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Número 14 – Maio/Agosto de 2014 A Promoção da Saúde Vocal na Perspectiva Ergonômica A necessidade premente de se pensar a prática docente como uma atividade laboral, que, assim como as demais, necessita de gerenciamento realizado com base em uma interação dialógica entre gestores das áreas da Saúde e da Educação e professores, para que seja capaz de propiciar mudanças positivas no ambiente escolar e assegurar ao trabalhador docente saúde e qualidade de vida, remete às condições do trabalho docente e sua relação com o processo saúde-doença. Pensar na promoção da saúde do trabalhador na perspectiva da ergonomia vai muito além da transmissão de normas técnicas de segurança e conforto. Significa conceber o trabalho em sua complexidade na busca por compreender o sentido das estratégias realizadas pelo trabalhador, valendo-se de um diálogo participativo, para lidar com as inúmeras variáveis que permeiam as situações de trabalho e o tornam o principal protagonista de todo o processo. A Saúde do Trabalhador, na transversalidade de suas ações, tem o objetivo de vencer desafios na promoção à saúde e transformar positivamente o cenário no campo do trabalho. É com essa perspectiva que a abordagem diferenciada proposta pela ergonomia em muito poderá contribuir revelando a dimensão humana do trabalho – condição fundamental à implementação de ações de promoção à saúde, adequadas à realidade do trabalhador. Mas o que é ergonomia? A ergonomia nasceu nos anos 1940, durante a Segunda Guerra Mundial, por conta da necessidade de responder a questões importantes levantadas por situações de trabalho insatisfatórias (WISNER,1994). Tem sido reconhecida na luta pela saúde dos trabalhadores à medida que preconiza a adaptação do trabalho ao trabalhador e contribui para a melhoria das condições de trabalho e redução de acidentes (ABRAHÃO, 2000 apud COUTINHO, 2012). Existem diversas definições de ergonomia. Todas, entretanto, ressaltam o caráter interdisciplinar e o objeto de seu estudo, que é a interação entre o homem e o trabalho no sistema homem-máquina-ambiente (IIDA, 2005). A Associação Brasileira de Ergonomia (Abergo) conceitua a ergonomia como o estudo das interações das pessoas com a tecnologia, a organização e o ambiente, objetivando intervenções e projetos que visem melhorar, de forma integrada e não dissociada, a segurança, o conforto, o bem-estar e a eficácia das atividades humanas. A ergonomia inicia-se com o estudo das características do trabalhador para, depois, projetar o trabalho que ele consegue executar preservando sua saúde. Tem, portanto, uma visão ampla e abrange atividades de planejamento e projeto, que ocorrem antes do trabalho realizado, e aqueles de controle e avaliação, durante e após esse trabalho (IIDA, 2005).

Número 14 – Maio/Agosto de 2014 A Promoção da Saúde Vocal ... · (Cesteh/ENSP/Fiocruz). Contato: [email protected] | pstrab@saude ... especialista em ... A perspectiva

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Número 14 – Maio/Agosto de 2014

A Promoção da Saúde Vocal na Perspectiva ErgonômicaA necessidade premente de se pensar a prática

docente como uma atividade laboral, que, assim como as

demais, necessita de gerenciamento realizado com base

em uma interação dialógica entre gestores das áreas da

Saúde e da Educação e professores, para que seja capaz

de propiciar mudanças positivas no ambiente escolar e

assegurar ao trabalhador docente saúde e qualidade

de vida, remete às condições do trabalho docente e sua

relação com o processo saúde-doença.

Pensar na promoção da saúde do trabalhador na

perspectiva da ergonomia vai muito além da transmissão

de normas técnicas de segurança e conforto. Significa

conceber o trabalho em sua complexidade na busca por

compreender o sentido das estratégias realizadas pelo

trabalhador, valendo-se de um diálogo participativo,

para lidar com as inúmeras variáveis que permeiam as

situações de trabalho e o tornam o principal protagonista

de todo o processo.

A Saúde do Trabalhador, na transversalidade de suas

ações, tem o objetivo de vencer desafios na promoção

à saúde e transformar positivamente o cenário no

campo do trabalho. É com essa perspectiva que a

abordagem diferenciada proposta pela ergonomia em

muito poderá contribuir revelando a dimensão humana

do trabalho – condição fundamental à implementação

de ações de promoção à saúde, adequadas à realidade

do trabalhador.

