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704 Instituto de Artes da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, São Paulo, Brasil. 9 , 10, 11 de outubro de 2012 ISBN: 978-85-62309-06-9 ARTE E LOUCURA: alguns fundamentos clínico-estéticos Myrna Coelho 1 Resumo: O presente artigo trata da interface arte-loucura. Esse tema será problematizado a partir dos resultados de uma pesquisa sobre a experiência de criação coletiva de um grupo de dança-teatro chamado “Cia. Experimental Mu...Dança” formado por militantes da Luta Antimanicomial em seus quatro segmentos: usuários dos serviços de saúde mental, seus familiares, profissionais e estudantes. Essa pesquisa foi realizada entre os anos de 1999 e 2006 e sistematizada na dissertação de mestrado “’das loucuras Da História’: dança -teatro, sofrimento psíquico e inclusão social.”, apresentada ao Programa de Pós Graduação Interunidades em Estética e História da Arte da Universidade de São Paulo (USP). Muitos têm sido os esforços dos pesquisadores antimanicomiais em teorizar sobre suas práticas, na tentativa de rumar a reforma psiquiátrica brasileira para um terreno de transformação de paradigmas. Esse modo diferente de relação com o fenômeno da loucura é conceitualizado na reforma psiquiátrica a partir de quatro dimensões inter-relacionadas, salientando a relação da arte neste campo. Conceitualizaremos, primeiramente, os fundamentos da Reforma Psiquiátrica para posteriormente compreendermos a inserção das artes no campo da saúde mental, exemplificada a partir dos achados teóricos da pesquisa referida. Abordamos a interface arte-loucura discutindo esta experiência como criação de um espaço de participação política. Palavras-Chave: Arte-Loucura. Reforma Psiquiátrica. Oficinas Artísticas. Fenomenologia. Dança-teatro. Introdução A discussão sobre loucura não é nova, Foucault (2000) traz uma dimensão deste fenômeno pensando na divisão incessante entre razão e loucura e na interdição que a indicação do rótul o “loucura” contém. No Brasil essa discussão ganhou maior destaque, inclusive acadêmico, com a criação do Movimento Nacional da Luta Antimanicomial, em 1987, e posterior aprovação da Lei 10.216 em 2001, e com toda a construção das práticas em saúde mental desenvolvidas pelos profissionais ligados ao pensamento desse movimento, que versa sobre a extinção progressiva dos manicômios e sua substituição por uma rede de saúde mental inserida em equipamentos de saúde e cultura no território. A partir daí, também se passou a inserir artistas como trabalhadores na rede de saúde mental, produzindo um novo desafio na consolidação dessas equipes interdisciplinares. A metodologia de construção das oficinas artísticas no campo da reforma psiquiátrica deve se fundamentar na possibilidade de sair de um lugar de troca-zero como o lugar da loucura para um lugar de criação, abre caminho para que outras potencialidades sejam

Myrna Coelho

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ARTE E LOUCURA: alguns fundamentos clínico-estéticos

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9 , 10, 11 de outubro de 2012 – ISBN: 978-85-62309-06-9

ARTE E LOUCURA:

alguns fundamentos clínico-estéticos

Myrna Coelho 1

Resumo: O presente artigo trata da interface arte-loucura. Esse tema será problematizado a

partir dos resultados de uma pesquisa sobre a experiência de criação coletiva de um grupo de

dança-teatro chamado “Cia. Experimental Mu...Dança” formado por militantes da Luta

Antimanicomial em seus quatro segmentos: usuários dos serviços de saúde mental, seus

familiares, profissionais e estudantes. Essa pesquisa foi realizada entre os anos de 1999 e 2006 e

sistematizada na dissertação de mestrado “’das loucuras Da História’: dança -teatro, sofrimento

psíquico e inclusão social.”, apresentada ao Programa de Pós Graduação Interunidades em

Estética e História da Arte da Universidade de São Paulo (USP) .

Muitos têm sido os esforços dos pesquisadores antimanicomiais em teorizar sobre suas

práticas, na tentativa de rumar a reforma psiquiátrica brasileira para um terreno de

transformação de paradigmas. Esse modo diferente de relação com o fenômeno da loucura é

conceitualizado na reforma psiquiátrica a partir de quatro dimensões inter-relacionadas,

salientando a relação da arte neste campo.

