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UNIVERSIDADE DE CAXIAS DO SUL CLÁUDIA ALESSI O DESAFIO DE DAR VOZ ÀS PESSOAS NAS GRANDES REPORTAGENS AUDIOVISUAIS: UM OLHAR POR ENTRE FRONTEIRAS CAXIAS DO SUL 2012

O desafio de dar voz às pessoas nas grandes reportagens audiovisuais: um olhar por Entre Fronteiras

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Monografia final apresentada no segundo semestre de 2012 na Universidade de Caxias do Sul, curso de Comunicação Social - Habilitação em Jornalismo

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UNIVERSIDADE DE CAXIAS DO SUL

CLÁUDIA ALESSI

O DESAFIO DE DAR VOZ ÀS PESSOAS NAS GRANDES REPORTAGENS AUDIOVISUAIS: UM OLHAR POR ENTRE FRONTEIRAS

CAXIAS DO SUL 2012

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CLÁUDIA ALESSI

O DESAFIO DE DAR VOZ ÀS PESSOAS NAS GRANDES REPORTAGENS AUDIOVISUAIS: UM OLHAR POR ENTRE FRONTEIRAS

Monografia de conclusão do Curso de Comunicação Social, habilitação em Jornalismo, da Universidade de Caxias do Sul, apresentada como requisito parcial para a obtenção do título de Bacharel.

Orientadora: Prof. Ms. Adriana dos Santos Schleder

CAXIAS DO SUL 2012

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Dedicatória aos meus pais, que com delicadeza me ensinaram o valor de cada esforço despendido na conquista de um ideal; ao meu namorado, com o qual dividi incansáveis horas de estudo; ao meu irmão, cumplice apenas com um olhar; aos meus avôs e avós, exemplos que procuro sempre seguir. A estes devo minha devoção pelo outro e meu amor pelo jornalismo.

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AGRADECIMENTOS Agradeço a todos os que me acompanharam ao longo dos anos de estudo no curso de Comunicação Social, habilitação em Jornalismo, da Universidade de Caxias do Sul. Devo reconhecer o esforço de todos os docentes na minha caminhada de formação acadêmica, assim como o apoio dos colegas, amigos e familiares. Quero agradecer, em especial, àqueles que incentivaram e estiveram presentes durante o processo de construção do trabalho final de conclusão de curso, ao qual dediquei grande parte de meu tempo. Agradeço a compreensão pela ausência e o apoio dos que estiveram sempre ao meu lado. Agradeço minha orientadora, Adriana dos Santos Schleder, pelas horas de orientação presencial, por e-mail, por telefone e até mesmo pelas redes sociais. Pelos momentos em que a ajuda precisou ser antes emocional do que acadêmica. Obrigada por estar sempre apoiando e, principalmente, acreditando no meu trabalho. A participação, o incentivo e os conselhos de cada um foram essenciais para que eu buscasse o aprimoramento e tornasse meu trabalho mais rico.

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“Porque o jornalismo é uma paixão insaciável que só se pode digerir e humanizar mediante a confrontação descarnada com a realidade. Quem não sofreu essa servidão que se alimenta dos imprevistos da vida, não pode imaginá-la. Quem não viveu a palpitação sobrenatural da notícia, o orgasmo do furo, a demolição moral do fracasso, não pode sequer conceber o que são. Ninguém que não tenha nascido para isso e esteja disposto a viver só para isso poderia persistir numa profissão tão incompreensível e voraz, cuja obra termina depois de cada notícia, como se fora para sempre, mas que não concede um instante de paz enquanto não torna a começar com mais ardor do que nunca no minuto seguinte".

Gabriel Garcia Marquez

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RESUMO

O presente trabalho trata das grandes reportagens audiovisuais e do espaço que os personagens ganham para contar suas histórias. Para tanto, faz uma análise do episódio Partejar, da série Entre Fronteiras, exibida no Canal Futura. A análise pauta-se pela intensidade com que determinados elementos aparecem na reportagem e pela influência que geram na tentativa de invadir o mínimo possível o espaço do outro. O estudo da narrativa literária, dos detalhes e da construção jornalística busca também identificar a interferência do repórter no processo de gravação e o tempo disponibilizado para que a história possa ser contada. A pesquisa, realizada por meio do método de análise de discurso, chega a algumas considerações, dentre elas a importância de deixar o outro contar os fatos sem interferência arbitrária e a modificação que o convívio entre personagem e jornalista causa em ambos. Palavras-chaves: Narrativa literária. Jornalismo. Televisão. Grande reportagem audiovisual

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LISTA DE FIGURAS

Figura 1 – Vinheta de abertura............................................................................................... 76 Figura 2 – Dona Helena......................................................................................................... 78 Figura 3 – A chegada da noite............................................................................................... 79 Figura 4 – A gestante Mara.................................................................................................... 80 Figura 5 – O lúdico da chuva................................................................................................. 81 Figura 6 – À espera do filho.................................................................................................. 82 Figura 7 – O olhar da parteira................................................................................................ 84 Figura 8 – A intensidade das cores........................................................................................ 85 Figura 9 – O detalhe do olhar................................................................................................ 86 Figura 10 – A presença do repórter........................................................................................ 87 Figura 11 – A parteira............................................................................................................ 89 Figura 12 – A angústia da espera........................................................................................... 90 Figura 13 – A chegada de Rubia............................................................................................ 91

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SUMÁRIO

1 INTRODUÇÃO................................................................................................................. 09 2 OS GÊNEROS DE PROGRAMA NA TELEVISÃO BRASILEIRA.......................... 12 2.1 CATEGORIAS E GÊNEROS......................................................................................... 13 2.1.1 Categoria Educação.................................................................................................... 13 2.1.2 Categoria Publicidade................................................................................................ 14 2.1.3 Categoria Outros......................................................................................................... 15 2.1.4 Categoria Entretenimento.......................................................................................... 16 2.1.5 Categoria Informação................................................................................................. 19 2.2 O HIBRIDISMO EM GÊNEROS E CATEGORIAS...................................................... 25 3 A LINGUAGEM E A CONSTRUÇÃO NARRATIVA................................................. 28 3.1 A NARRATIVA E O DISCURSO.................................................................................. 30 3.2 A NARRATIVA, O JORNALISMO E A LITERATURA............................................. 40 4 A NARRATIVA NA TELEVISÃO................................................................................. 54 4.1 CARACTERÍSTICAS..................................................................................................... 54 4.2 O CANAL FUTURA....................................................................................................... 56 4.3 O PROGRAMA ENTRE FRONTEIRAS......................................................................... 58 5 O CAMINHO PERCORRIDO........................................................................................ 63 5.1 MÉTODOS E TÉCNICAS DE ANÁLISE...................................................................... 63 5.2 PESQUISA DE CAMPO................................................................................................. 69 5.2.1 Luís Nachbin............................................................................................................... 70 5.2.2 Partejar........................................................................................................................ 76 6 A VOZ DAS PESSOAS NA GRANDE REPORTAGEM............................................. 93 6.1 A PRESENÇA DO JORNALISTA................................................................................. 93 6.2 A NARRATIVA, O DISCURSO E OS PERSONAGENS............................................. 102 6.3 OS DETALHES QUE FALAM...................................................................................... 111 6.4 O TEMPO DA HISTÓRIA.............................................................................................. 117 7 CONSIDERAÇÕES FINAIS........................................................................................... 120 REFERÊNCIAS................................................................................................................... 126 ANEXOS............................................................................................................................... 131

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1 INTRODUÇÃO

  O estudo monográfico realizado neste trabalho procura mostrar como é possível dar

voz às pessoas por meio das grandes reportagens audiovisuais, fugindo da superficialidade

que a maior parte da televisão brasileira assume e aprofundando o conteúdo a ser transmitido.

A pesquisa se justifica principalmente pela possibilidade de fuga do padrão tradicional de

telejornalismo para a construção de uma narrativa diferenciada e de maior qualidade.

Entrar em contanto com diferentes comunidades e mostrá-las do ponto de vista das

mesmas é uma atitude que passa despercebida em meio a correria diária do jornalismo.

Somado ao bombardeio de informações está a pressão imposta pelos Meios de Comunicação

de Massa (MCM) na condição de divulgar notícias de impacto.

A disposição de conteúdo de forma diferenciada mexe, portanto, com a estrutura

política da nação, visto que expõe problemas sociais e econômicos da sociedade. A inserção

do repórter em determinada comunidade faz com que o conteúdo transmitido revele o

pensamento e o modo de agir das pessoas e não somente a visão do jornalista sobre aquele

grupo. A valorização do humano e não apenas do espetáculo possibilita entregar a voz aos

personagens e essa é uma alternativa para o mercado jornalístico, que exige sempre mais a

inovação na forma de apresentar um material.

O jornalismo trabalhado junto à narrativa literária não é novidade, embora nunca

tenha encontrado muito espaço. Porém, com o crescimento e a solidificação da internet e o

acesso rápido a informações, a história contada com seus minuciosos detalhes pode ser uma

alternativa. Ela se mostra uma forma diferenciada e interessante de apresentar o conteúdo até

mesmo nas mídias tradicionais, que precisam atrair o público para não perdê-lo ao meio

online.

O estudo da narrativa literária no ambiente midiático audiovisual é mais do que uma

opção para a diferenciação de tratar a notícia e as pessoas envolvidas com determinado fato.

A análise de conteúdo jornalístico apresentado de forma narrativa propõe um desafio ao

mercado televisivo, já que a realização de reportagens dentro desse padrão exige mais tempo

e envolvimento do profissional que realiza o trabalho.

O estudo está diretamente ligado a questões sociais, pois é da própria essência do

jornalismo servir à sociedade. O assunto abordado traz justamente à tona o modo como os

veículos de comunicação estão dando voz a essa população e que nível de comprometimento

social é levado em consideração, caso exista um.

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O jornalismo com comprometimento social expõe o cotidiano e os problemas de

determinada comunidade, bem como apresenta reflexões sobre as dificuldades que a cerca. E,

queira ou não, num país de grande território como o Brasil e de enormes diferenças, enquanto

a mídia não divulga as mazelas sociais, dificilmente uma política de combate aos problemas

surge.

Acredita-se ainda que o potencial da narrativa literária também possa ser a solução

para se trabalhar temas que apresentem a linguagem simples do dia-a-dia e que possam servir

de exemplo e incentivo para comunidades mais carentes. Crê-se, portanto, na eficácia do

estudo para a difusão de um conceito mais próximo e intimista de se fazer jornalismo.

Para desenvolver a pesquisa, toma-se como base a seguinte questão norteadora: como

o programa Entre Fronteiras consegue dar voz às pessoas por meio das grandes

reportagens audiovisuais? Com o intuito de respondê-la, lança-se hipóteses acerca da

influência da narrativa literária no telejornalismo: “o programa Entre Fronteiras utiliza o

jornalismo narrativo para dar voz às pessoas, permitindo que elas contem suas histórias sem

interferência arbitrária”; “o jornalismo narrativo modifica tanto o entrevistado quanto o

repórter, não necessariamente em níveis iguais”; “o jornalismo narrativo é uma alternativa

para ampliar o mercado de trabalho jornalístico”.

Sendo o objetivo geral analisar como as pessoas ganham voz nas grandes reportagens

audiovisuais, procura-se também avaliar o papel do jornalismo na sociedade; investigar como

se dá a construção narrativa na grande reportagem audiovisual; e identificar na programação

televisiva brasileira um formato diferente de jornalismo audiovisual que consiga dar voz às

pessoas por meio da grande reportagem.

O caminho percorrido durante o estudo envolverá quatro capítulos de pesquisa

bibliográfica e um de análise de discurso do material selecionado. O capítulo dois trabalhará

os gêneros de programa presentes na televisão brasileira, mais detalhadamente a reportagem

audiovisual e a hibridização dos gêneros.

No terceiro capítulo, a narrativa será apresentada desde sua concepção clássica até sua

união consumada à literatura e posteriormente ao jornalismo. A inserção dos personagens,

das falas e discursos, dos detalhes e da descrição também será trabalhada neste capítulo. Em

ordem cronológica, a linguagem e as palavras guiarão o texto para a narrativa e seus

processos de construção.

O capítulo quatro abordará a narrativa literária especificamente utilizada na televisão.

Na sequência, tem-se a apresentação do Canal Futura, assim como sua ideologia. A emissora

foi a responsável pela veiculação do programa analisado e sua forma de pensar a grade de

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programação concentra-se na busca por materiais que aprofundem o conteúdo. Também será

apresentado o programa Entre Fronteiras, série que abriga o episódio analisado.

O quinto capítulo será o responsável por mostrar o caminho percorrido ao longo do

trabalho, desde a pesquisa de campo por meio da revisão bibliográfica até a análise de

discurso. Nele, as etapas da realização da análise serão apresentadas detalhadamente, para

que se compreenda o processo de identificação de significados retirados do episódio.

Também foram apresentados o jornalista condutor do programa, Luís Nachbin, e a

transcrição do material que originalmente se encontra em audiovisual.

No sexto capítulo tem-se a análise de discurso realizada sobre o episódio Partejar.

Pela intensidade dos temas, o estudo será dividido em quatro etapas. A primeira trata da

presença do jornalista na grande reportagem. Na sequência, tem-se o envolvimento dos

personagens e da literatura na narrativa construída junto ao jornalismo, a importância dos

detalhes e o tempo disponibilizado à história para que ela se constitua com início, meio e fim.

Por fim, serão apresentadas as conclusões obtidas pela pesquisadora e algumas

considerações referentes ao estudo do assunto e sua importância para a academia.

 

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2 OS GÊNEROS DE PROGRAMAS NA TELEVISÃO BRASILEIRA

A televisão, assim como os demais meios de comunicação, apresenta em sua estrutura

programas variados com funções distintas. Enquanto alguns produtos têm como objetivo

educar, outros têm por interesse informar ou entreter. Alguns podem até mesmo unir mais do

que uma única função, sendo considerados informativos e de entretenimento ao mesmo

tempo.

Por isso, muitos autores vêm estudando, ao longo dos anos, formas de distribuir o

conteúdo transmitido com o objetivo de colaborar tanto no processo produtivo, quanto no

receptivo. Uma das maneiras encontradas foi a de separar as produções televisivas em

categorias, gêneros e formatos. Toma-se como base para essa discussão o autor José Carlos

Aronchi de Souza, doutor em Ciências da Comunicação e autor do livro Gêneros e formatos

na televisão brasileira (2004).

Em contrapartida, há autores que defendem a ideia de que a produção de conteúdo

para a televisão não demanda de um campo limitado de atuação. Os processos tecnológicos e

a exigência crescente da audiência tem fortificado esta tese, visto que vários programas já

reúnem diferentes categorias e gêneros. Neste caso, eles buscam um contrato social

diferenciado, que não toma como ponto de partida os gêneros, mas sim as próprias

características da produção.

As organizadoras dos livros Televisão: entre o mercado e a academia, Elizabeth

Bastos Duarte e Maria Lília Dias de Castro, tanto no volume I, quanto no volume II, reúnem

diversos autores que já trabalham a produção de conteúdo televisivo pela hibridização de

gêneros e categorias.

Para Arlindo Machado (2000), doutor em Comunicação e professor do programa de

pós-graduação em comunicação e semiótica da PUC de São Paulo, a distribuição dos

produtos televisivos em gêneros e categorias representa uma classificação, mas não uma

estagnação. Por estarem inseridas na dinâmica de uma cultura, as tendências que preferencialmente se manifestam num gênero não se conservam ad infinitum (grafo do autor), mas estão em contínua transformação no mesmo instante em que buscam garantir uma certa estabilização” (MACHADO, 2000, p. 69).

Este capítulo tem por objetivo apresentar a classificação dos gêneros e o seu processo

de hibridização. Também se propõe o questionamento sobre a flexibilidade das definições

quando o assunto são os produtos televisivos. As nomenclaturas ainda norteiam os produtores

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e os telespectadores, mas a própria mudança cultural e o período histórico da televisão

exigem formatos que saiam do padrão tradicional para algo que pode ou não vir a ser

definido.

Este capítulo se propõe a apresentar as duas linhas de identificação do conteúdo

apresentado na televisão brasileira: a classificação por categorias e gêneros e o hibridismo de

ambos. Procura-se, portanto, mostrar as possibilidades e as diferentes formas de se trabalhar

um conteúdo, dando ênfase às produções jornalísticas e ao gênero grande reportagem, foco

da pesquisa.

2.1 CATEGORIAS E GÊNEROS

A divisão da programação da televisão brasileira em categorias e gêneros é

fundamental para que se compreenda o conteúdo, o que é transmitido, de que forma e por

quê. Mesmo com suas classificações, os gêneros podem apresentar variações. Em

determinados momentos, o que é considerado gênero, como a entrevista, por exemplo, pode

se tornar um formato dentro de outro gênero.

Para José Carlos Aronchi de Souza (2004), são diversos os gêneros presentes em

determinadas categorias. O autor distribui o conteúdo em entretenimento, informação,

educação, publicidade e outras.

A classificação por categorias, segundo ele, é sempre o princípio. Assim como

separa-se os produtos no mercado, diferencia-se também os produtos oferecidos pela

televisão. As categorias serão, portanto, a união de diferentes gêneros e formatos com

objetivos e características comuns. A classificação apresentada a seguir tem como base o

autor José Carlos Aronchi de Souza.

2.1.1 Categoria Educação

Os programas da categoria educação têm por objetivo principal transmitir

conhecimento ao seu público. Para Souza (2004), a categoria pode agregar gêneros e

formatos variados, que vão desde o educativo e o instrutivo até telecursos, profissionalizante

e técnico, infantil e outros. Os programas podem ser direcionados para qualquer faixa etária,

desde que seu conteúdo trate especificamente de temas educativos. O autor classifica dois

principais gêneros dentro da categoria que trabalha a educação.

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a) educativo: o gênero é representado por aulas com linguagem televisiva, que são

transmitidas, na maioria das vezes, em televisões educativas ou em horários de pouca

audiência;

b) instrutivo: possuem linguagem e objetivos claramente educativos, propiciando

aprendizado ou capacitação em certas áreas profissionais.

2.1.2 Categoria Publicidade

Outra categoria definida por Souza (2004) é a publicidade. Dentro dela, o autor

especificou os gêneros através dos quais as emissoras de TV recebem verbas e incentivos

financeiros.

Porém, não basta somente anunciar o produto ou a marca que está investindo na rede

de televisão. É preciso despertar no telespectador a vontade de continuar assistindo um

comercial ao invés de apertar um botão do controle remoto e encontrar algo mais atrativo e

prazeroso para assistir. Geralmente, os gêneros da publicidade recorrem ao entretenimento e

a outras estratégias para fisgar o público e fazer com que ele não zapeie durante os intervalos

comerciais.

Por este motivo, a autora do artigo Ações Promocionais em Televisão: formatos e

estratégias, publicado no livro Televisão, entre o mercado e a academia II (2007), Maria

Lília Dias de Castro, acredita que a publicidade tem o mérito de estimular o lado emocional

das pessoas. No fundo, o que as pessoas procuram não é comprar produtos e, sim, consumir desejos, sonhos, fantasias. E para isso o casamento entre a publicidade e a televisão tem conseguido sucesso, sobretudo pelas inúmeras propostas que oferecem de sonhar, cativar, fazer rir ou chorar (CASTRO, 2007, p. 126).

Souza (2004) classifica, dentro da categoria publicidade, os seguintes gêneros:

a) chamada de patrocínio: não existe televisão que se sustente sem um patrocinador.

As chamadas apresentam o patrocinador do programa que está indo ao ar. Elas podem

aparecer com antecedência, anunciando o programa, ao longo da programação e durante a

própria transmissão;

b) filme comercial: o gênero ocupa geralmente trinta segundos do espaço comercial

para, de uma forma dinâmica e encenada, transmitir a ideologia da empresa. Souza (2004)

acredita que os filmes comerciais movimentam o mercado de produtoras de vídeo e exigem

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criatividade para prender um público que está acostumado a trocar de canal durante os

comerciais;

c) político: por obrigação legal, as emissoras devem transmitir os programas políticos,

que são desligados das produções da televisão. Com a transmissão diária, as equipes de

produção buscam inspiração em novelas, telejornais e documentários para tornar o conteúdo

atraente;

d) sorteio: os programas desse gênero consistem no estímulo de participar de jogos,

sejam eles online, por mensagem de celular ou pela compra de bilhetes. São geralmente de

curta duração e tendem a instigar o consumidor a continuar comprando. O tempo do

programa contempla a apresentação dos vencedores e a entrega dos prêmios, além, é claro,

do convite para que todos participem;

e) telecompra: os programas de telecompra, conforme Souza (2004), são geralmente

realizados em estúdios e guiados por um apresentador, que passa o programa inteiro

negociando. Algumas reportagens feitas na loja mostram a autenticidade do produto ou a boa

aceitação, para estimular a compra. São vendas feitas pelo telefone ou convites para que os

consumidores visitem o espaço real e/ou virtual.

2.1.3 Categoria Outros

Souza (2004) definiu uma categoria para englobar todos os gêneros e programas que

não se encaixam em nenhuma outra categoria específica. Dentro desta categoria denominada

‘outros’, o autor criou três gêneros:

a) especial: os programas especiais são uma oportunidade para a emissora arrecadar

investimentos extras. Geralmente são veiculados em horário nobre e surgem já com o

objetivo de não terem uma continuidade;

b) eventos: os programas sobre eventos também têm o objetivo de arrecadar

investimentos. Podem ser transmissões ao vivo ou gravadas e exibidas posteriormente.

Muitos eventos podem se tornar um programa especial ou ser compactados e inseridos em

outros espaços;

c) religioso: são programas totalmente religiosos e geralmente produzidos pelas

próprias igrejas. A venda dos espaços para transmissões religiosas é lucrativa, já que

geralmente se encaixam fora do horário nobre.

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2.1.4 Categoria Entretenimento

Utilizado pelas outras categorias como forma de manter o telespectador na audiência,

o entretenimento pode ser considerado um grupo a parte. A categoria entretenimento,

conforme Souza (2004), reúne programas muito utilizados na televisão brasileira como forma

de despertar o interesse do telespectador e manter sua atenção para que ele não troque de

canal. Muitos dos gêneros dessa categoria são programas com real interesse de conquistar

audiência e, com isso, garantir investimentos em publicidade.

O entretenimento ganhou tanto espaço na televisão que é alvo de críticas constantes,

principalmente por não ser uma categoria isolada, mas por fazer parte inclusive das

produções jornalísticas. “Motivada por essa ideologia de entreter para conquistar maiores

níveis de audiência e faturamento, a televisão privilegia a forma do espetáculo” (REZENDE,

2000, p.35).

Tendo como base a classificação de Souza (2004), os gêneros a seguir se enquadram

na categoria entretenimento:

a) auditório: os programas de auditório, no Brasil, migraram do rádio para a televisão

e surgiram permitindo a aproximação do público ao processo de produção de conteúdo. A

variedade de atrações e a linguagem utilizada são iscas para fixar o público. Esse gênero

geralmente associa muito o programa à imagem do apresentador. Os animadores que ficam

no auditório também têm papel fundamental, já que a televisão mostra a alegria e a felicidade

da plateia. O programa de auditório, por reunir interação com o público presencial,

reportagens, entrevistas e outros formatos, é por muitos classificado como variedades;

b) colunismo social: o gênero colunismo social é uma tentativa de migrar a coluna

social das páginas impressas para a televisão. Sem muito espaço nas emissoras brasileiras,

Souza (2004) acredita que falta credibilidade para o gênero alcançar o desenvolvimento. Em

geral, o autor diz que as edições passam pelo acompanhamento do mediador, que procura

enaltecer os entrevistados em função das verbas financeiras recebidas em troca. O gênero se

apropria do formato de entrevistas e talk shows, que é um bate-papo na tevê, como base para

os programas, sendo puramente de entretenimento;

c) culinário: tem como objetivo entreter e informar, sendo transmitido geralmente

pela manhã para que a receita possa ser utilizada durante o almoço do dia. O gênero culinário

pode aparecer isoladamente em um programa ou ocupar um espaço dentro de um programa,

por exemplo, de variedades;

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d) desenho animado: os desenhos iniciaram no Brasil voltados ao público infantil.

Posteriormente, começou-se a trabalhar o gênero nacionalmente e os roteiros foram

adaptados também para o público adulto. Grande parte do que se transmite hoje é importado

dos Estados Unidos;

e) docudrama: o gênero surge da união do documentário informativo ao drama da

teledramaturgia. O docudrama “é um documentário dramatizado, com personagens

encenando histórias reais, reconstituindo crimes, interpretando ações de personalidades ou

protagonizando um assunto” (SOUZA, 2004, p. 105). O gênero aparece muitas vezes como

prestação de serviço, quando retrata situações reais de pessoas desaparecidas, ou educativo

quando busca combater alguma situação de violência;

f) esportivo: geralmente ligado ao telejornalismo das emissoras, o gênero esportivo

está diretamente vinculado aos patrocinadores, já que estes são os principais responsáveis

pela grade de programação em que o esporte vai se encaixar. Com algumas exceções, as

emissoras criam programas para falar e mostrar especificamente o futebol. Outros esportes

ainda lutam por seu espaço nas telinhas. A mesa redonda e o debate são comuns para

aprofundar assuntos que envolvem a temática;

g) filme: os filmes representam a união inseparável da produção cinematográfica e

televisiva. Divididos em formatos diferentes, como minisséries, docudramas, tele produções e

seriados, os filmes são geralmente comprados em pacotes fechados pelas emissoras,

possibilitando assim a escolha do horário adequado de transmissão de acordo com a

audiência;

h) game show: no Brasil os game shows são transmitidos geralmente em um único dia

da semana, em especial nos finais de semana, e têm duração de cerca de três horas. Os jogos

competitivos envolvem equipes e não interagem muito com o público que está em casa.

Muitos são educativos, realizados com estudantes de escolas brasileiras e focados em

conteúdo de sala de aula;

i) humorístico: o gênero humorístico também foi uma migração do rádio para a

televisão. Durante o período da ditadura militar, o humor era a forma dos artistas

descontraírem o público e transmitir informações proibidas. O principal alvo dos humoristas

era a distinção de classes. Com a abertura política, o humor passou a cair sobre a corrupção e

os problemas políticos e sociais que envolviam os brasileiros. Conforme Souza (2004), o

investimento no gênero ainda é baixo, muito porque o mercado carece de bons roteiristas que

desenvolvam o humor;

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j) infantil: o gênero infantil envolve uma série de formatos que vão desde desenhos

animados até telenovelas, seriados e programas de auditório, com jogos e brincadeiras

inseridos;

l) interativo: a interação é mais utilizada como um formato em meio a programas de

variedades e jornalísticos do que enquanto gênero. Com as mídias sociais e as tecnologias

digitais, busca-se sempre mais utilizar a interação e a participação do público para

acrescentar e, até mesmo, guiar uma discussão;

m) musical: o gênero musical surge na televisão brasileira junto à música popular

brasileira e suas letras de manifesto cultural, com programas especiais ou de auditório e

shows ao vivo. A cobertura de eventos musicais, festivais de música e a exibição de

videoclipes também são comuns;

n) novela: o gênero é um dos mais populares no Brasil e ocupa os melhores horários

na grade de programação. Os assuntos são geralmente ligados a conflitos de interesse e à

realidade. As novelas envolvem drama, possibilitando o acompanhamento e o entendimento

do público mesmo que ele tenha perdido alguns capítulos. A telenovela é, em suma, uma

transposição do teatro para as telas, com capítulos diários, interrompidos aos domingos, de 30

ou 40 minutos;

o) quiz show: o jogo de perguntas e respostas procura não somente fixar a atenção do

candidato que está participando diretamente dos questionários, mas também testar os

conhecimentos do telespectador. As perguntas precisam ser envolventes e condizentes com a

realidade de todos, pois assim serão de interesse da audiência. De acordo com Souza (2004),

o gênero se instalou há pouco no Brasil e a tendência é crescente, já que o jogo é geralmente

um interesse do público;

p) reality show: consiste em agrupar participantes em um mesmo local e vigiar suas

rotinas por meio de câmeras escondidas ou não. O gênero tem forte tendência na televisão

brasileira e sua duração atinge, geralmente, cerca de três meses;

q) revista: com duração média de até duas horas, o gênero revista reúne diversos

formatos diferentes, como noticiário, reportagem, humor, videoclipe e esporte. É uma

mudança contínua de formatos para atrair e manter o público no mesmo programa. O gênero

revista une fortemente a ideia de informar e entreter ao mesmo tempo;

r) série: os Estados Unidos são destaque na produção de seriados. Geralmente

vendidas em temporadas, as séries apresentam capítulos compreensíveis de forma isolada, o

que dificulta prender o público durante o mesmo horário todos os dias da semana. Por outro

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lado, cada capítulo das séries é estruturado para prender a atenção do telespectador até o

último minuto. As séries podem variar desde policiais, até educativas e infantis;

s) sitcom: a comédia de situação é herdada da cultura americana. O sitcom é “um tipo

de humor que utiliza a teledramaturgia para apresentar em situações cômicas os costumes dos

cidadãos comuns” (SOUZA, 2004, p. 135);

t) talk show: o gênero é baseado na conversa do apresentador e do entrevistado, por

isso o entrevistador é quem vai manter o ritmo do programa. A casualidade e a

espontaneidade são dois ingredientes que não podem faltar, assim como a presença do

auditório;

u) teledramaturgia: a dramaturgia adaptada para a televisão “engloba todas as

produções em que personagens são caracterizados para transmitir uma mensagem” (SOUZA,

2004, p. 138);

v) variedades: o programa de variedades geralmente surge para preencher um espaço

grande na grade de programação e amarrar diferentes níveis de patrocinadores. O gênero

envolve formatos como o auditório e o humor.

2.1.5 Categoria Informação

As pessoas buscam constantemente se manter informadas, seja pelo conhecimento

que isto proporciona, seja pela curiosidade. Ao mesmo tempo em que milhares de notícias

são jogadas às pessoas todos os dias, a própria sociedade sente necessidade de saber o que

está acontecendo a sua volta. Na televisão, a maneira de informar agrega não somente o texto

lido, mas também as imagens, o que a torna diferente quando comparada ao rádio e aos

jornais impressos.

Embora o online apresente todos estes elementos reunidos em uma única plataforma,

sabe-se a que a tevê atinge um número maior de pessoas do que o online, visto que muitos

ainda não têm acesso a computadores ou à internet. Ainda assim, a televisão tem outra

vantagem sobre o meio online quando o assunto é credibilidade. A informação encontrada na

internet ainda é muito questionada, pois suas fontes nem sempre são seguras. Outro fator que

assegura a credibilidade da tevê é a história que ela já construiu com o telespectador.

Para a autora Vera Íris Paternostro, “a imagem é mais forte do que a palavra, a

imagem diz o que a palavra não traduz” (PATERNOSTRO, 1999, p. 61). A autora faz

referência ao poeta Carlos Drummond de Andrade, o qual diz que “escrever é cortar

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  20  

palavras”, para retificar que o texto e a presença do jornalista precisam dar preferência às

ilustrações.

A categoria informação, conforme classificação de Souza (2004), envolve quatro

gêneros, sendo eles o programa de debate, entrevista, telejornal e documentário:

a) programas de debate: o debate é uma forma antiga de diálogo que surgiu ainda na

Grécia antiga, quando Sócrates colocava as pessoas diante uma das outras e promovia o

debate, conduzindo a conversa sob todos os ângulos, sem indução de uma conclusão final.

Hoje, na televisão, o debate é uma estratégia de informar sem gastar muito,

precisando somente reunir os convidados, entrevistadores e comentaristas, quando existem.

São programas que oferecem poucos problemas para a transmissão direta ou para o ritmo

acentuado das produções.

Para Machado (2000), os programas que se fundam no diálogo são formas discursivas

antigas, porém muito vitais, que estão na raiz mais profunda da cultura de um povo. Naturalmente, a maior ou menor eloquência desse gênero televisual depende muito da grandeza maior ou menor das pessoas que temos na tela como debatedores, sejam eles os representantes do programa ou da televisão (apresentadores, âncoras, entrevistadores), sejam eles os representantes da sociedade, os entrevistados ou protagonistas (MACHADO, 2000, p. 72).

Assim como é essencial avaliar os participantes, é também importante lembrar que o

debate só acontece quando há um confronto de pontos de vista sobre um mesmo assunto,

visto que o diálogo não se perpetua quando todos pensam exatamente da mesma maneira.

Esses programas que se centram na oralidade geralmente são propostas de redes televisivas

que fogem do esquema comercial das grandes redes nacionais e internacionais.

Os programas de debate, desta forma, não deixam de ser uma busca ou uma retomada

dos processos antigos de diálogo por meio de um suporte tecnológico chamado televisão.

Machado (2000) acredita que o processo de transmissão “abriu um espaço novo para o

ressurgimento do diálogo em condições muito próximas do modelo socrático” (MACHADO,

p. 74).

O debate pode ser temático ou não, possibilitando a inserção de assuntos mais

acadêmicos até questões sociais. Alguns programas têm um tempo de duração específico

dentro da grade de programação, enquanto outros podem ser uma forma de preencher uma

lacuna e levar adiante uma discussão por tempo indeterminado;

b) entrevistas: sejam elas inseridas em algum programa ou conduzidas enquanto

gênero, as entrevistas têm a função básica de examinar questões fundamentais para que se

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  21  

compreenda um assunto. Isso ocorre geralmente quando o entrevistado consegue responder

as seguintes perguntas: o que, quando, como, onde, por quê e quem1.

Conforme Souza (2004), a entrevista, quando unidade da programação televisiva,

envolve o apresentador e o entrevistado, que comanda o programa de forma jornalística,

embora descontraída, sem deixar o espetáculo entrar em cena. Os assuntos são os mais

variados, podendo envolver desde política até questões polêmicas.

Para Cárlida Emerim, em artigo publicado no livro Televisão: entre o mercado e a

academia (2006), o programa de entrevistas deve se submeter a determinadas regras, “tais

como duração fixa e periodicidade de exibição predeterminada; formas de estruturação pré-

definidas: número de blocos, apresentador fixo, vinhetas, patrocinadores, etc” (EMERIM,

2006, p. 161).

A entrevista pode não somente estruturar-se como programa de entrevistas, mas ela é

também um dos principais elementos utilizados por jornalistas para apurar notícias,

desmembrar informações e buscar auxílio para embasar técnica e profissionalmente algum

conteúdo. Ela é, pois, a técnica que dá a oportunidade de um indivíduo manifestar-se.

Além disso, a entrevista dá ao entrevistador e ao público uma satisfação quando há a

revelação ou alguma abertura para a compreensão mais ampla do assunto tratado. Para os

jornalistas Heródoto Barbeiro e Paulo Rodolfo de Lima, “boas entrevistas são as que revelam

conhecimentos, esclarecem fatos e marcam opiniões” (BARBEIRO; LIMA, 2002, p.84).

As entrevistas podem ser ainda classificadas de acordo com o local em que são

realizadas. As entrevistas programadas “fornecem boa parte do material básico para inclusão

em reportagens maiores” (YORKE, 1998, p. 98), segundo Ivor Yorke, jornalista e vice-

diretor do Conselho Nacional de Treinamento de Jornalistas de Radiodifusão. Isso acontece,

em grande parte, porque já há a concordância do entrevistado em participar e dar seu

depoimento, e também porque o repórter possui tempo para pesquisar e preparar-se diante do

assunto.

Já a entrevista feita em um plantão de rua, para Yorke (1998), é arriscada, pois ao

mesmo tempo em que se pode conseguir um depoimento bom, pode-se ouvir um não. O autor

considera que esse tipo de entrevista pode ocorrer com o objetivo de abordar alguém em

específico ou qualquer pessoa que esteja passando naquele momento.

                                                                                                               1 A resposta destas perguntas é essencial para que os jornalistas consigam construir o lead, que é, suscintamente, a frase inicial da notícia onde o leitor encontra as informações básicas necessárias para captar a informação.  

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  22  

Há ainda as entrevistas com testemunhas oculares, geralmente buscando informações

factuais, e as consideradas por Yorke (1998) de povo fala, que consiste na mesma pergunta

respondida por diversas pessoas com o objetivo de dar voz à população. Essa última é

também conhecida por enquete. Por fim, as coletivas, que “são entrevistas em grupo, às vezes

reunindo até centenas de jornalistas” (YORKE, 1998, p. 100), onde um ou mais entrevistados

resolvem esclarecer dúvidas ou apresentar informações à imprensa ao mesmo tempo.