Mas o que é ergonomia?

A ergonomia nasceu nos anos 1940, durante a

Segunda Guerra Mundial, por conta da necessidade

de responder a questões importantes levantadas por

situações de trabalho insatisfatórias (WISNER,1994).

Tem sido reconhecida na luta pela saúde dos

trabalhadores à medida que preconiza a adaptação do

trabalho ao trabalhador e contribui para a melhoria das

condições de trabalho e redução de acidentes (ABRAHÃO,

2000 apud COUTINHO, 2012).

Existem diversas definições de ergonomia. Todas,

entretanto, ressaltam o caráter interdisciplinar e o objeto de

seu estudo, que é a interação entre o homem e o trabalho

no sistema homem-máquina-ambiente (IIDA, 2005).

A Associação Brasileira de Ergonomia (Abergo)

conceitua a ergonomia como o estudo das interações das

pessoas com a tecnologia, a organização e o ambiente,

objetivando intervenções e projetos que visem melhorar,

de forma integrada e não dissociada, a segurança, o

conforto, o bem-estar e a eficácia das atividades humanas.

A ergonomia inicia-se com o estudo das características

do trabalhador para, depois, projetar o trabalho que ele

consegue executar preservando sua saúde. Tem, portanto,

uma visão ampla e abrange atividades de planejamento

e projeto, que ocorrem antes do trabalho realizado, e

aqueles de controle e avaliação, durante e após esse

trabalho (IIDA, 2005).

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Boletim elaborado pelo Centro de Referência em Saúde do Trabalhador do Estado do Rio de Janeiro (Cerest/Sesdec-RJ) e oExpediente

Centro de Estudos da Saúde do Trabalhador e Ecologia Humana/Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca/Fundação Oswaldo Cruz (Cesteh/ENSP/Fiocruz). Contato: [email protected] | [email protected]

Presidente da Fiocruz: Paulo Ernani Gadelha Vieira Diretor da ENSP: Hermano Castro Coordenador do Cesteh: Antônio Sérgio Almeida FonsecaFonoaudiólogas do Cesteh: Márcia Soalheiro e Lucelaine Rocha

Designer gráfico: Tatiana Lassance | Revisora: Ana Lucia Normando

Secretário de Saúde: Marcos Esner Musafir Superintendente de Vigilância Epidemiológica e Ambiental: Alexandre Otávio Chieppe Subsecretária de Vigilância em Saúde: Hellen Harumi Miyamoto Divisão de Saúde do Trabalhador e coordenador do Cerest do Estado do Rio de Janeiro: Jorge de Almeida CurcioFonoaudiólogas do Cerest do Estado do Rio de Janeiro: Cláudia D’Oliveira, Fernanda Torres e Eliane Simões

A prevalência de distúrbios vocais entre os pro-

fessores, justificada quase sempre por condições

físicas e organizacionais desfavoráveis, coloca-os

como profissionais de alto risco à instalação e

desenvolvimento de agravos à sua saúde. Entretanto,

a causa do adoecimento vocal não remete somente à

materialidade do fazer, em que e como fazer (RIBEIRO,

2013), mas sobretudo às relações sociais intrincadas

na complexa e dinâmica realidade do trabalho.

O trabalhador docente inserido nesse novo contexto

sócio-econômico-político encontra-se exposto às cargas

física, psíquica e emocional demasiadas, que implicam

adoecimento temporário e até mesmo definitivo, incapa-

citando ao exercício de sua atividade laboral.

Segundo Ribeiro (2013), com poucas exceções, as

abordagens seguem o escopo da Medicina Ocupacional,

com foco de atenção para identificar o nexo de causalidade

por meio da identificação de fatores de risco, mensuração de

absenteísmo e instrumentalização de intervenções tópicas.

Com relação ao trabalhador docente, o Ministério

da Saúde reconhece que a Escola pode representar um

relevante papel na concretização de ações de promoção

à saúde, por entender que, além da função pedagógica,

desempenha importante função social e política voltada

para a transformação da sociedade. Assim, os processos

educativos têm como eixos a construção de vidas mais

saudáveis e criação de ambientes favoráveis à saúde

(Secretaria de Políticas de Saúde/MS, 2002).

