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Titular da cátedra William Wyse de An- tropologia Social da Universidade de Cambridge, mistress de Girton College e ex-presidente da European Associa- tion of Social Anthropologists, Marilyn Strathern tem exercido uma influência decisiva sobre os rumos contemporâ- neos de nossa disciplina. Seus aportes à etnologia melanésia, aos estudos das relações de gênero, à teoria da troca e do parentesco e à antropologia da mo- dernidade tardia fizeram escola e cria- ram polêmica. Dona de um estilo analí- tico denso e original, em que as tradi- ções antropológicas britânica e ameri- cana se fundem em uma síntese crítica catalisada pelo contradiscurso feminis- ta, Marilyn Strathern é, indiscutivel- mente, a principal responsável pela re- novação, a partir dos anos 80, do pro- grama teórico da antropologia britânica. Marilyn Strathern esteve no Brasil em setembro de 1998, a convite do Nú- cleo de Estudos de Gênero da Unicamp. Visitou também, então, o Museu Nacio- nal, ocasião em que concedeu esta en- trevista a Eduardo Viveiros de Castro e Carlos Fausto. Viveiros de Castro Talvez pudéssemos começar por uma questão relativa a sua trajetória intelec- tual. Você se formou em um dos centros clássicos da chamada “antropologia so- cial britânica”, a Universidade de Cam- bridge, mas minha impressão é que seu trabalho tem um estilo muito diferente daquele típico de tal tradição. Gostaría- mos de saber como você tomou as deci- sões teóricas responsáveis por essa di- ferença. Strathern Como você bem sabe, tais decisões nun- ca são decisões teóricas… Elas são o re- sultado de uma série de fatores, e eu provavelmente só conseguiria falar de um ou dois deles. Mas suponho que is- so já quer dizer que eu concordo com sua caracterização. Deve-se apenas ter em mente que a antropologia, na Grã- Bretanha em todo caso, mudou, e não tenho tanta certeza de estar muito dis- tanciada dos colegas que trabalham atualmente em Cambridge. Não vou contar a história toda; dei- xem-me apenas evocar uma ou duas coisas que me passaram pela cabeça enquanto você falava. A primeira é que entre 1960 e 1963, quando eu era aluna de graduação em Cambridge, estáva- mos no momento culminante do debate contrapontístico entre Edmund Leach e Meyer Fortes. Tínhamos duas salas de aula, uma quase ao lado da outra, cha- madas de Sala Norte e de Sala Sul – e era quase como se você pudesse ir a uma e ouvir Edmund, passar para a ou- tra e ouvir Meyer. Não era exatamente assim, pois a grade horária não era des- se jeito, mas tinha-se uma sensação muita viva do debate. Aquela era a épo- ca em que Meyer estava consolidando o seu Kinship and the Social Order; ele ENTREVISTA NO LIMITE DE UMA CERTA LINGUAGEM Marilyn Strathern MANA 5(2):157-175, 1999

No Limite de Uma Certa Linguagem. Marilyn Strathern

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Titular da cátedra William Wyse de An-tropologia Social da Universidade deCambridge, mistress de Girton Collegee ex-presidente da European Associa-tion of Social Anthropologists, MarilynStrathern tem exercido uma influênciadecisiva sobre os rumos contemporâ-neos de nossa disciplina. Seus aportes àetnologia melanésia, aos estudos dasrelações de gênero, à teoria da troca edo parentesco e à antropologia da mo-dernidade tardia fizeram escola e cria-ram polêmica. Dona de um estilo analí-tico denso e original, em que as tradi-ções antropológicas britânica e ameri-cana se fundem em uma síntese críticacatalisada pelo contradiscurso feminis-ta, Marilyn Strathern é, indiscutivel-mente, a principal responsável pela re-novação, a partir dos anos 80, do pro-grama teórico da antropologia britânica.

Marilyn Strathern esteve no Brasilem setembro de 1998, a convite do Nú-cleo de Estudos de Gênero da Unicamp.Visitou também, então, o Museu Nacio-nal, ocasião em que concedeu esta en-trevista a Eduardo Viveiros de Castro eCarlos Fausto.

Viveiros de CastroTalvez pudéssemos começar por umaquestão relativa a sua trajetória intelec-tual. Você se formou em um dos centrosclássicos da chamada “antropologia so-cial britânica”, a Universidade de Cam-bridge, mas minha impressão é que seutrabalho tem um estilo muito diferente

daquele típico de tal tradição. Gostaría-mos de saber como você tomou as deci-sões teóricas responsáveis por essa di-ferença.

StrathernComo você bem sabe, tais decisões nun-ca são decisões teóricas… Elas são o re-sultado de uma série de fatores, e euprovavelmente só conseguiria falar deum ou dois deles. Mas suponho que is-so já quer dizer que eu concordo comsua caracterização. Deve-se apenas terem mente que a antropologia, na Grã-Bretanha em todo caso, mudou, e nãotenho tanta certeza de estar muito dis-tanciada dos colegas que trabalhamatualmente em Cambridge.

Não vou contar a história toda; dei-xem-me apenas evocar uma ou duascoisas que me passaram pela cabeçaenquanto você falava. A primeira é queentre 1960 e 1963, quando eu era alunade graduação em Cambridge, estáva-mos no momento culminante do debatecontrapontístico entre Edmund Leach eMeyer Fortes. Tínhamos duas salas deaula, uma quase ao lado da outra, cha-madas de Sala Norte e de Sala Sul – eera quase como se você pudesse ir auma e ouvir Edmund, passar para a ou-tra e ouvir Meyer. Não era exatamenteassim, pois a grade horária não era des-se jeito, mas tinha-se uma sensaçãomuita viva do debate. Aquela era a épo-ca em que Meyer estava consolidandoo seu Kinship and the Social Order; ele

ENTREVISTA

NO LIMITE DE UMA CERTA LINGUAGEM

Marilyn Strathern

MANA 5(2):157-175, 1999

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estava preparando suas Morgan Lectu-res, e estava realmente implementandoseu próprio paradigma1. Ao mesmotempo, Edmund tinha acabado de es-crever Pul Eliya2; ele estava, além disso,regurgitando Lévi-Strauss, de quemnos apresentou algumas das idéias, viaseus próprios interesses na noção de ta-bu e tudo o mais que vocês sabem. Ed-mund era ainda o responsável por umfascinante seminário (para o terceiroano da graduação) sobre Malinowski;tivemos um trimestre inteiro dedicadoaos trabalhos de Malinowski, que foimuito estimulante.

Bem, tudo o que eu tenho vontadede dizer agora pode acabar soando des-leal. Eu era muito fiel a Meyer, mas es-tava fascinada por Edmund…

Viveiros de CastroOs estudantes estavam divididos emfortesianos e leachianos?

StrathernNão, institucionalmente era mais comoum banquete em que se saboreava oque se quisesse. Mas pessoalmente,penso que era mais ou menos isso queacontecia, sim. Vocês provavelmentesabem que o primeiro trabalho, por as-sim dizer, que eu e Andrew [Strathern]escrevemos foi publicado em um livroorganizado por Edmund3.

Bem, isto sobre a primeira coisa queme ocorreu. A segunda é que eu me ca-sei quase imediatamente após terminara graduação; casei-me naquele verão,logo antes de ir para a Papua-NovaGuiné. Assim, o primeiro trabalho decampo foi feito, na verdade, junto comum companheiro e colega. Mantínha-mos um diálogo contínuo, um debate…concordávamos e discordávamos. Per-gunto-me se isso não terá sido um dosfatores, o fato de o meu trabalho tersempre um debate como pano de fun-

do. Entretanto, o primeiro livro que es-crevi era um livro tímido, ortodoxo, to-talmente ortodoxo: Women in Betweené um produto absoluto do pensamentoortodoxo de Cambridge. Lendo-o, nãose divisa nenhum sinal do que viria de-pois. The Gender of the Gift, é claro,“desescreve” Women in Between, as-sim como After Nature “desescreve”Kinship at the Core4.

O que foi realmente uma escolhateórica deliberada, feita por Andrew epor mim mesma, foi termos ido para aPapua-Nova Guiné, em vez de ir para aÁfrica. Acho que a expectativa geralera que fôssemos para a África, poisAndrew era orientando de Jack Goody.Mas naquela época estavam aparecen-do as primeiras etnografias das TerrasAltas da Nova Guiné, as de Salisbury ede Marie Reay – e isso foi como um so-pro de ar fresco.