Para Barbeiro e Lima (2002), a entrevista no meio audiovisual tem o poder de revelar

o que não se encontra nas palavras do entrevistado, como expressões, gestos, olhar, voz. Para

ele, os ‘maneirismos’ do entrevistado são essenciais para a revelação de novos elementos e

para guiar o assunto principal da entrevista;

c) telejornais: a característica que define os telejornais é o apresentador em estúdio

chamando reportagens e matérias, geralmente temporais. Segundo Souza (2004), o

telejornalismo foi ganhando espaço na televisão e conquistou horários nobres nas grades de

programação da maior parte das emissoras de TV aberta no Brasil.

Para Guilherme Jorge de Rezende, doutor em Comunicação pela UMESP, o que guia

o noticiário é o espelho, que “sintetiza a organização do telejornal em blocos, a ordem das

matérias em cada bloco, bem como dos intervalos comerciais, das chamadas e do

encerramento” (REZENDE, 2000, p. 146). O autor reforça que o telejornalismo está focado

nas matérias factuais, baseadas em fatos que acontecem diariamente e sem previsão. As

chamadas matérias de gaveta ou matérias frias, que são atemporais, ficam guardadas para

serem veiculadas em um dia que a produção de conteúdo é menos intensa.

Conforme Rezende (2000), o telejornal inicia sempre com as manchetes,

caracterizadas por frases curtas, que conseguem transmitir a mensagem geral da matéria. Na

sequência, a disposição do conteúdo é pensada para atrair o público. “A principal função da

escalada é despertar e manter a atenção e o interesse do telespectador do início ao final do

noticiário” (REZENDE, 2000, p. 147). Para isso, no fim de cada bloco os apresentadores

anunciam as principais notícias que virão nos blocos a seguir.

Para finalizar, Souza (2004) defende que o gênero também está muito ligado à

identidade da emissora e à credibilidade;

d) documentário e/ou grande reportagem: os documentários são geralmente uma

produção do departamento de telejornalismo da emissora que agrupam qualidade, produção e

vídeo. Os temas giram em torno de questões políticas, sociais, econômicas e científicas,

podendo aprofundar assuntos do cotidiano de um cidadão comum. O custo elevado para a

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  23  

produção de documentários faz com que, de acordo com Souza (2004), a maior parte do

conteúdo transmitido no Brasil seja importado de emissoras estrangeiras.

Para o documentarista, roteirista e escritor Luiz Carlos Lucena, mestre em

Audiovisual pela Escola de Comunicação e Artes da Universidade de São Paulo (ECA-USP),

“o documentário fala de forma direta, nos faz prestar atenção, trata quase sempre do mundo

real, nos obriga a tomar posições. O ritmo é ditado pela fala, a câmera se localiza em um

tempo/espaço específico” (LUCENA, 2012, p. 14).

Embora trate do mundo real, o documentário também é caracterizado, por alguns

autores, como gênero que abre a possibilidade de inserir a ficção em sua construção. Nem

tudo é necessariamente verdadeiro no documentário, já que ele reflete a perspectiva pessoal

de seu realizador. Além disso, o documentário envolve, na maioria das vezes, informações

históricas representadas na atualidade, com ambientações adaptadas e personagens

escolhidos.

Desta forma, “o documentário passa a ser considerado como a produção audiovisual

que registra fatos, personagens, situações que tenham como suporte o mundo real e como

protagonistas os próprios ‘sujeitos’ da ação” (LUCENA, 2012, p. 11). O autor acredita,

ainda, que o documentário e a ficção se separam por uma linha cada vez mais tênue.

Por outro lado, se em alguns momentos o documentário pode estar diretamente ligado

à ficção, em outros há certa dificuldade de separá-lo da grande reportagem audiovisual. Para

Souza (2004), uma importante característica do formato e essencial para distingui-lo da

grande reportagem é o seu tempo de duração. A proposta de todo documentário é buscar o máximo de informações sobre um tema. Por isso, sua duração é maior do que as reportagens apresentadas pelos telejornais. As produtoras internacionais de documentários realizam filmes com duração média de trinta a cinquenta minutos. No Brasil, [...] houve significativa redução da duração, o que desvirtua o caráter de documentário, merecendo apenas o crédito de grande reportagem (SOUZA, 2004, p. 146).

Neste sentido, Saulo de la Rue, no artigo A grande reportagem entre o mercado e a

academia, publicado no livro Televisão, entre o mercado e a academia (2006), destaca que a

grande reportagem é diferenciada do documentário não somente pelo tempo de exibição, mas

também por sua linguagem. “Na grande reportagem, existe uma necessidade jornalística de

fidedignidade aos fatos, o que nem sempre ocorre nos documentários” (LA RUE, p. 184).

O doutor em Ciências da Comunicação e pós-doutor em Educação, Edvaldo Pereira

Lima, que trabalha o livro-reportagem como extensão do jornalismo e da literatura,

acrescenta que a grande reportagem é uma forma de fugir do lead. O autor defende que a

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  24  

grande reportagem é “aquela que possibilita um mergulho de fôlego nos fatos e em seu

contexto, oferecendo [...] uma dose ponderável de liberdade para escapar aos grilhões

normalmente impostos pela fórmula convencional do tratamento da notícia [...]” (LIMA,

2009, p. 18).

Isso não significa que a reportagem possa se desvencilhar da verdade, até porque sua

característica primeira é o compromisso com os acontecimentos reais. Nas grandes

reportagens, geralmente a narrativa literária se une ao jornalismo para contar uma história. A

apuração jornalística mais detalhada e intensa é que vai possibilitar o uso da narrativa poética

e reflexiva, que em nenhum momento é ficção.

Para o jornalista Ricardo Kotscho, “[...] este tipo de reportagem significa um

investimento muito grande, tanto em termos humanos, para o repórter, como financeiros, para

a empresa” (KOTSCHO, 2001, p. 71). O autor acredita, então, que os altos custos afastam os

investimentos por parte das empresas midiáticas e que há cada vez menos repórteres dispostos a encarar o desafio de entrar de cabeça num assunto, esquecer tudo o mais para, no fim, ter o prazer de contar uma boa história. A grande reportagem rompe todos os organogramas, todas as regras sagradas da burocracia, por isso mesmo, é o mais fascinante reduto do Jornalismo, aquele em que sobrevive o espírito de aventura, de romantismo, de entrega, de amor pelo ofício” (KOTSCHO, 2001, p. 71).

É imprescindível mencionar os personagens, os quais são atores reais das ações e

vivem a história no presente. O entrevistado e sua fala serão os maiores fornecedores de

detalhes, junto ao cenário e ao som ambiente. Tudo aquilo que pode ser reportado só o é se

existirem personagens, pois toda ação prevê um sujeito. É esse indivíduo, geralmente

comum, que vai contar a boa história.

O jornalista Eduardo Belo (2006) argumenta que a prática da reportagem é feita para

pessoas e de pessoas. “Há profundo interesse por parte do público sobre a vida das pessoas,

sobre quem está fazendo o quê, quem são os protagonistas dos grandes sucessos em todos os

campos, esportivo, social, cultural, político e econômico” (BELO, 2006, p.50). E não só

quem faz sucesso, mas também aquela figura que identifica todo um grupo ou classe social.

Assim, percebe-se que a grande reportagem é um fragmento do jornalismo que se

constitui gênero na categoria informação, enquanto o documentário é um gênero informativo

que busca uma ligação com o jornalismo por defender ideais semelhantes. Ou seja, enquanto

o primeiro precisa apurar precisamente todas as informações, até mesmo os detalhes mais

simples, em busca da garantia da credibilidade e da qualidade, o segundo pode reconstruir o

cenário, o figurino, e adaptar os personagens.

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  25  

Desta forma, adota-se o termo grande reportagem como referência para o conteúdo

trabalhado nesta pesquisa acadêmica. Dentre os fatores fundamentais para a decisão estão o

tempo de exibição do audiovisual, típico de grande reportagem e não de documentário, a

linguagem e o compromisso com o jornalismo e com os fatos.

2.2 O HIBRIDISMO EM GÊNEROS E CATEGORIAS

Assim como muitos autores defendem a divisão de categorias e gêneros na televisão

brasileira, outros já direcionam seus estudos para entender o conteúdo de forma unificada e

dinâmica, como é o caso de Néstor Garcia Canclini, que trabalha as culturas híbridas.

Seguindo por este pensamento, a nomenclatura de gêneros e categorias simbolizaria parte do

que o conteúdo transmitido pode abordar, visto que não há linhas divisórias entre uma

definição e outra.

O avanço tecnológico e o aperfeiçoamento na produção de conteúdo são dois fatores

importantes para o processo de descaracterização de definições e o crescimento do

hibridismo, ou seja, da ausência de limites entre uma categoria e outra, ou entre um gênero e

outro. Se há a possibilidade de unir informação e entretenimento, por exemplo, sem alterar a

qualidade do que está sendo produzido, há uma tendência da emissora em optar pela união

em prol da garantia de audiência. O discurso da TV, sem desconhecer as particularidades dos diversos tipos de programas, manifesta-se, portanto, na integridade estrutural da programação. É o que um pensador espanhol classifica de ‘pansincretismo’, ou seja, a capacidade de integrar e articular gêneros discursivos e sistemas semióticos de referência extremamente variados (REZENDE, 2000, p.32).

Desta forma, questiona-se, em televisão, se a classificação em gêneros e categorias é

realmente plausível ou se não passa de uma divisão semântica que abrange um conjunto

enorme de formatos, gêneros e categorias ao mesmo tempo. Nessa perspectiva, em artigo

publicado no livro Televisão, entre a academia e o mercado, Elizabeth Bastos Duarte

acredita na hipótese de que a noção de gênero em televisão não passaria de uma abstração, seria da ordem da virtualidade, uma vez que nenhum produto televisivo manifesta apenas essas categorias genéricas, enquanto tal, em sentido restrito, em sua extensão e exclusividade (DUARTE, 2006, p.22).

A ausência de limites precisos entre gêneros e subgêneros torna a produção de

conteúdo não somente mais dinâmica, como também desafiadora. Embora seja difícil

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  26  

visualizar algo totalmente definido e enquadrado, é também instigante pensar o processo

criativo abrangente e sem limitações.

E quando se destaca a perda de limites, é imprescindível lembrar da busca histórica

pela transmissão da realidade nas telinhas. Foi essa busca da representação do real que

primeiro criou as divisões de categorias, gêneros e subgêneros televisivos, pois esses seriam

responsáveis pela identificação do que seria real e o que seria ficção por parte do público. Assim, os traços categoriais de gênero proporiam um certo tipo de relação com o mundo, colocando à disposição do telespectador um certo nível ou plano de realidade e modo de ser, sendo mobilizadores de crenças e saberes e condicionadores das expectativas e do prazer dos telespectadores (DUARTE, 2006, p. 27).

A autora defende ainda que a divisão em gêneros e subgêneros seria responsável pela

configuração dessas realidades e pelas formas e estruturas que as comporiam. Mesmo assim,

Duarte (2006) ressalta que embora a nomenclatura exista, a programação das emissoras

recorre cada vez mais aos tipos de construção de realidade concomitantemente, ou seja, a

televisão dos reais recorre aos meios ficcionais e a televisão de ficção persegue o real.

Adayr Tesche (2006) reforça a existência dos gêneros como normas criadas para a

compreensão das molduras no campo midiático, mas também acredita que são suscetíveis de

mudanças e substituição. “São convenções que criam suas próprias dinâmicas e não

condições rígidas da maneira como as coisas devem ser” (TESCHE, 2006, p. 77).

O autor defende que os gêneros foram criados a partir de uma necessidade

antropológica de se instituir convencionalidades, embora os modelos não sejam seguidos a

risca. “Trata-se de um construto organizador e configurador das estruturas conscientes e

inconscientes, mobilizadas pela imaginação e comunicadas através dos variados processos de

constituição do texto midiático” (TESCHE, 2006, p. 80).

Antes de ser uma reflexão ou uma exigência das tendências seguidas pela sociedade,

pode-se considerar a hibridização de gêneros e categorias na televisão um espelho do próprio

hibridismo de culturas, costumes e modos de pensar e agir de um mundo que persegue a

globalização. Assim como a televisão, em certas situações, dita regras para a sociedade, ela

também é um meio de comunicação de massa que precisa conhecer os interesses e a cultura

de comunidades específicas para poder agir.

Canclini trata o termo hibridação como uma tradução de mestiçagem, sincretismo,

fusão e qualquer vocábulo utilizado para designar misturas particulares. “Entendo por

hibridização processos socioculturais nos quais estruturas ou práticas discretas, que

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  27  

existiam de forma separada, se combinam para gerar novas estruturas, objetos e práticas

(grifo do autor)” (CANCLINI, 2003, p. 19).

Essa hibridização de estruturas sociais, políticas e culturais é uma forma de enfrentar

a homogeneidade imposta principalmente pelo mercado capitalista a fim de buscar lucros

mais fáceis. A heterogeneidade, não somente ao se tratar de sociedade, mas quando inserida

no meio televisivo brasileiro, gera a incerteza da aceitação e venda, mas desafia a produção

intensa e de qualidade.

Com ou sem a classificação em gêneros, acredita-se necessário estabelecer um

contrato com o telespectador. Esse contrato vai ser responsável pela identificação do

programa e por sua própria continuidade. Para o autor Saulo de la Rue (2006), esse contrato

nem sempre existe. “Hoje se vê, no mercado audiovisual, uma grande confusão de formatos,

o que tanto pode representar um avanço, como um atraso na produção audiovisual” (LA

RUE, p. 185).

Por fim, conclui-se que a classificação ou não de gêneros e categorias é uma

discussão aberta e sem definições exatas ainda. É importante mencionar que ao mesmo tempo

em que os gêneros guiam um programa a ajudam a aproximar o telespectador, eles também

restringem a produção e a enquadram dentro de um campo único e limitado. A necessidade

antropológica de se assistir a um conteúdo qualificado e reflexivo é crescente, seja a

produção mediada por gêneros e categorias ou não.

Nota-se, porém, que embora o hibridismo seja uma tendência da televisão brasileira, a

classificação em categorias e gêneros é ainda uma forma de marcar a identidade dos

programas. Assim, da mesma forma que algumas produções ultrapassam os limites entre um

gênero e outro, outros programas procuram se enquadrar nas definições pré-estabelecidas

com o objetivo de garantir o entendimento do telespectador.

Um exemplo que aponta a tentativa de sair da classificação dos gêneros e buscar o

hibridismo é a narrativa literária no jornalismo. Enquanto a notícia é trabalhada de forma

quase que mecanizada pelos telejornais, alguns programas procuram penetrar na

superficialidade e aprofundar a informação. Essa construção da narrativa, junto à literatura e

ao jornalismo, será trabalhada no capítulo a seguir.

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  28  

3 A LINGUAGEM E A CONSTRUÇÃO NARRATIVA

As formas de comunicação, sejam elas consideradas desde o uso da língua ou até a

utilização das mídias sociais, se constroem sob os pilares antigos da linguagem. Antes

mesmo de o homem conseguir comunicar-se com palavras, os gestos, as representações e as

expressões já se organizavam em busca de um significado. É essa procura constante que leva

a sociedade a, posteriormente, dominar a linguagem e com ela construir processos

comunicacionais variados.

Este capítulo tem por objetivo apresentar a linguagem enquanto fator fundamental

para a construção narrativa. A utilização da narração, em geral associada aos processos

descritivos, também ganha destaque, principalmente enquanto forma de registro histórico e

técnica comunicacional.

A estrutura atual das matérias jornalísticas e a forma de contar histórias na televisão

brasileira devem-se muito à apropriação da literatura sobre a narrativa e vice-versa. Segundo

Todorov (2003), essa união ocorre porque ambas sobrevivem melhor juntas.

A narrativa é o fio que conduz qualquer transposição, seja ela de um fato real ou não,

para a oralidade ou para o registro escrito. O processo de transposição e condução desse fato

ocorre primordialmente porque há uma série de significados que tornam a história

compreensível. Essa simbologia, além de agregar imagens, cores, formatos, etc., está envolta

em palavras. A possibilidade de conhecer cada palavra como, antes de tudo, um depoimento sobre a realidade ou como enunciação subjetiva nos conduz a outra constatação importante. Não são apenas as características dos dois tipos de palavras, são também os dois aspectos complementares de toda palavra, literária ou não. Em todo enunciado, podemos isolar provisoriamente esses dois aspectos: trata-se, por um lado, de um ato da parte do locutor, de um arranjo linguístico; por outro, da evocação de certa realidade; e esta não tem, no caso da literatura, nenhuma outra existência além da conferida pelo próprio enunciado (TODOROV, 2003, p.60-61).

As palavras, embora por si só já carreguem uma gama de significados, dão vida à

linguagem e à narrativa, isto é, uma sequência de significados que se unem para formar uma

única ideia. Como Todorov (2003) aponta, a opção por determinada palavra pode ser

simplesmente a escolha do que melhor representa a realidade, assim como pode ser um

arranjo linguístico em busca da estética ou um ato intencional de lançar algo reflexivo e

subjetivo em meio à narrativa.

Aliado às palavras, quando se pensa em meio audiovisual, tem-se ainda as imagens, o

som e o silêncio, que buscam significados concomitantemente ao texto, à narrativa. Muitas

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  29  

vezes a imagem e o silêncio falam por si só, quebrando a necessidade de haver uma palavra

sequer para a captação de significados. É uma linguagem que existe, pois, através de signos,

de imagens.

Conforme Marilena de Souza Chaui, “gestos e vozes, na busca da expressão e da

comunicação, fizeram surgir a linguagem” (CHAUI, 1995, p. 137). Desta forma, pode-se

presumir que a linguagem foi decorrência de uma busca pela significação e pela

comunicação. “A linguagem é, assim, a forma propriamente humana da comunicação, da

relação com o mundo e com os outros, da vida social e política, do pensamento e das artes”

(CHAUI, 1995, p. 137).

A palavra linguagem vem do grego logos, que significa conhecimento do real. Por

isso, muito mais do que ser um meio de comunicação entre a sociedade, ela é a responsável

pela transposição do real para o mundo dos significados. A linguagem só constitui-se

enquanto linguagem quando passa dos meios de expressão aos de significação, e isto faz com

que ela agregue poder.

O poder que se atribui à linguagem “decorre do fato de que as palavras são núcleos,

sínteses ou feixes de significações, símbolos e valores que determinam o modo como

interpretamos as forças divinas, naturais, sociais e políticas e suas relações conosco”

(CHAUI, 1995, p. 139).

Assim, mesmo buscando uma relação com o mundo real, pode-se dizer que a

linguagem é, em sua essência, simbólica. O simbolismo é uma palavra abstrata que carrega

diferentes significados, muitas vezes subjetivos. Se a linguagem é simbólica, para Chaui

(1995), ela coloca o homem em relação com o ausente e isso faz com que ela seja inseparável

da imaginação.

Desta forma, é impossível prescindir o grau de subjetividade que a linguagem carrega

consigo. Ela pode estimular o conhecimento ligado à comunicação, enquanto que, ao mesmo

tempo, pode encantar e seduzir o receptor, impedindo-o de enxergar os processos

construtivos de significação ou distorcendo-os.

Os meios de comunicação de massa utilizam-se da linguagem enquanto forma de

encantamento ou sedução para atrair o público consumidor. No jornalismo, porém, a carga

maior que deveria prevalecer quando se trata de linguagem é o estímulo ao conhecimento, já

que o objetivo é informar e comunicar muito antes de vender. Não que a sedução seja sempre

negativa. Ela pode aparecer junto à informação em um texto descritivo e mais trabalhado

esteticamente, comunicando e encantando concomitantemente.

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  30  

Quando se fala da linguagem ligada a esse mundo da imaginação, é fundamental

trazer para a discussão a literatura, que toma posse da linguagem ou é apropriada por ela, em

busca de significação. Em definitivo, a linguagem não poderá ser compreendida sem que se aprenda a pensar sua manifestação essencial, a literatura. O inverso também é verdadeiro: combinar um nome e um verbo é dar o primeiro passo para a narrativa. De certa forma, o escritor não faz mais do que ler a linguagem (TODOROV, 2003, p. 146).

A literatura associa, portanto, a linguagem à imaginação, mas não deixa de ser a

transposição do real de forma ficcional. A literatura utiliza, assim, a linguagem para

comunicar-se e, ao mesmo tempo, busca a qualidade estética que as palavras podem lhe

proporcionar. A linguagem parece então servir como meio intermediário entre o pensar e o

comunicar.

É interessante avaliar que a linguagem, enquanto fator necessário para que haja a

comunicação entre as pessoas, permanece no nível imaterial e subjetivo. Por mais que ela

busque a transposição do real, o real nunca será real no meio linguístico, pois ele não passa

de uma representação. O mesmo pode ser dito da literatura, que quando procura representar o

real em uma obra literária não consegue ultrapassar o nível do imaginário.

Portanto, embora os autores busquem uma definição científica para a linguagem,

considera-se difícil encontrar termos específicos que representem o real significado da

palavra. A significação, pois, encontra-se subjetivamente presente e pode variar de acordo

com o contexto e com o momento em que for inserida neste contexto. O importante é

conseguir discernir a linguagem enquanto processo comunicacional e revelador de

significação.

3.1 A NARRATIVA E O DISCURSO

Tomando como ponto de partida a palavra e a sequência de palavras para a

constituição da linguagem, depara-se, posteriormente, com a narrativa, que se utiliza da

linguagem para nascer e ganhar forma. A narrativa, empregando aqui a linguagem em sua

união com a literatura e a subjetividade, é o fio condutor da história que vai ser contada.

Segundo Roland Barthes, “a narrativa pode ser sustentada pela linguagem articulada,

oral ou escrita, pela imagem, fixa ou móvel, pelo gesto ou pela mistura ordenada de todas

estas substâncias” (BARTHES, 1976, p.19). Assim como o autor propõe, a narrativa une-se a

outros fatores para alcançar o objetivo de comunicar, de transmitir uma mensagem.

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  31  

A narrativa pura, sem nenhuma interferência externa, como as expostas acima,

dificilmente acontece. Primeiro porque a subjetividade anda sempre alinhada ao processo

construtivo da linguagem. O fato de optar por uma determinada palavra ao invés de outra

aponta uma escolha, e essa escolha é a representação de uma interferência. Segundo porque

as palavras em si já carregam uma gama de significados que podem ultrapassar a definição

denotativa e atingir o nível conotativo.

Outro importante elemento presente com frequência junto à narrativa e que a sustenta,

de certa forma, é a descrição. O ato descritivo anda junto com a narrativa, porém detém-se na

ordem explicativa e simbólica dos acontecimentos, enquanto a narrativa se preocupa em

colocar pura e simplesmente os personagens e suas ações.

Conforme Gérard Genette (1976), a ordem descritiva é fundamental, muito mais do

que a narrativa. O autor acredita que se pode descrever sem narrar e continuar agregando

significado, mas jamais narrar sem descrever, pois haveria a perda de valores explicativos e

simbólicos de grande importância para o entendimento das transposições. A narração liga-se a ações ou acontecimentos considerados como processos puros, e por isso mesmo põe acento sobre o aspecto temporal e dramático da narrativa; a descrição ao contrário, uma vez que se demora sobre objetos e seres considerados em sua simultaneidade, e encara os processos eles mesmos como espetáculos, parece suspender o curso do tempo e contribui para espalhar a narrativa no espaço (GENETTE, 1976, p. 265).

Assim, acredita-se que a narrativa busca a objetividade constante, mas por não andar

sozinha dificilmente a alcança. Enquanto isso, a descrição toma para si todo o processo

subjetivo e de construção de significação. É por meio da descrição que a imaginação é

atiçada e que o olhar reflexivo é exigido. Os significados não são somente lançados para que

o receptor os capte e compreenda. Eles vêm, porém, com uma enorme quantidade de signos,

prontos para serem desmembrados e absorvidos pelo público consumidor.

A descrição é também fundamental para que o processo narrativo possa buscar ao

máximo uma representação do real. Os detalhes, o modo de vestir-se, o jeito de andar, o local

onde os personagens encontram-se e os próprios personagens em si são pontos relevantes e,

de certa forma explicativos, para que a obra enriqueça e ganhe vida, muito embora ela seja

somente uma representação simbólica do real.

Para Genette (1976), “pode-se portanto dizer que a descrição é mais indispensável do

que a narração, uma vez que é mais fácil descrever sem narrar do que narrar sem descrever

(talvez porque os objetos podem existir sem movimento, mas não o movimento sem objetos)”

(GENETTE, p. 263).

Page 32: O desafio de dar voz às pessoas nas grandes reportagens audiovisuais: um olhar por Entre Fronteiras

  32  

Com a colocação, o autor revela outro elemento que caminha junto à narrativa,

guiando-a: o tempo. A narrativa segue sempre uma ordem cronológica, seja ela na forma de

uma sequência de ações, seja ela uma ida e vinda de ações. Contar uma história depende de

uma sequência de ações simultâneas. É esse tempo que conduz o receptor pelo caminho dos

fatos narrados.

O fator tempo coloca-se, entretanto, como uma problemática à narrativa enquanto

forma de representação do real. No mundo real, enquanto uma determinada ação acontece em

um determinado lugar, em outro lugar específico uma ação diferente acontece

concomitantemente. Não é possível transpor, por meio da narrativa, esses dois fatos que

aconteceram ao mesmo tempo, pois são duas dimensões independentes a serem retratadas.

Isso acontece porque “o tempo do discurso é, em certo sentido, um tempo linear,

enquanto o tempo da história é pluridimensional” (TODOROV, 1976, p.232). Desta forma,

pode-se dizer que não há como buscar a pluridimensionalidade dentro do processo narrativo,

obrigando-se, portanto, a aceitar a linearidade e escolhendo o melhor meio de expor ambas as

situações.

Na narração, novamente, há a necessidade de se optar entre um e outro; entre qual

acontecimento ganhará espaço primeiro. Mais uma vez a narrativa agrega uma força

subjetiva, ou seja, não consegue se sustentar enquanto processo puro. E, novamente,

apresenta dificuldade de servir como processo representativo. [...] Nenhuma narração, mesmo a da reportagem radiofônica, não é rigorosamente sincrônica ao acontecimento que relata, e a variedade das relações que podem guardar o tempo da história e o da narrativa acaba de reduzir a especificidade da representação narrativa (GENETTE, 1976, p. 266).

  Nesta perspectiva, a narrativa esbarra não somente no tempo ao tentar representar o

real, mas também nos acontecimentos históricos. A própria história é uma representação por

si só. Ela é contada e transposta para as obras, mas nunca em tempo real ou pluridimensional,

tal qual deveria ser.

Para Tzvetan Todorov, “a história é uma abstração pois ela é sempre percebida e

narrada por alguém, não existe em si” (TODOROV, 1976, p. 213). Além de considerá-la uma

abstração, o autor diz que a história é raramente fácil de ser compreendida, pois contém

muitos fios e é só a partir do momento em que estes fios se reúnem que ela começa a fazer

sentido.

Esses fios soltos tornam o público consumidor mais crítico, porque eles exigem a

reflexão e fomentam o conhecimento. Assim também ocorre com as narrativas jornalísticas.

Page 33: O desafio de dar voz às pessoas nas grandes reportagens audiovisuais: um olhar por Entre Fronteiras

  33  

Em determinados momentos, as reportagens apresentam o repórter como intermediador e

responsável pelo discurso que une os fios soltos da narrativa. Em outros, esses pontos serão

unidos pela compreensão do público consumidor.

Para Barthes (1976), muitas vezes o discurso faz-se tão presente na narrativa que ele

mesmo conduz a história, deixando a narração escondida por entre a fala dos personagens. Hoje, escrever não é narrar, é dizer que se conta, e relacionar todo o referente (o que se diz) a este ato de locução; é porque uma parte da literatura contemporânea não é mais descritiva, mas transitiva, esforçando-se para realizar na fala um presente tão puro, que todo discurso se identifica com o ato que o produz, todo logos sendo reduzido – ou estendido – a uma lexis (grifo do autor) (BARTHES, 1976, p.51).

Segundo o autor, a busca do real e da representação do real, estando ela associada ao

uso da literatura, deixou de fundamentar-se no conhecimento, no logos, e passou a valorizar o

estilo, a expressão e a retórica. A própria prioridade lançada à retórica, que se caracteriza

superficialmente pela arte do bem falar, mostra a preocupação maior destinada ao discurso.

Barthes abre espaço, portanto, para uma discussão plausível não somente frente à

narrativa e sua importância para a construção de um texto ou representação histórica, mas

também pela validade do conhecimento diante do valor estético. Não que se deva abolir a

qualidade estética, muitas vezes trabalhada pelas artes e pela literatura, mas nada impede que

as duas linhas se unam para formar um único conteúdo.

Ao abordar as falas nos processos narrativos, é impossível deixar de lado o ator

principal do discurso: o personagem. Os personagens de uma obra, de um texto ou até mesmo

de uma reportagem, são os responsáveis pela retórica, pela representação do real, pela

abundância dos detalhes, dos diferentes formatos e estilos, dos gêneros.

Todorov transpassa, porém, essa linha do real quando discorre sobre os personagens.

Para o filósofo e linguista búlgaro, a presença dos personagens mexe com os sentimentos,

saindo do nível real e representacional para o nível emotivo. “Embora a narrativa seja sempre

narrada por personagens, alguns deles podem tal como o autor revelar-nos o que os autores

pensam ou sentem” (TODOROV, 1976, p.239).

Dentro da narrativa, os personagens vão assumir o papel de comunicar e participar,

pois eles são os responsáveis pelas ações que norteiam o ritmo e o tempo da narração. Estas

figuras, segundo Todorov, aparecem nas obras geralmente ligadas ao desejo, à vontade de

comunicar, de informar, de participar, de agir, etc.

Para tal, duas são as formas de discurso utilizadas pelos personagens: o objetivo e o

subjetivo. O discurso objetivo é dificilmente alcançado, pois até mesmo um simples ato de

decisão ou escolha envolve uma subjeção. O discurso subjetivo, por sua vez, pode ocorrer

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  34  

desde esses simples atos de escolha até a intencionalidade de provocar no público um

questionamento, como se fosse uma caça aos significados escondidos.

A subjetividade, aliás, está presente não somente no discurso, mas em todo o processo

narrativo. Para Todorov (2003), nem mesmo as ciências conseguem se guiar puramente pelos

caminhos da objetividade. “A simples escolha de um conjunto de conceitos teóricos ao invés

de outro já pressupõe uma decisão subjetiva; mas, se não se faz essa escolha, fica-se a marcar

passo” (TODOROV, p.83).

Para o autor, o que muda é o grau de subjetividade que o conteúdo apresenta e a

posição que ele toma ao infiltrar-se no texto. “[...] Os diferentes estratos da obra deixam-se

identificar com grau desigual de subjetividade” (TODOROV, 2003, p. 83). Isto torna-se mais

claro quando identifica-se a presença do discurso e sua finalidade enquanto elemento inserido

em determinado contexto, em contrapartida à narrativa.

Tendo em vista a utilização e a inserção dos personagens no processo construtivo de

uma narração, nota-se que a figura humana não marca presença pelo simples fato de

representar. As figuras apresentadas como personagens em obras escritas podem ser atores na

representação audiovisual fictícia ou até mesmo fontes dentro do jornalismo. Estes

personagens carregam consigo uma série de fatores que envolvem desde o discurso até certa

carga de sentimentos.

Para Barthes (1976), “[...] os personagens formam um plano de descrição necessário,

fora do qual as pequenas ações narradas deixam de ser inteligíveis, de sorte que se pode bem

dizer que não existe uma só narrativa no mundo sem personagens, ou ao menos sem agentes”

(BARTHES, p.43). Ou seja, não existe obra sem personagem, assim como não existe arte

sem atores ou jornalismo sem fontes.

Ao mesmo tempo, então, que os personagens e a literatura impedem a pureza da

narrativa de agir junto ao logos, ou seja, ao conhecimento do real, identifica-se que sem a

presença destes elementos descritivos e discursivos a narração dificilmente se sustentaria. Na

verdade, por mais autossustentável que pareça, ela não teria a carga de significado que

consegue carregar quando agrupada aos demais fatores. Há uma espécie de encaixamento estrutural, como um jogo incessante de potenciais, cujas quedas variadas dão à narrativa seu tônus ou sua energia: cada unidade é percebida no seu afloramento e sua profundidade e é assim que a narrativa anda: pelo concurso destes dois caminhos, a estrutura ramifica-se, prolifera, descobre-se – e recobra-se: o novo não cessa de ser regular (BARTHES, 1976, p. 58-59).

Uma das unidades percebidas como fornecedora de energia à narrativa é a literatura.

Assim como ela é a mediadora da linguagem, que dela se utiliza para empregar a arte e a

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  35  

poética às palavras, também a narrativa dela apropria-se para buscar profundidade e estética.

A literatura é lançada para o meio representacional como forma de transcrever o presente por

meio da ficção, embora não seja ficção puramente.

Chega-se em um determinado momento da obra que a busca do real parece tão

incessante que já não se sabe mais o que é real e o que é ficcional. Isso sem discutir o real

representacional, que deixa de ser real e passa a ser representação, ou seja, de certa forma

ficção. Assim também ocorre com a literatura. A imaginação anda tão grudada ao texto que o

enriquecimento da narração por meio desse mundo criativo faz com que o imaginário pareça

real. Em definitivo, a linguagem não poderá ser compreendida sem que se aprenda a pensar sua manifestação essencial, a literatura. O inverso também é verdadeiro: combinar um nome e um verbo é dar o primeiro passo para a narrativa. De certa forma, o escritor não faz mais do que ler a linguagem (TODOROV, 2003, p. 146).

Desta forma, sendo a literatura a forma de expressão da linguagem e, pois, da

narrativa, pode-se dizer que a estrutura de uma obra é sempre um processo de escolha, que

inicia, conforme Todorov, ainda na combinação de um nome a um verbo. Assim, recorrendo

novamente à subjetividade que perpassa pela narração ao longo da obra, qualquer elemento,

até mesmo uma palavra em específico, faz-se presente porque carrega uma carga de

significação.

Não faz sentido existir em uma obra a presença de um personagem ou de palavras,

gestos e expressões, caso esses sejam desprovidos de alguma carga semiótica2. A própria

organização destes conjuntos ao longo do texto e a escolha da inserção da narrativa ou do

diálogo em outro momento são fatores que fazem parte da estrutura da obra.

Para Todorov, a obra é ao mesmo tempo história e discurso. Ela é história no sentido em que evoca uma certa realidade, acontecimentos que teriam ocorrido, personagens que, deste ponto de vista, se confundem com os da vida real. [...] Mas a obra é ao mesmo tempo discurso: existe um narrador que relata a história; há diante dele um leitor que a percebe (TODOROV, 1976, p. 211).

Nesta perspectiva, nota-se novamente que a narrativa está cercada de suportes que

fornecem a ela energia e interferem, de certa forma, em sua estruturação. O obra, apontada

aqui por Todorov, não deixa de ser também um símbolo representativo dos diversos pilares

em que a literatura, junto à linguagem e à narrativa, atua.

                                                                                                               2 Conforme Lúcia Santaella, doutora em Letras, “a Semiótica é a ciência que tem por objeto de investigação todas as linguagens possíveis, ou seja, que tem por objetivo o exame dos modos de constituição de todo e qualquer fenômeno como fenômeno de produção de significação e sentido” (SANTAELLA, 1983, p. 15).

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  36  

A obra, considerada ao mesmo tempo história e discurso, pode variar desde o livro

literário até o documentário audiovisual, por exemplo. Um de forma ficcional, o outro de

forma representativa. Assim como o primeiro geralmente envolve mais história do que

discurso, o segundo envolve mais diálogo do que história. Nem por isso eles deixam de

reunir os dois aspectos.

O enriquecimento da obra acontece, pois, pela união desses elementos de

representação. Dificilmente uma construção textual poderia ser mais interessante enquanto

narrativa pura diante da linguagem literal, envolta em falas, personagens, significação,

expressões e detalhes. É a história contada através dos sentimentos e rodeada pela

subjetividade das decisões que são findadas pelo poder determinante do autor.