O fonoaudiólogo, na qualidade de profissional

especialista em distúrbios da comunicação humana,

neles incluído o de voz, pode contribuir de forma

significativa para a mudança positiva do trabalho em

âmbito escolar, estabelecendo critérios importantes como

caracterização do tipo de ruído predominante em sala de

aula, características da voz do professor, distância entre o

professor e seus alunos, tipo de distribuição das cadeiras

dentro da sala e aspectos da sala como piso, parede,

ventilação, entre outros (AUAD, 2007).

Convém destacar, entretanto, que não basta apenas

intervir nas condições de trabalho; há de se intervir nos

aspectos organizacionais (LACAZ, 2000) que condicionam

a atividade docente a extensas jornadas de trabalho sob

alta demanda física, vocal, psíquica e emocional, com

prejuízo de sua saúde e qualidade de vida.

Sobre a organização do trabalho nas escolas, Noronha

et al. (2008) destacam que os procedimentos pedagógicos

apresentados pela gestão, desvinculados da realidade da

vida escolar, retratam o desconhecimento das condições

reais de trabalho e suas dificuldades, além das estratégias

usadas pelos professores para superá-las. E esse

distanciamento revela a desvalorização do professor como

trabalhador/educador, inviabilizando medidas eficazes na

solução dos problemas encontrados.

A abordagem do processo de trabalho da atividade

docente e sua relação com a saúde, na perspectiva da

Ergonomia, articulam-se aos fundamentos do Campo da

Saúde do Trabalhador, em que o conhecimento do trabalho

real e a participação ativa do trabalhador são condições

imprescindíveis ao planejamento e realização de ações

de promoção à saúde.

A perspectiva ergonômica na promoção da saúde vocal em âmbito escolar

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A lista dos Cerests Regionais do Rio de Janeiro está disponível no endereço eletrônico: http://portal.saude.gov.br/portal/arquivos/pdf/lista_cerest_0904_rj.pdf

Cerests no Estado do Rio de Janeiro

A Vigilância em Saúde do Trabalhador (Visat) é um dos

campos da vigilância em saúde, cuja característica singular

de intervenção é a ação transformadora dos ambientes e

processos de trabalho no sentido da promoção da saúde.

Tem como estratégia elementar a interdependência dos

profissionais de saúde com os trabalhadores, com base

nas possibilidades institucionais de regulação e proteção

voltadas às relações técnicas e sociais do trabalho.

Entretanto, a fragilidade do processo de informação e de

participação dos trabalhadores ainda representa desafio

a esse importante campo da saúde pública (MACHADO

IN GOMEZ et al., 2011).

Para Machado (2005), as bases conceituais que fun-

damentam as práticas cotidianas em vigilância na Saúde

do Trabalhador precisam ser revistas e avaliadas em um

contexto social mais amplo, com base nas políticas públi-

cas e ações implementadas, para que possam ajustar-se

aos princípios de transversalidade, intersetorialidade e

interdisciplinaridade de suas ações.

Assim, a participação e o acompanhamento perma-

nente dos trabalhadores que fundamentam as ações

da Visat são coerentes com as práticas da Ergonomia,

que enfatiza a interação dialógica com o trabalhador –

condição necessária ao conhecimento da situação real

dos processos de trabalho e das formas encontradas pelos

trabalhadores para lidar com as variáveis de toda ordem

que permeiam a complexa atividade de trabalho.

As ações de Vigilância em Saúde do Trabalhador, eixo

principal da Política Nacional da Saúde do Trabalhador

e da Trabalhadora (Portaria MS n. 1823 de 23/08/2012),

têm como estratégia a intersetorialidade por meio do

fortalecimento das Comissões Intersetoriais em Saúde

do Trabalhador (CIST) e das Comissões Intergestores

Regionais (CIR) – importantes instâncias de vigilância nas

quais os atores sociais e profissionais da saúde participam

da pactuação de decisões que venham a promover a saúde

nos ambientes e processos de trabalho.

