aquela cena que ele tava fazendo que você sentia que aquilo foi tão perfeito que enganou todo mundo e foi engraçadíssimo. Ele chegou ao ponto certo. Como em um espetáculo repetitivo, o número do palhaço é o número do palhaço, claro que vão acontecer os improvisos estou colocando antes uma outra situação que é você pegar um palhaço e jogar dentro de uma situação, ou seja, que ele vai ter que improvisar. Nisso você mede onde está o palhaço realmente. Os treinamentos de palhaço, eles provavelmente sempre começam com essa desnudez, saber que você vai ter que lidar com aquilo, eu lembro que com o Geraldo, o Geraldo vai lembrar disso, nós treinávamos lá dentro da sala de cênicas as vezes três horas seguidas sem sair do personagem, duas horas e meia atuando ali direto, aquilo era exaustivo, por isso que se chamava exaustão, aí volta e meia você sai daquilo. Você não vai por aquele caminho então você volta e retoma. Faz parte do treinamento então você pode voltar. Não é um espetáculo é um treinamento. Entende? Então o palhaço tem que ter essa coisa de onde que está o jogo? O jogo está nisso, em você chegar e ver o que você pode fazer com aquilo. Então o palhaço nunca vai poder atuar antes de abrirem a tampa da comida. Se alguém vier com uma coisa daquela lá ele vai se aprontar, vai se arrumar, vai colocar o babador e vai ficar até que alguém coloque o prato. Aí ele já mostrou que está faminto. Aí quando vai abrir e de repente tem um frango desossado. Aí é que ele vai ver como que ele vai solucionar aquilo. Quando eu falei antes do sofrimento, que o palhaço é um ser fracassado, sofrido, isso tudo faz parte. Sempre teve essa mística que o palhaço é um pouco melancólico, é o lado poético dele é melancólico, mas ele vai agir como um soldado, como um médico, ou como um garçom. O palhaço tem que sobreviver

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5 – Como se configura pra você a relação entre dois palhaços?

Isso é uma pergunta legal, porque assim, no começo de carreira eu sempre atuei com a mesma pessoa um bom tempo. É bom por isso, você atua com um mesmo ator com quem você vai contracenar por um bom tempo, então vocês passam a se conhecer, intimamente mesmo, é uma troca de amizade mesmo. O teatro tem essa coisa da formação, a menos que seja eu contratar um grupo de atores que conheço e colocar eles ali e cada um se conhece na hora. Eu quero trabalhar com aquele cara, pega o cheque lá e paga o cara e traz, isso é diferente. Agora o grupo quando se forma quando está no início de carreira, como foi o nosso caso, o Pedro, por exemplo, foi com o que mais atuei, o Artur a Vandeca a Andréa, o que Atormenta durou esses longos anos oito anos heim? Um número de fortuna, sorte e foi no ano em que a coisa inverteu, é legal porque quando você descobre essa relação, ela se torna íntima, na contracena você esta sempre esperando o que o outro vai fazer como um músico. Ele vai tocar, todo mundo que é músico de alguma forma fica dizendo, tal nota, uma levada e ai você começa a tocar porque é musico, o ator é a mesma coisa ele sabe contracenar com o outro pode um ator que começou agora e como é que vai atuar vai improvisar, vai. Agora uma relação de ator de contracena. Não era só com o Pedro, era com o grupo inteiro. A gente se olhava muito, se percebia quando se definiu assim o que cada um era em termo de palhaço, eu era “Branco”, o Pedro era “Augusto”, a Vandeca era “Branco”, a Andréa, a Dedeia era interessante que quando ela entrou logo de cara sacou tudo, ela é uma grande atriz, uma excelente atriz de cara ela já modificou toda a linguagem, praticamente, ela veio para dar aquele pontinho no que a gente estava querendo. O equilíbrio. Porque você pode ter uma dupla de “Brancos”. Eles vão, de alguma forma, sempre entrar em atrito, ou vão achar cada um o seu comparsa, escravo, ou servo. Um pode achar um rato e o outro uma barata para escravizá-los. Mas eles sempre vão necessitar de uma outra pessoa. Mas quando é um “Branco” e um “Augusto” eu acho que é uma relação familiar. Isso a história comprova, existem inúmeros duos, você pode pegar o desenho animado, o cinema, o circo. Tem sempre alguém que é clown de resposta. Tem muitas situações, você achar uma dupla de atores que você consiga desenvolver um belo número, realmente um bom número de palhaço, você vai ter que ter um certa experiência. Quando vocês juntar os dois e trabalhar eu acho que você pode chegar nisso mas você tem que ter esse entendimento, de como trabalhar isso. Existem inúmeros roteiros para palhaços. Eu estou em uma fase de criar alguns roteiros porque tem coisa que talvez você não vai mais exercer, não vai mais fazer. O Circo de Pulga eu vou fazer a vida inteira, mesmo que eu esteja velho. É naquilo ali que eu vou desenvolver o meu trabalho de palhaço, é um número bonito, diferente, as pessoas gostam, as crianças gostam bastante, então é um espetáculo que eu vou levar pro resto da vida e isso tem a ver com a questão do palhaço, o palhaço vai amadurecendo a cada apresentação. Depois que você sai de uma apresentação, fica se perguntando de cada coisa que deveria ter aproveitado que você poderia ter feito, poderia ter feito outra pensando cada detalhe.