Esse poder decisivo é, na verdade, um processo de escolha quanto à estruturação da

obra. O caminho pelo qual os personagens e a narrativa vão seguir depende primordialmente

de seu administrador, de seu escritor. Ele será o responsável por lançar o discurso e a história,

por inserir os diálogos no momento adequado e deixar a narrativa guiar quando somente ela é

capaz de conduzir o receptor. Isto não é uma questão de arte (da parte do narrador), é uma questão de estrutura: na ordem do discurso, o que se nota é, por definição, notável: mesmo quando um detalhe parece irredutivelmente insignificante, rebelde a qualquer função, ele tem pelo menos a significação de absurdo ou de inútil (TODOROV, 2003, p.28).

Sendo assim, cada elemento tem uma significação e um motivo pelo qual ocupa

determinada posição, muito embora este motivo seja apenas a ligação de dois outros

componentes. Para que a narrativa e a obra em si alcancem a significação desejada pelo

autor, todos os componentes que se envolvem com o texto devem ser pensados e

carinhosamente dispostos.

Alguns elementos parecem substituir outros, mas, de fato, em seu nível significativo,

isso nunca acontece. Cada função desempenha o seu papel dentro de um contexto e quando

se escolhe substituir um pelo outro, opta-se também por substituir um significado pelo outro.

A inserção do discurso na narrativa, por exemplo, substitui em determinado momento a

narrativa pelo diálogo. Perde-se a função narrativa e sua representação do real e ganha-se a

função discursiva, com as falas e as representações dos personagens. Há, portanto, uma

alteração de sentidos.

De qualquer forma, esta é uma decisão única do autor e condutor da narrativa. Muitas

vezes a substituição é plausível, enquanto em outros momentos serve somente como uma

quebra narrativa. A escolha e a própria união de objetos têm, assim, como principal objetivo,

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  37  

a busca de um significado maior, pois a narrativa, tal como a linguagem, precisa transmitir

algo para fazer sentido.

A obra narrativa pode ser considerada sob o aspecto de três níveis diferentes, sendo o

primeiro deles o nível das funções, seguido pelo das ações e da narração. O nível das ações é

retratado pelos personagens e pelo discurso, enquanto o da narração caracteriza-se pela

representação do real.

O nível das funções aparece como sendo o fator impulsionador para que os demais

graus se concretizem e evoluam. Conforme Barthes (1976), “a alma de toda função é, caso se

possa dizer, seu germe, fato que lhe permite semear a narrativa de um elemento que

amadurecerá mais tarde, sobre o mesmo nível, ou além, sobre um outro nível” (BARTHES,

p. 28).

Todo esse processo ocorre por meio de grupos de significação, isto é, pequenos

agrupamentos que iniciam quando ganham determinado sentido em um momento específico

e que terminam quando este sentido se esgota. São significados que, embora separados uns

dos outros, sustentarão a obra como um todo e farão com que o receptor encontre, quando

findar a narrativa, um significado geral.

Para Barthes, esses agrupamentos são designados de sequências, sendo definidos

como “uma série lógica de núcleos, unidos entre si por uma relação de solidariedade: a

sequência abre-se assim que um de seus termos não tenha antecedente solidário e se fecha

logo que um de seus termos não tenha mais consequente” (BARTHES, 1976, p.39).

Essas sequências que vão se criando e transformando ao longo da narrativa não

deixam de ser uma busca da representatividade de forma linear, ou seja, uma ação se liga a

outra com o objetivo de criar uma ponte que una as duas significações. Essa ponte é

geralmente feita pela narrativa, que se encarrega de unir os fios soltos do discurso e dos

processos descritivos.

O fato de a narrativa ficar dependente de discursos e de acontecimentos a faz perder o

significado primordial que a cerca, o da preocupação com o conhecimento do real e o

cuidado com a transposição desse real. Assim, ao mesmo tempo em que a narrativa agrupa

elementos para se fortificar enquanto conteúdo apresentado, ela se minimiza enquanto

processo. A narrativa, desta forma, passaria a não existir, se considerada em sua essência.

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  38  

A imitação direta, tal como funciona em cena, consiste em gestos e falas. Enquanto que constituída por gestos, ela pode evidentemente representar ações, mas escapa aqui ao plano linguístico, que é aquele onde se exerce a atividade específica do poeta. Enquanto que constituída por falas, discursos emitidos por personagens (é evidente que em uma obra narrativa a parte de imitação reduz-se a isso), ela não é rigorosamente falando representativa, pois que se limita a reproduzir tal e qual um discurso real ou fictício (GENETTE, 1976, p. 259).

O questionamento gira em torno, outra vez, da presença do discurso dentro da

narrativa. As falas representam a quebra da narrativa para a inserção do discurso. Elas

buscam inserir os personagens que darão vida ao texto e servirão de guia para o alcance da

linearidade. Essa quebra, porém, não aponta somente a saída de cena da narrativa, mas o

início da reprodução de um discurso, ao invés de uma representação, tal qual busca a

narração.

O discurso, então, ganha espaço dentro da narrativa substituindo sua função pela fala

dos personagens, e invertendo a ordem natural. Ao invés da narrativa ser responsável pela

linearidade da obra e pelo desenvolvimento do texto, o discurso passa a comandar a narração.

Assim, a narrativa serve como guia e ponto de referência às falas dos personagens, como se

fosse uma linha invisível pela qual o diálogo perpassa e busca encontrar o seu caminho.

Por este motivo, somado ao grau de subjetividade que a narrativa carrega consigo,

dentro dos muitos processos de escolha para definir que elementos vão sustentar a obra em

determinado momento, muitos autores desconsideram o processo enquanto forma natural.

Todorov (2003), por exemplo, acredita que a narração não passa de uma junção de diversos

discursos em um único contexto. “Não há narrativa natural; toda narrativa é uma escolha e

uma construção; é um discurso e não uma série de acontecimentos” (TODOROV, p.108).

Aqui, o discurso por si só já conseguiria conduzir uma história, pois assim como há

pontos pendentes entre uma fala e outra, há a presença de elementos complementares que

ajudam a sustentar a obra, desconsiderando a narrativa. O detalhe, as expressões do

personagem e a sua posição na obra vão ser os reveladores da significação necessária para

conduzir a história com certa linearidade, seguindo um fio condutor que não existe

estritamente.

Já para Barthes (1976), os questionamentos sobre a narrativa e sua presença nas

reproduções ou representações do real não se fundamentam exatamente na narração em si ou

no discurso, mas sim no surgimento e na ocupação histórica dos termos aqui trabalhados.

Embora não exista uma comprovação das funções que primeiro surgiram, presume-se que a

linguagem, enquanto busca pela comunicação, tenha inicialmente ocupado seu espaço na

sociedade, seguida pelo diálogo.

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  39  

Desta forma, a narrativa não teria surgido somente como forma de representar o real,

mas também como consequência da busca pela união da linguagem e do discurso em um

único modelo. “O que se passa na narrativa não é do ponto de vista referencial (real), ao pé

da letra: nada; o que acontece é a linguagem tão somente, a aventura da linguagem, cuja

vinda não deixa nunca de ser festejada” (BARTHES, 1976, p.60).

Ou seja, enquanto a linguagem e o discurso já existiam e já faziam sentido andando

isoladamente, a narrativa estava em seu processo de construção. Com isso, ela perde espaço

no meio representativo, pois sua presença não é inteiramente fundamental para que se alcance

o nível comunicacional. A narrativa leva, portanto, desvantagem frente à linguagem e ao

discurso, pois ela não consegue se constituir puramente sem se apropriar da linguagem e do

discurso, enquanto a linguagem e o discurso já carregam uma gama de significados mesmo

caminhando isoladamente um do outro.

A narrativa, ao contrário do discurso, precisa concentrar-se em si mesma para se

constituir enquanto processo comunicacional puro. O discurso, porém, nada mais é do que a

representação do diálogo, a inserção de falas e personagens. Na verdade, o discurso não tem nenhuma pureza a preservar, pois é o modo natural da linguagem, o mais aberto e o mais universal, acolhendo por definição todas as formas; a narrativa, ao contrário, é um modo particular, definido por um certo número de exclusões e de condições restritivas [...]. O discurso pode narrar sem cessar de ser discurso, a narrativa não pode discorrer sem sair de si mesma. [...] É porque a narrativa não existe nunca por assim dizer na sua forma rigorosa (GENETTE, 1976, p. 272).

A presença do discurso na narrativa, entretanto, é essencial para que a história seja

lembrada também pela voz dos personagens. Eles são a alma de qualquer representação, pois

eles são os sujeitos da ação, e sem a ação os acontecimentos não existem. Não existiria,

portanto, a própria história, que permanece como forma representativa desde que dela se

tenha conhecimento.

São os personagens que sustentam a carga de significados maior, porque suas falas

são sempre mais subjetivas do que uma narração. O envolvimento desses personagens com os

acontecimentos da obra revelam sentimentos e emoções, ingredientes fundamentais para que

o representacional se pareça com o real. Eles também vão ser responsáveis pela inserção da

descrição e do detalhamento, da busca pela minuciosa representação do real, muito embora

ela possa ser apenas uma reprodução.

Enquanto a linguagem e o discurso podem existir por si só, nenhum deles consegue se

unir em prol de uma significação maior sem que para isso a narrativa se faça presente.

Conclui-se, portanto, que a narrativa não deixa de existir por não se apresentar em seu

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formato puro, muito pelo contrário, ela enriquece e ganha força quando se utiliza de outros

suportes para alcançar a busca de significações.

Assim, mesmo quando o discurso toma conta da narrativa e narra sem deixar de ser

discurso, ele não anda sozinho, justamente porque narra enquanto discurso. A voz das

pessoas, disposta na narrativa, embora sem a presença marcante da narrativa, não deixa de ser

uma narrativa. A fala, ao mesmo tempo, segue um fio condutor, muitas vezes invisível, mas

responsável pela ordem linear e pela significação e disposição dos diferentes diálogos

dispostos. Esse fio condutor é, antes de tudo, a narrativa.

3.2 A NARRATIVA, O JORNALISMO E A LITERATURA

A narrativa clássica ou pura, assim como apresentado anteriormente, dificilmente se

consolida na prática. Isso acontece também quando se trata da narrativa associada ao

jornalismo. Nas produções jornalísticas, há a presença de um mediador, dos personagens ou

fontes, de sequências de significados próprias do jornalismo, e até mesmo da literatura. Ou

seja, é um conjunto de elementos que se unem para disponibilizar informações.

Em busca constante por assuntos que sejam de interesse do leitor e que venham a

contribuir com a formação e a atualização da sociedade, o jornalismo procura, por meio de

representações, informar através de conteúdos variados, que vão desde economia e política,

até saúde e segurança. Para Traquina (2005), o jornalismo “é a vida em todas as suas

dimensões, como uma enciclopédia” (TRAQUINA, p. 19).

Para transportar, porém, todas as dimensões da vida para o texto jornalístico,

depende-se muito do uso das representações, que ocorrem por meio da linguagem e da

narrativa. Segundo Nanami Sato (2005), professora de Língua Portuguesa da Faculdade

Cásper Líbero, a linguagem funciona como mediadora da relação dialética entre o sujeito e o

mundo real quando busca a representação do real. É por meio da linguagem que se consegue

transferir o real para um mundo, de certa forma, imaginário e construtivo de acordo com a

interpretação de cada indivíduo recebedor da mensagem. A relação entre representação e mundo representado mostra-se bastante complicada, pois uma coisa ou um conjunto de coisas corresponde a relações que essas coisas encarnam, contendo-as ou velando-as. Em vez de revelar o real, pode-se dizer que a representação, ao dar-lhe suporte, substitui a totalidade e a encarna, em vez de remeter a ela (SATO, 2005, p. 30-31).

O fato de a representação substituir a totalidade mexe com um dos princípios básicos

do jornalismo: a busca pela verdade. Considera-se essa procura nada mais do que uma utopia,

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  41  

visto que a verdade cria limites até mesmo para definições que a conceituem. Porém,

deixando de lado os julgamentos sobre a verdade e os questionamentos sobre sua existência

ou não, é impossível negar que a busca pelo sentimento verdadeiro, pela transparência da

informação e pela fonte segura esbarra na representatividade.

Além de tratar de uma relação que não revela o real e que não remete ao real, mas sim

que o substitui, vale lembrar que na narrativa há também uma pitada de subjetividade. O

repórter, na narrativa utilizada pelo jornalismo, ao escolher determinado personagem ou ao

decidir por qual viés conduzirá a matéria, já está aplicando um processo de seleção, e toda

seleção prevê a escolha de um para a eliminação de outro.

Para Muniz Sodré (2009), “assim como a comunicação é contínua e aberta às

interferências ou apropriações humanas, a narrativa, enquanto forma comunicativa originária,

mantém-se disponível para as continuações de ordem prática e moral” (SODRÉ, p.181). Ou

seja, ambas recebem interferência, mas enquanto a comunicação agrega interação, a narrativa

se concentra em expor.

A narrativa é, então, a base para que se possa registrar o real de forma representada,

ou até mesmo o ficcional, por meio da união que ela estabelece com a literatura de ficção. É

por meio da narração que as palavras ganham sentido e que a linguagem comunica de forma

eficiente. Desta forma, pode-se dizer que a construção narrativa está muito ligada ao contar

histórias, e o próprio jornalismo não deixa de ser uma técnica que busca informar por meio

da “contação” de histórias.

Para o jornalista, poeta e escritor Gustavo de Castro A narrativa representa um ideal estilístico para quem quer que se aventure no relato de histórias e fatos, já que implica no conhecimento adequado da palavra, do sussurro de cada período, da andadura do texto, enfim, de um modo próprio de ‘cavalgar’ (destaque do autor) o texto (CASTRO, 2005, p.77).

Esta preocupação com os detalhes amarrados ao texto é típica não somente da

narrativa por si só, mas da narração utilizada pelo jornalismo. Em determinados momentos, o

olhar, o gesto, o modo de respirar, a posição das mãos, o sorriso, etc., comprovarão o que as

palavras sozinhas não conseguem dizer. É uma carga simbólica muito grande que se une para

gerar significados.

Por outro lado, há todo um cuidado com o significado que as próprias palavras

carregam, visto que elas podem ser traduzidas literalmente ou não. Muita dessa interpretação,

como a palavra mesma já diz, vai depender do modo como o leitor/ouvinte/telespectador

reage frente aos significados ali apresentados. Além disso, existe também a preocupação com

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  42  

a estética do texto, que avalia desde o uso ou não de rimas, até cuidados com o espaçamento

e a disposição das palavras na folha, no caso do impresso, ou com o modo pelo qual a leitura

daquele texto é realizada.

Percebe-se, pois, que se há a presença da subjetividade no processo de seleção feito

pelo narrador, há também certo grau de subjetividade na interpretação que o consumidor

daquela informação fizer. A narrativa abre brechas para diálogos, que vêm carregados de

significados e graus de importância distintos, figuras de linguagem, detalhes e uma porção de

outros elementos com carga conotativa, como o próprio silêncio ou a interrupção de uma

sequência de significados.

Segundo Rildo Cosson, doutor em Letras e pós-doutor em Educação, tudo isso acontece porque a objetividade absoluta na linguagem é uma ilusão. Em todo relato sempre haverá uma parcela de subjetividade que poderá ser questionada. É por isso que aos sujeitos de relatos factuais são apresentados, em geral, meios de controle ou pelo menos de explicitação de sua interferência nos fatos que narram (COSSON, 2001, p. 35).

Não há, portanto, uma verdade factual, visto que o mesmo fato pode ser percebido por

dimensões distintas. O que existe, então, é uma verdade testemunhal, ou seja, a mediação dos

fatos por mecanismos que podem variar desde o depoimento de um espectador até a captação

de imagens por uma câmera de segurança. A intermediação e a interpretação são vistas como

necessárias para que os significados sejam alcançados.

Todos estes elementos se unem na narrativa porque ela própria não caminha sozinha.

Além de depender das palavras e da linguagem, ela consolida-se, em sua amplitude estética e

de significação, quando associada à literatura, e é a literatura que resgata os detalhes da

narração, do discurso e da composição textual. Ambas, portanto, andam juntas, considerando

o narrar como o contar histórias e a literatura como a arte de bem servir a história.

Para Alceu Amoroso Lima (1990), a literatura é, em seu sentido próprio, “a expressão

verbal com ênfase nos meios de expressão. É o sentido do senso comum. O que todo mundo

entende por literatura é alguma coisa em que a palavra valha por si, seja prosa, seja verso,

seja monólogo, seja diálogo, seja oral, seja escrita” (LIMA, p. 35).

Com a afirmação do autor, pode-se dizer, então, que é a partir da literatura que a

narrativa ganha força enquanto meio de expressão. É a literatura que abre o leque da narração

para embelezar a história e tornar a narrativa mais cheia de vida. Isso propicia ao narrador a

liberdade de escolher quando e como interferir.

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  43  

Sou dos que consideram a literatura como arte da palavra. Mas como arte da palavra compreendida no sentido do senso comum isto é, da expressão verbal com ênfase nos meios e não com exclusão dos fins. [...] Assim é que a literatura não exclui nem a verdade, nem o bem, nem a história, nem a autobiografia, nem a filosofia, nem as ciências, nada (LIMA, 1990, p. 36).

É na narrativa que essa literatura vai se encontrar com o jornalismo, unindo a arte da

palavra com o desejo de contar histórias e informar. A literatura, então, invade um espaço

que muitas vezes é caracterizado por sua rigidez, objetividade e dinamicidade para quebrar

algumas estruturas prontas e pré-moldadas do jornalismo e oferece não somente a arte da

palavra, mas também a arte da imagem e do som. Como afirmou Lima, a presença da

literatura não exclui a verdade e nem a mascara. O que acontece é o embelezamento da obra

pela valorização do simples.

A presença da literatura no jornalismo não acontece de forma triunfante e

arrebatadora, visto que até hoje a quebra da rigidez e dinamicidade das notícias é uma

barreira difícil de ser rompida. A literatura se apresenta de forma sutil e vai ganhando espaço

dentro das produções jornalísticas mais flexíveis. Ela busca seu espaço também na intimidade

que alcança com determinado repórter. Muitos jornalistas passaram a utilizar a narrativa

literária depois de se apaixonarem por ela.

Esse uso da literatura como recurso jornalístico acontece primeiro no meio impresso,

que, ao procurar um modo mais humano e menos ficcional de noticiar, transforma a

informação factual em reportagem. Os personagens e as falas passam a ser valorizados, assim

como os detalhes. Isso ocorre também em virtude do espaço/tempo maior que é

disponibilizado a essas produções em relação ao hard news3, por exemplo.

Para Sodré e Ferrari (1986), é justamente o desdobramento das perguntas clássicas (o

que, como, quando, onde, por que, quem) utilizadas pelo jornalista na cobertura de algum

evento ou notícia que vai constituir uma narrativa diferente da habitual. Essa construção não

seria “mais regida pelo imaginário, como na literatura de ficção, mas pela realidade factual

do dia-a-dia, pelos pontos rítmicos do cotidiano, que discursivamente trabalhados, tornam-se

reportagem (grifo do autor)” (SODRÉ; FERRARI, p. 11).

Na reportagem, a inclusão dos detalhes e dos elementos de contextualização faz com

que o leitor/ouvinte/telespectador se aproxime da situação retratada. Os personagens, neste

modo de narrar, ganham vida, sendo não somente meras representações do real, mas pessoas

humanas plenas de sentimentos, atitudes, ideias, discursos.

                                                                                                               3 Hard news são as notícias fortes, de impacto e grande atualidade. (Disponível em: <http://jpn.c2com.up.pt/documentos/livro_de_estilo_jpn.html>. Acesso em: 15. nov. 2012)

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  44  

Conforme Sodré e Ferrari, “a humanização do relato, pois, é tanto maior quanto mais

passa pelo caráter impressionista do narrador” (SODRÉ; FERRARI, 1986, p. 15). Há sempre

um mediador que será responsável pela inserção dos fatos no contexto social e por sua

significação. Sendo o narrador o responsável pela escolha das partes do relato que serão

divulgadas, o texto vai depender também da identificação que ele tiver com assunto e em que

momento o depoimento foi mais marcante, sob o ponto de vista dele.

Pode-se dizer também que além da humanização do relato e dos próprios

personagens, a reportagem precisa, ao mesmo tempo, de condensação e clareza. A

valorização do ser humano não implica consequentemente na prolongação de uma história,

até porque a humanização não depende do tempo e nem precisa abraçar tudo que lhe é

ofertado. Ela precisa sim, como qualquer outra produção jornalística, demonstrar força,

tensão e novidade, mesmo que o novo esteja escondido no discurso de um personagem.

Esse jornalismo que agrega a literatura no seu processo narrativo e busca a

humanização dos fatos e a valorização dos discursos pode ser definido como reportagem,

assim como pode agregar outras nomenclaturas. O que importa é o conteúdo disponibilizado

por trás deste nome designado para representar o formato, que ainda persegue uma

nomenclatura que consiga se consolidar.

Para Sodré e Ferrari (1986), há duas maneiras de se trabalhar as informações

jornalísticas de um modo mais literário e humano. Uma delas seria por meio da reportagem

documental, que é mais expositiva e se aproxima da pesquisa. “Às vezes, tem caráter

denunciante. Mas, na maioria dos casos, apoiada em dados que lhe conferem fundamentação,

adquire cunho pedagógico e se pronuncia a respeito do tema em questão” (SODRÉ;

FERRARI, p. 64).

Em outro momento, os autores defendem também a reportagem-conto, que acontece

quase que inteiramente pela união do jornalismo com a literatura. “A reportagem-conto

começa por particularizar a ação: escolhe um personagem para ilustrar o tema que pretende

desenvolver” (SODRÉ; FERRARI, 1986, p. 77).

Os personagens podem ser os mais variados, visto que cada ser humano tem uma

história diferente para contar, com batalhas, conquistas, medos, preocupações e ambições

próprias. Todo indivíduo tem sua particularidade e é ela que serve como gancho para a

reportagem-conto. Portanto, acredita-se que as formas de se escrever e contar uma história

podem variar, mas nenhuma prescinde de personagens.

A ideia de se fazer um jornalismo com narrativas mais longas e com a valorização dos

personagens não foi algo que surgiu no Brasil, mas que, primeiramente, aconteceu nos

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  45  

Estados Unidos e depois migrou para a produção local. Na América do Norte, a inclusão da

literatura no processo jornalístico foi acontecendo de forma quase natural, como medida

adotada pelos autores para combater a estrutura pronta das produções e a repetição e

reprodução contínua de material. [...] No começo dos anos 60, uma curiosa ideia nova, quente o bastante para inflamar o ego, começou a se insinuar nos estreitos limites da statusfera (grifo do autor) das reportagens especiais. Tinha um ar de descoberta. Essa descoberta, de início modesta, na verdade, reverencial, poderíamos dizer, era que talvez fosse possível escrever jornalismo para ser... lido como um romance (WOLFE, 2005, p. 19).

Este novo modelo descrito por Tom Wolfe não foi um movimento em busca de um

jornalismo diferenciado, nem tampouco teve representações nas ruas. Mesmo assim, o

formato ganhou nome de movimentação e causou estranheza aos que estavam acostumados

aos padrões da época. O New Journalism, como foi intitulado, é caracterizado pelas

reportagens longas, que se assemelham a romances de ficção no seu modo de apresentar o

conteúdo.

Para os jornalistas, o romance de não-ficção, como também é conhecido, representava

um nicho de mercado a mais a ser explorado e dava a possibilidade de o repórter unir a

literatura ao material arrecadado na rua, produzindo conteúdo qualificado e intenso. Para os

que viviam da literatura, a produção dos romances de não-ficção representavam uma ameaça

ao trabalho literário e à própria profissão.

Segundo Wolfe (2005), ninguém sabia lidar com aquela reportagem realmente

‘estilosa’, pois ninguém pensava que ela, a reportagem, pudesse ter uma dimensão estética. A súbita chegada desse novo estilo de jornalismo, saído do nada, provocou pânico no status da comunidade literária. Ao longo de todo o século XX, os literatos haviam se acostumado a uma estrutura de status muito estável e aparentemente eterna (WOLFE, 2005, p. 43).

Não é que a reportagem aprofundada não existisse de fato, mas era difícil percebê-la

no mercado, tamanho o tempo que demandava para ser produzida e os esforços que exigia do

jornalista. O Novo Jornalismo, por apresentar em sua identificação a palavra ‘novo’, é muito

criticado por autores que afirmam não haver nada de novidade no formato. Com isso, a

crítica cai não sobre o romance-reportagem, mas sobre o jornalismo, que muito antes da

década de 1960 já humanizava os relatos e trabalhava os textos, principalmente quando eram

produções para revistas mensais.

Outro motivo dessa reportagem não marcar presença tão forte até então era a

desconfiança de que o formato pudesse dar errado e não ser aceito pelo público, que, assim

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  46  

como os jornalistas, já martelava as estruturas pré-moldadas tanto de notícia, quanto de

romance. As produções, portanto, além de necessitarem da aceitação do público, precisavam

ser imensamente atrativas, pois demandavam de enorme tempo de produção e de espaço

ampliado para serem reproduzidas.

A aceitação, porém, assim como ocorre na forma natural de se narrar os fatos,

facilmente concretizou-se no leitor. Na grande reportagem, o público encontrava muito mais

do que um romance; descobria a história de pessoas comuns como ele próprio, identificava-se

com o texto e, acima de tudo, tinha a certeza de encontrar ali informações reais.

Para Wolfe, lidar com o real, mesmo de uma forma romanceada, é a representação da

vantagem que o romance de não-ficção assume sobre a reprodução tradicional de notícias e o

próprio romance ficcional. Ou seja, muito além das questões técnicas ou do estilo

apresentado, o público é cativado pelo real. Para ele, a vantagem é tão óbvia, “tão interna,

que quase se esquece o poder que ela tem: o simples fato de o leitor saber que tudo aquilo

realmente aconteceu (grifo do autor)” (WOLFE, 2005, p. 57).

Um exemplo da intensidade que o romance-reportagem atingiu foi a publicação In

Cold Blood, escrita por Truman Capote e disponibilizada em 1966. O romance-reportagem

conta a história de um assassinato brutal e carrega detalhes inimagináveis para a tradicional

forma de se apresentar uma notícia. O livro foi um dos mais vendidos no mundo todo, sendo

também a representação real de que o Novo Jornalismo tinha sim espaço entre o público. Era a descoberta de que é possível na não-ficção, o jornalismo, usar qualquer recurso literário, dos dialogismos tradicionais do ensaio ao fluxo de consciência, e usar muitos tipos diferentes ao mesmo tempo, ou dentro de um espaço relativamente curto... para excitar tanto intelectual como emocionalmente o leitor (WOLFE, 2005, p. 28).

No Brasil, a reportagem romanceada começou a aparecer uma década depois, por

volta de 1970. Foi nesse ano que o jornalismo e a literatura se alinharam em busca de um

diferencial para o formato que vinha sendo feito. Além da influência norte-americana, uma

das explicações para o formato ganhar força nesta década foi a implantação do Ato

Institucional nº 5 durante o período de Ditadura Militar, que limitava a divulgação de notícias

e manipulava o trabalho da mídia.

Conforme Rildo Cosson, não foi sem razão que nesta década a literatura brasileira se

encontrava “presa a um desejo de veracidade, a um compromisso com a atualidade e com a

referencialidade, elementos próprios do jornalismo que terminou assumindo vicariamente”

(COSSON, 2001, p. 16).

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  47  

Desta forma, o autor acredita que a própria censura política deva ser vista como

grande responsável pela quebra de barreiras que existiam na época entre o jornalismo e a

literatura no Brasil. Cosson defende também que esse controle exercido sobre a produção

jornalística fez com que um modo específico de narrar se implantasse no país: o romance-

reportagem.

Seja por meio de uma influência norte-americana, seja pela censura e imposição

política da Ditadura Militar brasileira, a reportagem romanceada estrutura-se, ganha força, e

conquista seu lugar dentro das redações e publicações. Esse romance de não ficção, com a

objetividade que o jornalismo não cansa de perseguir, é caracterizado, então, por aprofundar

uma manchete.

O romance de não ficção é, desta forma, uma mistura da literatura com o jornalismo,

onde, em determinado momento, o público pode se confundir quanto à veracidade ou

ficcionalidade dos fatos. Para Muniz Sodré, utilizar a ficção como atrativo não significa

necessariamente dizer que a narração seja fictícia. O texto jornalístico pode ser retoricamente ficcional, mas não fictício, enquanto o literário comporta o ficcional e o fictício. O ficcional e fictício pode até mesmo comportar a argumentação, principalmente neste instante histórico em que a hipertrofia dos simulacros midiáticos confunde a distinção entre o imaginário e o real-histórico (SODRÉ, 2009, p.167).

Seja na grande reportagem, no romance de não ficção, na reportagem documental, na

reportagem-conto, etc., é plausível afirmar que: a literatura, mais do que qualquer outro

elemento da narrativa, aguça a imaginação e apresenta os fatos e os personagens utilizando-se

do simples, do humano.

Por se tratar de uma produção ligada ao jornalismo, não há dúvida de que, por mais

que a reportagem romanceada instigue o leitor a imaginar, a narração é a história contada sob

vários ângulos distintos. Para Cosson (2001), “se o romance-reportagem é de fato um gênero

nascido do discurso jornalístico misturado ao discurso literário, sua marca definidora em

nível semântico é, sem dúvida, a verdade factual (grifo do autor) tomada de empréstimo à

reportagem” (COSSON, p. 33).

O autor defende que a verdade, portanto, no romance-reportagem, é amparada pelos

fatos acontecidos e, mais do que isso, constrói-se no nível discursivo, pelos princípios da

verossimilhança. Quando o personagem é o dono da fala, ele acaba por tirar do jornalista

todo o peso que a busca pela verdade e a objetividade exercem sobre o profissional, pois sua

fala representa a verdade para si. Como já dito neste capítulo, o objetivo não é questionar o

conceito de verdade, mas vale dizer que o que pode ser verdade para um, pode não ser para

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  48  

outro. Essa margem exposta e ampla de significados é preenchida pela fala dos personagens,

que discursam, pressupõe-se, sob o ponto de vista do que é verdade para eles.

É só por meio da fala dos personagens que se consegue, portanto, alcançar os

significados pretendidos, pois ela é responsável não somente pela humanização da narração,

mas também pelo preenchimento da narrativa. “Ao se dizer que o discurso é por excelência o

lugar de produção de sentido, está-se admitindo implicitamente que o sentido resulta de um

trabalho social [...], e que todo discurso é ideológico e heterogêneo” (SODRÉ, 2009, p.141).

Ou seja, a narrativa jornalística, totalmente dependente da fala de seus personagens,

abre espaço para a propagação, não de forma impositiva, de uma série de discursos que o

personagem carrega consigo ao longo de sua existência. Esses discursos são constituídos por

ideais, o que os faz existir junto a valores ideológicos. Por outro lado, sem o discurso a

representação do real seria impossibilitada de acontecer, visto que nenhum fato ocorre por si

só, sem a presença de um indivíduo. É ele que vai representar a verdade factual dentro da

narrativa jornalística.

Tendo como ponto de partida, então, uma história real, o jornalismo literário vai

buscar algo além do que geralmente fica perceptível ao olhar do repórter. Os detalhes são os

responsáveis pela narrativa romanceada e as particularidades de cada personagem são

reveladoras da novidade que há em cada esquina para ser contada, basta encontrar alguém

para ouvi-la.

Para juntar toda a gama de informações que o jornalista precisa a fim de organizar um

texto romanceado e agregar todos os elementos até aqui apresentados, o tempo de contato

com os personagens é fundamental. Mais importante ainda é a convivência e o nível de

intimidade que o repórter alcança com suas fontes, já que elas são as responsáveis, de certa

forma, pela condução da narrativa por meio de seus discursos. Distintamente dos romances clássicos realistas, as personagens circuladoras de informações nos romances-reportagem não são donos de um saber especial a ser transmitido. Sintomaticamente, a autenticidade da informação vem mesmo da ignorância do todo por parte da personagem, a qual nos informa, antes de tudo, desconhecer muita coisa do que narra, e declara que o seu saber é fragmentário e incompleto (COSSON, 2001, p. 54).

É o conhecimento dessa ignorância dos personagens, de seus jeitos, costumes e

crendices que levam o texto jornalístico literário a viver ao longo dos anos. Enquanto o

factual, o hard news e as matérias temporais conseguem meia página em um diário ou um

minuto e meio nos telejornais, a história de personagens comuns que contam suas vivências

cotidianas ou que as têm contadas por um outro alguém, permanecem para a posteridade.

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O momento é, pois, o cerne da reportagem. Nele todos os elementos necessários

podem ser encontrados. A eternidade do acontecimento que está sendo narrado “está em

descobrir o que há de singular no momento e ficar no momento, impregnar-se dele, descobrir

nele o que há de característico, como momento” (LIMA, 1990, p. 63).

Nestas circunstâncias, o repórter não pode se envolver tanto a ponto de deixar suas

emoções serem mais fortes do que o seu compromisso com a narração, mas também não pode

se envolver pouco, pois o que não toca o repórter enquanto ser humano dificilmente será

humanizado na narrativa.

Mais adaptável ao texto impresso, esse modo de se fazer jornalismo foi ganhando e

perdendo força ao longo das décadas. O que não mudou foi sua preocupação com a qualidade

do texto, tanto estética, quanto de conteúdo. Essa preocupação faz com que o repórter se

envolva mais, a fim de tornar mais denso seu trabalho. Os sentimentos transmitidos pelos

personagens, por meio de discursos ou detalhes, são tão intensos que muitas vezes o repórter

acredita que sua interferência seja até mesmo desnecessária.

Para Alceu Amoroso Lima, “a beleza é uma integração de todos os valores” (LIMA,

1990, p. 37), ou seja, a beleza do jornalismo literário é justamente essa união de detalhes,

personagens e discursos, muito embora a narrativa ainda não tenha espaço ou aceitação

suficiente para se concretizar por definitivo. A beleza do jornalismo está precisamente em ultrapassar a beleza estética para alcançar a beleza intrínseca, ligada à função e à finalidade para-estética. A beleza é sempre uma proporção (grifos do autor) e não uma fórmula, um modelo, uma medida uniforme. A beleza da arte jornalística está na proporção em que a sua acentuação verbal é apenas relativa e não absoluta, como na poesia (LIMA, 1990, p. 61).

Desta forma, pode-se dizer que não existe um modelo pronto para se fazer jornalismo

quando misturado à literatura, ao contrário do que acontece no jornalismo tradicional, que se

apresenta como uma forma pré-moldada. A arte do jornalismo romanceado caminha junto ao

surpreendente, ao inesperado, ao rebuscamento e à simplicidade, ao sentimento humano. O

jornalismo é, portanto, não apenas uma arte verbal, mas também uma arte de apreciação de

acontecimentos.

Assim, muito se exige do responsável por transportar essa realidade para o mundo da

representação. O jornalista precisa buscar, pois, a maneira correta de encaixar as sonoridades

na narrativa, a fim de não insultar os personagens, visto que eles muitas vezes não dominam a

língua da maneira como esperado, e ao mesmo tempo valorizar esse mesmo discurso como

quebra da narração. A fala deve ser a marca da coloquialidade e da naturalidade do texto.

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  50  

Para Gustavo de Castro (2005), “o êxito de quem escreve implica uma paciente

procura da justa expressão, da frase em que todos os elementos pareçam insubstituíveis, do

encontro de sons e ideias que sejam os mais eficazes e densos de significado[...]” (CASTRO,

p.78). Quem escreve busca não apenas informar, mas apresentar ao público realidades

distintas que existem dentro de uma mesma sociedade. Lima (1990) conclui que “o jornalista

medíocre informa para informar. O autêntico jornalista informa para formar” (LIMA, p. 60).

O problema, porém, para Ramonet (2004), é que o mercado está escasso de

profissionais que se preocupem com o valor ético e moral do material que estão produzindo;

produto que se tornou mercadoria. Toda informação que passa pela mídia se torna

simplificável, redutível e motivo de espetáculo, principalmente no meio audiovisual.

Conforme o autor, “a televisão não é uma máquina de produzir a informação, mas de

reproduzir acontecimentos, fatos. O objetivo não é fazer-nos compreender uma situação, mas

fazer-nos assistir a uma aventura ou desventura” (RAMONET, 2004, p.36). Para tudo então

parece existir uma imagem com uma sonoridade que represente visualmente o fato, muito

embora essa representação às vezes seja a manipulação de um cenário em prol da tal

representação visual.