Viveiros de CastroNenhum de seus professores em Cam-bridge trabalhava na Nova Guiné?

StrathernHavia Reo Fortune, mas Reo há muitose afastara da antropologia. Ele se con-sumia em sua querela com Malinowski;o único tema de que era capaz de falarem suas aulas era o fato de que Mali-nowski se havia enganado quanto aonúmero de esposas do chefe de Omara-kana...

Decidimos, assim, ir para a Papua-Nova Guiné, e de início pensamos naárea dos Orokaiva, em Mount Laming-ton. Mas a coisa não deu certo, e acaba-mos não indo. Decidimo-nos, então, pe-las Terras Altas, de modo que ter idopara Mount Hagen foi apenas umaquestão de dar um passo para o lado,por assim dizer. Vejam que estou ten-tando achar razões para ter havido pas-sos naturais…

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Bem, acho que vocês precisam sa-ber um pouco de minha história pes-soal. Nós, Andrew e eu, fizemos traba-lho de campo juntos. Então interrompe-mos o trabalho de campo e fomos paraCanberra, onde ficamos cinco meses;depois voltamos à Nova Guiné; depoisretornamos à Inglaterra. Eu conseguium emprego no museu [em Cambrid-ge]; Andrew escreveu sua tese de dou-torado e obteve uma fellowship em Tri-nity College. Então, em 1969, ele deci-diu ir para Canberra, para a ANU [Aus-tralian National University], no gozo deuma fellowship; e, assim, entre 1969 e1976 estávamos ou na Austrália ou emPapua-Nova Guiné. Como vocês sabem,ele se mudou para a Papua-Nova Gui-né em 1972, assumindo a cátedra de an-tropologia na UPNG [University of Pa-pua New Guinea], e passamos assim arealmente viver na Papua-Nova Guiné.

Creio que esse afastamento de Cam-bridge foi, na verdade, muito importan-te. Nesse período de ausência, começoua antropologia feminista. Isto é real-mente relevante, pois a antropologia fe-minista nos sintonizava com certos de-bates que não tomavam os paradigmasantropológicos como autoevidentes. Taisdebates exigiam uma fundamentação apartir de um outro conjunto de ques-tões. E assim comecei a ler. De fato, es-crevi nessa época, lá por 1973, um livroque nunca foi publicado, sobre homense mulheres.

Foi isso que gerou aquele tipo detriangulação que se vê em The Genderof the Gift. Como digo logo no começodo livro, há ali a teoria antropológica,há a informação etnográfica, e há, en-fim, a produção feminista. Não sei bemcomo formular isso. Mas todos nós te-mos dúvidas quanto à utilidade de nos-so próprio trabalho, quanto ao público aque ele se dirige; todos nos pergunta-mos se o que estamos fazendo vale al-

guma coisa. Na verdade, acho que adepressão e a dúvida que acompanhamqualquer trabalho são realmente criati-vas, pois elas nos fazem escutar outraspessoas. Se você é demasiado confian-te, se tudo o que você consegue ver évocê mesma, você termina sendo umabarreira, fechada à comunicação. Porisso, ter estado aberta para esse outrodomínio significou que eu estava sem-pre jogando as certezas antropológicascontra as incertezas feministas ou vice-versa. Isto se tornou realmente impor-tante para mim, porque os dois pólos dateoria antropológica e da etnografia, es-tes se consomem mutuamente, eles seentre-canibalizam. Por isso, um terceiropólo…

Viveiros de CastroVocê experimentou a explosão feminis-ta como um desafio teórico, como umdesafio político, ou como ambos?

StrathernFoi sobretudo um desafio teórico, por-que a política não me surpreendia: eusempre considerara tudo o que se refe-ria às mulheres como interessante e sig-nificativo. Minha mãe foi uma feministaantes do feminismo. Nos anos 50, elaera professora de inglês, dava aulas deeducação para adultos, ensinava sobreas mulheres e a arte, as mulheres nahistória e assim por diante, de modoque cresci tendo essas coisas por evi-dentes. Quando o feminismo aconteceu,tomei-o igualmente como natural; eleparecia apenas se encaixar, digamosassim, no que eu já estava fazendo. Masao mesmo tempo, do ponto de vista teó-rico, ele claramente colocava uma quan-tidade de questões para a antropologia.

Eu também conto sempre, é claro, ahistória de como Annette Weiner, noseu livro Women of Value, Men of Re-nown5, disse que não havia nada publi-

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cado a respeito de mulheres na Papua-Nova Guiné, exceto o livro de MarilynStrathern – o que era uma pena, diziaela, pois M. Strathern escreveu de umponto de vista masculino… E foi assimque comecei a ter que repensar.

FaustoVocê acha que ela tinha razão?

StrathernNão, claro que não. Mas levei de 1976,quando li a crítica, a 1981, quando dei aMalinowski Lecture6, para responder aela. Levei cinco anos…

FaustoPara digeri-la?

StrathernNão conseguia digeri-la; ela ficou atra-vessada na minha garganta… Enfim,àquela altura o feminismo tinha entra-do em meu horizonte, ele era certamen-te um desafio teórico. Muito bem, volteià Inglaterra; e o que havia acontecido?Duas coisas. Primeiro, o estruturalismotinha decolado para valer. Se você olharos trabalhos de Christine e StephenHugh-Jones, verá que eles são o produ-to daquele estruturalismo integral quese ensinava, então, em Cambridge7.

Viveiros de CastroEnsinado principalmente por quem?Leach?

StrathernSim, por Leach. Quase exclusivamente,eu diria. Muito bem. Quando retorna-mos à Inglaterra em 1976, Andrew foiocupar sua cátedra no UCL [UniversityCollege London], mas ficamos morandoem Cambridge, e me associei ao GirtonCollege, embora não tivesse um empre-go naquele momento. O estruturalismotinha acontecido, dizia eu. A segunda

coisa que tinha acontecido era o mar-xismo. Aquilo me desorientou. De re-pente, eu não sabia onde estava o focode interesse. Este não era tanto o casoem Cambridge, pois na verdade não ha-via ninguém no Departamento de An-tropologia de Cambridge – e esta é umadas coisas estranhas de sua história –que fosse um antropólogo marxista pra-ticante. Mas o marxismo estava no Uni-versity College, certamente, e na LSE[London School of Economics], e em tu-do que se pegasse e lesse; ele estava noar, estava na sociologia e na ciência po-lítica, e em outras áreas da universidade.

Enfim, qualquer sentimento de terfeito um trabalho completo na NovaGuiné foi totalmente solapado por essesdesenvolvimentos ocorridos na minhaausência, mas que me diziam algumacoisa, pareciam-me interessantes. Atécerto ponto – e eu não reagi na hora, le-vei alguns anos –, alguns aspectos deThe Gender of the Gift são o resultadoda convição de que certos tópicos queestavam sendo desenvolvidos sob a ru-brica da antropologia marxista deviamentrar na minha paisagem geral da Me-lanésia. E, assim, foi uma questão depreencher minhas lacunas. (O que es-tou tentando mostrar são todos os pon-tos em que lacunas e descontinuidadesapareceram em minha carreira, pois foiali que precisei saltar…)

Viveiros de CastroVocê mencionou três eventos que ocor-reram no final dos anos 60 e começo dos70: o movimento feminista, o marxismoe o estruturalismo. O feminismo lhe al-cançou na Austrália; o marxismo e o es-truturalismo, apenas quando você vol-tou a Cambridge?

StrathernSim, embora, no caso do estruturalismo,as bases houvessem sido lançadas an-

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tes por Edmund, mas elas então não es-tavam completamente desenvolvidas.

Viveiros de CastroDesses três paradigmas, você diria queo estruturalismo é o menos visível ouexplícito em sua obra?

Strathern(Pausa) Sim, certamente. Nunca penseinesse assunto. Sim.

Viveiros de CastroIsto foi uma provocação minha, poisconcordo com Alfred Gell8, quando esteescreveu que seu trabalho manifestauma profunda inspiração estruturalista,ainda que você nunca tenha usado ojargão da escola. Você dialoga direta-mente com temas marxistas e feminis-tas, enquanto o estruturalismo pareceser uma fonte silenciosa.