6 – O que, na sua opinião, acontece quando se coloca uma terceira pessoa

nesse jogo?

Cada novo membro vai buscar o seu equilíbrio dentro daquilo ali, dá pra comparar com um aldeia de ciganos, uma aldeia de andarilhos, o palhaço tem sempre essa coisa do andarilho, o bufão tem um pouco disso do andarilho que vai e faz as coisas, tenta dar um “migué” criar uma coisa farsante para ter vantagem sobre aquilo ou alguém. Isso já é uma característica cada um vai ter, a palavra que eu estou tentando definir é sobreviver. Ele vai ter que sobreviver. O palhaço vai ter que sobreviver sempre. Isso é físico, não é diferente da nossa vida normal. Você tem que ter como sobreviver, se deslocando de um lado pro outro, só que a gente não está atuando, não tão diretamente como é um número de palhaço, uma coisa artística. Esse outro, o terceiro no que eu aprendi sobre esta definição do “Branco” no “Augusto”, seria o “Anão” que é um outro que seria inferior ainda, é um meio termo é o que seria [na commedia dell’arte] equivalente ao Briguela. Entre o Arlequim e o Pantaleão. Ele estaria no meio, pode ser o cara mais, vamos dizer assim, cretino dentro do jogo. Parece que eu estou sempre falando que os palhaços estão sempre querendo colocar má fé em alguma coisa, mas na verdade não é isso, também não dá pra pensar na figura do palhaço como um ser que anda borboleteando por ai. Ele pode até cheirar uma rosa, mas tem uma intenção por trás disso. Então assim, a sobrevivência é sempre garantida. Nós trabalhávamos em um grupo, que tinha quatro

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palhaços. Dois “Brancos” e dois “Augustos”. Então as vezes se revezavam no jogo, as vezes eu estava no comando, dominando a situação, depois eu me quebrava e outro dominava. Tinha números que os “Augustos” se ferravam e outras vezes o “Branco” se ferrava. Se você pegar o desenho animado você vai ver que é o jogo do palhaço, bem claro em inúmeras situações.

7 – O que pra você significou fazer parte do Atormenta?

Como ator iniciante, na época a gente não tinha como fazer um aprendizado dentro da universidade. A gente tinha um aprendizado como ator, mas isso nunca ia chegar a se aprofundar se você não trabalhasse por conta própria. Mesma coisa, você dar aula de piano pra alguém e o cara não ter onde tocar. Seria comparado a isso, não desenvolve. A gente usou muito o espaço da universidade, acho que o Atormenta foi um grupo que se criou dentro da universidade. Usou o espaço da universidade que neste ponto foi bastante favorável. A gente sempre agradece e pra mim significou muita coisa, significou meu início de trabalho como ator, ter conhecido aquelas pessoas naquela época em Florianópolis, a gente fez muita coisa fora, depois a gente trabalhou muito com o sindicato dos bancários. Tinham inúmeras fotos de coisas que a gente fez pelo sindicato dos bancários e outros sindicatos. Eles nos deram bastante apoio na época. Ajudou bastante porque fazíamos outros personagens, conseguia praticar outros personagens. De certo ponto, pra mim, foi uma grande escola. A UDESC foi referência, gostava muito da universidade. Toda aquela época do Atormenta que aconteceu na UDESC, nas salas dos blocos vermelho, amarelo e verde. Aquela fase no começo, em 88, para nós era mágico, é como se fosse a década de sessenta para o Caetano e o pessoal da tropicália, para nós significou isso. Estava com vinte e poucos anos, estava bem contente. 8 – O que ter participado desse coletivo reflete em seu trabalho?

O que eu aprendi disso tudo foi que as coisas acabam. Meu objetivo agora é continuar o meu trabalho, tentando fazer cada vez melhor, conselho do Nani Colombaioni, quando eu estava prestes a entrar em cena ele disse: “melhore sempre o seu trabalho!”

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ANEXO D – ENTREVISTA DE GERALDO CUNHA

(concedida em 20 de out de 2008)

1 – A quanto tempo que você trabalha com clown?

Eu vou fazer, tendo 20 de teatro, vou fazer 19 anos que tenho a pesquisa do clown. É porque assim, eu comecei com teatro na UDESC, eu sou da terceira turma de artes cênicas. E a primeira turma que tinha se formado eles estavam com o espetáculo que se chamava Tartufo, que na época era dirigido pelo Faleiro, era a montagem deles e eles continuaram apresentando, e ai tinha um cara que ia sair e eu entrei para substituir esse cara. Isso foi em 89 e essa foi a primeira vez que eu subi no palco pra fazer alguma coisa, pra participar do espetáculo. Esse foi meu ingresso no teatro, que vai fazer 20 anos ano que vem. Depois disso eu comecei a trabalhar com a pesquisa do âmbito da escola, fazendo minhas improvisações, fazendo montagens. Daí eu conheci Roberto Mallet, acho que o Márcio já falou dele, foi com o Mallet que eu ouvi a primeira vez em fala de clown. E ai eu comecei a pesquisa do clown, isso foi em 90. 2 – Como é o nome do seu clown e por que ele surgiu, o nome e a

personagem?