No meio audiovisual, esse problema se intensifica e se torna mais difícil de ser

remediado pois, segundo Ramonet (2004), a televisão estabelece a ilusão de que ver é

compreender. Assim, “todo acontecimento, por mais abstrato que seja, deve imperativamente

apresentar uma face visível, mostrável, televisável” (RAMONET, p.133).

Para o autor, o comprometimento com a verdade e com os fatos já não existe mais,

visto que tudo passa a ser mercadoria. O produto só vende se for bem apresentado e, para

isso, tudo vale. No grande esquema industrial concebido pelos donos das empresas de lazer, cada um constata que a informação é antes de tudo considerada uma mercadoria, e que este caráter prevalece, de longe, sobre a missão fundamental da mídia: esclarecer e enriquecer o debate democrático (RAMONET, 2004, p.8).

Desta forma, pode-se dizer que o jornalismo literário apresenta-se como opção para o

público que está cansado de somente receber informações, sem delas conseguir tirar um

proveito maior, como a reflexão e o questionamento. Isso ocorre tanto no meio impresso,

com revistas e jornais que trabalham o texto literário; quanto na televisão, com as grandes

reportagens audiovisuais e documentários.

A narração e a forma com que a literatura e a história se unirão dependerá muito das

características do próprio jornalista. O desafio é conciliar todas as informações de maneira

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atraente, pois como a reportagem demanda um tempo maior tanto do leitor quanto do

telespectador, o conteúdo precisa compensar. Isso ocorre, pois, pela hibridização narrativa.

No final, o bom conteúdo produzido é que será recompensado com a eternidade.

Para Castro (2005), o modelo de jornalismo contemporâneo, ao menos nos jornais ou

telejornais diários, ‘está agonizante’. O autor acredita que a própria mídia já consegue

perceber falhas no sistema de produção e reprodução de conteúdo de forma moldada. Castro

crê ainda que o jornalismo contemporâneo esteja enfrentando constantes demandas de

complexidade e riqueza para poder se adaptar aos novos tempos. “Há, nesse desafio, um

apelo contundente por novas narrações que parece advir da própria noção de realidade, que o

jornalismo almeja conhecer tão bem (CASTRO, 2005, p. 79)”.

Esse apelo a novas narrações pode ser até mesmo um apelo ao jornalismo que faça a

diferença frente às reproduções de informação. É ponderável dizer que a narrativa

jornalística, com um toque de literatura, pode ser uma alternativa, ainda que a noção de

realidade seja uma incógnita constante. Por mais que o jornalismo desfralde a bandeira da reprodução da realidade, o seu funcionamento discursivo permanece no campo dos índices de um imaginário transcultural, em que a narrativa fascinante do destino é tão ou mais forte do que as pressões realistas da história (SODRÉ, 2009, p.230-231).

Mesmo com questionamentos como esse sobre a reprodução do real, o jornalismo

associado à literatura não perde força, visto que sua base está na realidade factual. Ele utiliza

o fato e o intensifica, pois a literatura é uma forma de expressão oral ou escrita capaz de

eternizar, de permear eternamente enquanto o tempo humano é finito. O texto jornalístico se

transforma, então, em obra, com uma linguagem que pode ser lida, compreendida e

decodificada por todos.

Segundo Florence Dravet (2005), “o certo é que a literatura é a esperança da

comunicação, para a qual é necessário que se eduquem não só os futuros jornalistas mas os

leitores. Através da literatura, o homem exerce a sua singularidade, de forma universal”

(DRAVET, p.89). Ou seja, tanto a universalidade quanto a singularidade da cultura são

representadas pela e na literatura. Assim, não é somente a obra que cruza as fronteiras do

tempo, mas também os sentimentos, as emoções, os fatos e as relações criadas.

A percepção que se tem é de que da mesma forma que o jornalismo literário e sua

inserção na comunidade leitora/telespectadora ganharam espaço rapidamente, também o

perderam. A demora e o alto custo de produção foram tomados pelos modelos moldados de

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jornalismo, onde a agilidade e a rápida produção ofereciam mais ao mercado capitalista. As

produções midiáticas passam, então, a ocorrer por meio de roteiros prontos e já codificados.

A imprensa como promotora de discussões da cultura foi deixada de lado pela imprensa moderna – ao se organizar em fins do século XIX como um campo de produção industrial-capitalista da cultura –, que pôs em primeiro plano a tarefa de apenas informar o público, assim privilegiando a objetividade profissional das técnicas de texto e o desenvolvimento dos processos mecânicos e eletrônicos de reprodução das mensagens (SODRÉ, 2009, p.55).

Com isso, as grandes empresas midiáticas faturam sobre o processo capitalista de

produção de conteúdo, fazendo com que o público perca a oportunidade de estar em contato

direito com o conhecimento. Deixando de lado toda a magia que a literatura e os recursos

literários propiciam ao texto, seja ele apresentado de forma oral ou escrita, a mídia concentra-

se na superficialidade e nas produções medianas.

O público consumidor deste conteúdo, acostumado a receber tudo pronto e mastigado,

se habitua às produções e raramente questiona. A correria do dia-a-dia é utilizada como

desculpa para as produções serem sempre mais superficiais, já que ninguém mais tem tempo

suficiente para ler ou assistir uma reportagem mais longa e intensa. Desculpa da mídia que se

estende ao público, que consente calado. Claro, ninguém o ensina a questionar.

Porém, com o advento da internet, novas formas de se apresentar o conteúdo e a

informação aparecem. No meio eletrônico, a notícia torna-se instantânea, de fácil acesso por

todos e mais superficial ainda. Difícil é encontrar este público, que tem informações

chegando até ele a todo instante, estanque na frente do aparelho televisivo para acompanhar o

jornal diário, ou sentado em sua poltrona para ler o impresso do dia, pois nestes veículos mais

tradicionais ele vai encontrar tudo aquilo que já encontrou na internet. [...] Em meio à crise evidente das formas tradicionais de jornalismo diante da circulação de informações através da internet em tempo real e fluxo contínuo, o estatuto conceitual da notícia suscita considerações de ordem prática para a corporação editorial, inclusive a de saber se os tradicionais produtores do texto jornalístico ainda podem determinar em última análise o que é ou não uma notícia, portanto, determinar se a corporação profissional a que pertencem ainda detém o controle absoluto sobre o produto básico do discurso informativo” (SODRÉ, 2009, p.23).

Os meios de comunicação buscam, eles mesmos, uma alternativa para responder a

perguntas recentes que questionam sua própria existência. O público, que não está

acostumado a questionar, já exige um conteúdo diferenciado nos meios de comunicação

tradicionais. Ele clama por uma forma atraente de se apresentar a narrativa jornalística, que

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parece perder espaço justamente para as novas tecnologias. É como se uma reestruturação do

jornalismo precisasse ser feita para garantir sua sobrevivência. Com o advento da mídia eletrônica e sua conexão mais estreita com a organização capitalista do mercado, um peso extraordinário é também dado à produção de emoção e de prazer junto ao público consumidor. Neste caso, diminui a sistematização cognitiva da informação, e o jornalismo pactua semioticamente com a produção de entretenimento” (SODRÉ, 2009, p.52).

Esse pacto com o entretenimento não significa unicamente entreter, mas pode ser sim

o uso do entretenimento como recurso para captar o público consumidor e, ao mesmo tempo,

informar. A hibridização de gêneros e categorias, cada vez mais utilizada, é apenas um

exemplo. A própria narrativa se hibridiza com a literatura e a história, e juntas são utilizadas

pelo jornalismo para reproduzir discursos por meio de personagens.

Parece, portanto, que a narrativa construída junto à literatura e apropriada pelo

jornalismo tem espaço para crescer e se fortalecer no mercado, o que propicia ao público uma

alternativa de produto com qualidade. Além de reproduzir uma verdade factual, o estilo

narrativo-literário, tanto no meio impresso quanto no audiovisual, propõe a produção de

conteúdos tidos como obras, que relatam por meio dos discursos de seus personagens a

história, a cultura e a vida de um povo.

No próximo capítulo, os personagens e a narrativa literária serão aprofundados, visto

que eles são fundamentais para a construção das grandes reportagens audiovisuais.

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4 A NARRATIVA NA TELEVISÃO

Na televisão, a narrativa acontece da mesma forma que ocorre no meio impresso,

visto que ela demanda de uma produção e construção escrita antes de se fortificar na

oralidade. O discurso dos personagens também é uma forma de quebra à narrativa, de

humanização e aproximação da realidade. O que muda, porém, na televisão, é a imagem. Ela

se faz presente, com cor e movimento, sem que a descrição precise apresentá-la. Ela é

responsável pela exposição do cenário e, muitas vezes, dos detalhes.

Este capítulo tem por objetivo mostrar de que forma a narrativa se aplica no meio

audiovisual e apontar a importância da mesma para a estrutura, a identidade e a ideologia de

um canal de televisão. Apresenta-se, também, o programa Entre Fronteiras, escolhido como

conteúdo a ser estudado neste trabalho.

4.1 CARACTERÍSTICAS

Na televisão, há a presença de dois elementos fundamentais para sua diferenciação do

meio impresso: o som e a imagem. Enquanto as reportagens mais literárias produzidas para a

mídia impressa precisam utilizar palavras para descrever o ambiente, o figurino, posições,

gestos e expressões, a televisão consegue captar parte desses acontecimentos pela lente das

câmeras. O som ambiente, que pode ser o vento, um latido de cachorro ou até mesmo um

tilintar de louça, ajuda a compor a cena, junto ao movimento.

Assim, Rezende (2000) destaca que a diferenciação da televisão está exatamente no

código icônico enquanto base de sua linguagem. O autor não descarta, porém, a importância

da palavra e da oralidade para que a composição se apresente por completo. Ora a imagem impõe-se em sua plenitude, ora basta a palavra para a transmissão de uma notícia televisiva. Entre esses pólos, desponta uma grande variedade de alternativas, todas elas se constituindo como expressões legítimas do telejornalismo. Em vez de se proclamar o império do icônico no discurso televisivo, parece mais factível a hipótese de que a construção da mensagem da TV reflete uma complexa intervenção de signos de natureza diversa e em contínua interação (REZENDE, 2000, p. 45).

Essa intervenção de signos se mostra mais complexa ainda quando o meio audiovisual

se apropria da narrativa literária, pois então mais elementos, mais detalhes e mais conteúdo

farão parte da mesma construção. Essa proposta é o oposto do que o jornalismo tradicional

trabalha hoje com a indústria cultural, onde tudo é descartável e a busca é pelo novo. O

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  55  

jornalismo literário sugere, então, a produção diferenciada de um produto não perecível com

o passar do tempo.

No momento de ser veiculado em alguma estação de tevê, esse produto é geralmente

encaixado dentro de algum programa ou vai ser a representação do próprio programa em si.

Isso acorre porque a televisão ainda está muito ligada aos gêneros e programas, à

identificação por meio de nomenclaturas. Conforme Arlindo Machado, “[...] investigações

empíricas têm demonstrado que tanto a produção quanto a recepção televisual continuam se

baseando fortemente em núcleos de significação coerentes, como os gêneros e os programas”

(MACHADO, 2000, p. 29).

O autor explica que o enredo das narrativas audiovisuais é geralmente construído sob

forma de capítulos ou episódios, tendo um horário dentro da grade de programação do canal

de tevê para ser veiculado. A periodicidade do programa vai depender da emissora e do

próprio produto, podendo ser diária, semanal ou apresentada em séries, com data para entrar

e sair do ar.

Machado define programa como “qualquer série sintagmática que possa ser tomada

como uma singularidade distintiva, com relação às outras séries sintagmáticas da televisão”

(MACHADO, 2000, p. 27). Eles geralmente são estruturados também com intervalos, que

podem ser uma demanda empresarial para a inserção de publicidades ou uma forma de não

tornar o conteúdo maçante.

Além disso, é preciso levar em consideração o telespectador do produto, que pode

muitas vezes estar ouvindo a televisão, mas não a assistindo. Essa possibilidade reforça os

constantes cuidados que precisam ser tomados com a construção narrativa. Um produto adequado aos modelos correntes de difusão não pode assumir uma forma linear, progressiva, com efeitos de continuidade rigidamente amarrados como no cinema, senão o telespectador perderá o fio da meada cada vez que a sua atenção se desviar da tela pequena (MACHADO, 2000, p. 87).

A afirmação de Machado mostra o desafio constante de se produzir um conteúdo de

qualidade para a televisão, tamanho os cuidados que precisam ser tomados. Talvez essa

cobrança exagerada sobre a consumação do produto pelo público é, de certa forma,

responsável pelo apelo que as empresas midiáticas fazem ao sensacionalismo e ao hard news.

Assim, com a garantia do consumo pelo público, automaticamente as emissoras têm a certeza

da arrecadação com publicidade.

A criação de novos espaços que podem abraçar este perfil de conteúdo mais reflexivo

e menos apelativo pode surgir com a TV digital, que possui uma grade de programação

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  56  

ampliada. Para Carlos Tourinho, chefe de reportagem e pós-graduado em Economia para

Jornalistas, “a evolução é permanente e pode surgir em qualquer lugar e a qualquer hora.

Basta que se criem as condições para tal” (TOURINHO, 2009, p. 132).

O autor acredita ainda que uma inovação, muitas vezes utilizada pelas emissoras, é o

‘repórter abelha’, onde um único profissional vai à campo e faz a reportagem. Nesse caso, a

narrativa se constrói também de uma forma diferente, pois quem produz as imagens é a

mesma pessoa que interage com os personagens e conta a história. É uma técnica que já

ganhou e perdeu espaço, mas nunca conseguiu se consolidar.

4.2 O CANAL FUTURA

A inserção de programas ou episódios de melhor qualidade reflexiva e conteúdo

aprofundado encontra espaço em canais de tevê que disponibilizam toda sua grade de

programação em prol do conhecimento. Um desses ambientes, no Brasil, é o Futura, que se

autodomina uma TV atrativa e educativa. As informações sobre esse canal foram retiradas

basicamente do website oficial da emissora: <http://www.futura.org.br/>.

O Canal Futura é um projeto social de comunicação que surgiu a partir de interesses

privados e públicos. A emissora nasceu e se mantém até hoje de parcerias e apoiadores,

sendo seus mantenedores a Fundação Bradesco, a CNI, a CNN, a FIESP, a FIRJAN, a

Fundação Itaú Social, a Fundação Vale, a Gerdau, o SEBRAE, a TV Globo e a Votorantim.

O canal procura trabalhar com “uma linguagem plural para abordar temas de

importância e interesse coletivo. Fala de saúde, trabalho, juventude, educação, meio ambiente

e cidadania. Um aliado do brasileiro na busca da construção de uma vida melhor”

(Disponível em: <http://www.futura.org.br/o-futura/quem-somos/>. Acesso em: 29 jun.

2012).

A emissora abre também espaço para a interação e a participação do telespectador por

meio de redes sociais e convencionais, como o telefone. O Canal Futura acredita que o

espaço aberto à interação do público propicia a ampliação do diálogo e de articulações locais

com grupos sociais, assim como expande as capacidades comunicativas. “Novas gerações

participam da criação de uma linguagem televisiva, na qual a pluralidade dos segmentos

sociais se manifesta” (Disponível em: <http://www.futura.org.br/o-futura/quem-somos/>.

Acesso em: 29 set. 2012).

A principal missão do Canal Futura é contribuir para a formação educacional da

população, ou seja, investir em produção de conhecimento. O objetivo é atingir todos os

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  57  

públicos, desde a criança, até o adolescente, jovem e adulto, contribuindo para o

desenvolvimento de capacidades e formações básicas.

Para isso, o projeto do Canal Futura tem como base cinco princípios, sendo eles o

espírito comunitário, o pluralismo, o espírito empreendedor, a ética e a sustentabilidade

socioambiental. No espírito comunitário, o objetivo é incentivar a solidariedade e a

participação das pessoas em ações que promovam a qualidade de vida. O pluralismo baseia-

se na reflexão sobre a diversidade e a riqueza das manifestações.

No espírito empreendedor, o Futura pretende valorizar a iniciativa individual,

incentivando a responsabilidade de cada um frente às tomadas de decisão. A ação visa o

crescimento não somente pessoal, mas também o desenvolvimento do país. Quanto à ética, a

ideia é resgatar o respeito aos valores, aos direitos e às responsabilidades dos cidadãos. Por

fim, a sustentabilidade socioambiental representa a busca pelo equilíbrio com o meio

ambiente e a promoção do respeito entre homens e à pluralidade de visões.

Almejando sempre a produção de conhecimento e a educação, o Canal Futura procura

disponibilizar seu conteúdo em diferentes mídias, com o objetivo de atingir um maior número

de usuários. Para isso, existe o Futuratec, que é uma ferramenta online onde os conteúdos da

emissora são disponibilizados para download.

A emissora possui também um contrato permanente com várias universidades do

Brasil, o Projeto de Parceria com as Universidades, Centros Universitários, Faculdades e

Institutos. O acordo oferece às instituições parceiras oficinas para aprendizado audiovisual,

participação e consultoria na criação de programas, ações de mobilização social, intercâmbio

de profissionais e divulgação de projetos de pesquisa acadêmica.

Além dos cuidados com a programação, o Canal Futura mostra que a preocupação

social vai além das telinhas. “O Futura estende seu compromisso com a transformação social

atuando nos territórios de forma presencial” (Disponível em: <http://www.futura.org.br/alem-

da-tv/mobilizacao-comunitaria/>. Acesso em: 29 set. 2012).

A Mobilização e Articulação Comunitária, como é chamado o projeto, agrega uma

equipe de educadores sociais que atuam como mediadores em um processo de diálogo crítico

e constante. “Essa prática permite a inclusão na tela da TV de novos temas, novas

perspectivas, novos sotaques, estéticas e uma diversidade mais ampla de pontos de vista”.

(Disponível em: <http://www.futura.org.br/alem-da-tv/mobilizacao-comunitaria/>. Acesso

em: 29 set. 2012).

Neste ano de 2012, o Canal Futura completa 15 anos de atuação. Os números

mostram que ao longo dessa caminhada foram mais de 16 mil instituições impactadas com o

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  58  

trabalho da emissora, sendo 44% da região Nordeste e 33% da região Sudeste. Além disso,

foram mais de 441 mil educadores formados para o uso pedagógico da programação do

Futura em suas atividades de sala de aula.

4.3 O PROGRAMA ENTRE FRONTEIRAS

Um dos programas veiculados pelo Canal Futura é Entre Fronteiras, cuja produção e

elaboração independem da emissora. O programa nada mais é do que um conjunto de

seriados que possuem a mesma linguagem jornalística e uma vinheta comum responsável por

identificar o programa.

Entre Fronteiras consiste em uma série que reúne 20 grandes reportagens

audiovisuais, as quais retratam personagens e histórias da fronteira brasileira. O programa foi

produzido por meio de uma parceria com a Matrioska Filmes e a rede norte-americana CNN.

Cada episódio possui duração média de 26 minutos.

Os episódios do Entre Fronteiras são exemplos da aplicação da narrativa literária nas

produções jornalísticas audiovisuais. Os personagens representam os mais comuns cidadãos

de determinada localidade e sua particularidade é explorada com o objetivo de retratar, por

meio deles e de suas falas, a cultura local da comunidade. Outra característica do programa é

a inserção do repórter nos processos de gravação enquanto narrador e sua interação constante

com o meio e com os personagens.

Essa não é uma particularidade do jornalista Luís Nachbin, condutor do Entre

Fronteiras. A aparição da produção e a preocupação não exagerada com a qualidade da

imagem, mas sim com o conteúdo, já vinha sendo testada pelo cineasta e documentarista

Eduardo Coutinho. As sequências de interação explícita entre Eduardo Coutinho e seus personagens e as imagens da equipe – se filiam ao chamado cinema-verdade francês. O improviso de muitas situações, a precariedade assumida de algumas tomadas, as imagens em movimento das chegadas aos locais são tributárias dos cinemas novos que surgiram nos anos 60, das tecnologias mais leves e da experiência da televisão (LINS, 2004, p. 34-35).

No Entre Fronteiras, são habituais as imagens em movimento mostrando o caminho a

ser percorrido e a chegada ao local desejado. O programa geralmente inicia apresentando a

chegada ao destino, que, como o próprio nome já diz, são cidades de fronteira, muitas vezes

longe dos grandes centros urbanos. As imagens em movimento também são utilizadas com

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  59  

frequência em meio à narrativa para mostrar o deslocamento e a permanência do repórter

dentro das comunidades durante o tempo de gravação.

O primeiro episódio do programa, O Guardião da Ilha, foi gravado na Ilha Brasileira,

no sul do Brasil, fronteira com o Uruguai e a Argentina. Utilizando-se da narrativa literária,

característica de todos os episódios do programa, as gravações valorizam o cenário verde,

cercado de rios, para apresentar uma história de dedicação. O Guardião da Ilha conta um

pouco da história de seu Zeca, um personagem com mais de 90 anos e que passou parte do

seu tempo cuidando e ajudando a preservar a ilha. “Para muitos, ele é a fronteira em carne e

osso” (Disponível em: < http://www.matrioskafilmes.com.br/site/projetos/entre-fronteiras/>.

Acesso em: 03 jul. 2012).

Na sequência, O Herói da Fronteira, gravado na capital do estado de Rondônia,

próximo à Bolívia. O personagem deste episódio é Jair Rangel, conhecido como Pistolino.

Enfrentando dificuldades financeiras, ele alimenta o sonho de construir uma carreira como

diretor, roteirista e ator cômico. “O programa é uma aula de cinema, que culmina com um

curta filmado especialmente para o Entre Fronteiras” (Disponível em: <

http://www.matrioskafilmes.com.br/site/projetos/entre-fronteiras/>. Acesso em: 03 jul. 2012).

O terceiro episódio foi intitulado O Mestre e a Maloca. Gravado em São Gabriel da

Cachoeira, no extremo norte do Brasil, na fronteira com a Colômbia e a Venezuela, a

produção conta a história do mestre Luís. O personagem é dono de uma maloca, que constitui

o cenário perfeito para episódio. Na época das gravações ocorreu em São Gabriel da

Cachoeira o Festribal, evento que reúne boa parte das tribos que habitam a região. Com o

festival, a grande reportagem alcança seu ponto auge e em seguida finda. A cidade foi

escolhida para ser o palco do episódio por ser considerada a mais indígena do país, tendo

quatro idiomas oficiais.

O Homem e a Baleia foi o quarto episódio da série Entre Fronteiras. A produção

mostra a história de Hamilton Coelho, um artista plástico que vive de presentes do mar. A

casa do personagem principal fica a alguns metros da fronteira com o Uruguai e seu trabalho

compreende em transformar restos mortais em obras de arte. A matéria-prima do trabalho

realizado por Hamilton são as baleias. “Luís Nachbin vai até o Chuí para acompanhar um

pouco da rotina desse recriador de baleias. Juntos, na praia, eles encontram dois enormes

crânios, que mais parecem ossos pré-históricos” (Disponível em: <

http://www.matrioskafilmes.com.br/site/projetos/entre-fronteiras/>. Acesso em: 03 jul. 2012).

O quinto episódio foi intitulado A Dinastia e gravado no extremo sul do Brasil. A

reportagem conta a história de uma dinastia que acaba de completar um século de existência:

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  60  

a dinastia dos faroleiros. O último faroleiro em atividade, Sanger Nelson de Lima está prestes

a se aposentar. “Aos pés dos faróis que marcaram a sua vida, ele se reúne com os irmãos e

revive uma rotina de décadas de isolamento” (Disponível em: <

http://www.matrioskafilmes.com.br/site/projetos/entre-fronteiras/>. Acesso em: 03 jul. 2012).

Uma celebração e um desfile de moda em homenagem ao dia da prostituta ocorre em

Corumbá, fronteira do Brasil com a Bolívia, e é lá que o episódio O Dia da Prostituta

acontece. Já em Circo Real, Nachbin encontra, no Mato Grosso do Sul, fronteira com o

Paraguai, o ciclo de montagem e desmontagem de um circo para sair de uma cidade e estrear

em outra. A poesia une-se à beleza do circo e à literatura na narrativa jornalística para

apresentar a arte de bem servir ao público.

No oitavo episódio, Partejar, que será analisado neste trabalho, o Entre Fronteiras

acompanha uma parteira à espera do seu próximo trabalho. O episódio é gravado no

Oiapoque, Amapá, fronteira do Brasil com a Guiana Francesa. O local foi escolhido pelo

Amapá ser o estado brasileiro recordista em número de bebês nascidos por parto natural. A

personagem desta história é dona Helena, que espera para trazer mais um neto ao mundo. O

nome do episódio, Partejar, surge da fala de dona Helena, que explica o surgimento do verbo

como denominação ao ato de parir.

Carline conta, por meio da líder que se chama Carline, a história de muitos haitianos

que fugiram de seu país depois do terremoto que destruiu a capital Porto Príncipe, no início

de 2010. Muitos deles cruzaram as fronteiras para se instalar no Brasil. O episódio é gravado

em Tabatinga, no Amazonas, fronteira com a Colômbia e o Peru. Lá, um pequeno grupo de

refugiados se abriga em um lar temporário, que é na verdade uma igreja. Nachbin tem

contato com esse grupo e, por meio deles, busca retratar a história dos haitianos no Brasil. .

Kantuta é um episódio semelhante, porém este retrata a história dos bolivianos que

vieram para o Brasil por meio do estado do Mato Grosso do Sul, em Corumbá, e que hoje

vivem em São Paulo. O personagem deste episódio é Wilbert Rivas, um boliviano que esteve

envolvido com o mundo das drogas em La Paz e que hoje é um dos líderes da comunidade

boliviana. O Entre Fronteiras apresenta o dia-a-dia dos compatriotas de Rivas e muitas de

suas memórias.

Dr. Raiz, o décimo primeiro episódio, retrata a história de um raizeiro que tem

orgulho de dizer que é ‘mateiro profissional’. O filho de seringueiros percorre a mata

Amazônica ao lado de Luís Nachbin atrás dos ingredientes que precisa para fabricar as

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‘garrafadas’. A bebida é posteriormente vendida na capital Rio Branco e em Brasiléia, na

fronteira com a Bolívia e o Peru.

Copa da Floresta também se passa na Amazônia e centraliza-se no maior torneio de

futebol do Acre: A Copa da Floresta. No município de Sena Madureira, 76 times e mais de

mil jogadores se reúnem. Nachbin vai até a cidade de Saudade para acompanhar a rotina do

atual bicampeão da competição. Lá, o jornalista é guiado pela matriarca de quase todo o time,

dona Nila.

No episódio 13, a Miss Penitenciária abre espaço para a rotina de um presídio

feminino, em Porto Velho, capital de Rondônia. Muitas histórias são apresentadas ao

jornalista enquanto ele se depara com as más condições do ambiente, que carece de camas e é

divido em celas pequenas. O concurso que revela a miss penitenciária esconde um pouco dos

problemas e abre espaço à beleza, à postura e à desenvoltura na passarela. A personagem do

episódio é Iza Cristina, escolhida pelo jornalista antes mesmo do resultado final.

Em Km 899, na estrada a caminho da fronteira com a Bolívia, mora um cubano, Don

Antonio, que está isolado e envolto a opiniões extremistas. “A casa é uma cabana de plástico

e a única ocupação são as revistas e o rádio, ligado invariavelmente no noticiário político”

(Disponível em: <http://www.matrioskafilmes.com.br/site/projetos/entre-fronteiras/>. Acesso

em: 30 set. 2012). O personagem, porém, abre-se para desvendar suas relações afetivas, que

deixou para segundo plano. A conversa leva o jornalista Luís Nachbin a Miami para

completar a história.

A Família Jackson retrata a rotina normal de uma família. Esta, porém, na cidade

guianense de Lethem. O irmão mais velho, Wanderson, é líder de um grupo de hip-hop e

sonha com uma vida nos palcos. O pai, Mister Billey, se encarrega de lançar a realidade ao

filho. A trama se passa enquanto o jovem, aqui no Brasil, aguarda aflito o resultado de um

concurso que pode lhe proporcionar o estrelato.

Jorge, o grande traz a história de um homem apaixonado pela notícia. Durante a

infância, o personagem vendia jornais nas ruas do Rio. Ele aprendeu a ler por curiosidade e

sequer imaginava que um dia sua vida viraria pauta. Jorge viajou do Rio para os Estados

Unidos, passou pelo Qatar e Ilhas do Caribe, até fixar moradia nos limites do Brasil com a

Guiana e a Venezuela. Hoje ele escreve, edita e vende o único jornal bilíngue da região.

Em Expedicionários da Saúde, um grupo de forasteiros monta um centro cirúrgico

nas margens do rio Negro e perto da Colômbia. Nachbin acompanha a 17º viagem de uma

ONG que passou até pelo Haiti, após o terremoto. Em sete dias, os médicos atendem mais de

mil índios e operam mais de cem pessoas. .

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  62  

No 18º episódio, Monsieur Charlotte, Nachbin acompanha a obstinação de um

ativista, o padeiro Raymond Charlotte, um dos principais líderes da luta da Guiana Francesa.

O país é a última fronteira do colonialismo na América do Sul e o ativista e personagem do

episódio faz questão de divulgar suas ideias igualitárias.

Em A Terra dos Gêmeos, o Entre Fronteiras investiga as variadas hipóteses para

descobrir por que a cidade de Cândido Godói, no Rio Grande do Sul, tem uma taxa tão

elevada de nascimento de gêmeos. Uma delas seria de que o médico nazista Joseph Mengele,

conhecido como Anjo da Morte, durante a Segunda Guerra Mundial, teria feito da pequena

cidade um laboratório de experiências genéticas.

No último episódio da série, Sobre Cartas e Motos, Nachbin acompanha o carteiro

Adriano Pinico e sua namorada Simone. O carteiro tinha medo de moto e foi convencido pela

namorada a comprar uma. Depois disso, ele criou um grupo de motociclistas e em seguida foi

promovido a carteiro motorizado. O desafio do casal, durante as gravações, é unir um outro

casal separado pela fronteira do Brasil com o Uruguai pela perda de um celular. Tudo que

eles precisam fazer é entregar uma carta cuja única informação disponibilizada é o primeiro

nome do destinatário.

Essas 20 grandes reportagens da série foram veiculadas no Canal Futura, de segunda a

sextas-feiras, às 19h30. O primeiro episódio foi ao ar no dia 11 de julho de 2011 e o último

episódio inédito no dia 5 de agosto do mesmo ano. No site de seu outro programa, Passagem

Para, Nachbin escreve também sobre sua experiência com o Entre Fronteiras. Professor de

Jornalismo da PUC-Rio e mestre em Televisão e Projetos Experimentais pela San Francisco

State University, o jornalista conta que ainda liga para alguns personagens da série. “Vivo

cheio de saudade dos personagens. Não quero assumir uma postura paternalista. Mas preciso

vê-los entrando em algum tipo de sonho prazeroso, assim como tenho vivido o meu –

proporcionado por eles” (Disponível em: <http://www.passagempara.org.br/main.asp>.

Acesso em: 03 jul. 2012).

Assim, a partir do próximo capítulo será possível analisar a importância da narrativa

literária na televisão por meio do estudo de Partejar, episódio do programa Entre Fronteiras,

exibido no Canal Futura.

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5 O CAMINHO PERCORRIDO

Para aprofundar a aplicação da narrativa literária na construção jornalística e sua

inserção no ambiente audiovisual, optou-se por realizar uma pesquisa de campo. Tendo já

apresentado a fundamentação teórica que servirá de referência para o conteúdo a ser

estudado, propõe-se mostrar o caminho percorrido para a compreensão da análise de discurso

a ser realizada no próximo capítulo e as técnicas metodológicas utilizadas no decorrer da

pesquisa, que tem abordagem qualitativa.

O processo metodológico está diretamente relacionado ao objeto de estudo. Como

pretende-se estudar a inserção dos personagens no mundo do jornalismo e a narrativa literária

no contexto audiovisual, acredita-se fundamental direcionar a pesquisa ao discurso, à

identificação de como o processo significativo se constrói. Para tanto, optou-se pela Análise

de Discurso (AD) como método a ser seguido durante o processo de análise e, como técnicas

auxiliares, a pesquisa bibliográfica, a entrevista e a observação.

5.1 MÉTODOS E TÉCNICAS DE ANÁLISE

Antes de se trabalhar o método propriamente dito, é importante lembrar que ele indica

um conjunto de regras fornecedoras de paradigmas, que são responsáveis por nortear o

caminho a ser seguido. Os paradigmas representam regras hipotéticas ou moldes aos quais os

cientistas recorrem para realizar pesquisas bem sucedidas.

De acordo com Thomas Kuhn (2007), os paradigmas orientam as pesquisas científicas

ou por meio de regras abstratas, ou modelando-as diretamente. Isso acontece porque a ciência

tradicional pode avançar mesmo sem questionar as soluções dos problemas particularmente

já obtidas. Por isso, as regras assumem importância e só desvanecem quando os paradigmas

ou modelos se tornam inseguros. Quando os cientistas não estão de acordo sobre a existência ou não de soluções para os problemas fundamentais de sua área de estudos, então a busca de regras adquire uma função que não possui normalmente. Contudo, enquanto os paradigmas permanecem seguros, eles podem funcionar sem que haja necessidade de um acordo sobre as razões de seu emprego ou mesmo sem qualquer tentativa de racionalização (KUHN, 2007, p. 74).

Para Kuhn, portanto, os paradigmas deveriam dar lugar a regras com o objetivo de

facilitar a compreensão da diversidade de campos e especializações científicas. O autor

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defende que as regras explícitas são gerais para um grupo científico bastante amplo, algo que

nem sempre ocorre com os paradigmas.

Os paradigmas são, assim, o resultado da investigação histórica sobre determinada

especialidade em um momento específico. Essa investigação revela um conjunto de

ilustrações quase padronizadas de diferentes teorias. Esse conjunto de ilustrações representa,

então, os paradigmas.

Nesta pesquisa, o paradigma de referência é a hermenêutica, que estuda o sentido, a

compreensão e a interpretação. De acordo com Jayme Paviani (2009), filósofo e doutor em

Letras, a hermenêutica segue três princípios básicos. O primeiro deles é a inseparabilidade do

sujeito e do objeto. Na sequência, tem-se a circularidade entre o todo e o particular. “Essa

circularidade é exigida da inseparabilidade do sujeito e objeto e tem como consequências

metodológicas, entre outras, a característica do ato compreensivo hermenêutico de eliminar a

mera indução” (PAVIANI, 2009, p. 81). O terceiro princípio é a pré-compreensão como

ponto de partida do conhecimento.

Com a compreensão do que é paradigma e como ele se aplica no ambiente científico,

é importante também dar ênfase ao discurso e não abandonar os demais elementos que

compõe o produto audiovisual. A autora Rosalind Gill explica que enquanto analista de

discurso, a pessoa precisa estar envolvida simultaneamente com a análise do discurso e com a

análise do contexto interpretativo.

Por isso, é proveitoso pensar a análise de discurso como tendo quatro temas principais: uma preocupação com o discurso em si mesmo; uma visão da linguagem como construtiva e construída; uma ênfase no discurso como uma forma de ação; e uma convicção na organização retórica do discurso (GILL, 2008, p. 247).

Assim, considera-se geralmente o método de Análise de Discurso produtivo para dois

tipos de estudo dentro do jornalismo, sendo eles o mapeamento de vozes e a identificação dos

sentidos. Para tal, é preciso levar em conta dois processos fundamentais que ocorrem na

comunicação, denominados intersubjetividade e interdiscursividade, ambos defendidos por

Mikhail Bakhtin. O pensador russo via a linguagem como um processo de interação mediado

pelo diálogo e seus estudos marcaram a teoria linguística no século XX.

A intersubjetividade propõe que o discurso só existe entre sujeitos, ou seja, é preciso

haver mais do que um sujeito para que haja interação e, com isso, o processo de construção

de significados. A interdiscursividade está diretamente ligada aos estudos sobre sentidos, isto

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  65  

é, ela só consegue existir quando há mais do que um discurso e quando esses discursos se

cruzam entre si, o que gera, de imediato, significações.