Conceitualizaremos, primeiramente, os fundamentos da Reforma Psiquiátrica para

posteriormente compreendermos a inserção das artes no campo da saúde mental, exemplificada a

partir dos achados teóricos da pesquisa referida. Abordamos a interface arte-loucura discutindo

esta experiência como criação de um espaço de participação política . Palavras-Chave: Arte-Loucura. Reforma Psiquiátrica. Oficinas Artísticas. Fenomenologia.

Dança-teatro.

Introdução

A discussão sobre loucura não é nova, Foucault (2000) traz uma dimensão deste

fenômeno pensando na divisão incessante entre razão e loucura e na interdição que a

indicação do rótulo “loucura” contém. No Brasil essa discussão ganhou maior destaque,

inclusive acadêmico, com a criação do Movimento Nacional da Luta Antimanicomial, em

1987, e posterior aprovação da Lei 10.216 em 2001, e com toda a construção das práticas em

saúde mental desenvolvidas pelos profissionais ligados ao pensamento desse movimento, que

versa sobre a extinção progressiva dos manicômios e sua substituição por uma rede de saúde

mental inserida em equipamentos de saúde e cultura no território. A partir daí, também se

passou a inserir artistas como trabalhadores na rede de saúde mental, produzindo um novo

desafio na consolidação dessas equipes interdisciplinares.

A metodologia de construção das oficinas artísticas no campo da reforma psiquiátrica

deve se fundamentar na possibilidade de sair de um lugar de troca-zero – como o lugar da

loucura – para um lugar de criação, abre caminho para que outras potencialidades sejam

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exploradas pelos usuários. Sair do papel social do louco é a possibilidade de ocupar múltiplos

papéis sociais. A apropriação de uma nova linguagem, a vivência de uma construção grupal, a

ampliação da percepção sobre ser-no-mundo-com-os-outros e lutar pela mudança do

imaginário social da loucura é o que possibilita ao grupo a vivência do trabalho como

ressignificação do ser-louco.

Ressaltamos que o trabalho é, também, pensado com Hannah Arendt em sua

distinção entre trabalho e labor, distinção esta gerada por uma sociedade de consumo. A idéia

de trabalhar está relacionada hoje com o suor, a supressão, mas Arendt chama nossa atenção

para quanto estes aspectos relacionam-se com a idéia de labor. Labor pensado como ciclos

repetitivos, de longa duração. É a diferença entre fabricar bens duráveis e não duráveis,

produzir fruição de beleza e produzir escravidão (Arendt, 2003).

Mas para fechar os manicômios não basta derrubar seus muros, mas os muros

daquilo que Peter Pal Pélbart (Pélbart, 1990) chama de “Manicômio Mental”, ou seja, da

significação do imaginário social da loucura. O autor mostra que uma sociedade não pode

erradicar seus loucos e sua loucura. Precisamos do direito à liberdade de desarrazoar, ou seja:

“(...) uma dimensão essencial de nossa cultura: a estranheza, a ameaça, a alteridade radical,

tudo aquilo que uma civilização enxerga como seu limite, o seu contrário, o seu outro, o seu

além” (Pélbart, 1990).

1. Reforma Psiquiátrica

O conceito de loucura na dinâmica da reforma psiquiátrica é entendido não como uma

doença que necessita de cura e que, portanto, pede remédio, mas sim a partir de uma tentativa

de colocar a doença entre parênteses, que é muito bem definida por Paulo Amarante:

Esta atitude epistemológica de colocar a doença entre parênteses não

significa a negação da doença no sentido de não reconhecimento de uma

determinada experiência de sofrimento ou diversidade. Em outras palavras, não

significa a recusa em aceitar que exista uma experiência que possa produzir dor,

sofrimento, diferença ou mal-estar. Significa, isto sim, a recusa à explicação

oferecida pela psiquiatria, para dar conta daquela experiência, como se esta pudesse

ser exp licada pelo simples fato de ser nomeada como doença.