O meu clown é o Tito. Eu comecei a pesquisar com o Mallet, ele passou um exercício porque a gente estava com dificuldade de achar o nome do clown. Era um exercício para ver o nome, saiu Tito e ficou. Mas com o Tito eu trabalhei muito pouco. Eu pego a pesquisa do clown e coloco no Maneca. O que eu tenho de clown eu uso no Seo Maneca. O clown mesmo é o Tito e surgiu no trabalho com o Mallet. 3 – Quando você faz outro personagem, no caso quando você fala do Seo

Maneca, que enfim já vi e é fantástico, que quando você tem esse clown base e

transporta o que você consegue para a personagem do Seo Maneca? O que é

isso que você consegue trazer?

A questão do clown é mais que um personagem só, ele é uma espécie, ele pode aparecer em vários personagens. Então, o clown base meu é um, ai eu pego um pouco dele pra colocar no Maneca, eu tenho trabalhos que são para empresas, trabalhava com os bancários. Alguns trabalhos sob encomenda, que é uma situação tranqüila porque o clown se adapta, ele vai ao público quando precisa passar alguma idéia, essa é a versatilidade do clown, essa estética clownesca dá possibilidade de você dialogar sempre com o público, porque o clown nasce de um fazer teatral fora da dramaturgia. Mais pra frente você vai ter o texto e ali as personagens, que daí você vai decorar aquele texto. O clown surge de outra maneira, ele vem de uma improvisação, de uma idéia e produz o texto a partir da personagem, da ação. E é essa versatilidade que eu procuro colocar no Maneca, esse tempo da improvisação, vê a coisa e jogar, planejar a ação. É a coisa do riso, procurar sempre situações engraçadas. 4 – Na sua visão, existe alguma coisa que pode ser chamado do jogo do

palhaço? Ou o jogo é o jogo?

Tudo no teatro tem jogo. Todo tipo de teatro, o que faz as pessoas se surpreenderem às vezes, porque quando fala isso do jogo, ai diz “mas não o jogo cômico”, mas qualquer tipo de estética tem jogo. Porque o jogo para mim está na ação. O princípio do teatro é ação. O jogo do clown é um jogo específico. É um jogo principalmente do humor. Tem que ter humor senão não é clown. É um humor

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aprofundado, refinado, que vai pra um campo quase da loucura, do insano, da surpresa. Aquilo que te surpreende. É o jogo da convenção também, que ele mesmo instituiu, que ele mesmo estabelece, acho que um grande exemplo do jogo é quando Chaplin come a bota na Corrida do Ouro. O ato é simples, mas é como ele prepara isso. Primeiro ele faz uma sopa, acredita nessa convenção que ele faz, ele experimenta, não está bom, ai ele coloca sal, ele abre pega o cadarço como se fosse macarrão. É isso é esse aprofundamento das convenções que ele instituiu que faz você acreditar naquilo. O Maneca é um personagem, eu acredito, que causa isso. Quando eu entro com o Maneca eu entro com todo o jogo. Eu enquanto Geraldo, enquanto ator tento desaparecer completamente. Tudo passa por um filtro que é a visão do Maneca. Ele pode discutir qualquer coisa. Ele entra nessa sala e ele pode discutir os quadros, sempre dentro do parâmetro dele, ele sempre vai jogar a partir dos seus parâmetros por isso é importante você ter uma construção. Isso é uma coisa que muita gente não entende. “Ah, Isso é fácil”. Não, você tem que ter uma construção sólida de personagem. Aquilo que o personagem vai jogar tem que ter algo de pessoal. Que só aquele clown pode jogar, outro clown vai jogar outra coisa porque é outra personalidade. O outro vai ter outro parâmetro que é visão de jogo, construção do corpo. É o jogo do inesperado, da releitura também, o clown relê as coisas, esse é o momento crítico dele. Porque tudo que ele faz como o Maneca, por exemplo, ele já fala daquele assunto mas já faz uma crítica, ele já questiona aquele valor, coloca tudo em uma vidência crítica, é isso que distingue um jogo aprofundado de um clown de uma tolice, de uma “bobajeira” que não te passa essa crítica, esse aprofundamento e é ai que a comedia é profunda, quando ela consegue realmente chegar na critica. 5 – Como é que, na sua opinião, se configura a relação entre dois clowns?