Conforme Barros (1997), Bakhtin defendia a impossibilidade de se pensar no homem

fora de suas relações que o ligam a outros indivíduos. Quando se dirige às ciências humanas,

“[...] Bakhtin aponta já as duas diferentes concepções do princípio dialógico entre discursos,

a do diálogo entre interlocutores e a do diálogo entre discursos, pois considera que nas

ciências humanas o objeto e o método são dialógicos” (BARROS, 1997, p. 28).

Por isso, conforme estudos que retratam o trabalho de Bakhtin, o sentido só se

constitui quando há a interação entre locutores, porque a comunicação é o princípio fundador

da linguagem. Bakhtin defende que a comunicação não pode ser vista como um processo de

mão única e critica a informação pela sua forma simplificada, linear e mecanicista. Desta

forma, pode-se dizer que a comunicação e o sentido encontram-se na diversidade de vozes.

Para Orlandi (2010), a presença de personagens é fundamental para que a construção

de sentindo aconteça de fato. “O discurso é efeito de sentidos entre locutores” (ORLANDI,

2010, p. 21). Esse efeito ocorre de acordo com a relação que esses sujeitos têm entre eles

mesmos e com a sociedade que os cerca. Assim, entende-se que o discurso não está isolado

de um contexto sócio-histórico, mas que ele carrega consigo um caráter ideológico.

Ao passo que se constata o discurso como histórico e subordinado aos

enquadramentos socioculturais, deve-se levar em conta que a instauração de sentidos se dá

em um meio mutável. As relações hierárquicas presentes na sociedade moderna

materializam-se como relações de força e poder dentro do processo comunicacional, mesmo

que de forma não explícita. “[...] A linguagem funciona diferentemente para diferentes

grupos, na medida em que diferentes materiais ideológicos, configurados discursivamente,

participam do julgamento de uma dada situação (grifo do autor)” (BRAIT, 1997, p. 99).

A Análise de Discurso, desta forma, se propõe a observar o dito e o não dito

enquanto processos de constituição de significado. Isso ocorre por meio do texto, pois,

segundo estudos de Bakhtin, o texto significa. Para Machado (2010), “o texto é a parte visível

ou material de um processo altamente complexo que inicia em outro lugar (grifo da autora):

na sociedade, na cultura, na ideologia, no imaginário” (MACHADO, p. 111).

O texto é a materialidade a ser analisada. A análise de discurso não vai buscar a

travessia do texto para a extração de conteúdo, mas sim compreender, por meio de sua

materialidade discursiva, como os sentidos e os sujeitos se constituem como redes de

significação. Assim, o objetivo principal é responder como o texto significa e não que sentido

ele transmite.

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  66  

Conforme Orlandi (2010), a análise de discurso “produz um conhecimento a partir do

próprio texto, porque o vê como tendo uma materialidade simbólica própria e significativa,

como tendo uma espessura semântica: ela o concebe em sua discursividade” (ORLANDI,

p.18). O que se tem, portanto, “como produto da análise, é a compreensão dos processos de

produção de sentidos e de constituição dos sujeitos em suas posições” (ORLANDI, 2010, p.

72). Entenda-se sujeitos, no plural, pois é a interação desses que possibilita a significação e

porque um sujeito sozinho não produz discurso, menos ainda texto.

É importante lembrar que os sentidos não estão restritamente nas palavras, eles

podem ser encontrados também em práticas discursivas de diferentes naturezas, como

imagem, som, letra. A oralidade ou a escrita do texto não vai mudar a definição de texto, pois

as particularidades específicas de ambos permanecem, visto que são considerados textos.

Para Gill (2008), todos os processos que podem representar a constituição de sentido

devem ser levados em consideração. “Os analistas de discurso, ao mesmo tempo em que

examinam a maneira como a linguagem é empregada, devem também estar sensíveis àquilo

que não é dito – aos silêncios” (GILL, 2008, p. 255). O silêncio pode ser a representação de

uma censura, de uma preocupação, de um medo, ou seja, o todo nunca deve ser

desconsiderado.

A análise de discurso prevê que se observe o objeto de estudo sob duas camadas. A

primeira camada é a do discurso em si e a segunda camada, essa mais complexa e difícil de

ser percebida, é a camada da ideologia. Assim, é possível identificar as sequências

discursivas e os locutores e enunciadores presentes no discurso.

Desta forma, para a realização da análise do material selecionado, optou-se por seguir

os caminhos apontados por Orlandi (2010). A autora defende que a análise deve ser feita em

etapas, sendo que cada etapa corresponde ao funcionamento do discurso. “Estas etapas de

análise têm, como seu correlato, o percurso que nos faz passar do texto ao discurso, no

contato com o corpus, o material empírico” (ORLANDI, 2010, p. 77).

Esse percurso se dá, portanto, em três etapas. Na primeira delas trabalha-se a

passagem da superfície linguística, que é o texto, para o discurso. O objetivo é encontrar no

texto a discursividade para que posteriormente se construa um objeto discursivo. Isso

acontece quando se desassocia a relação da palavra – coisa, pois assim perde-se a ilusão de

que aquilo que está sendo dito só o poderia ser daquela maneira. Nesta etapa, é importante

tornar visível as relações do dito com o não dito e com aquilo que poderia ter sido dito.

Na segunda etapa tem-se o objeto discursivo, que se manifesta por meio da formação

discursiva. Por meio desse objeto busca-se relacionar as formações discursivas distintas com

Page 67: O desafio de dar voz às pessoas nas grandes reportagens audiovisuais: um olhar por Entre Fronteiras

  67  

suas formações ideológicas. “Aí é que ele atinge a constituição dos processos discursivos

responsáveis pelos efeitos de sentidos produzidos naquele material simbólico, de cuja

formulação o analista partiu” (ORLANDI, 2010, p. 78). Nesta etapa também são observados

os efeitos metafóricos.

Na terceira etapa, procura-se a passagem desse objeto discursivo para o processo

discursivo, representado pela formação ideológica. Esse processo de produção de sentido é

afetado pelo efeito metafórico e pode apresentar deslizes, visto que não é único e que uma

outra análise pode o constituir de outra maneira.

Conforme Orlandi (2010), o ponto de partida é compreender como um objeto

simbólico produz sentidos, como ocorre a transformação da superfície linguística em objeto

discursivo. Essa identificação possibilita a delineação de limites dentro do campo de análise,

favorecendo a retomada de conceitos. Assim, a primeira coisa a se observar é que a Análise de Discurso não trabalha com a língua enquanto um sistema abstrato, mas com a língua do mundo, com maneiras de significar, considerando a produção de sentidos enquanto parte de suas vidas, seja enquanto sujeitos seja enquanto membros de uma determinada forma de sociedade (ORLANDI, 2010, p. 15-16).

A análise de discurso, portanto, fundamenta-se no homem, visto que ele é o

responsável pela linguagem e sua interação com o próximo possibilita construir uma rede de

significação. Assim, tomando como base os seguintes autores, Eni Orlandi, Rosalind Gill,

Beth Brait, Diana Luz Pessoa de Barros e Marcia Benetti Machado, pretende-se trabalhar a

análise de discurso enquanto método aplicado para o estudo do material selecionado.

Para auxiliar a aplicação da análise de discurso, algumas técnicas de pesquisa foram

adotadas. Por isso, percebeu-se a importância do uso da pesquisa bibliográfica como técnica

metodológica que abordasse questões teóricas relevantes à análise. Os capítulos dois, três e

quatro se propuseram a aprofundar esses temas, abordando conceitos e explanando opiniões

de autores distintos. Trabalhou-se a narrativa clássica e literária, sua aplicação no contexto

jornalístico e sua transposição ao ambiente audiovisual, além dos gêneros na televisão

brasileira.

Conforme Ida Regina Stumpf (2005), a pesquisa bibliográfica pode ser definida como

um conjunto de procedimentos que tem por objetivo identificar informações bibliográficas e

apresentar documentos pertinentes à redação de um trabalho acadêmico. A autora defende

ainda a pesquisa bibliográfica enquanto técnica que estabelece as bases sobre as quais os

alunos podem avançar.

Page 68: O desafio de dar voz às pessoas nas grandes reportagens audiovisuais: um olhar por Entre Fronteiras

  68  

Para ela, “durante a realização da pesquisa, [...], a consulta à bibliografia pertinente é

uma atividade que acompanha o investigador, o docente e o aluno e, ao mesmo tempo,

orienta os passos que devem seguir” (STUMPF, 2005, p. 52). Desta forma, toda a pesquisa

bibliográfica realizada neste trabalho irá fundamentar a análise desta pesquisa.

Outra técnica metodológica que se mostrou fundamental para o desenvolvimento da

análise foi a entrevista. Ela possibilitou o contato com o mediador do material selecionado

para a análise e garantiu a obtenção de respostas a cerca de questionamentos pré-elaborados.

Optou-se pela entrevista ao invés do questionário por se considerar de maior segurança

quanto à garantia de respostas e quanta à agilidade para se obter estas respostas.

Segundo Gil (1999), a entrevista é, acima de tudo, uma forma de interação social. Ela

é a técnica em que o repórter se apresenta ao entrevistado e formula perguntas com o objetivo

de obter dados que esclareçam a situação. A entrevista não precisa ser feita necessariamente

cara-a-cara para alcançar essa interação social, podendo também ocorrer por telefone.

A técnica busca, portanto, coletar dados a partir do que as pessoas sabem, creem,

sentem, desejam, fazem, explicam. Conforme Gil (1999), ela também apresenta vantagens

como a obtenção de dados referentes a diversos aspectos da vida social, com profundidade no

comportamento humano e suscetível de classificação e de quantificação.

Ao compará-la com a técnica do questionário, Gil (1999) apresenta outras vantagens,

como a possibilidade de se manter contato com o entrevistado mesmo que ele seja analfabeto

e conseguir um maior número de respostas, frente ao estímulo rápido do questionamento. O

autor lembra ainda a flexibilidade para o esclarecimento de qualquer dúvida e a presença da

expressão corporal, como a tonalidade da voz e a ênfase em determinada palavra.

É importante mencionar também que a pesquisadora precisa tomar cuidado com

alguns critérios para que a aplicação e a utilização da entrevista não percam de vista a

qualidade. Para Uwe Flick (2008), a qualidade não pode ser julgada somente pela aplicação

de critérios como a fidedignidade e a validade em seus sentidos mais tradicionais.

O autor acredita que um passo para aumentar a fidedignidade seja “a documentação

detalhada e cuidadosa da entrevista e do contexto daquilo que foi dito ou narrado” (FLICK,

2008, p. 132). Outro caminho seria a preocupação com a “transcrição cuidadosa de toda a

entrevista” (FLICK, 2008, p. 132).

Junto à entrevista, notou-se a necessidade do uso da técnica da observação. O objetivo

maior era de poder lançar um olhar detalhado sobre o conteúdo a ser analisado. A observação

foi fundamental para que se pudesse enxergar os elementos constituintes da narrativa

Page 69: O desafio de dar voz às pessoas nas grandes reportagens audiovisuais: um olhar por Entre Fronteiras

  69  

literário-jornalística e para que fosse possível realizar a transcrição, de maneira detalhada,

envolvendo os elementos presentes na grande reportagem audiovisual.

Para Gil (1999), “a observação nada mais é que o uso dos sentidos com vistas a

adquirir os conhecimentos necessários para o cotidiano” (GIL, 1999, p. 104). Assim, tendo-se

a observação como uma técnica de coleta de dados, pode-se dizer que ela permeia todo o

processo de pesquisa, desde as escolhas até a interpretação do conteúdo a ser analisado. A observação apresenta como principal vantagem, em relação a outras técnicas, a de que os fatos são percebidos diretamente, sem qualquer intermediação. Desse modo, a subjetividade, que permeia todo o processo de investigação social, tende a ser reduzida. (GIL, 1999, p. 110)

A observação a ser utilizada será a considerada simples, que segundo Gil (1999) é

aquela em que o pesquisador observa de maneira espontânea, permanecendo alheio à

comunidade. Isso porque não se inseriu na comunidade e não se teve contato com os

personagens. Observa-se, portanto, enquanto espectador de um conteúdo pronto.

Esta observação simples vai além da constatação de dados, aprofundando-se na busca

de um controle na obtenção desses dados. A técnica da observação possibilita, por ela

mesma, a obtenção de dados pertinentes à análise sem que essa informação precise ser

buscada ou retirada de algum outro meio. Assim, pode-se dizer que ela complementa e é

fundamental para o trabalho de análise e interpretação.

Desta forma, nota-se a necessidade da teorização não somente como base e estímulo

aos demais estudos a serem realizados, mas também como local fornecedor de conhecimento

e responsável pela sustentação científica do trabalho. É essencial, para qualquer pesquisa, a

fundamentação teórica enquanto estímulo à produção de conhecimento e ao aprofundamento

deste conhecimento.

5.2 PESQUISA DE CAMPO

O conhecimento do caráter teórico que cerca o método e as técnicas utilizadas para a

análise do conteúdo escolhido é fundamental para que se prossiga o trabalho, porém não

podem estar desligados de sua materialização. Desta forma, acredita-se interessante expor

aqui a pesquisa de campo realizada, apresentando o conteúdo escolhido para a análise, bem

como a entrevista realizada com o condutor do programa.

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  70  

5.2.1 Luís Nachbin

Por considerar mais fácil entrar em contato com as pessoas por meio do telefone do

que através de e-mail ou correio, visto que o questionário poderia cair no esquecimento,

optou-se pela entrevista por telefone. O objetivo primeiro era conversar com o responsável

pela condução do programa Entre Fronteiras e pela interação direta com os personagens

apresentados, o jornalista Luís Nachbin. Também houve tentativas de contato com o produtor

responsável pelo episódio escolhido para ser analisado, Karan Cabral, e a personagem

principal do episódio, dona Helena.

Conforme informações disponibilizadas no site da Matrioska Filmes 4 , Nachbin

formou-se em Economia pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e em

Jornalismo na Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio). Ele também é

mestre em Rádio e Televisão, pela San Francisco State University, da Califórnia, Estados

Unidos.

Nachbin nunca trabalhou com economia e quando ingressou no jornalismo iniciou os

trabalhos especificamente em rádio esportivo, sendo repórter da rádio Tamoio. Ele, porém,

não permaneceu por muito tempo no veículo, migrando para a televisão, motivado pelo

desejo de conhecer outros meios. Ele iniciou na TV Educativa e depois passou a trabalhar

para a Rede Globo.

Cansado da tevê pela requisição de fórmulas e incomodado pelo trabalho mecanizado,

decidiu deixar o país e fazer um mestrado no exterior. O curso despertou nele o gosto pela

experimentação audiovisual e então ele mesmo buscou fazer testes com a câmera na mão

enquanto viajava.

Durante os últimos 10 anos, a gravação de histórias e situações que o interessam

foram o trabalho de Nachbin. Com as experimentações, ele tornou-se produtor independente

e passou a percorrer o mundo para gravar uma série de reportagens à Rede Globo. Em 2001,

o jornalista cruzou uma barreira pessoal e profissional ao produzir e dirigir sozinho um

programa inteiro, no caso, o Globo Repórter.

O trabalho foi crescente e Nachbin conquistou confiança, o que o fez migrar para o

Canal Futura e trabalhar em cima de uma série chamada Passagem Para. O programa,

gravado fora do Brasil, inspirou realizações locais. Surgiu, então, o Entre Fronteiras, que

agrega vinte episódios. Neste segundo semestre de 2012, uma nova temporada do programa

                                                                                                               4 Disponível em: <http://www.matrioskafilmes.com.br/site/produtora/luis_nachbin/>. Acesso em: 5 out. 2012.

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  71  

está sendo gravada, agora na África. O jornalista atua também como professor do

departamento de Comunicação Social da PUC-Rio.

Para a execução do trabalho, realizou-se uma entrevista por telefone com Nachbin. O

contato com o jornalista aconteceu por meio da Matrioska Filmes, depois de várias tentativas

pelo telefone particular, via e-mail e Facebook. A entrevista, realizada por telefone, foi

gravada e transcrita. O arquivo em áudio está disponibilizado em anexo. Na sequência

encontra-se a entrevista transcrita.

Cláudia Alessi: Como é que o senhor procura utilizar o jornalismo e os seus conceitos

nos episódios do programa Entre Fronteiras?

Luís Nachbin: Eu, em geral, procuro conhecer o máximo possível da realidade de onde as

pessoas vivem, da realidade dos lugares para onde viajo. De vez em quando eu brinco com

meus amigos dizendo que na próxima encarnação eu quero ser antropólogo, porque não sou

formado em antropologia e tampouco faço um trabalho tão profundo quanto um realizado por

antropólogos. Mas a minha ideia é sempre de conhecer o outro o máximo possível e entender

ao máximo o cotidiano do outro. O que é o outro, quais são os recursos, como o outro faz

para enfrentar os problemas do dia-a-dia, as dificuldades, toda a cultura. Tudo o que envolve

a realidade do outro me interessa e eu tento observar o máximo e interferir o mínimo

possível. Por isso é que eu brinco dizendo que na próxima encarnação quero ser antropólogo.

Eu não tenho o tempo de trabalho que em geral um antropólogo demanda. Eu fico uma

semana, duas semanas, enfim, três semanas com o outro, em geral, não mais do que isso.

Cláudia Alessi: Qual é o tempo que a equipe dedica para desenvolver um episódio, por

exemplo, esse do Partejar? Desde a escolha da pauta até a exibição?

Luís Nachbin: O tempo do Partejar é um pouco atípico por conta da dificuldade de achar

um parto que fosse possível de ser documentado. Em geral a gente leva duas, três semanas

pré-produzindo, pesquisando, pré-produzindo em geral. Fico uma semana lá, gravando, em

contato com o outro, com o personagem, e depois cerca de um mês, cinco semanas pós-

produzindo: decupagem, roteiro e edição. Em torno disso. Com o Partejar foi um pouco mais

longo. A gente ficou em contato, a gente contratou um produtor local lá no Oiapoque que,

enfim, nos passava informações sobre possíveis partos, em lugares e com personagens que

pudessem nos interessar. Quando eu soube que estava para nascer a neta da dona Helena, a

Rubia, eu me encontrava em Buenos Aires. Eu estava bem distante e eu tinha acabado uma

reunião de trabalho em Buenos Aires. Saí correndo de Buenos Aires, peguei o voo para São

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  72  

Paulo, outro voo de São Paulo para Belém, outro para Macapá. Dormi em Macapá. No dia

seguinte andei de carro doze horas de Macapá até o Oiapoque e torcendo muito para o bebê

não ter nascido ainda. Eu conto isso no episódio inclusive e o bebê demorou um pouco a

nascer. O produtor local havia nos telefonado dizendo: olha, está para nascer e dona Helena

vai fazer mais um parto. Mas acabou que demorou mais quase duas semanas e eu fiquei nesse

convívio que foi muito bom com eles, com dona Helena inclusive, durante duas semanas.

Cláudia Alessi: Você acha que esse é o tempo ideal? Vocês conseguem encontrar tempo

então para fazer essas gravações, toda a produção?

Luís Nachbin: Conseguimos. A gente vai jogando com o tempo para lá e para cá o tempo

inteiro. De vez em quando o tempo aperta um pouquinho e eu tenho que fazer alguma

produção num tempo um pouco mais curto, mas vou sempre me adaptando e sempre

flexibilizando. O tempo de cada documentário é o tempo de cada documentário. No caso do

documentário sobre o trabalho de uma parteira no Amapá, sabíamos que teria uma

imprevisibilidade alta e eu gosto disso particularmente, de não ter um tempo fixo, rígido, pré-

concebido de necessidade de cada história.

Cláudia Alessi: Como é que acontece a escolha dos personagens, dos assuntos?

Luís Nachbin: Pelo fascínio que cada personagem gera no nosso grupo de trabalho aqui. Em

geral não temos nada pré-concebido, como por exemplo alguém ligado à área de esportes ou

de economia, ou de política ou que trabalhe com isso ou aquilo, ou da região tal ou do país

tal. Em geral pelo fascínio que, enfim, a partir de um certo momento a história nos desperta e

aí a gente começa a desenvolvê-la. A gente tem um horizonte de histórias amplo aqui na

produtora e as histórias vão se desenvolvendo ou não. Vão nos encantando cada vez mais ou

não. E aí a gente vai abrindo mão de uma, de algumas, nos aprofundando em outras, enfim, é

um processo de escolha o tempo inteiro. Assim, todo dia aqui na produtora, no dia-a-dia do

projeto, a gente faz escolhas, a gente abre mão de alguma coisa e opta por investir em outra.

Cláudia Alessi: O que fez vocês investirem nessa das parteiras?

Luís Nachbin: O índice de partos naturais no Amapá, que é o mais alto do Brasil. Na época,

pelo que me lembro, chegamos ao índice, pelo que pesquisamos, de 80 por cento. Ou seja, 80

por cento dos partos no Amapá são naturais ou normais. Enfim, o mais alto do Brasil esse

índice. Quando lemos sobre esse índice, esse índice nos encantou. Aí começamos a procurar

personagens que nos interessassem e aí dona Helena nos encantou. Falamos com ela por

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  73  

telefone algumas vezes e nós decidimos que se surgisse um parto que fosse viável de ser

documentado, um parto a ser feito pela dona Helena, nós o documentaríamos. Foi o que

aconteceu.

Cláudia Alessi: Quando o senhor trabalha em um episódio como esse do Partejar, o

senhor acredita que iniciar e terminar as gravações acontece da mesma forma ou muda

alguma coisa? Agrega algo depois que o senhor tem contato com estas pessoas?

Luís Nachbin: Muita coisa, agrega muita coisa. É difícil de quantificar, de verbalizar o que

me traz, o que me fortalece ou o que me acrescenta. Me acrescenta muita coisa. Eu termino

certos episódios assim, em estado de graça. Eu terminei o episódio Partejar em estado de

graça, porque gostei muito do convívio. Foi um convívio muito prazeroso com a família da

dona Helena e particularmente com a própria dona Helena. É difícil de dizer o que, é que às

vezes eu entendo bem o que eu aprendi num determinado convívio de uma semana, duas

semanas. No caso do episódio Partejar eu não sei se eu conseguiria quantificar ou verbalizar

o que eu aprendi, mas foi um cotidiano muito prazeroso, muito mesmo. Certamente aprendi

os benefícios do parto natural. Se eu já era adepto do parto natural, fiquei mais ainda. A

minha primeira filha acabou sendo cesariana porque teve um probleminha de última hora,

mas a gente foi pela via do parto natural até onde pudemos e assim será com meu segundo

filho, que está na barriga agora.

Cláudia Alessi: Na verdade, o senhor acredita que sempre muda alguma coisa? Eu faço

essa pergunta de uma forma mais ampla também, não só nesse episódio, mas em todas

as suas outras produções.

Luís Nachbin: Eu não tenho a menor dúvida de que muda alguma coisa. Eu acho que muda

bastante coisa até, dependendo do convívio, dependendo do episódio, porque a química varia

um pouco, ou varia bastante de um convívio para outro, quanto ao grau de interação, a

intensidade de interação com o outro. Às vezes eu saio de determinado lugar sem conseguir

parar de refletir sobre o que eu aprendi, o que eu convivi, o que foi passado para mim. Se

aprende muito durante as produções, nesse contato com os personagens.

Cláudia Alessi: O senhor acredita que o Entre Fronteiras valoriza o depoimento dos

personagens?

Luís Nachbin: Espero muito que sim.

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  74  

Cláudia Alessi: Digo isso porque é uma forma diferente do hard news, é uma forma de

jornalismo um pouco diferente.

Luís Nachbin: É, a gente foge bastante. Não é nem que a gente fuja, mas é uma outra

proposta, é uma proposta bem diferente do hard news em geral, e é uma proposta talvez um

pouco diferente também da maioria dos programas atemporais, documentários feitos para a

televisão. Na medida em que a gente procura valorizar ao máximo a experiência do outro, o

que o outro tem a passar para o telespectador. Nós todos aqui da equipe, eu enquanto interajo,

enquanto convivo com outros, temos sempre a preocupação de não ocupar muito espaço. Não

sei se a gente consegue ou não, mas é sempre uma preocupação recorrente nossa, de dar voz

ao outro, de deixar o outro se aprofundar, de sair de uma certa superficialidade. A televisão

não precisa ser superficial. A televisão pode trazer densidade. Agora, como trazer densidade

em vinte e poucos minutos é o eterno desafio, mas é o que a gente busca, trazer densidade

para não só levar informação, como levar reflexão até o telespectador.

Cláudia Alessi: Você fala em desafio de conseguir colocar isso tudo nesses vinte

minutos. É um desafio também fugir do hard news? A gente acaba estudando no curso

inteiro a estrutura das fontes e especialistas, e aí quando você coloca esse olhar

diferente, é um desafio para você?

Luís Nachbin: É um desafio constante, muito forte. E a gente não parte do princípio de que

queremos colocar tudo, como você colocou. Ao meu ver é um problema constante do hard

news querer passar muita informação em pouco tempo e aí a audiência absorve muito pouco,

tende a absorver muito pouco quando há um exagero, uma overdose de informação. A gente

quer se aprofundar. É o formato de um funil. Começamos de uma perspectiva mais ampla e

nos afunilamos para alguma reflexão, alguma perspectiva. Aí sim eu acho que se consegue,

pelo menos, se tem a chance de conseguir uma certa densidade da narrativa, que a narrativa

não fique supérflua, para que não fique rala, para que fique com um conteúdo, digamos, mais

recheado mesmo.

Cláudia Alessi: O senhor acredita que essa pode ser uma alternativa para o mercado do

jornalismo?

Luís Nachbin: Muito, acredito muito. Não tenho a menor dúvida de que sim. Não sei porque

a nossa televisão ou boa parte da nossa televisão é relativamente superficial. Não é necessário

que se tenha uma programação... a programação pode ter conteúdo e ao mesmo tempo ser

entretenimento, ser atrativa para um público.

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  75  

Cláudia Alessi: Os textos que a gente ouve nessas grandes reportagens audiovisuais é o

senhor mesmo quem produz?

Luís Nachbin: Os textos são produzidos por mim e por um roteirista, quase sempre. Há

algumas exceções, algumas situações em que eu produzo o texto todo, mas são exceções,

como eu comentei. Em geral, é um texto escrito a quatro mãos. Eu escrevo os textos mais

pessoais, não há como outra pessoa escrever, e passo para o roteirista informações, algumas

reflexões, e o roteirista escreve os trechos mais informativos, digamos assim, e menos

pessoais.

Cláudia Alessi: Nesse episódio do Partejar, você produziu os textos durante as

gravações? Porque ele aproxima tanto o telespectador que parece estar dentro do

processo de gravação, parece que o texto acompanha tanto que ele fez parte, ali, do

mesmo momento.

Luís Nachbin: Vários textos fizeram. O meu caderninho está sempre dentro do bolso, está

sempre comigo. O caderninho e a caneta. Eu escrevo vários textos e vários inclusive não

entram nos programas. Alguns entram, outros não. E durante o processo de produção do

Partejar, especialmente na produção desse episódio, eu tive muito tempo para refletir sobre

os textos, então me lembro bem que nesse episódio eu voltei aqui para o Rio de Janeiro, para

a base, com páginas e páginas de textos escritos. Então você tem razão quando talvez tenha

tido a impressão de que os textos foram concomitantes ao processo de gravação, porque de

fato foram.

Na sequência da entrevista realizada com Nachbin e ao longo de muitos dias, tentou-

se, também, entrar em contato com o produtor do episódio Partejar e a personagem principal.

Os telefones obtidos para os contatos de ambos, em todas as tentativas, se encontravam

desligados ou fora da área de cobertura. Buscou-se também entrar em contato com o produtor

por meio da rede social Facebook, mas não se obteve retorno.

O único contato de sucesso foi por meio de um dos telefones disponibilizados pela

Matrioska Filmes como sendo da nora de dona Helena. O telefone, porém, pertencia a uma

rádio local. Foram feitas cerca de cinco ligações e a pessoa que poderia ajudar nunca se

encontrava.

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  76  

5.2.2 Partejar

O episódio escolhido para análise, Partejar, assim como o programa Entre

Fronteiras, não está disponível em ambiente online. O material foi obtido por meio do Canal

Futura, que disponibilizou em DVD a grande reportagem audiovisual. A cópia do episódio

encontra-se anexada ao trabalho.

Com a técnica da observação, foi possível assistir o material de forma detalhada e

notar a estrutura da narrativa associada à literatura, imagem e som. O episódio Partejar, que

tem duração de 25 minutos e 14 segundos, foi transcrito e é disponibilizado também em

forma de texto impresso. Na sequência, o conteúdo é apresentado.

A vinheta utilizada em todos os programas do Entre Fronteiras abre também o oitavo

episódio. Os tons de amarelo areia e ocre se misturam em forma de desenho e com a chegada

da trilha, a vinheta vai ganhando forma. Um homem sentado, à beira da estrada, destaca-se

frente às águas de uma lagoa ao fundo. A cena muda e o que se vê é uma família andando em

um pequeno barco. Ao fundo uma montanha verde e o céu azul. A cena muda de novo, como

se a câmera fosse se deslocando para a direita. Agora é um ônibus que trafega por uma

estrada de terra batida. Logo a frente está uma carroça guiada por um cavalo. Em movimento

continuado, a câmera se afasta e um trem aparece. Em primeiro plano, um homem com uma

câmera na mão registra a cena. O movimento continua, casas e pessoas pela rua vão surgindo.

Por entre algumas plantas e ainda sob tons de amarelo, um escrito anuncia o nome do

programa, conforme mostra a Figura 1.

Figura 1 – Vinheta de abertura

Fonte: ilustração retirada do episódio Partejar

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  77  

A grande reportagem inicia com a imagem de uma câmera cinematográfica refletida

em um vidro da janela de um carro. Uma trilha musical inicia com a frase “hold the baby”,

que em português significa “segure o bebê”, seguida de legendas em inglês e de uma

sequência de cinco diferentes ângulos de imagens que mostram a estrada e os veículos

circulando, gravadas pelo cinegrafista enquanto ele mesmo estava em movimento.

Na quinta sequência de imagens, Luís Nachbin localiza o telespectador ainda

alternando imagens feitas da estrada, dizendo que está no norte do país. Ele volta ao passado

recordando a história que sua mãe lhe contava sobre o próprio parto em que ele, Nachbin,

nasceu. A enfermeira, seguindo com a mãe de Nachbin ao quarto do hospital, sentenciava a

mesma frase que a trilha de abertura dizia: “Hold the baby”, “segure o bebê”, traduz Nachbin,

relembrando o verão de 1964, no norte de Nova Iorque, Estados Unidos. Enquanto isso,

fotografias de Nachbin quando bebê e sua mãe ilustram a cena. Com a câmera enquadrando

seu rosto, é a primeira vez que a voz narrativa da história mostra sua face. Nachbin repete a

frase: “hold de baby, hold the baby”, e com um sorriso, volta à estrada, dizendo que nesse

verão, no norte do Brasil, é a sua vez de dizer: “hold the babies, hold the babies”.

O nome do episódio só então aparece, Partejar. A ilustração é ainda das estradas,

onde o asfalto passou a ser substituído pela terra batida, as pontes sobre rios, as passagens

quase intransitáveis de ruas tomadas pela lama. O Oiapoque é a cidade destino, que fica na

divisa do Amapá com a Guiana Francesa. Um mapa ilustrativo, ícone de todos os episódios

do Entre Fronteiras, surge para localizar o Oiapoque e para mostrar a distância da cidade até

a capital Macapá, resumida em cerca de 12 horas de viagem.

Nachbin anuncia a personagem do episódio, dona Helena, tradicional parteira da

cidade. Ele diz nunca ter ouvido a voz dela ou visto-a em fotos. O jornalista diz ter recebido a

notícia de que uma das gestantes que ela acompanha está prestes a entrar em trabalho de

parto e, por isso, foi ‘correndo’ ao local. As imagens da estrada continuam sendo a ilustração

da narrativa.

Chega à noite. Uma placa mostra a divisa da Guiana Francesa com o Brasil. Nachbin,

a pé e com a câmera na mão, é acompanhado por um senhor até a casa de dona Helena. Já

escuro e com pouca visibilidade do caminho, nota-se que o local é afastado de grandes

centros e que há muita mata em torno. Em uma casa simples, de madeira, com a porta da

frente aberta, Nachbin encontra dona Helena, lhe dá um abraço e confessa estar ansioso para

saber se o bebê já nasceu. A parteira garante a permanência do jornalista na família,

afirmando que o bebê ainda não nasceu. Diz ela que a criança estava esperando Nachbin

chegar e ele confessa estar contente com a notícia.

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  78  

Dona Helena convida Nachbin para entrar na casa de Mara, sua nora, que está

esperando o bebê, e conhecer a gestante. Mara aparece, eles se cumprimentam e a barriga

ganha foco. Na sequência, uma trilha calma surge e as imagens passam a ser externas, da

casa, da mata que cerca o povoado, da lua surgindo ao fundo das águas do rio. A transição

para o dia segue com a mesma trilha e chega pelas mãos da parteira Helena segurando a saia.

Uma imagem de plano mais aberto mostra a senhora sentada na varanda de casa. Nachbin

pergunta quantos partos ela já fez. Confusa, ela se atrapalha um pouco na contagem, gira em

torno dos cinquenta e dois, diz ela, até lembrar que falta colocar o número cem na frente.

“Cento e cinquenta e dois”, contabiliza finalmente, seguido de um ar impressionado do

jornalista, que já estava achando cinquenta partos um número excessivo.

Helena Cardoso, parteira, é como ela é identificada no GC. Dona Helena conta que

trabalhou em um hospital e também em uma comunidade onde só ela era “médica”, por isso

fez tantos partos. Diz ela que tinha que fazer um pouco de tudo, foi até dentista, porque lá

não tinha médico. Enquanto ela fala, imagens mostram a parteira apreciando a paisagem da

janela de casa, como ilustra a Figura 2. Ela observa as pessoas caminhando sob plataformas

de madeira que ligam um local a outro por entre a mata e pequenos banhados.

Figura 2 – Dona Helena

Fonte: ilustração retirada do episódio Partejar

As imagens vão se afastando da casa de dona Helena e passam a mostrar a localidade,

os pequenos barcos navegando, as casas de madeira, o brilho do sol se pondo, as mãos de

pais e crianças remando, puxando as linhas de pesca. Enquanto isso, Nachbin informa que o

Brasil é conhecido por ser um país com alto índice de cesariana, diferentemente do Amapá,

que apresenta a exceção de ter 80% dos partos de forma natural. O Brasil está em segundo

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lugar, a nível mundial, de partos cirúrgicos, índice que alcança os 43%, perdendo somente

para o Chile.

A narrativa resgata dona Helena, dizendo que é através de suas mãos que a tradição

das parteiras é preservada. Com uma imagem fechada das águas do rio, dona Helena começa

a contar que no início sentia vergonha. As imagens voltam para ela, sentada na varanda de

casa. A vergonha vinha porque quando diziam ser parteiras, as pessoas pensavam na palavra

‘macumbeira’, e ela dá risada.

Enquanto ela conta como começou o ofício, vozes de criança chorando, ao fundo,

dispersam um pouco a atenção. Ela diz que no início a chamavam para fazer os partos, mas

ela dizia não ser parteira. Com pena de deixar a mulher sozinha, ela ia acudir. Imagens das

primeiras gotas de chuva caindo do telhado se misturam ao choro das crianças e a dona

Helena dizendo que aceitava os convites. Depois, ela diz que fez um curso e aí sim estava

tudo bem.

A noite vem chegando. De longe, a casa de madeira se mistura ao mato, e a luz

incandescente ilumina a sacada, que Mara divide com o marido, dona Helena e algumas

crianças. Diferentes ângulos mostram essa mesma cena, enquanto Nachbin diz que o serviço

dessas parteiras vai até onde permite a natureza de cada mulher. A trilha aparece novamente,

dessa vez um pouco triste, parecendo guiar a história para um final não tão feliz. O jornalista

diz que a cesariana é muitas vezes indicada quando há caso de risco para a mãe ou para as

crianças. O som da trilha se mistura com o barulho da água da chuva, e as imagens que

expõem o pequeno povoado vão ilustrando o entardecer e a chegada da noite, como mostra a

Figura 3.