(...) A doença entre parênteses é, ao mesmo tempo, a denúncia social e

política da exclusão, e a ruptura epistemológica com o saber da psiquiatria que

adotou o modelo das ciências naturais para objetivar conhecer a subjetividade. (...) O

1 Psicóloga, mestre em Estética e História da Arte – USP, doutora em Integração da América Lat ina – USP,

integrante da Comissão de Direitos Humanos do Conselho Regional de Psicologia de São Paulo – CRP-06,

integrante da Associação Brasileira de Daseinsanalyse – ABD.

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resultado prático desta psiquiatria, ao considerar que a loucura é doença, no sentido

do erro, fo i criar para o louco um lugar de exclusão, um lugar zero de trocas sociais,

que é como Rotelli se refere ao manicômio.

(...) É necessário estabelecer rupturas – com conceitos tais como o de

doença, de terapêutica, de cura, de ciência, de técnica, de verdade! (...) pois a relação

a ser estabelecida não é com a doença, mas com o sujeito da experiência . (Amarante,

2003, p. 56 - 61).

Quando colocamos a loucura entre parênteses estamos lançando mão da postura

husserliana da Époché (Husserl, 1952), implicando-nos com o compromisso de deixar de lado

os psicologismos envolvidos nos pensamentos que se ocupam da saúde mental, fundados no

dualismo cartesiano.

Esse modo diferente de relação com o fenômeno da loucura é conceitualizado na

reforma psiquiátrica a partir de quatro dimensões inter-relacionadas.

A primeira dimensão refere-se ao campo teórico-conceitual, ou epistemológico. Aqui,

ressaltamos o conceito de desinstitucionalização como um processo ético-estético de

reconhecimento de novas situações que produzem novos sujeitos de direito, e novos direitos

para os sujeitos. Também submete o conceito de doença a uma desconstrução, supondo que

as relações entre as pessoas envolvidas também serão transformadas, assim como os serviços,

os dispositivos e os espaços. O sujeito, não mais visto como alteridade incompreensível

possibilita outras formas de conhecimento, as quais produzirão novas práticas clínicas e

sociais. Na dimensão epistemológica, busca-se estabelecer uma relação entre a transição

paradigmática das ciências e a ruptura epistemológica em relação à psiquiatria tradicional,

presente nos fundamentos da invenção da loucura como doença mental.

A segunda dimensão seria a técnico-assistencial, donde emerge a questão do

modelo assistencial. O modelo psiquiátrico é calcado na tutela, na custódia, na disciplina e na

vigilância, legitimando a institucionalização, expressando-se no manicômio. Enquanto

alienado, o louco estaria incapaz de decidir pelo seu tratamento e o asilo seria o local ideal

para o exercício do “tratamento moral”, da reeducação pedagógica, da vigilância e da

disciplina. O conceito de alienação se oporia, então, ao conceito de cidadania, pois o alienado

não pode exercer sua cidadania por sua condição de ausência de Razão. Na dimensão técnico-

assistencial propõe-se realizar uma analise dos principais conceitos que norteiam a produção

de cuidados na rede substitutiva, entendida não apenas como um conjunto de serviços, mas

como uma estratégia que produz uma ruptura com o modelo assistencial hegemônico.

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Uma terceira dimensão da Reforma Psiquiátrica diz respeito ao campo jurídico-

político, onde importa rediscutir e redefinir as relações sociais e civis em termos de cidadania,

de direitos humanos e sociais, pelo fato da psiquiatria ter instituído uma série de noções que

relacionam loucura à periculosidade, irracionalidade, incapacidade e irresponsabilidade civil.

Na dimensão jurídico-política, através de uma análise do percurso histórico da Reforma

Psiquiátrica, propõe-se destacar as tensões e conflitos decorrentes das ações dos diferentes

atores sociais que provocam e interrogam a relação entre Estado e Sociedade.