A relação fundamental entre os clowns é o clown Branco e o clown Augusto, ai tem também uma relação política do que manda e de quem é comandado. E já nisso uma critica do comando e do poder no momento em que um se elege um clown Branco, que é aquele que pensa que elabora, aquele que estuda, aquele que diz vamos executar ai ele bate no clown Augusto e já há uma critica de poder e como o poder já é convencional. Você vai chegar a alguns extremos que é a pancadaria. Se você pegar os Três Patetas, o Moe está sempre tentando reger o Larry e o Curly e nunca consegue, sempre tem a paulada pra mostrar quem é que ta mandando, pra mostrar que convencionalmente tem um mandando. E tem aquele que obedece que nunca obedece, que faz tudo errado. Como isso vai acontecer depende do clown, você pode ter uma situação onde encontra dois “Brancos”, mas a relação se são clowns realmente vai sempre se estabelecer a partir do jogo. Tem um exemplo que a gente sempre diz. Eu tava de assiste de direção do Faleiro no espetáculo Noite de Reis, cheguei no meio do caminho, vou até abrir um parênteses. Como essa questão da linguagem é complicada e como que as pessoas que são mais tradicionais do teatro tentam limitar a idéia do clown, não entende a questão da linguagem. Uma vez eu tive um problema com uma crítica do Shakespeare, foi na época que estávamos montando Sonhos de Uma Noite de Verão, foi a nossa montagem que foi dirigida pelo Faleiro, e eu tava fazendo assistente de direção, e pra mim naquele texto os cinco artesãos são clown, a situação já é clownesca, eles não são um grupo de teatro, eles montam um grupo de teatro para apresentar pro rei e a peça sai completamente as avessas, tão é clown que o Shakespeare no final ele coloca o comentário dos nobres debochando dos clowns, os nobres ficam caçoando deles, mas essa crítica não admite que aquilo ali seja clown. Clown para ela tem um nariz e faz coisas especificas do clown, eles setorizam, prendem a coisa em uma personagem só, se não tem nariz se não está no circo então não é clown. Ai vem a minha idéia que o Dario Fo sempre coloca também, a questão que é a estética clownesca, que o Shakespeare usou muito, por exemplo, então tem grandes nomes do teatro que insistem em dizer que não existe a estética clownesca. Existe o clown e o clown é clown ponto. Inclusive o Shakespeare, em algumas transcrições do Shakespeare, o Faleiro até tem, no Hamlet, os coveiros ele coloca two clown provavelmente ele tinha bons clown e criava cenas pros caras poderem entrar. Ele escrevia muito pros atores, então ele criava os roteiros. Por isso que alguns textos são tão fragmentados, porque ele criava cenas que era pra situação em si, pra aproveitar aqueles atores. Então ai tem o Noite de Reis, aparece o clown que é o Malvólio, que é um clown Branco. Ele tenta o tempo todo se mostrar mas é muito desajeitado, tem várias situações. Tem uma situação entre os empregados do Duque, três bêbados. Ai eu quis trazer isso pro contexto mais moderno, ai eu disse assim: “bota os Três Patetas”, o Faleiro ficou meio assim porque ele não conhecia os Três Patetas, ai ele perguntou “são clowns?”, “são clowns!” O clown tem inúmeras facetas, você pode pegar os Três Patetas, o Chaplin, o Buster Keaton, o Gordo e o Magro, os irmãos Marx que vão pra uma outra coisa uma coisa mais bizarra. - Aquele irmão mais novo, o Harpo, ele é completamente louco.

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É, ele é um clown Augusto, ele não fala, eu acho que é isso. Tem muito essa coisa da estética, uma espiritualidade clownesca que está em vários locais. - Quando eu tava entrevistando o Márcio, ele falou uma coisa interessante que é referente à relação entre dois “Brancos”, que eles sempre precisam de alguma coisa para dominar, alguém pra dominar. Claro. Isso é visível no Chaplin, claro que ele é mais “Augusto”, sempre tem um guarda um gordo que era o clown Branco dele.

6 – Quando entra um terceiro clown nesse jogo, existe uma modificação?

É, existe uma modificação, no terceiro, no quarto. Dependendo de quantos clown vão estar em cena. Se eles forem clowns bons mesmo, se tiverem bem construídos eles vão ter personalidade e vão jogar em cima disso. Que jogo cada um vai propor e como é que cada um vai jogar o jogo que ta proposto, tem a ver com isso com a personalidade sua. E ai fica mais complexos, porque ai são três a pensar a situação que está ali. - Na última formação dos Três Patetas, o Champ, entra e começa a disputar com o Moe quem é que ta mandando. Mas ele não consegue passar na frente do Moe. Porque o Moe é um clown Branco muito bem construído, o Moe tem uma coisa muito boa do clown Branco, a gente tende a gostar mais do clown Augusto porque ele ta mais no jogo, e normalmente ele é mais engraçado, ele traz as situações mais engraçadas, mas o Moe ele tem uma coisa muito boa, que é o mesmo que o Groucho Marx ele já traz uma cara, ele nunca ta feliz ele está sempre com aquela cara de dor de barriga. Que é uma característica do Clown Branco, ele está sempre ocupado, está sempre pensando em alguma coisa. Ele é mental. Ele pensa tudo ‘errado’, ele elabora ‘errado’, mais ele é mental. 7 – Em que a fala pode ajudar ou atrapalhar no jogo do clown?