Figura 3 – A chegada da noite

Fonte: ilustração retirada do episódio Partejar

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A narrativa recupera dona Helena, dizendo que ela aguarda a hora do parto sem data

marcada, somente seguindo os sinais e a intuição. O jornalista conversa com a senhora, pede

para ela ligar e avisar caso Mara entre em trabalho de parto, mesmo que seja durante a

madrugada. Dona Helena garante que vai ligar. Nachbin retoma um assunto provavelmente

falado em um momento que ele não estava gravando. Ele faz a pergunta para confirmar se

dona Helena acha mesmo que o bebê é uma menina, e ela afirma mostrando convicção e

certeza de que o bebê é do sexo feminino. Ele pergunta por que e dona Helena explica que os

sintomas da gestante são diferentes, diz que é mais calmo e que a dor começa na frente.

Imagens de Mara na janela de um quarto cobrem a fala de dona Helena, como mostra a

Figura 4.

Figura 4 – A gestante Mara

Fonte: ilustração retirada do episódio Partejar

A voz vai para Mara, que diz estar bem. As imagens mostram o Rubens, marido de

Mara. De outro ângulo e não mais com as mesmas roupas, Mara começa a falar de seu

marido. Diz que quando começou a namorar, ele chamava a mãe biológica de Margarida

porque considerava sua mãe a dona Helena, que foi quem o criou. Rubens aparece na sacada

de casa. O rosto transmite uma expressão de preocupação, de cansaço. Rubens, por

insistência de Mara, passou a chamar a filha de dona Helena, sua mãe biológica, de mãe. Ele

confessa que agora chama as duas de mãe.

Dona Helena conta que quando sua filha teve o Rubens, ela, dona Helena, recém tinha

perdido uma filha e chorava muito por causa da perda. Margarida não morava com a mãe,

mas visitava-a sempre e levava o menino consigo. Quando Rubens estava com três meses, a

mãe biológica engravidou de novo, e como ela não podia mais amamentar o bebê, ela o deu

para dona Helena criar. Dona Helena diz que pegou o menino “com as duas mãos”.

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Dona Helena chora ao terminar de contar a história, pois diz que está preocupada com

a filha. Ela diz que Margarida trabalha com garimpo, o que considera muito perigoso, e diz

também não ter notícias suas há muito tempo. Uma trilha mais alegre toma conta, a câmera

mostra os pés de dona Helena descalços, se esfregando um ao outro, depois uma menina

varrendo a casa e Nachbin falando que são mais de 40 descendentes, muitos trazidos ao

mundo pelas mãos da matriarca. Enquanto isso, ele mostra as crianças da casa. Narra, em off,

que ser parteira não trouxe benefícios financeiros para dona Helena, e que ela faz os partos

por acreditar ser um dom.

Um novo dia. Nachbin chega à casa de dona Helena, a cumprimenta e pergunta se vai

ser hoje. Ela diz que não sabe, que esperou o dia inteiro ontem e acabou não chegando. A

trilha animada se mistura com a voz de crianças falando e com belas imagens da casa de dona

Helena a da redondeza. Dona Helena conta que certa vez uma mulher lhe pediu se ela não

tinha medo de fazer partos, ela respondeu que não, que só quer ver o bebê chegar. Nachbin

pergunta o que a grávida deve fazer nas horas que antecedem o parto. Dona Helena diz que a

gestante fica carente, então precisa de carinho, de apoio. Imagens de Mara acariciando a

barriga ilustram a fala. Dona Helena conta que os dez filhos que teve vieram ao mundo de

parto normal, em casa.

A chuva vem de novo, e enquanto dona Helena conta que seus partos foram feitos

pela sogra, as imagens da natureza com o som da água da chuva e a trilha completam o

cenário, como mostra a Figura 5.

Figura 5 – O lúdico da chuva

Fonte: ilustração retirada do episódio Partejar

A parteira diz que conheceu uma senhora que pariu vinte e dois filhos e diz que era

normal, que todos os anos a mulher tinha um filho. Ela diz que hoje não pode, que está mais

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difícil, que o casal começa um relacionamento e não fica junto por muito tempo. São no

máximo cinco anos e depois separam. E ela deixa a pergunta no ar, “e aí as crianças?”

O cenário muda. Do centro da cidade um carrinho de bebê com a mãe e o filho

passeando se torna o foco. Nachbin confessa que o que mais vê pela cidade e o que mais lhe

dói no coração é o número de crianças amparadas apenas pela mãe ou pela avó. Ele apresenta

uma nova personagem, Gisele, 18 anos, neta de dona Helena. Ela tem uma filha de nove

meses e nenhuma notícia do pai da criança. Ela deu à luz à filha pelas mãos de dona Helena e

está aprendendo com a avó o ofício de parteira. Gisele diz conhecer um livro que diz “meu

pai, meu herói”, no caso dela, “minha avó, minha heroína”.

Volta à dona Helena. Sua fala puxa novamente a narrativa. Ela confessou à Mara que

está com medo de fazer o parto, porque há oito anos Mara não tem um filho e dona Helena

teme que ela tenha esquecido como se faz parir um bebê. Ela acha que Mara vai sentir

dificuldade na hora de fazer força. A ilustração é de Mara, escorada em uma parede da casa,

esperando o filho de oito anos chegar. A trilha segue junto à imagem do menino se

aproximando, como ilustra a Figura 6.

Figura 6 – À espera do filho

Fonte: ilustração retirada do episódio Partejar

Uma vinheta, muito semelhante a de abertura do programa, porém mais curta, chama

o intervalo. A trilha que acompanhava dona Helena e Mara persiste sob a vinheta, que em

desenhos, misturando os tons de amarelo, azul e branco, mostra um ônibus no meio de uma

estrada e uma encruzilhada a frente, com opções de destino. O plano perde zoom e fica mais

aberto, surgindo no desenho também um viajante que anda a cavalo. Sob o céu de tons

azulados uma faixa dupla de cor amarela aparece estampando o nome do programa, Entre

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Fronteiras. Logo a frente do ônibus, no meio da rua, a frase estamos apresentando, escrito

em vermelho desbotado sob o amarelo.

Com a trilha do programa, uma nova vinheta surge. Ela começa a existir no canto

esquerdo da tela, com um senhor de pé e um cachorro ao seu lado. A imagem vai se

afastando e trilhos separam o senhor de um trem. Ao fundo, uma cidade. O último

personagem da vinheta é o próprio Nachbin, em forma de desenho, no primeiro plano da

imagem. Agachado, ele está com uma câmera na mão, registrando o momento. A faixa

amarela sob o céu azul é a mesma e estampa o nome do programa. Na frente da câmera de

Nachbin, na estrada, há a frase voltamos a apresentar, em tons de azul. As cores do cenário

são as mesmas da vinheta que chamou o intervalo.

Uma imagem de plano aberto mostra o pequeno centro do Oiapoque. Uma música

eletrônica vira trilha e logo entende-se o motivo. As imagens passam a variar de um alto

falante pendurado em um poste na cidade e da própria cidade para imagens de pessoas

carregando alimentos em carros de carga, circulando de um lado para o outro. Com uma

imagem de fios de telefone e eletricidade à frente, sob o céu azul, o locutor anuncia “104,9”,

e o plano externo passa a se tornar interno. A câmera fecha em um monitor que mostra as

sintonias e o que está no ar na rádio.

Um plano aberto, de fora da estação de rádio, mostra a antena. É aí que o nome do

programa aparece pela segunda vez, Partejar. Outra cena vai para o rio, que reflete em suas

águas os raios do sol, embelezando mais ainda a paisagem e os navios. Nachbin posiciona as

câmeras no estúdio de rádio. Ele aparece em um enquadramento que mostra ao fundo o

locutor. Um cartaz pendurado na parede mostra o nome da rádio, Fronteira FM. Nachbin

parece empolgado. Ele ajeita outra câmera que instalou em sua frente para conseguir ângulos

diferentes. O locutor anuncia Nachbin e a imagem muda para um plano fechado em que só

ele, Nachbin, aparece. Dj Berê, como é assinado o nome do locutor, diz que Nachbin está

fazendo uma série pelas fronteiras e que naquele dia estava no Amapá para falar sobre as

parteiras, e indaga para confirmar, “é isso Nachbin?”

Nachbin cumprimenta o locutor e os ouvintes do Oiapoque e redondezas e já emenda

na fala a estatística de que o Amapá é o estado do norte e nordeste do país que mais têm

partos naturais. Ele introduz sua personagem, dona Helena, e descreve que ela é uma parteira

tradicional e que muito em breve vai fazer o parto da nora. No momento em que o jornalista

começa a falar de dona Helena, imagens mostrando detalhes da parteira, como mãos e olhos,

aparecem, como ilustra a Figura 7. A trilha característica do programa também está presente.

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Figura 7 – O olhar da parteira

Fonte: ilustração retirada do episódio Partejar

Ainda com imagens de dona Helena, mostrando ela em um pequeno barco

atravessando o rio de uma margem a outra, Nachbin conversa com a parteira. Ele pergunta a

ela que explique onde estão. Apontando com as mãos, ela diz que um lado é o Brasil, e o

outro Guiana Francesa. Mostrando a paisagem que os cerca, ele pergunta por que quase todas

as parteiras são mulheres. Com um sorriso, ela diz que é porque praticamente todas as

mulheres têm vergonha dos homens, até mesmo dos médicos. Ela acredita que as mulheres

vão parir no hospital porque são obrigadas, mas que a maior parte tem vergonha dos médicos.

Nachbin pergunta se ela conheceu algum parteiro e ela começa a explicar que tem um

homem que mora perto de sua casa e trabalha com um barco que é parteiro, porque ele é

quem fez os partos de sua própria esposa.

A chuva vem de novo, embelezando a paisagem, e as imagens fechadas de pingos

caindo por entre as folhas se fazem presentes. Essas imagens vão saindo do rio para a cidade,

se aproximando das casas, das pessoas. Por um riacho, vê-se um homem trabalhando em um

barco, parece estar limpando-o. Nachbin foi até o parteiro de que dona Helena falava. O

jornalista começa a conversa, pedindo se ele está aproveitando a chuva para limpar o barco.

O homem concorda, explica que quando fica sujeira grudada no barco precisa lavar para

depois pintar. O homem é creditado como Dorival Ribeiro, construtor de barcos. Ele para o

serviço para conversar com o repórter e explica que constrói e reforma barcos. A trilha já

aparece ao fundo e imagens de Dorival trabalhando nos barcos cobrem sua fala.

O construtor de barcos diz que tudo que é de madeira ele faz. Nachbin completa: “e

nas horas vagas ainda faz partos”. Olhando para a câmera, Dorival ri e diz que quando surge

a oportunidade ele faz. A trilha e o som ambiente tomam conta. Dorival aparece caminhando

mais a frente, Nachbin o acompanha. Eles seguem para a casa do homem construtor de

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barcos e parteiro. O jornalista pergunta quantos partos ele já fez. A resposta é rápida e direta:

seis, quatro de seus filhos e dois de vizinhos.

Ele conta que quando era menino, era o cozinheiro de sua mãe e ajudava ela no

trabalho de casa. Então, ele via sua madrinha, que era parteira da mãe, fazer os trabalhos. Ele

escutava as conversas, às vezes ficava observando, e foi aprendendo. Ele diz que um dia

chegou a oportunidade, que seu auxílio foi necessário, e ele foi fazer e fez tudo correto.

As imagens, que intercalaram entre Dorival seguindo para sua casa e ele conversando

com Nachbin, agora mostram as crianças circulando pela casa do construtor de barcos. Para

chegar à casa, uma tábua que dá passagem para somente uma pessoa liga o caminho. Em

frente à casa, uma sacada com tábuas emendadas e frestas mostram a simplicidade da família.

O varal é ali mesmo, e está cheio de roupas. Ainda com esta cena, Nachbin pergunta como

foi ter o parto feito pelo próprio marido, se foi mais confortável.

Um rosto feminino aparece e responde que no começo foi um pouco estranho, mas

que depois acostumou e já não queria outra pessoa a não ser ele. O jornalista pergunta porque

ela estranhou no início. A esposa do construtor de barcos, Marina Neres, diz que foi estranho

ter seu primeiro filho com um homem auxiliando no trabalho de parto. Ela conta que a mãe

sempre dizia que parteira era mulher, mas acredita que a experiência de ter o filho perto da

presença do esposo é algo inesquecível. Antes mesmo que Marina conclua a fala, uma

imagem mostra os quatro filhos e o esposo na beira da porta que dá entrada à casa.

A trilha toma conta e a cena muda de uma família para um gato. A câmera está no

chão, em um lugar escuro da casa. O gato parece estar na sacada. Além das madeiras e do

pequeno animal, panos vermelhos estendidos num varal ao fundo completam o cenário, como

mostra a Figura 8.

Figura 8 – A intensidade das cores

Fonte: ilustração retirada do episódio Partejar

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As crianças voltam ao enquadramento, desta vez brincando. A câmera afasta quando

um adulto se aproxima delas, e é dona Helena quem entra em cena novamente. Ela beija as

crianças e entra na casa, enquanto Nachbin diz que já está há tanto tempo ali na comunidade

e que provavelmente vai continuar por mais alguns dias. A cena muda para o rosto de dona

Helena. Nachbin diz que gostaria que ela o adotasse como filho e neto. Ela ri e diz que o

adota sim, que pode adotá-lo. Ele complementa: “mais um, menos um, não vai fazer muita

diferença”. Ela concorda e o chama de “meu filho”.

As mãos de dona Helena entram em plano. Ela diz que ele vai ser seu segundo filho,

porque a mais velha tem 46 anos. Nachbin diz que ele vai completar 46 na sexta-feira

próxima, dia 30 de julho. Dona Helena diz que sua filha já fez aniversário, em 30 de junho. O

jornalista retoma o motivo de sua ida ao Oiapoque e pergunta a dona Helena se ela acha que

o bebê pode nascer no dia do aniversário dele. Mara aparece, ela estava sentada junto a eles

na mesa. A câmera mostra a barriga dela e ela sorri, questionando: “já pensou?”.

O cenário da cidade calma toma conta junto à trilha. Uma palmeira, um pequeno

barco na beira do rio, uma mata baixa com algumas casas ao fundo, algumas bandeiras nos

topos dos barcos, o sol se pondo por entre nuvens, os barcos surgindo com lampiões para

afastar a escuridão. A Figura 9 ilustra a presença marcante dos detalhes.

Figura 9 – O detalhe do olhar

Fonte: ilustração retirada do episódio Partejar

Nachbin narra que passou a ter certeza que o bebê nasceria no dia de seu aniversário,

dia 30 de julho. Ele diz que passou a torcer para que isso acontecesse. Na narração, o

jornalista diz que chegou o dia 28 de julho, data do casamento de seus pais. Um efeito de

preto sai das imagens escuras da noite para o dia claro, que dona Helena observa da sacada de

casa.

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Mara aparece, caminhando um pouco sem jeito. Nachbin pergunta como ela se sente.

Ela define em uma palavra: horrível. O jornalista pergunta se a dor já está tão forte e Mara,

caminhando pela casa, concorda e diz novamente que está horrível. Dona Helena segura um

relógio. Ela marca o tempo das contrações. Nachbin pergunta quanto foi agora e ela diz:

“dois minutos”.

Nachbin segue Mara com a câmera e a encontra em frente a um espelho arrumando a

sobrancelha. Ela sai rindo e Nachbin dizendo: “se maquiando minutos antes de dar à luz”.

Enquanto isso, dona Helena troca o relógio por um copo. Ela prepara uma mistura feita com

vinho e que diz servir para intensificar a dor. Nachbin quer saber mais sobre a mistura

preparada. Dona Helena diz que o líquido aumenta a dor, o que ajuda a mulher a fazer força.

Mara já está deitada na cama. Nachbin aparece na cena, segurando a câmera, como

mostra a Figura 10. Ao fundo, dona Helena e Mara. A gestante volta a ser o foco principal.

Ela segura suas mãos firmes na cabeceira da cama e começa a fazer força. Nachbin

acompanha Mara, às vezes sai do quarto, filma o que há do outro lado da janela. Quando ele

volta, Mara está se levantando com a ajuda de dona Helena e mais uma mulher. Ela caminha

um pouco, parece nervosa.

Figura 10 – A presença do repórter

Fonte: ilustração retirada do episódio Partejar

Do corredor vazio do lado de fora da casa, por entre as sombras da janela, Mara e

dona Helena acariciam a barriga da gestante. Dona Helena diz que falta coragem, tanto da

parteira quanto da grávida. Mara diz que não aguenta, enquanto dona Helena balança a

cabeça de forma positiva, dizendo que aguenta sim.

Voltam ao quarto. A escuridão se mistura às cores forte, ao vermelho das cortinas e

ao azul do lençol. Dona Helena, com luvas brancas de borracha, explica que partejar é a

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mesma coisa que fazer o parto, só muda a pronúncia da palavra. Diz que o termo surgiu

porque muitas pessoas são analfabetas e foram aprendendo assim.

Dona Helena preparou um banquinho para Mara sentar. Posicionada e ainda tensa, ela

ouve dona Helena falando que vai fazer o parto antes da noite. A parteira continua

acariciando a barriga, chamando o bebê. Da escuridão do quarto, Nachbin filma o céu azul,

única identificação da imagem, que no enquadramento deixou as paredes tão escuras quanto a

sombra.

Uma trilha surge e a cena vai para um enquadramento fechado de redes de pesca. Vê-

se uma mão mexendo nas redes e depois, a sombra de um rosto. Mara volta a ser o foco. Ela

caminha pela casa e feliz anuncia a chegada de mais uma mulher que veio acompanhar e

ajudar no parto. Ela a chama de super Núbia, e garante que com a ajuda dela o bebê “vai

sair”.

Um pequeno barco com pescadores passa pelo rio. A imagem vai se afastando do rio

e no primeiro plano surge novamente a sombra daquele homem que trabalha manualmente

com as redes de pesca. A cena volta para Mara, que parece estar cansada e preocupada. Do

lado de fora, a chuva começa novamente. Chuva fraca, que vem de uma única nuvem visível

no céu. Mara volta a se deitar. Ela diz em voz alta que vai avisar seu psicológico de que

Nachbin é o médico. Ele concorda e Mara diz que vai fingir que não existe filmadora ali.

A casa onde Mara está aparece novamente pelo seu exterior. Agora, o sol da tarde já

brilha na madeira da parte frontal. Mara continua no quarto, junto à amiga Núbia. Outra

mulher que está na casa vai até a cozinha e prepara um café com manteiga, diz que é remédio

caseiro. A cena vai para uma caixa, como se fosse de remédio. Na frente, uma placa traz a

seguinte palavra: parto. Nachbin volta ao quarto. Dona Helena continua passando instruções

à Mara, diz que ela precisa fazer força sem respirar, que se a respiração voltar, a criança volta

também. Mara levanta novamente.

Nachbin, com enquadramentos mais abertos e um pouco mais distante da cena,

mostra as mulheres sentadas em volta da mesa, conversando com Mara. Ele narra que está

preocupado com sua interferência. Diz que na cabeça da Mara, e também de dona Helena, era

inconcebível que o bebê não nascesse diante da câmera de quem havia chegado de tão longe.

Ele diz que as duas pensavam que isso poderia significar que seu trabalho tivesse sido em

vão. Elas voltam ao quarto e Nachbin segue a narração, dizendo que ele só estava torcendo

pela saúde da Mara e do bebê: “Nada mais agitava minha mente nesse princípio de noite no

Oiapoque”.

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Mara continua fazendo força e dona Helena, conforme mostra a Figura 11, veste

guarda-pó e toca verdes, como se fosse médica formada. Ela não cansa de esperar pela

criança. Ao fundo, o marido de Mara, segurando a cabeça baixa por entre as mãos, ouve os

gritos da esposa. Nachbin continua filmando o parto. Nesse momento, nenhuma trilha,

nenhuma interferência de ninguém, somente a edição das imagens do parto e o som ambiente.

Figura 11 – A parteira

Fonte: ilustração retirada do episódio Partejar

A certa hora, dona Helena desiste. Ela diz que se Mara puxar o ar de volta, a criança

volta também. Começa a falar para Mara que assim ela não vai conseguir parir o filho. As

imagens voltam ao plano aberto, de fora da casa. As luzes ligadas e a ausência do sol

anunciam a noite. A parteira e a gestante tentam de novo. A cena volta ao quarto e agora a

trilha já se mistura ao ambiente. A trilha comove e traz consigo um ar de suspense, como se

alertasse que o bebê não nasceria naquele momento.

Nachbin volta a narrar. Uma luz é a única coisa que se pode ver em meio à escuridão,

sendo difícil identificar o que é. O jornalista diz que de três da tarde as dez da noite, o

desenrolar da história do parto da Mara o lembrou muito o nascimento de sua própria filha, a

luta incessante durante horas para não abrir mão do parto natural. Eles então aparecem dentro

de um carro. A narração continua. Nachbin diz que no caso de sua esposa, a cesariana foi a

única opção. À caminho do hospital, junto com Mara e dona Helena, o jornalista diz mal

conseguir concentrar-se nas imagens e pensar somente no desfecho do parto da Mara.

Eles chegam ao hospital. Mara é conduzida por uma cadeira de rodas. A Figura 12

mostra Dona Helena e o esposo de Mara esperando do lado de fora, assim como Nachbin.

Uma folha com impressão computadorizada anuncia a entrada proibida para aqueles que não

têm autorização.

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Figura 12 – A angústia da espera

Fonte: ilustração retirada do episódio Partejar

Dona Helena conversa com Nachbin, diz que agora é só esperar, e lamenta o fato de

ele ter saído de tão longe para filmar o parto e na hora não ter dado certo, e de ele ter ido até

o hospital e eles não terem deixado ele entrar. Nachbin diz que não tem problema, e espera

somente que corra tudo bem. Ele consola dona Helena, dizendo que ela fez o possível. A

parteira concorda e diz que o único problema é que a nora não estava acertando o momento

de fazer força.

Uma enfermeira aparece à porta. Nachbin pergunta se é menina e a enfermeira

Ioneide Silva afirma que sim. Nachbin pergunta se foi por parto natural e a enfermeira faz

somente um gesto, rindo muito. Ele não entende, alguém pergunta de novo para confirmar e a

enfermeira agora sim diz que o parto foi natural. Dona Helena está sentada num banco.

Nachbin vai até ela e a abraça, parabenizando-a.

Um efeito dissolve a imagem para a tela preta. Ainda sem nada aparecendo no vídeo,

a trilha surge junto ao choro de bebê. Mara aparece segurando a criança, já em casa. Outro

efeito dissolve a imagem para o preto novamente. Quando volta, Nachbin está em foco,

dentro de um pequeno barco, andando pelo rio. Ele narra que depois de 13 dias no Oiapoque,

ele se sente realizado e calmo. Diz que navega sem nenhuma ansiedade no peito, e acredita

que é por saber que a Rubia vai ter colo da mãe, colo da avó, e principalmente colo do pai,

assim como tiveram os outros dois irmãos.

E finaliza: “Ah! Como seria magnífico se os homens que não assumem os seus filhos

pudessem pensar, refletir e se reerguer como homens.” Com um efeito que dissolve a cena

em preto, a imagem de Nachbin dá espaço à Mara, amamentando Rubia, como mostra a

Figura 13. A cena desaparece lentamente.

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Figura 13 – A chegada de Rubia

Fonte: ilustração retirada do episódio Partejar

A trilha continua e o fundo amarelo areia trazendo uma mão em forma de desenho

segurando um livro que traz na capa o título Entre Fronteiras aparece. As folhas do livro vão

passando, e assim os nomes e as funções de todos os que fizeram parte do documentário

aparecem. No final, um narrador anuncia que o documentário é uma parceria Matrioska

Filmes e CNN.

Os agradecimentos vão para Raimundo Nonnato Ribeiro. A direção e câmera são de

Luís Nachbin e o roteiro de Ana Chaves de Melo. A edição é de Marco André Sanetos e a

produção executiva de Michel Stoinicki e Eduardo Tenório. Luís Gustavo Ferraz é assistente

de direção e Emily Sasson a coordenação de pesquisa, tendo como assistente Elisa Soares. A

coordenação de produção é de Karan Cabral, que contou com a assistência de Bernard Nagel.

O videografismo é da Plano Z e a finalização da Titânio Produções. A mixagem é de Luiz

Carlos Carneiro e a trilha sonora original de Rodrigo Marçal e Rafael Papel.

O Canal Futura, onde o programa é veiculado, conta com Júlia Comodo na

coordenação de núcleo e Joana Levy na coordenação de produção, tendo como produtores

assistentes Lucieda Moreda e Camila Campos. Leonardo Machado é o analista de conteúdo.

Na gerência de produção encontra-se Vanessa Jardim, na de conteúdo Débora Garcia e na de

programação João Alegria. A gerência geral é de Lúcia Araújo e a supervisão geral é de

Hugo Barreto.

Com todos os elementos apresentados até aqui e com o conhecimento do caminho que

foi e ainda há de ser percorrido, será possível fazer a análise de discurso do material

selecionado. Desta forma, a pesquisa buscará responder a questão norteadora, que concentra-

se em descobrir como o programa Entre Fronteiras consegue dar voz às pessoas através das

grandes reportagens audiovisuais.

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Além disso, tem-se por objetivos avaliar o papel do jornalismo na sociedade;

investigar como se dá a construção narrativa na grande reportagem audiovisual; e identificar

na programação televisiva brasileira um formato diferente de jornalismo audiovisual que

consiga dar voz às pessoas por meio da grande reportagem.

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6 A VOZ DAS PESSOAS NA GRANDE REPORTAGEM

Neste capítulo, será analisado o episódio Partejar, da série Entre Fronteiras, que foi

apresentado e transcrito nos capítulos quatro e cinco. A pesquisa se propõe a fazer uma

análise de discurso do conteúdo, estudando os temas mais pertinentes para responder a

pergunta norteadora e alcançar os objetivos propostos.

Como resultado de um olhar analítico sobre a grande reportagem audiovisual, tem-se

quatro temas diferentes e que apresentam na prática o referencial teórico abordado ao longo

do trabalho. Considerou-se separar os temas em subcapítulos, sendo o primeiro deles

responsável pela interferência do jornalista na condução e desfecho da história narrada.

O segundo recorte a ser analisado é justamente a ligação entre a narrativa, o discurso

e os personagens. Na sequência, busca-se estudar a importância dos detalhes e o modo como

eles são apresentados em vista de alcançar uma significação. Por último, analisa-se o tempo

da história, desde os processos de produção até o desenrolar dos acontecimentos e a

finalização do material audiovisual.

6.1 A PRESENÇA DO JORNALISTA

O jornalista, enquanto condutor de uma reportagem, pode interferir na construção

narrativa de várias formas. Começa pela subjetividade da escolha dos personagens e segue

pela condução do tema no desenrolar da história, pelas perguntas, roteiro, edição. No

episódio Partejar, o Amapá foi escolhido para sediar uma grande reportagem sobre parteiras

por ser o estado brasileiro que apresenta o maior índice de partos naturais. A cidade

selecionada foi Oiapoque, que fica na fronteira do Brasil com a Guiana Francesa.

A preferência por um local específico como pano de fundo para a história é a primeira

subjetividade presente no episódio, que aparece carregada pelo ato da escolha. Conforme

Todorov (2003), apresentado no capítulo 3, a subjetividade está presente em todo o processo

narrativo. Quando opta-se por um ao invés de outro, as decisões envolvem a ideologia e as

crenças do narrador. O autor acredita ainda que nem mesmo as ciências conseguem se guiar

puramente pelos caminhos da objetividade, sendo subjetiva a própria escolha do episódio

Partejar, por exemplo, em contrapartida a outro episódio do programa Entre Fronteiras.

Em seguida, conforme entrevista feita com Luís Nachbin, a equipe de produção

entrou em contato com uma produtora local, que ficou responsável pela indicação de

personagens. Isso porque a produção do Entre Fronteiras dependia de alguém que pudesse

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encontrar uma parteira, cuja gestação acompanhada estivesse próxima do fim. A indicada foi

dona Helena. O jornalista diz que a parteira ‘os encantou’ e que se fosse viável documentar

um parto a ser feito por ela, eles o fariam.

O jornalista, ao dizer que ficou encantado por dona Helena, dá à personagem uma

carga de significados que ultrapassa a questão informacional. É assim que Todorov vê a

inserção dos personagens em um texto. Ele acredita que a presença dos personagens mexe

com os sentimentos, saindo do nível representacional para o emotivo. Ele diz ainda que os

personagens são os responsáveis pela retórica, pela representação do real, pela abundância

dos detalhes, dos diferentes formatos e estilos.

Tendo a figura principal de sua obra, Nachbin desloca-se até o Oiapoque sozinho,

sem equipe de produção e cinegrafistas. Ele é o condutor e o responsável pelas imagens, o

‘repórter abelha’. Quando ele se dirigiu à casa da personagem pela primeira vez já carregava

a câmera e gravou a cena. Dona Helena estava esperando. Ela demonstrou saber porque o

jornalista estava ali, o tempo que permaneceria e o objetivo do trabalho. Sua chegada, em um

primeiro momento, não pareceu intimidar a parteira, nem a gestante Mara.

O repórter afirma ter uma preocupação constante com o espaço que ocupa enquanto

interage com os personagens e a busca é sempre pela menor interferência possível. Isso pode

ser notado pelas vezes em que Nachbin aparece nos enquadramentos: três ao longo do

episódio; e também pelos vários momentos em que, na hora da edição, ele deixou a fala dos

personagens guiar a história, sem a introdução de narrações em off ou perguntas.

A tentativa de interferir o mínimo possível é uma busca frequente de jornalistas que

desejam valorizar a fala do outro. Ao contrário daqueles que deixam as redações com uma

estrutura pronta, inclusive sabendo o que os entrevistados falarão, Nachbin mostra-se

preocupado em ouvir o que o outro tem a dizer antes mesmo de perguntar. O Partejar, por

apresentar um perfil diferente, assume essa característica de reportagem sem roteiro pronto,

montado a partir das gravações e das falas obtidas.

Desta forma, nota-se que a produção e a construção da narrativa não têm um viés

mercadológico, já que a preocupação concentra-se na transmissão de informação e no espaço

disponibilizado ao outro e não na venda de um produto. Para Ramonet (2004), conforme

exposto no capítulo 3, esse comprometimento com a verdade e com os fatos dificilmente é

encontrado, visto que tudo passa a ser mercadoria.

Nachbin (2012) defende que a proposta é bem diferente do hard news e que talvez

seja diferente até mesmo da maioria dos programas atemporais. O objetivo do programa

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  95  

Entre Fronteiras, segundo o jornalista, é valorizar ao máximo a experiência do outro, o que o

outro tem a passar para o telespectador.

O repórter acredita ainda que a televisão não precisa ser superficial e que ela pode

trazer sim densidade. Para ele, o eterno desafio concentra-se em como buscar essa densidade

em apenas 20 minutos. O jornalista diz que a importância de trazer um conteúdo com

profundidade para a televisão, e não somente informativo, é também uma forma de levar a

reflexão até o telespectador.

Sem tomar o espaço do outro, logo no início de Partejar, Nachbin interfere contando

a história de seu próprio nascimento, utilizando fotos de quando era bebê, com sua mãe

carregando-o, para ilustrar. É como se ele buscasse justificativas pessoais e fatores

responsáveis por uni-lo, enquanto repórter, à grande reportagem audiovisual.

Quando encontra a personagem principal da história, dona Helena, ele questiona

sobre quantos partos ela já fez e não esconde a surpresa com o número: 152. A

espontaneidade de Nachbin parece fazer parte de uma busca pela naturalidade durante as

gravações. A atitude transmite a sensação de ser uma técnica adotada pelo repórter para não

intimidar os personagens diante da câmera. Talvez sua reação imediata e espontânea aos fatos

seja uma tentativa de alcançar a naturalidade dos próprios entrevistados.

O jornalista, inúmeras vezes, quebra a sequência de falas dos personagens e dele

mesmo para introduzir uma informação relevante que não foi abordada durante as gravações.

Essa intromissão aparece sempre em forma de narração em off, quando o texto é gravado

junto à edição e somente a voz é percebida. Essas informações são bem estruturadas e

produzidas, embora busquem se aproximar ao máximo da realidade da história contada.

Genette (1976), no capítulo 3, defende que o discurso representa uma quebra da

narrativa para a introdução de representações. Em Partejar, a narrativa é guiada pelo

discurso, que em alguns momentos perde lugar para a narração. De acordo com Barthes

(1976), capítulo 3, muitas vezes o discurso faz-se tão presente na narrativa que ele mesmo

conduz a história, deixando a narração escondida por entre a fala dos personagens. É o que

acontece com dona Helena, cujas falas são carregadas de informações, fazendo com que

Nachbin utilize a narração somente como complemento.

Neste caso, dona Helena conta como iniciou o ofício de parteira. Quando ela termina,

Nachbin inicia a narração explicando que o trabalho das parteiras vai até onde permite a

natureza de cada mulher. “A cesariana passa a ser indicada em casos de risco para a mãe ou

para a criança. Dona Helena aguarda o momento do parto sem data marcada, sem muita

previsão, apenas seguindo a intuição e os sinais” (NACHBIN, 2012).

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  96  

A colocação do jornalista, um tanto quanto pessoal, pode ser até mesmo uma

explicação do porquê seu primeiro filho nasceu por meio de cesariana. Na entrevista feita

com Nachbin, ele diz ser um adepto do parto natural e que a convivência com a personagem

o fez ser mais aderente ainda. “A minha primeira filha acabou sendo cesariana porque teve

um probleminha de última hora, mas a gente foi pela via do parto natural até onde pudemos e

assim será com meu segundo filho, que está na barriga agora” (NACHBIN, 2012).

A técnica de colocar-se no meio da reportagem, como se o jornalista fosse de certa

forma um personagem secundário ou terciário da história, não é característica única de

Nachbin. Filiadas ao chamado cinema-verdade francês, as sequências de interação com os

personagens são também utilizadas pelo cineasta e documentarista Eduardo Coutinho.

Na sequência, o jornalista se coloca à total disposição dos fatos, dizendo à dona

Helena que esperará sua ligação de plantão durante a noite, caso Mara entre em trabalho de

parto. Embora a voz dos personagens guie a narrativa, a história só existe porque eles agem e

criam fatos, que servem de suporte à reportagem. É clara, também, a ansiedade de Nachbin

em registrar esses fatos, que alcançam seu ponto culminante com o nascimento do bebê.

A conversa entre o repórter e os entrevistados segue em um tom natural. O jornalista,

algumas vezes, não deixa o assunto se alongar muito e faz interferências pontuais, aplicando

as perguntas básicas do lead com o objetivo claro de esclarecer o enredo ao público. Este é

um dos momentos em que, aos poucos, a voz de Nachbin vai desaparecendo e a fala dos

personagens é quem guia a reportagem. Percebe-se, então, o alcance do objetivo de interferir

o mínimo possível e valorizar ao máximo o outro.

O jornalista afirma ser uma preocupação recorrente sua e da equipe, mesmo enquanto

interage e convive com o outro, a de não ocupar muito espaço. Isso possibilita aprofundar o

conteúdo e sair da superficialidade. A voz de Nachbin, em off, aparece novamente na

reportagem para agregar informações que não foram ditas pelos personagens. Ao mesmo

tempo em que ela parece a narração de um texto denso, é impossível desassociá-la da

história, pois seu timbre não nega a participação e o contato que o jornalista teve com aquele

ambiente.

Essa narração também assume o compromisso de unir os pontos soltos do discurso e

ajudar o telespectador a atá-los. Barthes (1976) explica que dentro do processo de contar uma

história há agrupamentos designados de sequências. As sequências são uma séria lógica que

iniciam e terminam com um assunto capaz de transmitir significado. No caso do episódio

Partejar, as sequências são formadas pelos assuntos lançados por Nachbin ou pelos

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  97  

personagens. Um exemplo é dona Helena contando dos medos que enfrentou quando

começou a fazer partos, outro é Mara lembrando que o esposo chamava dona Helena de mãe.

Para Barthes (1976), esses agrupamentos que vão se criando e transformando ao

longo da narrativa não deixam de ser uma busca da representatividade de forma linear, ou

seja, uma ação se liga à outra com o objetivo de criar uma ponte que una as duas

significações. Essa ponte é geralmente feita pela narrativa, que se encarrega de unir os fios

soltos do discurso e dos processos descritivos.