A quarta dimensão seria a sociocultural, que expressa o objetivo maior da Reforma

Psiquiátrica, ou seja, a transformação do lugar social da loucura, pois o imaginário social –

decorrente da ideologia psiquiátrica tornada senso-comum – relaciona loucura à incapacidade

do sujeito em estabelecer trocas sociais e simbólicas. Nessa dimensão, muitos trabalhos e

pesquisas foram realizados a partir de experiências artísticas, o que trouxe – desde Nise da

Silveira – um novo campo de formulação e debates na saúde mental. Esses debates

polemizam a arte como objetivo x a arte como método, trazendo embates profícuos para

profissionais tanto do campo da saúde mental como do campo das artes, agora comungando

novas possibilidades e potencialidades de encontros.

Desta forma, o aspecto estratégico desta dimensão diz respeito ao conjunto de ações

que visam transformar a concepção de loucura no imaginário social, transformando as

relações entre sociedade e loucura.

É a partir dessa quarta dimensão que podemos pensar modos de produzir oficinas

artísticas como um olhar para a loucura que não parte das dicotomias de um paradigma

cartesiano, da divisão corpo-mente, sujeito-objeto, mas através da experiência.

Todo o conjunto de transformações e inovações (...) contribuem para a

construção de um novo imaginário social em relação à loucura e aos sujeitos em

sofrimento, que não seja rejeição ou tolerância, mas de reciprocidade e

solidariedade. (Amarante, 2007, p. 73)

Assim, na reforma psiquiátrica, as transformações devem transcender à simples

reorganização do modelo assistencial e alcançar as práticas e concepções sociais, intervindo

não apenas no funcionamento dos serviços e na formação profissional dos técnicos

envolvidos, mas no profundo e complexo fenômeno da representação social da loucura.

Devemos pensar o campo da saúde mental não como um modelo, mas como um processo, e,

para isso, a dimensão sociocultural é fundamental.

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2. Arte e Loucura

Com o advento e a proliferação, especialmente nas duas últimas décadas, de serviços

substitutivos ao manicômio no Brasil, as práticas artísticas passaram a ser amplamente

utilizadas e, com isso, pesquisadas. Inclusive, a legislação brasileira que regulamenta o

funcionamento dos Centros de Atendimento Psicossocial insere a prática de oficinas

terapêuticas como “uma das principais formas de tratamento oferecido nos CAPS”

(Ministério da Saúde, 2004, p. 20). Essas práticas se baseiam, especialmente e inicialmente,

na experiência paradigmática de Nise da Silveira no Museu de Imagens do Inconsciente. Para

tanto, faz-se necessário um breve histórico da relação arte- loucura.

No século XVIII, quando os asilos eram visitados pela população, os artistas se

interessaram por fazer desenhos de observação de dentro dos asilos e também pelos desenhos

dos loucos, pendurados, muitas vezes, nas paredes das celas.

Mas é a partir da segunda metade do século XIX que se pode datar a utilização das

artes no âmbito da psiquiatria e psicologia, tendo sido as primeiras pesquisas realizadas por

Max Simon, no final do século XIX, inaugurando um tema que despertou a curiosidade

científica de diversos autores, inclusive de Charcot, que se interessou pelas produções

artísticas dos pacientes psiquiátricos com objetivos nosológicos e diagnósticos.

Em 1906, Mohr realizou um estudo comparativo de produções de doentes mentais,

pessoas ditas normais e grandes artistas no qual percebeu a manifestação de histórias de vida

e conflitos pessoais que originaram, posteriormente, a formulação de diversos testes

psicológicos de investigação da personalidade.

Em 1922, o trabalho de H. Prinzhorn veio a público inaugurando a visada estética

sobre as produções dos doentes mentais, opondo-se ao uso de seu modo de leitura para o

diagnóstico de pacientes e rotulagem de uma obra nos moldes da psicopatologia. Em 1917, no

Brasil, Monteiro Lobato criticou duramente uma exposição de Anita Malfati, comparando a

Arte Moderna, depreciativamente, à arte dos loucos.

No Brasil, em 1925, Osório César escreveu sobre os trabalhos dos pacientes do

Juqueri, no primeiro registro brasileiro sobre o tema, o qual despertou o interesse dos

modernistas; posteriormente, organizou a primeira exposição de arte do Juqueri no MASP (de

10 de outubro à 19 de dezembro de 1948). Nesses registros é possível percebermos a

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preocupação de Osório César com o profissionalismo do fazer artístico no manicômio,

salientando para que este trabalho contasse com instrutores capacitados.