StrathernSim, pois ele me serve em meu traba-lho mais como uma técnica que comouma teoria; ele é um conjunto de tru-ques mentais. Nunca fiz o que JimmyWeiner9 fez, por exemplo, como se de-bruçar sobre o conteúdo de textos par-ticulares e submetê-los à análise siste-mática. Lancemos um véu piedoso so-bre o lado linguístico de minha antro-pologia…

FaustoVocê não acha que a ênfase nas rela-ções em detrimento das substâncias éum ponto central do estruturalismo?

StrathernSim, mas para mim isso é uma ferra-menta implícita. É uma técnica irrefutá-vel de apreensão dos fenômenos que eununca submeti ao tipo de crítica que elaexigiria, se a estivéssemos consideran-do como uma teoria.

Viveiros de CastroVoltando a sua narrativa…

StrathernOK. Então, eu estava de volta a Cam-bridge em 1976. Deve ter sido por voltade 1978 que li The Invention of Culture,e aquilo foi como uma porta se abrin-do10. Não porque eu o entendesse…Acho que devo ter entendido uns dezpor cento. Mas ali onde eu o entendia, eespecialmente ali onde ele se aplicavaà etnografia com que eu estava familia-rizada, as intuições de Wagner eramabsolutamente espantosas. Os poucosmomentos de compreensão que eu ti-nha eram totais. Obviamente, fiquei in-trigada quanto ao modo como ele ha-via chegado àquelas coisas; comecei atomar emprestado dele… A primeiramanifestação disso é, se não me enga-no, minha contribuição à coletânea Na-ture, Culture and Gender, que é quan-do começo a me referir explicitamentea ele11.

Viveiros de CastroMas você conhecia seu trabalho ante-rior, não?

StrathernEu tinha lido The Course of Souw, masnão havia conseguido terminá-lo12. Oque é embaraçoso é que Wagner estavaescrevendo esse livro enquanto eu es-crevia Women in Between, notem bem;The Curse of Souw estava vinte anos àfrente… Só bem mais tarde fui capaz deapreciá-lo, através da experiência mui-to particular que foi ler The Invention ofCulture.

Viveiros de CastroMas como foi sua recepção às idéias deSchneider? – pois afinal Wagner é umdiscípulo de Schneider. O que se pen-sava em Cambridge da antropologia

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americana, e especialmente da varianteschneideriana?

StrathernSchneider era absolutamente execrado.Ele era desprezado; era o exemplo detudo o que havia de errado com a antro-pologia americana. Aquela era a épocaem que Jack Goody estava em plena as-censão; ele assumiu o manto, e tambéma detestação de Schneider; Schneiderera completamente trivializado13. Foiuma certa pirraça de minha parte, su-ponho, abraçar as idéias de Schneidernaquele momento, pois foi então tam-bém que eu estava elaborando os mate-riais de Audrey Richards e fazendo otrabalho sobre Elmdon14. A crítica deAnnette Weiner tinha me abalado tantoque eu abandonara tudo que dizia res-peito à Melanésia; não suportava pen-sar sobre coisas melanésias, assim fui efiz o trabalho sobre Elmdon. A idéia deuma análise cultural me inspirava bas-tante. Agora já superei essa minha faseculturalista, e estou de volta à análisesocial, mas naquela época a idéia deuma análise cultural me era muito ins-piradora.

Viveiros de CastroMas você chegou aos trabalhos deSchneider sobre parentesco via sua lei-tura de Wagner ou porque você estavaembarcando no projeto de Elmdon?

StrathernPor causa do projeto de Elmdon. Eu bus-cava algo na antropologia que pudesseusar. E não havia nada. Eu não podiausar nada do que havia sido produzidopelo pessoal de Cambridge, aquilo sim-plesmente não me dizia nada, ao passoque Schneider fazia todo sentido. O fa-to de Schneider ter tomado como seussímbolos nucleares as noções de “natu-reza” e “direito”15 coincidia com meu

interesse na questão da oposição natu-reza/cultura no contexto da Nova Gui-né. Houve assim um cruzamento.

Mas foi enfim, creio, com uma certasensação de estar fazendo pirraça quesegui Schneider – ou melhor, com umasensação de liberdade. Vocês devem terem mente que eu vivia uma situaçãocompletamente periférica, naquele mo-mento. Andrew tinha seu trabalho emLondres, eu tinha filhos pequenos, viviaem Cambridge, não tinha emprego, eraum fellow informal [bye fellow] em Gir-ton, onde fazia um pouco de supervi-são, mas sem receber nada16. Eu erainstitucionalmente marginal. Isto signi-ficava que eu podia ser eu mesma, fa-zer o que queria realmente fazer. Foiassim que Schneider entrou na história,e que ele foi uma influência importantepor um longo período.

Viveiros de CastroIsto foi no final dos anos 70, correto?Você diria que Kinship at the Core eraum livro completamente culturalista,schneideriano? Depois houve aqueladécada admirável em sua carreira, queculminou com The Gender of the Gift.

StrathernNão sei muito bem o que dizer sobreminhas relações com a antropologiaamericana. Pergunto-me se o que sepassou comigo não foi um pouco como,penso, o que ocorre no Brasil, com vo-cês lendo várias línguas, tomando coi-sas de fontes múltiplas, e talvez não sesentindo muito metropolitanos? Nãosei. Quero chamar a atenção para o pa-pel desempenhado por um certo senti-mento de inadequação; porque se pen-samos que, de alguma forma, não en-tendemos bem as coisas, isso nos põeconstantemente em alerta. Suponhoque o que você chamou de década ad-mirável foi o período em que se colocou

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para mim uma quantidade de questõesque, subitamente percebi, eu necessita-va compreender – questões que, se eutivesse tido algum treinamento em filo-sofia, não teria sequer ousado abordar.Acabei fazendo tudo sozinha, tudo foifeito em casa… E foi assim com a ques-tão das relações sujeito/objeto, e natu-reza/cultura, e que diabo são relaçõesde produção – e assim por diante. Tudoisso me parecia enormes obstáculos in-telectuais que eu precisava enfrentar.

FaustoThe Gender of the Gift foi um momentocrucial em sua carreira. Foi então quevocê deixou de ocupar, como você esta-va dizendo, uma posição marginal nomundo universitário?

StrathernSim, mas isto aconteceu um pouco an-tes. The Gender of the Gift foi direta-mente o resultado de um convite querecebi de Berkeley para dar quatro con-ferências. Aquele era o momento emque eu queria juntar algumas questõesfeministas a algumas questões antropo-lógicas. A base do livro era o problema:uma década de produção feminista fezalguma diferença no modo como as et-nografias são produzidas? As quatroconferências são o núcleo da primeiraparte do livro: grupos de descendência,trabalho, produtividade. Nesses quatrocapítulos críticos eu estava tentando in-dicar o que havia de sistematicamenteerrado com a narrativa e a análise etno-gráficas: meu diagnóstico, como vocêsse recordam, foi que tudo derivava deuma certa visão das relações de gêneroque derivava, por sua vez, daquilo quevim a chamar de “commodity thinking”[um modo de pensar marcado pela ca-tegoria da mercadoria].

As conferências de Berkeley foramministradas em 1984. Retornei à Ingla-

terra, e àquela altura estava ficandoclaro que eu teria que me divorciar deAndrew Strathern – o que acabei fazen-do. Eu não tinha nenhum emprego naacademia. Tornei-me fellow de TrinityCollege por um ano, e fui então convi-dada a ser a chefe do Departamento deAntropologia em Manchester. A segun-da versão de The Gender of the Gift foiescrita em Manchester. É importantemencionar que, em 1986, Roy Wagnerveio passar um trimestre em Manches-ter, como professor-visitante; ele foiuma grande influência na fase final deredação do livro.

Viveiros de CastroComo você começou seu trabalho sobreo parentesco euro-americano? Você nosfalou como The Gender of the Gift “de-sescreveu” Women in Between. Comose deu a “desescritura” de Kinship atthe Core que resultou em After Nature?