Ressaltando a importância do conhecimento in loco da

situação real de saúde do trabalhador e da sistematização

e análise dessas informações, em diferentes esferas de

gestão do SUS, a Portaria MS n. 1823 de 23/08/2012,

que institui a Política Nacional do Trabalhador e da

Trabalhadora, prevê:

“A análise da situação de saúde dos trabalhadores

visa subsidiar o planejamento e a tomada de

decisão dos gestores nas diversas esferas do SUS,

assim como servir aos interesses e necessidades

dos trabalhadores e da população. Além disso,

deve subsidiar a permanente avaliação das

políticas públicas e privadas, das empresas, dos

trabalhadores e seus sindicatos, contribuindo

inclusive na revisão, atualização e proposição de

normas técnicas e legais. Para tal, as informações

devem ser oportunas, fidedignas, inteligíveis e de

fácil acesso.”

(Anexo I – Elementos Informativos da Política Nacional

de Saúde do Trabalhador e da Trabalhadora).

Portanto, as interfaces entre o Campo da Saúde do

Trabalhador e a Ergonomia, cujos princípios convergem

para a mudança dos processos de trabalho, a partir

da articulação interativa entre o saber acadêmico e a

experiência dos trabalhadores, certamente, poderão

contribuir com as ações de vigilância para obter a

promoção e proteção da saúde do trabalhador.

Os fundamentos ergonômicos e as ações de vigilância em Saúde do Trabalhador

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A NR17 na Saúde do Trabalhador: aspectos legais

Com relação à implantação de políticas públicas de Ergonomia na Saúde do Trabalhador, pode-se dizer que,

historicamente, as ações estiveram restritas à inspeção do trabalho, cujo foco era a proteção individual do trabalhador

(OLIVEIRA et al. IN GOMEZ et al., 2011).

A norma brasileira que trata da Ergonomia (NR-17), publicada na Portaria n. 3751, de 23/11/90, insere, no texto legal

brasileiro, o item organização do trabalho. Essa importante alteração foi o resultado de uma intensa dinâmica social e da

detecção de uma “epidemia” de tenossinovite ocupacional em digitadores. A inclusão da organização do trabalho como

aspecto a ser analisado na avaliação das condições de trabalho possibilitou não apenas melhor avaliação ergonômica,

mas também sua utilização em uma perspectiva voltada para os objetivos da Saúde do Trabalhador (OLIVEIRA et al. IN

GOMEZ et al., 2011).

Os mesmos autores supracitados argumentam que a Ergonomia deve ser pensada no contexto da globalização,

construindo-se mecanismos de regulação necessários à produção com qualidade e sem adoecimento, privilegiando-se o

trabalho integrado, o respeito às formas de contratação dispostas na legislação e as boas condições de trabalho.

Com relação ao trabalho em telemarketing, a NR17 traz avanços na legislação desde 02/04/2007 (Diário Oficial da

União) ao adicionar de forma inovadora aspectos sobre saúde e voz, incluindo capacitação, hidratação, saúde vocal e

vigilância à saúde, parâmetros que podem servir de referência para outros profissionais da voz, dentre eles o professor

(SERVILHA et al., 2010).

Conclusão

Os processos educativos de promoção à saúde devem ter por foco as condições ambientais e organizacionais de

trabalho, bem como as estratégias implementadas pelos trabalhadores docentes para lidar com os imprevistos que surgem

no cotidiano das situações de trabalho.

O processo dialógico e participativo entre trabalhadores – incluindo aqui toda a comunidade em questão – e gestores,

articulado às ações de vigilância, ainda é uma meta a ser alcançada e indica que as bases atuais no Campo da Saúde do

Trabalhador precisam ser revistas.

O entendimento de que o trabalho deve ser pensado de acordo com os fundamentos da ergonomia representa um

avanço na compreensão da relação existente entre a saúde e os processos de trabalho, resultando em importantes

conquistas para o trabalhador docente.

A participação da Fonoaudiologia na abordagem interdisciplinar das questões ergonômicas pertinentes ao trabalho

do profissional da voz implicará no conceito ampliado de saúde vocal e permitirá estabelecer novas prioridades às ações

de promoção e proteção à saúde de forma diferenciada, viabilizando, assim, a realização de melhorias necessárias à

construção de ambientes de trabalho mais saudáveis.