Em 1933, Flávio de Carvalho organizou em São Paulo uma exposição com desenhos

de crianças e loucos, questionando o academicismo da Escola Nacional de Belas Artes e o

gosto artístico da classe média. Em 1947 ocorreu a primeira exposição de pinturas dos

internos do Centro Psiquiátrico Nacional, no Ministério da Educação, no Rio de Janeiro.

Mas o grande marco da discussão brasileira a respeito de trabalhos artísticos com

loucos se deveu, sobretudo, ao trabalho pioneiro de Nise da Silveira (1905-1999). De 1946 a

1974 ela dirigiu a seção de terapia ocupacional do Centro Psiquiátrico Pedro II, no Rio de

Janeiro, utilizando métodos e teorias que contrariavam a ordem imposta pela psiquiatria

tradicional. A partir da teoria de Carl Gustav Jung ela tentava compreender os delírios, as

alucinações e os gestos através das imagens pintadas ou modeladas por pessoas ditas

esquizofrênicas. As pesquisas realizadas pela psiquiatra abriram aos loucos a possibilidade de

ocuparem o espaço destinado aos artistas: o atelier, um lugar onde suas obras nunca seriam

interpretadas do ponto de vista psicanalítico, já que Nise preocupava-se em observar, facilitar

e acolher a expressão dos pacientes.

Em 1949, no MAM do Rio de Janeiro, ocorreu a exposição “Nove artistas do Engenho

de Dentro”, com a participação de Nise da Silveira. Nesta época, artistas e críticos

posicionavam-se contra o intelectualismo e a favor do informalismo nas artes. Em 1950,

Mário Pedrosa, opondo-se a um determinado preconceito com relação às expressões plásticas

dos esquizofrênicos, escreveu a favor do que denominou “arte virgem”, conceitualizando-a

como uma arte que não leva em consideração as convenções acadêmicas estabelecidas. Este

conceito é, em grande parte, parente do conceito “art brut”, criado por Jean Dubuffet, também

no pós-guerra.

A partir deste olhar muitas modificações ocorrem no âmbito do tratamento em saúde

mental. Como exemplo, podemos citar a descoberta de Arthur Bispo do Rosário (1911-1989)

como artista, confinado por 50 anos na Colônia Psiquiátrica Juliano Moreira. Inicialmente,

Bispo utilizava em suas obras apenas fios de linha azul que tirava de seu uniforme de paciente

e de velhos lençóis para bordar e recriar, com palavras e imagens, o mundo a que tinha acesso

dentro do hospício. Depois, passou a juntar canecas, sapatos, garrafas e toda espécie de

objetos, reunindo-os em painéis e mantos que são fantásticas obras de arte (Silva, 1998).

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Nos últimos anos, nota-se uma valorização destas manifestações, em exposições

como, por exemplo, a Bienal de Arte Incomum, realizada na XVI Bienal Internacional de

Arte de São Paulo, em 1981 (Frayze-Pereira, 1995). Temos também a exposição de Arthur

Bispo do Rosário no MAC 1990 e a exposição de Arte e Loucura realizada em 1987 também

em São Paulo, pelo Instituto Psiquiátrico Juqueri na ocasião da defesa do doutorado de Maria

Heloisa Correa de Toledo Ferraz (1998). Hoje, temos uma sala dedicada a obra de Arthur

Bispo do Rosário sendo apresentada na 30ª. Bienal Internacional de Arte de São Paulo.

Vale a pena ressaltar que quando falamos de arte e loucura adentramos um território

problemático, pois estamos falando de manifestações que possuem suas raízes numa

segregação historicamente pontuada, ou seja, aquela que se designou chamar doença mental e

todo seu aparato tecnológico e institucional que o Ocidente vivenciou desde o surgimento do

período que Foucault (2000) chamou de “Grande Internação”.

Assim como a doença mental passou por uma profunda revisão de seus postulados

nosográficos nos últimos anos, o mesmo se delineou nas artes, pois vivemos uma

desterritorialização da instituição arte. Contudo as constantes apologias a curadorias e

exposições sobre o tema Arte e Loucura suscitam, entre outras coisas, à pergunta do que é arte

e do que não é arte, encaminhando-nos ao confronto direto entre limites (Valero, 2001).