StrathernIsto foi algo que, acho, já falei em Cam-pinas. Tudo começou com um telefone-ma de alguém (que depois se tornouuma colega) que dizia que iria haverum debate em King’s College (Londres)sobre doação de óvulos. O que estavaem discussão era a doação de óvulosentre irmãs, algo que todo mundo con-cebe como um ato de altruísmo. Masaquela pessoa dizia que ela tinha vá-rias inquietações sobre essa prática,pois ela havia introduzido, na verdade,uma obrigação ali onde nunca tinha ha-vido obrigação, e assim por diante. Oque teria uma antropóloga a dizer so-bre a doação de óvulos entre irmãs?Bem, esta antropóloga que lhes fala nãotinha nada a dizer, e ela tampouco co-nhecia qualquer antropóloga/o que ti-vesse algo a dizer… Fiquei com aquilona cabeça, e comecei a pensar: o quevai ser de minha disciplina, se neste fi-

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nal do século XX, quando se pede a umantropólogo para comentar as práticascontemporâneas de parentesco, não háninguém capaz de dizer nada? E o as-sunto começou a me interessar.

Isto foi em 1987. Por essa época,exatamente dez anos depois de ler o li-vro de Roy Wagner, li um livro de Mi-chelle Stanworth, intitulado Reproduc-tive Technologies, uma coletânea deensaios de autoras feministas, mas quenão eram antropólogas – um dos pri-meiros livros sobre o assunto17. Naquelemomento eu estava começando a pen-sar nas Morgan Lectures. E, de repente,me pareceu que ali estava uma conexãoentre meu trabalho, ou meu interessenas questões relacionadas à natureza ecultura, biologia e sociedade, e essesdebates contemporâneos. Eu haviaachado um tema para as Morgan Lectu-res, que foram a base de After Nature 18.

Viveiros de CastroO que foi realmente crucial, parece-me,foi que as novas tecnologias reproduti-vas estimularam os antropólogos a le-var o parentesco moderno a sério. Atéentão, a cantiga dominante era: “o pa-rentesco não desempenha um papelimportante na sociedade contemporâ-nea etc.” Schneider era uma voz bas-tante isolada em sua insistência sobre oparentesco como dimensão central dacultura ocidental. Mas ele estava falan-do de cultura, não de sociedade. Vocêfez “cultura” significar “sociedade”.Como se deu esse deslocamento?

StrathernExatamente, é isso mesmo. Voltarei aesta última questão. Deixe-me antes re-tomar algo de que você falou há pouco.Você me fez pensar que, efetivamente,há um paralelo perfeito entre os proje-tos de After Nature e de The Gender ofthe Gift. Neste último, minha intenção

tinha sido: levemos a sério o argumentofeminista, segundo o qual ao se falarem gênero, está-se falando de socieda-de. Como seria, então, uma teoria socialdo gênero? Este é o tema da segundaparte do livro. Penso que fiz, como vocêdisse, exatamente o mesmo em AfterNature. Levemos a sério a hipótese, su-ponhamos que o parentesco seja tãocentral entre nós como é alhures – o queisso daria, o que isso faria ao conceitode parentesco? Foi aqui que tive de in-troduzir meu modelo merográfico, poisquando estamos diante de estruturascomplexas – como ensinaram nossoscolegas franceses – é preciso introduzirfatores extraparentesco. E foi essa des-coberta de que o parentesco era o pa-rentesco e os fatores extraparentescoque considero como uma espécie de pe-quena inovação minha.

Mas, ao contrário de The Gender ofthe Gift, havia um aspecto polêmico emAfter Nature. Tendo sido hóspede emPapua-Nova Guiné, eu achava que nãocabia polemizar com os materiais etno-gráficos. Em minha própria sociedade,por outro lado, eu me sentia livre parafazer o que bem entendesse.

FaustoVocê diria, então, que sua relação comos dados é distinta quando você traba-lha com a sociedade ocidental e quan-do o faz com a Melanésia? Como issoafeta o trabalho antropológico?

StrathernSim. No caso de minha própria socieda-de, eu podia tomar partido; eu podiaadotar uma visão parcial, pois podia es-perar que os leitores completassem oquadro. Tudo que eu precisava era serexplícita: vejam, esta é uma visão deuma pessoa assim da classe média etc.

Em After Nature, eu me sentia livredos constrangimentos. E havia uma in-

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tenção política por trás do livro. Na co-letânea de Michelle Stanworth, o queressaltava daqueles ensaios era o valorcentral atribuído à noção de escolha. Is-to, parecia-me, colocava de imediatouma questão política, pois o governoThatcher, naquele momento, estava in-vestindo pesado na idéia da “escolhado consumidor”: dispensem-se as insti-tuições, recrie-se o indivíduo como al-guém que faz escolhas… Como tantagente, eu estava muito irritada com is-so. E assim formulei a questão: comopode um chefe de governo dizer coisasdo tipo “não existe essa coisa chamadasociedade”?19 O que conspirou paraproduzir um governante que diz coisascomo esta? Só podia ser – nós todos. Dealguma forma, estávamos todos contri-buindo para essa afirmação. Onde, nacultura inglesa, eu podia achar um lu-gar que me permitisse identificar asidéias que levaram a uma afirmação co-mo essa? Bem, o parentesco é algo tãodistante da política ou do governoquanto se possa desejar. Se eu conse-guisse mostrar que, olhando para o pa-rentesco inglês, se podem achar asidéias e temas que sustentam aquelasidéias de Thatcher, então eu teria mos-trado como cultura é sociedade. Isto é,eu teria mostrado como, em qualquerdomínio em particular, se vai encontraro que está replicado alhures, em outrosdomínios – e se quisermos entender asociedade britânica, podemos fazê-loatravés do parentesco inglês. Esta foiminha espécie de mistura. Mas o livro étão difuso que não se adivinharia…

Viveiros de CastroNaquele debate de 1988 sobre o con-ceito de sociedade20, alguém levantou oproblema: muito bem, você está atacan-do a sociedade em nome da cultura, de-molindo o conceito de sociedade, masdeixando o conceito de cultura intacto.

Então você disse: não, tudo isso poderiase aplicar igualmente ao conceito decultura. Por vezes, tem-se a impressãode que você usa esses dois conceitosum contra o outro, mas se pusermos asduas críticas lado a lado, o que resulta?O que seria, aliás, uma “culturalidade”análoga à “socialidade”? … The Gen-der of the Gift é uma crítica ao conceitode sociedade, dito inaplicável ao con-texto melanésio.

StrathernSe quisermos entender o modo como osmelanésios pensam, sem dúvida ele éinaplicável.

Viveiros de CastroA crítica é feita em nome da cultura me-lanésia?

StrathernVocê está absolutamente correto. Meuponto era esse: a sociedade não é umingrediente dos universos conceituaisdaqueles povos.

Viveiros de CastroMas a noção de cultura é um ingredien-te desses universos?

StrathernNão, obviamente ele tampouco podesê-lo. OK, parece que estou fugindo daquestão. Mas para que servem essestermos? Eles não existem, não podemosnos sentar à volta de uma mesa e legis-lar sobre o que é natureza ou cultura,ou até que ponto uma se dissolve na ou-tra… A desconstrução, quando funcio-na bem, é móvel. Ela não fica paradaem uma posição. Ela é um processotemporal, você abre as coisas e elas sefecham novamente, você as abre de no-vo, elas se fecham, e assim por diante.Por isso, não me embaraça nem umpouco ter descartado um conceito em

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um contexto para, em seguida, usá-loem outro. Você perguntou: o que seriauma “culturalidade”? O problema coma noção de cultura, tal como a vejo, nãoé que ela precise de uma desconstruçãointerna, mas que ela foi excessivamenteusada: ela sofre de gigantismo, de ex-cesso. Ela é usada a todo propósito: acultura do estacionamento, a cultura dogravador… Assim, uma de suas carac-terísticas é a ubiqüidade, o fato de queela pode aparecer em qualquer contex-to. Bem, eu aproveitaria disso tudo algoque poderíamos chamar de replicação:o que faz um conjunto de configuraçõesdistinto de um outro é justamente quecertas conjunções, certas relações entreformas reaparecem, de modo a tornarfamiliares domínios diferentes. Assim,por exemplo, a noção de que as rela-ções mercantis são sempre distintas dasrelações não-mercantis é algo que sepode encontrar no direito, ou na vidafamiliar, ou nos desenhos de crianças…Eu diria que o análogo da noção gene-ralizada de socialidade, quando se estáfalando de cultura, seria essa noção dereplicação, e a questão seria quando sechega ao limite da replicação: quandoas coisas deixam de ser replicáveis,quando deixam de reaparecer, entãovocê está em outra…