Quando comecei a pesquisar o clown, eu achei que o trabalho com a fala e sem a fala tinha o mesmo peso. Depois na pesquisa, pra mim, a fala contribui mais. É importante o clown falar para poder aprofundar certas coisas. Porque assim, se a gente for pensar na nossa sociedade, muita coisa está na fala, a gente se comunica a partir da fala. Claro que o signos são importantes, os sinais, tudo isso é muito importante, mas a fala ela aprofunda determinadas questões. Então o clown sem a fala tem dificuldade de aprofundar certas questões. Quando ele traz a fala ele consegue resolver essa incomunicabilidade, e consegue transpor certas barreiras, a gente tava falando do Harpor, o Harpor não fala mas os outros falam, não é um trabalho totalmente mudo. - O Groucho, inclusive, não para de falar. É, o jogo dele ta na fala é muita fala, o próprio Chaplin ele não falava diretamente, mas sempre tinha aquelas letrinhas. Depois quando ele fala, ai ele fala bastante. Ai ele faz um discurso, o Monseaur Verdeau, ele fala e utiliza muito bem a questão da fala. Em filmes por exemplo como Tempos Modernos, ele não fala mas os outros falam, e no Grande Ditador todo mundo fala, que é onde ele pode abordar questões extremamente profunda, como a do Grande Ditador. Pra mim é isso, a falta da fala dificulta aprofundar certas questões. - Mas e na questão do treinamento? A questão do treinamento, eu acho que a princípio você tem que entender o jogo sem a fala, é muito importante você entender como é que você pode se expressar corporalmente e criar uma ação sem a fala, com objetos e tal, em uma serie de jogos, mas logo depois a fala pode vir. É o que eu faço nas minhas oficinas, depois você tem exercícios com fala e sem fala, não precisa você ficar muito tempo trabalhando sem fala, pra depois trabalhar a fala. 8 – Como que o espectador influência no jogo?

Eu acho que é fundamental, o espectador é fundamental. Existem três elementos primários do teatro, sem eles não dá pra fazer teatro, que é o espaço, o ator e o público. Você pode tirar qualquer um desses três elementos que ai não é teatro. Você pode ter um espaço que nem é um teatro, essa sala por exemplo, uma pessoa te observando e você atuando, ai já é teatro. Pra mim, o clown está muito ligado ao público, em uma comunicação direta, por exemplo no trabalho do Maneca, quando eu entro

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em uma intervenção, a primeira coisa que o Maneca faz é observar quem está ali. Se tem mais velho, se tem mais velha se tem mais moço, se as pessoas estão prestando atenção, se já não tão, se já estão a fim de ver, se já não tão. O trabalho todo é verticalizado no público, grandes clown como o Xuxu, eles não desprezam em nenhum momento a platéia, a platéia está sempre ali. Quer vê um exemplo bem lega? A gente assistiu em 98 um dos maiores clowns que eu já vi ao vivo que é o Tortel Poltrona. Ele é um clown catalão e ele é fantástico, ele preza tanto a platéia ele com aquelas faixas amarela e preta que se usa pra acidente e isolamento, ele isola toda a platéia, ele vai enrolando os outros e dizendo: Cuidado tem um clown aqui! Protejam-se, protejam-se! É muito perigoso. E dentro de cena ele tinha uma energia tão grande que você ficava assim na cadeira. Você fica ligado ele ta jogando contigo o tempo todo, ele não abre mão do público um minuto. O bom clown é esse, o clown não deixa nada acontecer, pode cair um alfinete, alguém pode derrubar uma coisa ele esta lá e está jogando com aquilo, não acredito num clown que não considere a platéia ou que tenha momentos que trabalhe com a platéia, o clown ele ta o tempo todo, mesmo que ele esteja em cena fazendo alguma coisa. Ele está aqui mas ele está lá o tempo todo, a triangulação como a gente diz, é direto, é fundamental. 9 – Que significou para você Atormenta?

Atormenta surgiu assim, eu estava na faculdade e já trabalhando com o Mallet e nisso tinha um grupo de pessoas que era o Márcio a Eliete, a Patrícia, e o Ricardo Buligo, e eles estavam muito a fim de ter um grupo, eles já tinham um grupo de performance e eles queriam uma coisa mais séria de mais peso. Ai eles me convidaram porque eles sabiam que eu estava trabalhando com o Mallet e o Mallet é uma referencia e eu topei porque ágüem tinha que dirigir, eu gostava muito de ser ator mas eles estavam sedentos em fazer alguma coisa e alguém tinha que dirigir. Não era o que eu queria fazer, no começo, quando eu estava trabalhando com o Mallet eu só queria ser ator, depois eu fui conciliando isso melhor. Hoje eu consigo ser ator, se bem que eu trabalho mais é com o Maneca e dirigir e formar atores que é coisa que eu gosto de fazer também, dar cursos. O Atormenta foi muito importante porque foi um momento em que eu nunca tinha dirigido, foi quando eu comecei a entender a lógica da direção, da formação do ator e aprofundar o jogo do clown.

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ANEXO E – ENTREVISTA DE ANDRÉA RIHL

(concedida em 30 de out de 2008)