O trabalho e a arte têm a função de inserção no mundo da coletividade e de

rompimento do isolamento que caracteriza a vivência subjetiva contemporânea não apenas

para os pacientes psiquiátricos. E a questão das oficinas se reveste de um caráter

essencialmente político porque o desejo é por si mesmo revolucionário, por ser um produtor

não apenas de fantasias, mas de “mundos”. As oficinas serão terapêuticas ou funcionarão

como vetores de existencialização caso consigam estabelecer outras e melhores conexões que

as habitualmente existentes entre produção desejante e produção da vida material, caso

consigam conectar-se com o plano de imanência da vida, o mesmo plano com base nas quais

são engendradas a arte, a política, o amor. Essa prática consiste não apenas numa prática de

reinserção social, mas numa reestruturação do mundo, já que ele tem que ser recriado, um

tecido cultural tem que ser produzido. Quando desejamos, por meio da arte ou do trabalho,

produzir territórios existenciais cresse que está se falando não de adaptação à ordem

estabelecida, mas de fazer com que trabalho e arte se reconectem com o primado da criação,

com o desejo e com o plano de produção da vida (Rauter, 2003).

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Podemos dizer que a obra de arte vale por si mesma, independentemente da pessoa

que a produziu. Se as pessoas criativas não são necessariamente loucas, também os loucos não

são necessariamente pessoas criativas (Valero, 2001).

As preocupações, tais como de Osório César, com a qualidade artística do que se faz

em saúde mental continuam, mas não em todos os projetos. Na Cia. Experimental

Mu…Dança esta preocupação era uma constante, pois entendíamos que, se a arte pedia o

reconhecimento de um público, esta deveria ser reconhecida pela sua qualidade, e não de

outra forma (Coelho, 2007).

As oficinas em saúde mental trilham o caminho de flexibilizar a identidade do louco

com a loucura. No caso da oficina de dança-teatro da Cia. Experimental Mu...Dança, encarnar

um papel significava descolar-se de uma representação de si para poder experimentar uma

outra. Esse distanciar-se, particularmente difícil, acabou sendo feito de modo que não

precisasse suprimir o ator, de modo que suas características, dificuldades ou estigmas

pudessem ser construídos como estilo da personagem a ser incorporada na atividade (Coelho,

2007).

Flexibilizando-se essa identidade do louco ele pode como dançarino, cantor, ator,

pintor, deixar a unicidade de ser louco, para a qual convergem todos os aspectos de sua vida a

partir do momento do diagnóstico, ocupando outro lugar no mundo, que, como qualquer lugar

artístico, pressupõe o reconhecimento de um público (Valero, 2001).

Entretanto, o fato de inserirmos práticas artísticas em saúde mental não garante que

elas sejam antimanicomiais. Muitas práticas, infelizmente, acabam por corroborar o

pensamento manicomial, reforçando preconceitos e prestando um desserviço à população. Por

isso torna-se tão necessário que possamos discutir tais práticas contemporâneas.

Figura 1 – apresentação da Cia. Experimental Mu...Dança no vão livre do MASP, 18 de maio

de 2004.

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3. Cia. Experimental Mu...Dança

A Cia. Experimental Mu...Dança (FIG. 1) foi um grupo de dança –teatro formado no

Centro de Atenção Psicossocial Integral (Capsi) de Diadema (grande São Paulo) e trabalhou

entre 1999 e 2006 e teve como participantes militantes do Movimento nacional da Luta

Antimanicomial (MNLA) representados pelos seus quarto segmentos: usuários do sistema de

saúde mental, seus familiares, profissionais e estudantes, assim como também a comunidade

em geral. A dimensão sociocultural implica que todos os participantes são iguais,

horizontalizados pela própria atividade o que implica que a posição de poder/saber circula.

Os objetivos eram: criar coreografias, espetáculos, performances ou happenings

pautados no estudo da dança-teatro, em pesquisas sobre os processos de enlouquecimento e

nos sentidos da militância antimanicomial a partir das histórias propostas pelos bailarinos na

metodologia de construção coletiva; militar no movimento nacional da luta antimanicomial a

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fim de ressignificar o lugar social da loucura; criar um espaço político onde a existência da

ação ocorra (Arendt, 2003).