Viveiros de CastroEssa é uma idéia que tem um papelcentral em seu Reproducing the Futu-re21, e que você também chamou, emThe Gender of the Gift, de “formas quese propagam”…

Strathern(Rindo) Você conhece bem meu traba-lho. Acho que devo lhe dar um presen-te. Se eu fosse um nativo de Mount Ha-gen, mataria um porco para você…

FaustoVocê estava dizendo que não se sentedesconfortável ao usar um conceitoaqui e outro ali, ou em sentidos diferen-tes, porque, afinal, isto seria uma espé-cie de estratégia retórica. Você é bas-tante explícita quanto a isso de ficçõesdiscursivas e estratégias retóricas emThe Gender of the Gift. Mas quais sãoos limites desse tipo de retórica? Pois,tanto quanto compreendo o seu traba-lho, não se pode dizer que você sejapós-modernista no sentido de estar di-zendo que tudo são representações derepresentações, e assim por diante. Afi-nal, você está sempre usando as estra-tégias retóricas para avançar argumen-tos substantivos sobre sociedade, gêne-ro, socialidade…

StrathernHá dois testes. Um é o teste óbvio deressonância com os dados etnográficos;ora, isto é, em si, uma ficção, pois os da-dos etnográficos são eles próprios pro-duzidos, e obviamente o são de modotal que respondam às perguntas que sevão fazer a eles; assim, isto é, até certoponto, uma câmara de eco. Eis por que,e este é o segundo teste, estou sempreatenta ao que outras pessoas disseram,de modo que há uma referência cons-tante a outros – não a outros grandespensadores ou teóricos, mas a outraspessoas que estão tentando utilizaridéias similares. Por isso, a polêmica ésempre muito importante em meu tra-balho, e o que faço com isso é ver comoas idéias são digeridas por outras pes-soas. Estou sempre envolvida em co-mentários, envolvida com o que ChrisGregory diz, ou Annette Weiner, ou De-borah Battaglia, ou James Carrier: pos-so estar contra ou a favor, isso é irrele-vante. O ponto é que tudo que faço oufiz foi, por assim dizer, uma transforma-ção ou deslocamento do que alguém já

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pensou. O que estou realmente dizendoé que pertenço a uma comunidade deantropólogos que compartilham umcerto número de pressuposições, e quenão faço mais que acrescentar uma tor-ção ao que já foi pensado por outrem.Esta é uma coisa bem khuniana… Vocême entende?

FaustoSim, eu estava tentando entender o pa-pel que a retórica desempenha em seutrabalho. Parece-me algo muito cons-ciente e elaborado.

StrathernTemo que, em parte – e isso não me dei-xa tão bem assim –, é uma questão deeu ser irresponsável; não reivindico res-ponsabilidade total pelo que estou fa-zendo, eximo-me, digo que o que estoufazendo é retórica. Isto é fugir. Goody jáme acusou de fugir, e tinha absoluta ra-zão. Mas ninguém gosta de admitir es-se tipo de coisa. Por outro lado, essa in-sistência na retórica talvez seja a con-trapartida do papel que a noção de es-tética desempenha em The Gender ofthe Gift: a idéia de que as coisas que vi-vem na cultura – ou na vida – vivemporque elas têm uma forma particular,e elas persuadem porque tomam umaforma particular. E eu realmente pensoque a forma que as coisas tomam é mui-to importante; penso que importa muitosaber, por exemplo, se começamos pe-las relações ou se começamos pelassubstâncias, e assim por diante.

Se eu fosse um outro tipo de pessoa,estaria lhe dizendo que tenho uma teo-ria e que os elementos desta teoria sãoA, B e C; e que A significa isto, e B isso,e C aquilo; e que não estou tratando doque disseram X, Y e Z; e que é de talbase teórica que parto etc. Mas essenão é meu modo de operar. O que estoudizendo, em vez disso, é que X e Y pu-

seram tal questão de tal modo, mas quehá outras coisas a se pensar, e portanto,mudemos a forma pela qual eles estãopensando. Mas como se trata de umprocedimento consciente de minha par-te, não atribuo a ele nenhum estatutoabsoluto ou essencializado. Meus argu-mentos são sempre em benefício do ar-gumento.

Viveiros de CastroMarilyn, gostaria que você falasse maisdo conceito de forma, que desempenhaum papel, a meu ver, muito importanteem seu trabalho. Na presente conjuntu-ra teórica, obcecada por temas proces-suais, você é uma das poucas vozes fa-lando a favor da noção de forma e nãoda noção de processo.

StrathernÉ verdade. Comecemos por dizer quehá toda uma série de conceitos que nãotolero. Isto não significa – para voltar-mos à questão da contradição e das es-tratégias retóricas – que eu não os te-nha utilizado alguma vez; mas assimem abstrato, realmente não os posso to-lerar. Tudo isso começou lá atrás, comJohn Barnes22; começou com aquelaidéia de que se você não tem grupos dedescendência nitidamente recortados,então, de alguma forma, você está dian-te de uma realidade fluida. Havia todauma linguagem de fluidez e ambigüi-dade que eu não conseguia aturar, poisme parecia, simplesmente, que o que osetnógrafos estavam fazendo não eradescrevendo situações fluidas observá-veis – eles estavam, sim, sendo impreci-sos e descuidados com sua linguagem.Assim, quando alguém começa a dizer:bem, as coisas são muito mais ambíguasetc., procuro logo saber se ele ou elarealmente quer dizer ambíguo, se ele/aentende que há diferentes modos de serdas coisas, ou se ele/a está apenas sen-

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do vago/a e impreciso/a, e neste casotrata-se de um fracasso descritivo. Issoé uma coisa que me irrita a mais nãopoder.

Depois, a fluidez e a ambigüidadederam lugar à noção de fragmentação –outra coisa que não tolero. Quando aspessoas dizem que o mundo é fragmen-tado, todo esse jargão atual sobre… Vo-cês sabem, aquele tipo de coisa de que[James] Clifford gosta. Isso me irritaporque aqueles que usam a noção defragmentação supõem uma noção deinteireza ou totalidade que permanecenão analisada. Isso tudo é meramenteuma forma de evitar ter que fazer as co-nexões.

Pois bem, o “processo” é algo quepertence a essa família de termos queacho irritantes, quando são usados sim-plesmente como uma maneira de se es-capar de outros modos de descrever.Esta foi uma das razões pelas quais, emminha palestra de hoje23, preferi falar,algo desajeitadamente, em duas traje-tórias, em fazer duas coisas ao mesmotempo; isso me parece mais interessan-te e frutífero que entrar na onda geert-ziana dos “gêneros embaralhados”, nahistória do patinhar em águas rasas etc.Eu simplesmente não aprecio tal impre-cisão. E me parece que dizer que as coi-sas são processuais e coisa e tal é algoque pertence a essa família.

Forma… Forma, suspeito, é uma cai-xa-preta. Você talvez não concorde co-migo, mas para que as narrativas e des-crições possam funcionar, deve havercoisas que permaneçam não explica-das. Deve haver uma espécie de depó-sito, como uma cova no chão, onde vo-cê põe certas coisas que não estão emfoco, quando você escreve. Mas se nãoquero desembrulhar a noção de forma,se quero mantê-la como uma caixa-pre-ta, há certamente um sentido forte emque uso esta noção, e que é em relação

ao conceito de reificação. Isto me veio apartir dos tipos de juízo feitos pelas pes-soas na Nova Guiné, quando se trata desaber se as coisas existem ou não: esteindivíduo está com saúde? Este clã éforte? O que aquele sujeito está pen-sando? A questão é: qual a evidência deque dispomos para saber que certascoisas aconteceram? Bem, a evidênciade que certas coisas aconteceram é quecertas coisas aparecem agora, e paraque as coisas possam aparecer, elas têmque assumir uma forma particular. Estaé a sua evidência, estas são suas coisas.