Nachbin conversa com dona Helena, utilizando sempre um tom coloquial. Ele parece

ansioso pela chegada do bebê, não por causa do tempo de gravação, ao menos não é isso que

demonstra, mas sim pela expectativa do nascimento. A tentativa de interferência mínima do

repórter também é visível no processo de edição. A fala do jornalista aparece somente nos

momentos necessários para que se compreenda o restante da conversa. Muitas perguntas são

retiradas.

Nota-se que, ao mesmo tempo em que há uma preocupação de deixar os personagens

andarem sozinhos na história, assim como naturalmente aconteceria caso não houvesse a

documentação do fato, há também o desejo de mostrar a experiência vivida pelo jornalista. A

narrativa não sai da realidade para a ficcionalidade em momento algum, mas se mostra, de

certa forma, uma representação do real.

Isso ocorre porque, segundo Tzvetan Todorov, “a história é uma abstração pois ela é

sempre percebida e narrada por alguém, não existe em si” (TODOROV, 1976, p. 213). Há,

portanto, uma dificuldade ou uma definição não muito bem esclarecida de como a história da

parteira Helena será contada; se haverá a presença ou a ausência do jornalista no momento de

diálogo com os personagens.

Além disso, outra dificuldade é unir o tempo do discurso, que corre de forma linear,

ao tempo da história, que é pluridimensional. Todorov acredita que não há como buscar a

pluridimensionalidade dentro do processo narrativo, obrigando-se, portanto, a aceitar a

linearidade e escolhendo o melhor meio de expor diferentes situações. Talvez o melhor meio

encontrado pelo roteirista e editores de Partejar foi justamente garantir a presença do

jornalista nos momentos importantes e que expressassem sentimentos relevantes e suprimir

quando não fosse necessário.

Uma das ocasiões em que o repórter se afasta por um tempo é quando dona Helena

conta sobre as mulheres e os casais de antigamente. Ela faz uma comparação com a união

conjugal dos dias de hoje e lamenta as separações de casais com filhos, pois acredita que

quem sofre são as crianças. A fala termina e dona Helena sai de cena para dar lugar à um

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  98  

personagem secundário, uma jovem que caminha na rua enquanto empurra um carrinho de

bebê. Com essa ligação, entende-se que a ausência do discurso consegue significar.

Compreende-se que a jovem é a mãe da criança que aparece no vídeo e que o pai do bebê

provavelmente não vive mais com ela.

Esses fios soltos, deixados pela narrativa, incitam a reflexão do público, contribuindo

para um olhar mais crítico e fomentando o conhecimento. Se em determinados momentos as

reportagens apresentam o repórter como intermediador e responsável pelo discurso que une

as linhas soltas da narrativa, em outros esses pontos serão ligados pela compreensão do

público consumidor.

A voz de Nachbin vem na sequência, depois de alguns segundos de silêncio

comportados pelo som ambiente. Com a narração em off, ele apresenta a jovem como sendo

neta da parteira Helena. Gisele, diz ele, tem 18 anos, uma filha de 9 meses e nenhuma notícia

do pai da criança. O jornalista afirma ainda que ela teve a criança pelas mãos de dona Helena

e que segue a tradição da avó.

A jovem ganha apenas uma fala, e com ela é capaz de expressar todo o sentimento

que tem por dona Helena. É essa fala mesmo que faz com que a reportagem volte à parteira,

completando um formato de círculo. Nachbin interfere somente para complementar as

informações, reafirmando sentenças trazidas pelos personagens durante as conversas.

Já no início do segundo bloco, assim como na parte inicial da reportagem, Nachbin

aparece em primeiro plano nos enquadramentos, enquanto dá uma entrevista para uma rádio

local. Este é o único momento do episódio em que se pode notar a presença de mais do que

uma câmera para captar os ângulos desejados. Isso porque quando Nachbin aparece pela

primeira vez, ele está ajeitando a câmera que deixou sobre a mesa. Há, portanto, uma

preocupação estética que envolve enquadramentos, planos, cores, cenários. Não é porque o

repórter é responsável pelo papel tradicionalmente assumido pela equipe de reportagem que

os cuidados não devem existir.

Essa preocupação com o estético é, de certa forma, uma marca da presença da

literatura na grande reportagem. A literatura invade o espaço caracterizado pela rigidez,

objetividade e dinamicidade do jornalismo tradicional e quebra algumas estruturas prontas e

pré-moldadas. Ela oferece não somente a arte da palavra, mas também a arte da imagem e do

som. Como afirmou Lima (1990), no capítulo 3, a presença da literatura não exclui a verdade

e nem a mascara. O que acontece é o embelezamento da obra pela valorização do simples.

Nachbin, ainda na rádio, apresenta aos ouvintes a personagem principal de sua

história, dona Helena, e utiliza esse gancho para trazer de volta à narrativa a parteira. O

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  99  

jornalista passa a conversar com ela assim como o fez no primeiro bloco. Em determinado

momento ele pergunta se existe parteiro homem e ela afirma conhecer um.

Edvaldo Pereira Lima (2009), no capítulo 2, afirma que a grande reportagem é uma

forma de fugir do lead, de mergulhar nos fatos e tomar uma dose ponderável de liberdade

para escapar da fórmula convencional da notícia. Mesmo produzindo um episódio com

características diferentes do jornalismo tradicional, Nachbin toma a liberdade de usar a

técnica antiga de agregar à reportagem um número considerável de fontes. A procura por

homens parteiros deixa isso claro. O repórter tenta ouvir mais do que um personagem para

construir a história.

De acordo com o jornalista Eduardo Belo, apresentado no capítulo 2, a prática da

reportagem é feita para pessoas e de pessoas. “Há profundo interesse por parte do público

sobre a vida das pessoas, sobre quem está fazendo o quê, [...]” (BELO, 2006, p.50). O

interesse surge porque de uma maneira ou outra aquela figura presente na tela identifica um

grupo ou classe social. É a dona Helena que representa as parteiras e as avós, a nora que tem

contado direto com a sogra, a neta que é mãe solteira, o neto considerado filho, o parteiro

homem.

Na cena seguinte, Nachbin vai até esse homem dito parteiro e conversa com ele

naturalmente, assim como fez durante a gravação de todo o episódio. A primeira fala do

repórter é uma pergunta: “Você está aproveitando que choveu, né?”. Esse questionamento dá

a impressão de que o repórter já havia conversado com o construtor de barcos anteriormente,

sem a câmera ligada, e a cena foi reorganizada para transmitir certa naturalidade.

Uma das explicações do porquê isso pode ter ocorrido envolve questões éticas ligadas

ao uso da imagem. É provável que o jornalista tenha se apresentado ao parteiro antes de

iniciar a entrevista, explicado qual era o objetivo da conversa e para que esse material seria

utilizado. Isso acaba sendo uma barreira limitadora na contagem da história, o que

impulsiona a ideia de reprodução da realidade.

Posteriormente, Nachbin insere-se à narrativa por mais uma vez, agora pedindo à

parteira que o adote como filho. Mesmo sem aparecer no vídeo, neste momento o foco da

história passa de dona Helena ao próprio jornalista. Ele mistura sua história pessoal com a de

seus personagens. Além de oferecer-se para fazer parte da família, ele expõe seus próprios

sentimentos, afirmando querer muito que a criança nasça no dia de seu aniversário.

Ao contrário da estrutura padrão, onde o repórter não aparece, em Partejar tomou-se

a liberdade de fazer do condutor um próprio personagem. Segundo os estudos de Todorov,

mesmo que Nachbin não se introduzisse na história, os demais personagens se encarregariam

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  100  

de revelar seus pensamentos e sentimentos, visto que aparecem ligados ao desejo, à vontade

de comunicar, de informar, de participar, de agir, etc.

Na narração em off, o jornalista reitera o desejo: “Eu passei a ter certeza de que o

bebê nasceria no dia do meu aniversário, 30 de julho. Passei a torcer para que isso

acontecesse. Até que chegou o dia 28 de julho, data do casamento dos meus saudosos pais”.

A narração termina e o fio solto lançado pode ser claramente costurado pelo telespectador.

Sabe-se que o dia do bebê nascer chegou e que essa data lembra o aniversário de casamento

dos pais do jornalista.

Mara entra em trabalho de parto e o repórter acompanha todos os momentos. Nachbin

inclusive aparece em primeiro plano em um enquadramento que permite ver o quarto de

Mara, a gestante ao fundo deitada na cama e mulheres a sua volta ajudando-a. É a típica cena

do cinema-verdade francês, que mostra além da beleza produzida para o foco da câmera: o

seu entorno. A partir deste instante, Nachbin praticamente sai de cena. As imagens e o som

ambiente falam por si só.

Em alguns momentos, nota-se que ele mesmo fica tocado pelo sofrimento de Mara e

pela demora do parto. As imagens gravadas pelo repórter expressam esse sentimento. Mara

também diz que precisa avisar seu psicológico que Nachbin é um médico e não um

‘filmador’. Ou seja, por mais que ele tenha se colocado na família como membro e

permanecido por bastante tempo, buscando interferir o mínimo possível, sua presença,

naquela hora, era incômoda.

Ele mesmo narra estar preocupado por conta de sua interferência. “Na cabeça da

Mara, e também para dona Helena, era inconcebível que o bebê não nascesse diante da

câmera de quem havia chegado de tão longe” (NACHBIN, 2012). E acrescenta que a única

coisa que o agitava durante aquela noite era a saúde de Mara e do bebê.

Nachbin grava, então, os detalhes e procura valorizar ao máximo o momento. Por

um tempo, ele parece invisível na história. Nota-se que sua preocupação faz com ele saia da

conversa e da interação que há entre as mulheres do quarto. Afinal, como ele mesmo mostrou

quando entrevistou o parteiro, as mulheres ainda tem receio de parir com a presença de um

homem, quem dirá um estranho.

Depois de inúmeras horas tentando, Mara não consegue dar à luz ao bebê e precisa ser

levada a um hospital. O repórter utiliza a narração em off novamente para aproximar a

história que está acompanhando com sua própria vida e reafirmar a preocupação quanto à sua

interferência.

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Das três da tarde às dez da noite, o desenrolar da história do parto da Mara me lembrou muito o nascimento da minha filha. A luta incessante durante horas para não abrir mão do parto natural. No nosso caso a cesariana foi a única solução. Hoje, a caminho do hospital, mal consigo me concentrar nas imagens. Só penso no desfecho do parto da Mara. (NACHBIN, 2012)

O texto produzido cuidadosamente e narrado em off no momento da edição faz com

que o sentimento de preocupação real não seja tão intenso. Para Sodré e Ferrari, “a

humanização do relato, pois, é tanto maior quanto mais passa pelo caráter impressionista do

narrador” (SODRÉ; FERRARI, 1986, p. 15). Isso não ocorre, talvez, porque o jornalista não

vive o momento enquanto narra o texto, sendo traído por seu timbre de voz.

Há ainda a presença de um roteirista, o qual não fez parte da narrativa enquanto ela se

constituía. Em entrevista, Nachbin diz que o texto é escrito a quatro mãos, sendo que ele

escreve o que é mais pessoal e algumas reflexões e o roteirista se encarrega dos trechos mais

informativos e menos pessoais.

No hospital, enquanto esperam, dona Helena diz, um tanto decepcionada, que

Nachbin precisou sair de tão longe para não conseguir filmar um parto natural e que ainda o

proibiram de acompanhar Mara no quarto. Ele tranquiliza a parteira e responde que não tem

problema, que a preocupação maior é com a saúde da mãe e do filho.

A interferência do repórter, por menor que tenha sido, causou modificações visíveis

no comportamento dos personagens. Mais preocupadas com a gravação do que com o parto,

tanto Mara quanto dona Helena mostraram-se decepcionadas por não terem conseguido fazer

diante das câmaras o proposto inicialmente.

Quando a enfermeira aparece, Nachbin é o primeiro a levantar e dirigir-se à ela. Ele

pergunta se é menina, querendo confirmar o palpite de dona Helena, e a enfermeira comprova

a informação. Ela mostra-se tímida com a presença da câmera. Nachbin pergunta se o parto

foi natural e ela confirma novamente. Ainda gravando, ele se dirige à dona Helena, a abraça e

parabeniza pela neta/bisneta.

Durante horas Mara tentou dar à luz à criança em casa, com a presença de dona

Helena, suas amigas e Nachbin. A gestante não conseguiu. Quando levada ao hospital,

desacompanha de qualquer parente ou estranho, em pouco tempo a filha de Mara veio ao

mundo. A sensação que se tem é de que, talvez, se aquela câmera não estivesse circulando

pelo quarto e gravando cada movimento da gestante, ela conseguisse esquecer de todo o resto

e preocupar-se somente com a criança que estava querendo chegar. O nascimento do bebê em

um hospital pode representar a maior interferência que Nachbin teve durante todo o episódio.

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De acordo com Sodré e Ferrari (1986), há sempre um mediador que será responsável

pela inserção dos fatos no contexto social e por sua significação. Sendo o narrador o

responsável pela escolha das partes do relato que serão divulgadas, o texto vai depender

também da identificação que ele tiver com o assunto e em que momento o depoimento foi

mais marcante, sob o ponto de vista dele. Nachbin encerra a grande reportagem audiovisual

mostrando uma cena de Mara com a filha Rubia. Ele se despede do Oiapoque e das

personagens, afirmando estar feliz por saber que o bebê vai ter o colo da avó, da mãe e do

pai.

Assim, por mais que tenha cuidado ao máximo para não interferir, nota-se que a

presença de um estranho e a inserção dele na família modifica, de alguma forma, o

comportamento dos integrantes. É inegável que a presença de uma única pessoa torna mais

familiar o ambiente do que a inserção de um repórter junto à uma equipe com câmeras e

luzes. Mesmo assim, muitas vezes a presença de Nachbin intimidou os personagens,

inclusive Mara, na hora do parto.

6.2 A NARRATIVA, O DISCURSO E OS PERSONAGENS

A narrativa literária apresenta seus primeiros sinais logo no início do episódio. O

texto tradicional de uma reportagem, que abre com as informações mais importantes, dá lugar

à história do próprio repórter. Ele faz uma ligação com o tema principal da grande

reportagem, as parteiras, e inicia dizendo que enquanto se desloca para o local em que o

audiovisual será gravado, lembra de sua mãe contando a história do parto que o trouxe ao

mundo.

O uso da metáfora é uma forma de Nachbin relacionar seu nascimento à realidade em

que vai ao encontro. O fato de ele mostrar essa ligação faz com que, de alguma forma, o

telespectador seja instigado a fazer o mesmo. Ele mostra que todos podem se identificar com

a vida da parteira, relembrando a história do próprio nascimento e os medos que cercavam a

família. Para Tom Wolf (2005), no capítulo 3, as grandes reportagens cativam o público

justamente pela aproximação que o telespectador tem dos personagens e pelo simples fato da

certeza de que tudo aquilo apresentado realmente aconteceu.

Luís Nachbin (2012) complementa dizendo que naquele momento é ele quem vai a

procura daquelas que ajudam as crianças a nascerem. Com narração em off, ele localiza o

telespectador por meio de um mapa que aparece na tela. O jornalista apresenta a cidade do

Oiapoque, no estado do Amapá, e informa sobre o número de horas dispendidas até chegar à

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localidade. Ainda na narração, ele introduz a personagem principal de sua história enquanto

vai ao encontro de dona Helena, uma tradicional parteira da região. O repórter diz ter

recebido a notícia de que o próximo parto acompanhado pela senhora estava para acontecer e

que fez o possível para se dirigir a ela o quanto antes.

A presença de Nachbin em vários momentos da grande reportagem parece se

concretizar como forma de mostrar os bastidores das gravações e tentativa de tornar o

episódio o mais real possível. O telespectador sabe que houve uma produção por trás daquilo

que as câmeras estão mostrando, mas no episódio ele consegue enxergar essa preparação e a

proximidade parece ser mais real ainda. De acordo com Lucena (2012), no capítulo 2, as

situações têm como suporte o mundo real e os protagonistas são os próprios sujeitos da ação.

Assim, pode-se dizer que o jornalista não deixa de ser um sujeito atuante, visto que é ele

quem conduz a reportagem.

Com as informações esclarecidas, ele responde, de certa forma, algumas perguntas

básicas do jornalismo, fazendo com que o telespectador entenda o que está sendo exibido a

ele. Consegue-se responder o quê está acontecendo, sendo a resposta o acompanhamento de

um parto natural; quem é a personagem? Dona Helena; onde a história acontece? No

Oiapoque; e por quê tornar ela pública? Pelo número elevado de nascimentos por meio do

parto natural.

Sodré e Ferrari (1986) explicam que é justamente o desdobramento das perguntas

clássicas (o que, como, quando, onde, por que, quem) utilizadas pelo jornalista que

constituirão uma narrativa diferente da habitual. Essa construção é regida pela realidade

factual do dia-a-dia e pelos pontos rítmicos do cotidiano, que discursivamente trabalhados,

tornam-se reportagem.

Sem aparecer no vídeo, o jornalista pergunta onde é a casa de dona Helena. Um

morador da localidade que o acompanha e aparece no enquadramento aponta o local e guia o

repórter. Eles seguem até a porta da frente, que está aberta. O morador chama dona Helena

para ver quem chegou. O homem desaparece do vídeo e da narrativa, que continua com

Nachbin cumprimentando dona Helena e entrando na casa para conhecer a gestante.

A presença do discurso, da fala das personagens é marcante. Mesmo Nachbin, como

dito anteriormente, coloca-se no vídeo enquanto sujeito da ação. Para Barthes (1976), muitas

vezes o discurso faz-se tão presente na narrativa que ele mesmo conduz a história, deixando a

narração escondida por entre a fala dos personagens.

A narrativa passa do off condutor e introdutório para uma conversa simples e

espontânea com as personagens que compõe a história. A partir deste momento, dona Helena,

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  104  

que é a parteira e a personagem principal, passa, por meio de suas falas, a contar a história

junto com Nachbin. A senhora responde às perguntas do jornalista e acrescenta informações

marcantes de sua vida ou que agregaram conhecimento para que ela pudesse fazer os partos.

Pessoa simples, dona Helena mora em uma casa de madeira, próxima a árvores e a

um mato rasteiro. Ela diz ter trabalhado em um hospital, assumindo funções de enfermeira e

até dentista, mas não tem diploma algum que garanta sua ligação à área da medicina. Dona

Helena não é especialista formada, mas tem uma história interessante e repleta de miudezas

para contar. Sua função de parteira é quase extinta no Brasil e o seu trabalho colabora com o

alto índice de partos naturais no Amapá.

Para Barthes, a presença desta simplicidade é fundamental para que a obra consolide-

se e a narrativa seja sustentada. Ele acredita que [...] os personagens formam um plano de descrição necessário, fora do qual as pequenas ações narradas deixam de ser inteligíveis, de sorte que se pode bem dizer que não existe uma só narrativa no mundo sem personagens, ou ao menos sem agentes (BARTHES, 1976, p.43).

Na sequência, a narração em off aparece novamente, como se ela fosse responsável

por manter o fio condutor do programa. Nela encontram-se as informações da reportagem,

que depois são ampliadas e aprofundadas na prática pelos personagens. Na própria narração,

Nachbin explica o porquê de escolher dona Helena e a importância de se contar uma história

como a dela. Num país conhecido pelo altíssimo número de cesarianas, o estado do Amapá é uma exceção. Aqui, 80 por cento dos partos são normais. É o recorde nacional. O Brasil, por sua vez, ocupa o segundo lugar no ranking mundial dos partos cirúrgicos. Só fica atrás do Chile. 43 por cento dos bebês brasileiros vêm ao mundo por meio de cesariana. As mãos de mulheres como dona Helena conservam a bela tradição das parteiras (NACHBIN, 2012).

O discurso surge por meio das palavras de dona Helena. Ela começa a explorar o

sentimento de ser parteira. Conta dos medos de quando começou, da rejeição e do

preconceito, da resistência em assumir a profissão e de um curso que decidiu fazer para tomar

coragem de intitular-se parteira.

O silêncio é a marca do respiro entre a fala do personagem e do narrador. O texto

parece tornar-se mais poético, mais humano e mais pessoal. Nachbin diz que o trabalho das

parteiras vai até onde permite a natureza de cada mulher. A palavra natureza, neste caso,

parece não remeter à natureza de cada mulher somente, mas transborda o significado

primeiro e se mistura à natureza que complementa o cenário da parteira do Oiapoque.

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  105  

Volta a conversa informal. Dona Helena acredita que a nora está esperando uma

menina e, embora não seja médica, explica o porquê. Diz que quando o filho é menino as

dores são mais fortes e começam nas costas. Quando é menina a dor é menos intensa e se

localiza na região frontal e lateral da barriga. A parteira, que não possui especialidades ou

grandes estudos, tem suas próprias particularidades e toda a sua experiência de vida para

contar. É isso que faz a diferença na grande reportagem, que têm seus alicerces nos

personagens e prescinde deles para existir.

Nachbin passa a conversar também com Mara, personagem secundária da história,

mas fundamental para que a ação aconteça, já que ela é a gestante. Ele inicia perguntando

sobre o bebê e a deixa contar sobre sua vida e a de seu marido, Rubens. Ela lembra do tempo

em que começou a namorar com o neto de dona Helena, criado pela avó como filho. O

Rubens e a dona Helena, respectivamente e sem interferência alguma de um mediador,

complementam e sustentam a história que Mara iniciou. Eles falam de como Rubens se

tornou para dona Helena um filho. No fim, a parteira emociona-se com a história ao lembrar

da filha, mãe biológica de Rubens, e Nachbin a consola como forma de ampará-la.

Conforme Genette (1976), a narração sustenta-se com ações ou acontecimentos

enquanto processos puros, responsáveis por acentuar os aspectos dramáticos da narrativa. O

fato contado pelos personagens secundários e por dona Helena foge da narrativa que tem a

parteira e o parto natural como foco principal. Isso porque ninguém vive centrado em um

único acontecimento, mas é rodeado de histórias simultâneas que volta e meia tomam conta

do pensamento. Esse acontecimento mostra o espaço linear encontrado pelo discurso para

descrever a pluridimensionalidade dos fatos.

A narração vem de novo para romper o discurso e informar. Nachbin diz que dona

Helena tem mais de 40 descendentes e que muitos vieram ao mundo pelas mãos dela. O

jornalista informa ainda que o trabalho nunca representou conforto financeiro para a parteira

e que o ofício é tido por ela como um dom a ser aceito.

A literatura vai se apresentando de forma sutil, ganhando espaço dentro das

produções jornalísticas mais flexíveis, como é o caso de Partejar. De acordo com Lima

(1990), quando unida à narrativa, a literatura ganha espaço não somente na arte das palavras,

mas também na forma de expressar sentimentos. Ela abre um leque para embelezar a história

e tornar os fatos mais cheios de vida. Isso propicia também ao narrador maior liberdade para

escolher quando e como interferir.

A narração é rompida pelos cumprimentos de Nachbin à dona Helena ao se

encontrarem em um novo dia. O foco da conversa volta a ser o nascimento do neto da

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  106  

parteira e o dia de sua chegada. Dona Helena fala novamente sobre os medos de fazer um

parto. Diz que hoje encara o ofício como um processo normal, de ajuda mútua.

O repórter pede algumas dicas bem pontuais do que a grávida deve fazer nas horas

que antecedem o parto. A informação que Nachbin procura é também uma busca constante

dos jornalistas em matérias cotidianas. O objetivo é informar e atrair o público, dando a ele

opções de como agir ou do que fazer em determinados casos. E, como diz o jornalista

Eduardo Belo (2006), a prática da reportagem é feita de pessoas e para pessoas.

Experiente no assunto, a parteira diz que a grávida fica muito carente e precisa de

apoio e carinho. Dona Helena conta também como foram os partos dos filhos que ela teve.

Segundo ela, todos os 10 nasceram de parto natural e em casa. Alguns pelas mãos de

vizinhas, outros pela da sogra. Ela diz que era normal a mulher ter um filho todo ano. Dona

Helena lembra de uma senhora que pariu 22 filhos e explica que isso não ocorre mais porque

os casais não conseguem mais permanecer juntos por muito tempo.

As palavras de dona Helena não saem da boca de um historiador, mas registram a

história, a cultura e o pensamento de um povo em um determinado local e período. Para

Todorov (1976), toda obra é ao mesmo tempo história e discurso. Assim ocorre com a

reportagem, que evoca a realidade e os acontecimentos ocorridos por meio dos personagens.

O jornalismo registra a história e a oferece ao leitor/telespectador no presente.

Com a fala de dona Helena a narrativa migra para sua neta Gisele, que é mãe solteira.

Este é um dos momentos em que a história sai do personagem principal na busca de pessoas

secundárias que possam contribuir para enriquecer a reportagem. Em tom bastante pessoal e

poético, Nachbin confirma a afirmação de dona Helena sobre os casais que se separam e

apresenta à narrativa a neta da parteira. O que eu mais vejo por aqui, o que mais me dói no coração é o número de crianças amparadas apenas pela mãe ou pela avó. Gisele, neta de dona Helena, tem 18 anos, uma bebê de nove meses e nenhuma notícia do pai da criança. Dafne, a filha, chegou ao mundo com a ajuda de dona Helena e inspirou a mãe a seguir a tradição familiar. (NACHBIN, 2012)

Nachbin compara Gisele com a avó, por ela ter escolhido seguir a profissão e ser

aprendiz de dona Helena. A garota olha para ele e diz: “não tem aquele livro que fala assim:

o meu pai, o meu herói. Pois é, no meu caso é: a minha avó, a minha heroína”. A deixa leva a

narrativa de volta à heroína, que, sentada em frente a Nachbin, confessa estar com medo de

fazer o parto de Mara. A parteira acredita que pelo fato de a nora ter tido o segundo filho há

oito anos, ela terá dificuldades no momento de parir.

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  107  

Essa preocupação de dona Helena com o nascimento do neto mostra-se tão real que

pode ser tomada como exemplo característico da grande reportagem, defendida por De La

Rue (2006) como necessidade jornalística de fidedignidade aos fatos. Outro ponto importante

a ser levantado com a angústia da parteira é a interferência das gravações sobre o processo

natural do parto. Dona Helena teme que nem tudo saia conforme planejado.

A narrativa sofre um corte devido a um intervalo, típico dos gêneros televisivos. O

segundo bloco volta com Nachbin sendo entrevistado em uma rádio local. Ele fala do alto

índice de partos naturais no Amapá e logo introduz sua personagem, dona Helena. A

reportagem segue, então, o ritmo das conversas do jornalista com a parteira, das

interferências em off, da voz dos personagens tomando conta do espaço. Em um barco, no

meio de um rio, a parteira mostra que os dois estão navegando pela divisa do Brasil com a

Guiana Francesa.

Para Todorov (2003), a estruturação da obra é um processo de escolha que depende

do poder decisivo de seu escritor ou administrador. Neste caso, o mediador é Nachbin, por

isso ele detém o poder de conduzir a narrativa, de guiá-la por entre os caminhos que pretende

mostrar. Ele será o responsável por lançar o discurso e a história, por inserir os diálogos no

momento adequado e deixar a narrativa andar quando somente ela é capaz de conduzir o

telespectador. Isto não é uma questão de arte (da parte do narrador), é uma questão de estrutura: na ordem do discurso, o que se nota é, por definição, notável: mesmo quando um detalhe parece irredutivelmente insignificante, rebelde a qualquer função, ele tem pelo menos a significação de absurdo ou de inútil (TODOROV, 2003, p.28).

Nachbin logo chama a si a responsabilidade de guiar a conversa pelo assunto que o

levou ao Amapá. Ele pergunta à dona Helena se ela conhece algum parteiro homem e,

obtendo resposta afirmativa, ele procura o personagem e busca inseri-lo na reportagem. O

jornalista quebra a narrativa mais uma vez falando da chuva e na sequência vai ao encontro

do parteiro.

A inserção de um novo personagem com características distintas poderia render uma

nova reportagem. O fato de ser homem e realizar os partos da esposa apresenta uma história

tão interessante que certamente seria capaz de prender a atenção. Porém, sabendo do elevado

número de partos naturais no Amapá e das condições financeiras da população do interior,

pensa-se que há também um número grande de parteiras atuantes. Desta forma, dona Helena

é apenas uma figura representativa de todas as outras parteiras que exercem o ofício há anos

sem nunca ter pensado no conforto financeiro.

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Nachbin (2012) garante que o objetivo do programa é justamente aprofundar uma

história, começando de uma perspectiva mais ampla para depois encontrar alguma reflexão.

Ele acredita que essa seja a principal alternativa de se conseguir uma narrativa densa, com

conteúdo ‘mais recheado’.

A inclusão da figura secundária pode ser uma forma de aprofundar a narrativa,

evitando a superficialidade. As perguntas dirigidas ao parteiro foram, a princípio, bem

pontuais e específicas e procuravam respostas para as dúvidas que muitos têm sobre a

vergonha, tanto do homem quanto da mulher, do ato de parir com a ajuda de alguém do sexo

masculino. O construtor de barcos e parteiro respondeu às perguntas e, posteriormente,

deixou o lugar em que estava trabalhando e seguiu para casa, acompanhado do jornalista.

Nachbin seguiu o parteiro com a câmera em mãos, mostrando a naturalidade da cena

e a simplicidade do cenário. A tentativa é de, novamente, tornar o mais familiar possível o

ambiente e os personagens que dão vida à reportagem. O homem conta que aprendeu o ofício

observando e ajudando a madrinha da mãe a realizar os partos, quando ainda era criança. Ele

lembrava dos detalhes e quando surgiu a oportunidade, pode colaborar com a gestante. Ele

diz já ter realizado seis partos, quatro de sua esposa e dois de vizinhos.

O jornalista ouviu ainda mais uma fonte, a esposa do parteiro, para saber como era ter

um filho com a ajuda e a presença do marido. A mulher diz que no início foi um pouco

estranho, mas que depois ela mesma não queria mais ter um filho sem a presença do esposo.

E afirma ainda que a experiência de ter o marido por perto é inesquecível.

Ao pular de dona Helena para o parteiro e, em seguida, para a esposa, a narrativa

tornou-se, de certa forma, presa aos discursos e aos acontecimentos ligados a personagens

secundários, presentes na história quase que por acaso. Para Genette (1976), essa sequência

de falas faz a narrativa perder o significado primordial que a cerca, pois ela se desvia de seu

foco para reproduzir falas.

Somente com a troca de cenas e imagens, a narrativa volta à dona Helena. Rezende

(2000), no capítulo 4, já destacava que a diferenciação da televisão está exatamente no

código icônico enquanto base de sua linguagem. Mesmo assim, o autor não descarta a

importância da palavra e da oralidade para a composição do produto audiovisual, visto que

em determinados momentos uma palavra basta para a transmissão de um significado.

Nachbin se coloca de novo como personagem da reportagem, dizendo já estar tanto

tempo no Oiapoque que gostaria de ser adotado como filho e neto da parteira. O desejo é

atendido e a conversa se estende até Nachbin fazê-la voltar ao caminho desejado,

perguntando à dona Helena e Mara se a criança nascerá no dia de seu aniversário, cerca de

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quatro dias adiante. As duas caem na gargalha junto com o repórter, que afirma ter passado a

torcer para que o bebê nascesse no dia de seu aniversário.

A conversa de Nachbin em tom coloquial, sua inserção nas histórias e o modo como

ele grava e dialoga com os personagens, tanto com dona Helena, quanto com Mara, com o

parteiro e sua esposa, mostram que a linguagem utilizada por ele é o diferencial da grande

reportagem audiovisual. Sato (2005), no capítulo 3, explica que a linguagem é a responsável

por mediar a relação dialética entre o sujeito e o mundo real. É por meio da linguagem que se

consegue transferir o real para um mundo, de certa forma, imaginário e construtivo de acordo

com a interpretação de cada indivíduo recebedor da mensagem.

Diz-se representação de um mundo real no jornalismo, e em qualquer outra obra,

porque os personagens são perfis escolhidos para retratar uma realidade, uma cultura, um

povo, suas crenças e costumes. Eles não substituem a totalidade, mas também não deixam de

ser uma fonte de informação e uma forma de registrar e tornar visível diferentes realidades e

culturas.

O jornalista anuncia que o bebê está chegando por meio da narração em off. Deste

momento em diante, tanto Mara quanto dona Helena assumem os papeis principais da

narrativa e passam a conduzir a história. O jornalista conversa com a gestante e a segue a fim

de registrar os detalhes, inclusive gravando uma cena em que ela está na frente do espelho

arrumando a sobrancelha enquanto dona Helena conta o tempo das contrações. Mara diz estar

sentindo muito dor e passa a dar menos atenção à câmera.

O repórter continua perseguindo os detalhes. Vê a parteira preparando um líquido e

logo pergunta o que é e para que serve. Ela diz que ajuda a aumentar a dor da gestante,

fazendo com que ela faça mais força e a criança nasça. Mara entra em trabalho de parto e o

jornalista passa a interferir o mínimo possível, deixando a cena acontecer. Enquanto a

gestante levanta para caminhar um pouco, entre uma tentativa e outra, a parteira explica.

“Parto é coragem. Tanto a parteira tem que ter coragem para dar à grávida, quanto a grávida”.

A escolha de deixar o discurso contar a história sem a interferência da narrativa e da

voz do mediador deixa mais clara ainda a busca incessante pela valorização do outro. Cosson

(2001) defende que a verdade é amparada pelos fatos acontecidos e que ela constrói-se no

nível discursivo, pelos princípios da verossimilhança. Quando o personagem é o dono da fala,

ele acaba por tirar do jornalista todo o peso que a busca pela verdade e a objetividade

exercem sobre o profissional, pois sua fala representa a verdade para si.

Dona Helena e Mara conversam até que a nora se altera um pouco, diz que não

aguenta a dor, enquanto a parteira pressiona e diz que aguenta sim. Sua fala explicando o que

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é partejar entra na reportagem enquanto a cena de Mara caminhando para o quarto toma

conta do vídeo. “Partejar é a mesma coisa que fazer o parto, só muda a pronúncia da palavra.

Porque têm muitas que são analfabetas, aí elas pronunciam essas palavras assim né”. Com o

término da explicação, o áudio que predomina é o ambiente.

A valorização do momento é o cerne da reportagem. Nele todos os elementos

necessários podem ser encontrados. A eternidade do acontecimento que está sendo narrado

“está em descobrir o que há de singular no momento e ficar no momento, impregnar-se dele,

descobrir nele o que há de característico, como momento” (LIMA, 1990, p. 63).

No episódio, mais uma pessoa surge para compor o cenário. Junto às ajudantes de

dona Helena, entra em cena a ‘super Núbia’, assim chamada por Mara. Era mais uma mulher

que se dirigia à casa da gestante para auxiliar no trabalho de parto. Ao todo, eram quatro

pessoas. Pelas imagens que compõem o audiovisual, percebe-se que tinham passado horas

desde que Mara havia entrado em trabalho de parto e o fim parecia ainda estar longe.

A narrativa passa a ser contada quase que inteiramente pelos personagens e suas

ações, somente com o áudio ambiente. A grande reportagem tornou-se visivelmente mais

intensa, já a fala das personagens pode ser ouvida junto à expressão de dor, de tensão, de

preocupação. No capítulo 3, Sodré (2009) diz que o discurso é por excelência o lugar de

produção de sentido. Nachbin parece concordar, pois a partir do momento em que Mara

entrou em trabalhou de parto, a construção de significados se deu pela ligação natural da fala

dos personagens.

Foram cerca de sete horas de espera e inúmeras tentativas. O relógio marcava vinte e

duas horas e vinte e três minutos quando Mara chegou ao hospital. Ela foi levada de cadeira

de rodas para o quarto sem a companhia de dona Helena, do marido e de Nachbin. Todos

precisaram aguardar do lado de fora o desfecho do parto.

O jornalista conversa com dona Helena enquanto eles esperam. Ela explica que Mara

não estava ajudando na hora de fazer força e assim a criança não conseguia nascer. O parto,

embora tenha ocorrido no hospital, foi natural e o bebê era uma menina. Nachbin, ainda no

hospital, mostra o rosto feliz de dona Helena, comemorando a chegada de mais um

descendente na família.

A presença dos detalhes, como o foco no relógio e o horário em que Mara chegou ao

hospital, das informações, da narrativa e do discurso junto à literatura constituem a estética

da reportagem. Para Lima, “a beleza é uma integração de todos os valores” (LIMA, 1990, p.