1 – Há quanto tempo você trabalha com palhaço/clown? Eu na realidade trabalhava um pouco comicidade, fazia mais pesquisa em cima da comicidade daí precisar o tempo mesmo eu não me lembro mais deve ser pra... O Cirquinho tem quanto tempo? A quase oito anos atrás. Eu na realidade tinha até parado um pouco de fazer clown, ai eu faço intervenções que me convidam com a minha palhaça. Mas eu parei um pouco de estudar a linguagem mesmo, ai já fui pra outros caminhos minha trajetória na prefeitura, optei pela questão do boneco, mais do teatro de animação e tal, da contação e eu já fui por outros caminhos. Pra te dizer bem o certo acho que foi lá no final do Atormenta que eu não sei precisar, acho que foi em 94. 2 – Qual o nome do seu palhaço, a Groselha e como é que surgiu? A Groselha na realidade surgiu nos trabalhos que a gente fazia no grupo Atormenta. Eu acho que por eu ser muito branca, eu fico meio avermelhada. E eu tinha uma coisa com o vermelho, tudo que era rosa, vermelho, eu puxava pra mim. Quem batizou o nome foi a Andréa Padilha. Nem foi uma coisa minha e acabou ficando, ela já era meio infantil e uma coisa recente e eu não tive o tempo que eles tiveram. Eu até falava isso pro Geraldo, ele queria que a gente fizesse os velhos, eu falava que não tive o tempo de maturidade, tinha que ter primeiro o nascer físico depois o nascer emocional, na realidade tudo é muito junto, mas eu acho que a fala é uma das últimas coisas porque é a parte mais intelectualizada, as vezes diziam pra mim: “não, Andréa você já tem uma experiência na comicidade e isso já te facilita, você já tem uma compreensão prática”. Então eu fui nesse desafio mas senti sempre e achava que, essa questão do jogo do palhaço, eles tinham mais clareza do que eu propriamente. Então surgiu daí, do trabalho e dessa questão física. Eu ficava mesmo vermelha parecia uma groselha. - Eu lembro que a maquiagem dela é vermelha também. Isso ela tem uma semi-máscara sempre usando vermelho rosa lilás. - Até o algodão doce dela era rosa. É, ela tinha essa coisa da Groselândia, o mundo fantástico da Groselha. 3 – Entrando nessa coisa da personagem fixa, quando você faz outra

personagem como funciona essa coisa de uma personagem que faz outra?

Por exemplo, a gente as vezes tinha que fazer como no MUCAP, Movimento Contra as Privatizações, a gente jogava o palhaço em outra situação, na realidade o princípio todo é o princípio do auto conhecimento. Primeiro você constrói todo esse ser magnífico que tem, dentro das suas vivências ele vai fazendo com que você ache um palhaço, uma palhaça, que realmente é diferente de uma personagem. Quando você diz o palhaço ele é e isso acontece mesmo, eu tenho um certo controle mas as vezes não tenho dimensão, a Groselha por exemplo, em intervenções, as vezes ela entra e começa a fazer umas coisas, as vezes ela vai por uns caminhos que nem eu iria, então ela tem todo um perfil, ela tem a função que é a tal da justificativa, como o Geraldo sempre diz, o clown ele tem uma justificativa, um motivo por qual ele está ali. E na realidade aquele motivo é só pra mostrar o universo dele, ele não ta muito preocupado com aquela temática ali, eu já tentei muitas vezes fazer o clown, eu tenho o João e Maria, o João e Maria tem uma seqüência lógica, se eu fosse colocar a Groselha a fazer o João e Maria eu não sei pra onde que iria. Muitas vezes ele destrói tudo aquilo que ele vê construído, no MUCAP era assim, tinha o clown Branco que tentava coordenar porque eles tinham uma função ali e os outros dois vinham e quebravam. Na verdade é essa visão, como teve o Julieta e Romeu, os dois tinham um motivo, tinham uma função pra estar ali, que era a história de fazer um teatro para as pessoas que estavam ali, uma história apaixonante onde tinha um “Branco” que tentava propor e o outro vinha e despropunha. Ele vai pegar aquela missão, a justificativa de ele estar ali, mas o desdobramento é outra coisa, ninguém sabe pra onde ele vai levar.

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Você não pode dizer que ele vai fechar a peça como Shakespeare fechou, mas nem pensa nisso, o cara já vai sabendo que isso daí não vai dar muito certo e a construção fica bem nesse sentido, no que ele concebe. 4 – Na sua visão existe alguma coisa que a gente possa chamar de jogo do

palhaço? E se ele tem o que é isso pra você?