É aquela questão sobre [Lisette] Jo-sephides: se a produção das coisas, emuma economia capitalista, oculta as re-lações sociais, então o que a produçãode relações sociais oculta em uma eco-nomia do dom?24 O que ela oculta é aforma simbólica, a reificação das coisas.E entendo “coisas” não em um sentidosubstancialista, mas em sentido estéti-co, isto é, falo de como as coisas são re-conhecidas – e assim uso o termo “for-ma”: falo do aparecer das coisas, desuas qualidades e atributos que se dãoa ver. É sobre isso que o povo de Hagennão teoriza; eles não têm uma explica-ção sobre como as coisas têm formas,pois o assumir uma forma é precisa-mente a evidência das coisas. E a evi-dência precisa ser não negociável, ounão funciona como evidência. Assim, is-to não é um tópico do discurso. Em tro-ca, para nós este é um tópico constante;todas as nossas taxonomias e sistemasde classificação tratam da especificaçãoda natureza das coisas. Mas na NovaGuiné isso não se faz, pois ali as coisassão a evidência de que pessoas agiram.

FaustoAqui vale a pena lembrar que o concei-to de “socialidade”, usado por você,tem sido empregado na etnologia ama-zônica, mas em dois sentidos um tanto

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diferentes, um mais fenomenológico,em que socialidade é algo como umacerta experiência das relações sociais, eoutro mais estruturalista, que trabalhacom uma noção mais formal de sociali-dade.

Viveiros de CastroSeria importante se você pudesse dizeralgo sobre que relações você vê – se vêalguma – entre sua noção de socialida-de e as dimensões morais da vida so-cial. No contexto da etnologia amazôni-ca, a “socialidade” tem sido freqüente-mente correlacionada a uma certa con-cepção de moralidade.

StrathernEstas questões de forma e de socialida-de, na verdade, vão juntas. Sim, eu di-ria que eu sou formalista, no que con-cerne às relações. Uma das razões porque eu gosto da palavra “socialidade”é precisamente o fato de ela não ser apalavra “sociabilidade”. “Sociabilida-de”, em inglês, significa uma experiên-cia de comunidade, de empatia. Eu dis-se há pouco que não gostava das pala-vras “fragmentação”, “fluidez”, “pro-cesso”. Bem, eis aqui outro conjunto decoisas que me agastam (estou-me sain-do uma pessoa bem intolerante!): nãosuporto a sentimentalização da noçãode relacionalidade. Esta repulsa é, emparte, uma reação feminina e feminista,pois não esqueçam que as mulheres sãoestereotipicamente relegadas ao pólosentimental da vida social. Toda vezque discuto o conceito de relação, aspessoas imediatamente se dizem: é cla-ro, ela é mulher, tem que valorizar asrelações, e assim por diante. Essas pes-soas estão lendo a noção de relação apartir de um imaginário derivado, creio,do universo do parentesco, segundo oqual os relacionamentos são algo ine-rentemente estimável. Ora, como Jack

Goody me ensinou anos atrás – tenhoquase certeza de que foi ele –, fazer aguerra, por exemplo, é estabelecer umarelação tão relacional quanto fazer apaz. Isso me ficou na cabeça, e é umaregra que sempre me acompanhou des-de então.

Estamos aqui tratando com um ima-ginário muito persuasivo no pensamen-to euro-americano, que não vi aindadescrito por ninguém. Deixem-me darum exemplo. Em inglês, eu poderia di-zer que Eduardo tem uma uma verda-deira personalidade [a real personality].Estou, neste caso, usando “personalida-de” em dois sentidos: no sentido de quetodos temos personalidade, mas tam-bém no sentido de que Eduardo temuma personalidade forte. Bem, isto ocor-re o tempo todo em nossa linguagem. Ocaso de “relação” é exatamente esse.Eu posso dizer que nós dois temos umarelação: e eu tanto quero dizer isto emum sentido axiomático – pois estandoem um contexto social, temos obvia-mente uma relação no sentido formal –,quanto quero dizer que temos uma re-lação em um sentido intensamente so-cializante, sentimental – há sempre es-se valor moral por trás do conceito. Eeu detesto a sentimentalização das re-lações, a redução, por exemplo, da re-ciprocidade ao altruísmo, um erro queTim Ingold, dentre outros, faz. Nãoagüento isso, a redução da socialidadeà sociabilidade. Estes termos se tornamimbuídos de conotações positivas – ounegativas, quando se trata de guerra,ou de conflito. Todos esses problemasse encontram no estrutural-funcionalis-mo, tudo isso sai da idéia de que a so-ciedade é algo inerentemente solidário.É aí que Fortes, naturalmente, põe suamoralidade. Essa idéia de que é umaboa coisa ter relações sociais, a idéia deque conflitos e guerras, de alguma for-ma, fragmentam algo…

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Foi aqui, sem dúvida, que Lévi-Strauss deu sua maior contribuição. Sevocê olhar o debate entre Radcliffe-Brown e Lévi-Strauss, a diferença ficabem clara. Tomemos, por exemplo, ouso do termo “aliança”. Quando Rad-cliffe-Brown fala de aliança – como nosartigos sobre relações jocosas –, ele temem mente uma relação que pode serpositiva ou negativa entre duas entida-des, mas que carrega sempre uma forçacoesiva, como se houvesse duas entida-des que se conjugam. Este, é claro, é oelemento primitivo do parentesco euro-americano – talvez eu devesse chamá-lo apenas de parentesco inglês de clas-se média – que Schneider captou: a su-posição de que há pessoas, e elas têmrelações. E, naturalmente, o que Lévi-Strauss diz é: não, o que se tem são rela-ções, e entidades que são o produto dasrelações. Quando ele usa o termo “alian-ça”, ele está se referindo a uma posiçãoformal de encadeamento de relações,não àquilo que Radcliffe-Brown tinhaem mente, solidariedade e coisas dessetipo. Esta é uma diferença maior entreas perspectivas britânica e francesa.

Como vocês podem ver, esse debateentre Radcliffe-Brown e Lévi-Straussnão era apenas um debate. É aqui queacho útil tomarmos emprestado o termo“cultura”, pois estamos tratando dequestões culturais pressupostas no mo-do como se administram as relações, noimaginário cultural inglês e em tudo omais: a idéia de que as relações, de al-gum modo, conectam, e de que conec-tar é uma atividade positiva – eis aí al-go que persiste, algo de que é quaseimpossível nos livrarmos. Se alguémpuder me dizer como nos livrarmos des-sa idéia, eu agradeceria…

FaustoVocê esteve no simpósio sobre gênero ecomparação que reuniu especialistas

em Amazônia e Melanésia25. Quais suasimpressões sobre as possibilidades dacomparação e sobre a natureza das coi-sas comparadas?

StrathernO simpósio foi muito produtivo. Ste-phen Hugh-Jones, por exemplo, estádecidido a escrever o Gender of the Giftamazônico. Penso que todo mundo saiumuito estimulado, mas não do modo co-mo as diretrizes do simpósio faziamcrer: a expectativa era que nos sentás-semos e comparássemos sistematica-mente a Melanésia e a Amazônia itempor item… Constatamos com algumasurpresa que estávamos interessadosnas etnografias uns dos outros; sobreuma grande quantidade de pontos, osamazonistas e melanesianistas estáva-mos realmente conversando uns com osoutros. A diferença mais interessante,creio – este era, até certo ponto, o objeti-vo do simpósio –, estava nos papéis dosdispositivos de gênero em cada região,na visibilidade da divisão de gênero.

O que extraí de mais geral do sim-pósio, creio, foi que o instrumento demotivação criador de fronteiras, o con-traste relevante subjacente às noçõesde reprodução – e falo em reproduçãono sentido da continuidade fértil e pro-criativa das relações entre pais e filhos,no processo de geração etc. – gira, nocaso da Melanésia, em torno da dife-rença entre masculino e feminino, en-quanto na Amazônia confrontamo-noscom a figura dos inimigos, eventual-mente humanos, mas também com não-humanos: espíritos, animais e todo oresto. Em seu artigo, aliás, você fala (nocontexto da reprodução e da geração)da necessidade amazônica de se ir até oexterior da sociedade e capturar o exó-tico, que é familiarizado e então, natu-ralmente, re-estranhado de modo a sermorto e absorvido, e assim por diante26.