37). O autor acredita que no jornalismo a beleza não tem uma fórmula ou um modelo a ser

seguido, mas que ela se constitui enquanto arte relativa e não absoluta, enquanto poesia.

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A narrativa, como esperado, se encaminha para o fim. Com o nascimento de Rúbia,

Nachbin se despede do Oiapoque e da família de dona Helena, aplicando a poética como arte

final para encerrar o episódio. Depois de treze dias no Oiapoque, eu me sinto realizado, me sinto calmo. Navego sem nenhuma ansiedade no peito. Acho que por saber que a Rúbia vai ter colo da mãe, colo da avó e principalmente colo do pai, assim como tiveram os dois irmãos dela. Ah, como seria magnífico se os homens que não assumem os seus filhos pudessem repensar, refletir e se reerguer como homens (NACHBIN, 2012).

O texto final de Nachbin nada mais é do que a busca de significações que pudessem

resumir o seu aprendizado durante os dias de acompanhamento e a mensagem que ele deveria

deixar para o telespectador. O jornalista estimula o público a pensar, a refletir, a questionar.

E, como disse Dravet (2005), no capítulo 3, “ [...] a literatura é a esperança da comunicação,

para a qual é necessário que se eduquem não só os futuros jornalistas mas os leitores. Através

da literatura, o homem exerce a sua singularidade, de forma universal” (DRAVET, p.89).

Com as palavras de Dravet, pode-se resumir o episódio Partejar em uma única

palavra: singular. Isto porque sua proposta é diferenciada do que o mercado está acostumado

a vender e porque a união da narrativa literária ao discurso e ao jornalismo mostrou-se

possível e de grande qualidade. A universalidade, assim como a singularidade da cultura, é

representada pela e na literatura. A reportagem cruza então as fronteiras do tempo, dos

sentimentos, das emoções, dos fatos e das relações criadas.

6.3 OS DETALHES QUE FALAM

A presença de trilhas, o áudio ambiente, os enquadramentos e os planos, as imagens,

os detalhes, a cor. Todos esses elementos, assim como as palavras e o discurso, compõem a

narrativa e permitem a construção de uma carga de significados maior. No episódio Partejar,

a presença desses detalhes que falam é constante e permeia a narrativa do início ao fim. Eles

geralmente aparecem como forma de migrar de uma sequência de significados a outra sem a

ajuda da narrativa, como complemento visual ao texto e, até mesmo, como um descanso para

a história.

O episódio inicia com imagens que mostram a estrada, a paisagem e para onde o

jornalista está indo. A certa altura, pode-se ver a câmera pelo espelho retrovisor do carro. A

trilha dá uma dinamicidade às imagens e ao texto. Observa-se o distanciamento das grandes

capitais somente pelas condições das vias.

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As imagens descrevem o cenário e mostram-se fundamentais para que o processo

narrativo possa buscar ao máximo uma proximidade com o real. Conforme Genette (1976), a

descrição é tão ou mais indispensável que a narração, visto que é mais fácil narrar do que

descrever. Para defender sua tese, o autor explica que os objetos podem existir sem

movimento, mas não o movimento sem os objetos, ou seja, a descrição apresenta os objetos

enquanto a narrativa encarrega-se de conduzi-los.

O repórter não desliga a câmera e segue até sua personagem principal, assim

consegue-se ver a receptividade e o estranhamento que ele causa na família. Já no dia

seguinte, Dona Helena aparece sentada em uma cadeira de plástico, na sacada de sua casa.

Suas mãos brincam com o tecido da camiseta enquanto seu olhar parece procurar algo no

horizonte. Enquanto ela fala com Nachbin, imagens de seu rosto cobrem o discurso,

mostrando o olhar desatento ou talvez a preocupação. Quando ela diz que trabalhou em uma

comunidade, as imagens passam a ser de pessoas caminhando próximo à casa da parteira.

Rapidamente o enquadramento foca a janela da casa onde está dona Helena e ela observa o

horizonte como alguém que repousa para apreciar o mundo.

A utilização desses detalhes na narrativa descreve a particularidade dos personagens.

As rugas no rosto de dona Helena certamente são diferentes das que se encontram na senhora

que possui mais condições financeiras e vive em um centro metropolitano. Como disse

Castro (2005), no capítulo 3, quem escreve e organiza o texto precisa prestar atenção em

todos estes detalhes, nas expressões e nos elementos insubstituíveis, pois eles são densos de

significados e revelam uma gama de informações.

Quando a narração entra informando sobre os índices de partos naturais no Amapá, as

cenas se constituem de lindas imagens do Oiapoque, algumas valorizando a mata, outras o rio

e o lúdico da água em movimento. Dona Helena volta a ter voz e explica como foi o início do

ofício. Ao término da fala, uma trilha traz junto a si uma sensação estranha, como se algo de

ruim viesse a acontecer. A impressão é reforçada com imagens de pingos de chuva caindo do

teto da casa. A cena se afasta e mostra a casa de parteira em um plano aberto, por entre a

mata, de vários ângulos diferentes.

As imagens do céu escuro e da chuva voltam quando Nachbin, na narração, diz que a

cesariana passa ser indicada quando há risco para a mãe ou para a criança. Os tons de cinza

apagados representam esse risco e preocupação. O jornalista fala que dona Helena segue os

sinais e a cena escura da noite é desfocada, dando lugar à uma pequena queda de água que

aparece em primeiro plano. Nota-se que quando Nachbin narra estatísticas positivas as

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imagens concentram-se na beleza do sol sobre a mata e o rio e quando ele introduz assuntos

um pouco mais densos a cena é ilustrada com imagens do céu escuro e da chuva.

Dona Helena, instigada pelo jornalista, começa a falar das dores que Mara está

sentindo durante a gestação. Enquanto isso, no vídeo, é a gestante quem aparece. Mara entra

na conversa e conta a história do marido, Rubens. Durante todo o tempo em que ela fala, as

imagens são intercaladas entre ela e Rubens para que o telespectador entenda sobre quem ela

está contando.

As imagens de dona Helena, enquanto ela fala, alternam entre a gravação em tempo

real e de espera, as quais mostram a parteira dentro de casa ou sentada na sacada. Neste

momento, ela aparece em uma rede de balanço conversando com Nachbin. Os pés movendo-

se um sobre o outro e de um lado para o outro, na tentativa de balançar um pouco o corpo,

juntam-se à trilha e chamam um respiro à narrativa. Uma criança varrendo a casa ganha foco,

depois um bebê brincando. Tudo para ilustrar os mais de quarenta descendentes vindos ao

mundo pelas mãos da parteira.

Nachbin conversa com dona Helena durante o dia, mas as imagens utilizadas para

cobrir são de cenas que mostram a casa da parteira ou o céu escuro do anoitecer no Oiapoque.

É como se a narrativa buscasse um tom de suspense para se sustentar até o final, entretendo

ao mesmo tempo em que informa. Em entrevista, Nachbin diz que “a programação pode ter

conteúdo e ao mesmo tempo ser entretenimento, ser atrativa para um público” (NACHBIN,

2012).

Enquanto ela fala de Mara, é a gestante quem aparece no vídeo, desta vez iluminada

pelo sol. A chuva aparece de novo enquanto eles conversam. O som da água batendo na

mata, a voz de dona Helena e a trilha misturada ao choro de criança. As cenas escuras e

pesadas dão lugar ao sol que ilumina Mara para logo na sequência serem abatidas pela chuva.

A impressão que se tem é de que a gestante resgata o brilho do sol em um lugar onde a chuva

e o tempo fechado insistem em aparecer.

A parteira, com sua própria fala, chama a neta à narrativa. Ela primeiro é introduzida

pelas imagens do bebê, a filha que segue com ela em um carrinho. A narrativa conduzia a

história para casais que se separam e acabam abandonando os filhos ou com a mãe ou com a

avó. Quando o bebê aparece em cena, é nítida a relação de mãe solteira.

Gisele entra em enquadramentos mais abertos e depois fechados, com foco no rosto.

Ela fala e chama à narrativa a avó Helena, que aparece sentada dentro de casa, com as mãos

apoiadas sobre a mesa. Nachbin mostra as mãos da parteira, mãos que já trouxeram ao

mundo cento e cinquenta e duas crianças e que carregam uma aliança de casamento, muito

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embora não se tenha tocado no assunto para saber o que houve com o marido de dona

Helena.

O primeiro bloco encerra com a parteira confessando estar com medo de fazer o parto

da nora. Mara aparece no canto esquerdo do vídeo, de costas, esperando um de seus dois

filhos que está vindo ao seu encontro. O segundo bloco volta com uma música mixada e

imagens da cidade do Oiapoque, ilustradas por pessoas andando com mercadorias de um lado

para o outro, alto-falantes pendurados nos postes e um dia ensolarado. A princípio, essa

sequência é quase que incompreensível, ela parece estar deslocada do restante do episódio.

Depois encontra-se o sentido. Era a estação da rádio local, onde Nachbin estava se

preparando para dar uma entrevista.

Na própria entrevista Nachbin fala de dona Helena. Enquanto ele conta a história e

explica o que está fazendo no Oiapoque, imagens do rosto e mãos de dona Helena preenchem

a tela. Eles conversam dentro de um barco, sobre o rio que separa o Brasil da Guiana

Francesa. Em nenhum momento foi mencionado como o deslocamento era feito de uma

cidade à outra, mas a impressão que se tem aqui é de que o barco é um meio de transporte

muito usado.

A utilização de imagens que estimulem o pensamento do telespectador a criar pontes

que unam os fios soltos da narrativa é a dose ponderável de liberdade, defendida por Lima

(2009), que Nachbin assume. Nem tudo precisa ser descrito ou narrado, até mesmo porque o

mundo da literatura abre a possibilidade de se lidar com o imaginário e criar os sentidos que

não se constituíram por completo.

A paisagem volta e meia toma conta da cena. A chuva vem de novo e as imagens

concentram-se nos pingos fortes que caem sobre a mata, o rio e as casas de madeira. Nachbin

vai até o construtor de barcos que, segundo dona Helena, também é parteiro. O jornalista

grava ele trabalhando no meio da água do rio, embaixo da chuva. O homem fala um pouco de

sua profissão e as imagens o mostram de perto limpando o barco, esculpindo detalhes na

madeira. Nachbin segue o parteiro até sua casa. As imagens ilustram o homem caminhando

na frente. Sem preocupação, os pés andam sobre tábuas afastadas que formam uma espécie

de passarela. A casa é simples, de madeira. As crianças andam de um lado para o outro, sem

poder fazer muito por causa da chuva.

A imagem de um gato, sentado na varanda de uma casa, no chão de madeira, faz a

narrativa voltar à dona Helena. A trilha é quase que permanente. A cena é cheia de tons de

cinza, agrupando sombras logo nos primeiros planos e captando a luz somente na parede que

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aparece ao fundo. Os lençóis vermelhos estendidos no varal dão vida e cor à ilustração. Dona

Helena aparece em outro enquadramento, beija um dos descendentes e entra em sua casa.

Eles conversavam novamente sentados em torno da mesa. A toalha azul florida

mistura-se aos tons de azul da camiseta da parteira. Nachbin foca as mãos de dona Helena,

estendidas sobre a mesa, como se fossem revelar algum segredo. A imagem volta ao rosto de

dona Helena e depois inclui o bebê na conversa, focando a barriga de Mara.

Imagens do rio, do lado de fora da casa de Mara e dona Helena, do céu escurecendo e

do matagal que cerca as moradias de madeira ilustraram a narrativa que surgiu na sequência.

No dia seguinte, dona Helena aparece sentada na sacada de casa, junto a alguns netos. É o dia

do parto e Mara caminha sem rumo dentro de casa. Dona Helena mostra o pequeno relógio

que utiliza para marcar o tempo das contrações. Na sequência, exibe um líquido preparado

para causar mais dor na gestante. Ela vai balançando a bebida, para misturar bem os

ingredientes.

Essa presença constante dos detalhes que falam é mais uma forma de deixar os

personagens se manifestarem. É também uma tendência da grande reportagem, que,

conforme Kotscho (2001), rompe os organogramas e as regras, introduzindo um espírito de

aventura, romancismo, entrega e amor.

Quando Mara entra em trabalho de parto, a narrativa muda um pouco seu ritmo,

abrindo mais espaço ainda ao som ambiente e aos personagens. O repórter grava os detalhes,

como as mãos de Mara buscando conforto na cabeceira da cama, seu caminhar entre uma

tentativa e outra mal sucedida, a carícia passada ao bebê por meio dos toques na barriga.

Dona Helena prepara uma banqueta para Mara sentar. O ventilador está ligado, mas

mesmo assim a gestante respira ofegante em meio à escuridão do quarto. Nachbin interrompe

a narrativa com imagens. Ele filma a janela de casa, mostrando o céu azul por entre as

sombras do interior da casa. O jornalista busca, por entre as frestas, os raios que antes

iluminavam a gestante. O simbolismo que essas imagens representam é como se uma palavra

abstrata fosse inserida ao texto. Para Chaui (1995), no capítulo 3, o simbólico carrega

diferentes significados, muitas vezes subjetivos, e é a representação real da linguagem que

comunica. A autora explica que a linguagem, seja ela expressa por meio de palavras ou no

nível simbólico, coloca o homem em relação com o ausente, e isso faz com que ela seja

inseparável da imaginação.

Na sequência, as mãos de um homem aparecem tecendo uma rede de pesca. Tudo

indica ser o Rubens, que ainda não estava em casa naquele momento. A trilha lembra as

dores e os medos do parto e a cena volta para dentro de casa, onde mais uma mulher aparece

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para ajudar. A sombra do homem tecendo a rede volta a ser o plano principal do

enquadramento e logo em seguida o rosto de Mara aparece. Sem qualquer palavra, a narrativa

faz um jogo de cenas para mostrar o comportamento, tanto do pai quanto da mãe da criança,

no momento da chegada de um filho.

Uma única nuvem escura no meio do céu azul deixa a casa sem muita iluminação. O

quarto onde a gestante está permanece escuro também, com janelas fechadas. As cenas se

intercalam entre o lado de fora e de dentro de casa, o que possibilita notar o passar das horas.

A neta de dona Helena prepara um café com manteiga. Uma maleta com a palavra ‘parto’

aparece no enquadramento e a voz de dona Helena ao fundo passa as orientações à Mara. Um

lençol é estendido no chão do quarto.

Mara volta à cozinha, junto com dona Helena e Gisele. Elas parecem aplicar algum

medicamento na gestante. A cena tem um enquadramento aberto, o que não possibilita ver

direito o que as três estão fazendo. Neste momento Nachbin narra sua preocupação por conta

da interferência, o que faz com ele automaticamente se afaste um pouco da cena principal. A

chuva aparece de novo. Mara tenta mais uma vez dar à luz. Deitada no chão, o que se pode

ver são suas mãos agarradas nas costas de uma mulher e o que se pode ouvir é o esforço

contínuo que ela faz para que o bebê nasça.

Rubens está em casa. Ele aparece cabisbaixo, sentado num canto da sala, ouvindo os

gritos de Mara. A parteira também não para de falar. Ela passa o tempo todo orientando a

gestante sobre o modo de respirar e pedindo para que ela faça mais força. As imagens

externas mostram que a noite se aproxima. A parteira e as duas ajudantes trabalham para que

o bebê nasça. Uma luz no meio de um plano totalmente escuro ganha e perde foco. Quando a

cena volta, Mara já está em um carro sendo levada ao hospital.

A descrição desses elementos, no caso por meio da imagem e sem o uso de palavras,

toma para si todo o processo subjetivo e de construção de significação. De acordo com

Genette (1976), é possível descrever sem narrar e mesmo assim encontrar significados. A

análise comprova a afirmação, pois somente com os detalhes a história pode ser

compreendida. O autor defende ainda que a descrição atiça a imaginação e o olhar reflexivo,

fazendo com que o receptor capte e compreenda a mensagem.

Logo na entrada do hospital, Nachbin grava o relógio e registra o momento em que

Mara chegou, muitas horas depois de iniciar o trabalho de parto. Rubens e dona Helena são

barrados na porta que dá acesso aos quartos. O hospital é, na verdade, uma unidade de

emergência. Enquanto o jornalista conversa com dona Helena, cenas do hospital e do rosto da

parteira cobrem a fala. Ela parece preocupada, cansada e um tanto decepcionada. Ao receber

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  117  

a notícia da chegada da neta, Nachbin faz questão de mostrar a felicidade de dona Helena,

que vibra sorrindo.

Um efeito escurece a cena para mudar o cenário. Mara aparece em casa, com o bebê

no colo. O mesmo recurso é utilizado novamente para dar lugar à imagem de Luís Nachbin,

que navega de volta para casa. Ele narra suas reflexões e conclusões a cerca do episódio.

Outra vez, a imagem dissolve-se em preto para ressurgir com Mara, desta vez amamentando

Rubia. A cena vai desaparecendo aos poucos e se transformando em preto, e é assim que o

episódio termina.

Quando a imagem primeiro dissolve-se em preto para dar lugar à outra cena, o

repórter já indica que o episódio está se encaminhando para o fim. São efeitos ou técnicas

que se diferem da descrição pelo uso da imagem, mas que comunicam e informam ao mesmo

tempo. Os detalhes e o uso do simbólico para transmitir uma mensagem abrem uma gama de

diferentes interpretações, possibilitando a cada telespectador a construção de significados

distintos. A sensação pode ser comparada à leitura de um livro, em que cada leitor cria a cena

e os personagens de acordo com sua própria imaginação.

6.4 O TEMPO DA HISTÓRIA

O tempo de uma grande reportagem difere das produções diárias do jornalismo tanto

em produção, quanto em gravação e edição. No geral, os episódios do Entre Fronteiras

levaram de duas a três semanas para serem pré-produzidos e produzidos, envolvendo o tempo

de pesquisa. Conforme Nachbin (2012), as gravações são feitas em uma semana e a pós-

produção, que envolve a decupagem do material coletado, o roteiro e a edição, gira em torno

de cinco semanas.

O jornalista explica que o tempo do Partejar foi um pouco atípico e diferenciou-se

dos demais por causa da dificuldade de encontrar um parto que fosse possível de ser

registrado. O repórter recebeu a notícia de que o parto estava para acontecer e se deslocou até

o Oiapoque o mais rápido que pode. O bebê, porém, demorou um pouco para nascer, o que

possibilitou o convívio com os personagens por um tempo maior.

O nascimento da criança foi outro fator que tornou o tempo da história muito

improvável. Além da demora na produção em função de encontrar um personagem, sabia-se

que as gravações dependiam do tempo da criança, de quando ela resolvesse vir ao mundo.

Esse tempo maior que o jornalista teve de convívio com os personagens foi fundamental para

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  118  

a construção da grande reportagem, que não conseguiu documentar, de fato, o nascimento do

bebê.

O tempo que Nachbin reservou para Mara e dona Helena durante o trabalho de parto

poderia ter sido insuficiente caso o bebê tivesse nascido diante das câmeras, o que

impossibilitaria inserir todos os momentos e personagens que compuseram o episódio.

Mesmo sem filmar o nascimento de Rubia, o repórter pode explorar a realidade de uma

parteira do Amapá e dos personagens que a cercam. Embora pareça, o clímax não estava

centrado no parto em si, mas sim na chegada de um novo descendente.

Indubitavelmente, se o jornalista pretende entreter e informar, ele precisa prender a

atenção do leitor até o último instante, e isso quase que o obriga a deixar o nascimento da

criança para o fim da reportagem. Para Genette (1976), a técnica está muito ligada a ordem

cronológica que a narrativa segue. O autor defende que contar uma história depende de uma

sequência de ações simultâneas responsáveis por conduzir o receptor pelo caminho dos fatos

narrados.

Essa sequência de ações é facilmente identificada no audiovisual. Nachbin inicia a

reportagem mostrando o deslocamento até o Oiapoque e depois apresenta dona Helena. As

conversas também seguem uma ordem cronológica, pois o jornalista faz questão de mostrar o

momento em que chega à casa de dona Helena no início do dia e a hora em que vai embora, à

noite. Algumas ações isoladas à narrativa principal são introduzidas, fazendo com que as

sequências percam certa rigidez. Logo, porém, a fala dos personagens ou a narração do

repórter recupera a história e puxa a narrativa de volta ao seu caminho original.

Essa ida e vinda de acontecimentos ocorre também pela dificuldade de expor

elementos pluridimensionais de forma linear. Enquanto uma determinada ação acontece em

um determinado lugar, em outro lugar específico uma ação diferente acontece

concomitantemente. Não é possível transpor, por meio da narrativa, esses dois fatos que

aconteceram ao mesmo tempo, pois são duas dimensões independentes a serem retratadas.

Sendo assim, busca-se a ligação dos fatos por meio do fio condutor sustentado pela narrativa.

A história é então guiada pela narrativa e construída pelos personagens, que também

demandam de tempo para informar e registrar seus costumes, crenças e cultura. Ter o tempo

de ouvir o que o outro quer dizer e ter o tempo de colocar o personagem no vídeo por um

período maior é uma possibilidade aberta apenas às produções que fogem do hard news.

Dona Helena, enquanto conversava com o jornalista sobre seu neto Rubens, não

aguentou as lágrimas ao lembrar que não tinha notícias da filha, mãe do Rubens. Ouvir o

choro, entender o motivo e vê-la amparada por Nachbin ocupou um tempo precioso quando

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  119  

se trata de televisão. A cena poderia ter sido facilmente retirada, mas optou-se por valorizar o

personagem e o momento.

Nachbin postula que escolher o que vai preencher os vinte e poucos minutos

disponíveis é um eterno desafio. No processo de roteirização e edição, o princípio básico é

partir da ideia de não querer colocar tudo. “Ao meu ver é um problema constante do hard

news querer passar muita informação em pouco tempo e aí a audiência absorve muito pouco,

tende a absorver muito pouco quando há um exagero, uma overdose de informação. A gente

quer se aprofundar” (NACHBIN, 2012).

Entretanto, para aprofundar o conteúdo é preciso tempo para a pesquisa, produção,

gravação e edição, o que não se tem no hard news. De acordo com Kotscho (2001), o perfil

de reportagem analisada significa um investimento muito grande, tanto no sentido financeiro,

para a empresa, quanto em termos humanos, para o repórter. “Há cada vez menos repórteres

dispostos a encarar o desafio de entrar de cabeça num assunto, esquecer tudo o mais para, no

fim, ter o prazer de contar uma boa história” (KOTSCHO, 2001, p. 71).

Desta forma, observa-se que a grande reportagem audiovisual e o episódio Partejar

apresentam uma preocupação e um trabalho que vai muito além do que pode ser observado

de imediato enquanto mero telespectador. A valorização e o aprofundamento do conteúdo se

unem à preocupação de dar voz aos personagens e ao mesmo tempo de não sobrecarregar o

público de superficialidades.

Há o cuidado com a estética da imagem, das cores, dos enquadramentos e do som.

Valoriza-se a fala dos personagens junto ao áudio ambiente e à trilha, e em nenhum momento

verificou-se ruídos quanto a questões sonoras. A apuração detalhada e a descrição por meio

do vídeo possibilitaram a inserção da poética na narrativa jornalística, ou o jornalismo se

apropriou da narrativa literária para contar uma boa história.

Com o término da análise, o próximo capítulo encarrega-se de apresentar as

considerações finais a cerca do estudo realizado. É possível também responder a questão

norteadora da pesquisa e confirmar ou não as hipóteses lançadas.

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7 CONSIDERAÇÕES FINAIS

O estudo realizado com o objetivo de identificar como é possível dar voz às pessoas

nas grandes reportagens audiovisuais mostrou que a realização desse tipo de material

depende muito da ideologia do canal e do envolvimento do repórter. Assim como a empresa

precisa estar preparada para financiar os altos custos e aguardar por um período mais longo a

chegada do material, o jornalista precisa estar pronto para desvencilhar-se de suas próprias

crenças. Só assim ele será capaz de ouvir e entender o outro sem julgamentos.

O estudo foi motivado pela superficialidade que há na televisão brasileira e pela

crença na possibilidade de se fazer um jornalismo que valorize a fala do personagem, as

histórias que ele tem a contar, sua experiência de vida, sua cultura, costumes e relatos.

Acredita-se que este estilo jornalístico é uma forma de cumprir com o compromisso social da

profissão, podendo ser também uma maneira de denunciar os problemas socioeconômicos

vividos pelos cidadãos.

Com o objetivo de trabalhar o jornalismo que valoriza o lado humano e social e que

aprofunda o conteúdo transmitido, realizou-se uma pesquisa bibliográfica sobre gêneros no

jornalismo televisivo brasileiro. Observou-se que, muito embora autores trabalhem o conceito

de hibridismo, cada vez mais presente nos programas televisivos, a classificação ainda é

mantida como principal fator de identificação pelo público. Prova disso é o próprio episódio

Partejar, que apresenta características tanto de documentário quanto de grande reportagem.

O que permite defini-lo como grande reportagem é a narrativa, que não é constituída

pela ficção. Em nenhum momento, durante o episódio, a ficção ganhou espaço, pois a

preocupação intensificou-se em contar a história do outro, mostrar o modo de vida do outro.

Para isso, a reportagem agregou junto ao texto o discurso, a descrição, a literatura. Estes

elementos que se juntam à narrativa surgem para qualificar o produto e torná-lo mais atraente

ao telespectador.

Junto ao jornalismo, a narrativa literária oferece certa liberdade para se trabalhar

acontecimentos reais e pluridimensionais por meio da linearidade do texto. A narrativa

literária mostra um estilo de jornalismo sofisticado e com apuração profunda, visto que os

detalhes e o silêncio fazem a diferença. Não é por ser mais poético que ele se desprende de

suas qualidades, pelo contrário, é então que elas se intensificam.

É notável a diferença do envolvimento que o profissional do jornalismo tem quando

procura trabalhar e aprofundar melhor o conteúdo. Além de eternizar os personagens nas

gravações a na memória do público que acompanhou suas histórias, o jornalismo que se

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apropria da narrativa literária conta a história por meio do tempo presente. O jornalismo é,

portanto, uma forma de documentar e deixar registrado a história de um povo e as culturas e

crenças que o cercam em um determinado período.

A análise do episódio Partejar, do programa Entre Fronteiras, mostrou a

preocupação dispendida pelo jornalista em conhecer o outro e permitir que o personagem

mesmo contasse o que considerava relevante do ponto de vista dele. As interferências do

repórter foram mínimas e se mostraram essenciais na tentativa de guiar a conversa para dar

conta do assunto chave – o parto natural.

Com isso, pode-se comprovar a hipótese de que o programa Entre Fronteiras utiliza o

jornalismo narrativo para dar voz às pessoas, permitindo que elas contem suas histórias sem

interferência arbitrária. Nachbin permite que dona Helena fale sobre suas preocupações que

não têm relação com o parto de Mara e a ampara quando ela se põe a chorar. As inserções

feitas pela narração também não são arbitrárias. Elas invadem a reportagem para

contextualizar e lançar estatísticas gerais ou reflexões pessoais do repórter.

A presença do jornalista junto à família da parteira representa sim uma interferência,

visto que a gestante não conseguiu ter o bebê em casa e deixou clara sua preocupação com

quem partiu de tão longe para gravar o parto. Nachbin era a figura de um estranho, do sexo

masculino, num momento tão íntimo da mãe e da criança. Dona Helena também fala sobre a

frustação de não ter realizado o parto na frente das câmeras. Mesmo assim, considera-se

natural a presença do repórter.

A interferência de Nachbin fez-se necessária para conseguir consolidar um produto

jornalístico por meio da narrativa literária. Captar os detalhes é como apurar as informações,

é tão necessário quanto a história em si. Enquanto fazia as gravações, o jornalista procurou se

inserir o máximo na família, pedindo até mesmo para ser adotado como filho e neto por dona

Helena. A ação mostra-se uma tentativa clara de tornar os acontecimentos o mais natural

possíveis e de deixar o outro simplesmente falar o que considerar necessário.

A segunda hipótese pode ser comprovada pelas falas e atitudes dos personagens ao

longo da grande reportagem e pela entrevista concedida por Nachbin. Portanto, o jornalismo

narrativo modifica tanto o entrevistado quanto o repórter, não necessariamente em níveis

iguais. O contato que o jornalista tem com os personagens durante as gravações é intenso e

assume um período mais longo do que o usual. No caso de Partejar, foram cerca de 15 dias

de acompanhamento. É muito difícil não agregar nenhum sentimento novo depois de tanto

tempo de convívio.

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  122  

Na entrevista realizada com Nachbin, ele afirma sempre agregar algo novo depois de

ter contato com os personagens. Em algumas histórias ele sabe definir exatamente o que

muda quando compara o antes e o depois, mas em outros casos considera o sentimento difícil

de ser definido em palavras. No caso de Partejar, Nachbin diz não saber verbalizar o que o

episódio trouxe, mas garante ser algo fortificante e que o fez terminar as gravações em estado

de graça por causa do convívio prazeroso com os personagens.

Dona Helena e sua família, do outro lado, acolheram e aceitaram o acompanhamento

de um dos momentos mais marcantes na vida de uma mãe. Rubia e seu nascimento

certamente serão sempre lembrados pela presença de Nachbin. O repórter tornou-se tão

próximo que dona Helena permitiu que ele fosse um membro da família. A parteira e a

gestante, no momento do parto, mostravam-se mais preocupadas com a gravação do que com

a própria saúde de Mara e do bebê.

É interessante pensar também que dificilmente dona Helena fará outro parto

acompanhado por um jornalista, o que aumenta as chances da família lembrar da presença de

Nachbin. Outro fator que pode ter agregado conhecimento à dona Helena e Mara é o próprio

processo de gravação. Poucas pessoas têm acesso ao que está por trás das câmeras, ainda

mais quando se trata de uma região como o Oiapoque. O modo como elas passaram a ver a

televisão depois do episódio pode também representar uma mudança. De uma coisa, porém,

tem-se certeza: Rubia é a menina que veio ao mundo pelas lentes das câmeras de Nachbin,

mesmo que o parto em si não tenha sido gravado.

A terceira e última hipótese, a qual diz que o jornalismo narrativo é uma alternativa

para ampliar o mercado de trabalho jornalístico, também pode ser confirmada. O perfil de

jornalismo analisado neste estudo é uma alternativa para canais que buscam sair da

superficialidade do jornalismo e do bombardeio diário de notícias em busca da reflexão e da

informação aprofundada.

O próprio Nachbin acredita que o uso da narrativa literária no jornalismo seja sem

dúvida uma opção para a televisão deixar de ser superficial. O objetivo é entreter para fisgar

o público e ao mesmo tempo informar, característica do Partejar e do hibridismo de gêneros.

O perfil jornalístico mostra-se também uma alternativa para o público diferenciado, que

busca conteúdo e qualidade ao invés de quantidade. O investimento de canais nacionais em

produções locais e a importação desse tipo de conteúdo é uma prova de que o material vende,

embora ainda não tenha muito espaço no Brasil.

As três hipóteses lançadas serviram como base para que se respondesse a questão

norteadora do trabalho, que se propunha a dizer como o programa Entre Fronteiras

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consegue dar voz às pessoas por meio das grandes reportagens audiovisuais? Com a

análise, pode-se ver que o desafio maior do programa é justamente conseguir dar voz às

pessoas e que as ações são uma tentativa constante de alcançar o objetivo.

Inúmeras são as vezes em que, ao longo do programa, os personagens tomaram conta

da narrativa com o uso do discurso. Deixar o personagem falar sem interferir é uma das

maneiras de dar à voz. Quando alguém começa a contar uma história, é preciso dar a ele o

tempo de construir o início, o meio e o fim, pois a fala do personagem é que vai constituir a

narrativa, visto que ele detém o conhecimento e a experiência sobre determinado assunto.

Outra maneira é mostrar ao máximo que a presença da câmera e de um estranho não

devem interferir no relacionamento da família. O fato de Nachbin se inserir na comunidade e

na casa de dona Helena como um amigo próximo que resolveu passar uns dias no Oiapoque

facilita a naturalidade das cenas e das falas. A própria ida do jornalista, sozinho, à casa da

parteira, sem uma equipe acompanhando, sem a preocupação com posições e luzes, com

cinegrafistas que muitas vezes não interagem com as fontes e criam um clima desconfortável,

também influencia. O ambiente natural faz com que as pessoas se sintam a vontade para

tomar a conversa.

Embora o repórter tenha feito algumas comparações dos acontecimentos que

ocorreram ao longo das gravações com fatos de sua própria vida, essas inserções foram feitas

durante o processo de edição do material, quando tudo já havia sido produzido e gravado.

Durante as filmagens, é notável a preocupação em ocupar o menor espaço possível, desde as

perguntas até a aparição em cena.

Com as constatações, pode-se dizer também que se conseguiu alcançar os objetivos

propostos, que se concentravam em analisar como as pessoas ganham voz nas grandes

reportagens audiovisuais; avaliar o papel do jornalismo na sociedade; investigar como se dá a

construção narrativa na grande reportagem audiovisual; e identificar na programação

televisiva brasileira um formato diferente de jornalismo audiovisual que consiga dar voz às

pessoas por meio da grande reportagem.

A pesquisa, assim, mostrou-se de grande importância por estudar aspectos do

jornalismo muito pouco trabalhados no dia-a-dia e na própria academia. Sabe-se que o

jornalismo tradicional dificilmente vai perder espaço nas grandes mídias, pois ele é

consolidado e se sustenta pelo interesse constante do público em se manter atualizado vinte e

quatro horas por dia.

Entretanto, a alternativa de sair do jornalismo tradicional e encontrar histórias que

retratem a realidade de um povo de maneira aprofundada tende a ser uma nova possibilidade

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de produto no mercado. Isso porque o público politizado cresceu muito nos últimos anos e

este perfil de pessoas procura conteúdos que alcancem melhor qualidade e reflexividade.

Espera-se que o trabalho contribua para os futuros profissionais da área questionarem-

se sobre seu papel social enquanto jornalistas. Almeja-se também contribuir para que os

estudos relacionados ao uso da narrativa literária pelo jornalismo sejam aprofundados e que a

crença de que descrever e acrescentar detalhes é apenas uma forma de tornar o conteúdo mais

bonito esteticamente seja desmistificada.

Sabe-se também que a pesquisa realizada não se esgota aqui. Há inúmeros outros

elementos presentes na narrativa literária adotada pelo jornalismo que precisam ser estudados

e aprofundados. Um deles é a própria interferência do repórter no processo de gravação da

grande reportagem. Até onde a presença de um estranho é aceitável para que se possa contar

uma boa história? O jornalista pode se inserir na reportagem como um terceiro personagem e

fazer uma relação de sua vida com aquilo que lhe foi apresentado pelas fontes? O

profissionalismo permite agregar novos valores e sentimentos?

A narrativa literária no jornalismo abre espaço para inúmeras discussões. A ligação

que o lado profissional tem com o pessoal, para mim, certamente é inquestionável. O

profissional de jornalismo que não se deixa tocar pela história do outro dificilmente será

capaz de tocar o telespectador.

Ao conviver com novas pessoas, diferentes culturas e ideologias, carrega-se um pouco

de cada valor percebido ao longo do caminho e o sentimento pelo outro já não é mais o

mesmo de quando não se tinha noção sequer de sua voz. É preciso ser muito frio para que a

convivência não lhe traga emoções e lembranças, e isso, de certa forma, não é ser um bom

profissional, principalmente para quem precisa lidar diariamente com seres humanos e

sentimentos.

O próprio estudo monográfico, que detém o pesquisador de contato com os

personagens, gerou certa mudança no modo de ver as pessoas. A análise sobre o

comportamento de dona Helena, sua família e Nachbin faz com a intimidade existente entre o

pesquisador e os personagens pareça ser maior. Se antes o olhar aos personagens era tido

como uma forma de compreender a história, agora há primeiro o sentimento de respeito e

carinho pela simpatia de seres humanos cheios de experiência e histórias para contar.

Desta forma, pode-se dizer que o jornalismo trabalhado junto à narrativa literária é

uma maneira de registrar no presente a eternidade das histórias. Os acontecimentos contados

pela simplicidade de personagens anônimos e dotados de conhecimento são a representação

de um povo, de uma cultura, de uma nação. Se o jornalismo é um fato contado por múltiplas

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  125  

facetas, não há nada melhor do que ouvir boas histórias traduzidas pela voz de personagens

que deixam marcas no público. Se a história não emocionar, ou ela não é uma boa história ou

ela não foi bem contada.

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ANEXOS