Depois que você me perguntou aquela coisa do jogo eu fui até lá no Dario Fo e tudo aquilo que ele fala é o jogo. E eu tava pensando nisso, o que é essa coisa do jogo do palhaço, isso é uma questão que agora se fala, agora que eu to dizendo é há muitos séculos que essa discussão já vem. Na verdade o que aconteceu, o palhaço na verdade era mais essa coisa, a questão do circo, lá eles não tinham muito essas diferenciações do que era o jogo, eles chamavam de gags, conheciam por outros termos e tal. A coisa evoluiu tanto que esse nosso tempo agora, na verdade tem que dar o crédito, o palhaço ele tem o princípio, está na base. Se ele não tiver seja por N maneiras ou N formas ele não consegue fazer o seu papel. E ai vai diferenciando, o jogo vai mais pra comicidade, ai o jogo da comicidade tem o jogo do palhaço, que agora tem gente que chama de clown, tem gente que chama de palhaço, para eles o palhaço é mais o figurativo, o exagerado, o clown é menos e até propõem uma modificação nessa nomenclatura, todos tem o mesmo princípio. O palhaço de circo tem um determinante que o diferencia, assim como o de rua tem outro determinante, e ao trazer esse palhaço de rua, de circo para o teatro já se criou um outro determinante. Mas as bases, os princípios, eu acredito que sejam os mesmos. - Eu lembro de um conselho que você me deu, que quando eu estava em cena que não saísse do jogo, que deixasse ele se esgotar por si só. Isso é uma coisa muito delicada, muitas vezes a gente consegue ver onde que está o jogo por onde que ele está indo e muitas vezes não, isso é geral, faz parte da criação. As vezes a gente está criando e a gente tem uma ansiedade por resolver e isso limita tem que tentar jogar, jogar... e improvisar. Na verdade o jogo o improviso ele é calcado em cima do momento, da situação do empírico, por exemplo, quando a gente ia criar alguma coisa, a gente não tinha muito essa coisa de ficar pensando em casa, não tinha, e eu achava isso ótimo, era assim ó, na do ensaio lá a gente vê. Eu não vou te dizer que eu não criava coisas também pensando, as vezes a gente tinha que resolver um problema e não tinha a solução e muitas vezes vinha aquela imagem na minha cabeça, isso também, muitas vezes você cria a imagem, outras vezes ela vem. Não é um trabalho intelectual, ele traz o intelectual junto mas ele é um trabalho da prática. 5 – Como é que se configura a relação entre dois palhaços? Tem uma questão que é de ciência de todos de que existe o “Branco” e o “Tony”, ou é “Branco” ou é “Tony”. O clown tem isso, muitas vezes quando você tem uma pessoa que ela é mais “Tony” que você, você que é “Tony” acaba ficando mais pro lado de comandar. De fazer a função do “Branco” mesmo e quando você não tem essa relação, por exemplo, quando você faz o palhaço solo ele cria uma relação com o público. Ou ele vai ser “Branco” e dar ordens ao público, ou então ele vai ser um “Tony” a mercê do público. Que é o público que da a direção pra ele, mas podem haver essas nuances também, eu fico pensando, essa é uma questão para investigação. De saber essas nuances de ali tenho que ser um pouco mais fervoroso ou mais “Tony”, mas essa questão existe sim, é daí que você tira essa oposição e fica rico por causa disso. 6 – Quando entra um terceiro palhaço, o que modifica nessa relação? É o que eles chamam de palhaço anão, por exemplo, Atormenta tinha cinco palhaços, era palhaço para caramba, pelo amor de Deus e mais o Geraldo também. Uns eram mais “Brancos” que determinavam mais e os outros eram “Tony”, mas daí existe um “Tony” que é mais serviçal ainda que o outro então existe isso daí quando tem um monte de palhaço junto. Uns vão até chamar de Anão ou

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tem outros “chamamentos”. Um é mais tímido que o outro, um é mais infantil, o outro já não é tão infantil, é “Tony” mas já não é tão infantil, tem umas nuances ai. Eu fazia um “Tony”, aquela coisa serviçal que já é um pouco da minha natureza, eu já descobri que em busca do seu clown, do seu palhaço, você acaba se desmascarando e depois você assume a máscara onde você vai ver quais são as suas aptidões, os seus defeitos, enfim, o que enriquece aquele palhaço e onde está mais fragilizado, você procura essa fragilidade para estar colocando. O palhaço ele tem muito isso e talvez tenha sido por isso que eu me apaixonei que é a questão da animação do teatro de bonecos, que as pessoas elas se doam mais, elas se comungam mais, não sei se é eu que sou assim, mas eu vejo isso. Muitas vezes o meu sonho cai por água abaixo porque eu acho isso o máximo, essa coisa de humanidade que é extremamente distante, mas eu gosto de sentir essa coisa do grupo fortalecido. A minha vida o meu teatro sempre foi em cima de grupo, só que hoje eu estou sozinha. Essa estrutura de grupo acabou se corroendo pelo meio do caminho. Hoje ainda existe, mas eu não consigo mais me ver dentro desse tipo de estrutura de grupo que hoje tem. A nossa estrutura era outra, eu não dei te dizer o que tinha de diferente se era melhor ou não, eu não sei medir, o que eu sei é que era diferente, muito diferente. 7 – O que você acha que a fala no jogo pode ajudar ou atrapalhar?

Eu acho que cada caso é um caso. Muitas vezes a pessoa não tem o mínimo de convivência ai ela vai fazer um curso de palhaço e desabrocha o maior palhaço ali na tua frente de uma pessoa que nunca experimentou aquilo, é isso que eu amo na arte. Eu acho que isso ta na vida toda, mas na arte isso foi preservado, de que uma pessoa não precisa estar dentro de academia de um curso, ela pode buscar outras vias, claro, ela deve ter, no mínimo, outro tipo de contato, ter assistido muito circo, ou ter uma questão da própria vida dela, então eu acho que cada caso é um caso, não que primeiro tenha que fazer isso pra depois aquilo, não, eu acho que é como uma criança, na verdade é um ser, eu não vejo isso só pro palhaço, eu vejo isso pras outras personagens, é legal se você tiver esse tempo, essa disciplina de poder fazer esse trabalho passo a passo, de ir vendo crescer, isso é legal. Pode ser que comece a falar, agora se a fala é boa ou não é isso também é caso a caso, as vezes você acho que é melhor fazer uma situação sem fala, mas existem palhaços que são em cima só de fala. O cara fica parado ali e o jogo todo acontece em cima de fala, o cara nem anda um metro e você ri e se diverte para caramba. Então cada caso é um caso, tudo que venha a contribuir às vezes você ficar muito quieto não é legal, sabe o que é, é que nós vivemos em um sistema de muita retórica. A fala na realidade perdeu, ela tinha uma função mais apaixonante, por exemplo, quando a gente ia fazer um exercício eu geralmente não consigo falar, porque nem eu sei, eu primeiro tenho que ver como é, muitas vezes a gente, isso eu vejo no meu trabalho também, por insegurança ou sei lá, por n porquês, por questões do nosso sistema, que como eu disse pra você é retórico, fala, fala, fala, mas não funciona pra nada, perdeu o sentido do que é realmente a questão do símbolo da fala. Claro que estou dizendo no geral, existem trabalhos lindíssimos só em cima de fala, mas muitas vezes a gente vai direto, é o intelecto da gente vai direto. Então tem muito essa coisa de insegurança, vai ali e começa a falar, falar, falar... Na verdade é muito mais de como ele vê aquela escada dali, o que ele pensa quando ele vê aquela escada, o que ele faria com aquela escada, porque eu vou fazer uma coisa você vai fazer outra, não adianta, pra mim aquela escada ali pode representar um príncipe ao contrário, eu estar aqui embaixo e ele lá em cima, ou então dormir na escada, ou então sei lá. Aquilo dali vai ter n significados para cada um, eu posso chagar ali e fazer uma declaração de amor, para a escada enfim, “você sempre me fez subir na vida” ou então “ó meu amor como você é grande, você me leva aos céus”. E isso é enriquecedor porque na verdade vai criando o texto que na verdade é o texto cênico. O texto realmente. Eu primeiro vejo as ações pra depois sentar no computador e roteirizar, ai depois eu começo a pensar, “ah isso aqui é legal, pode ir por aqui” e ai já é o intelecto. Tem isso daí e ai vai embora. 8 – Como é que você vê a influência do espectador no jogo?