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A fecundidade do contraste Amazônia/Melanésia, para colocarmos as coisasde modo simplificado, está em que pu-demos perceber, no simpósio, que osmelanésios não separam o mundo hu-mano do não-humano, mas fazem divi-sões entre diferentes tipos de huma-nos, e que a diferença de gênero é cru-cial nesse processo. Ela cria uma dife-rença entre parentes paternos e mater-nos que, como posso agora formular –tomando emprestado o interesse doEduardo pela ontologia –, significa queo modo pelo qual uma pessoa se rela-ciona com seus parentes paternos a co-loca em um estado ontológico diferentedo que ela se encontra ao se relacionarcom seus parentes maternos; trata-sede dois mundos distintos dentro dosquais as pessoas operam.

Viveiros de CastroBem, aqui gostaria que (já que você nãopode me dar um porco) você me desseum argumento… Muito de seu esforçoteórico tem sido o de desmontar certasoposições maiores, como indivíduo/so-ciedade, ou natureza/cultura. Por outrolado, muita gente leu The Gender of theGift como se este livro tivesse erigidoum grande divisor entre “nós” e “eles”.Enfim, os clichês críticos atualmente emvigor: a denúncia do “ocidentalismo”, arecusa da dicotomia dom/mercadoria…Você respondeu a essas críticas diver-sas vezes, dizendo, por exemplo, que ocontraste dom/mercadoria era princi-palmente uma maneira heurística e re-tórica de formular o problema descriti-vo. Tudo bem, mas tenho a impressãode que você acredita que os melané-sios, como direi, têm algo de muito dis-tintivo, que seus modos de pensar sãobastante diferentes dos nossos (e recor-do aqui nossa discussão de há pouco so-bre “sociedade” e “cultura” no contex-to melanésio). Se estou certo em minha

suposição, como isto se conecta às críti-cas que você recebeu, e às respostasque você já deu a elas?

StrathernCom efeito, tenho tido um problema re-corrente com os leitores e críticos: domversus mercadoria, nós versus eles, eassim por diante. A primeira coisa queé preciso ter em mente é que “nós” e“eles” não é “masculino” e “feminino”;em outras palavras, se eu estivesseabordando as coisas de uma perspecti-va feminista, eu teria querido criar umadivisão entre masculino e feminino, edizer que se olham certas coisas de umponto de vista masculinista, outras deum ponto de vista feminista – mas o queeu disse em meu livro, e este era um co-mentário antropológico, é que na ver-dade a divisória entre melanésios e eu-ro-americanos é bem maior. Assim, estadivisória é uma resposta à outra. Mas,naturalmente, só se resolve um proble-ma criando outro. E o problema que meficou nas mãos é que parecia que eu es-tava endossando um essencialismo.

Você vai ao ponto quando diz que adiferença é nos modos de pensar; euiria um pouco mais longe, e diria que énos modos de descrever. Acho que, tal-vez – por estranho que pareça –, a re-flexão que me vi recentemente obriga-da a fazer sobre os processos de avalia-ção das universidades me despertoupara isso; refiro-me ao que disse on-tem, sobre o fato de que as avaliaçõesse fazem por meio de descrições e deautodescrições27. Os comentários quevocê fez sobre a obsessão da antropo-logia com questões epistemológicastambém me foram muito úteis28. Achoque você me ajudou a ver a distintivi-dade de nossos modos de produção deconhecimento, que, naturalmente, seapóiam de modo fundamental em prá-ticas de descrição. Sempre pensei, in-

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tuitivamente, sobre o modo como vive-mos, com ambigüidades, contradições,sendo capazes de fazer várias coisas aomesmo tempo – tudo isso é tão diferen-te do que exigimos das descrições… Écomo a diferença entre andar de bici-cleta e descrever como se anda de bici-cleta: um livro que descrevesse comomontamos em uma bicicleta e nos man-temos lá seria interminável. É nas prá-ticas de descrição que essas diferençasemergem, e, portanto, eu não hesito emsustentar que nós produzimos descri-ções de nós mesmos que são diferentesdaquelas que os melanésios produzemde si mesmos. Isto nada tem a ver comcompreensão, ou com estruturas cogni-tivas; não se trata de saber se eu possoentender um melanésio, se posso inte-ragir com ele, comportar-me adequa-damente etc. Estas coisas não são pro-blemáticas. O problema começa quan-do começamos a produzir descrições domundo.

Viveiros de CastroNão se trata, portanto, de uma questãode universalismo versus relativismo,correto? Porque já li críticos sugerindoque você nega a existência de uma na-tureza comum a “nós” e a “eles”.

StrathernO que estou dizendo é que a diferençaque existe está no fato de que os modospelos quais os melanésios descrevem,dão conta da natureza humana, são ra-dicalmente diferentes dos nossos – e oponto é que só temos acesso a descri-ções e explicações, só podemos traba-lhar com isso. Não há meio de eludir es-sa diferença. Então, não se pode dizer:muito bem, agora entendi, é só umaquestão de descrições diferentes, entãopassemos aos pontos em comum entrenós e eles… pois a partir do momentoem que entramos em comunicação, nós

o fazemos através dessas autodescri-ções. É essencial dar-se conta disso.

Posso fazer agora uma pergunta avocês? Onde, a seu ver, estaria uma ba-se futura para a antropologia crítica?

Viveiros de CastroTradicionalmente, a antropologia usouos selvagens para dar lições de moralaos ocidentais: para nos fazer sentir, oraorgulhosos, ora culpados de não sermos(mais) selvagens. Mas era só isso. Atépouco tempo atrás, os antropólogos quetrabalhavam com as chamadas socieda-des primitivas e os especialistas naschamadas sociedades complexas não ti-nham lá muita coisa a dizer uns aos ou-tros. É esta barreira que começou a ruir,e que precisa ruir. Penso que o futuroestá na idéia de Latour de uma antro-pologia simétrica, e que é algo que vo-cê também está fazendo, em seus traba-lhos sobre o parentesco euro-americano.

StrathernSim. Há uma tremenda intolerância naGrã-Bretanha, hoje em dia, a tudo quecheire a uma condição exótica ou dis-tante que não possa ser reduzida aosefeitos do colonialismo, à história euro-péia, à expansão do Ocidente, esse tipode coisa. Esta é, aliás, minha diferençacom Nick Thomas. Embora aprecie mui-to o seu livro sobre a troca na Oceania29,não sou simpática à necessidade, alimanifesta, de se legitimar o interesse poressas coisas mostrando que elas resul-tam da expansão européia no Pacífico.

Viveiros de CastroIsto me parece uma espécie de narcisis-mo masoquista...

StrathernÉ verdade, e é isto que me faz, em con-trapartida, exagerar as diferenças. Vocêperguntou no começo desta entrevista

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sobre decisões teóricas: eis aqui umadecisão teórica. E uma decisão teóricade que me tornei consciente no contex-to do estudo das novas tecnologias re-produtivas, porque, nesse caso, há mui-ta gente que diz: vejam, não há nada denovo nessas coisas, sempre fizemos is-so, apenas as técnicas mudaram. E hágente que diz, ao contrário: oh, meuDeus, o mundo vai acabar, é um cata-clisma… Bem, tomei a decisão teóricade pertencer a este segundo partido.Primeiro, porque acho que ele é maisinteressante, é mais estimulante, dámais o que pensar. Segundo, e mais se-riamente, por motivos políticos, pois aprimeira reação – que não há nada denovo nas novas tecnologias, que sem-pre estivemos a fazer isso – deriva deuma ética profundamente conservado-ra, que na verdade encoraja as práticasmais radicais, já que as legitima me-diante o argumento de que se pode fa-zer qualquer coisa, pois não se estaráfazendo nada de novo. A segunda rea-ção, aquela que diz: oh, meu Deus, omundo está acabando – ela é obvia-mente absurda nesses termos, mas aomesmo tempo ela está dizendo: espe-rem um minuto, paremos para pensar, oque estamos fazendo? É esta reação dedar uma parada para pensar e dizer: oque está acontecendo aqui? – é esta queprefiro. Bem, parece-me haver umaanalogia direta entre aquela primeirareação às tecnologias reprodutivas e aatitude antropológica em face dos po-vos não-ocidentais que diz: vejam, tudodeve ser interpretado em termos da his-tória da colonização e da história euro-americana, só se podem compreenderos povos da Nova Guiné como trabalha-dores da plantation ou seja lá o que for,caso contrário, você estaria simples-mente exotizando-os. Eu pertenço, aquitambém, ao outro partido, aquele queescolheu exagerar deliberadamente as

diferenças, simplesmente porque istonos obriga a parar para pensar.