Os resultados deste trabalho estão na dissertação de mestrado apresentada ao

Programa de Pós-graduação Interunidades em Estética e História da Arte da USP intitulada:

“„das loucuras Da História‟: dança-teatro, sofrimento psíquico e inclusão social” (Coelho,

2007).

No caso específico do grupo apresentado, utilizamos a técnica da dança-teatro. A

dança-teatro é um conceito formulado no decorrer da história da dança a partir das danças

corais desenvolvidas por Laban. Nos aproximamos da definição de dança-teatro a partir da

obra de Pina Bausch, ela revela o cansaço dos coreógrafos com os gestos teatrais heróicos e

tem seu foco no movimento de pedestres, nas relações humanas básicas, nas pessoas comuns.

Ela é compreendida como “Experimentação, contato consigo mesmo, com o corpo, com os

outros e com os fatos e acontecimentos presentes em nossa cultura. Significa a possibilidade

de colocar em gestos, os sentimentos, os pensamentos, as idéias, as emoções e cenas vividas”

(Castro, 1992).

(é) Uma dança altamente autobiográfica, com sua força na

intensidade da experiência e em sua expressão. Sua limitação está em sua

subjetividade. Não oferece soluções, mas articula os problemas. Seus

dançarinos dirigem-se diretamente para a platéia, e falam sobre si mesmos.

(Partsh-Bergsohn, 2004).

Assim, durante todo o processo as preocupações coreográficas centraram-se na

valorização e reapropriação da própria gestualidade individual, construindo pontes destas com

o grupo, ampliando as possibilidades criativas (Castro, 1992).

Altamente autobiográfica, a dança-teatro tem sua força na intensidade da experiência,

não oferece soluções, mas articula os problemas. Faz uma arqueologia dos modos de vida,

busca uma nova percepção em oposição aos mundos de imagens pré-concebidas. Ela é fruto

da busca por uma linguagem para aquilo que não se pode expressar de outra forma,

explorando a lacuna entre a dança e o teatro num nível estético, psicológico e social. Dessa

forma, os bailarinos são a metáfora da sociedade tendo a condição humana como matéria

prima. São guiados na manipulação e transformação de sua história de vida.

No início do grupo nossa maior dificuldade foi justamente fazer a palavra circular. Os

bailarinos chegavam para um encontro onde o produto já era conhecido, não se permitiam

lançar a uma diferente possibilidade, não se permitiam encontrar com diferentes, e tão pouco

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nós terapeutas que, apesar de sabermos da importância daquela atividade, tínhamos que nos

deparar inúmeras vezes com a prática de criticá- la, de repensá- la e de cuidar constantemente

dos objetivos e dos papéis daquele grupo, já que na condição de louco a submissão torna-se

automática.

Percebemos que, para construirmos juntos, é necessário pensarmos juntos, partindo do

problema da desigualdade. Encontrar-se com a loucura pode ser encontrar-se com o diferente,

como são todos os encontros, mas também é encontrar-se com os desiguais. A história da

loucura como doença mental construiu uma visão de homem embotada e, nas relações em

saúde mental contemporâneas, faz-se necessário que esse engano seja retomado, que o outro

deixe de ser reificado pelos estudos dos sintomas e torne-se visível, desfazendo em nós o

sentimento de que o louco é alguém que perdeu seus direitos, parecendo-nos desprezível e

repugnante, cuja última atitude sã resultaria em submeter-se completamente ao saber psi.

A desigualdade não pode nunca dispensar os homens para que se mantenha. O

problema da loucura, tal qual o problema da desigualdade, é problema humano, problema

tornado visível pelo fato de carecermos de igualdade e liberdade em nossas relações. E a

experiência estética, a criação artística, pode trazer a essas relações a possibilidade de se

ressignificarem se forem vivenciadas num espaço de igualdade política, um espaço onde se

possa construir o entendimento dos campos da iniciativa e da palavra.

Referências Bibliográficas

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