Na realidade eu aprendi muito com a personagem fixa e como clown, eu agradeço muito, eu respeito todos os meus colegas que optam por uma linguagem, mas quando eu comecei a me perceber as possibilidades que isso podia me dar eu nunca mais consegui voltar a fazer uma outra coisa que, não

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sei, tem muita gente que opta. Eu acho fundamental ter ciência de que a gente tem que comungar, é uma comunhão, então na realidade eu vejo que o palhaço, ele tem isso, por exemplo, a própria estrutura da triangulação e de todos os outros elementos que o teatro de animação também tem, foco, enfim, todos os outros elementos que você sabe melhor do que eu, todos eles, a presença cênica, o jogo onde começa a trabalhar com as ações, aonde vai levar a uma estrutura cênica mesmo, todos esses elementos eles estão em tudo, o teatro é isso. E ai o que acontece, o palhaço tem essa comunicação, por isso que eu digo que a própria estrutura de elementos, dos princípios, eles já levam a isso, essa quebra da parede e tal. Mas a questão da construção, eu vou te dar um exemplo, o MUCAP, nós pegamos aquele trabalho, nós roteirizamos e nós jogamos na cena. Nós não tínhamos quase nada construído e acabamos ficando em cena uns quarenta minutos. Se cria um roteiro, e a partir desse roteiro vão se fechando as questões, ou seja, quando a gente coloca o espetáculo o público vai respondendo, o palhaço é muito mais isso. Você vai descobrindo o jogo, a platéia também entende o jogo e, claro, ela vai contribuir. Então ali se descobre muitas outras coisas. Como por exemplo, vamos usar esse daí, que para mim foi um estudo muito grande, simples, mais muito grande. E lá pelas tantas a Groselha, que era uma grande atriz que estava interpretando um grande papel, ela tinha muito essa coisa feminina, dos namoricos, dos homens bonitos, ela foi esperta, né? E ela começou a “engachar” esse jogo, ela jogou e é por ai que eu vou. Ela dizia “ah, faltou luz, tenho que pegar o telefone, cadê o telefone” e ela pegava a mão do homem mais bonito, “ai, tá aqui o telefone” e os outros dois já se “antenavam”, os outros dois clowns não gostavam muito, daí ela falava “ai, esse telefone tá tão quente, ai esse telefone ta nervoso, ta tremendo”, ai os outros dois chegavam e diziam que não era bem assim e tiravam ela. Ai depois tinha o chuveiro, e ela ia em outro homem. Mas dai você tem que medir até que ponto pode abrir a cena, é importante isso, para não perder o controle da história.

9 - O que representou para você fazer parte do Atormenta?

Foi muito bom, eu aprendi bastante. As amizades que fiz, que são pessoas que eu tenho o maior carinho e respeito até hoje. Pela questão ética, pela questão do conhecimento, pela questão até de persistência. São pessoas que, de alguma maneira ou de outra, estão persistindo ainda. Indo à procura desse conhecimento. Então para mim foi bem legal, porque na realidade eu consegui organizar toda aquela minha passagem, que antes era muito intuitiva e que continuou intuitiva, mas a gente tinha uma reflexão e isso foi legal também. E outra coisa é essa questão até do olhar mesmo, de ter aprendido, essa questão do jogo ela é muito importante, a ação, e saber claro, que o palhaço de circo ou o clown de circo, enfim clown ou palhaço, ele tem um jogo que é apropriado a toda sua circunstância, que é claro que outra personagem já não vai ter, que não é um personagem, é toda uma linguagem, que é específica mesmo e que todos os princípios estão ali vivos. Então é muito legal ter essa visão do todo e até para dar um norte. Enfim, é muito gratificante, muito mesmo e a gente aprende muito.