Viveiros de CastroPara terminar, Marilyn, fale-nos umpouco sobre seu interesse pelo temados direitos de propriedade intelectuale sobre a linguagem dos “direitos”. Es-tou provavelmente seguindo uma pistaerrada, mas me parece que um modode correlacionar seu interesse recentesobre os direitos de propriedade inte-lectual e seu trabalho anterior sobre atroca, seria ver a noção de “direito” co-mo o correlato relacional da mercado-ria. A mercadoria está para a coisa co-mo o direito para a relação; o direito se-ria a Relação, o único tipo de relaçãoque você pode ter no mundo da merca-doria; na verdade só haveria um direito,o direito de propriedade… Quando che-gamos à questão dos direitos de pro-priedade intelectual, aplicados a mun-dos indígenas organizados pela lógicado dom… Qual seria o equivalente des-ta categoria do direito em uma econo-mia do dom?

StrathernVou usar estas formulações, elas me pa-recem muito úteis… OK, a noção de di-reito é o correlato da mercadoria, então,o que estaríamos procurando no dom?O correlato substantivo ou coisiformedo dom? Ou estaríamos tomando o domem termos da lógica da mercadoria, istoé, como uma coisa? Bem, preciso pen-sar a respeito, mas por ora: a noção de“direito”, própria do mundo da merca-doria, pressupõe uma posição singular,isto é, a definição de uma singularida-de; não importa se estamos tratando deuma ou de várias pessoas. Estamosdiante de um estado de singularidade.A noção de dom, por outro lado, temque se referir ao resultado de uma rela-ção, de uma diferença; não pode ser

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uma singularidade. Assim, o que seprocura deve ser algo extraído de umidioma procriativo, talvez de um idiomaperformativo, algo como “efeito” – masacho que isso não funcionaria. Na ver-dade, sinto-me atraída pelo tema dosdireitos de propriedade intelectual por-

que ele está levando o pensamento eu-ro-americano até áreas bastante refra-tárias às linguagens disponíveis. Osteóricos dos direitos de propriedade in-telectual estão no limite de suas possi-bilidades conceituais. Estamos aqui nolimite de uma certa linguagem.

Transcrição de David Rodgers

Tradução de Eduardo Viveiros de Castro

Notas

1 O livro de Fortes, Kinship and the SocialOrder: The Legacy of Lewis Henry Morgan(London: Routledge, 1969), resultou das Mor-gan Lectures que ele deu na Universidade deRochester em 1963.

2 LEACH, Edmund R.1961. Pul Eliya, a Vil-lage in Ceylon: A Study in Land Tenure andKinship. Cambridge: Cambridge University.

3 STRATHERN, Andrew e STRATHERN,Marilyn. 1968. “Marsupials and Magic: AStudy of Spell Symbolism among theMbowamb”. In: E. Leach (org.), Dialectic inPractical Religion. Cambridge: CambridgeUniversity Press.

4 Women in Between: Female Roles in aMale World foi publicado em 1972 (Seminar[Academic] Press); Kinship at the Core: AnAnthropology of Elmdon, a Village in North-west Essex in the Nineteen-sixties é de 1981(Cambridge: Cambridge University Press);The Gender of the Gift: Problems with Womenand Problems with Society in Melanesia é de1988 (Berkeley/Los Angeles: University of Cal-ifornia Press); e After Nature: English Kinshipin the Late Twentieth Century foi publicado em1992 (Cambridge: Cambridge University Press).

5 WEINER, Annete. 1976. Women of Val-ue, Men of Renown: New Perspectives in Tro-briand Exchange. Austin: University of TexasPress.

6 STRATHERN, Marilyn. 1981. “Culture ina Netbag: The Manufacture of a Subdisci-pline in Anthropology”. Man, 16:665–688.

7 HUGH-JONES, Christine.1979. From theMilk River: Spatial and Temporal Processesin Northwest Amazonia e Hugh-Jones,

Stephen.1979. The Palm and the Pleiades:Initiation and Cosmology in Northwest Ama-zon, ambos publicados pela Cambridge Uni-versity Press.

8 GELL, Alfred. 1995. “Strathernograms:Or, the Semiotics of Mixed Metaphors”, arti-go inédito.

9 Antropólogo que trabalhou com M.Strathern em Manchester, hoje na Universi-dade de Adelaide, Austrália.10 WAGNER, Roy. 1975. The Invention ofCulture. Englewood Cliffs: Prentice-Hall.11 STRATHERN, Marilyn. 1981. “No Nature,No Culture: The Hagen Case”. In: C. Mac-Cormack e M. Strathern (orgs.), Nature, Cul-ture and Gender. Cambridge: CambridgeUniversity Press.12 WAGNER, Roy. 1967. The Curse of Souw.Chicago: Chicago University Press.13 Goody sucedeu Fortes como WilliamWyse Professor of Social Anthropology (e di-retor do Departamento de Antropologia So-cial) em 1972. M. Strathern assumiu estamesma cátedra em 1993, sucedendo a ErnestGellner, que sucedera Goody.14 M. Strathern está-se referindo à pes-quisa coordenada por Audrey Richards emElmdon, vilarejo próximo de Cambridge, so-bre a qual versa o livro Kinship at the Core.As condições da pesquisa são descritas porA. Richards no prólogo a esse livro.15 “Nature” e “law”; ver Schneider, David.1968. American Kinship: A Cultural Account.Englewood Cliffs: Prentice-Hall.16 Em um college de Cambridge ou Oxford,os membros-alunos são supervisionados em

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seus estudos universitários por fellows damesma instituição. Pouco tempo depois deter sido bye fellow, M. Strathern tornou-sefellow oficial de Girton. Em 1998, ela se tor-nou mistress de seu college.17 STANWORTH, M. (org.). 1987. Repro-ductive Technologies: Gender, Motherhoodand Medicine. Oxford: Polity Press.18 As quatro Morgan Lectures em que Af-ter Nature se baseia foram ministradas em1987.19 M. Strathern se refere à célebre decla-ração de Margaret Thatcher: “Não há essacoisa chamada sociedade; só há indivíduos, esuas famílias”.20 “The Concept of Society is TheoreticallyObsolete”. In: T. Ingold (org.), Key Debatesin Anthropology. London: Routledge, 1996.Trata-se de um debate entre M. Strathern, J.Peel, C. Toren e J. Spencer,21 STRATHERN, Marilyn. 1992. Reproduc-ing the Future: Anthropology, Kinship, andthe New Reproductive Technologies. Lon-don: Routledge.22 Ver Barnes, J. A. 1962.“African Modelsin the New Guinea Highlands”. Man, 2:5-9.

23 “Scale, Complexity, and the Imagina-tion: A Puzzle from Papua New Guinea”,22/9/98.24 M. Strathern refere-se à discussão quetrava em The Gender of the Gift com L.Josephides.25 “Amazonia and Melanesia: Gender andAnthropological Comparison”, simpósioWenner-Gren coordenado por Thomas Gre-gor e Donald Tuzin (Mijas, Espanha, setem-bro de 1996).26 FAUSTO, Carlos. “Of Enemies and Pets:Warfare and Shamanism in Amazonia”.American Ethnologist (no prelo).27 M. Strahern evoca sua palestra no Mu-seu Nacional, proferida na véspera da entre-vista. Ver seu artigo “A Avaliação no SistemaUniversitário Britânico”. Novos Estudos,53:15-32, 1999.28 M. Strathern refere-se às conferências deViveiros de Castro em Cambridge (fevereiro/março de 1998).29 THOMAS, Nicolas. 1991. Entangled Ob-jects: Exchange, Material Culture and Colo-nialism in the Pacific. Cambridge/Mass.:Harvard University Press.